marilena chaui universidade operacional
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Marilena Chau professora no departamento de filosofia da USP, autora do livro Cultura
e Democracia (Ed. Cortez) e A Nervura do Real (Companhia das Letras), entre outros.
Ela escreve regularmente na seo Brasil 500 d. C., da Folha de So Paulo.
** Folha de So Paulo, 09 de maio de 1999. Caderno Mais!
A Universidade OperacionalMarilena Chau
A Reforma do Estado brasileiro pretende modernizar e racionalizar as atividades
estatais, redefinidas e distribudas em setores, um dos quais designado Setor dos
Servios No-Exclusivos do Estado, isto , aqueles que podem ser realizados por
instituies no estatais, na qualidade de prestadoras de servios. O Estado pode prover
tais servios, mas no os executa diretamente nem executa uma poltica reguladora dessa
prestao. Nesses servios esto includas a educao, a sade, a cultura e as utilidades
pblicas, entendidas como organizaes sociais prestadoras de servios que celebram
contratos de gesto com o Estado.
A Reforma tem um pressuposto ideolgico bsico: o mercado portador de
racionalidade sociopoltica e agente principal do bem-estar da Repblica. Esse pressuposto
leva a colocar direitos sociais (como a sade, a educao e a cultura) no setor de servios
definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espao pblico democrtico
dos direitos e amplia o espao privado no s ali onde isso seria previsvel nas atividades
ligadas produo econmica , mas tambm onde no admissvel no campo dos
direitos sociais conquistados.
A posio da universidade no setor de prestao de servios confere um sentido
bastante determinado idia de autonomia universitria e introduz termos como qualidade
universitria, avaliao universitria e flexibilizao da universidade.
De fato, a autonomia universitria se reduz gesto de receitas e despesas, de
acordo com o contrato de gesto pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores de
desempenho, que determinam a renovao ou no renovao do contrato. A autonomia
significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituio e prev que, para cumprir as
metas e alcanar os indicadores impostos pelo contrato de gesto, a universidade tem
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autonomia para captar recursos de outras fontes, fazendo parcerias com as empresas
privadas.
A flexibilizao o corolrio da autonomia. Na linguagem do Ministrio da
Educao, flexibilizar significa: 1) eliminar o regime nico de trabalho, o concurso pblico
e a dedicao exclusiva, substituindo-os por contratos flexveis, isto , temporrios e
precrios; 2) simplificar os processos de compras (as licitaes), a gesto financeira e a
prestao de contas (sobretudo para proteo das chamadas outras fontes de
financiamento, que no pretendem se ver publicamente expostas e controladas); 3)
adaptar os currculos de graduao e ps-graduao s necessidades profissionais das
diferentes regies do pas, isto , s demandas das empresas locais (alis, sistemtica
nos textos da Reforma referentes aos servios a identificao entre social e empresarial;
4) separar docncia e pesquisa, deixando a primeira na universidade e deslocando a
segunda para centros autnomos.
A qualidade definida como competncia e excelncia, cujo critrio o
atendimento s necessidades de modernizao da economia e desenvolvimento social; e
medida pela produtividade, orientada por trs critrios: quanto uma universidade produz,
em quanto tempo produz e qual o custo do que produz. Em outras palavras, os critrios da
produtividade so quantidade, tempo e custo, que definiro os contratos de gesto.
Observa-se que a pergunta pela produtividade no indaga: o que se produz, como se
produz, para que ou para quem se produz, mas opera uma inverso tipicamente ideolgica
da qualidade em quantidade. Observa-se tambm que a docncia no entra na medida da
produtividade e, portanto, no faz parte da qualidade universitria, o que, alis, justifica a
prtica dos contratos flexveis. Ora, considerando-se que a proposta da Reforma separa a
universidade e o centro de pesquisa, e considerando-se que a produtividade orienta o
contrato de gesto, cabe indagar qual haver de ser o critrio dos contratos de gesto da
universidade, uma vez que no h definio de critrios para medir a qualidade da
docncia.
O lxico da Reforma inseparvel da definio da universidade como organizao
social e de sua insero no setor de servios no-exclusivos do Estado. Ora, desde seu
surgimento (no sculo 13 europeu), a universidade sempre foi uma instituio social, isto ,
uma ao social, uma prtica social fundada no reconhecimento pblico de sua
legitimidade e de suas atribuies, num princpio de diferenciao, que lhe confere
autonomia perante outras instituies sociais, e estruturada por ordenamentos, regras,
normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da
universidade moderna fundou-se na conquista da idia de autonomia do saber diante da
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religio e do Estado, portanto na idia de um conhecimento guiado por sua prpria lgica,
por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua inveno ou descoberta
como de sua transmisso.
Por isso mesmo, a universidade europia tornou-se inseparvel das idias de
formao, reflexo, criao e crtica. Com as lutas sociais e polticas dos ltimos sculos,
com a conquista da educao e da cultura como direitos, a universidade tornou-se tambm
uma instituio social inseparvel da idia de democracia e de democratizao do saber:
seja para realizar essa idia, seja para opor-se a ela, a instituio universitria no pde
furtar-se referncia democracia como idia reguladora, nem pde furtar-se a responder,
afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista.
Que significa, ento, passar da condio de instituio social de organizao
social?
Uma organizao difere de uma instituio por definir-se por uma prtica social, qual
seja, a de sua instrumentalidade: est referida ao conjunto de meios particulares para
obteno de um objetivo particular. No est referida a aes articuladas s idias de
reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operaes
definidas como estratgias balizadas pelas idias de eficcia e sucesso no emprego de
determinados meios para alcanar o objetivo particular que a define. regida pelas idias
de gesto, planejamento, previso, controle e xito. No lhe compete discutir ou questionar
sua prpria existncia, sua funo, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que
para a instituio social universitria crucial, , para a oganizao, um dado de fato. Ela
sabe (ou julga saber) por que, para que o onde existe.
A instituio social aspira universalidade. A organizao sabe que sua eficcia e
seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituio tem a
sociedade como seu princpio e sua referncia normativa e valorativa, enquanto a
organizao tem apenas a si como referncia, num processo de competio com outras
que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituio percebe
inserida na diviso social e poltica e busca definir uma universalidade (ou imaginria ou
desejvel) que lhe permita responder s contradies impostas pela diviso. Ao contrrio, a
organizao pretende gerir seu espao e tempo particulares aceitando como dado bruto
sua insero num dos plos da diviso social, e seu alvo no responder s contradies,
e sim vencer a competio com seus supostos iguais.
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Como foi possvel passar da idia da universidade como instituio social sua
definio como organizao prestadora de servios?
A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentao de todas as esferas
da vida social, partindo da fragmentao da produo, da disperso espacial e temporal do
trabalho, da destruio dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas
da luta de classes. A sociedade aparece como uma rede mvel, instvel, efmera de
organizaes particulares definidas por estratgias particulares e programas particulares,
competindo entre si.
Sociedade e Natureza so reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque
ambas deixaram de ser um princpio interno de estruturao e diferenciao das aes
naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, meio ambiente; e meio ambiente
instvel, fluido, permeado por um espao e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer
densidade material; meio ambiente perigoso, ameaador e ameaado, que deve ser
gerido, programado, planejado e controlado por estratgias de interveno tecnolgica e
jogos de poder.
Por isso mesmo, a permanncia de uma organizao depende muito pouco de sua
capacidade interna e muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a
mudanas rpidas da superfcie do meio ambiente. Donde o interesse pela idia de
flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanas contnuas e inesperadas. A
organizao pertence ordem biolgica da plasticidade do comportamento adaptativo.
A passagem da universidade da condio de instituio de organizao insere-se
nessa mudana geral da sociedade, sob os efeitos da nova forma capital, e ocorreu em
duas fases sucessivas, tambm acompanhando as sucessivas mudanas do capital. Numa
primeira fase, tornou-se universidade funcional; na segunda, universidade operacional. A
universidade funcional estava voltada para a formao rpida de profissionais requisitados
como mo-de-obra altamente qualificada para o mercado de trabalho.
Adaptando-se s exigncias do mercado, a universidade alterou seus currculos,
programas e atividades para garantir a insero profissional dos estudantes no mercado de
trabalho, separando cada vez mais docncia e pesquisa. Enquanto a universidade clssica
estava voltada para o conhecimento e a universidade funcional estava voltada diretamente
para o mercado de trabalho, a nova universalidade operacional, por ser uma organizao,
est voltada para si mesma enquanto estrutura de gesto e de arbitragem de contratos.
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Regida por contratos de gesto, avaliada por ndices de produtividade, calculada
para ser flexvel, a universidade operacional est estruturada por estratgias e programas
de eficcia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos
objetivos. Definida e estruturada por normas e padres inteiramente alheios ao
conhecimento e formao intelectual, est pulverizada em microrganizaes que ocupam
seus docentes e curvam seus estudantes a exigncias exteriores ao trabalho intelectual.
A heteronomia da universidade autnoma visvel a olho nu: o aumento insano de
horas-aula, a diminuio do tempo para mestrados e doutorados, a avaliao pela
quantidade das publicaes, colquios e congressos, a multiplicao de comisses e
relatrios etc. virada para seu prprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a
universidade operacional opera e por isso mesmo no age. No surpreende, ento, que
esse operar co-opere para sua contnua desmoralizao pblica e degradao interna.
Que se entende por docncia e pesquisa, na universidade operacional, produtiva e
flexvel?
A docncia entendida como transmisso rpida de conhecimentos, consignados
em manuais de fcil leitura para os estudantes, de preferncia, ricos em ilustraes e com
duplicatas em CDs. O recrutamento de professores feito sem levar em considerao se
dominam ou no o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relaes entre ela e
outras afins o professor contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica
a algo muito especializado, ou porque, no tendo vocao para a pesquisa, aceita ser
escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporrios e precrios, ou melhor,
flexveis. A docncia pensada como habilitao rpida para graduados, que precisam
entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual sero expulsos em poucos anos, pois
tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartveis; ou como correia de
transmisso entre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. Transmisso e
adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docncia: formao.
A desvalorizao da docncia teria significado a valorizao excessiva da pesquisa?
Ora, o que a pesquisa na universidade operacional?
fragmentao econmica, social e poltica, imposta pela nova forma do
capitalismo, corresponde uma ideologia autonomeada ps-moderna. Essa nomenclatura
pretende marcar a ruptura com as idias clssica e ilustradas, que fizeram a modernidade.
Para essa ideologia, a razo, a verdade e a histria so mitos totalitrios; o espao e o
tempo so sucesso efmera e voltil de imagens velozes e a compresso dos lugares e
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instantes na irrealidade virtual, que apaga todo contato com o espao-tempo enquanto
estrutura do mundo; a subjetividade no a reflexo, mas a intimidade narcsica, e a
objetividade no o conhecimento do que exterior e diverso do sujeito, e sim um
conjunto de estratgias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de
pensamento.
A histria do saber aparece como troca peridica de jogos de linguagem e de
pensamento, isto , como inveno e abandono de paradigmas, sem que o conhecimento
jamais toque a prpria realidade. O que pode ser a pesquisa numa universidade
operacional sob a ideologia ps-moderna? O que h de ser a pesquisa quando razo,
verdade, histria so tidas por mitos, espao e tempo se tornaram a superfcie achatada de
sucesso de imagens, pensamento e linguagem se tornaram jogos, constructos
contigentes cujo valor apenas estratgico?
Numa organizao, uma pesquisa uma estratgia de interveno e de controle
de meios ou instrumentos para a consecuo de um objetivo delimitado. Em outras
palavras, uma pesquisa um survey de problemas, dificuldades e obstculos para a
realizao do objetivo, e um clculo de meios para solues parciais e locais para
problemas e obstculos locais. Pesquisa, ali, no conhecimento de alguma coisa, mas
posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa
organizao no h tempo para a reflexo, a crtica, o exame de conhecimentos
constitudos, sua mudana ou sua superao. Numa organizao, a atividade cognitiva no
tem como nem por que realizar-se.
Em contrapartida, no jogo estratgico da competio do mercado, a organizao se
mantm e se firma se for capaz de propor reas de problemas, dificuldades, obstculos
sempre novos, o que feito pela fragmentao de antigos problemas em novssimos
microproblemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentao,
condio de sobrevida da organizao, torna-se real e prope a especializao como
estratgia principal e entende por pesquisa a delimitao estratgica de um campo de
interveno e controle. evidente que a avaliao desse trabalho s pode ser feita em
termos compreensveis para uma organizao, isto , em termos de custo-benefcio,
pautada pela idia de produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e quanto
foi produzido.
Em suma, se por pesquisa entendermos a investigao de algo que nos alcana na
interrogao, que nos pede reflexo, crtica, enfrentamento com o institudo, descoberta,
inveno e criao; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da
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linguagem para pensar e dizer o que ainda no foi pensado nem dito; se por pesquisa
entendermos uma viso compreensiva de totalidades e snteses abertas que suscitam a
interrogao e a busca; se por pesquisa entendermos uma ao civilizatria contra a
barbrie social e poltica, ento, evidente que no h pesquisa na universidade
operacional.
Essa universidade no forma e no cria pensamento, despoja a linguagem de
sentido, densidade e mistrio, destri a curiosidade e a admirao que levam descoberta
do novo, anula toda pretenso de transformao histrica como ao consciente dos seres
humanos em condies materialmente determinadas.