marina colasanti no zoologico em companhia
TRANSCRIPT
“No zoológicoem companhia”
Fui trazida pela cegonha.
Vi a luz do império do Leão de Judá.
Fui transplantada em seguida para amamentar-me com o leite da Loba Capitolina.
O coelhinho levou meu primeiro dente.
O Bicho-Papão estabeleceu meu primeiro medo.
A Gata Borralheira foi minha primeira história.
O Gato-De-Botas a segunda.
Aos poucos, comecei a formar minha cultura estudando os feitos
das Águias Imperiais.
Estourada a guerra, agigantava-se o Urso alemão.
E ao mesmo tempo em que me debruçava sobre os
versos de Virgílio, Cisne de Mantua,
acompanhava pelo rádio os feitos de Rommel, Raposa do deserto.
Mas chegou a hora de a onça beber água, a guerra
acabou, e lá vim eu para o Brasil, terra de Zé
Carioca, que eu já conhecia através do símbolo
A Cobra Está Fumando.
No colégio soube da argúcia de Rui Barbosa, Águia de Haia.
Ainda demoraria um pouco para descobrir
o encanto de Rubem Braga, doce Sabiá da Crônica.
E só bem mais tarde mergulharia nas profundezas de Herman Hesse, Lobo da Estepe.
Criava aos poucos minha sabedoria. Na primavera descobri que uma andorinha não faz verão.
E no verão me dei conta de que mais vale um pássaro na mão que dois voando.
O primeiro susto me ensinou que cão que ladra não morde.
E com a primeira mordida aprendi que não se deve cutucar a onça com vara curta.
Sem ter exatamente sete vidas como um gato, ia levando minha vidinha.
Houve momentos em que tive fome de lobo, e outros em
que me vi com sede de camelo.
E ao longo do tempo me esforcei sempre para ser
como Cristo pediu aos Apóstolos: “prudente como
a cobra e simples como a pomba.”
Não posso dizer que seja astuta como a raposa, mas
garanto que não sou estúpida como uma anta,
nem burra como o próprio.
O mundo porém não é para pombas, e logo tive que reconhecer que o homem é o lobo do homem, embora
o seja mais da mulher, sobretudo quando é também porco chauvinista.
Apelei então para o cão, que, este sim, é o melhor
amigo do homem.
E sem me pavonear de minhas virtudes, nem morcegar as virtudes alheias, fui em frente.
Ah, não tenho lagartixado tanto quanto gostaria!
Assisti aos mais altos voos da águia americana (enquanto a águia do México ia perdendo suas penas).
Mas os capitalistas são tigres de papel e em festa de
nhambu jacu não entra.
Vai daí, eu que sou pobre e ainda não ganhei nenhuma fortuna no jogo do bicho,
tirei meu cavalinho da chuva e aderi ao velho sistema
de cada macaco no seu galho.
Em suma, sobrevivo sem apanhar como
boi ladrão.
Mas há dias em que me ponho a pensar na morte da bezerra, e
de tanto pensar amarro um bode.
Num mato sem cachorro, acabo rindo como uma hiena, certa de que é tudo obra do amigo-da-onça.
Espero apenas, como o peru, não morrer de véspera.
E enquanto espero, penso no tremendo vazio que seria minha vida sem a existência do reino animal.
Marina Colasanti
Imagens: Google Música: Chorinho - Sivuca
FormataçãoChristina Meirelles Neves