maria rita ferragut - segregação atividade

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1 Segregação de atividades empresariais e limites para desconsideração da "sociedade paralela" Maria Rita Ferragut Mestre e doutora em direito tributário pela PUC/SP. Livre-docente pela USP. Autora e co- autora de diversos livros, dentre os quais Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. Advogada em São Paulo. 1. Introdução Com a crescente redução da margem de lucro das sociedades empresárias, e da necessidade de maior eficiência e competitividade, muitas empresas encontram-se diante da necessidade de abrir novas frentes de negócio, bem como de diminuir o custo de suas operações. Uma das alternativas utilizadas é a constituição de várias sociedades dentro de um mesmo grupo econômico, que tenham por escopo atividades similares, complementares ou mesmo totalmente distintas. Essa opção apresenta-se extremamente vantajosa se corretamente construída e aplicada, de forma a afastar o entendimento de que se trata de mera simulação, fato que, sem dúvida alguma, pode trazer graves consequências às empresas e aos seus administradores. Neste artigo veremos que o direito positivo brasileiro, assim como a jurisprudência, autorizam a segregação das atividades empresariais como forma de economia tributária. O cuidado que se deve ter é

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Planejamento Tributário, segregação de atividades

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Page 1: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

1

Segregação de atividades empresariais e limites para desconsideração da

"sociedade paralela"

Maria Rita Ferragut Mestre e doutora em direito tributário pela

PUC/SP. Livre-docente pela USP. Autora e co-

autora de diversos livros, dentre os quais

Responsabilidade tributária e o Código Civil de

2002. Advogada em São Paulo.

1. Introdução

Com a crescente redução da margem de lucro das sociedades

empresárias, e da necessidade de maior eficiência e competitividade, muitas

empresas encontram-se diante da necessidade de abrir novas frentes de

negócio, bem como de diminuir o custo de suas operações.

Uma das alternativas utilizadas é a constituição de várias

sociedades dentro de um mesmo grupo econômico, que tenham por escopo

atividades similares, complementares ou mesmo totalmente distintas. Essa

opção apresenta-se extremamente vantajosa se corretamente construída e

aplicada, de forma a afastar o entendimento de que se trata de mera

simulação, fato que, sem dúvida alguma, pode trazer graves consequências às

empresas e aos seus administradores.

Neste artigo veremos que o direito positivo brasileiro,

assim como a jurisprudência, autorizam a segregação das atividades

empresariais como forma de economia tributária. O cuidado que se deve ter é

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2

o de não ultrapassar o limite da legalidade, e, com isso, autorizar a

desconsideração da nova sociedade. Tal limite, conforme teremos

oportunidade de analisar amplamente a seguir, consiste na tipificação da

restruturação societária como simulada, sempre que o direito de se auto

organizar não for confirmado pelas características do caso concreto, ou seja,

pelas provas.

2. Regime tributário benéfico dentro do mesmo grupo econômico

É comum que, dentro de um mesmo grupo econômico, as

pessoas jurídicas que o compõem dividam o negócio em ramos de atividade,

de forma que cada uma será responsável por um segmento, com a

consequente divisão de receitas e pagamentos de tributos.

Dentre as razões que justificam a criação dessa estrutura,

encontra-se a economia fiscal gerada pela redução do pagamento de IRPJ,

CSLL, PIS e COFINS, mediante tributação, pelo lucro presumido e regime

cumulativo das contribuições, de lucro e receita que, não fosse a

reestruturação do negócio, estariam sujeitas a uma tributação maior (lucro

real e regime não cumulativo).

Ainda que as bases de cálculo não sejam as mesmas, a

economia fiscal é evidente, e a licitude, a princípio, também. O que faz com

que a operação seja considerada simulada (art. 167, I, do Código Civil1) são

as características do caso concreto, demonstradas mediante provas.

1 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido

for na substância e na forma.

§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais

realmente se conferem, ou transmitem.

Page 3: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

3

A primeira possibilidade é de se considerar que o contribuinte

planejou-se de maneira lícita, mediante divisão de atividades. Assim, (i)

constituiu uma nova pessoa jurídica; (ii) contratou funcionários em número

suficiente para exercer a atividade-fim da nova empresa; (iii) os tributos

devidos pelo regime do lucro presumido foram apurados e recolhidos; e (iv) a

nova empresa suportou diretamente seu custo administrativo ou,

alternativamente, reembolsou a sociedade originária pelas despesas que lhe

são proporcionais (consumo de energia, água, telefone, contadores,

advogados, técnicos de TI etc.).

Denominemos, para fins desse artigo, a sociedade originária

como sendo “A”, e a nova empresa como sendo “B”. O fato de “A” poder

exercer o objetivo social de “B” não desqualifica a existência e operações

desta última, nem tampouco autoriza a desconsideração de sua personalidade

jurídica. Não há que se falar, em outras palavras, em sociedade fictícia.

Por outro lado, se a “B” (i) não possuía funcionários, ou os

possuía em número simbólico, (ii) não possuía despesas de qualquer

natureza, já que todas eram suportadas e aproveitadas fiscalmente pela

comércio, (iii) não demonstrou que exercia a atividade pela qual cobrava e,

finalmente, (iv) se seu caixa era utilizado para pagamento das despesas de

“A”, sem qualquer explicação, ou se as explicações fossem mútuo (sem

recolhimento de IOF) ou adiantamento de dividendos (sem balancetes

mensais ou acima do limite do lucro presumido), entendemos ser correto

considerar simulada as atividades de “B”, existente apenas para reduzir a

carga tributária do grupo, sem qualquer respaldo factual factível.

II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira.

III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

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4

Aplica-se ao caso, então, o § único do art. 116 do CTN, que

permite à autoridade administrativa desconsiderar o negócio jurídico

praticado com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a

natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, tais como

sujeito passivo, base de cálculo e alíquota.

Vejamos mais detalhadamente essas conclusões.

3. Simulação de atos e negócios jurídicos

Como identificar se as partes celebraram negócio jurídico

válido, que implicou redução, eliminação ou postergação da carga tributária,

ou se incorreram em ilícito, mediante a realização de atos dissimulados

praticados com os fins de ocultar a ocorrência do fato jurídico tributário?

Não é de hoje que existe no direito tributário a discussão

acerca da tênue linha que separa o direito subjetivo de o contribuinte

organizar-se, por meio do direito à liberdade, à propriedade, à livre iniciativa

e à autonomia privada, do direito de o Estado restringir esses direitos

constitucionalmente conferidos, por julgar que, no caso concreto, o ato ou

negócio jurídico é fraudulento, abusivo ou simulado e, consequentemente,

ilegal.

O direito brasileiro protege o direito individual de se auto-

organizar. Ao tratarmos de elisão e evasão fiscal, não poderíamos deixar de

reconhecer que a essência do negócio celebrado – aqui empregada como

natureza e dinâmica da realização do ato, tais como contexto, conteúdo do

ato, finalidade etc. – sobrepõe-se à espécie formal de operação (segregação

de atividades, compra e venda, importação por conta e ordem etc.). Se não

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fosse assim, não teríamos como lidar com a simulação, pois a licitude formal

encontra-se presente em grande parte dos atos.

Com isso queremos dizer que não basta a aparência de

licitude, pautada em contratos particulares e registros fiscais e contábeis.

Deve ser demonstrada a compatibilidade entre o previsto nos documentos

societários e fiscais, e os atos comprovadamente realizados pelos

interessados.

Elisão fiscal é a qualificação do ato ou da série de atos que

visam à economia fiscal, mediante a utilização de alternativas menos

onerosas, autorizadas em lei. Não há simulação. Dentre ao menos duas

alternativas possíveis, o sujeito opta pela menos onerosa, tal como ocorre

com o planejamento fiscal2.

Já evasão fiscal é a qualificação do ato omissivo ou comissivo,

de natureza ilícita, praticado com o fim único de diminuir ou eliminar a carga

tributária, ocultando o verdadeiro ato ou a real situação jurídica do

contribuinte. Dado seu caráter ilícito e danoso, é dever do Estado combater

preventivamente a evasão, bem como punir severamente seus responsáveis,

segundo graduações variáveis conforme características de cada caso.

No que diz respeito aos elementos diferenciadores da elisão e

evasão, a doutrina tradicionalmente afirma que os atos qualificados como

2 Conforme Marco Aurélio Greco (Planejamento tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética,

2008, p. 81-82), “Nunca é demais repetir que planejamento e elisão são conceitos que se

reportam à mesma realidade, diferindo apenas quanto ao referencial adotado e à tônica

que atribuem a determinados elementos. Quando se menciona “planejamento”, o foco de

preocupação é a conduta de alguém (em geral, o contribuinte); por isso, a análise desta

figura dá maior relevo para as qualidades de que se reveste tal conduta, bem como para

os elementos: liberdade contratual, licitude da conduta, momento em que ela ocorre,

outras qualidades de que se revista etc. Quando se menciona “elisão”, o foco da análise é

o efeito da conduta em relação à incidência e cobrança do tributo; por isso, sua análise

envolve debate sobre os temas da capacidade contributiva, da isonomia etc.”

Page 6: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

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elisivos devem ser praticados antes da ocorrência do fato jurídico tributário,

a fim de evitá-lo. Entendemos, entretanto, que nem toda conduta praticada

antes seja elisiva. Se a conduta for ilícita, tal como ocorre na simulação

relativa (dissimulação), estaremos diante de evasão fiscal, razão pela qual o

critério temporal mencionado, para distinguir elisão e evasão, não nos

parece adequado se tomado de forma isolada.

Da mesma forma, nem toda conduta que reduz o débito fiscal,

sem evitar a ocorrência do fato jurídico, consiste em hipótese de evasão

fiscal. Há condutas não evasivas que se subsumem a normas tributárias que

reduzem ou dispensam o pagamento de tributos, mas não evitam a ocorrência

do fato jurídico, tal como ocorre com as reduções de base de cálculo, créditos

escriturais de ICMS, IPI, PIS e COFINS e regimes tributários especiais (lucro

presumido, Simples).

Portanto, a ocorrência do fato jurídico também não é critério

preciso de distinção entre elisão e evasão fiscal. Se o que se deseja é

determinar a amplitude da liberdade de o contribuinte economizar tributos,

o que se deve identificar é o permitido (lícito) ou o proibido (ilícito).

Portanto, o critério licitude ou ilicitude é o decisivo.

III.1. Ilícitos atípicos

Ao tratarmos do tema “elisão e evasão fiscais”, não

poderíamos deixar de abordar a questão dos ilícitos atípicos, bem como do

abuso de direito e da fraude à lei, que lhe são considerados espécies.

Condutas diretamente violadoras de uma regra são ilícitos

típicos, ao passo que as contrárias a princípios ou a outras regras que

compõem o ordenamento jurídico são consideradas ilícitos atípicos.

Page 7: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

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Em nosso entendimento, os fatos são lícitos ou ilícitos, não há

uma terceira hipótese. E os ilícitos atípicos não se enquadram na categoria de

ilícitos, pois:

1) Para tanto, deveriam necessariamente estar previstos em um

enunciado prescritivo que proibisse tal conduta3;

2) O ato abusivo ultrapassa somente os limites axiológicos de

uma situação concreta; e

3) O ilícito atípico conta com uma aparência de direito,

característica ausente no ato ilícito.

As cláusulas gerais relacionam-se ao movimento de

descodificação que marca o final do século XX e constitui técnica legislativa

que permite dotar de mobilidade o sistema jurídico, destacando a atividade do

intérprete em detrimento do legislador, que se abstém de tipificar todas as

condutas possíveis, dado que a lei não se altera na mesma velocidade que os

fatos sociais (lícitos e ilícitos) que deve regular.

Com isso, as cláusulas gerais permitem a constante atualização

do ordenamento, dando flexibilidade ao julgador para decidir sobre novas e

peculiares situações de conflito, que não podem estar sempre previstas em

lei. Contrapõem-se ao dogma da completude do ordenamento e à sua

pretensão de atemporalidade, alicerces do positivismo.

Vejamos a advertência de Marco Aurélio Greco4:

Mas onde está dito que a consequência de um fato não estar previsto em

norma específica implicar estar fora do alcance do ordenamento tributário?

Diante de uma lacuna, a pergunta crucial que se põe é: que fazer com ela?

3 A fraude a lei, conforme adiante se verá, não deve ser considerada ilícito atípico, ela é

simplesmente ilícita. 4 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p.

160.

Page 8: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

8

Como não há norma específica que alcance a hipótese, o intérprete e

aplicador precisam se socorrer de uma norma geral que diga o que fazer

neste caso. O ordenamento jurídico que preveja que o juiz não pode deixar

de decidir (todo o debate sobre o non liquet) implica determinar sempre a

aplicação de uma norma ao caso concreto. Ou uma norma específica que o

preveja em maior grau de detalhe, ou uma norma geral que abranja a classe

de hipóteses em que aquele caso se encontra. Essa norma geral tanto pode

ser exclusiva como inclusiva. Norma geral exclusiva estabelece que o não

previsto em norma específica estará fora do alcance da tributação; norma

geral inclusiva estabelece que o não previsto em norma específica nem por

isso deixa de estar dentro do alcance da norma de incidência porque o

ordenamento quer que o caso seja alcançado.

Com isso, o autor dá prioridade a uma suposta intenção social

do ordenamento (norma geral inclusiva), em detrimento do princípio da

estrita legalidade tributária (norma geral exclusiva), analisada sob a ótica

formal. Marco Aurélio Greco5 ainda defende:

Ocorre que a norma geral inclusiva (que estabelece que, embora não previsto

especificamente, o caso deve ser considerado dentro da incidência) é o

denominado princípio da capacidade contributiva. Vale dizer, apesar de não

estar expressamente previsto o caso, mas por manifestar capacidade

contributiva tributada pela lei, então, estará alcançado pela incidência

tributária.

A capacidade contributiva nortearia, assim, não só a produção,

mas também a interpretação e a aplicação da lei tributária. Não concordamos

com essa dimensão da capacidade contributiva. Em que pese esse princípio

certamente reger a construção das proposições, ele não autoriza o

alargamento da hipótese de incidência tributária. A ampliação da liberdade e

da subjetividade do intérprete acarreta a perda de previsibilidade e certeza, e

pode desvirtuar o texto legal, o que evidentemente não é admissível. O

intérprete não pode substituir o legislador: o texto é ponto de partida e limite

da interpretação.

5 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p.

161.

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Diante do princípio da estrita legalidade tributária, é

inaceitável a tipificação de um ilícito a partir de sua previsão genérica. A

Administração Pública somente pode agir nos estritos limites da lei, ou seja,

não pode ela estipular o que é e o que não é uma conduta ilícita, se a lei não

prevê conotativamente tais fatos.

Não ignoramos, e tampouco desprezamos, a circunstância de

uma parte significativa de contribuintes deixar de pagar tributos por conta de

estruturações lícitas realizadas sem um propósito econômico, além da

economia fiscal. Não desprezamos, também, o dever de lealdade mútua,

calcada na boa-fé e na moralidade, que deve reger as relações entre Fisco e

contribuinte. E não ignoramos, finalmente, os efeitos danosos à economia e

aos investimentos públicos advindos da diminuição de arrecadação e da

desoneração de contribuintes que se organizam adequadamente,

sobrecarregando os demais.

Ocorre que a legalidade há de ser privilegiada e, por isso, não

podemos aceitar a criação de obrigações tributárias pautadas na

requalificação de fatos caracterizados, segundo regras do direito civil, como

ilícitos atípicos, salvo nas hipóteses de simulação (ilícitos).

Some-se, a tudo isso, o fato de no Direito brasileiro ser

permitido ao particular fazer tudo que não for expressamente vedado em lei.

Esse alicerce interpretativo vigora há longos anos, e foi sempre prestigiado

pelo Supremo Tribunal Federal. Não há dúvidas acerca de sua aplicabilidade.

A corrente que defende a aplicação da teoria desconsideração

do ilícito atípico, em direito tributário, refuta a tese da violação à legalidade,

por entender que a proibição ao abuso não autorizaria a Administração

Pública, ou o Judiciário, a criar novas hipóteses de incidência, além de

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privilegiar a capacidade contributiva. A questão seria apenas de “correção da

conduta do contribuinte em relação ao ordenamento jurídico”. Tratar-se-ia,

segundo Marco Aurélio Greco, de (re)qualificação jurídica dos fatos, com o

que não concordamos.

Finalmente, cumpre-nos analisar a segurança jurídica. Em

nosso entender, a desconsideração dos ilícitos atípicos podem também violar

a segurança jurídica, que requer (i) a existência de normas jurídicas; (ii) que

as normas sejam prévias aos fatos por elas regulados; e (iii) que esta

existência prévia seja conhecida dos destinatários. O abuso de direito, espécie

de ilícito atípico, implica a quebra da previsibilidade do contribuinte em

relação à conduta estatal, porque ele não tem como saber se a conduta que

pretende realizar (ou já realizou) é ou não considerada punível pela

Administração Pública.

Passemos agora ao abuso de direito e a fraude à lei, que,

conforme já mencionamos, são consideradas espécies de ilícitos atípicos.

Para nós, entretanto, o primeiro é fato lícito e o segundo ilícito.

III.2. Abuso de direito no Código Civil de 2002 – reflexos em matéria

tributária?

É inconteste que ninguém pode fazer tudo o que deseja e que

está ao seu alcance. As pessoas vivem em sociedade, relacionam-se com

outros indivíduos, e possuem claros limites de atuação na lei e no direito de

terceiros (também previstos em proposições jurídicas). O limite do agir e do

não agir encontra-se na lei.

Muitos doutrinadores brasileiros e aplicadores do direito

defendem a ideia de que os negócios jurídicos necessitam ter uma causa além

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da economia fiscal, sob pena de desconsideração do ato. Os motivos que

normalmente motivam tal posição são: (i) o art. 187 do Código Civil; (ii) a

capacidade contributiva, a isonomia e a solidariedade social; e (iii) a

tendência internacional de proibir o abuso de direito em prol de uma justiça

fiscal e do equilíbrio entre interesses públicos e privados.

Esses argumentos pautam-se, sobretudo, no fato de que, em

um Estado Democrático de Direito, não se pode compactuar com

comportamentos considerados abusivos. Esse é, sem dúvida alguma, um

aspecto inegável, mas a primeira dificuldade reside em confrontá-lo com a

segurança jurídica e a legalidade.

Somos do entendimento de que não há, no direito positivo

brasileiro, enunciado que determine ao contribuinte a busca da via negocial

mais onerosa em termos tributários, nem a proibição pela menos onerosa.

Não há na legislação tributária, tampouco, qualquer menção ao abuso de

direito, de formas jurídicas, causa econômica ou propósito negocial, efeitos

jurídicos relevantes além da economia fiscal, objetivo único ou principal de

reduzir ou eliminar impostos, ato anormal de gestão. Esses institutos não

foram positivados pelo direito tributário.

Ao tratarmos do abuso de direito6, tomamos como ponto de

partida a concepção explicitada no art. 187 do Código Civil, segundo o qual

“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela

boa-fé ou pelos bons costumes.”

6 Cf. João Batista Lopes (Tutela antecipada no processo civil brasileiro. São Paulo:

Saraiva, 2001, p. 63), “A expressão abuso de direito é por muitos criticada, pois o direito

termina onde se inicia o abuso; assim, não poderia haver abuso de direito, já que o

mesmo ato não pode ser, simultaneamente, conforme e contrário ao direito.”

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Referido artigo traduziu em nível infraconstitucional limites à

autonomia da vontade, consubstanciada essencialmente na liberdade de

iniciativa garantida pela Constituição, em seus artigos 1º, IV, e 170. No

abuso de direito não se nega a existência do direito, mas se questiona o modo

de seu exercício, na medida em que ele pode não encontrar justificativa ou

exceder o perfil do direito a que se refere e, com isso, implicar distorção não

aceita pelo ordenamento positivo, não sendo sequer necessária a consciência

por parte do agente, de que houve excesso no exercício de seu direito. Nem

sempre, por isso, existe o dolo, contrariamente ao que ocorre na fraude.

O que deve ser levado em conta, para a identificação do abuso

de direito, é se o ato praticado foge à normalidade, beneficia os envolvidos e

causa prejuízo a outrem. Mas oportuno registrar que, nem por isso, o ato

considerado abusivo trará consequências tributárias diversas das aplicáveis ao

ato lícito, pois para que haja juridicamente abuso, deve-se haver norma jurídica

que aponte qual o direito subjetivo objeto de abuso pelo sujeito, o que não

ocorre no caso.

III.3. Fraude à lei

De acordo com o art. 166, VI do Código Civil, é nulo o

negócio jurídico quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa. A fraude é

referida no direito positivo tanto no sentido penal quanto civil. Será penal

quando houver dolo, como no art. 171 do Código Penal e nos artigos 149, III,

e 150, § 4º do CTN, introduzidos no sistema jurídico na época em que a

tipicidade fechada e a legalidade estrita não eram relativizadas, por parte da

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doutrina e da jurisprudência, pelo abuso de direito, pela capacidade

contributiva etc. Nessas situações, a conduta é sempre ilícita.

E o sentido será civil (fraude civil ou fraude à lei), quando o

objetivo for contornar norma imperativa de tributação, utilizando-se de outra

norma jurídica ou da ausência de previsão expressa. A conduta é lícita

perante a norma de contorno e ilícita perante a contornada.

Tratemos apenas do ilícito civil, por ser o único que nos

interessa no momento. A fraude à lei decorre de uma violação indireta da

lei, ou seja, a conduta praticada pelo sujeito é lícita, a rigor não viola

diretamente nenhum mandamento legal. Entretanto, seu objetivo é

contornar norma imperativa (contornada), utilizando-se de outra norma

jurídica (de contorno), com o que acaba por afrontar o ordenamento, a

proibição ou obrigação prevista em outra norma jurídica.

Orlando Gomes7 é incisivo: “Há fraude à lei com a realização,

por meios lícitos, de fins que ela não permite sejam atingidos diretamente,

por contrários à sua disposição.”

Assim, praticam-se fatos que se enquadram na norma de

contorno, para se evitar a incidência da norma contornada. Neste caso, não

estamos diante de conduta ilícita se ela for isoladamente considerada, mas da

não aplicação da norma de conduta imperativa (contornada). Tal dinâmica

acaba por transformar o que aparentemente era lícito em ilícito.

Para facilitar a compreensão, nada melhor que a figura

didática do exemplo8: trata-se de um clássico julgado do STF (RE 60.287,

Rel. Min. Villas Boas), da década de 60, em que era proibido importar

7 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.

155. 8 Cf. noticia Marco Aurélio Greco (Planejamento tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética,

2008, p. 242).

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automóveis a fim de proteger a indústria automotiva nacional, em fase de

formação. Esta é a norma 1 (proibido importar automóvel). Portanto, não

era possível ao contribuinte chegar ao resultado desejado (ter um automóvel

importado) em razão da existência dessa norma. Existia, porém, uma

segunda norma que reconhecia haver no Brasil uma frota de veículos que

necessitava de peças estrangeiras para continuar funcionando, e esta frota

não poderia ser prejudicada. Por isso, existia a norma 2 que permitia a

importação de partes e peças (para reposição ou para integrar veículo

produzido no Brasil).

Certo contribuinte importou partes e peças (hipótese de

incidência da norma 2) suficientes para montar um automóvel no Brasil.

Portanto, não violou diretamente a norma 1, que proibia a importação direta

de veículos, mas acabou, com a importação das peças, obtendo o resultado

que a norma 1 pretendia evitar.

Esse caso foi julgado pelo STF como hipótese de fraude à lei

tributária. O contribuinte infringiu a proibição de importar, ainda que não

diretamente, já que sua conduta estava acobertada por uma lei (a das partes e

peças). A proibição foi manipulada, pois a finalidade da norma 2 era apenas

assegurar a manutenção e reposição da frota existente no país. Então, a

conduta desse contribuinte teria violado o ordenamento.

Nesse exemplo verifica-se que a conduta é regulada por uma

norma do próprio direito positivo, o que, em certa medida, implica

reconhecer que há respaldo no ordenamento jurídico. Mas, como então

considerá-la hipótese de evasão fiscal, com as consequências inerentes a

esse reconhecimento?

Page 15: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

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Na fraude à lei, há violação à ordem posta. A licitude existe

somente se considerarmos a aplicação isolada de uma única norma (de

contorno) e não se sustenta, ao interpretarmos o ordenamento como um todo

coerente e sistêmico. Há, portanto, ato ilícito, pois a interpretação sistemática

é a que deve prevalecer.

A consequência da fraude à lei, no direito civil, é a nulidade do

negócio celebrado. No direito tributário, a fraude à lei é forte indício de

simulação relativa que, se devidamente comprovada, autoriza a requalificação

dos fatos pela autoridade administrativa ou judicial (por ilícito se tratar), mas

sem a aplicação da multa qualificada prevista no art. 44 da Lei n. 9.430/96, já

que não agride diretamente o consequente de uma norma jurídica que assegure

um direito ao Fisco.

III.4. Nossa posição

Sem norma não há processo de positivação, e os fatos não

adquirem qualificação de fatos jurídicos. É somente o sistema normativo que

decide quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade.

Por isso, tendo em vista que o próprio sistema do direito

positivo estabelece quais fatos desencadeiam consequências de direito e os

que são juridicamente irrelevantes, é inadmissível aplicar norma por

analogia9 ou em função da capacidade contributiva e do dever social de pagar

9 Nas lições de Ruy Barbosa Nogueira (Curso de direito financeiro. São Paulo: José

Bushatsky, 1971, p. 78), aplicação analógica é aquela em que “a situação de direito é

clara, mas a de fato obscura, ou melhor, o texto descreve com clareza uma situação de

fato e o intérprete pretende aplicá-la a outra situação de fato, por ser análoga à descrita

pelo texto.” Para Heleno Taveira Tôrres (Limites do planejamento tributário e a norma

brasileira anti-simulação (LC 104/01). In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes

questões atuais do direito tributário. v. 5. São Paulo: Dialética, 2001, p. 118), não se

trata de analogia, já que, nesta hipótese, há criação de norma para fato ocorrido, enquanto

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tributos. Igualmente inadmissível é entender que os atos podem ser de

alguma outra espécie que não lícitos ou ilícitos: ou eles estão de acordo com

o ordenamento ou contra.

O CTN trata de forma específica dos defeitos de um ato ou

negócio jurídico (artigos 116, § único, 149, VII, 150, § 4º, 154, 155, I e 180),

contemplando somente as hipóteses de dolo, fraude e simulação, inclusive a

relativa (dissimulação). Em razão disso, entendemos que o legislador não

submeteu o abuso de direito e o conteúdo econômico dos fatos ao tratamento

dispensado pela legislação civil. Abuso de direito e abuso de formas jurídicas

são figuras referidas apenas na exposição de motivos da Lei Complementar n.

104/2001, que circunscreveu a possibilidade de requalificação à ocorrência

de dissimulação.

Havendo na legislação tributária tratamento específico para os

defeitos dos atos ou negócios jurídicos, é essa legislação – e não a de

natureza civil – que deverá pautar os limites da atuação do contribuinte.

Assim, a requalificação de fatos típicos tributários, por autoridade

administrativa ou judicial, só poderá ocorrer se restar devidamente

comprovada a ocorrência de dolo, fraude, simulação ou dissimulação.

Portanto, o abuso de direito e o conteúdo econômico dos fatos

não são ilícitos e não se constituem em hipóteses de evasão fiscal; já a fraude

à lei é fato ilícito (dissimulação) e evasivo.

III.5. Desconsideração de atos e negócios jurídicos e a Lei Complementar

n. 104/01

que na elusão dá-se o oposto, ou seja, aplica-se a lei vigente aos casos mascarados ou

desviados, por manobra proposital do contribuinte, daquele tipo normativo.

Page 17: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

17

O art. 1º da Lei Complementar n. 104/01, alterou, dentre

outros, o art. 116 do CTN, introduzindo-lhe o parágrafo único. Prescreve

referido dispositivo que:

A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos

praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do

tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária,

observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

A doutrina brasileira divide-se basicamente em duas correntes

interpretativas: os que entendem que este dispositivo legal introduziu no

sistema jurídico brasileiro norma geral antielisiva10

e os que entendem tratar-

se de norma antissimulação11

. Somos adeptos desta segunda corrente, por

entender, na linha de Eduardo Domingos Bottallo12

, que “reprimir a elisão é,

em última análise, o mesmo que frustrar o regular exercício de um direito.”

Os direitos e garantias individuais do cidadão contribuinte não foram

reformulados por uma norma antielisiva: o direito à auto-organização, ao

planejar-se licitamente, permanece existindo.

A legislação complementar é inovadora, no sentido de conferir

às pessoas políticas competência para a criação de lei ordinária contemplando

o procedimento a ser adotado para a desconsideração de atos jurídicos

dissimulados. Tal lei ainda não foi criada. Apesar disso, o ordenamento

jurídico brasileiro já autorizava a desconsideração de atos ou negócios,

efetivada por meio da utilização das presunções – pautadas nos princípios

constitucionais da legalidade, razoabilidade, capacidade contributiva etc. –

10

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 12. ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2005, p. 162-163. 11

XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo:

Dialética, 2001, p. 156-157. 12

BOTTALLO, Eduardo Domingos. Curso de processo administrativo tributário. São

Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 126.

Page 18: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

18

combinada com o art. 149, VI, do CTN, que, por sua vez, prescreve que o

lançamento será efetuado e revisto de ofício, quando se comprovar que o

contribuinte agiu com dolo, fraude ou simulação13

.

O que se alterou, portanto, foi o fato de o procedimento de

desconsideração ser regulado por meio de lei (ordinária), conferindo, sem

dúvida alguma, extraordinária segurança jurídica aos contribuintes e aos

aplicadores do direito em geral. Para nós, essa é a primeira razão pela qual o

enunciado deveria ter sido recebido de forma positiva pela comunidade

jurídica.

Entendemos inexistir inconstitucionalidade na

desconsideração de atos jurídicos que impliquem evasão fiscal. Como os atos

ou negócios dissimulados encobrem o fato real, precursor de consequências

tributárias, incumbe à autoridade administrativa desconsiderá-los para tornar

conhecido o ato que se quis ocultar.

Além disso, outra questão que merece destaque diz respeito ao

fato de o parágrafo único o art. 116 não conferir à Administração o direito de

cobrar tributo correspondente ao montante que deixou de ser pago em face da

operação economicamente vantajosa, promovida pelo contribuinte dentro dos

parâmetros legais.14

13

Em sentido contrário ao nosso, vide Paulo Ayres Barreto (Elisão tributária: limites

normativos. 2008. Tese (livre-docência) – Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo. São Paulo: USP, 2008, p. 237 et seq.), para quem a ausência de regulamentação

gera a ineficácia técnica de natureza sintática do parágrafo único do art. 116 do CTN, e,

portanto, sua inaplicabilidade. 14

Os artigos 13 a 19 da MP n. 66, não convertidos na Lei n. 10.637/02, estabeleciam os

procedimentos a serem observados pela autoridade administrativa para a desconsideração

dos atos ou negócios praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato

gerador. Embora a finalidade fosse regrar tal procedimento, o texto legal ultrapassou o

comando constante da LC, ao prescrever que, para a desconsideração de ato ou negócio

jurídico, deve-se levar em conta a falta de propósito negocial ou o abuso de forma

jurídica. Ultrapassou os limites legais, também, por caracterizar como abuso de forma a

Page 19: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

19

O fato de as exposições de motivos constantes da Lei

Complementar n. 104/2001 considerar que os planejamentos fiscais implicam

diminuição de arrecadação e que, por isso, deveriam ser combatidos, não

significa ter sido essa a hipótese contemplada pela norma: na elisão fiscal não

há fato ocultado, único fato típico constante do enunciado-enunciado capaz

de gerar a desconsideração do ato.

Assim, de acordo com as razões acima, entendemos que o

parágrafo único do art. 116 do CTN, introduzido pela Lei Complementar n.

104/2001, é constitucional, o que não afasta a possibilidade de o ato de

aplicação ultrapassar os limites legais, hipótese em que somente aquele ato

administrativo deverá ser anulado.

4. Da prova da existência da nova sociedade

Além de toda a intrincada discussão teórica que acabamos de

expor, a qualificação do fato é um grande – senão o maior – problema afeto à

elisão e à evasão fiscais, tendo em vista que o contribuinte qualifica-o como

elisivo, e o Fisco requalifica-o como evasivo, havendo duas camadas de

linguagem conflitantes. Somente a linguagem probatória poderá oferecer

subsídios para a solução dessa contradição.

Do administrado não deve ser exigido, de antemão, a prova da

boa-fé, se o negócio jurídico foi realizado conforme o direito. Compete ao

Fisco trazer elementos que indiquem a ocultação de um evento juridicamente

relevante, para que depois seja avaliada a licitude e a ilicitude do ato, aqui

entendida não apenas a forma, mas também a essência.

prática de negócio jurídico indireto que produzisse o mesmo resultado do ato ou negócio

dissimulado.

Page 20: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

20

Diante dessas premissas, consideramos elisão a constituição,

dentro de um mesmo grupo econômico, de duas pessoas jurídicas, se os

negócios forem efetivamente distintos e as estruturas forem autônomas ou, se

compartilhadas, que exista remuneração.

Em contrapartida, será evasão fiscal (ilícito) a criação de

grupo de empresas sem individualização de empregados, estabelecimentos,

atividades clientes etc., existentes apenas para a divisão de receitas e

submissão ao regime do lucro presumido.

Assim, nada impede que os grupos econômicos se planejem, o

Fisco também o faz. A questão que há de ser provada, entretanto, é se a

empresa optante pelo lucro presumido existia efetivamente. E não se chega a

essa resposta somente com a análise do propósito negocial, mas, sobretudo,

com a demonstração do substrato fático da operação estruturada.

Esse é o ponto importante: se “B” exercia atividade, sua

receita poderia sujeitar-se a uma carga tributária inferior à da líder do grupo

econômico (“A”), pois a legislação assim autoriza. Trata-se de mera

economia fiscal, desprovida de qualquer ilicitude.

Destacamos, nessa oportunidade, algumas provas a favor da

legalidade da segregação, sem prejuízo de inúmeras outras a serem

consideradas de acordo com cada caso concreto:

Sócios da nova sociedade poderão ou não ser os mesmos da

controladora. Fato de serem diversos não garante, por si só, a não

contestação da estrutura que se pretende. O que importa é o conjunto

probatório.

A nova sociedade deverá possuir endereço diverso da sociedade

principal, e em local compatível com suas atividades (o local não

Page 21: Maria Rita Ferragut - Segregação Atividade

21

precisa ser grande, mas deve possuir a estrutura necessária para o

controle da intermediação, treinamento de funcionários etc.).

A nova sociedade deverá ter empregados em sua folha de pagamento,

em número suficiente ao exercício de sua atividade-fim.

Não incorrer em confusão patrimonial: receitas, despesas e controles

separados e controlados.

Pagamentos feitos pelos clientes devem ser em favor da nova

sociedade (“B”), e não de “A”.

5. Da jurisprudência administrativa

A jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos

Fiscais – CARF não destoa de todo o acima exposto. Trazemos, a seguir,

alguns casos importantes à presente análise, favoráveis ao contribuinte ou ao

Fisco. Vejamos.

Caso 1 - Acórdão nº 3403002.519 - 4ª Câmara da 3ª Turma Ordinária

PIS. REGIME MONOFÁSICO. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO.

SIMULAÇÃO ABSOLUTA. DESCONSIDERAÇÃO DE ATOS E

NEGÓCIOS JURÍDICOS. ART. 116, P.U. DO CTN. UNIDADE

ECONÔMICA. ART. 126, III, DO CTN. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

Não se configura simulação absoluta se a pessoa jurídica criada para exercer a

atividade de revendedor atacadista efetivamente existe e exerce tal atividade,

praticando atos válidos e eficazes que evidenciam a intenção negocial de atuar

na fase de revenda dos produtos.

A alteração na estrutura de um grupo econômico, separando em duas pessoas

jurídicas diferentes as diferentes atividades de industrialização e de

distribuição, não configura conduta abusiva nem a dissimulação prevista no

art. 116, p.u. do CTN, nem autoriza o tratamento conjunto das duas empresas

como se fosse uma só, a pretexto de configuração de unidade econômica, não

se aplicando ao caso o art. 126, III, do CTN.

Recurso voluntário provido. Recurso de ofício prejudicado.

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22

Considerando o processo acima ementado, são os seguintes os

aspectos relevantes do julgamento:

As empresas não são ficções, existem e foram criadas em

consequência da política fiscal que onerou o setor produtivo,

induzindo os produtores a atuarem também na atividade de revenda e

distribuição.

O contribuinte não pretendeu escapar da incidência monofásica, mas

deixou de ocupar-se apenas da produção, passando a atuar no

mercado de distribuição e revenda dos produtos, ou seja, passou a

ocupar mais de uma das etapas da cadeia econômica.

O propósito negocial é a efetiva revenda de produtos.

Não se pode promover a desconsideração dos atos e negócios

jurídicos que envolvem o desdobramento de atividades entre pessoas

jurídicas diferentes, ao argumento de que a abusividade residiria na

queda da arrecadação.

Caso 2 – Acórdão n.º 103-23.357 (23/01/2008)

SIMULAÇÃO - INEXISTÊNCIA - Não é simulação a instalação de duas

empresas na mesma área geográfica com o desmembramento das atividades

antes exercidas por uma delas objetivando racionalizar as operações e diminuir

a carga tributária.

Os aspectos importantes do julgamento, que deram ganho de

causa ao contribuinte, são os seguintes:

Utilização de formas lícitas.

Ausência de ilicitude na escolha de um caminho menos oneroso.

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23

Ilegitimidade da reunião de receitas das duas empresas para serem

tributadas em conjunto.

Caso 3 - Acórdão n.º 103-15.107 (04/07/1994)

Lucro Presumido - Simulação - Para que, no caso em apreço, ficasse

perfeitamente caracterizada a simulação apontada, não deveria a acusação

restringir-se à tese de que a nova empresa, constituída em local vizinho à

original e com igual composição societária, visava burlar limite de receita

bruta: cumpriria aprofundar o exame contábil-fiscal em ambas as empresas, a

fim de certificar-se se, de fato, existia uma única prestadora de serviços.

Os aspectos relevantes do julgamento, que deram ganho de

causa ao contribuinte, são os seguintes:

Caracterização da simulação depende das provas produzidas, e não da

alegação de que o contribuinte visou à economia fiscal.

Ausência de ilicitude do caminho menos oneroso.

CASO 4 - Ac. 103-07260, de 25/2/86 (Caso Grandene)

IRPJ. TRANSFERÊNCIA DE RECEITAS. EVASÃO FISCAL. Há evasão

ilegal de tributos quando se criam oito sociedades de uma só vez, com os

mesmos sócios que, sob a aparência de servirem à revenda dos produtos da

recorrente, tem, na realidade, o objetivo admitido de evadir tributo, ao abrigo

de tributação mitigada (lucro presumido).

Os aspectos relevantes deste emblemático julgamento,

favorável ao Fisco, foram:

A empresa tributada pelo lucro real vendia as mercadorias a valor de

custo, e as oito empresas do grupo revendiam a preço de mercado. O

ganho era tributado pelo lucro presumido.

O CARF entendeu haver simulação, uma vez que as oito empresas

não possuíam estrutura e tampouco funcionários próprios para operar.

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Caso 5 - Acórdão n.º 101-95.208 (19/10/2005)

IRPJ - CSL - CONSTITUIÇÃO DE EMPRESA COM ARTIFICIALlSMO

DESCONSIDERAÇÃO DOS SERVIÇOS PRETENSAMENTE

PRESTADOS – MULTA QUALIFICADA - NECESSIDADE DA

RECONSTITUIÇÃO DE EFEITOS VERDADEIROS

Comprovada a impossibilidade fática da prestação de serviços por empresa

pertencente aos mesmos sócios, dada a inexistente estrutura operacional, resta

caracterizado o artificialismo das operações, cujo objetivo foi reduzir a carga

tributária da recorrente mediante a tributação de relevante parcela de seu

resultado pelo lucro presumido na pretensa prestadora de serviços. Assim

sendo, devem ser desconsideradas as' despesas correspondentes. Todavia, se

ao engendrar as operações artificiais, a empresa que pretensamente prestou os

serviços sofreu tributação, ainda que de tributos diversos, há de se recompor a

verdade material, compensando-se todos os tributos já recolhidos.

Os aspectos relevantes do julgamento, favorável ao Fisco:

Mesma sede, mesmos sócios, mesmo objeto social.

Falta de substrato econômico: estrutura reduzida e um único

funcionário.

Preço do serviço contratado: em média 80% do resultado das

operações.

Falta de propósito negocial: única finalidade era a diminuição da

carga tributária.

Artificialismo da operação: não basta ser formalmente verdadeiro,

deve haver compatibilidade entre a forma e as provas relativas aos

fatos.

Caso 6 – Ac. 107-08326, de 9/11/05 (caso Kitchens)

Os elementos probatórios indicam, com firmeza, que as pessoas jurídicas,

embora formalmente constituídas como distintas, formam uma única empresa

que atende, plenamente, o cliente que a procura em busca do produto por ela

notoriamente fabricado e comercializado.

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Este também é um processo relevante e conhecido. A decisão

foi acertadamente proferida a favor do Fisco, conforme a seguir:

Características da pessoa jurídica constituída para prestação de

serviços (projeto e montagem) relativos aos produtos produzidos e

comercializados por outra:

o Pertenciam aos mesmos sócios.

o Mesma marca e logotipo.

o Ocupação do mesmo local.

o Venda feita por vendedores da comercial, que possuía toda a

estrutura administrativa e de pessoal (mesmos vendedores e

contadores).

o Comercial pagava aluguel do local comum e não rateava os

custos e despesas.

A PJ industrial e comercial (já existente) ficava com a maior parte dos

custos e despesas e com a menor parte das receitas (30%), pagando

ICMS e IPI.

A nova pessoa jurídica ficava com a maior parte das receitas (70%),

pagando ISS.

Acórdão considerou que as duas pessoas jurídicas formavam uma só

empresa, tendo a segunda sido constituída com o único propósito de

economia de tributos através da utilização de pessoa jurídica existente

no papel.

6. Conclusões

Diante de todo o exposto, podemos concluir o seguinte:

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1. Nada impede que os grupos econômicos planejem-se de forma legal a

fim de segregar operações para melhor desenvolvimento de atividades

distintas. O Fisco também se planeja.

2. Sempre haverá risco de autuação, tendo em vista a subjetividade de

algumas questões que permeiam esse tipo de estruturação.

3. Questão que há de ser provada é se a empresa optante pelo lucro

presumido (“B”) existia efetivamente. Não se chega a essa resposta

somente com a análise do propósito negocial; deve, sobretudo, existir

substrato fático da operação estruturada.

4. Haverá elisão se houver a constituição, dentro do mesmo grupo

econômico, de duas ou mais pessoas jurídicas, se os negócios forem

efetivamente distintos e as estruturas forem autônomas ou, se

compartilhadas, houver remuneração.

5. E, finalmente, haverá evasão se houver a criação de grupo de

empresas sem individualização de empregados, estabelecimentos,

atividades, clientes etc., empresas essas existentes apenas para a

divisão de receitas e submissão ao regime do lucro presumido.