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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSO” PROJETO A VEZ DO MESTRE ABORTO E ABORTO DE FETO ANENCÉFALO MARIA ROSA MORAIS DO PRADO ORIENTADOR PROF.: FRANCIS RAJZMAN RIO DE JANEIRO 2011

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSO”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

ABORTO E ABORTO DE FETO ANENCÉFALO

MARIA ROSA MORAIS DO PRADO

ORIENTADOR PROF.: FRANCIS RAJZMAN

RIO DE JANEIRO 2011

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSO”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

ABORTO E ABORTO DE FETO ANENCÉFALO

Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Pós-Graduação “Latu Senso” em Direito Penal e Processo Penal da Universidade Cândido Mendes

RIO DE JANEIRO 2011

MARIA ROSA MORAIS DO PRADO

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DEDICATÓRIA

Dedico esta monografia aos meus pais que me derão todo o apoio necessário para realizar

a segunda etapa de um grande sonho, e a Deus que me deu forças para superar a difícil

jornada que foi concluir este curso.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus, a minha avó (in memorian), aos meus pais por todo o

incentivo, e aos meus sobrinhos por cada sorriso dado no momento em que eu mais precisei.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________6

METODOLOGIA __________________________________________________8

CAPÍTULO I: ABORTO ____________________________________________9

1.1 Classificação Doutrinária _________________________________________9

1.2 Espécies de Aborto _____________________________________________9

1.3 Sujeito Ativo e Sujeito Passivo _____________________________________10

1.4 Consumação e Tentativa _________________________________________11

1.5 Meios de Realização do Aborto ____________________________________13

1.6 Aborto Legal ___________________________________________________13

CAPÍTULO II: A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E O DIREITO A VIDA______17

2.1 O início da vida humana e a sua Proteção Jurídica ____________________17

2.2 Conceito e Doutrinas acerca da Personalidade Jurídica do Nascituro _______19

2.3 A criminalização do aborto no Ordenamento Jurídico Brasileiro ___________20

CAPÍTULO III: O ABORTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA ______________22

3.1 Conceito de Anencefalia _________________________________________23

3.2 Conceito de morte e os critérios usados para a sua detectação ___________30

3.2.1 Aplicação dos Critérios de Morte Encefálica nos Portadores de

Anencefalia_______________________________________________________26

3.3 O Aborto nos casos de Anencefalia à Luz do Ordenamento Jurídico

e dos Princípios da Bioética __________________________________________27

CAPÍTULO IV: a ILICITUDE DO ABORTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA:

EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO _______________________________29

4.1 Direitos Fundamentais em Colisão _________________________________29

4.2 Princípio da Proporcionalidade _____________________________________31

4.2.1 Introdução ___________________________________________________31

4.2.2 Conceito ____________________________________________________32

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4.2.3 Os Princípios da Proporcionalidade na Constituição Federal de 1988 _____32

4.3 realização do Aborto do feto Anencéfalo como Exercício Regular de Direito _33

CAPÍTULO V: CONCLUSÃO ________________________________________36

BIBLIOGRAFIA ___________________________________________________38

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INTRODUÇÃO

A anencefalia é uma má formação comum, conhecida pela medicina e presente

na humanidade desde a antiguidade. Porém, a questão do aborto do feto anencéfalo

garantiu seu espaço nos tribunais recentemente, ou seja, depois que foi possível

diagnosticar a anomalia durante a gravidez. Com essa possibilidade, surgiu uma

grande polêmica na sociedade pressionando o judiciário a se manifestar diante do

problema.

Mesmo existindo muitas controvérsias, já que o feto não possui expectativa de

vida, várias pessoas ainda têm consciência da inviolabilidade do direito a vida. Logo,

existe o confronto entre esse direito fundamental e os princípios jurídicos. Mas, o

direito a vida é soberano e irrevogável, quer dizer, qualquer outro princípio, mesmo

que seja fundamental estará subordinado a ele.

Assim sendo, percebe-se que no ordenamento jurídico brasileiro não se aceita

nenhuma modalidade de interrupção de vida, já que o homem não é dono da mesma,

não é a ele que pertence o direito de abreviar a vida de outrem. No entanto, por

acreditarem que o sofrimento da mãe ao gerar um feto anormal é maior do que tirar a

vida dele, parte da população se mantém favorável ao aborto em caso de anencefalia,

igualmente se explica com base nos princípios da autonomia da pessoa humana e da

liberdade.

Por intervir na ordem da natureza, o aborto provoca um choque social

enorme o que desafia e pressiona os juristas a decidirem até onde a ciência da vida

poderá operar sem que exista agressão à dignidade da pessoa humana. Já que, os

avanços da medicina e da bioética terão somente que melhorar a qualidade de vida da

humanidade e não se esquecendo do valor do ser humano e da dignidade, isso incube

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mais ao feto, visto que, além do feto ter vida, é íntegro tanto quanto um ser que tenha

vida extra-uterina.

A averiguação tem por objetivo originar conhecimentos referentes à

solução do problema tão polêmico que é o aborto do feto anencéfalo, que envolve

especialmente a moral e o respeito pelo ser humano em seu interior. Adota o papel de

ampliar suas considerações, para que a sociedade toda possa se conscientizar sobre

esse problema, assim como parar de ignorar o nosso ordenamento jurídico e

principalmente compreender o correto significado da palavra vida. Comprovando que

todos os argumentos utilizados pelos movimentos abortistas não são concretos o

suficiente para fundamentarem a paralisação de uma gravidez.

O referido artigo engloba intensa investigação, para que seja fundamentado

o posicionamento demonstrado. A finalidade assumida foi o profundo estudo do caso,

de modo que se esclareceu detalhadamente o conhecimento referente ao texto

constitucional, bem como o intenso estudo sobre a anomalia anencefalia, e as

possibilidades de legalização do aborto do feto anencéfalo.

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METODOLOGIA

Para a elaboração deste trabalho acadêmico, foram feitas pesquisas em diversos

livros, jurisprudências, códigos e revistas acadêmicas. Ferramenta indispensável, hoje

em dia, a internet não pode ser ignorada, sendo usada também como base nas

pesquisas e coleta de dados. Claro que não podemos substituir os livros pela internet,

porém, ela é a ferramenta mais utilizada para a busca de jurisprudências.

Após o termino da pesquisa e da coleta de dados, foi elaborada a montagem do

trabalho a ser apresentado.

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1. ABORTO

1.1 Classificação Doutrinária

O aborto é considerado um crime de mão própria, quando for realizado pela própria

gestante, e comum nas outras hipóteses, em relação ao sujeito ativo.

É próprio quanto ao sujeito passivo, porque só o feto e a gestante podem

ocupar essa condição. Também pode ser omissivo (desde que seja imprópria a

omissão) ou comissivo, de dano, matéria, doloso, monossubjetivo, plurissubsistente,

de forma livre, não transeunte, instantâneo de efeitos permanente (se ocorrer à morte

de feto).

1.2 Espécies de aborto

Existem duas formas de aborto:

a) Natural ou Espontâneo: Se dá quando o próprio organismo da mãe do feto se incumbe

de eliminar o fruto da concepção.

O aborto natural ou provocado não nos interessa para a aplicação do direito penal,

tendo em vista que é o próprio organismo materno que se encarrega de selecionar os

óvulos fecundados que irão se desenvolver.

b) Aborto Provocado: Que pode ser forma dolosa ou culposa.

As espécies dolosas estão previstas nos arts 124, 125 e 126 do Código Penal.

Não existe previsão legal para o aborto na forma culposa, logo, se uma gestante

provocar um aborto, de forma culposa, o fato será um indiferente penal.

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1.3Sujeito Ativo e Sujeito Passivo

Precisamos fazer uma análise individualizada dos arts 124, 125 e 126 para que

possamos identificar o sujeito ativo e sujeito passivo do aborto.

O art 124 traz a modalidade do aborto provocado pela gestante ou aborto provocado

com o seu consentimento. No aborto provocado pela gestante, por ser considerado um

crime de mão própria, vamos ter somente a gestante como sujeito ativo do crime e, o

produto da concepção será protegido em suas diversas fases de desenvolvimento.

No art 125, que prevê o delito de aborto provocado por terceiro, sem o

consentimento da gestante, vem-se entendendo que qualquer pessoa pode ser o sujeito

ativo do crime, já que o tipo penal não estabelece nenhuma característica especial, será

o sujeito passivo, o produto da concepção, e, de modo secundário, a própria gestante.

Nesta modalidade de aborto, ocorre dupla subjetividade passiva: que é a gestante e o

feto.

A última modalidade diz respeito ao aborto provocado por terceiro, com o

consentimento da gestante. Aqui também qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo do

crime. Quanto ao sujeito passivo, entendemos que somente o fruto da concepção

(óvulo, embrião ou feto) é que poderá gozar desse status, pois que se a gestante

permitem que com ela seja praticada as manobrar abortivas, as lesões de natureza leve

porventura sofridas não a conduzirão a também assumir o status de sujeito passivo,

dado o seu consentimento. Contudo, sendo graves as lesões ou ocorrendo à morte da

gestante, esta também figurará como sujeito passivo, mesmo que secundariamente,

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haja vista a invalidade de seu consentimento, em decorrência da gravidade dos

resultados. 1

1.4 Consumação e Tentativa

O delito do aborto é um crime material, que se concretiza com a morte do produto

da concepção. Não necessariamente que o óvulo fecundado, feto ou embrião, sejam

eliminados, inclusive, pode ocorrer no útero materno a sua petrificação.

Noronha explica que:

Consuma-se o crime com a morte do feto, resultante da interrupção da gravidez.

Pode ocorrer dentro do útero materno como ser subseqüente expulsão prematura.

Carece de razão Logoz quando escreve que ‘o delito está consumado pela expulsão

do foetus’. Não é esse o momento consumativo. Pode haver expulsão sem existir

aborto, quando, no parto acelerado, o feto continua a viver, embora com vida

precária ou deficiente; pode ser expulso, já tendo, entretanto, sido morto no ventre

materno; pode ser morto aí, e não se dar a expulsão, e pode ser morto juntamente

com a mãe, sem ser expulso. Em todas essas hipóteses, é a morte do feto que

caracteriza o momento consumativo.2

1 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial, v.2, p.275. 2 NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal, p.52.

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A prova essencial de que o feto estava vivo na hora da omissão ou da ação do

agente, conduzidas no caminho de causar a morte, pois, caso contrário, se o feto já

estivesse morto na hora da realização da conduta do agente, o crime seria impossível,

em razão da total impropriedade do meio.

A doutrina não determina, para fins de concretização do aborto, que seja viável o

feto, quer dizer, que tenha uma aptidão de desenvolvimento que o leve à maturação.

Na condição de crime material, é aceitável a tentativa de aborto. Caso o agente já

tenha começado os atos de execução e, por motivos alheios à sua vontade, não puder

consumar a infração penal, terá que ser responsabilizado pela tentativa de aborto.

Deverá, no caso concreto, ser apontado o início da execução, distinguindo-o dos

atos meramente preparatórios, que são impuníveis de acordo com a regra prevista no

inciso II, do art. 14, do Código Penal. Imagine-se a situação em que a gestante é

surpreendida na sala de espera de uma clínica que, sabidamente, somente tinha por

finalidade praticar abortos. Aquele local já estava sendo objeto de investigação há

algum tempo, sendo que os policiais concluíram que ali não se fazia outra coisa a não

ser realizar abortos. Pergunta-se: A gestante que fora surpreendida ma sala de espera

poderia responder pela tentativa de aborto? A pergunta requer uma resposta mais

elaborada, pois que diversas teorias procuram levar a efeito a distinção entre um ato

preparatório impunível de um ato de execução punível. Para nós, o fato seria atípico,

pois que estar aguardando para ser atendida, mesmo que para realização de um aborto,

não se configura início de execução, mas ato de mera preparação.3

3 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial, v.2, p. 278.

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1.5Meios de realização do aborto

Pode-se realizar o aborto com o emprego de diversos meios.

Segundo Mirabete:

Os processos utilizados podem ser químicos, orgânicos, físicos ou psíquicos. São

substâncias que provocam a intoxicação do organismo da gestante e o conseqüente

aborto: o fósforo, o chumbo, o mercúrio, o arsênico (químicos), e a quinina, a

estricnina, o ópio, a beladona etc. (orgânicos). Os meios físicos são os mecânicos

(traumatismo do ovo com punção, dilatação do colo do útero, curetagem do útero,

microcesária), térmicos (bolsas de água quente, escalda-pés etc.) ou elétricos

(choque elétrico por máquina estática). Os meios psíquicos ou morais são os que

agem sobre o psiquismo da mulher (sugestão, susto, terror, choque mental etc.). 4

Assim, tanto pode produzir a morte do feto, por exemplo, aquele que introduz

instrumento cortante no útero da gestante, como aquele que, conhecedor de que a

gestante sofre da chamada “síndrome do pânico”, cria-lhe situação de terror

insuportável.56

1.6 Aborto legal

Prevê o art. 128 do Código Penal duas modalidades de aborto legal, isso quer

dizer, que o aborto pode ser cometido em decorrência de autorização da lei penal. Eles

são: aborto terapêutico ou profilático e aborto sentimental, humanitário ou ético.

4 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, p.95. 5 GRECO, Rogério. Curso de direito penal- parte especial, v.2, p.281.

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Na hipótese do aborto necessário, que é também conhecido como aborto

terapêutico ou profilático, não se tem dúvida em dizer que se diz respeito a uma causa

de argüição correspondente ao estado de necessidade.

Não podemos deixar de citar o pensamento referente ao estado de necessidade no

que diz respeito ao chamado aborto necessário. Já que, segundo a redação do art. 128,

I, do Código Penal, entre a vida da gestante e a vida feto, a lei optou por aquela. São

protegidos juridicamente, ambos os bens. Para que um subsista o outro deve aparecer.

Portanto, a lei penal optou pela vida da gestante a do feto. Quando ficamos perante o

conflito de bens protegidos pela lei penal, ficamos, também, como norma, perante a

situação de estado de necessidade, desde que estejam presentes todos os requisitos

expressos no art. 24 do Código Penal. Na verdade, a discussão, se refere à natureza

jurídica da segunda modalidade de aborto legal, o que chamamos de aborto

sentimental ou humanitário, no caso de a gravidez ser resultante de estupro.

Aníbal Bruno afirma que:

Em verdade, a questão aí está muito aquém do caso em que se trata de preservar a

vida da mulher. Dificilmente se poderia reduzir a hipótese a um estado de

necessidade. Mas razões de ordem ética ou emocional que o legislador considerou

extremamente ponderáveis têm introduzido essa descriminante em algumas

legislações, atitude incentivada por episódios graves que realmente reclamavam

medidas de exceção. 7

E continua Aníbal:

No curso das duas grandes guerras, os inúmeros atos de violência sexual praticados

por soldados inimigos nos países invadidos, com a conseqüência de numerosas

7 BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p.173.

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concepções ilegítimas, deram ao problema uma dimensão particular, fazendo-o sair

do domínio do interesse privado para o do interesse público, político, suscitando,

sobretudo depois da primeira guerra, ardorosos debates. Foi então legitimada a

intervenção abortiva nos casos de concepção resultante de violência. 8

Para a grande parte dos doutrinadores, na hipótese de gravidez que seja

resultante de estupro, o aborto feito pela gestante não será considerado antijurídico.

Enfim, no inciso II do art. 128 do Código Penal existem dois bens em

confronto: de um lado, a vida do feto, tutelada pelo nosso ordenamento jurídico desde

a concepção; do outro, como sugere Frederico Marques, a honra da mulher vítima de

estupro, ou a dor pela recordação dos momentos terríveis pelos quais passou nas mãos

do estuprador. Adotando-se a teoria unitária ou a diferenciadora, a solução para este

caso seria a mesma. Pela redação do art. 24 do Código Penal, somente se podem alegar

o estado de necessidade quando o sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável

exigir-se. Ora, existe uma vida em crescimento no útero materno, uma vida concebida

por Deus. Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser humano e a honra

da gestante estuprada optar por esse último bem, razão pela qual, mesmo adotando-se

a teoria unitária, não poderíamos falar em estado de necessidade. Com relação à teoria

diferenciadora, o tema fica mais evidente. Se o bem vida é de valor superior ao bem

honra, para ela o problema se resolve não em sede de ilicitude, mas, sim no terreno da

culpabilidade, afastando-se a reprovabilidade da conduta da gestante que pratica o

aborto.

Da mesma maneira, não podemos ver o emprego das outras causas

excludentes da ilicitude do art. 128, II do Código Penal. Não se aborda a legítima

8 BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p.173.

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defesa, já que o feto não está agredindo à gestante injustamente; não há que se dizer

em estrito cumprimento de dever legal, visto que inexiste o dever legal de matar, a não

ser nos fatos excepcionais, que estão previstos na Constituição Federal, em seu art. 84,

XIX; E menos ainda pode se debater com o exercício regular de direito, sabendo-se

que o nosso ordenamento jurídico, na verdade, quer é resguardar a vida, e não destruí-

la. 9

9 GRECO, Rogério. Curso de direito penal- parte especial, v.2, p.286.

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2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO E O DIREITO A VIDA

2.1 O início da vida humana e a sua proteção jurídica

O conceito de vida humana e o momento em que esta se inicia são temas que

pertencem às ciências médicas e biológicas. À ciência jurídica cabe, tão-somente, dar-

lhe o enquadramento legal, ou seja, estabelecer quando se inicia e quando termina a

proteção jurídica do bem da vida e com qual abrangência. 10

Há uma controvérsia entre as ciências médicas e biológicas, em relação à

determinação do início da vida, havendo inúmeras teorias a esse respeito. Porém, a que

vem prevalecendo é a que a vida humana se inicia com a concepção.

Segundo Dernival da Silva Brandão:

A embriologia demonstra que a nova vida tem início com a fusão dos gametas –

espermatozóide e óvulo – duas células germinativas extraordinariamente

especializadas e teologicamente programadas, ordenadas uma à outra. Dois sistemas

separados interagem e dão origem a um novo sistema; e este, por sua vez, dá início a

uma série de atividades concatenadas, obedecendo a um princípio único, em um

encadeamento de mecanismos de extraordinária precisão. Já não são dois sistemas

operando independentemente um do outro, mas, um único sistema que existe e opera

em unidade: é o zigoto, embrião unicelular, que compartilha não apenas o ácido

desoxirribonucléico (ADN), mas todos os cromossomos de sua espécie, a espécie

humana, cujo desenvolvimento, então iniciado, não mais se detém até a sua morte.

(...) É, portanto, um ser vivo humano e completo. Humano em virtude de sua

constituição genética específica e de ser gerado por um casal humano, uma vez que

10 Segundo a juíza Jutta Limbach, em voto proferido em decisão envolvendo a descriminalização do aborto, “assim como é correto afirmar que a ciência jurídica não é competente para responder à pergunta de quando se inicia a vida humana, também é certo que as ciências naturais não estão em condições de responder desde quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção do direito constitucional”. (Apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Cit., p.43)

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cada espécie só é capaz de gerar seres da sua própria espécie. Do ponto de vista

biológico não existe processo de humanização. Ou é humano desde o início de sua

vida ou não será jamais: não há momento algum que marque a passagem do não

humano ao humano. Completo, no sentido de que nada mais de essencial à sua

constituição lhe é acrescentado após a concepção.11

Todo o ciclo da vida é abrangido pela proteção constitucional. Para completar seu

ciclo o processo vital apresenta várias fases. Dá início com o marco inicial do

desenvolvimento humano, que é a fecundação, e dá continuidade com a implantação, o

ciclo embrionário, o ciclo fetal, o nascimento, a infância, a idade adulta e a velhice, até

a morte. Dá-se em todas as fases a proteção constitucional.

A proteção constitucional não se limita a vida biológica. Ao tutelar a vida, o

ordenamento jurídico, confere ao Estado o dever de ampla proteção. Veicula o direito

de ter garantido o desenvolvimento intra-uterino normal, de vir com vida, e de não ser

privado de viver, bem como de possuir uma vivência digna. O respeito à vida digna

pressupõe a certeza doa direitos fundamentais ligados a ela, o que inclui não só os

direitos básicos para sobrevivência, como todos os direitos relacionados ao bem-estar

social e psíquico.

A proteção a vida abrange, também, a proteção ao patrimônio genético de toda a

humanidade e de cada indivíduo, em particular. O patrimônio genético foi tutelado na

Constituição federal de 1988. Seu art. 225, ao tratar do direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado como direito das presentes e futuras gerações, estabelece

que, para assegurar a efetividade desse direito, cabe ao Poder Público preservar a

11 BRANDÂO, Dernival da Silva. O Embrião e os Direitos Humanos. O Aborto Terapêutico. In: A Vida dos Direitos Humanos: Bioética Médica e Jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. P. 22-23. No mesmo sentido: WILKS, Jonh. Contracepção Pré-Implantatória e de Emergência. In: Lexicon: Termos Ambíguos e Discutidos sobre Família, Vida e Questões Éticas/Pontifício Conselho para a família.Brasília: CNBB, 2007. P. 123-124 e SERRA, Angelo. Dignidade do Embrião Humano. In: Lexicon: Termos Ambíguos e Discutidos sobre Família, vida e questões éticas/pontifício conselho para a família. Brasília: CNBB, 2007. P. 191-197.

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diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades

dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, além do dever de controlar a

produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que

comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (CF, art225, § 1º,

incisos II e V).12

No âmbito internacional, foi adotada pela UNESCO, em 1997, a Declaração

Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Já em 2003, foi adotada,

também pela UNESCO, a Declaração Internacional sobre os dados genéticos

Humanos. É a consolidação internacional de parâmetros jurídicos aos avanços trazidos

pela Revolução Genética. Com a Proclamação do genoma humano e da informação

nele contida como patrimônio comum da humanidade, esta passa a ser sujeito de

direitos. Trata-se de efetivo avanço no âmbito do Direito Internacional dos Direitos

Humanos.13

Agrupada nas gerações atuais e futuras, a humanidade é sujeito de direitos, no que

diz respeito ao seu patrimônio genético e, com isso, titular do direito da sua

integridade genética. Constituição genética de um indivíduo, o genoma, passou a ser

tutelado pelo Direito Internacional.

Em decorrência da individualidade de cada ser humano, o genoma humano requer

instrumentos próprios de proteção legal.14

2.2

2.3

12 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.46. 13 GARCIA, Maria. Limites da Ciência: A dignidade da Pessoa Humana: A ética da responsabilidade. São Paulo: Revista dos tribunais, 2004. P. 102 14 Idem, ibidem, p. 109-110.

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2.2 Conceito e doutrinas acerca da personalidade jurídica do nascituro

Nascituro é a pessoa já concebida no ventre materno e que ainda não veio à luz.15

A partir da fecundação natural, existe um ser humano com personalidade jurídica.

Por isso, o tratamos de pessoa. Se a fecundação for in vitro, é preciso implantar o

embrião no útero da mulher para que ele possa ter chances de se desenvolver. Não

existe dúvida que se trata de um ser humano. Porém, ainda falta um conceito legal em

relação ao status jurídico do embrião que ainda não foi implantado no útero materno.

Embora a vida comece com a fecundação (natural ou in vitro), no estágio atual da

ciência, é com a implantação do concepto no útero materno que a vida torna-se viável.

A implantação dá-se com a nidição, que é o início da gravidez. A teoria da viabilidade,

no entanto, não foi acolhida pelo direito brasileiro como requisito para o

reconhecimento da personalidade. O nascituro é pessoa desde a concepção e, por isso,

titular de direitos compatíveis com sua condição especial de ser concebido, no ventre

materno, mas que ainda não veio à luz.16

O conceito de nascituro tem suas raízes no Direito Romano. Seu conceito

tradicional pressupõe a concepção in vivo. Por isso, nas hipóteses de fecundação in

vitro, antes de implantar-se o embrião no útero da mulher, surge a questão não só

jurídica como ética de definir o status do embrião pré-implantatório.17

Em relação à personalidade jurídica do nascituro, o art. 2º do Código Civil

expressa: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Este artigo causa inúmeras

discussões doutrinárias devido ao início da personalidade jurídica do nascituro.

15 Segundo o Dicionário Aurélio, nascituro é: 1. “aquele que há de nascer. 2. Diz-se dos, ou os seres concebidos, mas ainda não dados à luz.” 16 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela Civil do Nascituro. Cit. , p.292. 17 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Bioética e Dano Pré-Natal. Cit., p.65.

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21

A personalidade jurídica do nascituro começa com a concepção, logo, é nesse

momento que ele passa a ser titular de direitos. Se ele tem personalidade, ele é pessoa,

e com isso, ele é titular de direitos essenciais para a sua própria condição, que passam

a existir antes do nascimento e independe se ele vai nascer com vida. Abordam-se os

direitos fundamentais referentes à sua condição de pessoas que está por nascer. Esses

direitos não dependem de previsão legal.

Portanto, o nascituro tem personalidade jurídica a partir do momento da concepção.

Então, a partir desse momento, e não do seu nascimento com vida, ele é titular de

direitos que sejam compatíveis com a sua natureza de ser concebido no ventre materno

e que ainda não nasceu.

2.3 A criminalização do aborto no ordenamento jurídico brasileiro

Co relação ao ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição de 1988, no art. 5º,

inc. XXXVIII reconhece à instituição do júri a competência para julgar os crimes

dolosos contra a vida, dentre eles o aborto. Diante desse dispositivo, poderia entender-

se que o constituinte estabeleceu q proibição absoluta do aborto, o que é um equívoco,

diante do que se infere a partir dos princípios de interpretação dos direitos

fundamentais.18

O bem jurídico tutelado no delito de aborto (CP, arts. 124, 125 e 126) é a vida

humana intra-uterina. É vida em formação e por isso vida dependente.19 Tutela-se,

também, a vida e a integridade física da gestante no aborto provocado por terceiro sem

o seu consentimento.20

18 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p. 57. 19 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Cit. , p. 108-109. 20 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Cit. , p. 62-63.

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22

O momento que se inicia o crime de aborto ocorre com a nidação. E o final é até o

início do parto. Após o início do parto, a morte do nascente pode configurar o crime de

homicídio ou infanticídio.

O limite entre a forma do crime de aborto e o de infanticídio é obtido pelo tipo

penal de infanticídio. Conforme o art. 123 do Código Penal configura infanticídio

matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo

após. Com isso, se ocorrer à morte do produto da concepção antes de se dar início ao

parto, será aborto. Caso ocorra após o início do parto, será infanticídio ou homicídio.

No âmbito da proteção à vida, a legislação penal faz distinção entre a vida humana

intra-uterina e extra-uterina, ao sancionar com maior rigor o homicídio com relação ao

aborto. A tutela penal amplia-se a partir do nascimento (até este momento há vida

humana dependente da gestante), quando o crime de aborto cede lugar ao de homicídio

ou de infanticídio, o que demonstra haver uma graduação na valoração jurídico-penal

da vida. Apesar de o bem jurídico ser o mesmo – ou seja, vida humana-, a proteção

jurídica é distinta.21 Porém, como já mencionado, observamos que existe uma lacuna

no sistema jurídico, uma vez que, na fecundação artificial, enquanto o embrião não

tiver sido implantado no útero materno, não usufrui de nenhuma proteção penal em

relação à tutela da sua vida.

3. O ABORTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA

3.1 Conceito de Anencefalia

21 CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico-Penais da eutanásia. Cit., p. 101.

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23

O encéfalo é “parte do sistema nervoso central, contida na cavidade do crânio e

que abrange o cérebro, o cerebelo, a protuberância e o bulbo raquiano”.22Devido à

complexidade de seu desenvolvimento embriológico, não é incomum seu

desenvolvimento anormal na espécie humana.23Uma das malformações do encéfalo, é

configurada pela anencefalia. O anencéfalo necessita de uma parte grande do sistema

nervoso central. Porém, por resguardar o tronco encefálico, conserva as funções vitais,

como, por exemplo, o sistema cardíaco e o sistema respiratório. É também capaz de

reagir a estímulos, de manter a temperatura corporal e de realizar os movimentos de

sugação e de deglutição.24Mas, as reações são especificamente reflexas e, logo, são

características do estado vegetativo.

A malformação o incapacita para as funções relacionadas à consciência e à

capacidade de percepção, de cognição, de comunicação, de afetividade e de

emotividade. Ele não apresenta qualquer grau de consciência e, por isso, jamais

compartilhará da experiência humana25. Ele é um ser humano vivo, mesmo com toda a

efemeridade e precariedade da sua vida.

Segundo estudos epidemiológicos, a malformação está relacionada a vários

fatores de natureza genética e/ ou ambiental26, tais como localização geográfica, sexo,

etnia, raça, época do ano, classe social e histórico familiar. Trata-se de doença

22 Dicionário Aurélio. O conceito apresentado pelo Dicionário Médico é praticamente o mesmo. Segundo ele, o encéfalo “é a parte do sistema nervoso central contido na cavidade craniana; consiste em cérebro, cerebelo, protuberância e bulbo”. (BLAKISTON. Dicionário Médico. 2. Ed. São Paulo: Andrei, 1982) 23 MOORE, Keith L.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. 5. Ed. Tradução de Fernando Simao Vuman. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1994. 24 MINAHIM, Maria Auxiliadora. A preservação da vida em Face da Biotecnologia: Inserção de Novas Antinomias no Direito Penal. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. Revista dos Tribunais, a. 2, v. 3, p. 119, jul./ dez. 2005. 25 CANÓ, Eduardo Nozaki. Autorização Judicial para a Interrupção da Gravidez de Fetos com Anencefalia. Cit., p. 1. De acordo com o mesmo autor: “Anencefalia é a ausência congênita da maior parte do cérebro, crânio e couro cabeludo. O tecido neural fica exposto sem a cobertura do couro cabeludo e do crânio. Apesar de poder correr algum desenvolvimento dos hemisférios cerebrais, mesmo com esta alteração da neurulação, há destruição subseqüente do tecido exposto, produzindo uma massa fibrótica e hemorrágica de neurônios e células da glia, sem um córtex cerebral funcional. A extensão do dano ao tecido neural, além do córtex cerebral, pode variar de nenhum, até acometer a medula espinhal”. 26 MOORE, Keith L.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. Cit., p. 378.

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relativamente comum, mas que vem decaindo nas últimas décadas de cinco para dois a

cada 10 mil nascidos vivos27. É mais freqüente no sexo feminino, sendo a proporção

de duas a quatro vezes28. Por ser malformação letal, a sobrevida extra-uterina é

geralmente por pequeno período de tempo, Aproximadamente 75% dos conceptos

nascem mortos e o restante, salvo raríssimas exceções, falece no período neonatal29.

Assim, apesar de os anencéfalos que nascem com vida sobreviverem geralmente

poucas horas ou dias após o parto30, há alguns registros de sobrevivência durante

meses31. O prognóstico é certo, nos casos de sobrevivência. Até o seu perecimento,

existe uma progressiva deteorização do organismo. A vida extra-uterina das crianças

que nascem com anencefalia é praticamente impossível.

3.2 Conceito de morte e os critérios utilizados para a sua detectação

As ciências médicas e biológicas sempre enfrentaram a questão da determinação

do início e do término da vida humana. Com relação à morte, seu conceito é também

controverso nas ciências médicas. No entanto, para determinar-se o momento da morte

é preciso antes defini-la32. E mesmo no âmbito das ciências médicas não é fácil definir

a morte. A realidade empírica demonstra e as ciências médicas comprovam que a

morte não é, em geral, fenômeno instantâneo, mas um processo que se alonga no

27 GHERPELLI, José Luiz Dias. As Principais Causas Pré e Perinatais do desenvolvimento Anormal do Sistema nervoso Central – Malformações. Capítulo 24.1. In: A Neurologia que todo Médico deve saber. Cit., p. 418. 28 MOORE, Keith.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. Cit.; p. 378. 29 GHERPELLI, José Luiz Dias. As principais Causas Pré e Perinatais do Desenvolvimento Anormal do Sistema Nervoso Central – Malformações. Capítulo 24.1, In: A neurologia que todo médico deve saber. Cit., p. 418. 30 MOORE, Keith.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. Cit.; p. 379 31 REZENDE, Jorge de. Obstetrícia. Cit., p. 1.073. 32 A afirmação de que um indivíduo está vivo ou morto pode depender do entendimento que se tenha de morte. O conceito de morte pode variar segundo as diferentes culturas, religiões, filosofias e critérios científicos. Consideramos apenas os critérios científicos, por mais dignos que sejam de respeito todos os outros. Assim, fundamentaremos nosso trabalho nos critérios científicos, que também, como veremos, apresentam substanciais divergências em seus critérios de determinação da morte.

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tempo. Ela ocorre em etapas e, por isso, em um espaço determinado de tempo. Não é,

em geral, a parada total e instantânea da vida, mas um fenômeno lento e progressivo33.

Quando aos critérios para se constatar a morte, há grande divergência nas ciências

médicas. Até a metade do século passado, dominava como válido para o diagnóstico

da morte o critério da parada cardiorrespiratória34. A para da circulação sanguínea e

das atividades respiratórias representavam a morte. Porém, com o avanço da medicina,

através das técnicas de reanimação e com o surgimento dos aparelhos aptos a

substituírem a respiração, houve a necessidade de achar outros critérios para a

detectação da morte.

Através de novos estudos, a ciência médica passou a usa o critério da morte

encefálica. Os médicos Mollaret e Goulon realizaram os primeiros estudos nessa área,

em 1959, e vincularam o termo coma irreversível. Eles expuseram o caso de vários

doentes em coma, que tinha suas funções cardiorrespiratórias mantidas artificialmente,

mas, que não apresentavam nenhuma prova de função cerebral.

Nas décadas seguintes, houve vários avanços na detectação da morte encefálica.

Em 1981, a President’s Comission n the study of ethical problems in medicine and

biomedical and behavioral research estabeleceu os termos atuais para definição de

morte encefálica. Definiu-se morte encefálica como a cessação irreversível de todas as

funções do encéfalo, incluindo as do tronco encefálico. Estabeleceu-se, ainda, que a

cessação dessas funções poderia ser avaliada por todos os métodos disponíveis, tanto

os clínicos quanto os laboratoriais. Referida comissão também reconheceu que a

33 MARLET, José Maria. Conceitos Médico-Legal e Jurídico de Morte. Justitia. São Paulo, v. 138, n. 49, p. 44, abr./ jun. 1987. 34 ALVAREZ, P. Martinez-Lage; MARTINEZ-LAGE, J. M. E Diagnóstico Neurológico de La Muerte. In: Manual da Bioética General. 4. Ed. Madrid: RIALP, 2000. P. 407.

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atividade celular elétrica, mesmo presente em um grupo restrito de células, somente

seria considerada em funcionamento se fosse de forma organizada e direcionada35.

A segunda vertente é de origem britânica. Nessa vertente, destacaram-se os

trabalhos publicados pela Conference of Royal Colleges and Faculties of the United

Kingdon, na Inglaterra, entre os anos de 1976 e 1979, nos quais se defendeu que

bastava o diagnóstico clínico de morte irreversível do tronco encefálico para inferir a

morte encefálica. A realização de exames subsidiários não era necessária nem

tampouco obrigatória36. Logo, definiu-se a morte como a perda total e irreversível de

todas as funções do tronco cerebral.

Atualmente, a comunidade científica mundial aceita a constatação da morte

encefálica como morte humana. Entretanto, o que vem gerando importante polêmica

nas ciências médicas é que os critérios para diagnosticar-se a morte encefálica nem

sempre são os mesmos. Não há unanimidade entre estudiosos e pesquisadores na área

das ciências médicas, quanto ao modo de averiguar-se a morte encefálica37.

Com a morte encefálica, as funções vitais não permanecem por mais de duas

semanas, independentemente das medidas médicas tomadas. A partir dela, é possível

interromper a administração de medicamentos, a utilização de aparelhos e, com a lei

de transplantes (Lei 9.434/97), há a possibilidade de removerem-se órgãos, tecidos e

partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. O Conselho Federal de

Medicina regulamentou, mediante parecer, o diagnóstico de morte encefálica e

autorizou qualquer médico, independentemente da especialização, a comprovar

clinicamente o estado de morte encefálica. O Conselho Regional de São Paulo

35 RABELLO, Getúlio Daré. Coma e estados Alterados de Consciência. Capítulo 7. In: Nitrini, Ricardo; BACHESCH, Luiz Alberto (Orgs). A neurologia que todo Médico deve saber. Capítulo 7.2. Ed. São Paulo: Atheneu, 2003. P. 167. 36 ALVAREZ, P. Martinez-Lage; MARTINEZ-LAGE, J. M. E Diagnóstico Neurológico de La Muerte. In: Manual da Bioética General. Cit., p. 408. 37 RABELLO, Getúlio Daré. Coma e estados Alterados de Consciência. Capítulo 7. In: A Neurologia que todo médico deve saber. Cit., p. 167.

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recomenda seguir o modelo do protocolo do hospital de clínicas da Universidade

Federal do Paraná, formulado em 1986. Entretanto, cada instituição pode elaborar seu

próprio protocolo38.

No âmbito jurídico, o conceito de morte advém das ciências médicas39. No âmbito

jurídico, é essencial ser comprovado o momento da morte, para que se possam instituir

quais serão as conseqüências jurídicas do fato e resguardar, posteriormente, a

segurança nas relações jurídicas.

3.2.1 Aplicação dos Critérios de Morte Encefálica nos Portadores de Anencefalia

Determinado o conceito e os critérios para a detectação da morte encefálica,

indaga-se se esses critérios podem ser usados nos diagnósticos da morte dos bebês

com anencefalia.

A medicina e Resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina reconhecem

que, não existe um acordo quanto à utilização dos critérios atuais para que seja

detectada a morte encefálica nas crianças com menos de sete dias de nascido e

prematuros, o que ocorre na maioria dos casos de anencefalia, devido à prolixidade da

sobrevivência que possuem os portadores desta malformação. Nota-se que o debate é

ainda mais abrangente, já que não existe um acordo entre os autores na área da

medicina em relação aos critérios utilizados para diagnosticar a morte do bebê de um

modo geral.

38 RABELLO, Getúlio Daré. Coma e estados Alterados de Consciência. Capítulo 7. In: A Neurologia que todo médico deve saber. Cit., p. 166-167. 39 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia, Bioética e Vidas Sucessivas. Sorocaba: Brazilian Books, 2001. P. 241.

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Os desacordos fazem referência ao tempo preciso para se observar as crianças, e

assim, poder determinar a irreversibilidade do processo e a precisão de se aplicar ou

não os métodos de confirmação da morte por anencefalia.

Assim, não há atualmente consenso quanto aos critérios para diagnosticar-se a

morte de crianças, especialmente os prematuros e os menores de sete dias. Quanto aos

critérios para diagnosticar-se a morte de bebê anencéfalo, não há posição clara e

precisa sobre o assunto por parte dos estudiosos das ciências médicas. A questão é

ainda mais controversa, porque há o entendimento, defendido por alguns

doutrinadores, tanto na área jurídica quanto médica, de que o anencéfalo é um

natimorto. Entretanto, se entender-se que ele é natimorto, não há que se comprovar sua

morte, uma vez que ele já está morto40.

3.3 O aborto nos casos de anencefalia à luz do Ordenamento Jurídico e dos

Princípios da Bioética

É possível detectar a anencefalia no começo da gravidez, através do exame de pré-

natal, mais especificamente na ultrassonografia. Não sendo diagnosticada logo no

início da gravidez, ou caso exista alguma dúvida quanto ao diagnóstico, entre a

vigésima semana e a vigésima segunda, pode ser feito com total certeza. Logo, o

argumento que poderia existir erro no diagnóstico, é um pouco difícil, perante os

avanços da medicina e da tecnologia. A medicina não possui nenhum tipo de

tratamento que possa reverter essa situação. O portador de anencefalia está destinado a

viver uma vida vegetativa por um pequeno tempo até a sua morte.

40L IMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p. 85.

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Essa realidade completamente nova faz surgir nova realidade jurídica, na qual se

discute a colisão de bens constitucionalmente tutelados: de um lado, há o direito da

gestante à saúde física, psíquica e social e o direito à liberdade de escolha, quanto a

continuar ou não a gestação e, de outro, há o direito à vida intra-uterina do anencéfalo.

A solução jurídica dessa colisão de direitos encontra resposta na interpretação da

Constituição de 1988, por meio da análise dos princípios constitucionais de

interpretação e da aplicação dos direitos fundamentais, assim como no Direito Penal

dos fundamentos e princípios da bioética41.

A palavra bioética vem da fusão de vocábulos de origem grega. Bio significa vida e

ethos significa ética. Logo, o significado ético da vida. Refere-se a um ramo da

filosofia ética. E é uma reflexão sobre o comportamento humano. Desde então, as

questão éticas que tem relação com a vida sempre preocupam a sociedade. Por isso, há

doutrinadores que afirmam que o termo bioética é errôneo, por trata-se de um truísmo

uma vez que a ética é a ciência que estuda o comportamento moral dos homens em

sociedade e, conseqüentemente, trata das questões relacionadas à vida humana42.

Estão regulamentados no âmbito internacional, os princípios fundamentais da

bioética, através da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos humanos, tomada

por aclamação no dia 19/10/2005, pala 33ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO.

Está elencado que as questões éticas, geradas através do avanço da ciência e da

tecnologia, devem ser analisadas com total respeito à dignidade da pessoa humana. Já

no âmbito nacional, o Conselho Nacional de Saúde criou a Resolução 196, no dia

10/10/1996, e aceitou os princípios da bioética, ao aprovar as normas

regulamentadoras de todas as pesquisas que envolvem os seres humanos.

41 L IMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.94. 42 CONTI, Matilde Carone Slaibi. Ética e direito na manipulaçõa do Genoma Humano. Rio de Janeiro: Forense, 2001. P.8.

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O principal fundamento da bioética é o respeito ao ser humano e à sua dignidade.

Apesar de existir uma compreensão natural por parte de todos do que seja dignidade

da pessoa humana, apresentar um conceito claro e preciso não é tarefa fácil, porque,

como expõe Ingo Sarlet, “se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos,

caracterizado por sua ‘ambiguidade e porosidade’, assim como por sua natureza

necessariamente polissêmica” 43.

{A dignidade pertence} à condição humana e, por isso, deve ser respeitada e

protegida. Constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser

separada. Não é algo concedido à pessoa humana porque já lhe pertence de forma

inata. Assim, não se concebe sua retirada ou concessão, porquanto se trata de atributo

de todo ser humano. O ser humano, dada exclusivamente sua condição humana e

independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser

reconhecidos e tutelados pelo Estado, assim como, respeitados pela sociedade44.

43 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Cit., p. 39-40. 44 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Cit., p. 38.

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4 A LICITUDE DO ABORTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA: EXERCÍCIO

REGULAR DE UM DIREITO

4.1 Direitos Fundamentais em Colisão

Há duas formas de averiguar-se a colisão de direitos fundamentais. Na concepção

estrita, a colisão dá-se exclusivamente entre direitos fundamentais. Na concepção

ampla, por seu turno, as colisões dão-se entre os direitos fundamentais e os interesses e

bens coletivos os públicos tutelados no ordenamento jurídico.45

A segunda metade do século XX é marcada pela preocupação crescente com a

proteção dos direitos humanos. Com o término da 2ª Guerra Mundial e a constatação

das atrocidades nela cometidas, os direitos humanos tornaram-se uma das

preocupações primordiais da comunidade internacional. Em 1945, foi criada a

Organização das Nações Unidas, e em 1948 a Assembléia Internacional dos Direitos

Humanos e, a partir daí, são elaborados inúmeros documentos internacionais de

proteção dos direitos humanos.46

Os países europeus tinham que refazer os seus sistemas jurídicos perante a

banalização dos direitos humanos no período da 2ª guerra mundial. Com isso, após

este período, as constituições que têm perfil democrático, redobraram a preocupação

em relação aos direitos humanos.

Essa nova visão do constitucionalismo contemporâneo da segunda metade do

século XX busca, fundamentalmente, a constituição do Estado Democrático de

Direito, que tem como alicerce essencial a tutela dos direitos fundamentais

incorporados em um sistema de proteção desses direitos, no qual o Estado 45 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. P. 229. 46 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.132.

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compromete-se com sua tutela, tanto no âmbito nacional quanto internacional.47A

busca pela ampla proteção jurídica dos direitos fundamentais tem como resultado a

criação de uma teoria geral dos direitos fundamentais, com ferramentas jurídicas para

a proteção, interpretação e aplicação desses direitos, nos sistemas jurídicos que os

consagram. A Constituição Federal de 1988 integra esse novo modelo de

constitucionalismo, como de verifica ao analisar-se a disciplina dos direitos

fundamentais48.

A teoria geral dos direitos fundamentais, no entanto, enfrenta questão primordial

quanto à proteção desses direitos. Se, por um lado, cabe à jurisdição constitucional a

missão de proteger os direitos fundamentais, por outro, cabe também a ela a missão de

estabelecer regras para as restrições a esses mesmos direitos. Isso porque a idéia de

que é preciso limitar os direitos fundamentais para que haja convivência harmônica em

sociedade é corolário da própria noção de liberdade49.

Existem dois aspectos que precisam ser analisados no contexto de colisão. O

primeiro é referente à universalidade como uma das características destes direitos. Já

que eles se destinam as pessoas, não têm como imaginar a fruição constante destes

direitos sem que tenhamos um sistema jurídico que façam a existência entre eles.

Porém, o sistema jurídico, pelo qual eles são incluídos, precisa discipliná-los. Depois

de feito, precisamente estabelecerá limites, quer dizer, algumas restrições aos direitos,

para que se torne possível o convívio entre eles.

O outro aspecto é que os direitos fundamentais são constitucionalmente de forma

conjunta, integrando um ordenamento jurídico complexo e plural. Por isso, precisam

ser coordenados harmonicamente com os outros direitos e bens, também tutelados pela

47 Segundo LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. 7. Ed. Madrid: Tecnos, 1998. P. 26 48 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.133. 49 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Cit., p. 6, 132-133.

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Constituição. Esses dois aspectos conjugados revelam a realidade da colisão dos

direitos fundamentais50.

A solução dos conflitos de direitos fundamentais gera, necessariamente, a

instituição de restrições em sua aplicação. Quando dois ou mais direitos fundamentais

se chocam, ou seja, quando o exercício de um implicar invasão do âmbito de proteção

do outro, haverá colisão de direitos. Quando ocorrer a colisão, não há possibilidade de

proteger incondicionalmente um deles, sem restringir ou tornar o outro inoperante. A

tutela de um direito fundamental tem como limite a tutela de outro direito igualmente

fundamental, todavia, concorrente51.

Assim, em situações nas quais certos direitos que seriam, a princípio, aplicáveis,

mostram-se antagônicos, faz-se imperioso estabelecer uma acomodação hermenêutica,

na qual um deles cede, parcial ou totalmente, em favor do outro52. A coexistência dos

direitos fundamentais pressupõe a conformidade deles, já que o alcance do exercício

de um direito fundamental é o exercício de um outro direito que também é

fundamental.

4.2 Princípio da Proporcionalidade

4.2.1 Introdução

A noção de proporcionalidade encontra-se presente nos sistemas jurídicos desde a

Antiguidade, devido à sua relação com a noção de justiça. Para Aristóteles, a

proporcionalidade fazia parte do conceito de justiça. Ao expor seus ensinamentos

50 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Cit., p. 6, 132-133. 51 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 6ª reimpr. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; Apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. P. 41. 52 PEREIRA. Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Cit., p. 134.

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sobre o justo e a justiça, demonstrou a relação da justiça distributiva com a proporção

geométrica. Segundo ele, o justo é uma das espécies do gênero proporcional. E a

proporcionalidade não é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, mas sim

das quantidades em geral53.

A noção de proporcionalidade foi desenvolvida, inicialmente, no direito penal e

no administrativo54. A noção de proporcionalidade também aparece com destaque no

direito administrativo do século XVIII. Foi considerado como evolução do princípio

da legalidade55. Surge com a finalidade de limitar as ações do Poder Executivo, as

quais eram realizadas arbitrariamente pelos monarcas, devido aos regimes absolutistas

que vigoravam em alguns países europeus. A essência do princípio da

proporcionalidade era preservar a liberdade individual em face dos interesses da

administração56.

No entanto, é no século XX, especialmente após a 2ª Guerra Mundial, que o

princípio da proporcionalidade, com os contornos que hoje o definem, passa a ter

destaque nos ordenamentos jurídicos de vários países europeus, principalmente no

âmbito constitucional57. Apresenta raízes profundas no Direito Alemão, fortalecendo-

se tanto na jurisprudência constitucional quanto na doutrina58. Vem sendo

demonstrado, que os ordenamentos jurídicos elencados no regime democrático e na

garantia dos direitos fundamentais, vêm adotando o princípio da proporcionalidade em

seus regulamentos, de maneira implícita ou expressa.

53 ARISTÓTELES. Ética e Nicômacos. 3. Ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, c 1985, 1992. P. 96. 54 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da Proporcionalidade no Direito Penal. Cit., p. 40-41. 55 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 3. Ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. P. 38-39. 56 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2202. P. 3 57 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.152 58 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 407-408

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4.2.2 Conceito

O princípio da proporcionalidade está dentre aqueles princípios mais fáceis de

compreender do que de definir59. A expressão proporcionalidade tem o sentido literal

de equilíbrio e de relação harmônica entre duas grandezas60. O princípio, no âmbito

jurídico, tem por objetivo a constitucionalidade das medidas restritivas de direitos

fundamentais. Por meio da sua aplicação, o intérprete avalia a correlação entre os fins

visados e os meios empregados nos atos do Poder Público, nas situações de conflitos

de direitos fundamentais61.

O princípio da proporcionalidade é usado sempre que houver a intervenção do

Estado no âmbito de liberdade do indivíduo, nos casos em que os direitos

fundamentais se colidirem. Visa a garantir que a intervenção do Poder Público na

liberdade do indivíduo só se dê quando necessária, e assim seja realizada de forma

adequada e na justa medida, buscando a máxima proteção dos direitos concorrentes62.

As limitações e as restrições aos direitos fundamentais devem ser adequadas,

necessárias e proporcionais (sentido estrito), ou seja, de acordo com o que preceitua o

referido princípio63.

4.2.3 Os princípios da Proporcionalidade na Constituição de 1988

Não existe nenhum artigo na Constituição que mencione o princípio da

proporcionalidade. A falta de um artigo que trate diretamente do princípio da

59 PHILIPPE, Xavier. Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Cit., p. 392. 60 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Cit., p.75. 61 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Cit., p. 319. 62 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Cit., p. 96. 63 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.153

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proporcionalidade causa discussões e divergências na doutrina. Há uma discussão em

relação ao princípio fazer ou não parte do ordenamento jurídico. Existem divergências,

quanto ao conteúdo normativo, entre os que entendem que sim.

O presente trabalho entende que o princípio da proporcionalidade pertence ao

ordenamento jurídico brasileiro e fundamenta-se no Estado Democrático de Direito,

juntamente com todos os princípios que o consolidam, e também na própria estrutura

normativa dos direitos fundamentais64. Por isso, o princípio da proporcionalidade é

corolário do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988 e

tem, dentre seus principais fundamentos, o respeito à dignidade da pessoa humana65.

Contudo, o indispensável da proporcionalidade não é um princípio, já que não

pode ser entendido como chefia de otimização, ou seja, como uma norma que têm que

ser exercida em várias escalas. O princípio da proporcionalidade consubstancia uma

maneira de explicar o ordenamento jurídico em casos de conflito de direitos

fundamentais. Para Robert Alexy, a expressão mais adequada é máxima da

proporcionalidade66.

4.3 Realização do Aborto do Feto Anencéfalo como Exercício Regular de Direito

As Constituições dos Estados Democráticos de Direito – e a Constituição Federal

brasileira é uma delas – positivam certos valores éticos considerados fundamentais

para a construção de um sistema penal harmonizado com os pressupostos desse

modelo de Estado. Esses valores, transformados em princípios, são o respeito à

dignidade da pessoa humana, a prevalência dos direitos humanos, a legalidade, a

64 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 3. Ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. P. 93 e SS. 65 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Cit., p.97 66 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Cit., p. 322.

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liberdade, a igualdade, a justiça, o devido processo legal, o contraditório e a ampla

defesa, dentre tantos outros previstos na Constituição de 1988. Por meio desses novos

valores, a Constituição de 1988 estabeleceu um novo paradigma na relação entre o

Direito Constitucional e o Direito Penal67.

Já que a função principal do Direito Penal é proteger os outros bens jurídicos, à

escolha destes bens protegidos têm que acolher os valores do estado democrático de

Direito, protegidos pela Constituição. Conforme Maurício Ribeiro Lopes:

É, por excelência, a ciência humana destinada a proteger os valores e os bens

fundamentais do homem. A sua tutela envolve também a comunidade e o Estado

como expressões coletivas das pessoas humanas, em torno de quem gravitam os

interesses de complexa e envolvente ordem. Em todos os trechos do funcionamento

do Direito o homem deve ser a medida primeira e última das coisas, razão pela qual

se proclama que, na categoria dos direitos humanos, o Direito Penal é o mais

relevante, o de maior transcedência68.

Crime, segundo um conceito analítico, é toda conduta, típica, antijurídica e

culpável69. Através deste conceito, o aplicador do direito acha o caminho que têm que

ser andado para averiguar, em casa caso concreto, se teve ou não o delito. A sequência

deve ser exatamente a seguinte: a) indaga-se em primeiro se houve conduta; b) sendo a

resposta positiva, questiona-se se a conduta é típica; c) sendo a conduta típica, indaga-

se se é antijurídica; d) por fim, sendo a conduta típica e antijurídica, indaga-se se é

67 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p.163. 68 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituição: Princípios Constitucionais Politicamente Conformadores do Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 1997. p. 206. 69 O conceito analítico de crime varia segundo a teoria adotada. Não é objeto deste trabalho analisar as várias teorias do crime e suas conseqüências no âmbito jurídico. Vem prevalecendo a teoria finalista da ação do crime.

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culpável70. A ausência de qualquer um desses elementos exclui o crime e, por isso,

torna-se desnecessário questionar a existência do próximo elemento71.

A autorização do aborto no feto com anencefalia, desde que tenha o consentimento

da gestante, é um exercício regular de direito, e uma causa excludente de ilicitude,

conforme o inciso III do artigo 23 do Código Penal. O exercício regular de direito está

baseado nos princípios de interpretação constitucional dos direitos fundamentais,

destaca-se o princípio da proporcionalidade.

Atuar licitamente, ou seja, atuar no exercício regular de um direito, quer dizer

operar com respeito ao ordenamento jurídico. Logo, quem atua no exercício regular de

direito, e com isso opera segundo o autorizado pelo ordenamento jurídico,

desempenha conduta autorizada e lícita. Agir no exercício regular de direito é, então,

realizar uma conduta autorizada pelo sistema jurídico e que torna lícito um fato

típico72.

Se, com a aplicação do princípio da proporcionalidade, conclui-se pela prevalência

dos direitos da mulher, é porque a realização do aborto nos casos comprovados de

anencefalia – e desde que haja consentimento da mulher – configura conduta lícita

perante o ordenamento jurídico brasileiro73. Por ser conduta lícita, a mulher encontra-

se diante de uma realidade que configura exercício regular de um direito, acobertado

pela exclusão da ilicitude74·. Isso já que o princípio a que se refere trata de uma regra:

a mulher tem o direito de decidir se vai ou não realizar o aborto, caso seja comprovada

a anencefalia. Com isso, a pena do aborto, neste caso, seria de flagrante de

inconstitucionalidade, por infringir o princípio da proporcionalidade. 70 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p. 164. 71 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. 7. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. V. I, p. 340-341. 72 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte geral. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. V. I, p. 323. 73 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p. 166. 74 ROVIGATTI, Eliane Vergínia. Gravidez de Fetos Malformados: Um estudo Psicológico com casais. Cit., p. 21-22.

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Com o objetivo de acabar com todas as controvérsias relacionadas ao tema, o

Legislador Penal deveria regulamentar esta suposição de exercício regular de direito

contida no artigo 128 do Código Penal, como exclusão de ilicitude.

Este trabalho não se coloca a favor nem da vida nem da morte do feto anencéfalo,

nem a favor nem contra o aborto, mas a favor de determinar um caso concreto e

específico de conflito de direitos fundamentais, com base nos princípios

constitucionais de explicação dos direitos fundamentais, como já foi colocado neste

trabalho.

Perante tudo que foi abordado neste trabalho, chega-se a conclusão que, mesmo

que exista vida intra-uterina do feto anencéfalo, não se valida à atuação do direito

penal para acusar a conduta abortiva, mediante pena de desrespeito aos direitos à

liberdade e à saúde do direito reprodutivo da mulher. Referidos direitos devem

prevalecer nessa situação específica, porque não se justifica impor à mulher uma

gestação na qual o concepto não possui competência biológica para adquirir

consciência de si e do mundo e para se relacionar, uma ez que não tem e nunca terá

estrutura cerebral que lhe dê capacidade para alcançar essa condição de

desenvolvimento humano75.

O respeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher

deve prevalecer, uma vez que o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa

humana, como valor essencial do Estado democrático de Direito brasileiro, representa,

nessas circunstâncias pessoais, independentemente da imposição de qualquer dogma,

moral, religião ou verdade absoluta sobre a compreensão do mundo e da vida76.

75 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e Anencefalia – Direitos fundamentais em colisão, 2011, p. 169. 76 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Cit., p. 225-226.

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5 CONCLUSÃO

Por excelência, o bem jurídico dos seres humanos é a vida. Ela é fonte primária

para a titularidade de direitos, logo, somente a partir dela, o indivíduo passa a ser

titular de direitos.

A partir da concepção, a vida é protegida com um bem constitucional, já que tem o

Estado brasileiro incorporado ao seu sistema jurídico a Convenção Americana de

Direitos.

Mesmo sendo protegida depois da concepção, o marco inicial para que seja

configurado o delito do aborto é a nidação, pois, é neste período que começa a

gestação. Entre a fecundação e a nidação não existe proteção da vida no âmbito penal.

A anencefalia é considerada uma das malformações letais do sistema nervoso

central. Com a malformação, o anencéfalo tem grande parte do sistema nervoso central

escasso, o que o impossibilita em relação às funções da consciência e percepção, de

comunicação, de emotividade e de afetividade. Mesmo sendo um ser humano vivo, ele

não tem nenhuma consciência e nunca compartilhará da experiência humana.

Os portadores da anencefalia possuem uma sobrevida extra-uterina curta. Cerca de

75% dos portadores de anencefalia, já nascem mortos e os outros, salvo raríssimas

exceções, morrem no período neonatal. Os que sobrevivem logo depois do parto, têm

um prognóstico certo: que vai haver uma deterioração do organismo, até a sua morte.

Mesmo existindo diversas controvérsias na ciência médica, é aceita a declaração da

morte encefálica, pela comunidade científica mundial, como o momento da morte

humana. Porém, não existe uma unanimidade entre os pesquisadores e os estudiosos

da área das ciências médicas, em relação ao modo de verificar a morte encefálica.

Deixando de lado as discussões, é grande a aceitação, nos dias de hoje, que a morte

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encefálica seja baseada na ausência de reflexos do tronco encefálico, na ausência da

atividade cerebral e na irreversibilidade do estado de coma.

O respeito à dignidade da pessoa humana se faz presente quando a mulher tem o

seu direito de escolha, em relação a interromper a gravidez no caso de anencefalia,

garantida.

O anencéfalo e portador de todos os direitos do nascituro. Entre os direitos que são

fundamentais está o direito a vida. O nosso ordenamento jurídico protege os direitos

do nascituro e também impõem diversas normas de proteção especiais á todos os

portadores de deficiência.

A imposição de uma gestação de um feto com anencefalia lesa a saúde psíquica,

física e social da gestante. Se a mulher for privada do seu direito de escolha, a sua

saúde pode ser ainda mais afetada. A única maneira de acabar com o sofrimento da

gestante, com relação aos seus direitos fundamentais, é dar a ela a garantia de escolha,

entre interromper ou não a gestação de um feto anencéfalo.

A autorização do aborto nos casos de anencefalia, mediante o consentimento da

gestante, é uma hipótese regular de direito, e conforme o artigo 23, inciso II do Código

Penal, causa excludente de ilicitude. O aborto do feto anencéfalo é um direito

constitucional da mulher que está nessa situação delicada de escolha. Com isso, a pena

é de flagrante de inconstitucionalidade, já que está violando os princípios de

interpretação constitucional dos direitos fundamentais, destacando-se o da

proporcionalidade.

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