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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA JOSÉ CORRÊA DE SOUZA NOS (EN)CANTOS DA EJA: A DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM NA FORMAÇÃO DO LEITOR VISUAL VITÓRIA 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MARIA JOSÉ CORRÊA DE SOUZA

NOS (EN)CANTOS DA EJA: A DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM NA FORMAÇÃO DO LEITOR VISUAL

VITÓRIA 2006

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MARIA JOSÉ CORRÊA DE SOUZA

NOS (EN)CANTOS DA EJA: A DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM NA FORMAÇÃO DO LEITOR VISUAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, na área de concentração Educação e Linguagem. Orientadora: Prof.ª Dr. Moema Martins Rebouças

VITÓRIA 2006

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MARIA JOSÉ CORRÊA DE SOUZA

NOS EN-CANTOS DA EJA: A DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM NA FORMAÇÃO DO LEITOR VISUAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação, na área de concentração Educação e Linguagem.

Aprovada em: 18 de maio de 2006

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________ Prof.ª Dr. Moema Martins Rebouças Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora ___________________________________ Prof. Dr. César Pereira Cola Universidade Federal do Espírito Santo ___________________________________ Prof.ª Dr. Edna Castro de Oliveira Universidade Federal do Espírito Santo ___________________________________ Prof. Dr. João Eudes Rodrigues Pinheiro Universidade Federal do Espírito Santo

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À minha enorme família: em especial à memória do meu pai, Daniel, que, com sua sabedoria e sua visão de mundo me mostrou que o analfabeto tem muita história de vida para contar e ensinar. À minha mãe Maria, Florinda, que me ensinou o prazer da leitura e da escrita e que, de certa forma, influenciou a minha escolha profissional. Aos meus três irmãos: Jair, Jordão e Oderlim e às minhas quatro irmãs, Maria, Virgínia, Glaceusa e, em especial à Rosa, pela leitura crítica em vários momentos desta dissertação. A cunhadas, cunhados, sobrinhos e sobrinhas que, a seu modo, contribuíram para que eu superasse as dificuldades encontradas no caminho e pudesse seguir em frente. Ao Rufo, meu bem-querer, que, nos últimos dois anos, foi meu companheiro de jornada e quase todos os dias perguntava: "Já escreveu hoje? Até onde conseguiu avançar?". È importante registrar que na reta final, em pleno feriado, ele percorreu a cidade em busca de tinta para eu terminar de imprimir a dissertação e disse antes de sair : " Não se preocupa amor, só volto para casa com a tinta" . Enfim, foi meu porto seguro.

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AGRADECIMENTOS

À Moema Martins Rebouças, minha orientadora que, com competência, me orientou pelos percursos da semiótica, me acompanhou até aqui e generosamente me emprestou muitos livros, textos e imagens nessa caminhada. À professora Edna Castro de Oliveira, que, com doçura e sabedoria contribuiu para ampliar meus conhecimentos sobre a EJA e me motivou a encarar esse desafio; À professora Gerda M. Foerste, por acreditar no nosso projeto.

Ao professor João Eudes, que com suas criticas, me fez repensar alguns conceitos.

Ao professor César Cola, por ter incentivado o nosso trabalho desde a graduação como professor da Disciplina Prática do Ensino da Arte de 5a a 8a série e pela presença importante nesta reta final.

A todos e todas da Escola José Lemos de Miranda, do turno noturno, em especial a professora de Português Luzia Alves por me ceder uma de suas aulas para que eu pudesse desenvolver esta pesquisa. A orientadora pedagógica Madalena Maria Barbosa por ter contribuído objetivamente com essa possibilidade. A todos os alunos e alunas do segundo semestre de 2004 da 5a série.

A todos e todas da Escola Geraldo Costa Alves do turno noturno, em especial à também professora de Português Nilda Duarte Teixeira, que me cedeu uma de suas aulas. À diretora Durcéia Terezinha Bertold que me abriu as portas da escola para o desenvolvimento desse projeto. E a todos os alunos e alunas do 1º D do segundo semestre de 2004.

Aos meus queridos amigos e amigas do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da Universidade Federal do Espírito Santo, pela vivência e aprendizado em EJA e pelo incentivo à pesquisa.

A minha amiga Priscila Chiste, pela troca de conhecimentos desde a graduação,e a p Fabíola V.P. Sampa pela leitura crítica.

A todos os queridos amigos, companheiros e companheiras da Juventude Operária Católica (JOC) pela torcida durante toda a caminhada. A Carolina Barbosa Gomes e Fernanda M. Dias V. Silvério pela presença importante na reta final e a Alina da Silva Bonella pela revisão dessa dissertação.

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O mestre nasce da exuberância da felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua profissão, os professores deveriam ter coragem para dar a absurda resposta: "sou um pastor da alegria..." Mas, é claro, somente os seus alunos poderão atestar da verdade da sua declaração...

(RUBEM ALVES)

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RESUMO Investiga o processo de formação de leitores visuais na Educação de Jovens e Adultos (EJA), objetivando perceber as atribuições de sentido que os alunos da EJA dão às imagens publicitárias e como o material educativo arte br cria competências para a formação de leitores de imagens. A pesquisa foi desenvolvida em duas escolas: uma na Rede Municipal de Vitória, com alunos de 5a série, e outra da Rede Estadual de Ensino, com alunos do 1o ano do ensino médio. Ao todo foram envolvidos 33 alunos. A escolha de turmas de níveis diferenciados justificou-se para que houvesse um universo maior de investigação, a partir de uma prática educativa de intervenção, utilizando o material educativo, arte br, em que os processos de leitura desses sujeitos são analisados a partir de textos verbais e não verbais, produzidos por eles, coletados de setembro a dezembro de 2004. Como referencial teórico de intervenção e de análise dos dados, utiliza a semiótica greimasiana. Para análise dos dados, conclui que os alunos fazem uma leitura mais subjetiva e analógica do que histórica das imagens. Palavras-chave: Imagens.Leitura.Jovens.adultos.Discurso.

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RÉSUMÉ

Cette recherche a pour but d’analyser le processus de formation des lecteurs visuels dans le quadre d’Éducation des Jeunes e Adultes (EJA). Elle a été developpée dans deux écoles : l’une du reseau municipale de Vitoria avec les élèves de 5ème et l’autre du reseau de l’Etat avec les élèves de la 1ère année du niveau sécondaire. L’étude englobe 33 élèves. On a choisi des élèves de différents niveaux afin d’amplier notre univers d’observation. Cette étude a été developpée apartir d’une pratique educationelle d’intervention en utilisant le matériel educatif arte br ; les processus de lecture de ces sujets ont été analysés apartir de textes verbaux et non-verbaux produits entre Septembre et Décembre de 2004. En guise de référence théorique d’intervention et d’analyse des données, nous avons utilisé la semiotique greimasienne. Notre objectif a été de vérifier quelles sont les atributions de sens que les élèves de EJA donnent aux images publicitaires et artistiques et comment le matériel éducatif arte br crée des compétences pour la formation des lecteurs des images. Mot clé: Images.Lecture.JeunesAdultos

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................

13

CAPÍTULO I: (NOS) EN -CANTOS DA EJA .....................................

20

1.1 Nas tramas da História ............................................................................... 23 1.2 PAULO FREIRE: O POETA QUE REINVENTA A EDUCAÇÃO................. 27 1.3 EJA NO ESPÍRITOSANTO.........................................................................

32

1.3.1 Teimosia e Resistência: são marcas nas vivênc ias do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da UFES (NEJA-UFES )............................

33

CAPÍTULO II: BEBENDO DE OUTRAS FONTES ..........................

40

2.1 ALGUMAS ABORDAGENS DE LEITURA DE IMAGENS: DE

OSTROWER AO arte br ................................................................................... 42

2.2 SOBRE A TEORIA...................................................................................... 51 2.3 UM MERGULHO NA TEORIA SEMIÓTICA A PARTIR DO arte br ............ 56 2.3.1Leitura da carta de Apresentação do arte br ....................................... 59

CAPÍTULO III: VIAGEM LONGA

64

3.1 TIPO DE PESQUISA................................................................................... 64 3.2 COLETA DE DADOS................................................................................... 66 66

CAPÍTULO IV: NAS TESSITURAS DAS IMAGENS: 68

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DESCONSTRUÇÂO E RECONSTRUÇÃO ......................................... 4.1 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA À DIREÇÃO DA ESCOLA DO

GRUPO 1........................................................................................................... 69

4.2 ANÁLISE DOS TEXTOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS........................ 74 4.3 INTERVENÇÃO COM MATERIAL EDUCATIVO arte br ............................ 83 4.4. CADERNO: "COLHER O PÃO DE TODO DIA"........................................ 84 .

4.5 ALGUMAS ABORDAGENS SOBRE OS DESENHOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS...............................................................................................

94

4.6 INTRODUÇÃO AO CADERNO CAPITAL E TRABALHO............................ 98

4.7 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA A DIREÇÃO DA ESCOLA -GRUPO .........................................................................................................................

110

4.7.1 Início da pesquisa com o grupo 2. ....................................................... 111 4.8 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS TEXTOS PRODUZIDOS PELOS

ALUNOS............................................................................................................ 112

4.9 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DESENHOS PRODUZIDOS................... 125 4.9.1 Intervenção com as imagens: "Caderno cicatriz "............................... 135

CONCLUSÃO: OLHANDO O CAMINHO PERCORRIDO............... 143

REFERÊNCIAS................................................................................

146

ANEXOS.......................................................................................... 149

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LISTA DE FIGURA

Figura 1- Capa do Caderno arte br ........................................................... 59 Figura 2- Cartaz propaganda: Coca-Cola light 2004 ................................. 74

Figura 3- Cartaz propaganda: Nova coleção Grendha Ivete Sangalo 2004............................................................................................................

77

Figura 4- Cartaz propaganda: Coleção Bottero 2004................................. 80 Figura 5- Cartaz propaganda Filme Tomb Raider: a origem da vida 2003............................................................................................................

81

Figura 6- Cartaz propaganda filme: O Medalhão........................................ 82

Figura 7- "Acidente de Trabalho" de Eugênio Sigaud 1944- 132x95cm....................................................................................................

84

Figura 8- "Olaria" de Djanira da Mota e Silva 1966 – 114x162cm.............. 84

Figura 9- S/T "Ensaio a Luta pela Terra 1983 Sebastião Salgado – 51 x 71cm...........................................................................................................

84

Figura 10- "Desfiadeira de siri" Aluna de 5ª série da EJA - Escola José Lemos de Miranda.......................................................................................

95

Figura 11- "Mecânico" Aluno 5ª série da EJA - Escola José Lemos de Miranda.......................................................................................................

96

Figura 12- "Auxiliar de limpeza" Aluna da 5ª da EJA – Escola José Lemos de Miranda.......................................................................................

97

Figura 13- "Zero Cruzeiro" de Cildo Meireles 1974-1978 –6.5x15,5cm...... 98 Figura14- "Little Pillow" de Jac Leiner 1991 – 21,6x 46,5cm...................... 98 Figura 15- "Malabarismo" de Rubem Grilo 1984 – 23x33cm...................... 99 Figura 16- "10 centavos" – Aluno da 5ª série da EJA - Escola José Lemos de Miranda......................................................................................

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Figura 17- "149, 994, 50 mil" – Aluno da 5ª série da EJA – Escola José Lemos de Miranda. ....................................................................................................................

106

Figura 18- Cartaz Propaganda: Filme Matrix - ........................................... 113 Figura 19- "Estudante" – Aluna do 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves............................................................................................................

126

Figura 20- "Estudante" – Aluna do 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves............................................................................................................

127

Figura 21- "Desempregado" – Aluna do 1ª D da EJA - Escola Geraldo Costa Alves.................................................................................................

128

Figura 22- "Babá" – Aluna do 1º D da EJA – Escola Geraldo costa Alves............................................................................................................

129

Figura 23 "Vendedor" – Aluna 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves............................................................................................................

130

Figura 24- "Moeda da Nigéria" – Aluna 1ºD da EJA - Escola Geraldo Costa Alves.................................................................................................

134

Figura 25- "20 piratas" – Aluno do 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves............................................................................................................

134

Figura 26- Frans Krajeberg – 1998 – 111,5x 90 cm.................................... 135 Figura 27- Siron Franco – "Salvai Nossas almas" 1999 – 200x 300.......... 135 Figura 28- Burle Marx 1949/94 Rio de Janeiro........................................... 135 Figura 29- "Banheiro 1" – Fotografia – Alunas do 1º D da EJA - Escola Geraldo Costa Alves..............................................................

139

Figura 30- "Banheiro 2" – Fotografia – Alunas do 1º D da EJA - Escola Geraldo Costa Alves..............................................................

14

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INTRODUÇÃO

O meu contato com a Educação de Jovens e Adultos (EJA)1 vem da primeira metade dos anos 70. Nessa

época, tinha aproximadamente cinco anos de idade e morava numa fazenda do interior no Paraná. Na

cozinha da nossa casa, via minha mãe, à luz da lamparina, alfabetizando um grupo de umas dez

pessoas, entre jovens e adultos. Essa turma formou-se a partir de uma conversa sobre o saber ler e

escrever, entre meu pai e seus companheiros, na lavoura. Nessa conversa, meu pai comentou que,

quando conheceu minha mãe, ela era professora (embora tivesse apenas a 4ª série primária). Após esse

episódio, uma jovem muito bonita, chamada Lúcia,2 procurou minha mãe, pois queria aprender a ler e

escrever. Na verdade, ela era apaixonada por Salvador, um moço que morava em outra cidade e que lhe

enviava cartas de amor, as quais ela desejava responder. Quando veio, trouxe também seu irmão, que

trouxe um colega, que trouxe a mãe e, em pouco tempo, tinha formado um grupo em nossa cozinha.

Devo acrescentar que meus irmãos e eu fomos alfabetizados nesse grupo. Todos os dias, ao cair da

noite, munidos de caderno e lápis e cheirando à lavanda ou a óleo de babosa, eles chegavam para mais

uma aula.

Minha mãe, que nunca tinha ouvido falar em construtivismo ou qualquer outra teoria de aprendizagem,

munia-se apenas da força de vontade e do prazer de ensinar. Como não havia recursos didáticos,

utilizava recortes de rótulos de açúcar, de sapatos, de produtos agrícolas (como propagandas de

sementes), rótulos de fertilizantes, enfim, materiais que faziam parte do cotidiano dos alunos e, assim,

dava a sua aula. Eu era a mascote dessa turma heterogênea e como tal tentei aproveitar o máximo essa

experiência, tanto que, quando entrei na escola, já estava alfabetizada.

Na segunda metade dos anos 80, já morava no Espírito Santo, no município de Vila Velha. Aos 16/17

anos, precisei estudar à noite, pois trabalhava durante o dia em um

supermercado. Lembro que a sala de aula em que estudei naquela época também era muito

heterogênea: adolescentes e jovens que trabalhavam ou procuravam trabalho, policial militar que voltara

a estudar com o objetivo de ser promovido, donas de casa, vendedores e outros. Paralelamente à escola,

comecei a participar de Comunidade Eclesial de Base (CEB) e da Pastoral de Juventude. No início dos

anos 90, iniciei a militância na Juventude Operária Católica (JOC). Tratava-se do movimento de formação

e organização da juventude trabalhadora. Ali encontrei mais um espaço para minha formação e educação

política.

1 EJA, sigla usada para nomear a Educação de Jovens e Adultos. Passou a ser incorporada a partir da V Conferência de Hamburgo, em 1997, em função do grande número de jovens nessa modalidade no continente Latino-Americano. 2 Todos os nomes de alunos citados nesta dissertação serão fictícios.

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No final de 1999, durante o terceiro período da graduação iniciei um processo de aproximação com o

Núcleo de Educação de Jovens e adultos (NEJA) do Centro Pedagógico da Universidade Federal do

Espírito Santo (UFES). Em 2000, entrei oficialmente para o núcleo. Lá, encontrei pessoas vindas de

diversos cursos, como Pedagogia, Matemática, Psicologia e História. Foi uma expectativa e tanto

trabalhar e pesquisar mais a fundo a arte na EJA: como se dão a percepção e a apreensão da

linguagem visual na educação de jovens e adultos? Que conteúdos são essenciais?

Fui aprendendo no NEJA e nos fóruns de discussão da EJA que existe uma diferença grande entre o

supletivo e a educação de jovens e adultos. Não é apenas questão de nomenclatura. A educação de

adultos coloca o educando numa perspectiva que recupera a dinâmica da vida e da sociedade, o

aprendizado é permanente e continuado.

Minha primeira experiência como educadora de EJA aconteceu num projeto piloto desenvolvido pelo

Núcleo de Educação de Jovens e Adultos, no bairro Araçás, Vila Velha. As aulas eram numa sala, nos

fundos de uma Igreja Católica. Fui designada a educadora responsável pelo grupo, composto em sua

maioria por mulheres, com idade entre 26 a 75 anos, e um homem aposentado da categoria dos gráficos.

Quanto à formação religiosa, o grupo reunia de católicos, protestantes e um ateu comunista. Uns

buscavam a certificação, outros a socialização. Que referências usar para dar conta dessa

heterogeneidade?

A experiência de militante da JOC, cuja ação parte da realidade da juventude trabalhadora e os estudos

da metodologia de Paulo Freire foram a base para iniciar os trabalhos ali desenvolvidos. Parti de algumas

referências da cultura local que alguns tinham superficialmente, como a das paneleiras. Pesquisamos o

mangue, as panelas de barro, fizemos panelas e cinzeiros e outros objetos, visitamos o Museu de Arte

do Espírito Santo (MAES), durante a exposição "retrospectiva de Nice Nascimento". Lá as mulheres se

identificaram muito com a referida artista. Na volta à sala de aula, discutimos sobre a situação da mulher,

do negro, da divisão social do trabalho e sobre as festas populares presentes nas obras de Nice. Eles

desenharam, pintaram e fizeram cópias das obras (com algumas interferências). O tempo foi curto para

vivenciar outras questões que aguçaram meu interesse de estudo. Como principal delas, destaco, na

proposição desta pesquisa, a seguinte indagação: como trabalhar a educação do olhar, com grupos tão

heterogêneos, como o dos alunos da EJA?

A partir de todas essas vivências e do entendimento de escola como espaço privilegiado de competência

do "saber", espaço do "querer" e espaço do "poder ver", esta pesquisa propõe-se a investigar os

processos que coexistem na formação de leitores visuais na EJA. Atenta a essa especificidade e à

dimensão do ensino da arte na formação humana, as questões seguintes foram levantadas para estudo:

que atribuições de sentido os alunos da EJA dão às imagens publicitárias e artísticas? Como o material

educativo arte br cria competências para a formação de leitores de imagens?

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Para trabalhar essas questões, escolhi intencionalmente duas escolas públicas: uma da Rede Municipal

de Vitória, na Grande São Pedro, e outra da Rede Estadual em Vila Velha. Na primeira, contei com a

participação de alunos de 5a série, jovens e adultos trabalhadores (com idades entre 17 e 55 anos,

desempregados, motoristas de ônibus, domésticas, desfiadeiras de siri, auxiliares de serviços gerais,

pedreiros e auxiliares de pedreiro). Tal escola chama-se "José Lemos de Miranda". Esses alunos

acreditavam que a escola fosse de fato um espaço de ascensão profissional e social. Alguns deles

disseram não ter tido oportunidades de estudar quando criança, pois moravam longe da escola ou

tinham que trabalhar. Outros afirmaram que “empurraram com a barriga", pois a escola era muito chata,

e voltaram " {...} porque precisaram, para ver se conseguiam um trabalho”. Uma das alunas disse-me

que começou a estudar para conseguir ler a Bíblia e foi ficando, pois aprendeu a gostar de estudar,

apesar do cansaço.

Já na segunda escola, "Geraldo Costa Alves”, participaram da pesquisa alunos do primeiro ano do ensino

médio, com idades variando entre 17 e 37 anos. A maioria era adolescentes e jovens que começaram a

estudar à noite, na esperança de encontrar um trabalho para se sustentar ou ajudar no sustento da família.

Também havia casos de alunos com problemas no turno matutino ou vespertino e que foram remanejados

para o turno noturno como punição ou para ver se "endireitavam". Outros voltaram para a escola na

tentativa de retornar ao mercado de trabalho, pois já trabalharam no comércio e, na maioria das lojas, o

ensino médio completo é um requisito primordial. Os poucos que estavam no mercado de trabalho

exerciam as seguintes funções: pintor de carro, comerciário, babá e auxiliar de mercado informal. Nessa

sala, houve uma grande evasão. De 30 alunos inscritos, 13 chegaram ao final e, desses, uns cinco

faltavam muito às aulas.

Nesse processo de aproximação para a pesquisa, percebi, em ambas as escolas, sujeitos com diferentes histórias de vida, algumas felizes, outras não. No entanto, eram pessoas competentes, capazes de buscar alternativas em frente às adversidades, como a falta de escolarização, o desemprego, as doenças, o desamor e as mais diversas aspirações, como um trabalho com carteira assinada, o sonho da casa própria, de viajar, de ter um filho, de comprar um carro, de entrar numa faculdade ou de ver os filhos na faculdade. Talvez seja essa a especificidade da EJA.

Quanto à relevância da pesquisa, alguns dados levantados sobre o estado da arte na pesquisa em Educação de Jovens e Adultos no Brasil, produzida pela Ação Educativa (2000), demonstram que, entre 1986 e 1998, foram defendidas 222 teses e dissertações. Destas, 91% foram dissertações e 9% teses de doutorado. Todavia, nenhuma delas abordou a arte na EJA.

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Observei, porém, um avanço, entre 1998 e 2002, quando foram defendidas duas dissertações focalizando a arte na educação de jovens e adultos.

Paralelamente a esta, outra pesquisa3 aponta que, na sua maioria, as imagens artísticas e não artísticas

têm sido trabalhadas nas salas de arte como ilustrações ou como imagens a serem copiadas e não como

textos visuais carregados de sentido e que, por isso, podem ser lidos. Se as imagens forem trabalhadas

apenas como ilustrações, não formarão sentido para quem as vê. A disciplina de Arte, na maioria das

veze,4 é ministrada por professores de outras disciplinas como: Português, Matemática, História,

Geografia, entre outras, como complementação de carga horária (principalmente na Rede Estadual).

Muitas vezes, esses professores, por não terem formação específica, sentem-se perdidos e transformam

as aulas em "atividades". Alguns adotam uma prática educativa sem a preocupação com a construção de

significados para a arte, por exemplo, proposição de releituras de imagens (reproduções de obras de

arte) como mero exercício de cópia.

Assim, a maioria dos jovens e adultos chega à escola dizendo que não gosta e não compreende Arte,

que essa não é uma matéria importante para ampliar seus conhecimentos. Muitos deles já passaram um,

dois ou até mais anos na escola e, durante esse período, não lhes foi ofertado o ensino de Arte, ou

estudaram essa disciplina de maneira superficial, como foi dito. Comumente,5 a prática da Arte na escola

ainda tem se restringido ao trabalho com desenhos mimeografados para pintar, ou fotocopiados. Quando

muito experimentam a técnica da cestaria de jornal ou a livre expressão, entendida, nesse contexto,

como tempo/espaço de aula onde tudo cabe, um "deixa-fazer", sem a preocupação com a construção de

conhecimento em Arte.

Reduzidas as aulas de Arte na EJA a essas práticas, os alunos continuam saindo da escola sem atribuir

sentido à arte, sem considerá-la como conhecimento e muito menos como linguagem.

Nesta pesquisa, utilizo o material educativo arte br, o qual se propõe a contribuir para a formação de

leitores de imagens. Trata-se de um material educativo que usa, como fundamentação de leitura, a teoria

semiótica, portanto, difere-se de outros materiais produzidos, pois seu percurso de leitura começa pela

obra e se aprofunda nela. Outros materiais que circulam nas mãos dos professores, por exemplo, a

coleção GÊNIOS DA PINTURA, da Abril Cultural, ou a coleção PINACOTECA, da revista CARAS,

3SILVA, Ivete Aparecida. Textos verbais/visuais no livro didático de língua portuguesa: uma análise dos mecanismos de sentido e da literatura proposta. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004. 4Para confirmar essa afirmativa em relação aos professores da rede pública, podem-se consultar os levantamentos feitos pela Secretaria de Educação e Esportes do Espírito Santo. 5 Pesquisa desenvolvida na UFES-PRPPG "Retrato do Professor de Arte no Espírito Santo" coordenada pela professora Moema Rebouças (apresentada e publicada nos anais do VII Congresso Ibero-Americano de Extensão Universitária , Rio de Janeiro, 2005 no prelo).

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iniciam pela vida do artista, apresentam as obras mais difundidas em belas reproduções, mas não se

aprofundam na leitura delas. Esses materiais são mais acessíveis aos professores, pois podem ser

encontrados nas bancas de jornal de todo o Brasil. É importante salientar que não estou desmerecendo

este ou aquele recurso didático-pedagógico, mas evidenciando que há diferentes abordagens.

Para facilitar e orientar o leitor, esta dissertação foi divida da seguinte forma:

O primeiro capítulo aborda os aspectos que envolvem a educação de jovens e adultos e a caracterização

dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Explicitarei acerca da proposição oficial para a EJA, bem como

identificarei os alunos dessa modalidade de ensino.

O segundo capítulo apresenta algumas possibilidades de leitura de imagens feitas por pesquisadoras,

como Fayga Ostrower, Maria Helena Wagner Rossi, Analice Pillar e Denyse Vieira, Gerda Margit Schütz

Foerste e o Parâmetro Curricular nacional (PCN) de Arte na Educação de Jovens e Adultos. Todos os

trabalhos apresentam diferentes abordagens teóricas e diferentes sujeitos, entretanto todos dimensionam

o debate sobre a imagem para o campo da educação. Ainda neste capítulo, abordo os pressupostos

teóricos da pesquisa e os caminhos para a leitura das imagens propostas no arte br.

O terceiro capítulo apresenta os pressupostos metodológicos da pesquisa, assim como as

especificidades das etapas da ação educativa na escola junto aos alunos.

O quarto capítulo traz as análises dos textos e desenhos produzidos pelos alunos durante a ação educativa e ao final da intervenção.

Por último, reunimos algumas evidências que confirmam a apropriação por parte dos alunos na leitura

das imagens. O material arte br é avaliado com demonstrações de subsídios para a formação do leitor de

imagens a partir dos passos propostos, ou seja, de como se dá esse percurso na sala de aula da EJA.

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CAPÍTULO I

NOS (EN)CANTOS DA EJA

A respeito do título desta seção, apreendo pelo menos dois sentidos: primeiramente, concebo (en)cantos

de encantar, de encantamento, como foi dito na introdução. É fascinante trabalhar com jovens e adultos,

pois eles são sujeitos que buscam a escola por opção ou por uma condição imposta pelo sistema e,

mesmo assim, fazem dela um espaço privilegiado de troca de construção de conhecimento e de diálogo.

Em segundo lugar, entendo (en)cantos no sentido de “em um canto qualquer”, afinal, historicamente, a

educação de jovens e adultos tem sido deixada pelos cantos, à margem, principalmente, por ocasião do

financiamento, durante a elaboração do currículo e da democratização do ensino. Portanto, não tem sido

contemplada pelas políticas públicas estaduais.

Cito, como exemplo recente de um retrocesso inaceitável no plano jurídico, segundo o livro Educação de

jovens e adultos memória contemporânea, a seguinte constatação:

"Essa situação chega a produzir um retrocesso inaceitável no plano jurídico dos direitos do cidadão e no próprio plano conceitual da EJA com as mudanças radicais quem se pretende introduzir na Constituição, através do Projeto de Emenda 233, que suprime o compromisso Nacional de aplicar 50% dos recursos vinculados a educação no ensino fundamental e tenta sutilmente suprimir r o direito público subjetivo e a obrigação do poder público em atender universalmente no ensino fundamental aos jovens e adultos que a ela não tiveram acesso na infância e adolescência ou dela foram excluídos, transformando este direito em objetivo do assistencialismo (PAIVA; MACHADO; IRELAND, 2004, p. 20).

A Constituição Federal de 1988 garante a obrigatoriedade do ensino fundamental para todos e não

somente para as crianças. Trata-se de um direito positivado, constitucionalizado e cercado de

mecanismos financeiros e jurídicos de sustentação. No entanto, a Emenda nº 14/96, que mantém na

Constituição a obrigatoriedade do ensino fundamental, deixa de fora da verba do Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental a valorização do Magistério (FUNDEF) e a modalidade da

Educação de Jovens e Adultos (Parecer nº 11/2000 p. 22). Esses dados ratificam que a EJA realmente é

depreciada em nossa política educacional.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2002), em pleno século XXI, era da

tecnologia, da informação visual e verbal, há, no Brasil, cerca de 65 milhões de jovens e adultos que não

concluíram o ensino fundamental e 16 milhões de brasileiros, com idade acima de 15 anos, analfabetos.

De acordo com a coleção Educação Para Todos: uma memória contemporânea (2004), esses dados

apontam a questão que atravessa a história da educação brasileira, a qual evidencia o descaso em

relação à educação de modo geral, por parte do Poder Público. As incursões pelo campo da História da

Educação Brasileira, realizadas por Otaíza Romanelli (1977 p.13), a fizeram descobrir que," [...]

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substancialmente, pouca coisa mudou na forma de encarar a educação que nos foi legada pelos

jesuítas".

Apesar da queda anual do analfabetismo e de marcantes diferenças regionais, a existência de pessoas

que não sabem ler ou escrever por falta de condições de acesso ao processo de escolarização deve ser

motivo de autocrítica constante conforme parecer das diretrizes Curriculares Nacionais (CEB11/2000).6

Segundo os dados desse parecer, o maior número de analfabetos é de pessoas com maior idade, de

regiões pobres e interioranas e provenientes dos grupos afro-brasileiros. Muitos são candidatos aos

cursos e exames de suplência. Diante dessa situação, reafirma-se o descaso do Poder Público em

relação à EJA, que vem sendo demandada como um direito e uma dívida social a ser reparada pelo

Estado.

O parecer CEB n 11/2000, ao historicizar a trajetória da EJA, ressalta como desafio para reparação dessa

dívida social três funções que caracterizam as demandas dessa modalidade:

1) Função reparadora: significa não só a entrada desses jovens e adultos no circuito dos direitos civis

pela restauração de um direito negado, como uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento

daquela " [...] igualdade ontológica de todo e qualquer ser humano que é a participação em atividades

sociais, econômicas, políticas e sociais". Essa foi uma negação evidente na história brasileira, pois a

incorporação dos códigos relativa à leitura e à escrita representa um instrumento de poder. Não se deve

confundir a noção de reparação com a de suprimento. Assim diz o Parecer CNE/CEB nº.4/98: "Nada

mais significativo e importante para a construção da cidadania do que a compreensão de que a cultura

não existiria sem a socialização das conquistas humanas. O sujeito anônimo é, na verdade, o grande

artesão dos tecidos da história" (DCN para EJA, 2000 p. 6).

2) Função equalizadora: a eqüidade é a forma pela qual se distribuem os bens sociais, de modo a

garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade, consideradas as situações

específicas. Nessa perspectiva, a função equalizadora da EJA vai garantir a entrada no sistema

educacional a trabalhadores, donas de casa, migrantes, aposentados e encarcerados.

A educação, como uma chave indispensável para o exercício da cidadania na sociedade contemporânea, vai se

impondo cada vez mais nestes tempos de grandes mudanças e inovações nos processos produtivos. Ela possibilita

ao indivíduo jovem e adulto retomar seu potencial, desenvolver suas habilidades, confirmar competências

6 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil), Processo nº: 23001.000040/2000-55. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Relator: Carlos Roberto Jamil Cury. Brasília, nov.2000. Parecer CEB nº11/2000, Brasília, p. 12,14,15,16, nov. 2000.

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adquiridas na educação extra-escolar e na própria vida, possibilita um nível técnico e profissional mais

qualificado (DCN para EJA, 2000, p. 9).

3) Função permanente ou qualificadora: é o próprio sentido da EJA. Tem como base o caráter

incompleto do ser humano, cujo desenvolvimento e adequação pode atualizar em quadros escolares ou

não escolares. Ela é um apelo para a educação permanente e criação de uma sociedade educada para o

universalismo, a solidariedade, a igualdade e a diversidade.

Este sentido da EJA é uma promessa a ser realizada na conquista de conhecimento até então obstaculizados por uma sociedade onde o imperativo do sobreviver comprime os espaços da estética, da igualdade e da liberdade. Esta compressão, por outro lado, também tem gerado, pelo desemprego ou pelo avanço tecnológico nos processos produtivos, um tempo liberado. Este tempo se configura como um desafio a ser preenchido não só por iniciativas individuais, mas também por programas de políticas públicas (...). Muitos jovens e adultos ainda não empregados, desempregados, empregados em ocupações precárias e vacilantes podem encontrar nos espaços e tempos da EJA, seja nas funções de reparação e de equalização, seja na função qualificadora, um lugar de melhor capacitação para o mundo do trabalho e para atribuição de significados às experiências sócio-culturais trazidas por eles (DCN para EJA, 2000, p.10).

1.1 Nas Tramas da História

O analfabetismo no Brasil provoca acaloradas discussões desde a colônia, mas foi somente no século

XX que ele passou a ser visto como um problema nacional. Segundo Jamil Cury, relator do CEB Parecer

nº 11/2000, as raízes do analfabetismo no Brasil são de ordem histórico-social. Portanto são um legado

de caráter subalterno que as elites dirigentes deram à educação dos negros escravizados, dos índios,

dos caboclos migrantes, dos trabalhadores braçais e das mulheres, a quem, pela tradição patriarcal e

machista, era negado o acesso à cultura letrada. Para o relator, os descendentes desses grupos ainda

sofrem as conseqüências dessa realidade histórica. Isso nos faz retomar a idéia de que a EJA tem sido

deixada pelos cantos como marginalizada pelas políticas públicas. Várias evidências podem ser

observadas no decorrer da história da educação brasileira, as quais trazemos para apreciação neste

trabalho de forma nem sempre linear. Para isso lançamos mão, a seguir, novamente do Parecer já

referido.

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Segundo o Parecer, a Constituição de 1824 estabeleceu normas para a educação escolar. No entanto,

referiu-se aos filhos das elites, pois somente eles ocupariam funções na burocracia imperial, na política e

no trabalho intelectual. O acesso à leitura e à escrita era tido como desnecessário e inútil para escravos,

indígenas e caboclos, porque, para o trabalho duro, desenvolvido por esses grupos, bastaria a doutrina

aprendida na oralidade e a obediência mesmo que fosse sob o controle da violência física ou simbólica.

O escritor Machado de Assis fez duras críticas a essa realidade.

A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; destes uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. [...]. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o quê. Votam como vão como vão à festa da Penha, por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de estado [...] (CURY, 2000 apud MACHADO DE ASSIS, 1879, p. 12).

Cury (2000) relata também que Leôncio de Carvalho, contemporâneo de Machado de Assis, na sua

proposta para a reforma do ensino, em 19-4-1879, previa a criação de cursos para adultos analfabetos,

livres ou libertos, do sexo masculino, com duas horas diárias no verão e três no inverno. A reforma

também previa o auxílio a entidades privadas que criassem tais cursos. Essa reforma expressa a

insuficiência de uma educação baseada apenas na oralidade, uma vez que, nesse período, alguns

centros urbanos apresentavam surtos de crescimento econômico, o que já exigia um pequeno grau de

instrução.

A primeira Constituição Republicana, proclamada em 1891, retira do seu texto a gratuidade da instrução,

ao mesmo tempo em que condiciona o exercício do voto à alfabetização (art. 70). Diante disso, muitos

acreditavam ser um retrocesso a retirada da gratuidade da instrução. Outros julgavam ser um avanço,

uma vez que condicionava os analfabetos a buscarem, por livre vontade, cursos de alfabetização. Não se

pode esquecer que essa Constituição tinha um espírito liberal e como tal fazia do indivíduo o "pólo"

responsável pela sua ascensão.

A Constituição Republicana dava continuidade à descentralização escolar promovida pelo ato adicional

de 1834.7

Apesar da proclamada democracia, o que aconteceu foi a manutenção da exclusão social que

privilegiava os filhos das elites a prosseguirem nos estudos. Por outro lado, devido a ausência do Poder

Público no ensino da EJA, os movimentos sociais, organizados em associações sem fins lucrativos,

necessitavam ocupar essa demanda. Essa realidade já vinha acontecendo desde o fim do Império e

7 Com o Ato adicional de 1834, as competências sobre o ensino escolar gratuito previsto na Constituição de 1824 são regulamentadas por lei em 1827. No entanto, esse Ato não evidenciou a prioridade para o ensino em nenhum dos níveis do governo, resultando num " [...] jogo de empurra entre os poderes gerais e os provinciais". (PARECER CEB nº 11/2000, p. 12).

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continuou no início da República. Nesse contexto, o Decreto nº 13, de 13 de janeiro de 1890, determina

que os cursos noturnos poderiam ser oferecidos por associações civis em estabelecimentos públicos,

desde que pagassem a conta do gás. Assim, ainda segundo o Parecer CEB /11/2000, muitos grupos

tomavam essa iniciativa, pois almejavam recrutar eleitores, outros buscavam atender a demandas

específicas.

O início do século XX traz mudanças significativas para o cenário brasileiro. Aos poucos começaram a

surgir surtos de urbanização, principalmente nos grandes centros, assim como o início da industrialização

que, em contrapartida, exigia uma mão- de- obra com um mínimo de formação. Surto provocado pelo

contexto da 1a Guerra Mundial que favoreceu o mercado interno devido à dificuldade de importação.

Na década de 20, impulsionados por essas mudanças ocorridas no Brasil e no mundo, movimentos civis

e oficiais se empenham na luta contra o analfabetismo, considerado por muitos a "chaga social". Os

movimentos operários de inspiração anarquistas ou comunistas passaram a dar maior valor à educação

em suas reivindicações. Essa conjuntura impulsionou as grandes reformas desse período em quase

todos os Estados.

Ainda segundo Cury (2000, p.14), esse foi um período histórico, no qual a temática do nacionalismo se

implantou de modo enfático e o Governo Federal, como a primeira intervenção direta da União,

nacionaliza e financia as escolas primárias e normais, no Sul do País, nos núcleos de imigração para

que elas não corressem o risco de receber orientação internacional .

Assim, em 1921 é realizada no Rio de Janeiro a Conferência Interestadual da Educação, convocada pela

União para discutir os limites e as possibilidades do art.35 da Constituição então vigente, em face do

problema do analfabetismo, e as competências da União quanto às responsabilidades dos Estados em

matéria do ensino. A Conferência acabou por sugerir a criação de escolas noturnas voltadas para os

adultos com a duração de um ano. Essa medida chegou a fazer parte do Decreto nº 16.782/A , de 13 de

janeiro de1925, conhecido como Lei Rocha Vaz ou Reforma João Alves. O art. 27 do referido decreto

dizia: "Poderão ser criadas escolas noturnas, do mesmo caráter, para adultos, obedecendo às mesmas

condições do artigo 25" (Parecer CEB nº 11/2000, p. 14).

Em síntese, o art. 25 dizia que era papel da União subsidiar parcialmente o salário dos professores

primários atuantes nas escolas rurais, e papel dos Estados pagar o restante dos salários e arrumar

moradia, escola e material didático. A alegada e proclamada falta de recursos da União e a autonomia

dos Estados, juntamente com o medo que as elites brasileiras tinham da incorporação massiva de novos

eleitores tornam sem efeito esta dimensão da Reforma e, mais uma vez, a proposta não saiu do papel.

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Na década de 1930, a EJA continuava à margem do sistema regular de ensino. O Plano Nacional de

Educação de 1936/1937, que não chegou a ser votado devido ao golpe que instituiu o Estado Novo,

possuía toda sua segunda parte voltada para o ensino supletivo, destinado a adolescentes e adultos

analfabetos, assim como aos que quisessem a instrução profissional e aos imigrantes. Segundo o Plano

Nacional da Educação 1936, também era obrigação dos sindicatos e das cidades com mais de 5.000

habitantes a garantia do ensino supletivo. As elites brasileiras começaram a temer essa maior

democratização social e conseguiram explicitar, na Constituição de 1937, no art.129, uma discriminação

entre as elites intelectuais e as classes menos favorecidas. A estas últimas eram destinado o

conhecimento manual e o acesso mínimo à leitura escrita. Não esquecendo que esse mínimo era

permitido porque se vivia no País um movimento em prol da industrialização, nos moldes tayloristas,8 que

exigiam um mínimo de escolaridade de seus operários, assim como seu controle (PARECER CEB n.º

11/2000, p. 15-16).

Para Fávero (2004, p.14), foi somente após 1940 que o analfabetismo no Brasil passou a ser visto como

um problema nacional. O censo desse ano mostra altos índices de analfabetismo: 55% da população do

País, considerando a população de 18 anos e mais. Desses, 40% estavam situados na Região Sul e

Sudeste e 72% no Norte e Nordeste. Esse dado provoca uma tomada de posição do Estado, pois é o

momento de redemocratização do País, após a ditadura de 1937-1945, aliada às iniciativas mundiais da

recém-criada UNESCO, após a Segunda Guerra Mundial. Diante disso, em 1947, a União lança, um

plano nacional, a primeira Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA).

Ainda segundo Fávero (2004, p. 15), a proposta dessa campanha estava ancorada no conceito de

educação de base sistematizado pela UNESCO, que previa, para os adolescentes e adultos que não

haviam freqüentado a escola na "idade apropriada", o conteúdo do ensino intensificado na América

Latina. Tal proposta visava a uma ação educativa ampla, como a aprendizagem da leitura e da escrita, as

operações do cálculo, as noções básicas de cidadania, higiene e saúde, geografia e história da pátria,

puericultura e economia doméstica para as mulheres. Visava também a favorecer a vida social dos

pequenos centros urbanos, pelo maior contato com a cultura, por intermédio do rádio, do cinema, dos

livros e dos jornais.

Essa primeira grande campanha nacional foi criticada por dois motivos principais: o primeiro remete à

leitura dos artigos e relatórios da época que revelam uma definição preconceituosa do analfabeto,

principalmente das áreas rurais. Ele era visto como culturalmente inferior. Como as produções culturais

das populações das áreas rurais não eram consideradas pelas "elites dirigentes", era divulgada somente

a cultura considerada erudita. O segundo motivo da crítica considerou a campanha uma "fábrica de

8 Taylorismo: Sistema de organização industrial criado por Frederick W. Taylor, engenheiro e economista norte- americano (1856- 19915). É baseado nos princípios da divisão de tarefas, a fim de se conseguir, com o mínimo de tempo e de atividade, o máximo de rendimento.

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eleitores", pois, na época, os analfabetos não votavam e, portanto, essa campanha possibilitava a

ampliação dos quadros eleitorais (FÁVERO, 2004, p.15).

Pode-se dizer que, apesar da dimensão integradora da CEAA, criada e coordenada pelo Governo

Federal em articulação com os Governos Estaduais e Municipais, o período da história da Educação de

Adultos, da década de 1940, até início de 1960, foi marcado pelo "voluntariado", com professores mal

preparados que atuaram em escolas com péssimas condições, com material didático inadequado.

Todavia, nesse período, houve também a contribuição de educadores comprometidos com a mudança

desse quadro (FÁVERO, 2004, p.16-17), como os que trataremos a seguir.

1.2 PAULO FREIRE: O POETA QUE REINVENTA A EDUCAÇÃO

Não dá para abordar a história da EJA sem nos determos na grande contribuição do educador Paulo

Freire a essa área. Ele acreditava, profundamente, que a educação que reinventa podia ser um

instrumento a mais no trabalho dos homens para criarem um mundo diferente. Todos os seus estudos

foram no sentido de pensar e repensar o homem, a história, a educação. Segundo Brandão (1981), Paulo

Freire buscou criar uma ferramenta que ajudasse o homem a começar "pelo começo"; por um jeito mais

humano de ensinar - aprender a ler-e-escrever. Uma de suas tantas perguntas foram: Educar por quê? E

para quê?

Um dos pressupostos do método de Paulo Freire é a idéia de que ninguém educa ninguém e ninguém se educa

sozinho. A educação, que deve ser um ato coletivo, solidário, um ato de amor, dá para pensar sem susto, não pode

ser imposta. Segundo ele, educar é uma tarefa de trocas entre pessoas, se não pode ser nunca feita por um sujeito

isolado (até a auto-educação é um diálogo à distância), não pode ser também o resultado do despejo de quem

supõe que possui todo o saber, sobre aquele que do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum. De

lado a lado se ensina e de lado a lado se aprende (BRANDÃO, 1981, p. 22).

Ainda para Brandão (1981, p. 43), o princípio da Pedagogia de Paulo Freire é o princípio da liberdade, da

democracia e da participação crítica. Pode-se exemplificar com o "círculo de cultura". Nessa experiência,

não existia a "turma de alunos" ou "sala de aula"; todos ficavam em círculo em volta de uma equipe de

trabalho. O termo professor ou alfabetizador foi substituído pelo animador, que coordenava um grupo e

animava um trabalho orientando uma equipe em que o maior objetivo estava em buscar a participação

ativa de todos no diálogo, que é a espinha dorsal do método Paulo Freire.

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A experiência de Paulo Freire com os Círculos de Cultura, que emerge no contato com movimentos

populares no Nordeste brasileiro, foi bastante explorada na literatura. Os livros Educação como prática da

liberdade (FREIRE), O que é o Método Paulo Freire de Brandão (1981) e tantos outros, tornaram-se

referências clássicas na compreensão da busca de novas práticas de alfabetização e,

conseqüentemente, para a educação de adultos no País.

A experiência do Círculo de Cultura foi levada por muitas mãos ao Rio de Janeiro, depois de

experimentado no Nordeste. Do Rio de Janeiro, expandiu-se para São Paulo e Brasília. O início dos anos

60 foi o período da criação dos Movimentos Populares de Cultura (MCP), dos Centros de Cultura Popular

do Movimento Estudantil (CPC), do Movimento da Educação de Base (MEB) e tantos outros grupos, nos

quais se misturavam estudantes, educadores, professores e profissionais de outras áreas. Os resultados

obtidos impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se, então, aplicar o método em todo

território nacional, mas, desta vez, com o apoio do Governo Federal. Por um breve período, mais

especificamente entre junho de 1963 e março de 1964, foram realizados cursos de formação de

coordenadores na maior parte das Capitais do País. Não houve tempo de passar das primeiras

experiências no trabalho de alfabetização de adultos, pois, logo nos primeiros dias de abril de 1964, o

Plano Nacional de Alfabetização do Governo Federal, idealizado por Paulo Freire, a pedido do governo

deposto, foi denunciado publicamente como "perigosamente subversivo" (BRANDÃO, 1981, p 18-19).

Com o golpe militar de 1964, o acesso à educação e a outros bens, por parte dos segmentos sociais, fez-

se sob o signo da repressão, pois a concentração de renda e o fechamento dos canais de participação

aumentaram o distanciamento do País com os processos de democratização. Sob o signo da repressão,

praticamente todos os movimentos de educação e cultura popular do início dos anos 60 foram

desmobilizados. Por algum tempo, resistiram alguns grupos de alfabetização usando o Sistema Paulo

Freire, em que a alfabetização de jovens e adultos era um movimento de conscientização. Alfabetizar era

considerado um ato político. O Ato Institucional nº5 (A I- 5)9 acaba com esses movimentos de resistência.

Em contrapartida, ainda na década de 60, um movimento conservador, chamado Cruzada Ação Básica

Cristã ( ABC), criado por missionários protestantes do Recife, recebia todo o apoio da máquina estatal.

Sua maior intervenção deu-se na Paraíba, onde esse movimento era uma oposição ao trabalho de Paulo

Freire ali realizado. A Cruzada ABC nada inovou, apenas colocou a educação de jovens e adultos a

serviço da ideologia anticomunista (FÁVERO, 2004, p. 24).

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Porém, mesmo sob o signo da repressão, os movimentos sociais e sindicais, assim como organizações

não-governamentais foram se recompondo e construindo a história da EJA, cobrando do governo

respostas para os baixos índices de escolarização do País.

Fortemente motivado pelo crescimento econômico e o processo de modernização do país, o governo

militar busca ampliar a oferta de escolarização de jovens e adultos ao mesmo tempo em que procura

minar as iniciativas não-governamentais. Cria, então, o Movimento Nacional de Alfabetização (MOBRAL)

em 1968. Segundo Fávero (2004, p. 25), inicialmente, o Mobral tinha a missão de coordenar as

atividades de alfabetização em curso.

Depois, com recursos próprios e pessoal de seus quadros, muitos provenientes do MEB, o antigo Instituto

Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), hoje Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o

Mobral desenvolvia também projetos de alfabetização funcional e capacitação em vários assentamentos

no Nordeste.

Fávero (2004, p. 25) ainda diz que dois anos depois o Mobral foi reformulado, com estrutura de fundação

e converteu-se no maior movimento de alfabetização de jovens e adultos já realizado no País, com

inserção em praticamente todos os municípios brasileiros, com certificação de milhares de trabalhadores

para as grandes obras públicas e para a construção civil. No final da década de 1970, o Mobral deveria

ter cumprido sua meta de "erradicação do analfabetismo". No entanto, como o objetivo não foi alcançado,

tentou-se implantar o Mobral Infanto-Juvenil, com o objetivo de atender crianças e adolescentes menores

de 15 anos, dos quais muitos já estavam em classes existentes. Essa proposta desencadeou violenta

crítica e deixou claro que a fundação, além de estar assumindo as funções do Ministério da Educação,

dispunha de mais recursos para o ensino fundamental e tinha uma administração mais ágil que o próprio

Ministério.

Ainda segundo Fávero (2004, p. 26, apud PAIVA, 1981), apesar de o Mobral ter trabalhado com grandes

números, a avaliação feita sobre esses resultados, comparando os censos de 1970 e 1980, diz que, em

dez anos de atuação maciça, o Mobral conseguiu reduzir apenas 7% o índice de analfabetismo.

Retomando o ano 1968, o Parecer n.º 11/2000 diz que é no interior dessas práticas de autoritarismo que

foi criado o Mobral e é desta " [..] modernização conservadora que emerge o ensino supletivo que passou

a ter suas bases legais específicas com a Lei n. 5692/71". Um dos artigos dessa lei dizia que o supletivo

destinava a " [...] suprir a escolarização regular para adolescentes e adultos que não a tinham

9 AI –5: Lei criada no Brasil em 1968 foi a radicalização da ditadura militar. Fim de todas as possibilidades de fazer oposição política ao governo. Em conseqüência disso, muitos militantes de oposição política foram exilados, presos e desaparecidos.

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conseguido ou concluído na idade própria". Essa lei incorpora a idéia de suplência que, nas práticas de

EJA, passa a ser a referência na educação de jovens e adultos .

O ensino supletivo é uma modalidade até hoje vigente, embora a lei que o criou tenha sido revogada pela

nova LDB n.º 9.394/96. Dessa forma, o ensino supletivo, que deveria constituir-se em nova modalidade

de ensino " [...] para os que perderam a oportunidade da escolarização na época considerada adequada".

Ao longo da história, o supletivo, para muitos jovens e adultos, foi transformado em cursos de baixa

qualidade. Outros tantos buscam esse ensino para efeito de certificação, mas não se sentem em

condição de fazer um concurso público, ou o vestibular, pois acreditam que as pessoas que tiveram

acesso à escolarização regular estão mais preparadas, o que confirma essa baixa qualidade no ensino

supletivo. O Documento Base Política Educacional do Estado do Espírito Santo, em seu artigo Educação

de Jovens e Adultos (2003, p. 45), ressalta que um estudo nacional realizado por Haddad e Siqueira, em

1988, constatou que o ensino supletivo não foi tomado como prioridade de política educacional,

acabando por se configurar "[...] como um serviço marginal, com escassez de recursos financeiros e

humanos". Assim, a Suplência acabou sendo caracterizada pela imagem de um ensino precário, mas,

para os sujeitos jovens e adultos trabalhadores que demandavam uma certificação mais rápida, foi e

continua sendo considerado a solução para seus problemas.

Para Paiva (2004, p. 30), a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,

LDB nº 9.394/96, incorporam novas construções da realidade brasileira. Assim os compromissos

assumidos no âmbito internacional, como a Declaração de Educação Básica Para Todos, de Jomtien, na

Tailândia, 1990, seguido da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, em 1997, em

Hamburgo, Alemanha, retomam a idéia do direito, firmando a Declaração de Hamburgo e a Agenda Para

o Futuro. Para concretizar essa agenda, o Ministério da Educação vem fortalecendo iniciativas e

parcerias com os sistemas municipais e estaduais de educação e organizações não-governamentais,

atuando com os Fóruns que discutem a ampliação e a melhoria da qualidade da educação de jovens e

adultos no Brasil. Os Fóruns de EJA, hoje presentes em 26 Estados brasileiros têm explicitado os

embates dos educadores de EJA com as políticas do MEC e em nível local e vêm buscando uma

descentralização das discussões e decisões nas políticas para a área.

1.3 EJA NO ESPÍRITO SANTO

A Secretaria de Educação e Esportes do Estado do Espírito Santo (SEDU) exibe, em seu Documento

Base Política Educacional do Estado do Espírito Santo (2003, p. 44), que, no Espírito Santo, a oferta da

educação de jovens e adultos vem sendo oferecida por meio da Suplência em diferentes níveis: O projeto

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"Todos Podem Ler", (Voltado para as 4 primeiras séries, aqui chamado de Suplência fase I), Suplência

Fase II (de 5a a 8a séries) e Suplência Fase III (ensino médio) .

A Secretaria indica a necessidade de avaliar o modelo de suplência no Estado e perceber, nessa

avaliação, se esse modelo contempla as características dos sujeitos da EJA a quem se destinam esses

projetos. Observa-se, ainda, que falta no Estado uma política de regulamentação do Parecer 11/2000 das

Diretrizes Curriculares Nacionais e da Câmara de Educação Básica para a oferta da EJA que, segundo a

nova LDB nº 9394/96, é uma modalidade da educação básica, nas suas etapas fundamental e médio.

Esse documento aponta a falta de um financiamento adequado que responda às especificidades da EJA,

a falta de uma política de formação continuada de professores de jovens e adultos com valorização

profissional e concurso público específico para professores com qualificação na área, além de não

garantir, de fato, a EJA no Projeto Político e Pedagógico (PPP) da escola, contemplando as

especificidades dos educandos e das respectivas comunidades.

Diante disso, o documento aponta várias diretrizes como sugestões para subsidiar novas formas de

organização da oferta da EJA nos próximos anos. Eis algumas:

a)“A substituição paulatina da Suplência como forma de organização da EJA, na educação básica, de

modo que a recorrência à sua prática dê lugar á implementação da EJA como oferta regular no ensino

noturno” (p. 45);

b)“Definição de uma política de formação continuada de professores de jovens e adultos, bem como a

valorização profissional pela realização de concursos públicos específicos com qualificação na área" (p.

45);

c)“A elaboração de um programa de formação profissional de educadores populares de jovens e adultos,

em parceria com a Universidade e ONGs que atuam na área. O programa deve contemplar a

escolaridade básica do ensino a ser adequada às condições do ensino e ser adequada às condições de

vida e trabalho dos sujeitos, considerando e legitimando suas práticas pedagógicas" (p. 45);

d)"Participar efetivamente do Fórum de educação de Jovens e Adultos e legitimar suas ações, com o

objetivo de construir no Estado um verdadeiro sistema de colaboração na área, envolvendo todos os

Segmentos que vêm escrevendo a história da EJA" (p. 46).

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1.3.1 Teimosia e Resistência: são marcas nas vivênc ias do Núcleo de

educação de jovens e adultos da UFES (NEJA-UFES)

No Espírito Santo, a história da EJA na Universidade vem sendo tecida no entrelaçamento de

experiências do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (NEJA), o qual, desde a sua fundação, tem

uma história marcada pela defesa dessa modalidade de ensino.

Desafiando todas as impossibilidades, o NEJA segue teimosamente sua trajetória tendo, na atualidade a

formação de educadores de EJA uma de suas principais linhas de ação. Muitos pesquisadores em

formação que compõem o NEJA, hoje, não têm vínculo com a Universidade, mas sim uma afinidade

política, filosófica e ideológica com a educação de jovens e adultos e com os princípios que orientam as

práticas do NEJA. Apropriando-me do título de uma música do grupo Moxuara, posso dizer que esse

grupo é o dos "permanecentes". As ações de formação vivenciadas pelo núcleo, nos seus mais de dez

anos de existência, guardam também algumas das características da formação de educadores de EJA

no Brasil, como a improvisação e a descontinuidade, em função das políticas de remanejamento de

recursos.

Para Oliveira,10 resgatar os fios da trama que convergiram para a criação do NEJA no Centro de

Educação envolve uma pluralidade de atores, contextos e movimentos, como o desencadeado, em 27-

05-1995, pelas professoras Ana Lúcia Batista Rocha, Denise Maria Moreira Vieira e o professor Roberto

Cleytam pela criação do Núcleo Interdepartamental de Educação Básica de Jovens e Adultos. Essa

iniciativa deu-se em decorrência da demanda da sociedade civil (estados municípios e instituições) para

a formação de professores alfabetizadores em canteiros de obra, em instituições prisionais e nas redes

públicas. Para atender a esses anseios, o Departamento de Administração e Supervisão Escolar (DASE)

fez uma chamada a todos os professores do então Centro Pedagógico interessados em estudar e

pesquisar a EJA, para aderirem ao movimento de criação do Núcleo. A finalidade inicial do núcleo era:

a) instituir espaços para a realização de projetos de pesquisa e extensão;

b) possibilitar o engajamento dos alunos de Pedagogia do Curso de Pedagogia em atividades práticas de

magistério;

b) promover participação dos alunos em projetos de iniciação científica.

Nesse período, a ação do DASE sinalizava para a necessidade de interlocução entre os diferentes

departamentos. Algumas adesões se fizeram na época, mas não foram suficientes para referendar a

criação do então Núcleo Interdependente Departamental de Educação de jovens e adultos.

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Além disso, a aposentadoria dos professores referidos, principalmente a da professora Ana Lúcia, que

liderou inicialmente esse movimento no Centro Pedagógico (CP), fez com que a idéia da criação do

Núcleo permanecesse teoricamente vinculada ao DASE.

É nesse contexto de aparente estagnação que surge, então, um misto de transição, de buscas e

interesses que extrapolam a ação departamental, que, em outro movimento, envolvendo ações

concretas de alfabetização e formação de educadores da EJA já se fazia também presente na UFES,

liderado inicialmente pelo professor Admardo S. Oliveira, do Departamento de Filosofia, professor

emérito (in memoriam ) dessa Universidade desde 1995, e que se tornou um dos precursores da

inserção da educação de jovens e adultos na UFES. Com sua aposentadoria, o trabalho por ele

desenvolvido teve continuidade, sendo assumido no Centro de Educação, a partir de 1991, pela

professora Edna Castro de Oliveira, que compunha sua equipe de trabalho naquela época. É da

convergência desses dois movimentos no âmbito da UFES e, particularmente do segundo, que emerge o

atual Núcleo de Educação de Jovens da UFES.

Oliveira coloca ênfase na produção e constituição do NEJA, a partir da concepção da EJA como um não-

lugar. Segundo Certau (1994, p. 101): "O não-lugar é o espaço da tática da inventividade, o não-lugar

permite a tática como arte do fraco. Requer o uso da vigilância para ocupar os espaços produzidos pelas

falhas no campo que lhe é imposto cria surpresas, consegue estar onde ninguém está" .

Através de temporalidade múltiplas, esse grupo mutante e plural, num movimento quase invisível da EJA

como um não-lugar dentro da universidade, foi exercitando táticas de resistência e de mobilização nos

espaços da Universidade como o Restaurante Universitário, Biblioteca Central, o Centro Biomédico,

salas do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), em busca de um lugar que acolhesse com

dignidade as classes de alfabetização de jovens e adultos. Essa busca também se estendeu às

comunidades periféricas da Grande Vitória.

O descaso e a marginalidade com que a educação de jovens e adultos tem sido tratada pelas políticas

públicas se manifestavam também no seio da própria universidade mais especificamente no então

Centro Pedagógico. Só em 1997, depois de oito anos de atuação, exercitando táticas de resistência,

ocupando os não-lugares, espaços esses produzidos pelas brechas num campo supostamente ocupado

pelo descaso e o acaso, é que, aos poucos, a direção do Centro foi sensibilizada pelo trabalho realizado.

Nesse contexto, disponibilizou uma sala do Prédio dos Laboratórios para funcionamento das atividades

do Projeto de Extensão: Alfabetização e Formação na Prática da Educação de Jovens e Adultos.

10 OLIVEIRA, Edna C. de. Mesa- redonda: Os núcleos de ensino: NEJA, história e perspectivas de inserção no cenário educacional. In: SEMINÁRIO 30 ANOS DO CENTRO DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. VITÓRIA, 2005.

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O projeto acima mencionado foi inspirado nos resultados de pesquisa oriundos da tese de doutorado do

professor Admardo sobre o pensamento de Paulo Freire, e de duas dissertações de mestrado que

envolviam as temáticas da educação matemática e aquisição da escrita na alfabetização de jovens e

adultos. Foi gestado no Departamento de Filosofia pelo professor Admardo, seu primeiro coordenador.

Em 1991, o projeto passa a vincular-se ao CP, quando a professora Edna assumiu a sua coordenação .

Esse projeto foi desenvolvido durante dez anos e transformou-se recentemente no Programa "Educação

de jovens e adultos: múltiplos espaços e tempos de formação", buscando sempre atuar na perspectiva

da continuidade. A produção de conhecimento que tem emergido das ações desse projeto vem abrindo

perspectivas para a atuação do NEJA em diversas frentes de trabalho no campo da formação, como as

que serão abordadas a seguir.

A partir de janeiro de 2000, o NEJA foi convidado a contribuir com o Programa Nacional de Educação e

Reforma Agrária (Pronera/EJA). É necessário explicitar que, no Espírito Santo, esse programa, além da

EJA, abrange os cursos de Pedagogia da Terra (Ensino Superior) e Agroeocologia (Ensino Técnico) .

Em função de políticas de financiamento, essa experiência teve alguns recortes temporais em que a

experiência da continuidade e descontinuidade deixou marcas. Por exemplo, essa experiência foi

desenvolvida no período de janeiro de 2000 a janeiro de 2001. Logo a seguir, sofreu descontinuidade,

sendo retomada de novembro de 2002 até o final de 2003. Uma nova descontinuidade é, portanto,

experimentada e só em julho de 2005 o PRONERA/EJA volta a ser retomado com uma proposta que

envolve também a escolarização de 1a a 4a séries. A experiência de formação continuada com os

educadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) resultou na publicação de um

artigo de autoria coletiva, Formação continuada como educação de jovens e adultos: experiências junto

aos educadores do MST, publicado pela DP&A, no livro Educação de Jovens e Adultos, organizado por

Inês Barbosa de Oliveira e Jane Paiva, em 2004.

Esse processo de escrita coletiva trouxe conflitos e tensões, mas foi uma experiência que provocou o

grupo a refletir sobre a importância da sistematização e socialização do trabalho realizado. Nesse artigo,

problematizando as características da continuidade e descontinuidade na formação dos educadores de

EJA e tendo a consciência de que o NEJA guarda também essas marcas, ousamos pensar a dinâmica da

continuidade e descontinuidade, a partir das reflexões de Konder (1999) sobre a temática da

descontinuidade nas políticas públicas.

Os pressupostos desse teórico sobre o percurso de atuação com os educadores do Pronera/EJA remete

a um olhar diferente sobre a descontinuidade, sem deixar de levar em conta a dicotomia dessa quebra de

tempo, mas, considerando o movimento transformador dessas quebras na continuidade, a experiência da

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descontinuidade permitiu ao grupo a abertura de novas leituras e vivências, a revisão de sua prática e a

transformação de cada um como educador. Segundo Souza Júnior et al. (2004,p. 133), " [...] nesse

percurso, a principal formação aconteceu com cada formador que foi inserido no meio rural, os quais, em

sua maioria, tinham uma visão urbana e apesar da afinidade política com o MST, carregavam as marcas

do preconceito em relação ao mesmo".

Inicialmente, não se tinha a dimensão concreta do tamanho do desafio se acabava de assumir, mas os

dilemas foram se resolvendo na construção do trabalho. As referências iniciais para a proposta foram o

processo cultural vivenciado pelo MST, herdeiro de um passado camponês revolucionário, as matizes da

educação popular vivenciada por Paulo Freire, a ênfase no direito à educação e as dimensões de

formação da vida adulta.

Em 2003, o NEJA foi convidado para, junto com a equipe da SEDU, elaborar uma Proposta de Formação

"Continuada" de Professores de Jovens e Adultos, programa de Apoio a Estados e Municípios à

Educação Fundamental de Educação de Jovens e Adultos (Programa Recomeço). O que nos levou a

aceitar esse desafio foi a possibilidade concreta de exercitar com aos educadores e educadoras de

jovens e adultos da Rede Estadual, nos municípios contemplados pelo projeto, uma das ações prioritárias

a que temos nos dedicado: a formação de educadores de EJA.

O Projeto Recomeço (hoje chamado Fazendo Escola, Programa do Governo Federal), foi gestado a

partir das políticas públicas que têm sido induzidas no Brasil pelas políticas econômicas mundiais, em

compromissos assumidos pelo país no âmbito internacional. Essas políticas buscam priorizar

atendimento às populações que abrigam extrema pobreza, tendo como objetivo imediato a redução dos

efeitos perversos da globalização nos países em desenvolvimento. Em outras palavras, o Projeto

Recomeço indica uma abordagem assistencialista e compensatória que tem marcado a trajetória da EJA

no País e que vem convivendo com as novas concepções e as novas perspectivas de fazer educação de

jovens e adultos.

É importante ainda afirmar que o NEJA foi e continua sendo um dos principais articuladores do Fórum de

EJA do Estado do Espírito Santo, espaço este que tem se configurado como um laboratório de reflexão,

formulação e intervenção nas políticas locais destinadas a essa modalidade, pelos educadores dos mais

diversos segmentos como: movimentos sociais, sindicatos, SESI, administrações públicas e outros.

Embora o Fórum não tenha poder de proposição, por ser como os outros Fóruns, ou seja, uma

articulação informal, tem encontrado na sua trajetória modos de intervir, em alguns casos, nas políticas

locais pensadas para essa modalidade. Toma-se, como exemplo dessa intervenção, o chamamento ao

debate público para o caso do Programa "Espírito Santo Alfabetizado" proposto pelo NEAD e a

participação na formulação do Programa "Alfabetização é um Direito", idealizado pelo Estado. O NEJA,

por meio do Fórum, teve ação direta não apenas na formulação, mas também na formação e no

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acompanhamento dos alfabetizadores. Todavia, esse trabalho foi interrompido com a mudança da

equipe da Secretaria de Educação.

O NEJA continua "desafiando as impossibilidades" e seguindo em frente com um grupo de educadores-

professores-pesquisadores (pré)ocupados e ocupados com a tarefa da formação e do ensinar e aprender

por toda a vida. Historicamente, nas tessituras do Núcleo, estão produções de linguagens,

conhecimentos, afetos e companheirismo.

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CAPÍTULO II

BEBENDO DE OUTRAS FONTES

Como vimos, Paulo Freire, nos Círculos de Cultura, propunha uma releitura do mundo a partir das Fichas

de cultura. Ele chamava a atenção dos educandos para que observassem a gravura, o desenho e

provocava uma discussão sobre as imagens a partir das seguintes perguntas: o que vocês estão vendo?

O que a figura mostra? Quais são os elementos dela? A partir dos debates, educador e educando

compreendiam o homem como um ser de relações, chegavam a distinção entre os dois mundo, o da

natureza e o da cultura. Percebia-se a posição normal do homem como um ser no mundo e com o

mundo.

Pude observar que pesquisadores apresentam diferentes abordagens teóricas na leitura de imagens no

campo da educação. Esses procedimentos de leituras são necessários pois vivemos na era da

comunicação visual, somos bombardeados por imagens artísticas ou publicitárias, a todo momento, e em

diferentes locais: em casa, na frente da TV, nas ruas, nas vitrinas, nos becos, museus, galerias e em

outros espaços. Imagens que, muitas vezes, olhamos de modo superficial, não lhes atribuindo nenhum

significado. Olhamos para as imagens com a rapidez massificante que as mídias nos impõem, para que

possamos nos tornar consumidores dos produtos anunciados, sem ao menos refletirmos sobre o que

nos é ofertado. Será que as imagens são vistas de fato? Calvino, em seu livro Seis Proposta Para o

Próximo Milênio (1990), inclui a visibilidade em sua lista de valores para advertir do perigo que corremos

de perder a capacidade de visualização:

Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a

experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos da televisão. Em nossa memória se depositam por

estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos

provável que uma delas adquira relevo (CALVINO, 1990, p.107).

Diante dessa afirmação, faz-se necessária uma tomada de consciência das imagens presentes no nosso

dia-a-dia. Buoro, em seu livro Olhos que Pintam (2002, p 34), afirma que “ [...] somos submetidos às

imagens, possuídos por elas e sequer contamos com elementos para questionar esse intrincado

processo de submissão." Ainda segundo a autora, "Imagens impõem presenças que não podem ser

ignoradas ou subestimadas em sua potencialidade comunicativa" ( p. 35).

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Uma vez que a imagem é amplamente explorada em nossa sociedade de consumo, nas propagandas,

nos livros, nas revistas ditando estilos de vida, não podem ser ignoradas pelos educadores, precisam ser

exploradas e lidas para serem desveladas e ressignificadas. É preciso afirmar que uma imagem é um

texto tecido com formas, cores, volume, texturas, formando um todo complexo e harmonioso. Portanto,

uma leitura de um texto visual considera o sensível, contudo, o mundo do trabalho no sistema capitalista

vai aos poucos nos endurecendo.

A artista plástica e professora Fayga Ostrower, em seu livro Universos da Arte (1991), percebeu que,

em alguns setores da indústria, os operários manuseavam diretamente os objetos em produção e ainda

possuíam uma atitude basicamente artesanal. Conheciam a finalidade e o resultado de sua intervenção

pessoal no produto. Esse fato foi positivo, pois, como artesãos, compreenderam a lógica expressiva de

transformação da matéria, o que lhes permite acompanhar as propostas artísticas que a autora lhes

apresentou em um curso que abordarei mais adiante.

É preciso reconhecer a existência de um grave problema atual; a perda de sensibilidade nas pessoas. É verdade que o problema não é nosso, pode ser observado no mundo inteiro, quase que em função direta da produção industrial, agravando-se pela mentalidade da sociedade moderna e de consumo. As condições de produtividade social se caracterizam mais e mais por tarefas mecânicas e fragmentárias, exigindo uma concentração obsessiva em poucos gestos sempre recorrentes por horas a fio apertando botões e parafusos, preenchendo formulários, registrando, interpretando listas, relatórios, gráficos ou outras tarefas igualmente cansativas, porque desprovidas de qualquer senso de totalidade. Transformando-se numa minúscula peça de uma vasta engrenagem que desconhece, e sem meios de identificação interior, o indivíduo perde o sentido do próprio agir. Seu trabalho torna-se um agir indiferente, com materiais indiferentes, diante de um processo global igualmente indiferente. E sem possibilidade de vincular-se afetivamente ao fazer, ele deixa de criar (OSTROWER,1991,p 61).

Com essa fala, ela não está ignorando as contribuições da industrialização mas sim questionando as

conseqüências de esmagamento da individualidade e de dessensibilização da humanidade.

2.1 ALGUMAS ABORDAGENS DE LEITURA DE IMAGENS: DE

OSTROWER AO arte br

Desde a segunda metade do século XX, vêm sendo desenvolvidas e sistematizadas, em livros,

dissertações e teses, várias abordagens de leituras de obras de arte. Mas, levando em conta a

especificidade desta pesquisa e o tempo para desenvolver uma dissertação de mestrado, precisamos

fazer um recorte. Nesse sentido, na revisão de literatura, buscamos o diálogo com diferentes enfoques

de leitura de imagens. Queremos mostrar que não existe uma única metodologia de leitura ou a mais

correta; existem vários caminhos.

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No livro Universo da Arte, a artista Ostrower (1991) sistematiza a experiência em ministrar um curso de

História da Arte para operários da fábrica Encadernadora Primor S.A., no Rio de Janeiro, em 1980. No

curso, ela explicitou os princípios básicos atuantes na linguagem visual, essencialmente a noção de

espaços. Optando por ministrar as aulas no recinto da própria fábrica e em horário normal de trabalho,

achava que não fazia sentido querer que as pessoas dedicassem seu tempo livre a algo que não

conheciam e talvez nem julgassem pertinente.

O grupo era composto por 25 pessoas indicadas pela diretoria da empresa, entre aqueles que

trabalhavam na encadernação. A pedido da pesquisadora, não foi feita seleção dos participantes à base

de testes. Ela não queria que o curso tivesse conotação de exames. De início, ela desejava eliminar

situações de competitividade. O critério de seleção deveria ser unicamente a disponibilidade de tempo do

sujeito, para poder acompanhar o curso durante um determinado período. O grupo em questão era

formado por operários de alguns dos serviços de acabamento de livros, principalmente dos setores de

serigrafia e de douração das capas. A idade da maioria dos participantes estava entre 20 e 30 anos, mas

havia operários em torno dos 40 anos.

Por considerar a arte como linguagem, sistematizou o curso no que chamou de vocabulário das artes

visuais, apresentando cinco elementos expressivos que, segundo ela, formulam-se em todas as obras de

arte. São eles: a linha, a superfície, o volume, a luz e a cor. A autora iniciou o curso com alguns

exercícios de composição para demonstrar certos aspectos expressivos do movimento visual nas

imagens. Durante a realização do curso, foram analisadas imagens (reproduções de obras de arte) de

praticamente todos os períodos da História da Arte, sem preocupar-se com a seqüência cronológica. Os

pontos de partida foram sempre determinados por problemas teóricos ou estilísticos que estavam sendo

expostos.

Foram apresentados também dados bibliográficos dos artistas e uma análise estilística de suas obras,

observando como ela revelam claramente a personalidade do artista. Em seu relato, Fayga explica que

as aulas eram dadas uma vez por semana, das 9 às 11 horas da manhã e, quando na terceira semana,

vários operários pediram para que ficasse um pouco mais, pois queriam folhear os seus livros e

conversar com ela, compreendeu que tinha conseguido estabelecer um contato genuíno com eles, pois

esse tempo que estavam dispostos a dedicar ao curso era a única hora de lazer que dispunham: a hora

do almoço.

Conta ainda que cada aula tornou-se uma surpresa, um encontro imprevisível. O curso foi se

configurando numa dinâmica própria, em que uma aula nascia da outra, às vezes modificando-se a partir

das perguntas e sugestões dos operários. A autora disse, tal qual os operários, que se sentia parte da

criação de novas formas de comunicação e de ampliação de consciência que se articulava nesse

trabalho de grupo. Os depoimentos e comportamentos dos sujeitos envolvidos nesse trabalho

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demostraram que a arte continua sendo uma necessidade para os homens, caminho essencial de

conhecimento e realização de vida.

Um outro trabalho aqui destacado é o da professora Gerda Margit Schütz Foerste. (2004). Essa

pesquisadora resgata a discussão sobre educação e trabalho, visando a compreender como se definem

políticas de formação de trabalhadores e como essas práticas, por sua vez, constroem práticas e

concepções que interferem no processo de formação do aluno trabalhador e no seu acesso e interesse

pela leitura de imagens.

Dessa forma, considera que o estudo das imagens, sua produção contextualizada historicamente, a

análise formal e crítica, bem como sua recriação ou feitura inscrita referem-se à identidade social,

cultural, étnica, de gênero, de raça e de classe. Considera, portanto, como um desafio à formação do

cidadão. Sua pesquisa visa a introduzir o leitor no estudo da imagem e para isso ela parte de teóricos do

campo da Semiótica peirciana, do campo da Sociologia, assim como do campo da Estética e Arte. Seu

referencial teórico é baseado na obra de Lukács para estudar o fenômeno estético-artístico a partir da

produção material na qual a sociedade se assenta. Lukács defende que, mesmo não sendo o único

campo a construir a organização social e a determinar projetos para a sociedade, a economia é

indispensável à abordagem de qualquer questão que diga respeito à condição humana em dada

organização social.

Nessa pesquisa, Foerste (2004) aborda de forma introdutória as imagens como intertexto, como fonte

histórica e como questão identitária. Quando a autora apresenta essas possibilidades de leitura, ela

pretende abrir caminhos que nos possibilitam perceber as imagens como produção humana inserida em

uma realidade social da qual também somos parte. A seguir, apresenta alguns conceitos de leitura

desenvolvidos na pesquisa.

Para a pesquisadora, a produção artística é constituída de significados. No caso das Artes Visuais, o

objeto artístico é a imagem. Esta, como produto do trabalho humano, está relacionada com a

multiculturalidade, com o homem, em lugares e tempos distintos. É importante oferecer aos alunos os

fundamentos necessários para uma leitura abrangente de mundo, na qual seja possível compreender o

objeto artístico, associando às questões postas em cada momento histórico, em especial, àquelas do

nosso próprio tempo e lugar (questões de gênero, etnia, economia, classe social, etc.).

Como resultado de suas pesquisas, aponta que o professor de Arte tem como desafio abordar

criticamente as imagens, a partir de um procedimento metodológico capaz de contribuir para desvelar a

ideologia subjacente à sua produção, pois, para ela, analisadas sob essa perspectiva, as imagens tiram-

nos de uma territorialidade imediata e aparente e nos fazem entender o homem como ser social. Importa

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compreendê-lo não apenas na sua condição de gênero e raça, mas em sua heterogeneidade cultural e

identificá-lo como transformador do mundo.

Uma outra pesquisa aqui analisada, principalmente em função da sua abordagem teórica, é a presente

no livro Olhos que Pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte, de Buoro (2002), pois este trabalho

está ancorado em pressupostos da teoria greimasiana, e essa é a fundamentação escolhida para

conduzir nossa pesquisa sobre o processo de formação de leitores visuais na EJA.

O livro Olhos que pintam é o resultado da tese de doutorado da autora e, nessa pesquisa, ela aprofunda

o trabalho iniciado na dissertação de mestrado sobre leitura de imagens. Explicita que as transformações

ocorridas ao longo do caminho percorrido, entre mestrado e doutorado, deram-se simultânea e

paralelamente, no que se refere aos percursos teóricos e práticos realizados. Isso significa que não foi

excluída a cena da realidade vivida por ela, como professora de Arte em sua sala de aula. Porém, nesse

trabalho, ela faz um recorte, tendo como objeto de leitura algumas imagens selecionadas da obra de

artistas (pintores) com os quais o universo de professores de Arte está mais familiarizado. Esses artistas

são reconhecidos por diversos historiadores de Arte como protagonistas de revoluções culturais.

A partir do seu envolvimento com a formação e capacitação de educadores de Arte em diversos espaços

educativos e de cidades do Estado de São Paulo, e em estados do Sul do Brasil, a autora recolheu

dados expressivos envolvendo as questões do papel da leitura da imagem no ensino da Arte. Essas

informações foram obtidas ao longo da década de 1990. Segundo a pesquisadora, uma das propostas de

aulas mais freqüentemente realizadas por educadores de Artes Visuais constitui-se na denominada

"releitura da obra de arte," entendida por muitos como uma cópia elaborada pelos alunos com base na

imagem que lhes é oferecida. A autora acrescenta, ainda, que é importante perceber que a problemática

que se constituiu em torno da palavra “releitura" está centrada na significação que o termo adquiriu na

prática do educador, reduzindo assim seu significado. Fica, então, explícito que há uma necessidade de

esse mesmo educador aprofundar-se na compreensão e na contextualização da produção de releituras.

No livro, o termo releitura é entendido como tradução da significação do objeto como fundamento para

uma nova construção, buscando-se nessa ação a (re)significação do mesmo objeto.

Para o ensino da Arte e a leitura de imagem, a autora mergulha ainda nos conceitos de Vicent Lanier.

Esse teórico defende a idéia de um conceito coeso de aprendizagem de Arte, ao mesmo tempo em que

relata sua longa experiência trabalhando com o ensino de Arte a serviço da responsabilidade social,

numa posição contextualista. A professora Anamélia faz também uma retomada histórica sobre a questão

da leitura da imagem no ensino da Arte brasileira. Segundo a autora, o assunto começou a emergir com

ênfase entre os educadores a partir do 3o simpósio sobre o Ensino da Arte e sua História (São Paulo,

MAC_USP, 14-18 de agosto 1989). Esse encontro resultou da obra organizada por Ana Mae Barbosa e

Heloísa Margarida Sales (1990). Nessa publicação, as autoras procuravam estabelecer eixos filosóficos e

conceituais que sustentassem as diferentes propostas de ensino de Arte. Enfim, o interesse específico

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desse livro é discutir a construção da significação imbricada no processo de construção do leitor em

relação à leitura de imagem que partirá da premissa de que Arte é linguagem, construção humana que

comunica idéias e o objeto Arte será considerado como texto visual. Diz, também, que, ao serem

considerados textos visuais, essas construções de linguagem serão capazes de abarcar seus próprios

significados.

A autora deixa claro que faz a opção pelo termo leitura em vez de fruição, palavra que aparece nos

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) . Com isso, não se está propondo a negação da possibilidade,

nem questionando a vigência do ato de fruir, porém, segundo ela, a opção pelo termo leitura faz sentido,

pois se pretende focalizar o processo de construção do leitor com base na ação desse mesmo leitor

como decifrador de um autor. Ela percebe nessa pesquisa a dificuldade encontrada por educadores e

alunos na leitura de textos imagéticos e diz que nossos olhos precisam construir-se na esteira de uma

aprendizagem diante dos textos visuais. Sabemos que eles se encontram estruturados com base em

elementos constitutivos próprios da linguagem visual e, diante da dificuldade de realizar leituras das

imagens da arte, precisamos, como educadores, sair em busca de soluções para construir nossas

próprias competências de leitores.

O livro Imagens que falam leitura da arte na escola, da professora doutora Maria Helena Wagner Rossi

(2003), usa como referencial teórico Michael Parsons, que faz uma abordagem psicológica do

desenvolvimento da leitura estética das crianças, com base no desenvolvimento cognitivo. Sem

classificar nem descrever as pessoas, mas sim o que elas entendem da arte, organiza esse entendimento

em estágios evolutivos, que vão do mais simples ao mais complexo. Esses estágios abrangem os

interesses a que as pessoas se referem ao falar da Arte. Num determinado momento de seu trabalho,

Parsons se afasta do ponto de vista de Piaget e se aproxima da teoria contextualista de Vigotski, pois vai

defender que o significado da obra de arte está sempre dependendo do contexto. Assim como o

significado que a criança dará à obra vai depender de onde ela vem.

Bebendo dessa fonte, Rossi (2003), em sua pesquisa, dispõe-se a investigar as particularidades da

leitura estética de alunos da educação básica no contexto brasileiro. Para realizar esse trabalho, ela

envolveu quatro escolas de Caxias do Sul (RS), num total de 168 alunos entre seis e dezoito anos.

Foram entrevistadas 56 crianças de séries iniciais com idade de seis e nove anos, 56 crianças de 5a e 6a

séries, entre dez e treze anos, e 56 adolescentes do final do ensino fundamental, entre oito e dezoito

anos. Os alunos foram divididos em dois grupos, assim constituídos: Grupo A (não familiarizado com arte,

esse grupo foi composto por 84 alunos de uma escola pública, que atende a filhos de profissionais com

escolaridade de ensino fundamental e médio (interpretação minha pelo que a autora chama profissionais

de nível intermediário e operários em sua maioria). Grupo B (familiarizado com arte e discussões

estéticas, composto de 84 alunos de Três escolas particulares, que atendem prioritariamente a filhos de

empresários e profissionais de nível superior. Foram analisadas quatro reproduções de obras de formato

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A3: uma obra com suporte tradicional (como fotografia), uma imagem publicitária, uma fotografia de uma

instalação, uma visita a uma instalação eletrônica. Nessa pesquisa, o pensamento do aluno foi enfocado

como uma totalidade, não importando a fonte de suas respostas, fruto de sua própria reflexão ou

influenciada pelos ensinamentos recebidos. Não só as respostas dos alunos foram consideradas

elementos de análise, mas também suas indagações.

A análise e a interpretação dos depoimentos, segundo a autora, mostrou que há diferenças entre os dois

grupos de alunos em cada nível de escolarização. Ela conclui dizendo que se tem muito que aprender

ainda sobre o conhecimento estético dos alunos, entretanto é possível notar que as teorias intuitivas que

eles constroem provocam fascínio e esperança no futuro da leitura estética na escola.

Um outro trabalho aqui destacado é a pesquisa O Vídeo e a Metodologia Triangular no Ensino da Arte

(1992), coordenado pelas professoras doutoras Analice Pillar e Denyse Vieira. Os sujeitos da pesquisa

foram professores das redes pública e privada da grande Porto Alegre (RS) e uma oficina de arte em

Criciúma (SC). Ao todo foram envolvidas 17 escolas, num universo de 538 alunos. Foi uma pesquisa

qualitativa, usando a metodologia triangular, elaborada pela professora Ana Mae Barbosa, na década de

80, assim denominada por envolver três vertentes: o fazer artístico, a leitura da imagem e a história da

arte:

a) o fazer artístico: a concepção da produção artística na metodologia triangular está calcada no

processo criativo, encarado como interpretação e representação pessoal de vivência numa plástica.

É somente por meio do fazer que a criança e o adolescente podem descobrir as possibilidades e

limitações das linguagens expressivas de seus diferentes materiais e instrumentos;

b) a leitura de imagens: nessa proposta da Arte, desenvolve as habilidades do ver, julgar e interpretar

as qualidades das obras, compreendendo os elementos e as relações estabelecidas no todo do

trabalho;

c) a História da Arte: segundo Ana Mae, a sua aproximação da história da arte não é linear, mas

pretende contextualizar a obra no tempo e explorar suas circunstâncias. Ela pretende mostrar que a

arte não é separada do nosso cotidiano, da nossa história pessoal. Apesar de ser um produto da

fantasia e da imaginação, a arte não está separada da economia, da política e dos padrões sociais

que operam na sociedade.

A opção pelo vídeo como material didático, segundo as autoras, foi pela possibilidade que a linguagem

oferece. O vídeo, como temática de artes plásticas, pode mostrar ao aluno o processo de construção da

obra pelo artista durante o ato criador, diferentes leituras de uma imagem e o contexto sociocultural em

que o trabalho foi concebido. No projeto citado, o vídeo foi usado não como linguagem, mas como um

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recurso didático. Para Analice Pillar e Denyse Vieira, o resultado das análises dos vídeos permite que

elas afirmem que a imagem móvel é um material didático eficaz na aprendizagem das artes plásticas e

que a Metodologia Triangular com o vídeo mostrou-se uma eficiente proposta de ensino das artes

comparada com outras metodologias tradicionais.

Um outro referencial aqui destacado é a Proposta Curricular do 2o Segmento do Ensino Fundamental 5a

série à 8a série da EJA. Nela, o MEC procura estabelecer paradigmas para o ensino de Arte no Brasil,

estruturados a partir dos três eixos de aprendizagem: produzir, apreciar e contextualizar. Os três eixos

são articulados na prática, ao mesmo tempo em que mantêm seus espaços próprios:

a) produzir: refere-se ao fazer artístico (como expressão, construção, representação) e ao conjunto de

informação com ele relacionado, quanto à atividade do aluno e ao desenvolvimento de seu percurso

de criação. O ato de produzir realiza-se por meio da experimentação e do uso adequado das

linguagens artísticas;

b) apreciar: refere-se ao âmbito da recepção, incluindo percepção, decodificação, interpretação e uso

adequado das linguagens artísticas;

c) contextualizar: significa situar o conhecimento do aluno em relação a seu próprio trabalho artístico, ao

dos colegas e da Arte como produto social e histórico, o que desvela a existência de múltiplas

culturas e subjetividade.

Enfim, a Proposta Curricular enfatiza o ensino e a aprendizagem de conteúdos que colaboram para a

formação do cidadão, propiciando ao aluno a aquisição de conhecimento que permite situar a produção

de arte como objeto sócio-histórico contextualizado nas culturas.

Baseia-se no contato do aluno com múltiplas linguagens: artes visuais, música, dança e teatro, porém,

segundo o texto, não se trata de polivalência, mas de trabalhos específicos com cada uma delas, pois,

embora cada uma dessas linguagens tenha seu campo próprio, com objetivos e conteúdos distintos, elas

também devem ser correlacionadas, ao mesmo tempo em que estabelecem a interdiciplinaridade com as

outras áreas do conhecimento.

No planejamento da escola, cada uma das áreas participa com suas especificidades, sem se

descaracterizar ou ser instrumento para o ensino da outra. No cotidiano da escola, sabemos que é a

formação do professor e seu conhecimento em arte que indicarão a linguagem artística a ser

desenvolvida. Não podemos deixar de reconhecer que é um avanço o reconhecimento da existência da

disciplina nessa Proposta Curricular, mas, se compararmos o texto da Proposta Curricular da EJA com a

proposta para o ensino regular, observaremos que é praticamente a mesma; mudou-se o projeto, a cor,

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o projeto gráfico. Segundo a proposta o que muda, na área de Arte na EJA, é a forma como o ensino e o

aprendizado acontecem. Em síntese, o texto aponta caminhos para nortear os estudos das linguagens

artes visuais, dança, teatro e música, porém vou me ater ao que ela propõe para o estudo das artes

visuais, partindo do princípio de que o entendimento é construído, fundamentalmente, a partir do

cotidiano. Na educação de jovens e adultos, procura-se ampliar os meios de apreensão, de compreensão

de representação do mundo desses alunos "alfabetizando-os" na linguagem visual, com as mais variadas

formas de leitura de imagens.

Tal proposta pretende colocá-los em contato com diferentes objetos artísticos, suas respectivas técnicas

de linguagem e particularidades expressivas, como experiências insubstituíveis e essenciais para ampliar

a percepção do mundo. O ensino e a aprendizagem das artes visuais têm na imagem seu objeto de

estudo: imagens fixas ou imagens em movimento, imagens criadas, produzidas, mas também vistas,

fruídas, analisadas, refletidas a partir do contexto em que estão inseridas. Em artes visuais, produzir uma

imagem e ser capaz de ler uma imagem são duas competências básicas que se inter-relacionam e se

completam.

Jovens e adultos precisam exercitar práticas sociais diversificadas de leitura e registro do mundo, tão

necessárias ao convívio em sociedade, ao seu preparo para o mundo do trabalho e ao seu

enriquecimento pessoal. No mundo contemporâneo, a difusão da imagem passa a ter cada vez mais

maior abrangência. Toda essa variedade visual pode impor modelos e levar a um consumo mais

massificado. Para que isso não aconteça, a educação do olhar é objetivo essencial das Artes Visuais,

preparando o aluno para compreender e avaliar tipos diferenciados de imagens, para uma decodificação

dos estímulos visuais, para uma apreciação qualitativa do mundo, com marcas advindas tanto das

tradições culturais como do novo em arte.

A Proposta Curricular frisa também que o professor de artes visuais deve procurar sensibilizar e trabalhar

a arte que está ao seu redor, as manifestações populares da região onde mora, as tradições culturais de

seu país, além da arte universal. E também as conexões entre esses âmbitos culturais, suas

semelhanças e diferenças e a presença do regional de outras culturas e do universal da própria cultura,

bem como levar os alunos a conhecer e apreciar obras criadas por artistas de várias nacionalidades, de

diversos tempos.

Do exposto, ressalto alguns conceitos e procedimentos metodológicos que serão relevantes para esta

pesquisa, a saber: a consideração da Arte como linguagem; a proposição do ensino da Arte na escola

básica, sem necessariamente seguir uma cronologia histórica, como as que permanecem nas Histórias

da Arte ministradas nos cursos de formação de professores; a arte como produção histórica e social

contribuindo para o entendimento do homem como ser social; a aposta na leitura da arte e a

consideração da obra de arte como texto, estruturado por elementos constitutivos próprios da linguagem,

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com suas relações internas e suas relações contextuais e a singularidade sobre a apreensão da arte

pelos alunos da EJA. Quanto à metodologia, assim como Rossi, considerou o aluno em sua totalidade,

buscando apreender não somente as suas respostas, mas principalmente seus questionamentos.

2.2 AINDA SOBRE A TEORIA

Das diversas teorias existentes sobre a produção de discurso, a semiótica greimasiana apresenta-se aqui

como o caminho escolhido para conduzir a pesquisa sobre o processo de formação de leitores visuais na

EJA.

Algirdas Julian Greimas, um pesquisador da Lituânia, estudou e desenvolveu seus estudos sobre a

semiótica discursiva na França, a partir da década de 1960, quando buscou estabelecer as linhas

metodológicas da semiótica, teoria que no Brasil só veio a se fortalecer na década de 90, com a

formação do Centro de Pesquisa em Semiótica de São Paulo.

É a partir de profundas análises sobre a lingüística de Saussure e dos estudos conseqüentes de L.

Hjelmslv que Greimas inicia suas pesquisas. Com base nas limitações da lingüística percebidas por

Hjelmslv, foi construindo a fundamentação da abordagem semiótica

Os instrumentos e procedimentos de análise dos discursos e das práticas, como geradoras de

significação da semiótica, estão centrados numa teoria geral da linguagem, cujas bases estão presentes

tanto na lingüistica de Saussure e Hjelmslv, quanto na antropologia de Lévi-strauss e Propp e com a

corrente fenomenológica em especial, de Merleau-Ponty.

Segundo Rossoni (2003, p. 53), a preocupação com o sentido forçou Hjelmslev a rever sua concepção de

língua e a romper as barreiras estabelecidas entre a frase e o texto e entre o enunciado e a enunciação.

Só derrubando essas barreiras é que se podia realizar um estudo satisfatório do sentido. Essa revisão de

concepção levou ao aparecimento de diversas teorias que concebiam, agora, o texto e não mais a frase

como unidade de totalidade.

Compreendido a partir da sua organização interna e pelas determinações contextuais, o texto pode ser

lingüístico, oral, escrito ou não-verbal. Ou ainda ser tecido com formas, cores, volumes, texturas, como

uma pintura, uma escultura, uma gravura, uma fotografia, ou visual e sonoro, como os filmes.

O texto pode ser definido de duas formas que se complementam: a primeira concepção de texto,

segundo Barros (2001, p. 5), pode ser entendida como objeto de significação, faz com que seu estudo se

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confunda com o exercício dos procedimentos que estruturam, que o tecem como um todo de sentido.

Tem-se atribuído a essa descrição o nome de análise interna do texto; a segunda caracterização toma o

texto como objeto de comunicação entre dois sujeitos. O texto encontra seu lugar entre os objetos

culturais, inserido numa sociedade e determinado por formas ideológicas específicas. Nesse caso, o texto

precisa ser examinado em relação ao contexto sócio-histórico que o envolve. Em última instância, passa

a ganhar sentido.

Para compreender, portanto, o que o texto diz e como faz para dizer o que diz, a semiótica propõe um

aparato metodológico que permite observar o processo de construção da significação.

A significação resulta para a semiótica de uma construção a ser feita sob a forma de um percurso

gerativo que conta com três patamares, cada qual objeto de uma gramática, de uma sintaxe e uma

semântica (BARROS , 1990 p. 12).

O nível fundamental: o mais simples e abstrato do percurso. Operacionalizam-se as relações

abstratas, que se complexificarão gradativamente nos outros níveis. As categorias semânticas, que estão

na base da significação de um texto, são expressas por meio das oposições de termos que apresentam

entre si uma relação de pressuposição, por exemplo: amor/ódio, alegria/tristeza,

masculinidade/feminilidade. Essas oposições estabelecem no texto uma rede de relações que o torna um

todo de sentido. Ainda que o termo oposto não esteja explícito, está pressuposto. Nessa etapa, emergem

os valores textuais, como a "euforia" e a "disforia". A primeira é considerada um valor positivo, e a

segunda é vista como um valor negativo.

O nível narrativo: aos poucos as relações vão se tornando mais concretas, com a presença de um

sujeito que, por meio do outro sujeito, entra em contato com objetos e situações e vai sofrendo

modificações de estado: a mudança de estado realiza-se narrativamente por meio de uma seqüência

canônica de quatro fases: manipulação, competência, performance e sanção.

É importante ressaltar também que, para a semiótica, são quatro as modalidades essenciais: o querer, o dever, o poder e o saber. Os valores modais definem tanto o ser (enunciado de estado), quanto o fazer (enunciado de fazer) que não são estáticos, ao contrário, são interdefinidos pelo modo de existência que as modalizações atribuem aos sujeitos.

A semiótica também propõe uma tipologia de quatro grandes classes de manipulações, que podem ser

apresentadas segundo dois critérios: o da competência do manipulador, ora sujeito do saber, ora sujeito

do poder; e o da alteração modal, operada na competência do sujeito manipulado.

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O quadro baseado em Barros (1990, p. 33), apresenta-se da seguinte forma:

MANIPULAÇÕES

Competência do destinador-

manipulador

Alterações na competência do

destinatário

PROVOCAÇÃO

Saber (imagem negativa do

destinatário)

DEVER-FAZER

SEDUÇÃO

Saber (imagem positiva do

destinatário)

QUERER-FAZER

INTIMIDAÇAO

Poder (valores negativos) DEVER-FAZER

TENTAÇÃO

Poder (valores negativos) QUERER-FAZER

Para iniciar esta pesquisa de intervenção nas escolas, tive que usar, em meu discurso oral, a

manipulação por sedução, pois, inicialmente, os alunos, em sua maioria, demonstraram, no verbal e no

gestual, um não querer e um não saber como participar da pesquisa. Para convencê-los a participar, falei

com entusiasmo da minha opção em trabalhar a pesquisa na EJA, da minha convicção da importância da

Arte na formação humana, da importância desta pesquisa para essa modalidade de ensino e propus um

contrato de parceria reafirmando que, sem a participação deles, eu teria que buscar outros sujeitos, o que

era possível, mas seria uma pena, pois esse grupo tinha todas as qualidades que buscava para a

realização da pesquisa. Além disso, em um dos grupos, havia duas ex-alunas no ano anterior que

apresentaram um fazer persuasivo em meu favor. Elas, em seus depoimentos, falaram que, como ex-

professora delas, eu tinha uma proposta clara de trabalho que contribuiu em relação ao conhecimento

de artes, que eu não ficava propondo só um "desenhosinho, ou produção de sapinho de papel ou

barquinho". Após esse relato, mostrei algumas imagens que seriam usadas na pesquisa. Diante de tudo

isso, eles acreditaram na seriedade do meu trabalho e passaram a querer participar. No último capítulo,

estará explicitado todo o percurso dessa sedução entre destinador e destinatários.

Quadro 1 – Manipulações dos sujeitos

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O nível discursivo: é o mais complexo do percurso de geração de sentido. Nele a narrativa ganha

concretude, pela cobertura discursiva que a reveste. Neste nível o sujeito da enunciação transforma os

esquemas narrativos em discurso e, para isso ele assume, o discurso, desdobrando-se num enunciador e

num enunciatário que opõem em jogo um fazer interpretativo. É preciso deixar claro que enunciador e

enunciatário são tomados como posições discursivas, inscritos no texto, possuidores de formação

ideológica. Na sintaxe narrativa, as categorias de pessoa, tempo e espaço provocam determinados

efeitos de sentido. Em um discurso narrado na primeira pessoa, tem-se o efeito de sentido de

subjetividade, representado pelas projeções de um eu aqui (espaço), agora (tempo), enquanto na

terceira pessoa o efeito de subjetividade é marcado por um ele (pessoa), lá (espaço), então (tempo). A

construção dos efeitos de sentido está submetida, para além das categorias da sintaxe narrativa, às

escolhas do enunciador.

Tendo como objetivo a captação de sentido como dimensão provada de nosso ser no mundo e

desejando manter um contato direto com o cotidiano, o social e o "vivido", a pesquisa semiótica atual se

orienta cada vez mais explicitamente para a constituição de uma semiótica da experiência, e é por esse

caminho que esta pesquisa se propõe a seguir.

O sentido nas práticas sociais não é construído e reconhecido nas mensagens como códigos a serem

decodificados, como propõem algumas teorias dos signos. Para Landowiski (2001, p.35), " [...] será

preciso construí-los a dois, já que se supunha que o sentido exista, ele só será apreendido como produto

da colocação em presença de duas instâncias competentes ".

Sendo assim, mais que tentar adotar o ponto de vista metadiscursivo de um observador que, à maneira

de um árbitro, pretenda colocar-se numa posição perfeitamente neutra, como acima do confronto,

parece-me preferível procurar aprender seus efeitos abraçando tão perto quanto possível o próprio ponto

de vista das partes que aí se encontram envolvidas.

2.3 UM MERGULHO NA TEORIA SEMIÓTICA A PARTIR DO arte br

O material educativo arte br será utilizado em minha intervenção na sala de aula, por ser dirigido ao

professor. Utiliza a fundamentação semiótica e se propõe a contribuir na formação de leitores de

imagens. É um material didático elaborado pelo Instituto Arte na Escola, com o patrocínio da BR

Distribuidora, e concebido pelas pesquisadoras Anamélia Bueno Buoro, Lucimar Bello P. Frange, Moema

Martins Rebouças, Beth Kok, Bia Costa e Eliana Braga Atihé. O arte br deseja formar leitores visuais a

partir de imagens de arte reproduzidas em pranchas e cartões. O material reúne 12 cadernos de estudos

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do professor, 36 obras de diferentes artistas, um mapa que localiza 12 espaços expositivos em cidades

das várias Regiões do Brasil e uma linha do tempo.

É importante dizer que, em Vitória, no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), estão uma obra de

Sebastião Salgado e outra de Siron Franco. A primeira já pertencia ao museu e a segunda foi doada pelo

projeto arte br Instituto Arte na Escola (IAE), assim como outras 25 obras foram doadas por diferentes

artistas brasileiros a outros museus em diversas regiões do Brasil, considerando que o principal objetivo

do projeto é a aproximação do professor dos museus de arte, por serem eles que levam os alunos a

essas instituições e não as famílias, segundo dados das autoras de arte br. O diálogo com o professor é

estabelecido nos chamados Cadernos de estudo. Neles há sugestões de reflexões e propostas de

trabalho para o professor. Os 12 cadernos estão organizados a partir dos seguintes passos para a leitura

de imagens.12

"O olho que vê?" e "O olho, que percebe?" são portas de entrada na imagem que instigam as primeiras

percepções.

"De olho no artista e no mundo" estabelece relações entre as obras de cada caderno e outros contextos,

construindo uma rede de significados.

"O olho que conta histórias" vê, sente, percebe, lê e constrói os significados descobertos em cada uma

das imagens lidas.

"O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que inventa " é o passo no qual, aquecidos e motivados, o

professor e seus alunos elaboram objetos e idéias, refletindo sobre eles e suas próprias experiências

vivem -a ser-arte.

"Provocando olhares" são conversas de professor para professor sobre temas do ensino-aprendizagem

da Arte e sua relação com a vida.

"o olhar que dialoga" abre portas para conversas com outras áreas do conhecimento, multiplicando e

ampliando descobertas, bem como estimulando professor e aluno a promoverem outros diálogos.

"de olho no museu" dá visibilidade a um espaço expositivo, motivando o professor e seus alunos a se

apropriarem desses espaços, conhecendo-os transitando por eles. arte br trabalha a imagem da Arte em

reproduções . A obra original é muito diferente de uma reprodução. Assim, ver o original no museu é

12 Estarão em itálico e entre aspas os trechos transcritos do material educativo arte br.

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entrar em contato direto com o trabalho do artista: suas pinceladas, o material que usou, o tamanho da

obra, as cores e tonalidades, os "jeitos de ser arte". É poder vivenciar uma experiência estética.

"O olho que refaz o percurso" detém-se sobre os caminhos percorridos, avaliando, propondo novos

significados e abrindo outras possibilidades de compreensão da arte e da vida.

"Linha de vida, tempo da obra" situa vida e obra dos artistas no tempo e no espaço, demarcando o

momento de produção das obras lidas em cada caderno.

"Chave de palavras" define alguns termos e conceitos no contexto do material.

"O olhar que descobre" propõe outras leituras, livros, endereços na Internet, e fontes diversas para

ampliar conhecimentos.

Apresentados os 12 (doze) passos metodológicos, analisarei sinteticamente a carta de apresentação do

material. Pretendo com isso perceber quais são as estratégias de manipulação utilizadas pelos sujeitos

que interagem nessa relação comunicativa, o destinador e o destinatário. Para a semiótica, quando

falamos de manipulação, tratamos de um regime de interação que é a busca dos sujeitos por

determinados valores. Se, no percurso do destinatário-manipulador, há uma doação ao destinatário-

sujeito dos valores modais do querer-fazer, do dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer, a segunda

etapa será a modificação de estado do sujeito, mobilizado e modalizado por um querer, um fazer e um

dever e um poder. Na manipulação, o destinador propõe um contrato que tem como objetivo modificar o

estatuto (o ser/ou o parecer) de cada um dos sujeitos nas relações intersubjetivas. Nesse contrato, o " [...]

destinador em seu fazer interpretativo, crê ser verdadeiro o discurso apresentado. Para o

estabelecimento deste contrato tem de haver confiança e crença [...] " (REBOUÇAS, 2001,p. 136). A

fundamentação da análise é da semiótica greimasiana. Na interação entre o material educativo e o

professor, é que serão construídas e compartilhadas as competências para a leitura de imagens. Quais

as estratégias empregadas nessa carta, que apresenta o material, ou seja, que é “voz” dos destinadores

para que os destinatários professores interajam com arte br? Como exemplo e exercício, analisarei a

carta de apresentação do arte br, desenvolvendo as estratégias de manipulação existentes.

2.3.1 Leitura da Carta de Apresentação do arte br

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A carta de apresentação está em anexo, e os trechos analisados aparecerão em itálico e entre aspas.

A capa do caderno de apresentação arte br é bem sugestiva, pois mostra o olhar do observador

atento e diz a que veio no diálogo entre o verbal e o não-verbal. O caderno se apresenta de forma

vertical. Na parte superior e inferior da página, vemos uma faixa branca e outra azul . Ambas estão na

horizontal e, sobre elas, muitos rabiscos com linhas na vertical e na horizontal em tons de azul

marinho formando uma trama bem apertada, mas é possível intervenção na tessitura. O tom azul

marinho presente nos rabiscos é muito próximo da tonalidade da caneta esferográfica utilizada na

escola, assim como os rabiscos, presentes no cotidianos do espaço escolar, nos locais previstos

como os cadernos, e nos imprevistos também, como as carteiras e paredes.

Ao fazer a opção por essa cor e esse gestual, o enunciador13 quer se aproximar do ambiente. Ele

substitui no verbal a frase: "Eu rabisco nessa superfície". De alguma maneira, o professor e o aluno irão

13 Enunciador, desdobramento do sujeito da enunciação, o enunciador cumpre os papéis de destinador do discurso e está sempre implícito no texto, nunca nele manifestado. Enunciatário: uma das posições do sujeito da enunciação, o enunciatário implícito cumpre os papéis de destinador do discurso .

Figura 1- Capa de apresentação do arte br Fonte: Instituto Arte na Escola (2003)

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reconhecer essa cor, mesmo que não percebam inicialmente. No centro da página, uma faixa espessa na

cor nos leva a associar a imagem de uma Br (rodovia) e, no centro dessa faixa, num tom de azul

intermediário, uma espiral e na cor branca a palavra arte br. A faixa no centro na cor azul marinho

chapado associamos à imagem de uma rodovia, já citada. Somando à palavra br, mesmo em letras

minúsculas, já pode ser um indicativo de que quem patrocina o projeto é a BR Distribuidora, mas está

marcada também uma diferença entre as duas palavras, pois br escrito dessa forma é uma outra coisa.

Também pode ser um indicativo que esse projeto "quer pegar estrada", pois o espiral parte de um ponto,

mas não se sabe onde ele vai dar, assim como a proposta de ensino. Temos uma pista apresentada pela

configuração gráfica do caderno.

Quando abrimos o caderno e analisamos a carta, aqui chamada de primeira conversa, percebemos um

estado de espírito eufórico! "É com alegria que entregamos o arte br aos educadores" . Lemos aqui,

nessa saudação, uma satisfação do dever cumprido. Parece querer nos mostrar que teve uma

anterioridade de muito trabalho. Embora o texto já deixe explícito a quem se dirige, que esse material

didático está sendo entregue aos educadores, essa parte do texto não é direcionada diretamente aos

professores, para isso teria de ser: "É com alegria que entregamos o arte br a você, educador". Então a

quem se dirige a carta? Ao patrocinador como uma prestação de conta? Não, porque, já na segunda

linha, fica explícito que quem está entregando o arte br aos educadores é o Instituto Arte na Escola com

o patrocínio da Br Distribuidora, os dois parceiros estão lado a lado.

Diante, disso parece-nos que essa parte do texto é dirigida a qualquer leitor, seja ele profissional da

educação seja apaixonado por arte, independente da profissão. Ainda nesse parágrafo, percebemos

que, diante das oposições problemas versus soluções, realidades versus sonhos, o arte br demostra um

querer- poder trabalhar com essas diversidades, mas sabe que precisa do sujeito educador. Também

aqui é verbalizada a imagem da trama presente na capa " [...] tecida com fios do inteligível ao sensível

num ir e vir do arte br pelas montanhas, estradas e atalhos, até ganhar vida na parede da escola".

No terceiro parágrafo, o arte br é apresentado, aparentemente, como um projeto fechado, pois é dito que

ele é o ponto de partida e o ponto de chegada. Assim é retomada novamente a imagem da espiral que é

completamente aberta, pois sabemos onde é seu ponto de partida, mas e a chegada? Não sabemos,

pois ele pode crescer e, para que isso ocorra, depende de quem vai interagir com ele. Também é

retomado o convite de parceria de forma poética e envolvente: “Obras que pedem para ser lidas e que

revelam artistas que doam obras a museus que chamam professores que convidam alunos [...]”. Nessa

relação contratual, a colaboração do sujeito educador pode ser obtida pela adesão, mas ele precisa crer

Enunciação: é a instância de mediação entre as estruturas narrativas e discursivas que, pressuposta no discurso, pode ser reconstruída a partir das pistas que nele espalha; é também mediadora entre o discurso e o contexto sócio-histórico. Enunciado: é o objeto-textual resultante de uma enunciação (BARROS, 1990, p. 89).

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no percurso de competência do enunciador. O texto apresenta, então, um fazer persuasivo em favor da

parceria, em especial quando afirma "Paulo Herkenhoff - um curador que tem a escola no sangue fez a

seleção das obras." Aqui o enunciador tenta convencer o enunciatário de que as obras não foram

escolhidas por um teórico de gabinete, mas por alguém que conhece os problemas da escola, alguém

comprometido com ela, pois a carrega no sangue. O texto fala também de artistas competentes, criativos,

envolvidos no projeto e deixa a promessa de que poderá haver uma segunda etapa. As estratégias fazem

crer que, sem dúvida, é um bom negócio para o professor que aderir a esse projeto, pois bons subsídios

de obras de arte não são fáceis de conseguir.

No quinto parágrafo, fala-se também do professor como sujeito competente do saber: “[...] o professor é

capaz de pensar, produzir conhecimento enquanto prepara suas aulas, é ele que leva as imagens até os

alunos [...]” . Enfim o professor tem o poder de escolher o material para a sala de aula e,se ele fizer a

opção pelo arte br, ele vai ser mais competente ainda, pois esse material vai levá-lo a um passeio pelo

conhecimento. Nessa parte do texto, parece-me que acontece uma manipulação por sedução, que se

efetiva quando você elogia o sujeito de tal forma que, se ele não fizer o que você quer, se sentirá mal

consigo mesmo.

No sexto parágrafo, o arte br é apresentado como um projeto de cidadania e de nação, reafirmando o

que diz no final do quinto parágrafo, quando delata que, em suas pranchas, as obras problematizam os

princípios democráticos presentes no País, a vida social do povo brasileiro caracterizada pela arte nas 36

pranchas presentes no material. Essas obras falam do pluralismo cultural, de exclusão social, da

emigração, de festas, de religião, do meio ambiente e tantos outros. Enfim, o arte br parece ganhar

contornos de um projeto de transformação social pela arte, dependendo da ação do professor, pois

propõe que o material vai ser o que os "{...}

educadores e seus alunos quiserem que seja! ". Assim termina a primeira conversa. Anunciando um

compromisso em frente àquele que, manipulado, aceita a sedução.

Aqui os enunciadores do material revelam acreditar e apostar que a transformação social, pelas vias da

educação emancipatória, só poderá ser vislumbrada quando experenciada e vivenciada pelos sujeitos

presentes nas escolas: professores, alunos, coordenadores, merendeiras, enfim, todos os que atuam

nesse espaço.

Na carta dirigida ao professor, há expressões indicativas de que o material foi pensado sob medida para

a sua atualização:

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a) "[...] arte br foi elaborado para você, professor, pensando em oferecer-lhe subsídios para ler

imagens com seus alunos".

b) "Esperamos que a experiência de levar seu olhar a percorrer essas imagens da arte e conhecer os

museus onde estão os originais seja significativo para você".

No parágrafo seguinte, o sujeito parceiro ( Instituto Arte na Escola) se situa no valor cognitivo do querer

arte br, deseja formar "leitores visuais". O enunciador retoma também a relação contratual com o

enunciatário e o sujeito professor: manipulando-o para o querer-fazer, o enunciatário é convidado

novamente a conhecer o arte br. Assim, pela sedução, é apresentada a fundamentação teórica do

material e reafirmado o seu papel de subsidiar o professor. Nessa fundamentação, fica esclarecido que

as imagens (obras de arte) são o ponto de partida das análises. Contudo, como estão disponibilizadas 36

imagens em 12 cadernos, caberá ao professor, como profissional competente, a apropriação do material

da forma que quiser e a invenção de outras possibilidades para o seu uso. Aqui há um mascaramento do

poder do enunciador, pois, quando o material diz que o professor pode apropriar-se “ [...] do mesmo da

forma que quiser”, a relação hierárquica entre os sujeitos dessa enunciação, um enunciador que sabe e

pode ler sobre um enunciatário que quer saber ler é dissimulada na liberdade dessa proposta que aponta

uma autonomia entre esses sujeitos, que será retomada em cada caderno. É um desafio proposto, por

onde começar?

A parte final da carta apresenta os passos, propostas para a leitura de imagens que estão presentes nos

cadernos, que citei anteriormente. Nessa proposta, destaca-se novamente a presença de uma

fundamentação teórica que a distingue de outros materiais educativos, pois as imagens são o ponto de

partida e o ponto de chegada. A carta termina no mesmo tom eufórico que começou. Os

propositores/autores relatam a satisfação com que realizaram o projeto, elaboraram o material e,

finalmente, puderam entregá-lo aos destinatários-sujeitos professores. Na dimensão contextual, a carta

termina reafirmando a valorização do saber como instrumento de transformação da escola e do Brasil. O

contrato de parceria está posto. O tom de informalidade na despedida, em que as organizadoras desejam

boas aulas e assinam apenas o primeiro nome ou apelido, reafirma a tentativa de proximidade entre os

sujeitos. Na carta está presente o objetivo do material: que é formar leitores da arte, a fundamentação da

proposta, a apresentação de uma metodologia e a autonomia do professor para interagir com ele, arte br

material educativo. Como professora, seduzida por essa autonomia e partilhando em minha pesquisa dos

mesmos objetivos, escolhi o material como desencadeador para uma proposta de leitura de imagens na

EJA.

CAPÍTULO III

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VIAGEM LONGA 3.1 TIPO DE PESQUISA

A pesquisa realizada foi de natureza qualitativa, descritiva analítica, cujo objeto de investigação é o

processo de construção de leitores visuais na EJA. Tratou-se de uma pesquisa-ação. O princípio

fundamental desse tipo de abordagem permite ao pesquisador interferir diretamente no processo

educativo.

A opção por essa metodologia se deu, porque esta pesquisa se desenvolveu em um ambiente natural,

heterogêneo e complexo, que é o espaço do ensino noturno na EJA, numa escola de ensino regular. A

experiência se moveu numa espiral, onde as trocas de informações foram das mais simples para as

mais complexas.

Assim, para Brandão (1981, p.14 ), só é possível conhecer em profundidade algo da vida, da sociedade

ou da cultura, "[...] quando há um envolvimento em alguns casos, um comprometimento pessoal entre o

pesquisador e aquilo ou aquele que ele investiga".

Ainda segundo Brandão (1981), é totalmente impossível imaginar uma separação entre o sujeito da

pesquisa (o cientista social) e o seu objeto (a sociedade) se o sujeito é ele um ser social, se são as ações

humanas que modelam e transformam a sociedade da qual o pesquisador é parte integrante, podendo,

inclusive, sofrer as conseqüências do projeto social que propõe e/ou das transformações que sua ação

provocar

Uma perspectiva crítica e problematizadora das ciências sociais implica a recusa dos mitos da

neutralidade e da objetividade e obriga o pesquisador a assumir plenamente uma vontade e uma

intencionalidade política. Ao invés de se limitar a constatar como pensam, falam ou vivem as pessoas de

determinado grupo social ou de procurar prever o que seria necessário fazer com vistas a dissolver os

conflitos e reforçar a coesão social, nossa postura deve ser outra. Devemos mergulhar na espessura do

real, captar a lógica dinâmica e contraditória do discurso de cada ator social e de seu relacionamento

com outros atores, visando a despertar neles o desejo de mudança (BRANDÃO, 1981, p. 25).

Seguindo essa orientação, fiz o primeiro contato com as duas escolas no final de agosto de 2004,

iniciando a pesquisa na primeira quinzena de setembro de 2004.

Ao investigar o processo de formação de leitores de imagens, parti de obras publicitárias e, a seguir, fiz a

intervenção com obras de arte presentes no material educativo arte br. Escolhemos três cadernos:

"Trabalho," "Capital e Trabalho" e "Cicatrizes". Reproduções em formato A3 e formato de cartão postal,

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entre elas obras com suporte não tradicional, como fotografia, litografia, xilogravura e fotografia de um

"objeto". A opção pelo arte br se deu por ser um material educativo dirigido ao professor, que utiliza a

fundamentação semiótica e se propõe a contribuir na formação de leitores de imagens, como foi dito.

Para compreender o sentido que os alunos da EJA dão às imagens apresentadas na sala, a observação

participante se fez necessário, uma vez que os textos verbais e visuais produzidos pelos alunos, assim

como suas falas, expressões faciais e corporais constituíram dados importantes para a análise da

pesquisa e foram coletados de setembro a dezembro de 2004.

Durante esse período, enfrentei alguns problemas, como: dias de muitas chuvas que alagaram algumas

ruas de Boa Vista, onde se situa a Escola Geraldo Costa Alves e, dessa forma, os alunos do ensino

médio não podiam ou não queriam ir para as aulas; dias em que colocaram fogo nos ônibus da Grande

Vitória, causando transtorno à população e impedindo ou dificultando a circulação do transporte coletivo,

levando o Governo Estadual a suspender as aulas e colocar o exército nas ruas. Diante desses

problemas, consegui três aulas extras em ambas as escolas. Ao todo, tivemos um total de 12 encontros

de 50 minutos com cada grupo.

3.2 COLETA DE DADOS

A coleta de dados foi realizada em duas turmas: uma do ensino fundamental da EJA, na Rede Municipal

de Vitória, e em uma turma do ensino médio da Rede Estadual no município de Vila Velha. Foram

envolvidos na pesquisa 33 alunos. A escolha de turmas de níveis diferenciados justificou-se para que eu

tivesse um universo maior de investigação, pois, como diz Analice Dutra Pilar (1996- p.12): "A nossa

visão está impregnada de experiências anteriores, associações, lembranças, fantasias, interpretações.

Está comprometida com nosso passado, com nossa época e lugar, enfim com nossos referenciais".

3.3 O DISPOSITIVO DA EXPERIMENTAÇÃO

Iniciei a pesquisa pelo do contato dos alunos com obras publicitárias e depois pela intervenção com as

obras artísticas presentes no arte br. A partir desse contato, os alunos disseram, por meio de textos

escritos, das falas e das reações físicas, como eles as viam, sentiam e percebiam e que atribuições de

sentido lhes davam. A opção de começar o trabalho pelas obras publicitárias justifica-se por dois

motivos: primeiro, são imagens mais acessíveis aos alunos: eles têm contatos com essas imagens

enquanto assistem à televisão, fazem o percurso de casa para o trabalho, do trabalho para a escola ou

de casa para a igreja e também no campo de futebol, na praia, etc. Enfim vivemos na era da

comunicação visual:

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Ao sermos bombardeados por essa quantidade de imagens, às vezes não distinguimos a experiência direta daquilo

que vimos há poucos segundos da televisão. O que poderá vir à tona nesse processo é o esvaziamento de sentido

sofrido pela imagem submetida à lógica de mercado (CALVINO, 1990, p.107).

Existe uma diferença entre as imagens artísticas e as imagens publicitárias que é a percepção do tempo,

pois, como diz Barbero (2001, p. 25-26):

Presente autista que crer poder bastar a si mesmo [...]. As mídias audiovisuais, constituem ao mesmo tempo o discurso da bricolagem dos tempos que nos familiariza sem esforço, extraindo das complexidades e ambigüidades de sua época, com qualquer acontecimento do passado e o discurso que melhor expressa a compressão do presente, a transformação do tempo extensivo da história no intensivo do instantâneo [...]. E assim, o tempo do videoclipe publicitário, ou musical faz da descontinuidade a chave da sua sintaxe e de sua produtividade" .

O segundo motivo para usar obras publicitárias, no momento inicial, foi devido ao uso do material

educativo arte br durante a intervenção. Esse material tem como objetivo formar leitores visuais, portanto

não só leitores de imagens artísticas.

Nesse momento do trabalho, fiz do cotidiano mediatizado pelas imagens o meu campo de estudo com

os alunos e alunas da EJA. De posse dos textos iniciais e já conhecendo as dificuldades e avanços de

cada um e da turma, iniciei o trabalho de intervenção com as imagens artísticas durante três meses,

seguindo os passos da metodologia proposta pelo arte br: "O olho que vê" e "O olho que percebe", " [...]

De olho no artista, no Brasil e no mundo", " [...] o olho que conta histórias", "O olho que pensa, a mão

que faz, o corpo que inventa" (...). Fiz anotações, recolhi textos dissertativos das duas turmas para serem

analisados, assim como a produção visual dos alunos a partir do passo "O olho que pensa, a mão que

faz, o corpo que inventa".

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CAPÍTULO IV

NAS TESSITURAS DAS IMAGENS: DESCONSTRUÇÃO E

CONSTRUÇÃO

O título acima justifica-se, uma vez que, para se fazer uma leitura semiótica da imagem, é preciso

percorrê-la pelo avesso. Em outras palavras, é preciso fazer no sentido figurado uma desconstrução e

construção novamente dela no percurso de sua leitura.

Os 33 alunos que participaram das oficinas produziram aproximadamente 190 textos entre verbais e

visuais (desenhos). Dada a impossibilidade de analisar todo o material com a profundidade exigida,

selecionei para a análise um conjunto de textos considerando a reiteração dos discursos marcados pela

metamorfose vivida por esses sujeitos, ao passarem de um não-querer ler imagem para um querer- ler e

produzir imagens.

A apresentação dos textos verbais e visuais produzidos durante a ação educativa foi feita da seguinte

maneira: inicialmente, foram descritas as "anotações" do diário das aulas e depois as análises. Priorizei

o nível discursivo, ou seja, as figuras e temas presentes e ainda a sintaxe, os efeitos de sentido

produzidos de subjetividade do discurso e também os elementos do plano da expressão.

Para facilitar a compreensão, refiro-me aos alunos da escola José Lemos de Miranda como GRUPO 1 e,

quando me reporto à escola Geraldo Costa Alves, foram nomeados como GRUPO 2.

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4.1 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA PARA A DIREÇÃO DA ESCOLA DO

GRUPO 1

PRIMEIRO ENCONTRO

Foi com muita expectativa que cheguei à escola José Lemos de Miranda, em São Pedro, para conversar com a pedagoga sobre o projeto de pesquisa, assim como conhecer os alunos, apresentar o projeto de pesquisa e, finalmente, saber se aceitavam participar. O fato de já ter trabalhado nessa escola no ano anterior facilitou o meu contato com a pedagoga, que foi muito receptiva à minha proposta de trabalho. Após conhecer as idéias principais do projeto, ela sugeriu que eu conversasse com a professora de Português pela proximidade da área: leitura de imagens, produção de textos, etc.

A professora gostou do projeto e ofereceu o 3º horário de aula na segunda-feira. Ficou também acertado

que eu lhe passaria uma cópia dos textos verbais produzidos pelos alunos. Combinamos o início da

pesquisa para o dia 13 de setembro de 2004. Em seguida, fomos à sala de aula conversar com os

alunos, para que eu fosse apresentada à turma. Desse grupo eu conhecia apenas duas alunas que

haviam estudado na 3ª e 4a série do noturno no ano anterior. A professora disse que eu ficaria com eles

toda segunda-feira na 3ª aula e alguns ficaram apreensivos por perderem conteúdo de Português que

para eles era "tão importante”. O argumento desse aluno não é isolado, faz parte de um discurso

construído socialmente, em que uma hierarquia é estabelecida entre as disciplinas e, entre as presentes

na grade curricular, estão em prioridade Português e Matemática. Passaram-me a palavra e pude falar-

lhes sobre o objetivo da pesquisa, que é conhecer como se dá o processo de formação de leitores

visuais na EJA.

Fundamentei a importância da pesquisa e perguntei-lhes se aceitavam participar. Um dos 18 alunos

presentes na sala perguntou se iria ganhar ponto se participasse. Respondi que esse não era meu

objetivo com o trabalho e que, se ele aceitasse participar, provavelmente ganharia mais experiência no

exercício de ver e ler imagem, o que não era pouco, pois vivemos numa sociedade de imagem.

Acrescentei também que havia combinado com a professora de Português que lhe entregaria uma cópia

dos textos produzidos por eles. Expliquei que ela pensava trabalhar, a partir do texto, problemas de

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coesão textual e gramática. Outra aluna perguntou: "Professora, eu sou obrigada a participar? Não vejo

graça em artes, é uma coisa inútil. Outro dia, por exemplo, ficamos duas aulas dobrando papel para fazer

barquinho, perereca, sapo, pra quê?!" . Outro continuou: "Eu também penso ser mais útil as aulas de

Português, essa história de dobrar papel ou desenhar linhas me cansa!".

Antes que eu argumentasse, a dona Dominguinha,14 que tinha sido minha aluna no ano anterior, falou:

“As aulas da professora Zezé são diferentes. Com ela aprendemos sobre alguns artistas, fomos ao

museu, fizemos esculturas de papel machê, textos. Não é, Neuziane?" A Neuziane, também foi minha

aluna no ano anterior e respondeu: "É, Dominguinhas, o que cansa é ter que olhar, olhar e olhar uma

imagem, pensar sobre a imagem, escrever, isso às vezes dá um trabalho!" . Diante das falas, pedi mais

uns minutos para a professora e propus problematizar o conceito de arte. Perguntei, “O que é arte para

vocês?”. À medida em que eles iam falando fui escrevendo no quadro: Um falou: "Arte é desenho"; outro:

"Arte é musica, pintura escultura", outro disse brincando: "Arte é o que o meu filho faz, ele é o mais

arteiro da paróquia!"; outra disse: "Arte é teatro"; outra: "Ih! professora, é muito difícil definir, a gente vê

cada coisa horrível e falam que é arte. Outro dia vi na televisão um monte de gente quebrando um carro

e falando que aquilo era arte. Achei perigoso. Até merda., com desculpa da palavra, pode ser arte!".

Quase todos riram, menos um senhor sentado na última cadeira da fileira à minha direita. Acrescentei

que realmente conceituar arte não era fácil, mas que eles estavam no caminho, pois quase tudo que eles

disseram era linguagem artística.

Acrescentei também que arte é linguagem, comunicação e expressão. A imagem é uma das linguagens

mais antigas usadas pelo homem para expressar sua visão de mundo ou se comunicar, pois, antes dele

falar ou escrever, já desenhava, pintava nas paredes das cavernas. Em pleno século XXI, a imagem

continua sendo a linguagem universal. Explorei com eles o conteúdo de uma foto de jornal que mostrava

os prisioneiros iraquianos sendo torturados por soldados americanos. Falei que, mesmo sem uma

legenda, qualquer pessoa que parasse para olhar iria perceber que se tratava de uma violência aos

direitos humanos.

Falei ainda sobre a possibilidade da experiência fascinante que é poder parar para olhar mais devagar

uma imagem, percebê-la, demorar nos detalhes, falar sobre ela,, estabelecer relações, enfim, ampliar

nossa visão de mundo, pois nada numa obra é acidental, tudo tem uma intencionalidade.

Disse-lhes também que eles não eram obrigados a participar. Se aceitassem, eu estaria com eles toda

segunda-feira; se não aceitassem, eu pegaria minhas coisas e iria "cantar em outra freguesia". Nesse

momento, um olhou para o outro, e um tomou a iniciativa: "Tá bom, professora, pode vir, né, pessoal?”.

14 Como foi dito todos os nomes de alunos citados são fictícios e as suas falas estarão em itálico sem recuo.

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Todos concordaram, ou falando ou calando. Agora os alunos estavam em conjunção com a proposta da

pesquisa, respirei aliviada, despedi-me alegremente de todos e saí.

SEGUNDO ENCONTRO

Nesse dia, o objetivo era tentar perceber como cada aluno lia os textos visuais. Levei para sala de aula

obras publicitárias. Um cartaz da Coca-Cola, um cartaz de propaganda de sapatos da Bottero, um cartaz

de sandália Grendha com a Ivete Sangalo, três cartazes de propaganda de filmes. Esse material ocupou

toda uma parede da sala, o que despertou um comentário alegre de um aluno: Nossa sala está alegre

hoje". Retomei a proposta de trabalho. Pedi que cada aluno olhasse bem as imagens e depois

produzissem um texto falando do que viam neles.

Um aluno perguntou: "Professora, o que a senhora quer que eu veja?". Pedi que ele se aproximasse da

imagem, olhasse atentamente para ela. Dentre todas, ele poderia escolher um cartaz e, a partir dessa

observação, construísse um texto, com base nas seguintes questões :

a) O que você está vendo?

b) Do que essa propaganda fala?

c) Para quem essa propaganda fala?

d) d) Qual a estratégia de manipulação presente na propaganda para convencer o possível comprador

para adquirir produto.?

Uma outra aluna brincou: "Já sei, ele vai escolher o cartaz da Coca-Cola por causa da mulher-sereia".

Outra falou: “Eu só compro o que quero. Não adianta o dono da loja colocar cartaz com a Ivete Sangalo

ou outra modelo". Um outro falou: "Professora, se eu pudesse, eu levava para casa a Ivete, isso é que é

mulher!". Um outro completou: “Além de ter corpão, é desbocada, adoro mulher assim". Uma outra falou:

"Professora! Professora! Você tinha que trazer cartaz com homem bonito pra nossa alegria também! Só

os homens estão babando". Um outro comentou: "Nada a ver, professora, nem todos estão babando pela

Ivete! Eu estou aqui fazendo meu texto da Coca-Cola, não por causa da mulher, mas por causa dos

prêmios, eu entro no bar pra comprar esse refri por causa dos prêmios". Um outro aluno completou:

"Mesmo porque a melhor parte da b... da sereia está coberta". Uma colega corrigiu: "Olha a boca,

menino, sereia não tem b..., tem cauda". E ele respondeu: "Mas isso não é uma sereia, é uma modelo,

portanto, tem uma bela b..." .

Enquanto todos conversavam alegremente, havia dois alunos que não participavam. Aproximei-me do

mais jovem e perguntei: "Qual dessas imagens você está observando?". Ele olhou para mim e não

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respondeu. Outros alunos que estavam próximos falaram: "Professora, ele é surdo-mudo, tem outra

menina que não veio que também é surda e muda, mas não veio hoje, a aula passada ela também faltou"

. Então perguntei como poderia me comunicar com eles. Disseram-me "Olha, alguns professores

escrevem no caderno, o que é pra eles fazerem". Então escrevi. Ele leu, olhou pra mim, fez algo parecido

como uma careta, entendi que isso poderia significar que ele não entendeu ou que não estava a fim de

produzir um texto. Ele olhou de novo pra mim e, para reforçar que não ia fazer, deitou a cabeça sobre os

braços na carteira e fechou os olhos. Não insisti.

Um outro aluno, quase adolescente, me chamou: Professora, você é roqueira?" Quis saber "por que",

mas já sabia de antemão a resposta: "Por causa dessa roupa preta, esse cordão de corrente, esse

cabelo de trancinha". Respondi que sou muito eclética musicalmente, gosto do rock à música clássica,

passando pelo hip hop . Perguntei-lhe: Vai fazer a análise da imagem, e do texto? Ele respondeu: “Tá

bom professora! Só vou fazer porque você é roqueira". Conversamos mais um pouco e me aproximei do

outro aluno que não estava fazendo nada da proposta, não tinha levantado para olhar as obras e não

esboçava nenhuma reação, estava parado, rígido na cadeira. Perguntei-lhe se tinha compreendido a

proposta do exercício e ele respondeu:" Professora, eu não entendo nada de arte, para mim é uma coisa

indiferente. A senhora falou que a imagem está presente no nosso cotidiano, eu nunca reparei, não tenho

tempo para essas coisas, não, eu trabalho muito". Chamei a atenção para as imagens publicitárias que

ele encontra no caminho de casa para o trabalho ele respondeu: "Professora, não vejo nada, não, eu

sempre durmo no ônibus". Disse-lhe que sempre tinha a primeira vez de olhar. Prometeu tentar, mas não

o fez, continuou parado. Entendi que ele não estava disposto a fazer, mas sugeri que ele tentasse olhar

para as obras. Ele até tentou enquanto eu estava por perto, mas até o final da aula não produziu uma

única linha.

Dos 15 alunos presentes na aula, sete escolheram o cartaz da propaganda da sandália com a cantora

Ivete Sangalo, quatro optaram pelo cartaz publicitário da Coca-Cola, dois observaram os cartazes de

filme, um trabalhou com o filme Lara Croft: Tomb Raider a origem da vida, um o filme com Jackie Chan,

O Medalhão. E um escolheu o cartaz publicitário da marca Bottero.

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4.3. ANÁLISE DOS TEXTOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS

Cartaz propaganda: Coca-Cola light

No primeiro texto analisado, o aluno Renato começa descrevendo o cartaz: "O céu está estrelado, com

uma lua cheia". Escreve sobre o que vê, as embalagens da Coca-Cola light, a promoção, a sereia. Aqui

Figura 2 - Cartaz propaganda: Coca-Cola light (2004)

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ele observa, embora não de forma tão explícita, que o enunciador (a Coca-Cola) usa a estratégia de

sedução, ao colocar uma sereia, magrinha, ou melhor, em "boa forma", para vender a Coca light, mas,

ao mesmo tempo, ele aceita a manipulação ao finalizar o texto dizendo: "Vale a pena participar dessa

promoção".

Já a Esmeralda começa o texto falando da competência do enunciador: “A Coca-Cola está sempre

fazendo propagandas interessantes". Ela percebe as estratégias de sedução do enunciador quando

escreve: "Nessa propaganda, por exemplo, foi usado vários relógios e uma sereia sobre a claridade da

lua". Percebemos, também, no texto produzido pela aluna, uma tentativa de buscar o sentido do texto

em nível mais profundo, pois ela se pergunta: "Será o que essa sereia está fazendo ali?". mas ao

responder, ela se mantém no nível mais simples de interpretação, pois conclui, "a sereia está ali para

embelezar a propaganda, para chamar a atenção".

No terceiro texto, a aluna Ruth enaltece o enunciador com qualificações, pois começa o seu texto

dizendo que "Uma propaganda de refrigerante com uma promoção interessante, com um retorno de

venda muito rápido, pois oferece um lindo brinde em troca da compra". Ela reconhece a competência do

enunciador não só nessa propaganda mas em outra, ela sai do texto analisado fazendo uma

intertextualidade, estabelece uma relação com outra propaganda da Coca-Cola: "Como aconteceu nas

olimpíadas com a promoção das garrafinhas e o mini engradado afim de vender com mais rapidez o

refrigerante". Aí ela volta para o texto, falando: "É assim de novo com uma linda promoção com a Coca-

Cola light dando em trocas vários produtos como um lindo relógio e com a frase seu Brilho é Você". Aqui

percebemos claramente que ela reconhece as estratégias de manipulação, mas se deixa seduzir por

elas, pois também acredita que os prêmios valem a pena, mas, numa interpretação em que se deixa

seduzir pela propaganda, aliena-se de criatividade entrando no jogo do enunciador e o da sorte nele, pois

todos ganham, poucos receberão esses prêmios.

Para concluir, um outro aluno escreveu apenas uma linha sem colocar o ponto final, provocando um

efeito de proximidade: "que eu vejo na Coca-Cola é os prêmios que ela dá". Na parte inferior da folha, ele

desenhou a cara de um vampiro com os olhos arregalados e a boca escancarada. Os colegas

começaram a provocá-lo: "Não sabe escrever?!”. Outro: "Olha, professora, o Ricardo só fez uma linha e

o desenho de um monstro! O que esse desenho tem a ver com a aula de hoje?". Ele respondeu: "Ué, não

é aula de artes, então eu posso desenhar o que eu quiser!". Uma senhora, que estava do lado, veio em

seu socorro: "Gente, vocês não estão entendendo, esse desenho pode estar dizendo que a Coca-Cola

faz propagandas legais para sugar nosso sangue como vampiro". Daí ele encheu o peito e falou: “É isso

aí, tia, a senhora sacou o espírito da coisa! Vocês aí, ó, não entende de nada". Um outro colega

devolveu: "Vai me dizer que você tinha pensado nisso? Você foi salvo pelo gongo, isso sim!". A partir do

desenho do Ricardo, criou-se na sala uma longa discussão sobre a importância ou não de se saber qual

a intenção de um autor na leitura de texto. O debate "pegou fogo" quando argumentei que o que

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importava era o que estava exposto no texto e não a intenção do autor. Intenção é o que se pretende

fazer, como um pré-projeto, um plano, um esboço, uma idéia. O que se quer alcançar e que, portanto

não está realizado mas virtualizado. Na análise de um texto, seja ele verbal, seja visual, uma

propaganda ou uma obra de arte, analisamos o que está posto, apresentado, para nosso olhar leitor.

Textos sobre a nova coleção da Grendha com a cantor a Ivete Sangalo

Figura 3 - Cartaz propaganda: Nova coleção Grendha Ivete Sangalo.

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O texto da aluna Carla fica mais no nível da descrição superficial : "O Objetivo do cartaz é a beleza das

sandalhas, tem cores variadas, cor laranja, azul, amarela, mas o que chama mais atenção, são as

borboletas, uma delas está carregando Ivete nas suas asas elas são bonitas e muito coloridas. As

borboletas apresentam voando, numa floresta bem verde e Ivete está comovida." Percebemos, nesse

texto, que a aluna está completamente seduzida pela estética do cartaz, pois a propaganda

"figurativiza"15 os elementos do mundo natural de que ela gosta:

Flores, floresta, borboleta. Quanto me entregou o texto, eu quis saber: " Como pode afirmar que a

cantora está comovida?". Ela respondeu: "Ah, professora, não sei ... pela expressão do rosto dela...". Um

outro detalhe que chama a atenção no texto é o tratamento de intimidade que ela imprime ao se referir

apenas pelo primeiro nome à cantora Ivete Sangalo, quando diz: "Uma das borboletas está carregando

Ivete nas suas asas", ou "Ivete está comovida". Está explícito aqui que o sujeito manipulador (a marca

Grendha) provoca, ao escolher a protagonista da propaganda, um efeito de subjetividade, pois opta pela

presença de "eu" que é uma artista famosa que ocupa o maior espaço da superfície planar. Basta o

reconhecimento da artista para que, num processo de identificação, o leitor ou leitora do cartaz também

se reconheça e se comova ao olhar o corpo exposto que o observa. Esse corpo, recortado pela borboleta

que o sobrepõe, tem a cabeça arqueada e um olhar convidativo. O livre movimento do vestido que as

mãos promovem enaltecem esse convite. Carla se deixou seduzir pela imagem publicitária, outras

também se deixarão?

No texto da aluna Nair, há também uma leve percepção da propaganda e de seu conteúdo sedutor: “A

cantora Ivete Sangalo está fazendo propaganda das sandálias. Que eu percebi que as sandália são a

cor do verão, eu acho que no verão sai muito, são cores muito bonitas". Em duas ocasiões, a aluna, ao

colocar a 1ª pessoa do singular, provoca efeito de aproximação: "Eu percebi, eu acho". como sujeito da

enunciação, a aluna apresenta um saber "Percebi que as sandálias são a cor do verão". Ao mesmo

tempo ela reconhece a competência do manipulador, nesse jogo de persuasão quando diz "Eu acho que

no verão vai vender muito, pois são cores muito

bonitas".

No terceiro texto sobre a coleção Grendha, a aluna Rosa escreve que: “O que me chamou atenção foi a

sandália grendha e os enfeites que está na sandália, que é a borboleta as cores combina com qualquer

roupa". Ela não cita as cores, mas, do modo que foi conduzido esse primeiro parágrafo, parece que ela

está completamente seduzida pela propaganda e, se pudesse, ela iria correndo comprar. Quando me

15 Figuratividade: é um procedimento da semântica discursiva que se relaciona com os elementos presentes no mundo natural que cria o efeito de sentido de "verdade".

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perguntaram o que era para observar na propaganda, respondi: "Tente observar as estratégias de

manipulação da propaganda para lhe convencer a comprar o produto". Parece que a explicação não ficou

muito clara para a aluna Rosa, pois ela escreve no último parágrafo: "A estratégia é coloca na vitrina

para as pessoas que passar em frente da vitrina olha pára e ver que é muito bonita entra na loja para

pedir uma vendedora para pegar e experimenta e ver como ela é gostosa de calçar". Conversando com

ela, perguntei: ”Olhando para o cartaz, como você pode afirmar que ela é gostosa de usar ?". Ela me

respondeu rapidamente: "Porque é baixinha e porque eu já tive uma sandália dessa marca".

O texto da aluna Neuziane é completamente eufórico. Ela se coloca desde o início. "Eu escolhi" e no

final "Eu acho". Observem: "Eu escolhi a propaganda nova coleção grendha pela forma que o publicitário

utiliza as cores também os desenhos, as borboletas, também pela cantora Ivete Sangalo achei muito

legal". No texto, há uma leve percepção, por parte da aluna, persuasão do texto visual, mas fica apenas

no campo da descrição superficial.

O texto da aluna Jane também não se aprofunda na descrição da propaganda, entretanto ela se coloca

como sujeito próximo e em conjunção com a propaganda: “Eu adorei a coleção da grendha de Ivete

Sangalo". Depois fala das borboletas, da beleza de Ivete Sangalo, percebe que a composição faz parte

de uma estratégia de venda, pois diz: "Eu vejo que ela fez isso para chamar atenção das pessoas para

comprar". Aqui ela confunde o enunciador do texto com a cantora que "figurativiza" o sucesso, a beleza

como elemento persuasivo para a venda do produto. Diz que as estratégias de venda foram pensadas

pela cantora e termina o texto completamente seduzida pela propaganda, o que se percebe com a

presença do adjetivo "linda", e expõe sua subjetividade em tom de euforia na manifestação explícita de

seu gosto: "Adorei " :“Vejo que Ivete está quase voando em cima de uma borboleta, ao lado tem várias

flores linda e adorei o visual dela, o vestido e a calça".

No texto do aluno Júlio, ele também se coloca como sujeito próximo, pelos elementos figurativos do

cartaz : "O que me chamou a atenção foi a nova coleção grendha Ivete Sangalo, colorida super tropical

com um vestido colorido com uma borboleta em seu braço".

Texto sobre o cartaz publicitário da marca Bottero

Figura 4 – Cartaz propaganda: coleção Bottero (2004)

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O texto da Dominguinhas, que escolheu o cartaz da marca Bottero, é feito na primeira pessoa. Ela não

aprofunda a descrição dos elementos figurativos, preocupando-se apenas em expressar seu juízo de

valor sobre o cartaz, porém percebe que as escolhas dos elementos presentes fazem parte de uma

estratégia publicitária: "Eu escolhi o cartaz da Bottero. Eu achei muito interessante como o publicitário fez

essa propaganda, ele usou a modelo que por sinal muito bonita. Ela está usando uma roupa que não

está muito combinando, no final você vê a bota muito bonita e você não resiste e compra, a propaganda

serviu para alguma coisa e o objetivo do publicitário é vender a bota não as roupas muito menos a

modelo mas sim a imagem dela".

Texto sobre o filme Tomb Raider

Quanto ao cartaz do filme Tomb Raider, em seu texto, o aluno utiliza a primeira pessoa do singular e

mostra-se completamente seduzido pela mulher que ilustra o cartaz e reconhece a competência do

enunciador na estratégia de divulgação: “vejo no cartaz de Tomb Raider uma mulher muito bonita, que

tem um corpo escultural representando o cartaz. Essa imagem aumenta o meu apetite de levar o filme

Figura 5 - cartaz do Filme Tomb Raider and Lara Croft ( 2003)

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para mim assistir". Há, na leitura realizada, uma conotação de sua sexualidade na relação da "mulher

bonita", "corpo escultural" provocando o "apetite" do leitor. As outras informações, como as do aspecto

verbal, não foram consideradas relevantes. É a imagem, portanto, "figurativizada" na mulher que, como

objeto fálico, rompe da água que seduziu o aluno.

Texto sobre o filme O Medalhão

Já o texto da aluna Adelaide sobre o cartaz do filme "O medalhão ", com o ator Jackie Chan, faz uma

associação com

suas

experiências anteriores com filmes a que assistiu e, assim como o personagem, ela viaja por outras

experiências, porém reconhece a estratégia publicitária de colocar o ator no cartaz: "O que me chamou

atenção na propaganda do filme é o Jackie Chan , e suas lutas os efeitos especiais as artes marciais. E

ele é um bom ator adoro os filmes dele, todos os filmes dele são bem feitos. Com um pouco de comédia

e muito engraçado. Ele sempre aparece nas capas porque ele é bonito e porque ele é um ótimo ator. Por

causa dos filmes dele ter comédia e lutas, todas as crianças, adolescente e adultos gostam". Reconhece

aqui a competência do ator, não cita roteirista, diretor nem outro profissional envolvido nas produções dos

seus filmes e, como disse, ela não volta para o cartaz analisado. Até aqui percebo nos discursos a

reiteração da primeira pessoa do singular o que provoca a relação de proximidade, e o uso de adjetivos

Figura 6 – Cartaz propaganda: filme o Medalhão

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como: bem feito, bonito e ótimo ator, descrição dos elementos figurativos, como desencadeadores de

leitura dos textos lidos.

4.4 INTERVENÇÃO COM O MATERIAL EDUCATIVO arte br

TERCEIRO ENCONTRO

Durante o recreio, alguns alunos da 5ª série vieram me perguntar se eu li os textos e o que eu tinha

achado. Respondi que sim e que todos tinham, de uma forma ou de outra, respondido às questões

propostas na aula anterior. Quando entrei na sala de aula, todos estavam na maior expectativa. Dei o

retorno, falei que alguns poderiam ter se aprofundado mais no texto, disse-lhes que alguns destacaram a

mulher ideal, outros a questão do consumo. Acrescentei que estava muito contente com o envolvimento

da turma nesse trabalho. Falei também do papel da propaganda e da publicidade que, muitas vezes,

aparecem como sinônimos, pois as duas palavras caracterizam-se pela finalidade de convencimento do

possível comprador para determinado produto, seja ele uma marca de refrigerante, seja marca de sapato,

seja um filme. Porém, mais que o produto, hoje se vende um estilo de vida. Para atingir esses objetivos,

os publicitários usam e abusam de manipulações e, na maioria das vezes, acontece uma manipulação

por sedução. Diante disso, faz-se necessário refletir sobre as propagandas e publicidade nessa era de

comunicação visual.

4.4.1 O Caderno: Colher o pão de todo dia

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O caderno "Colher o pão de cada dia" foi trabalhado com o grupo da seguinte forma:

Depois da conversa inicial, passei para o outra parte da pesquisa que foi a intervenção a partir da leitura

das reproduções das obras presentes no arte br. Como não tinha uma reprodução para cada aluno, dividi

a turma em grupos. Os alunos ficaram organizados da seguinte forma: três grupos de quatro alunos e um

grupo de cinco. Aquele aluno já citado em páginas anteriores, que se recusou a analisar as obras de

propaganda, pois disse que não conseguia ver nada de interessante, não estava na sala mas, estava

presente pela primeira vez uma aluna com deficiência auditiva. Enfim, encontravam-se na sala dois

alunos que se comunicavam em libras e eu não conseguia me comunicar com eles. Coloquei cada um

deles em um grupo. Não foi a melhor estratégia, pois o aluno, aqui vamos chamar de Lucas, saía o

tempo todo do seu grupo para ir ao grupo da colega, aqui chamada de Ana Cristina. Ele pretendia

provocá-la, olhar o que ela estava fazendo e brincar.

Para cada grupo, entreguei uma prancha e um postal. De um lado da prancha, estava a obra com o tema

"Olaria", de Djanira e, de outro lado, a obra "Acidente de trabalho", de Eugênio Sigaud . No postal, um

dos ensaios fotográficos de Sebastião Salgado, intitulado "A luta pela terra". Dei o seguinte

encaminhamento: que olhassem profundamente para cada obra, observassem todos os detalhes, em um

tempo mínimo de cinco minutos, depois escrevessem:

- O que seu olho vê?

Figura 9 - S/T "Ensaio: A luta pela terra, de Sebastião Salgado, 51x71cm, 1993.

Figura 8 "Olaria" de Djanira da Mota e Silva,114x62cm, 1966.

Figura 7 – "Acidente de Trabalho" de Eugênio Sigaud, 132x95cm, 1944

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- Qual o tema de cada obra? Todas elas falam do mesmo tema?

- Quais as diferenças ou semelhanças entre elas?

A primeira reação de um dos grupos foi achar engraçado, ao ver o postal com a reprodução da foto

tirada por Sebastião Salgado: "Ih! Professora, essas pessoas aqui estão precisando de uma manicura,

essas unhas estão muito sujas e cheias de micose!". Outro retrucou: "Que manicura mulher! Isso aqui é

pé, não é mão. Eles precisam é de pedicura!”. A primeira devolveu: "Dá no mesmo! Por exemplo, se

você perguntar a profissão da minha cunhada, ela vai falar que é manicura, no entanto ela também faz o

pé". Argumentou e fechou a cara. Intervim: voltando para a imagem que vocês têm em mãos, o que mais

vocês vêem? Insistindo ainda na discussão anterior, uma terceira pessoa do outro grupo disse: "Vocês,

hem? Ficam rindo das unhas sujas desses trabalhadores, não está vendo que eles são muito pobres,

coitados". Outra retrucou: “Pobreza não tem nada a ver com falta de higiene. O que falta aqui é uma boa

escovada! ".

Enquanto isso, o aluno Lucas (com deficiência auditiva) estava andando pra lá e pra cá. Mais uma vez eu

não tinha conseguido envolvê-lo nas atividades. Por outro lado, a aluna Ana Cristina, que também é

deficiente auditiva, estava completamente concentrada na imagem. A partir do momento em que eu

escrevi em seu caderno que o primeiro passo era olhar bem para a imagem, observar e depois anotar o

que estava vendo, ela escolheu a prancha e não soltava mais. Isso criou um problema para o grupo que

apenas conseguia olhar o postal. Percebi também que o Lucas conversava em libra com a colega e

parecia feliz ao lado dela. Uma pessoa do grupo sugeriu em tom de reclamação: "Professora, por que

você não dá uma imagem só para ela, desse jeito fica difícil trabalhar." Soou o sinal, nem todos tinham

terminado de produzir o texto. Pediram para continuar na próxima aula.

QUARTO ENCONTRO (continuação)

Soou o sinal do recreio, fui para a sala. Quando cheguei, encontrei uma cena que me deixou muito feliz.

Os alunos, já estavam se organizando em grupos, alegres, e me disseram: "Estamos adiantando o meio

de campo para você e pra nós!". Elogiei a iniciativa. Percebi que, nesse momento da intervenção, já

havia iniciado uma mudança de estado nos sujeitos envolvidos na pesquisa, pois, no primeiro encontro,

demostraram um não querer-fazer arte e esse gesto de tomar a iniciativa de se organizarem em grupo

demostrava um querer- fazer arte.

Distribuí as reproduções, os dois amigos com deficiência auditiva quiseram ficar em dupla, e a aluna Ana

Cristina (com deficiência auditiva) quis a mesma obra do encontro anterior. Acordamos mais quinze

minutos para o grupo e depois cada aluno apresentou o seu texto:

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Uma aluna leu: "Os três homens trabalhador: Eu estou vendo três pés feios em cima de uma calçada

esses homem são assim porque eles trabalham na terra e parece que eles sofre muito porque tem de

lutar por isso eles estão assim sem tempo de cuida de seus próprios pés. Na outra, vejo aqui um monte

de homem trabalhando para sobreviver, vejo um caindo no chão de cansado essa é a vida que eles

vivem. vejo uns carregando um carro outro rodando a roda, até um cavalo tem ali naquele lugar. Essa é

a vida dessas pessoas que trabalham muito para sobreviver. Isso que eu vejo e acho". Perguntei se ela

havia observado as semelhanças e diferenças de uma obra para outra, ela acrescentou: "Ué, professora,

todas falam de trabalho. As diferenças não deu tempo de ver, não ! ".

Uma outra aluna quis apresentar seu texto: "A minha leitura é diferente professora. Título: Acidente de

Trabalho. Os trabalhadores estavam trabalhando em ambiente muito alto, um dos trabalhadores

começou a passar mal e caiu no chão. Os companheiros dele ficou muito assustado, e dizia coitado dele,

será que ele morreu? E os outros ficaram lá de cima só olhando muito triste por que não podia fazer

nada. Eles estavam trabalhando no exército pulando de corda em corda sem nenhuma segurança”. Um

dos colegas do grupo dela brincou: "Viajou agora, né? Como você sabe que os companheiros dele falava

isso? Você ouviu alguma gravação, algum bilhete? Além disso você sonhou com exército, né? Se o

nome já diz acidente de trabalho!" A aluna Carla reagiu um pouco chateada: "Eu não preciso de

gravação ou bilhete para sentir o que eles estão falando. Eu vejo na expressão dos rostos deles! Além

disso, no exército eles também trabalham e eu conheço um jovem que sofreu um acidente na corda igual

a esse". Disse-lhe que ela tinha falado coisas interessantes, por exemplo, a possibilidade de leitura das

expressões faciais dos sujeitos presentes na pintura. Pedi, porém, que pegasse novamente a obra de

Eugênio Sigaud, olhasse de novo os trabalhadores, o espaço em que eles estavam inseridos, o andaime,

o canteiro de obra. Depois de um tempo ela falou: “Tá certo, professora. Não é um treinamento do

exército. É um canteiro da construção civil". Ao afirmar inicialmente que a obra mostrava um treinamento

de exército, a aluna estava fazendo analogia a uma realidade conhecida por ela. Com um olhar mais

atento sobre a obra, a aluna pôde fazer o percurso da obra e perceber as marcas do enunciador e

descobrir diante disso, sobre o que a obra fala. Um texto possui as marcas de pessoa, espaço e tempo

em seu interior, ou seja, quem fala, em que espaço e em que tempo.

A aluna Ruth quis ler o seu texto: “Estou vendo como ficou os pés de três trabalhadores que estavam na

terra só de olhar os pés dos três cidadão da para perceber como é sofrida a vida na terra. Esta figura

também faz parte da outra porque aqui também encontra-se trabalhadores que estão fazendo trabalho na

terra, como tem um caído no chão posso pensar que ele está morto mais não tenho certeza porque ele

esta machucado e os outros não fazem nada só olham. Na olaria, vejo muitos trabalhadores, fazendo

algo diferente dos outros portanto não acho que fazem parte da mesma figura porque estão construindo

uma olaria. Mas se for para falar de trabalho posso dizer que as três figuras retratam a mesma coisa

portanto o que eu vejo são homens trabalhando". É interessante notar que, nesse texto, a aluna, ao usar

de novo a primeira pessoa do singular, provoca efeito de aproximação e nos diz de pés que falam. É

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interessante observar também que ela não afirma que o sujeito da obra está morto, ela percebe que essa

é a impressão que a imagem nos dá, mas não tem certeza. Ao deixar as marcas no texto, o sujeito da

enunciação utiliza figuras e temas e os relaciona com determinado contexto e grupo social. Nesse caso,

de trabalhadores da construção civil. Se o homem, figura presente na obra, está ao vivo, diz respeito aos

efeitos de sentido produzidos no interior do texto, o de fazer parecer real, o que é um simulacro, uma

construção textual. O sinal bateu e a discussão ficou para o próximo encontro.

A leitura dos outros textos nos mostraram o seguinte: "São três obras de artes diferentes, cada um com

o seu problema”. 1 ." Eu vejo muitas pessoas trabalhando, cada um com o seu dever, eles estão fazendo

muros para alguma coisa, como casas." 2. "Eu vejo três pés diferentes, todos bem sujo de tanto trabalhar

ou não tem onde tomar banho para limpá-los". Aqui também percebemos o uso da primeira pessoa do

singular e, um olhar rápido e talvez por isso, superficial das imagens.

Em outro texto, também é reiterado o uso da primeira pessoa. Percebemos um olhar superficial sobre as imagens, pois não aprofunda nem a descrição dos elementos figurativos, nem o plano de expressão: "Eu vejo um homem caído no chão com muitas pessoas em volta vendo o que aconteceu, e uns homens em cima de uma tábua com uma corda que pode ter matado o homem. As três figuras são diferentes porque cada uma tem funções diferentes".

No texto seguinte, já observamos uma tentativa de construção de escrita na terceira pessoa, provocando

um distanciamento e conferindo objetividade. A aluna Jane observou na legenda o ano em que a obra foi

produzida. Isso é um dado importante na leitura para entender o contexto. Ela não aprofunda o contexto,

mas faz um paralelo com os dias de hoje, afirmando que o uso da tecnologia traz mais segurança,

porém, no seu texto, percebemos também um olhar apressado sobre a imagem: "Um homem sofreu um

acidente de trabalho em 1944, caiu de um andaime que era protegido por cordas. Mais segurança nas

construções no dia de hoje, mais tecnologia".

No texto a seguir, percebemos novamente o uso da primeira pessoa, que provoca um efeito de

proximidade, a aluna enfatiza aspectos do plano de conteúdo mas parece ter se "esquecido" do plano

de expressão: "Eu estou vendo pessoas construindo em união. Estão construindo sem segurança até

acontecer um acidente de trabalho, com uma das pessoas antigamente. Mais organização nas

construções com um pouco de [...] ". (a aluna interrompe o seu texto sem concluí-lo).

Nos dois textos a seguir, também não é aprofundado o plano de expressão e de conteúdo. Não temos o

mesmo efeito de proximidade, pois não é usado a primeira pessoa do singular.

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"Um homem acidentado quando estava trabalhando em uma construção. Da falta de segurança no

trabalho. Mais organização nas construções usando até animal, carrinho, eles estão trabalhando em

união e em conjunto."

"E aconteceu que em 1944 um acidente de trabalho na cidade do Rio de Janeiro em uma construção.

Estes pés é para pisar o barro para fazer os tijolos para construção das cidades. Hoje se descascar

alguns muro da cidade encontra este tijolo. Fim". Aqui ela tenta fazer uma ponte entre as três obras e os

dias atuais, estabelecendo uma analogia com elementos figurativos do mundo real, cidade do Rio de

Janeiro, o ano de realização da obra, os recursos figurativos presentes no texto e nos muros da cidade.

Lembram-se da aluna deficiente auditiva, que estava com a reprodução de Eugênio Sigaud para analisar, e eu lhe "disse" para descrever o que estava vendo? Ela me entregou um texto misturando o verbal e o não-verbal, pois ela desenhou um andaime. Sentado sobre ele e olhando para baixo um trabalhador com expressão de espanto e, ao lado, ela fez um balão com a legenda da obra: "Eugênio Sigaud Acidente de Trabalho, Encáustica sobre tela, Museu Nacional de Belas Artes, doação do artista Rio de Janeiro". Porém, do lado esquerdo e superior da folha, ela escreveu uma frase que a princípio eu não entendi: "Por Brasil pé você note que ama". Usou a terceira pessoa do singular causando um efeito de distanciamento. Pois o texto não possui os pronomes que possibilitariam o encadeamento da frase como: Por um Brasil em pé.

QUINTO ENCONTRO COM O GRUPO 1

Buscando encontrar caminhos de comunicação com os dois alunos com deficiência auditiva, enquanto

aguardava o horário de ir para sala, conversei com alguns professores, que estavam em planejamento,

sobre os dois alunos com necessidades educativas especiais de audição. Eles me responderam que, na

verdade, não conseguiam se comunicar com eles, embora tivessem tido no início do ano uma conversa

(uma espécie de formação, em que foi dada uma noção de libra) com a professora de libra, que é

itinerante na rede, mas essa não foi suficiente. Segundo os professores, esses dois alunos conseguem

fazer as atividades, pois a professora de libra vem à escola uma vez por semana, ou quinzenalmente, e

trabalha com eles as atividades que eles não conseguiram resolver.

A professora de Português que me cedeu uma de suas aulas para a pesquisa e me ensinou, nesse dia,

a dar boa noite para os dois. Pensei que assim eu pudesse tentar envolver o aluno Lucas nas atividades,

ele poderia perceber que eu estava me esforçando para me comunicar. Cheguei à sala, fiz uma

saudação para todos e para o Lucas em especial. Perguntei-lhe se estava certo o gestual, ele disse que

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mais ou menos. Nesse dia, ele estava meio triste e, para complicar eu havia planejado uma aula mais

expositiva.

Retomamos a aula anterior, disse-lhes que realmente todas as três obras discutiam a relação do ser

humano com o trabalho. Cada um apresentava uma visão diferente sobre o mesmo tema, pois foram

percebidos em espaços, tempos diferentes, com técnicas diferentes. Acrescentei que elas foram

organizadas juntas por um curador, expliquei o que é um curador, disse também que elas poderiam ser

agrupadas de forma diferente. Procurei levantar indicação de outras obras que eles conheciam, com a

mesma temática. Fez-se um silencio. Mostrei, então, a obra intitulada "Café", de Portinari, e perguntei se

tinha o mesmo tema e se poderia fazer parte desse grupo. Disseram que sim, assim como uma obra da

Nice Nascimento que mostra os trabalhadores de cacau. Concordaram calorosamente. Falamos que o

acidente de trabalho pintado por Sigaud não retratava um acidente em especial ou real, pois o artista

pode se inspirar na realidade em que ele vive, mas vai ser o olhar dele sobre determinada situação. O

artista pode também inventar uma realidade. Depois disso, pedi que pegassem a reprodução de

Eugênio Sigaud e segui os passos presente na metodologia do arte br , o que possibilitou aprofundar o

olhar sobre as imagens .

O seu olho o que Vê?

Pedi que olhassem os corpos dos trabalhadores, os lugares que esses corpos ocupam na pintura, a

luminosidade de cima, da esquerda, no andaime, no canteiro de obras. Pedi para observar as diferenças

de volume dos corpos, os detalhes de cores e tons-cor, as proporções. Nesse ponto, falei da gramática

das cores. Eles foram acompanhando. Uma aluna se posicionou: "É mesmo. Um tom faz a diferença, por

exemplo, eu não suporto usar roupa rosa-choque mas gosto de rosa claro." No quadro, dividi a pintura

em quatro partes e chamei a atenção para a parte superior direita da pintura. Os trabalhadores viam a

cena do acidente de cima e nos fazem olhar da mesma posição, é o olhar deles que nos mostra o corpo

caído. Falei da parte superior da esquerda, da luminosidade que reforça a verticalidade dos prédios, a

estrutura vertical, falei da parte a inferior esquerda, a aglomeração das pessoas, as cores mais sóbrias...

chamei atenção para a parte inferior da direita, a curva que se pode fazer com o olhar formado pelas

pessoas que olham o acidente e que estão menos iluminadas.

O seu olho, o que percebe?

Chamei a atenção para os contrastes presentes na obra, da direção dos olhares. Das luzes, as sombras,

para o movimento que faz nosso olhar construir uma linha espiral, cujo centro é um acidente de trabalho.

O aluno reclamou: "Ah, professora, observar todos os detalhes da obra é muito chato. Você fez igual a

minha mulher que, para arrumar a casa, primeiro desarruma. O que me interessa saber se as pessoas

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estão pintadas em pé, vertical ou horizontal? Que meu olhar faz curva, porque o meu não fez coisa

nenhuma! Eu já bati o olho e vi que era um acidente de trabalho e isso me basta!". Falei que, de certa

forma, estávamos fazendo como a mulher dele, sim, pois não era possível fazer uma bela faxina sem

colocar os móveis para cima, limpar a área e que nós estávamos, de certa forma, desconstruíndo a obra

para fazer uma leitura mais profunda. Acrescentei que uma linha reta ou curva faz uma diferença tanto na

vida como numa obra, por exemplo, se um motorista não observar que estrada ou rua que ele vai e se

tem uma curva logo adiante, pode provocar um acidente. Na sala tinha um motorista de ônibus que

concordou. Então, numa obra uma linha vertical ou curva, ou reta, pode tanto nos dar uma impressão de

movimento ou de uma coisa estática de organização ou desorganização. Nesse ponto, uma aluna falou:

"Agora entendi porque essa obra da Djanira parece mais organizada, porque ela está em planos na

horizontal" . Fizemos o mesmo percurso do olhar na obra "Olaria" e um aluno só discordou quando disse

que "Olaria" mostra uma cena rural: "Me prova que dá para afirmar que é uma cena rural, pode muito

bem ser uma cena urbana!". Disse-lhe que, numa leitura de imagem, a interpretação que fazemos deve

estar baseada no que a obra tem, portanto a obra nos mostrava indícios de que era uma cena rural pela

vestimenta dos trabalhadores, por exemplo, o chapéu de palha e a presença do animal na cena. Ele

argumentou que na cidade também tem a presença de carroceiro. Disse-lhe que, pelas informações que

eu tinha sobre o trabalho de uma olaria, precisaria de uma grande quantidade de barro para confecção

dos tijolos, um forno muito grande e muita lenha. No mínimo, numa área urbana iria incomodar muita

gente. Ele concordou.

Depois fizemos o percurso com a obra de Sebastião Salgado. Falamos também, um pouco, da técnica

empregada pelo fotógrafo. Acharam interessante o recurso do "close" e disseram que nem todas as

máquinas conseguem esse efeito e não sabiam que “pés” podiam ser um tema de fotografia.

No passo "O olho que conta histórias", em vez de escrever um texto sobre as obras, cada aluno falou

sobre uma história "real' de um acidente de trabalho que conheceu ou ouviu falar, e um era mais

dramático que o outro. Quase todos tinham uma história para contar.

Na aula seguinte, levei a Música “Construção”, de Chico Buarque, para eles ouvirem. A maioria absoluta

nunca tinha ouvido, alguns gostaram, outros detestaram, os jovens-adolescentes preferiam rock, reggae,

alguns adultos preferiam que eu tivesse levado gospel ou sertaneja. Mas todos fizeram associação com

o obra "Acidente de Trabalho”, de Sigaud, assim como a poesia “Operário em construção”, de Vinícius de

Morais. Essa poesia provocou grandes discussões sobre a exploração dos trabalhadores vividos até hoje

tomando como exemplo o valor do salário mínimo, preço pela tomada de consciência, pois ainda hoje

quem faz greve é perseguido.

O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que invent a

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Nesse momento, fizemos um mapa de trabalho com as profissões existentes na sala, na escola e na

comunidade. Demos o encaminhamento para que os alunos fizessem entrevistas com esses

trabalhadores para saber as suas condições de trabalho :

- Onde trabalhavam?

- Quantas horas trabalhavam por dia?

- O que faziam?

- Era seguro ou insalubre o seu ambiente de trabalho ? Gostavam desse ambiente ou detestavam ?

SEXTO ENCONTRO COM O GRUPO 1

Depois da calorosas saudações iniciais por parte dos alunos, perguntei se eles tinham conseguido fazer

a pesquisa. A aluna Neuziana entregou toda orgulhosa a sua: "Professora, eu não fiz pergunta e

resposta, não. Pedi para a dona Maria falar do trabalho dela e fui escrevendo." (ANEXO)

Uma outra aluna, Diana, disse que tinha entrevistado um jornalista, que tinha modificado as perguntas e

feito a digitação, porém as respostas estavam em caneta, (ANEXO). Quando me entregou a entrevista,

seus olhos brilhavam: “Imagina, professora, eu, uma auxiliar de serviços gerais, entrevistei um repórter!”.

O Sr. Chico disse-me que tinha entrevistado, oralmente, um açougueiro e a resposta foi a seguinte:"

Trabalho como açougueiro em um supermercado. Trabalho doze horas por dia, tenho carteira assinada,

recebo tudo que tenho direito e gosto do que faço".

Assim como a Carla que conversou com a vizinha que é consultora de uma firma de produtos de higiene

e beleza: "Meu nome é Penha. Sou consultora de beleza, não tenho carteira assinada, trabalho todos os

dias e gosto do que faço. Além de vender produtos de beleza também compro e revendo bijuterias" .

Um outro disse que tinha entrevistado um motorista, mas que ia trazer na próxima aula. A partir do mapa

de trabalho, de novo colocado no quadro, pedi que cada aluno criasse um desenho, ou uma colagem

representando uma das profissões citadas. Para essa atividade levei papel canson, cola, lápis de cor,

tinta e jornal.

4.5. ALGUMAS ABORDAGENS: DESENHOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS

Para elaborar seu desenho, a aluna Jane escolheu lápis de cor e papel canson. Parece retratar o interior

uma casa, simples e acolhedora de uma desfiadeira de siri. Para reforçar a idéia, ela traz para o primeiro

plano a panela de siri que está sendo cozido por uma menina. Ao nos olhar diretamente e apontar com o

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braço direito a panela borbulhando, essa parece querer nos dizer que está seguindo a tradição de sua

comunidade, pois a profissão de desfiadeira de siri é transmitida de mãe para filha. Então, vemos

"figurativizados" nesse desenho, elementos do mundo natural da aluna: a tradição de desfiar siri, o

ambiente acolhedor simbolizado pelo sofá e as flores, assim como a TV ligada em programas

evangélicos. Ao colocá-los no desenho, aproxima-nos do mundo do qual faz parte e o apresenta tal qual

vivencia.

Figura 10 – "Desfiadeira de siri" Aluna 5ª série da EJA – Escola José Lemos de Miranda

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O

desen

ho do

aluno Sr. Chico foi construído na horizontal, apenas contornado com lápis preto sobre papel canson. É o

desenho de um homem que parece demonstrar orgulho de sua profissão, segurado, na mão esquerda,

uma maleta e na direita duas chaves. Do lado esquerdo, a palavra “mecânico”. A figura do mecânico

toma quase toda a extensão da folha e é proporcionalmente muito maior que o desenho de um carro

construído no canto direito da folha. Podemos perceber que o aluno, como sujeito da enunciação, se

coloca no desenho pelos planos que são construídos. É como se afirmasse no verbal: "Eu sou um

mecânico". E ao se colocar no desenho, temos e reiteração do uso da primeira pessoa causando também

o efeito de proximidade.

. Figura 11 – "Mecânico" Aluno 5ª série da EJA – Escola José Lemos de Miranda

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Já o desenho da aluna Diana foi construído na vertical. Parece ser plano, embora apresente uma certa

profundidade: no primeiro plano em azul e laranja, desenhou uma lata de lixo grande. Em segundo plano,

uma jovem de sapato de saltinho marrom, vestido amarelo e cinto marrom cabelos soltos, pretos de

lacinho rosa. À direita segura um balde verde, na mão esquerda segura uma vassoura roxa, um pouco

mais ao alto uma escova e um galão de sabão. Pegando toda parte superior da folha, objetos de limpeza:

vassoura, rodo, balde e varal com panos de chão e ,sobre os objetos, a frase: “Auxiliar de serviços

gerais”. Ao me entregar o desenho ela falou: "Essa sou eu, professora". Ao "figurativizar" elementos do

seu mundo natural e ao afirmar isso no verbal, constatamos um efeito de proximidade. Ao nos mostrar

que trabalha e limpa o chão vestida como quem vai a um passeio, ela quer expressar que sente prazer

no que faz. Podemos perceber uma oposição: trabalho versus lazer, o que para alguns pode provocar

uma estranheza.

4.6 INTRODUÇÃO AO CADERNO CAPITAL E TRABALHO

SÉTIMO ENCONTRO COM O GRUPO 1

Figura 12 – "Auxiliar de limpeza" Aluna da 5ª série da EJA – Escola José Lemos de Miranda.

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Figura 13 "Zero Cruzeiro", de Cildo Meireles 1974/1978 6,5x15,5cm

Figura 14 – "Little Pillow", de Jac Leiner 1991 – 21,6x46,5cm

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Os encontros com Grupo 1 foram sempre foram alegres e participativos. Quando chegamos ao caderno

dois, até o aluno portador de deficiência auditiva já estava integrado, apesar de dois outros alunos já

terem se evadido, e a aluna Ana Cristina (com problemas com a audição) não estar freqüentando as

aulas.

Entreguei as obras e, quase em coro, os alunos pediram: "Ah, professora, vamos fazer a leitura dessas

obras conversando, sem precisar de escrever hoje, por favor {...}". Acabei concordando, estávamos

quase no final de outubro. Dei um tempo para que eles olhassem profundamente para as obras, depois

perguntei o que viam: Um disse: "Estou vendo um homem pelado com as mãos na cintura dentro de um

círculo". Um outro contestou: "Já eu vejo um índio, nu, com as mãos no bolso, enfim, pensando na

vida". A primeira retrucou: "Eu disse a mesma coisa, afinal índio também é homem, se bem que tem

gente que pensa o contrário, como aqueles menino que colocaram fogo em um lá em Brasília,

lembram?". A aluna Carla disse: "A leitura da imagem que eu fiz foi a seguinte: estou vendo a

reprodução de uma nota de zero cruzeiro com um símbolo de uma pessoa nua que eu não sei se é

homem, se é mulher, um índio ou uma índia. E do outro lado da cédula tem um homem de costa dentro

do símbolo da cédula". Nesse momento, o murmurinho: "Claro que essa foto é de homem, olha o 'bilal'

dele ! Pra ser mulher tinha que ter peito! E essa pessoa é reta como uma tábua". O riso foi quase geral.

Essa descrição, ao mesmo tempo em que mostra o nível de "descontração" da turma, expressa a

tentativa de observar as marcas e as figuras presentes no texto para uma leitura mais aprofundada.

Já a aluna Nair acrescentou: "Bem, professora, se a gente for seguir os passos feitos na leitura das

obras sobre o tema trabalho, então eu vou falar que vejo uma nota de zero cruzeiro. Do lado esquerdo

está escrito Banco Central do Brasil. Vejo também a foto de um homem pelado com a mão na cintura,

provavelmente fez ou vai fazer xixi no mato. Do outro lado da moeda, do lado direito, vejo a foto um

homem de costa pra gente e de frente para o muro, fazendo não sei o quê, parece que ele está

encostado no muro". Aqui a aluna tenta atribuir significado ao que olha. Para Pillar (2002), é só quando

se passa do limiar do olhar para o universo do ver é que se realiza o ato da leitura e da reflexão.

O Sr. Chico olhava para a obra de Cildo Meireles e falou: "Eu não consigo entender como isso pode ser

arte, pois eu vejo o que pode ser uma montagem sobre a moeda cruzeiro: de um lado, a foto de índio e,

do outro, um homem encolhido num canto de um muro, ou com medo ou fazendo xixi, é estranho, não

sei se eu colocaria isso na parede [...]". Há nessa fala uma concepção de arte em que a existência dos

suportes tradicionais é uma condição de aceitação. A obra de Cildo Meireles abandona os suportes

Figura 15 – "Malabarismo", de Rubem Grilo 1984 – 23x33cm

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tradicionais: ela não é uma pintura, ela não é uma escultura, ela é uma gravura que, entretanto, não

necessariamente pode ser emoldurada, pois, por ser uma apropriação da moeda brasileira, possui o

tamanho da cédula, é natural que o aluno não a reconheça como arte.

Depois de todos esses comentários, chamei a atenção para o avanço que eles conseguiram na leitura

da obra do Cildo Meireles, em comparação com as primeiras leituras, quando diziam :"Vejo

trabalhadores". Acrescentei que, quando a Nair e o Sr. Chico disseram que viam a foto de um homem ou

a representação de um homem, eles tinham compreendido que obra não é o real que está representado,

é sempre a impressão do artista sobre o real além de ele poder inventar e tornar "real" algo de sua

imaginação.

Depois, seguindo os passos propostos no arte br, chamei a atenção para os detalhes que formam a

obra: o tamanho, pedi que pegassem a régua e olhassem a medida de 6,5 de altura x 15,5 de largura,

que observassem as palavras impressas, a numeração, os desenhos impressos, as cores, as datas e a

assinatura. Enfim, como já havia sido dito por eles, a obra representa uma cédula de dinheiro brasileiro.

Se é arte? Para responder ao Sr. Chico e tantos outros, fomos para o passo seguinte: O olho o que

percebe? Para produzir a obra o artista baseou-se na nota de 10 cruzeiros, uma moeda oficial que

circulou no Brasil na época em que a obra foi produzida: de 1974 a 1975. Uns seis alunos se lembravam

da época do cruzeiro, alguns eram crianças, outros adolescentes e jovens. Primeiro ponto: A cédula tem

valor zero.

Continuamos olhando para as figuras principais (efígies), falei que esse era um índio Craô, sobrevivente

de um massacre sofrido por sua tribo a mando de fazendeiros, em Goiás. Do outro lado, um interno de

um hospital psiquiátrico. Então, disse-lhes que todos os detalhes que compõem a obra não estão ali por

acaso; existiu uma intencionalidade, para construir sentido. A moeda é de zero cruzeiro, como o valor

dado aos índios e aos doentes mentais. A Dominguinhas disse: "Professora, essa obra é muito atual,

porque índio e doidos continuam um zero à esquerda! Como a colega disse agora há pouco, ainda se

coloca fogo em índio, toma as terra deles, uns viram midingos. Não vê os índios de Aracruz?,

antigamente as pessoas tinha vergonha de dizer que tinha um louco na família, hoje também. Tenho uma

conhecida que o marido largou dela porque tiveram uma filha com problemas mentais. Ela teve que

cuidar sozinha, e olha que a moça hoje dá trabalho". Aqui percebemos que a aluna conseguiu

estabelecer relações do contexto que a obra foi produzida com a conjuntura atual.

A partir da fala da aluna Dominguinhas, outros alunos começaram a falar também sobre os excluídos de

hoje: desempregado, o negro, o índio, deficientes, o pobre.

Um aluno achou muito tempo quatro anos para produzir uma obra. Quis saber se, nesse período, ele

criou outras obras. Vimos a diferença entre os que, com cinco ou dez minutos produzem um trabalho e

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acha que está bom e já passa para outro e, dificilmente, voltam para o trabalho iniciado, pois acham

chato e aqueles, como o Cildo Meireles, que trabalham o tempo que achar necessário num mesmo

trabalho em busca da perfeição. Ninguém conhecia a técnica da litografia usada pelo artista na produção

da obra "Zero Cruzeiro" assim como a técnica de off-set. Depois que souberam que off-set é um processo

gráfico de impressão e reprodução, todos disseram conhecer uma fotocopiadora. Para concluir a aula,

disse que uma obra pode nos envolver tanto pela beleza como pela estranheza. Deixei como sugestão

que cada um criasse uma moeda, usando sua imaginação, desde que falasse do valor e desvalor dado

ao dinheiro pela sociedade do século XXI.

OITAVO ENCONTRO

Nesse dia, continuamos a leitura das obras. Faltava ainda desconstruir e construir as obras de Jac

Leirner e Rubem Grilo, mas o Lucas (deficiente auditivo) pediu para ficar com a obra de Cildo Meireles,

pois não tinha terminado o desenho e ela era a sua referência. Por um lado, fiquei extremamente feliz,

pois, no início da pesquisa, ele não se envolvia; por outro lado, percebia o limite desse envolvimento, pois

eu não consegui me comunicar com ele de forma que ele pudesse compreender o percurso da leitura das

obras.

Pedi que observassem a obra de Leirner. Perceberam que, como na obra de Cildo Meireles, essa obra

também fala do tema dinheiro, porém, enquanto o segundo elabora uma cédula baseada em outra, já

existente, o primeiro apropriou-se de cédulas de dinheiro em circulação na época em que produziu seu

objeto e interferiu para construir outro significado. Uma aluna falou: "Nessa obra o dinheiro tem mais

valor, pois está emoldurado". Outro disse também: "Nesse trabalho ele mostra que um dólar tem o

mesmo valor que o dólar ou até mais". Perguntei como ele poderia afirmar isso e ele respondeu: "Ora,

professora, 100.000 cruzeiro está do lado de 1 dólar". Provoquei ainda mais a turma, perguntando do que

eles se lembram quando vêem juntos dois objetos conhecidos, como travesseiros e dinheiro. Disseram

que, inicialmente, não perceberam que se tratava da construção de um travesseiro, e uma aluna falou

que, embora não soubesse que se tratava de um travesseiro, tinha percebido um certo volume. Expliquei,

então, o processo de construção da obra e, respondendo à provocação anterior disse-me: "Quando eu

vejo um 'travisseiro' de dinheiro, lembro de antigamente. Muita gente guardava dinheiro no cochão, e

travisseiro é quase igual, no sentido que lembra sono e cama. Hoje travisseiro e dinheiro lembra sonho

de ganhar um aumento ou ganhar na loto. De vez em quando eu sonho com isso" .

Essa obra não provocou tantas discussões como a do "Zero Cruzeiro", então pedi que pegassem as

obras, observassem as semelhanças e diferenças entre uma e outra. Falei do caminho percorrido por Jac

Leimer até chegar a esse resultado. Acrescentei que, embora a reprodução da "Little pillow" se

apresentasse na prancha na forma bidimensional, o objeto original é tridimensional, possui volume,

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largura. Conceituamos o que é tridimensional e observamos como, muitas vezes, um desenho ou uma

foto pode nos dar essa ilusão.

Já a obra de Rubem Grilo, num primeiro momento, provocou repulsa e estranheza. Uns disseram que era

feio, outros disseram que a obra era triste, uns viram cobra que cuspia moeda em vez de torneira, outros

viram burros em vez de coelhos, porém não observaram que os objetos entram na cartola em vez de

saírem. Todos disseram que os objetos estavam saindo da cartola e falaram que o desenho não era

colorido, apenas preto e branco, mas perceberam algo estranho na cena que parecia um circo. Uma

aluna comentou: "O sujeito que esta fazendo o malabáris parece estar com uma cara desesperada e o

mágico sinistro". Outra aluna continuou: "Eu acho que ele é o dono do circo está obrigando o outra

pessoa da obra trabalhar para ele como e está ficando com todo o lucro, por isso ele ri maldosamente

enquanto o outro sofre". Aqui eles conseguiram perceber a crítica social construída pelas figuras:

moedas, cartola, mágico.

A partir da fala das alunas, acrescentei que poderíamos fazer uma analogia da manipulação do dono de

um circo sobre o malabarista com um país poderoso manipulando, os países mais pobres, pois indo ao

contexto em que a obra foi produzida, podemos observar que, em "Malabarismo", o artista alerta para os

problemas que a globalização causa no mundo.

Chamei a atenção também para a técnica usada pelo artista: a xilogravura, as luzes e a sombra

presentes na obra, assim como me referi à ironia do artista ao falar sobre dinheiro e trabalho. Falamos

de como cada um dos três artistas tiveram um jeito todo particular de abordar o mesmo tema,

considerando os espaços e tempos de cada um e o contexto social e político em que cada um estava

inserido. Ao final da aula, o Lucas me mostrou que estava fazendo uma moeda na folha de papel ofício.

NONO ENCONTRO

Todos os dezesseis alunos entregaram os desenhos que produziram sobre a temática apresentada.

Todos falaram do valor e desvalor do dinheiro. Como foi dito, apenas alguns serão abordados.

O Sr. Chico desenhou a representação de uma moeda, frente e verso, sem se preocupar se ambas

tinham o mesmo tamanho: na frente, ele colocou o valor 10 centavos e o ano 2000, ao lado desenhou

um pão, abaixo do pão escreveu: “valia um pão”; no verso, desenhou o rosto de uma mulher e sobre a

cabeça da mulher, colocou a data 2004 e abaixo a palavra “Brasil”, ao lado da moeda desenhou duas

balas. Nesse trabalho, ele discute a desvalorização que o real vem sofrendo.

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O

trabal

ho que mais me emocionou foi o de Evandro (O adolescente com deficiência auditiva, lembram-se?). Foi

a prova de que, apesar da minha deficiência em relação à linguagem de libra, consegui de alguma forma

envolvê-lo no processo com paciência e esforço. Ele usou toda a extensão da folha de papel ofício para

desenhar: na parte superior da folha, com números e letras trabalhadas escreveu: “1974 Riode janeiro”;

logo abaixo, também com letras grandes e trabalhadas: “Banco Central do Brasil”; no centro da cédula, o

símbolo: “R$” dentro de um enorme círculo; abaixo: “ZERO CRUZEIRO” e, abaixo da palavra “Zero

Cruzeiro”, o dia da semana, com o mesmo tipo de letras usadas anteriormente: SEGUNDAS-FEIRA, no

canto direito da folha, ele desenhou, em tamanho menor, o verso da moeda; no alto, em letras

trabalhadas, ao lado do Rio de janeiro escreveu: “VITÓRIA”; sobre um fundo grafite; escreveu mil:

149,994,50, abaixo desenhou o que parece ser um ovo frito; na parte externa, ainda do lado direito,

assinou e escreveu: BOA NOITE. Percebemos uma apropriação da nota de "Zero Cruzeiro" e faz

Figura 16 – "10 centavos" – aluno 5ª série da EJA – Escola José Lemos de Miranda

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interferência se colocando como sujeito, ao datar a nota e fazer uma saudação, criando, assim, um efeito

de proximidade.

È importante ressaltar que, depois do caminho percorrido para as leituras das obras, todos da sala

concordaram que o trabalho desenvolvido tanto pelo Rubem Grilo, como por Cildo Meireles e Jac Leirner

são obras de arte, embora alguns disseram ter preferência pelas obras que retratam belas paisagens

marinhas ou flores, árvores, etc. Enfim obras bonitas, com muitas cores, obras que as pessoas olham e

entendem sem " [...] ter que sair fumaça da cabeça, de tanto pensar e pensar". Entenderam que obras

falam sempre sobre quem a produziu, seu tempo e o seu lugar.

DÉCIMO ENCONTRO

Nesse dia, levei o filme “Ou tudo ou nada” para fechar a temática capital e trabalho. Quando cheguei à

escola, a pedagoga e professora de Português estavam preocupadas e me informaram que o último dia

de aula seria 13 de dezembro, inicialmente acreditávamos que o calendário iria até o dia 20.

Considerando que, no dia 13, eles iriam à escola só para pegar o resultado, a minha pesquisa tinha de

Figura 17 – "149, 994, 50 mil" – Aluno 5ª série EJA – Escola José Lemos de Miranda

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terminar dia 6 de dezembro. Em síntese, além dessa aula eu teria apenas mais uma. Tive que refazer o

meu planejamento: o filme tem aproximadamente duas horas de duração, para que eu conseguisse

concluir a apresentação, o professor de Geografia generosamente cedeu a quarta aula e a professora de

Português mais uma aula na quinta-feira.

DÉCIMO PRIMEIRO ENCONTRO

Este encontro iniciou-se com a apresentação da segunda parte do filme. Durante a discussão sobre o enredo, os alunos perceberam a relação do filme com as obras lidas durante o percurso de intervenção com o tema Trabalho e Capital e Trabalho, porém disseram que perderam muitas partes do filme, pois tiveram dificuldades em acompanhar o enredo, por ser um filme legendado. Avaliação esta também apresentada pelo Grupo 2.

Durante esse encontro, foi realizada também a avaliação de todo percurso de intervenção, quando os

alunos relataram suas mudanças e concepção em relação à disciplina de Arte, a partir dos passos de

leitura propostos na intervenção. Essas mudanças foram apresentadas e relatadas em forma de

depoimentos, que serão apresentados a seguir:

"A aula de Arte foi muito proveitosa para meu desenvolvimento mental e tenho muito cuidado ao passar

em algum lugar que esta construindo, agora lembro de olhar mais para ver se tem arte, observo mais a

arte que está ao nosso redor. As aula fez nós derpertá para a beleza da arte, fez a mente ficar mais ativa

e muitos outros desenvolvimento para com a gente” (DOMIGUINHAS).

“A minha visão que eu pude perceber foi transformada depois das aulas que tivemos. Pude perceber na

minha vida depois de setembro até agora que passei a observar mais as coisas nas ruas vendo altidor

quando passo, vejo que estão tentando vender alguma coisa, também estou mais informada porque a

arte esta dentro de nós estou muito satisfeita com as aulas que tive quando pude estar presente nas

aulas foram muito positivas. Agora tenho ótimas idéias quando vejo um quadro em exposição ou até

mesmo quando vejo um olhar de um midingo ou o sorriso de um estudante. Isso é arte" (RUTH).

"Foi maravilhoso estudar com a Zezé, porque passei a entender mais ao olhar nos quadros e nas obras

de arte e comecei a entender melhor. Agora fiquei mais atenta e olho com mais atenção e Comecei a

perceber vários significados das obras de arte etc” (AMANDA).

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"Eu gostei muito porque comecei a observa que na vida não é só estudar matérias, mais sim observa

que a arte é uma coisa muito importante, eu Comecei a entender melhor a vida da arte e a saber sobre

as artes” (JULIO).

"Eu gostei muito da sua participação na aula da professora Luzia, porque nas aulas que eu participei eu

aprendi muito"( NAIR).

"Nestas aulas de Arte eu gostei muito porque aprendi muito mais as coisas de arte. Foi muito

interessante ver aqueles homens trabalhando, fiquei impressionada em vê-los então cada vez que passo

em lugares que estão trabalhando em arte, eu tenho que parar para aprender mais” (JANE).

"Apesar de não ter participado de todas as aulas eu gostei muito. Achei muito legal pois você procura

ensina com amor. Espero Ter outras oportunidade”( NEUZIANE).

“Eu Chico, estudo na escola José lemos de Miranda. No decorrer do segundo semestre estudamos em

algumas aulas artes, analisamos obras de alguns artistas e falamos da desvalorização da moeda,

trabalhadores em obra. Isto foi muito importante porque na vida tem sempre que aprender cada vez mais

e melhor. Devemos avaliar muito porque serve a vida. Obrigado minha professora Zezé por mais um

conhecimento ( CHICO)

"Durante o período que estudei arte a partir de setembro, tive uma visão mais ampla sobre a arte, pois

nem tudo é como parece ser, pois nas pinturas o pintor buscou mostrar como se vive nosso povo através

do dinheiro desvalorizado, da falta de segurança no trabalho. Isto nos leva a ver a arte de um modo

diferente como a vida é na realidade” (RENATO)

"Eu sempre fui uma admiradora de artes, mas eu tinha dificuldade em interpretar artes. Mas

com as aulas que tive com você Zezé, passei a ver obras de arte com outros olhos. Passei a

freqüentar salas de artes, observar e ler artes, sei que estou aprendendo mas quero a cada dia

aprender mais. Aprendi muito sobre acidente de trabalho e adorei fazer aquela entrevista sobre

trabalho e seus trabalhadores” (DIANA).

"As aulas de arte no começo eu não estava gostando mais depois eu Comecei a gostar porque saiu um

pouco da rotina e mostrou um pouco da realidade do dia-a- dia, e também a falta de segurança nos

trabalhos. [...] estudamos também sobre dinheiro que tinha valor e agora ninguém lembra mais do

dinheiro do tempo antigo e também umas pessoas com os pés calejados de tanto trabalhar" (CARLA)

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Nos depoimentos dos alunos do Grupo 1, sobre o percurso de nossa intervenção, tive a confirmação de

que houve uma mudança de estado nos sujeitos envolvidos no processo. Eles passaram a agregar valor

à disciplina de Arte e a querer-poder ler imagens. Observei, também, a reiteração do uso da primeira

pessoa, o que provoca um efeito de proximidade, característica presente em todos (ou quase) os textos,

assim como o valor de euforia, pois avaliaram como positivo o processo de intervenção: "Foi maravilhoso

estudar arte com você!"; "Minha vida mudou a partir de setembro, passei a freqüentar sala de arte"; ou

"As aulas de arte me fez entender melhor a vida", ou, então, quando a aluna diz que, no início, ela não

estava gostando e, no decorrer do caminho, ela passa a gostar, quando percebe que arte não está

separada da vida. Vejam: "No início, eu não gostava e passei a gostar".

Durante o processo de intervenção no Grupo 1, percebi um envolvimento nas atividades propostas. Isso

ocorreu porque houve uma relação contratual com o grupo. Aceitando a manipulação, os alunos

passaram a querer ser leitores de imagens e acreditaram na minha competência para atingir tal objetivo.

Durante quase toda a intervenção, o Grupo 1 demostrou um estado de euforia. Nossos encontros eram

vibrantes, estavam aberto para o novo e para romper preconceitos em relação à disciplina de Arte. Como

evidência dessa afirmação, podemos retomar o primeiro encontro, quando alguns achavam que seria

mais proveitoso não perder as aulas de Português por ser uma disciplina mais importante que a

disciplina de Arte. Estava estabelecida uma hierarquia de disciplina. Também observei que, nesse

processo de leitura, se reconheceram nas obras "no outro" que cada uma apresenta e, nesse

reconhecer, procedeu-se à a sua inclusão como sujeito neste mundo contraditório em que vivemos.

Percebi a valorização da auto-estima na dignidade das profissões apresentadas pelos alunos (textos

visuais, desenhos), por exemplo: a auxiliar de serviços gerais que vai trabalhar como quem vai a um

passeio, e o mecânico que estufa o peito ao carregar sua maleta de ferramenta, como quem diz: "Eu sou

um mecânico!". Além disso, na realização dos trabalhos, identificamos uma proposição autoral plástica.

Em relação ao tema Capital e Trabalho, ao produzir a moeda, todos aproveitaram a forma do papel ofício;

não ousaram adotar uma forma diferente ou um outro suporte. Porém, no desenvolvimento do tema,

soltaram a imaginação, trabalharam elementos do mundo natural, fizeram analogias com suas vidas e

com a vida social e política de nosso país.

4.7 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA PARA A DIREÇÃO DA ESCOLA:

GRUPO 2

Fui pela primeira vez à escola Geraldo Costa Alves, conversar com a diretora e a coordenadora sobre o

meu projeto de pesquisa. Por coincidência, encontrei o coordenador do turno matutino, que havia sido

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coordenador na Escola José Lemos de Miranda no início de 2003, quando eu era designada Temporária

(DT) na rede Municipal de Vitória. Ele fez elogios ao meu trabalho e reiterou a pertinência da pesquisa. A

diretora disse-me que acreditava no potencial da arte como conhecimento, pois uma de suas

graduações era em Educação Artística, portanto se colocava à disposição para o que eu precisasse.

Explicou que no supletivo os alunos só terão aula ao 2º módulo (ano), mas que eu poderia trabalhar

com o 1º período, assim, quando eles chegassem ao 2º período já estariam familiarizados. Disse que eu

poderia conversar com a professora de Português. Ela chamou a professora e fez as apresentações,

apresentei-lhe minha pesquisa, ela aceitou contribuir. Combinamos também que eu lhe passaria uma

cópia dos textos produzidos pelos alunos. Como ela iria aplicar avaliação no 2º horário, não pude falar

com os alunos, ela disse que falaria com eles e que provavelmente aceitariam. Combinamos que eu

estaria trabalhando com os alunos toda terça-feira, a partir do dia 14-9-2004 na 2ª aula. Disse-me ainda

que era uma sala de EJA, mas que predominava os jovens de 17 a 25 anos, havia apenas uma aluna

com mais de 30 e menos de 40 anos.

4.7.1 Início Da Pesquisa Com O Grupo 2

PRIMEIRO ENCONTRO

Cheguei adiantada à escola para meu encontro com a turma do primeiro ano do ensino médio, pois

entraria na segunda aula e apenas tinha acabado de bater o sinal de entrada. Porém, a professora de

Português, com quem tínhamos, juntamente com a diretora, acordado o trabalho de pesquisa, não pode

comparecer à escola por problemas de foro pessoal. Já havia pensado em voltar em um outro dia para

conversar com a turma, quando a coordenadora sugeriu: "Se você quiser, pode assumir a turma, pois

eles estão de aula vaga". Perguntei se eles sabiam que eu viria e ela não soube responder. Por

experiência, sabia que a primeira aula não era o ideal, pois os alunos chegam aos poucos.

Cheguei à sala e encontrei apenas uns cinco alunos. Apresentei-me e perguntei se a professora havia

falado que eu viria. Duas alunas disseram que sim, e os outros três haviam faltado no dia em que ela

falou da minha pesquisa. Então, expliquei-lhes novamente, falei que eu era aluna do curso de Mestrado

em Educação da UFES, que minha linha de pesquisa era Educação e Linguagem e que estava

pesquisando sobre o processo de construção de leitores de imagem na educação de jovens e adultos. A

minha proposta era trabalhar com uma turma de 5a série, e uma do 1o ano de ensino médio.

Fundamentei a importância da pesquisa e, nesse momento, chegaram mais dois alunos. Um deles

perguntou se eu era a professora substituta, daí repeti tudo de novo. Perguntei se tinham alguma

pergunta sobre o que eu tinha falado. Fez-se o maior silêncio. Indaguei, então, se eles aceitavam

participar da pesquisa. Uma aluna levantou a mão e perguntou se ganhariam ponto. Respondi a mesma

coisa que falei com o Grupo 1. Sem muita convicção, eles aceitaram participar. Então, coloquei no

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quadro os cartazes para serem lidos por eles. Dei o mesmo encaminhamento dado ao grupo anterior.

Chegaram mais duas alunas, fui até elas, me apresentei e falei da proposta de trabalho. Perguntaram-me

apenas se eu podia trabalhar apenas na primeira aula para que a professora de Inglês, que tinha

acabado de chegar, adiantasse a última aula, para eles irem embora na quarta aula. Concordei para não

criar uma resistência já no primeiro encontro.

4.8 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS TEXTOS PRODUZIDOS PELOS

ALUNOS

Dos textos produzidos, seis foram sobre o cartaz da Coca-Cola, dois sobre o cartaz de propaganda do

filme Matrix e um sobre a propaganda da Bottero, três sobre a Grendha, um sobre o filme Tomb Raider. A

recepção da proposta, apesar de aceita, foi muito fria, se comparada com a turma da 5a série.

Automaticamente, pegaram seus cadernos e canetas e começaram a escrever. Não se levantaram para

olhar de perto as imagens, alguns colocaram a carteira próxima do colega para conversar sobre assuntos

diversos enquanto escreviam o texto.

Texto sobre o filme Matrix

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O texto do aluno Douglas não entra muito na descrição, mostra um certo distanciamento numa relação da

terceira pessoa do singular, o que provoca objetividade ao discurso e diz da competência do enunciador

para convencer o espectador a locar o filme: "No cartaz do filme Matrix está mostrando muitas cenas de

ação e muitas cenas de efeitos especiais. O cartaz está bastante legal e deixa as pessoas bastante

curiosas para assistir o filme". Assim como o texto da aluna Débora. Ela afirma que existe um

enunciador competente para divulgar o filme, não se prende muito na descrição do cartaz e, no final, se

coloca no texto, pois nos dá a entender que já assistiu ao filme: "O cartaz do filme [Matrix] chama

bastante atenção no cinema, a pessoa que divulgou teve bastante criatividade. Olhando o cartaz da uma

certa vontade de alugar a fita e ver o filme, prestando bastante atenção no filme a gente ver que o filme

que transmite bastante coisa pra gente" .

TEXTO SOBRE O CARTAZ DO FILME TOM RAIDER

Quanto ao texto do aluno Marcus Paulo, ele percebe as estratégias de manipulação e reconhece a

competência do enunciador na produção da propaganda do filme e relaciona a figuratividade e

elementos do plano de expressão, como a explosão, a idéia de contraste entre figura central e fundo

numa relação figura/fundo: "O truque de publicidade que o publicitário usou mistura a sensualidade da

atriz com a explosão que em contraste com o fundo da fotografia, passa para a população que o alvo dos

publicitários, que o filme é pura ação e tem uma bela atriz que esbanja sensualidade durante o filme

inteiro".

TEXTO SOBRE A COCA-COLA

Já o texto do aluno Alberto Carlos, fica no campo da descrição. Ele não aprofunda todos os elementos,

nem do plano de expressão, nem do plano de conteúdo: "A nova promoção da Coca-Cola light trás vários

relógios, são 2000 que brilha. No cartaz tem só Coca Cola em latas (essa é uma informação incorreta,

Figura 18: Cartaz Propaganda: filme Matrix Revolutions

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pois o cartaz mostra a reprodução de recipientes de vidro e plástico de Coca light). Tem uma lua que

brilha sobre a sereia no mar, um fundo de uma lata e tampa de plástico e ferro, relógios pretos, coloridos,

cinza, vermelho com preto e verde". Na verdade, ele não aprofunda, apenas enumera os objetos e as

cores ficando no que se chama superfície do texto, sem aprofundar na sua leitura.

O texto da aluna Janaína também fica no campo da descrição, sem aprofundamento: "Esse cartaz foi

fotografado a noite . Está sendo divulgado a Coca Cola light prêmio de relógio, achando na tampinha ou

no fundo da garrafa, se estiver premiada, a pessoas ganha um relógio". Quando ela me entregou o texto,

perguntei-lhe como ela podia afirmar que o cartaz tinha sido fotografado à noite, então ela pegou o texto

de volta e acrescentou sua impressão: "Eu acho que foi fotografado à noite por causa do cenário escuro

e com sinais no céu como se fosse estrelas". Aqui ela estabelece uma relação da figuratividade do cartaz

com elementos do mundo natural.

O aluno Jorge Tadeu é crítico, embora reconheça a competência do enunciador, para atingir um possível

comprador, percebe e desconfia que o prêmio oferecido é uma estratégia, pois começa escrevendo: "A

Coca-Cola está demonstrando com garantia o seu produto, como já provou que é a melhor em colidad,

como conquistou todo o país agora esta fazendo um incentivo para conquista o recordi de venda por isso

está dando vários premo em sua embalagem. Como relógio em estilo modelo diferente esta mostrando

com um valor de um refrigerante você pode ganhar um relógio gratis".

Já o aluno Vinícius escreve um texto completamente eufórico e, na descrição, cria um texto publicitário.

Percebe as estratégias de sedução presentes na imagem, como a composição das novas embalagens,

os prêmios e a sereia e as utiliza no texto verbal: "Chegou a nova Coca-Cola Light em novas formas pra

você escolher. Você saboreia o melhor refrigerante e concorre a milhares de relógio (...). Ganhou essa

noite no mar? - Tem uma vista de uma sereia linda e muito gostosa. Está saindo do mar as novas

embalagens de Coca- Cola em novas formas. Beba o melhor e ganhe vários prêmios!". Dias depois, ele

disse que construiu seu texto dessa forma, pois como chegou atrasado, um colega lhe disse que quem

fizesse uma boa redação a partir do cartaz, ganharia um emprego de vendedor da Coca- Cola. Os

colegas que estavam próximos riram da ingenuidade dele ao se deixar enganar.

TEXTO SOBRE O CARTAZ DA MARCA GRENDHA

Já a aluna Katarina, que escolheu o cartaz da marca Grendha, não se prende muito à sua descrição,

reconhece a competência do enunciador para elaborar uma propaganda criativa, porém mantém uma

relação de disjunção com ela: "A nova coleção grendha é legal para os jovens, que gostam de qualquer

novidade que os famosos usam. Particularmente eu não usaria esse chinelo, não é porque Ivete Sangalo

está usando que eu usaria, não gostei dessa coleção, não é nem um pouco bonita Esse cartaz está

muito bonito, com muita criatividade, por exemplo, quando ela aparece voando, da a impressão que o

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chinelo é confortável" . Aqui há uma disjunção, uma negação, mas, na continuidade do texto, há

novamente um reconhecimento da competência do enunciador em manipular para a compra.

No seu texto, a aluna Elisa se coloca também no texto, ao usar a primeira pessoa do singular,

provocando um efeito de proximidade, quando afirma "eu estou vendo" ou "eu acho". Começa

descrevendo o cartaz, embora não aprofunde o plano de expressão e nem tente entender as estratégias:

"Eu estou vendo várias borboletas coloridas, duas sandálias uma azul e uma laranja. A Ivete Sangalo

esta em cima de uma asa de borboleta. Eu acho que a propaganda que ao calçar a sandália você fica

livre como uma borboleta".

Já o texto da aluna Hellen é sucinto e nele ela sugere que nada está no cartaz por acaso, contudo não se

prende à descrição, não aprofunda o plano de conteúdo nem se coloca explicitamente no texto.

Reconhece a competência do enunciador, pois termina dizendo que todos querem comprar a sandália: "A

sandália chama atenção porque ela esta em cima da borboleta, e tem muitas cores vivas, como a

primavera, e ela se sente tão leve que parece que ela esta voando, e todos querem comprar."

TEXTO SOBRE O CARTAZ DA BOTTERO

Já a aluna Rosiane, que escolheu o cartaz da Bottero, faz uma leitura em que valoriza o objeto com

predicativos como: muito bom, muito conhecido, acompanhando a moda. No texto, ela não se prende à

imagem, traz suas informações sobre a marca: "Essa marca da Bottero é uma marca de calçados muito

conhecida pelas pessoas, e é feita de um material muito bom, é uma marca de calçados muito conhecida

pelas pessoas, e é feita de um material muito bom, é uma marca que sempre está acompanhando as

moda do momento. E como hoje em dia tudo que é da moda é a onda dos jovens, porém é não só os

jovens que gosta de andar na moda hoje em dia. Quem não gosta de andar na moda não é?". Enfim, ela

reconhece, em seu texto, a competência do enunciador em acompanhar a moda e entra completamente

em conjunção ele.

SEGUNDO ENCONTRO: Introdução do arte br – "Caderno colher o pão de cada dia"

Voltando ao segundo encontro, cheguei à sala na primeira aula e encontrei apenas quatro alunos. Depois

da saudação inicial, dei um retorno dos textos produzidos por eles na aula anterior e conversamos sobre

a função da propaganda, as estratégias usadas pelos publicitários. Disse-lhes que as questões foram

respondidas. Alguns percebem mais claramente as estratégias dos enunciadores. Porém, lembrei que os

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cartazes poderiam ter sido mais explorados e para isso teriam que aprofundar o plano de expressão e o

plano de conteúdo presentes na imagem.

Expliquei sinteticamente o que no texto é chamado de plano de conteúdo e de expressão e acrescentei

que seriam mais vivenciados na leitura das obras presentes no material educativo arte br, selecionadas

para essa pesquisa. Uma aluna concluiu: "Professora, em resumo, você está dizendo que os nossos

textos ficaram superficiais. Agora eu confesso que não tenho paciência para ficar observando os

detalhes, principalmente de propaganda". A partir dessa fala, conversamos um pouco mais sobre a

função da propaganda na indústria cultural em que estamos inseridos.

Enquanto isso, chegaram mais alunos e demos início à intervenção com o arte br a partir do caderno

Trabalho. Como nesse dia eles, praticamente, estavam sentados em grupos, exceto uns três, que

individualmente estavam espalhados pela sala, pedi que se sentassem em alguns dos grupos, e

apresentei a proposta do trabalho. Em coro, geral, todos pediram para produzirem um texto só, para o

grupo, em vez de um texto individual. Disseram alguns que estavam cansados, outros admitiram estar

com preguiça, outros ainda falaram que não estavam inspirados. Argumentei o porquê da proposta de

texto individual, mas acabei deixando produzirem em grupo para ganhar tempo, mas disse que quem

quisesse poderia fazer o texto individual: segui a mesma orientação do Grupo 1.

Dois ou três minutos depois, eles disseram já terem observado o suficiente e queriam começar a

escrever. Provoquei para que olhassem um pouco mais as imagens e o trabalho ficou assim: um grupo,

só de menino, um grupo só de meninas e um misto.

No primeiro grupo, cada um escreveu uma frase sobre as obras. Em relação à obra de Sebastião

Salgado: "As duas obras fala da mesma coisa da escravidão e da pobreza"; "Eu vejo pessoas que

trabalha incessantemente em busca do seu pão de cada dia"; "Eu vejo pés de pessoas humildes e muito

trabalhadoras em busca de um futuro melhor"; " Eu vejo três pés de pessoas que trabalham na lavoura

para arranjar um jeito de mudar de vida. O que percebi: Que o chinelos deles são doados".

Quando o grupo terminou de apresentar a sua leitura sobre a imagem, perguntei como eles poderiam

afirmar que os chinelos eram doados e o Alberto Carlos respondeu: "Professora, olha para a cara dessas

pessoas! Foi interrompido por outro colega: "cara não Alberto, pés!”. Ele voltou a falar: "Pois é, olhe para

esses pés, eles não tem dinheiro para comprar chinelo, portanto só pode ter ganhado".

Todos concordaram, exceto uma aluna que disse: :" Quem vê cara não vê bolso", pois quando trabalhava

de vendedora, às vezes, chegava uma pessoa que ninguém dava nada por ela e surpreendentemente ela

comprava à vista. Eu acrescentei que realmente os pés da foto de Sebastião Salgado nos falam de muita

coisa, como trabalho, terra, tempo, pobreza, etc., porém não tem nenhuma pista na obra que nos leve a

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afirmar que os chinelos tenham sido doados, embora isso seja possível dentro de um contexto de

assentamento na luta pela terra, em que os assentados recebem doações das pessoas que se

solidarizam com a causa.

O grupo só de meninos continuou apresentando o texto coletivo agora em relação às obras: "Acidente

de trabalho" de Eugênio Sigaud e "Olaria " de Djanira:

”Na Obra de Eugênio Sigaud trabalhadores sem segurança no dia-a-dia de seu trabalho, alguns escravos

cansado outros exaustos. E obra de Djanira escravos trabalhando em um trabalho organizado e unidos

no mesmo ritmo de trabalho"

"A obra de Eugênio retrata um acidente de trabalho onde estas pessoas trabalham sem nenhum

equipamento de segurança e nessa época os acidentes de trabalho eram bem frequente".

Perguntei, também, como eles poderiam afirmar que os trabalhadores da obra de Djanira e Sigaud eram

escravos. Fez-se um silêncio, depois um deles falou: "Ué, porque são negros e estão trabalhando pra

burro, em péssimas condições de trabalho". Chamei a atenção para a época em que as obras foram

produzidas e o seu contexto, então poderíamos dizer que não representavam a escravidão, embora eles

tenha razão em dizer que, em especial, a obra de Sigaud fala das péssimas condições de trabalho pela

falta de equipamentos de segurança.

Perguntei se eles se lembravam de fatos marcantes da História do Brasil e do mundo, do período em

que Sigaud produziu "Acidente de Trabalho". Um brincou que era impossível saber, pois nem tinha

nascido nessa época; outra disse que não lembrava nem do que tinha comido no almoço; e outra afirmou

que o fato marcante foi o nascimento de sua mãe no ano de 1945. Ninguém se lembrou do final da

Segunda Guerra Mundial, ou da bomba que os EUA jogou sobre Hiroshima, como mostrei na linha do

tempo presente no material arte br. Depois de citado, todo mundo disse que já havia ouvido falar,

estudado, assistido a algum filme sobre a Segunda Guerra Mundial e a bomba de Hiroshima, porém

ninguém tinha ouvido falar de Art Brut, que é uma referência de estilo dentro da História da Arte em

produção naquela época, o que demonstra o desconhecimento do grupo sobre os movimentos

artísticos.

A aluna Rita de Cássia, que fez o texto individual, leu as obras da seguinte forma: "Vejo homens

trabalhando tipo em um depósito, e o mesmo construindo o que parece ser um depósito. A obra fala que

os trabalhadores querem fazer um depósito e fala por ilustração em uma tela. Todas as obras falam do

mesmo tema, mas com ilustrações diferentes, mas tudo com o mesmo significado". Percebi também uma

leitura superficial das imagens, em que ela não aprofunda, nem no plano de expressão, nem no plano de

conteúdo, embora ela perceba que a pintura não é a representação do real, quando diz: "Vejo homens

que estão construindo o que parece ser um depósito". Aqui ela apresenta uma tentativa de compreensão

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da imagem, mas volta à superficialidade, quando diz que, com ilustrações diferentes, todas as obras

falam da construção de um depósito.

Já o texto coletivo do grupo misto ficou assim: "São pés castigados pelo tempo, que eles foram escravos.

Percebe-se que eles foram muito maltratados pela escravidão. Essa obra fala sobre escravidão”.

"Acidente de trabalho, naquela época não havia segurança alguma! Por isso que morria muitos

trabalhadores".

"Na olaria mostra os trabalhadores fabricando os tijolos".

"Todas as obras falam do mesmo assunto".

Um fato curioso que se deu na construção desse texto é que eles levaram mais tempo discutindo como

construir uma redação do que nas análises das obras, porque alguns, lembrando-se das aulas de

redação, argumentaram que estavam errado eles se colocarem no texto. Jamais deviam escrever "Eu

vejo ou nós estamos vendo, ou ainda, achamos que", termos usados pela primeira redatora que, depois

de tantas críticas, desistiu da função e uma outra aluna assumiu o posto de redatora do grupo. O que

percebemos na análise desses textos é que nenhum deles fala dos elementos visuais, como chama

Ostrower: linhas, superfície, volume, cor e luz. Na semiótica, esses elementos estão contidos nos

formantes do plano de expressão e concretizam o plano de conteúdo.

TERCEIRO ENCONTRO

Nesse encontro, a professora de Português estava na escola, então fui para a sala na segunda aula. Os

alunos já estavam em grupo e, depois das saudações iniciais, ela me passou a palavra e disse aos

alunos que falaria sobre trabalhos valendo nota na aula seguinte, demorou de cinco a dez minutos para

que os alunos entrassem no clima da “aula de artes", como eles chamavam nossos encontros, pois

estavam muito preocupados com as notas de Português, e um aluno, por exemplo, não entendia como

tinha ficado com nota baixa, uma vez que havia me entregado todos os dois textos que eu havia pedido.

Ele achava que ela deveria considerar, pois eu estava dando aula no horário que deveria ser aula de

Português. Depois que a professora mostrou a pauta e explicou que, anterior à minha chegada à escola,

já havia passado vários exercícios para nota e ele não havia entregado, ele foi para o grupo, mas se

sentindo injustiçado e resmungando que não adiantava nada ter se envolvido na minha proposta de

trabalho, se a professora não considerou. Com essa atitude, ele nos fez acreditar que só se envolveu no

trabalho pela nota.

Pedi que continuassem nos grupos e entreguei as pranchas das obras e os postais. Como eles estavam

agitados por causa das notas, a professora oficial da turma solicitou de novo silêncio, disse que aquele

assunto já estava encerrado e pediu que prestassem atenção ao que eu estava falando. Ela foi lá para o

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fundo da sala, próximo de um grupo mais agitado. Nisso, entrou um aluno de outra sala para conversar

com uma pessoa da sala, depois chegou mais outro . Pedi que pegassem a prancha e olhassem para a

obra de Sigaud e fui chamando a atenção para as seqüências dentro do passo: "O olho o que vê ?" do

material arte br. Fui ao quadro e dividi a pintura em quatro partes. Nisso, a professora de Português me

chamou ao fundo e falou que o aluno Maiki sabia ler imagens e estava lhe dando uma aula de leitura

com a obra "Acidente de Trabalho ". Ele, todo orgulhoso, me falou que, na oitava, já havia feito uma

releitura dessa obra. Ele não quis falar para a turma sobre o que seus olhos viam, mas me disse dos

tons, do formato e falou que havia estudado um pouco a vida do artista. Perguntei por que ele não havia

falado desses detalhes no texto, e ele disse que deixou os outros escreverem, porque ele já conhecia a

obra e, além disso, estava com preguiça. Voltando para o grupão, continuamos a discutir sobre as obras

dentro da metodologia do arte br: "O olho que vê ", "O olho que percebe ", como havia feito no Grupo 1

(5a série), partindo da fala do Maiki e aprofundando. Como no Grupo 1, uma aluna achou que era perda

de tempo observar tantos detalhes numa obra. Segundo a aluna Marina, bastava eu responder se eles

tinham acertado ou não sobre o que falaram da obra, enfim o que o artista quis dizer com a pintura ou a

fotografia. Argumentei sobre a importância de observar esses elementos visuais numa obra, porque eles

não estão ali por acaso, expliquei que existe uma intencionalidade, pois a forma como cada artista usa

esses elementos, que nos mostra a expressão pessoal e única quando eles têm algo a dizer, como a

Djanira, Sigaud e Sebastião Salgado. Acrescentei que é esse mergulho na imagem que nos mostra o

sentido do texto visual, do que a obra está falando e como está falando. Nesse percurso de leitura, os

alunos puderam perceber que as três obras falam da relação entre ser humano e trabalho, cada um

mostra uma visão de mundo partindo do seu lugar e do seu tempo.

Falei também que essas obras estavam agrupadas dessa forma por terem sido escolhidas por um

curador . Mostrei que outras obras poderiam ser agrupadas nesse tema como a obra "Café", de Portinari.

Mostrei, então, a obra e iniciamos sua leitura. Antes de acabar a aula, entreguei uma cópia da poesia

“Operário em Construção” de Vinícius de Morais e disse para trazerem no nosso próximo encontro, que

iríamos trabalhar sobre o poema, repetindo, portanto, os procedimentos realizados no Grupo 1.

QUARTO ENCONTRO

Foi cancelado, pois todo o município de Vila Velha ficou alagado por conseqüência de uma forte

tempestade.

QUINTO ENCONTRO

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Neste encontro, a professora ainda estava de licença e, então, fui para a sala na primeira aula. Tinha

poucos alunos. Depois da saudação inicial, alguns perguntaram: "Professora, hoje você não vai pedir

para a gente escrever, não, né? Estamos cansados!". Argumentei, em tom de brincadeira: Como?

Vocês acabaram de chegar! Uma outra respondeu: "Por isso mesmo". Como uma aluna resmungou

sobre a inutilidade de ficar olhando imagem, uma vez que ela preferia que o professor de Matemática

adiantasse a aula, fingi que não ouvi e comecei minha aula anotando no quadro a citação de Sebastião

Salgado, presente no caderno do professor "Colher o pão de todo dia" presente no material arte br :

"As pessoas ainda não se dão conta da potência da imagem. Buscamos

durante muito tempo uma linguagem universal. Falou-se do esperanto, do

inglês e do latim. Finalmente descobrimos a linguagem universal que é a

imagem. A imagem que faço aqui no Brasil vai ser difundida em dez, doze

países, sem uma linha de tradução. Qualquer um que ler minha imagem, no

Japão vai compreender, quem ler minha imagem vai compreender; realmente é

uma escrita, uma linguagem diferente".(SEBASTIÃO SALGADO)

Depois da discussão sobre o texto, em que a maioria concordou, perguntei se eles tinham lido a poesia e

trazido o texto. Só uma pessoa tinha feito isso, confirmando a resistência para o envolvimento na aulas.

Então passamos para o passo: O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que invent a: conhecendo

trabalhadores e seus trabalhos. Começamos construindo um mapa de trabalho partindo das profissões

existentes na sala. Ficou assim: cinco alunos disseram serem apenas estudantes; duas afirmaram que

eram donas de casa uma por opção, outra pela condição do desemprego, antes foram vendedoras de

roupas e "caixa" de lojas; um declarou ser pintor em uma lanternagem; uma disse ser arrematadeira

numa facção e dois assumiram a condição de desempregados. Discutiram suas cargas horárias de

trabalho e o tempo de estudo. Por exemplo, a Janaína falou do tempo em que era vendedora e

trabalhava oito a dez horas por dia em pé, agüentando, muitas vezes, clientes chatos que acreditavam

estar sempre com razão, mesmo quando não tinham. Precisava apresentar-se bem arrumada,

maquiada. Era uma obrigação, não uma opção. Apesar disso, está buscando novamente trabalho na

área, mas a maioria pede o segundo grau completo. Um outro fator que dificulta é a idade, porque depois

dos 35 vai ficando mais difícil conseguir emprego na área.

Katarina também relatou que, em todos os lugares por onde passou como vendedora, ou caixa, também

sofreu com a carga horária: trabalhava das 8 às 20 horas, sem direito à passagem, levando duas horas

para chegar em casa, e ganhava somente um salário mínimo. Não gostava dessa rotina, mas se

sujeitava por necessidade. Viu isso acontecer com algumas amigas, também por falta de opção. Elas

precisam desse tipo de trabalho para sobreviver, e acredita que isso acontece com milhares de

brasileiros.

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A aluna acrescentou ainda que a obra de Sigaud, "Acidente de trabalho", a fez lembrar de um outro

acidente de trabalho, sofrido por seu primo. Ele tinha 26 anos e trabalhava como eletricista prático. Um

certo dia levou uma descarga de energia muito forte e morreu na hora. Trabalhava sem carteira assinada

e ficou "por isso mesmo". Trabalhava oito horas por dia, não gostava do trabalho, mas fazia para

sustentar os filhos, uma vez que ele não tinha estudo. Cada aluno tinha também uma história de acidente

para contar.

Voltando a falar de suas profissões, o aluno Maiki, que trabalhava como pintor de carro, disse não gostar

do trabalho, mas é o que aprendeu a fazer e precisa do salário. Trabalha também de oito a dez horas

por dia, dependendo do movimento. Como encaminhamento para a próxima aula, sugeri que

entrevistassem outros trabalhadores para conhecer suas tarefas. Como orientação, encaminhei algumas

perguntas:

1) Onde trabalham?

2) Quantas horas?

3) O que fazem?

4) Se prestam serviços e quais são eles?

5) Em que condições essas pessoas trabalham, se seguras ou inseguras, quais os riscos que correm de

sofrer um acidente de trabalho ou de desenvolver lesões por esforços repetitivos (LER), se gostam do

que fazem e se têm carteira assinada?

Disse que eles poderiam criar outras perguntas. Nessa altura da aula, duas pessoas já tinham saído e

um aluno de outra sala já tinha vindo conversar com o seu "grupinho".

SEXTO ENCONTRO

Foi cancelado devido a contratempo na escola, mas cheguei a conversar com os alunos assuntos

externos aos da pesquisa.

SÉTIMO ENCONTRO

Com todos na sala, iniciamos o trabalho. Apenas Elisa trouxe a pesquisa. Na verdade, ela não

entrevistou ninguém, porém respondeu às perguntas de acordo com suas observações no local de

trabalho: uma facção de roupas.

Coloquei o mapa de trabalho construído anteriormente no quadro, levei papel canson, giz de cera, tinta

guache, cola, jornal e revista, na mesa e pedi que eles representassem com pintura, desenho e colagem

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as profissões. No começo, alguns reclamaram que não sabiam desenhar. Um perguntou se, em vez de

ficar tentando, poderia ficar quietinho estudando para a prova de Inglês, depois acabou se envolvendo

parcialmente na atividade, pois procurou desenhar logo para estudar para a prova de Inglês.

4.9 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DESENHOS PRODUZIDOS PELOS

ALUNOS

Dos dezesseis alunos presentes na sala, seis desenhos representaram o espaço escolar, cada um a seu

modo. Só conseguimos reproduzir algumas imagens, pois as outras foram apenas contornados com

lápis numa tonalidade impossível de ser reproduzida, apesar da tentativa.

O desenho da Eduarda fugiu do estereótipo da casinha dos desenhos infantis. Ela representou a escola

em forma de um edifício azul. Na frente da escola um garoto sem o seu material escolar, no canto

esquerdo da folha saía um caminho e, sobre ele, um adolescente com um livro embaixo do braço,

representado de frente, não parece muito entusiasmado para chegar à escola: está estático e seu olhar

segue em direção oposta à escola. Provavelmente em dúvida se vinha para escola ou talvez, se

“gazeava” aula.

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Já a aluna Duda escreveu no alto da folha a palavra “estudante”, em letra maiúscula e na cor preta. No

centro da folha, um círculo contornado em preto, pintado de azul e, no centro desse círculo, uma

adolescente com o rosto coberto pelos cabelos, deixando à mostra apenas a boca, com o cotovelo

esquerdo sobre a carteira e o punho fechado, apoiando o rosto cabisbaixo. Existe uma completa

ausência de livro, ou qualquer outro material escolar. Só sabemos que é uma estudante pelo texto verbal

explícito na folha. Esse desenho parece representar uma sala de aula desinteressante, pois nos mostra

uma adolescente alheia ao que se passa ao seu redor.

Figura 19- "Estudante" – Aluna do 1ºD da EJA – Escola Geraldo Costa Alves

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Saindo da representação da escola, o aluno Wando escreveu no alto da folha a palavra: desempregado, logo abaixo fez um desenho bem elaborado de um jovem quase adolescente, de cabelos pretos, encaracolados, um pouco despenteado, vestindo camiseta verde com alguns remendos, assim como o short laranja, calçando chinelos, segurando na mão direita uma garrafa de cachaça e, na esquerda, uma sacola de cola de sapateiro. No rosto uma expressão "chapada". Percebemos aqui um discurso construído socialmente, indicando que o jovem desempregado é marginal, drogado, enfim, que boa coisa não fica fazendo em seu tempo ocioso. Aqui temos as oposições, emprego versus desemprego. O jovem que está empregado está em conjunção com os valores pregados pela sociedade, e o jovem que está desempregado está em disjunção com esses valores.

Figura 21- "Desempregado" – Aluna do 1ºD da EJA - Escola Geraldo Costa Alves

Figura 20 – "Tédio" – Aluna do 1ºD da EJA – Escola Geraldo Costa Alves

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O desenho de Maria Paula ocupa também a folha toda. No alto, da folha vemos um sol sorridente saindo

por detrás das montanhas. Na parte inferior da folha no canto esquerdo a representação esquemática de

uma casa azul e, saindo da casa, caminhando em direção a uma frondosa árvore com balanço, a

representação de uma mulher segurando uma criança pela mão. Ambas foram desenhadas em forma

de esquema, sem volume e nos faz lembrar desenho infantil. Essa representação de mulher nos olha

sorrindo e um balãozinho em forma de pensamento sai de sua cabeça: “Sou uma babá”. É como se nos

dissesse: "Eu quero e posso ser uma babá".

Superando a reclamação de que não sabia desenhar, a aluna Janaína usou o recurso da colagem

misturada com desenho. Pintou um balcão de vermelho e, apoiado nele um vendedor, com aparência

mais adulta convidando-nos a aproximarmos com o olhar do desenho .O homem possui um sorriso

típico de vendedor no rosto. Com uma imagem de homem maduro, que pode causar impressão de que

tem experiência, sabe das coisas, ele parece nos dizer: “Estamos com uma ótima promoção”, pois seu

rosto está levemente voltado para o lado direito do balcão, onde está colada uma placa; “10 vezes de

19,90 sem juros”. Ao lado da placa, em primeiro plano, a reprodução de uma foto do jornal de um

Figura 22 – "Babá"- Aluna do 1ºD da EJA - Escola Geraldo Costa Alves

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celular de uma operadora muito conhecida. No canto direito da folha, também em vermelho, um cartaz

com a frase: “vendedor de celular”, no alto da folha também em vermelho, encontrava-se o nome de uma

conhecida loja. Ao construir essa composição para representar a profissão de vendedor, a aluna deixa

explícito que sabe usar as estratégias de manipulação presentes nas propagandas, criando um efeito de

proximidade.

Nessa experiência estética, percebemos que o Grupo 1 (5a série) se envolveu mais na atividade, na

construção do mapa de trabalho, com o objetivo de conhecer os trabalhadores e seus trabalhos, como já

foi citado . O Grupo 2 (1º ano do ensino médio) ficou preso à própria experiência, se detendo mais na

elaboração do mapa e dos desenhos. Não fizeram entrevistas com outros trabalhadores. Tudo isso

demostra até aqui mais um dever-fazer do que um querer-fazer.

OITAVO ENCONTRO

Para finalizar o caderno: "Colher Pão de Todo Dia", alguns alunos trouxeram a poesia “Operário em

Construção”, de Vinícius de Morais. Que eu havia entregado uma cópia para cada um, tempos atrás.

Então rearrumamos as carteiras em forma de um semicírculo e fizemos sarau. Quem quisesse subia, ou

não, na mesa para declamar um pedaço da poesia. Acharam a experiência ótima e me chamaram de

maluca em propor que ficassem à vontade para subir na mesa, mas muitos o fizeram.

Figura 23 - "Vendedor" - Aluna do 1ºD da EJA - Escola Geraldo Costa Alves

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Depois discutimos e saboreamos a poesia. A aluna Hellen disse que a estrofe 14 lembrava a tentação de

Cristo: "Na parte em que o inimigo lavou Jesus ao alto de uma montanha e disse que, se ele o

adorassem, ele teria todas as riquezas do mundo" e, como Jesus, o operário não se curvou." Com essa

observação, a aluna demostrou perceber que a poesia fala do surgimento da consciência, que o sujeito

da poesia (o operário) sofre uma mudança de estado; da consciência de oprimido para uma consciência

de classe. Nesse ponto, falei o que é uma transformação da narrativa no desenvolvimento de um texto:

nesse caso há um estado inicial e um estado final de algo ou de alguém. Falei que, na narrativa, há

sempre sujeitos em busca de determinados valores. Perguntei, então, qual era o valor que o operário

buscava e uma aluna respondeu: “Se libertar da escravidão, pois ele descobriu que ele produzia a

riqueza do patrão enquanto ficava na miséria". Um outro acrescentou: -"Eu acho que ele queria criar um

sindicato, pois ele começou a discursar para outros trabalhadores as suas descobertas".

Relatei, então, que, se a gente fosse comparar essa poesia com um conto de fadas o operário seria o

príncipe, o protagonista, ele tinha um valor, que queria alcançar, tinha uma jornada. Quem eram na

poesia, os antagonistas, que queriam atrapalhar seus planos? Depois de um silêncio profundo, foram

respondendo: "Os dedo-duro"; "a polícia"; "o patrão". Uma aluna falou: “Professora, essa história não dá

para se comparar a um conto de fadas, pois não tinha um final feliz!". Respondi que dependia do que

entendíamos por final feliz, e fomos ler novamente o final da poesia. Para concluir, chamei a atenção

para as oposições fundamentais que estavam presentes na construção desse texto poético: liberdade

versus opressão, operário versus patrão, daí alguém lembrou de loucura versus normalidade.

Na experiência do sarau, o Grupo 2 (ensino médio) se divertiu mais que o Grupo 1, talvez porque alguns

alunos do Grupo 1 (5a série) tenham tido mais dificuldade na leitura verbal da poesia. Uns ficaram com

vergonha de ler, outros disseram ter esquecido os óculos. Embora na discussão eles tenham participado,

calorosamente, como sempre. Agora, tanto o Grupo 1, quanto o Grupo 2 não conheciam a música

"Construção" cantada por Chico Buarque.

Na aula seguinte, a professora de Português disse-me ter dado continuidade ao texto “Operário em

Construção”, pedindo que cada um pesquisasse no dicionário palavras que eles nunca tinham ouvido, ou

que não soubessem o significado, mesmo tento ouvido em outras ocasiões, e ela disse que teve aluno

que buscou o significado de no mínimo vinte palavras. Estava então estabelecido o diálogo disciplinar,

Artes e Português.

NONO ENCONTRO

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Leitura das obras de Cildo Meireles " Zero Cruzeiro", " Little pillow" de Jac Leirner e "Malabarismo” de

Rubem Grilo. As três obras que tratam do tema Capital e Trabalho, aqui estão agrupadas no caderno: "O

outro lado da moeda".

Caderno Capital e Trabalho

Para as leituras dessas imagens, foi dado o mesmo encaminhamento no Grupo 1. As discussões

seguiam o mesmo esquema. Eles também preferiram ler e discutir as imagens sem produzir texto

escrito. A diferença é que, quando discutíamos a obra de Cildo Meireles, uma aluna chamou a atenção

para as cores da obra, e dois alunos já tinham ouvido falar em litografia. Um outro fato é que, quando

discutíamos quem eram os excluídos de hoje, uma aluna acrescentou que: "Todos os que são

diferentes do "normal" da maioria são discriminados, como por exemplo os jovens que gostam do funk ,

de rock metal, os homossexuais, os feios".

Sobre a obra de Rubem Grilo "Malabarismo", a aluna Joana lembrou da manipulação que os EUA fazem

sobre os outros países, seja por meio da economia, seja pelo poder das armas. Aqui a aluna demostra

estar atualizada e um saber sobre a conjuntura atual. Percebe o plano de conteúdo da obra que chama a

atenção para os efeitos da globalização. Fomos para o contexto da produção da obra pelo artista.

Como no Grupo 1, exibi o filme “Ou Tudo ou Nada”, que fala de um grupo de metalúrgicos

desempregados, de uma pequena cidade da Inglaterra. Depois que as fábricas fecharam, eles

resolveram organizar um show de striper para arrumar um dinheiro, pois estavam afogados em dívidas e

com a auto-estima em baixa. O problema é que o grupo foge aos padrões estéticos: um era gordo, outro

magro, outro ainda baixinho, ou alto demais, outros dois estavam na faixa entre os cinqüenta e sessenta

anos anos. Enfim, o filme foi escolhido porque discute o mesmo tema: capital e trabalho. A professora de

Português me emprestou as suas duas aulas da quinta-feira para que eu pudesse passar o filme e isso

foi muito bom.

DÉCIMO ENCONTRO

Poucos alunos assistiram ao filme. Quem viu conseguiu estabelecer relação com as obras lidas

anteriormente, embora reclamassem que o filme era legendado. Disseram que é difícil prestar atenção às

imagens e ler a legenda ao mesmo tempo. Algumas alunas disseram também que se divertiram com os

apuros vivenciados pelos operários no filme.

Como encaminhamento para a próxima aula, pedi para cada um usar a sua criatividade e criar uma

moeda, com a forma ou suporte que quisesse.

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DÉCIMO PRIMEIRO ENCONTRO

Para reforçar a idéia que cada artista fala do seu tempo, a partir do seu lugar, organizamos as carteiras

de modo a formar um quadrado deixando o meio livre onde coloquei uma mesa e, sobre a ela, alguns

objetos formando uma composição: um globo, um vaso com planta, um livro, uma caneca, um celular e

outros. Pedi que cada um desenhasse o que conseguia ver a partir do seu lugar. Depois cada um

mostrou o seu trabalho, e perceberam que tinham apenas uma visão parcial dos objetos. Gostaram muito

da experiência.

Apenas alguns alunos entregaram a proposta do desenho da moeda solicitado na aula anterior.

Continuamos insistindo na tentativa de envolvê-los.

O desenho do aluno Rodrigo mostra o verbal e o não-verbal implicados. Ele o fez apenas em grafite

numa tonalidade bem clara. A sua cédula mede 8,0 x 22cm: na parte esquerda desenhou seu valor, 1

MISÉRIA, mais à direita desenhou um bar com um pedinte sentado na porta, tendo à sua esquerda um

objeto que parece ser um chapéu, e à sua direita, um pouco mais distante, outro objeto que parece ser

uma marmita. Sobre a cédula escreveu: “Moeda da Nigéria”. No verso, a moeda vale 1 RICO: Na figura

central um homem bem vestido, com uma pasta embaixo do braço caminha em direção a seu carro.

Percebemos aqui a concepção que ele tem da Nigéria, busca um certo distanciamento, num espaço

longínquo distanciado daquele no qual vive. Por que a Nigéria, se no aqui e agora, Brasil atual,

convivemos com os mesmos problemas?.

Usando da ironia, Vinícius desenhou uma cédula medindo 7,5 x 17cm e escreveu na parte da frente:

“Banco Central Pirata do Brasil”. Ocupando todo o centro da cédula, o símbolo da bandeira dos Barcos

Piratas: o crânio estilizado de uma caveira, o valor dado: “20 PIRATAS”. No verso, o centro da cédula foi

ocupado por uma moeda com o número 20, à direita com letras grandes, na vertical, o valor e o nome da

moeda, com letras menores quase como um código de barra: casa pirata do Brasil.

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Figura 25 "20 Piratas" – Aluno do 1ºD da EJA – Escola Geraldo Costa Alves

4.9.1 Intervenção com as imagens do caderno Cicatri zes

DÉCIMO SEGUNDO ENCONTRO COM O GRUPO 2

Figura 28 - Burle Marx,1949/94, Rio de Janeiro.

Figura 27 - Siron Franco, 1999, 200x300cm.1998 , 111,5 x 90 cm.

Figura 26 - Frans Krajeberg

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Como tive mais aulas no Grupo 2, pude trabalhar o caderno do professor presente no arte br com o tema

"Meio Ambiente", chamado de Cicatrizes. Nessa altura do bimestre, freqüentavam, regularmente, as

aulas seis ou sete alunos. Quando apresentei as obras de Frans Krajeberg, a de Siron Franco "Salvai

nossas almas" e a de Roberto Burle Marx, eles foram direto ao assunto: "Essas duas primeiras são

estranhas, lembra morte", disse uma. Pedi que pegassem a primeira imagem e perguntei o que mais

viam na obra, ai que responderam: “Casca de árvore” (quatro); “Mancha de sangue” (dois

responderam); “Nada, apenas um borrão” (uma).

No passo "O olho que vê" , chamei a atenção para as cores, os materiais, os detalhes que formam o

todo. No passo "O olho que percebe" alertei para a textura, para a técnica utilizada pelo artista, o

contexto. Apenas uma aluna tinha ouvido uma reportagem tempos atrás com o artista, os outros não o

conheciam nem de nome. Assim como nunca tinham ouvido falar em Siron Franco, ao observar a

prancha com a obra "Salvai nossas almas", todos se aproximaram do significado, embora seguissem

outros caminhos: disseram ver roupas amontoadas, de cores e tamanhos variados, manchadas de tinta

e que, organizadas dessa forma lembravam estupro, tragédias, pessoas que perderam tudo com

enchentes.

Disse-lhes que estavam no caminho, pois essa obra tinha sido produzida num contexto de morte e

descaso. Pois a obra de Siron Franco está relacionada com o acidente com o césio 157, em Goiás.

Alguns já não se lembravam mais dessa tragédia, outra disse lembrar da propaganda em favor do

Estado de Goiás, para que as pessoas fossem fazer turismo no Estado, que, por causa da tragédia, o

Estado estava sendo banido da rota turística. "Agora que você falou, lembro da propaganda na TV, um

monte de gente com camisa branca com um coração vermelho, dizendo que amava Goiais". Outra disse

que pensava que esse acidente não tivesse mais conseqüências. Num primeiro momento, acharam que

a obra de Burle Marx não deveria estar no mesmo grupo, pois fala de uma natureza bem cuidada. Depois

da discussão entenderam que há sinais de respeito ao meio ambiente no Brasil. No passo "O olho que

conta história ", produziram os seguintes textos:

"Contar uma história” .

“A Amazônia é um dos lugares onde ocorre a maior desmatação de árvores, animais,

Conseqüentemente isso atinge os rios, etc, Domingos Martins é uma da região do Espírito Santo, ao

contrário da Amazônia, é um lugar de descanso para muitas famílias."

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"Todos os dias nós vemos cenas violentas como desmatamento de floresta, árvores raras como o pau-

brasil. As pessoas entram na floresta com o objetivo de enriquecerem. Não só árvores raras, mas os

jardins em frente de prefeituras, praças, residências também são maltratados por maldade e assim por

diante."

"Um dia um homem estava passeando com sua família numa praça e de repente ficou nervoso com uma

das crianças e chutou uma planta muito bonita. As flores e os galhos ficaram espalhados pelo chão, e

dava até vontade de chorar. As flores e as plantas também tem vida e a vida do ser humano depende da

natureza bem cuidada, se não cuidarmos da natureza a nossa vida só vai piorar a cada. Devemos manter

as ruas limpas e os rios também."

"Todos os dias nós vemos no noticiários a mesma coisa: Que os rios estão sendo poluídos cada vez

mais e as árvores sendo destruídas para fazer móveis. As árvores vão fazer falta para nós porque

através delas temos ar puro para respirar e cada vez mais as árvores for tiradas, nosso ar vai ficando

poluído e mais doenças vão aparecer, as pessoas vão morrer sem cura."

Percebemos, nessas histórias, a reiteração do uso da 1a pessoa do singular, o que nos dá um sentido de

proximidade com o tema, apresentando um saber, uma sensibilização ambiental e uma identificação com

o tema.

Pedi que, na semana seguinte, trouxessem roupas velhas, peças que tivessem uma história para contar,

ou boa ou ruim, para fazermos uma composição.

DÉCIMO TERCEIRO ENCONTRO

"O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que inven ta"

Algumas alunas levaram suas roupas preferidas, contaram a história da roupa. Por exemplo, uma disse

que trouxe o vestido que usou na lua-de-mel; outra que levou a blusa que ganhou da sogra há cinco

anos, mas que não usava, pois não gostou da estampa, etc. Depois fizemos uma composição e

fotografamos. Como tínhamos combinado na aula anterior, saímos para fotografar, fora da escola, sinais

de destruição e sinais de preservação da natureza, em torno da escola, de acordo com o olhar de cada

um.

Fotografaram parte do muro da escola que há anos foi derrubado pelas chuvas e o Governo anterior

nem o atual não haviam ainda mandado verba para consertar. Fotografaram a quadra cheia de mato e

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completamente escura. Os alunos do noturno não podem freqüentá-la, pois não há iluminação, os fios

estão todos queimados. Fotografaram o monte de lixo que a comunidade joga no pátio da escola

aproveitando a parte do muro quebrada, assim como fotografaram os buracos nas ruas em torno da

escola, árvores brotando, pequenos jardins e flores em uma janela.

Voltando para a escola, fotografaram um pequeno canteiro de flores bem cuidadas, que fica na área da

secretaria da e, para finalizar, uma das alunas disse que nunca havia entrado no banheiro dos homens,

só sentido o fedor quando passava por perto, então pediram para o guarda ficar na porta e ela e uma

colega entraram para fotografar. Viram o mictório quebrado e os vasos encardidos. A caixa do mictório

quebrada e o banheiro com uma tábua tampando o buraco deixado pela ausência de um vaso sanitário.

Mas, para nossa tristeza, as fotos queimaram, pois, em vez de apertar o botão para voltar o filme, uma

das alunas apertou um botão que fez a máquina abrir (ela só me confessou em segredo depois da aula).

Só conseguimos revelar duas fotos do banheiro.

Ao entrar nesse espaço para tirar fotos, as mulheres tiveram pela primeira vez contato com esse sinal de

"abandono" e "relaxo " palavras delas, pois o banheiro masculino é um dos não-lugares da escola

freqüentados pelas meninas do 1o D . Puderam compreender o fascínio da fotografia que é a

possibilidade de guardar uma síntese de um momento que é efêmero (Foto 1 e 2).

Figura 29 – "Banheiro depedrado 1"– Alunas do 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves

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DÉCIMO QUARTO ENCONTRO

Em decorrência de uma forte chuva, havia poucos alunos na escola e, do 1o D, havia apenas duas

alunas. Dois fatores influenciaram esse desfecho para o último dia de aula; o primeiro é que a maioria

dos alunos que passou de ano, direto, já estava de férias, e o segundo motivo foi a chuva. Junto com a

professora de Português, as duas alunas afirmaram que o saldo do trabalho foi positivo. As duas alunas

presentes disseram que aprenderam muito com a experiência. Uma disse que, no começo achou as

aulas um pouco chatas, mas depois percebeu que era divertido ler e fazer arte.

No decorrer desta pesquisa, vimos um sujeito (aluno) que foi provocado a fazer algo que não queria

fazer, mas sentia que devia fazer e, pelo caminho esse sujeito passou para o estado do querer-fazer.

Percebemos, então, que houve uma transformação de estado. Os dois depoimentos a seguir confirmam

essa afirmação.

"A experiência foi boa porque eu aprendi muitas coisas. Na verdade, eu nunca tinha estudado arte dessa

forma, ou seja, com esse tipo de procedimento. Para mim foi uma experiência muito boa e vai ser

inesquecível. Eu vou ser realista, no início, eu não estava gostando porque eu achei um pouco chato.

Mas agora eu gosto, porque é divertido, e é bom que a gente aprende” (DÈBORA 1o D).

Figura 30 – "Banheiro Depedrado 2" – Alunas do 1º D da EJA – Escola Geraldo Costa Alves

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“Foi uma experiência, porque passamos a conhecer coisa diferente de artes. Cada arte mais

interessante que a outra" ( JANAÍNA 1o D).

Percebi, nesse percurso de leitura, que a maioria dos alunos terminam a 8a série sem desenvolver

competência na leitura da imagem, depois, analisando os textos dos alunos do ensino médio, em relação

aos cartazes publicitários pude observar que foram superficiais, alguns até percebem as estratégias dos

enunciadores mas se deixam seduzir, não aprofundam o plano de expressão e de conteúdo. O texto não

é analisado em relação ao contexto sócio-histórico que foi produzido e que lhe atribui sentido. Enfim, não

compreendem o seu significado na sua totalidade. No entanto, alguns desses alunos tinham demostrado

leitura mais crítica em relação às imagens publicitárias.

Quanto às imagens artísticas: fazem uma leitura mais analógica e subjetiva do que histórica, não

aprofundando os formantes do plano de expressão e nem do plano de conteúdo, mostraram

desconhecer os movimentos artísticos apresentados na linha do tempo, presentes no material educativo

arte br e dentro dos espaços-tempos, contexto de produção das obras estudadas, tais como: Art Brut,

Expressionismo Abstrato, Ar, Minimal Art, Arte Conceitual, Arte Postal, Arte e tecnologias Tendências

pós-vanguardistas. Apenas um aluno, em um universo de dezesseis, disse conhecer os movimentos

artísticos pop art. e op art.

No processo de intervenção, dentro dos passos propostos no arte br eles puderam percorrer o caminho

feito pelo artista e criaram sua própria experiência estética. Portanto, compreendendo que um texto é

produto de um sujeito que faz suas escolhas ao construí-lo, que revela idéias e valores num dado espaço

e tempo, os alunos do ensino médio, sendo maioria jovens adolescentes, expressaram em suas

produções verbais e não-verbais e até mesmo com o não envolvimento nas atividades, uma resistência

ao modelo escolar, um querer dar visibilidade a sua visão de mundo. Demonstraram que a escola precisa

ser ressignificada, pois falam em suas produções que a escola é um espaço infantil e desinteressante

como nos desenhos analisados, o que nos faz perguntar: será que a escola está levando em

consideração a especificidade desses jovens, na modalidade da EJA? O grande número de evasão do

grupo, sem falar nos alunos faltosos, nos faz pensar que falta uma real identificação dos jovens com esse

espaço (escola). Por outro lado, a reiteração desse tema, nas produções, nos faz acreditar que esses

mesmos jovens reconhecem a escola como um espaço essencial para a ascensão social: um bom

emprego. Para finalizar, demonstraram uma proposição autoral plástica na realização dos trabalhos.

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CONCLUSÃO

OLHANDO O CAMINHO PERCORRIDO

Entendendo a escola como espaço privilegiado de competência do "saber" e do "poder ver", observei, em

ambas as escolas, sujeitos (alunos) com histórias de vida, pessoas capazes de buscar alternativas, e

que exatamente por isso procuram na educação, uma forma de ascensão social, ou de socialização.

Quiçá seja essa a especificidade do educando jovem e adulto.

Assim, esta pesquisa encontrou sujeitos que inicialmente demostraram um não querer-fazer Arte ou

demostraram um resignado dever-fazer Arte. Durante a abordagem inicial com as obras publicitárias,

percebi que os alunos da EJA lêem superficialmente essas imagens, por isso são facilmente manipulados

pelas imagens que apresentem uma estética que "figurativize" elementos de seu mundo natural e que,

muitas vezes, passam despercebidos por elas sem compreenderem o seu significado. Dessa forma

fazem uma leitura mais subjetiva e analógica. Não percebem inicialmente o caráter histórico do texto que

revela idéias e concepções sobre determinada época e lugar.

Quanto às imagens artísticas, observei que eles não exploram os recursos de expressão, não percebem

que elas constroem idéias, conteúdos e valores. Não compreendem ainda que a gramática da obra é a

maneira como se encontram organizadas as cores e as formas no espaço pintado, que a gramática da

pintura, desenho ou outro recursos artístico cria, como forma de expressão, o significado da obra, da

mesma maneira que a gramática da língua dá significados às palavras.

Entretanto, ao analisar os depoimentos dos alunos e alunas da EJA envolvidos na pesquisa, pude crer

que, ao serem provocados a olhar com profundidade as imagens publicitárias e artísticas, aceitam o

desafio de se tornarem leitores de imagens. Assim, percebi e constatei que, durante e após a

intervenção, esses mesmos sujeitos passaram a querer-fazer Arte. Portanto, ouso afirmar que três

importantes fatores contribuíram para despertar esse interesse e mudança de comportamento em frente

à leitura de imagens: a escolha das imagens, o material arte br e o diálogo.

A escolha das imagens: trazer para a sala de aula imagens publicitárias que estavam na mídia durante

o período de intervenção foi um acerto, pois esse fator possibilitou que os alunos pudessem observá-las

como textos culturais carregados de sentido simbólico, assim como também foi positiva a escolha das

imagens artísticas com temáticas sociais. Percebi que, no processo de leitura dessas imagens, muitos

alunos reconheceram-se como sujeitos "no outro" que cada obra apresenta. Fator esse que confirma o

que Pillar disse (2002, p. 74) : "O sentido da leitura vai ser dado pelo contexto e pelas informações que o

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leitor possui ao ver, estamos interlaçando informações do contexto sócio cultural onde a situação

ocorreu, e informações do leitor, seus conhecimentos suas inferências, sua imaginação".

Material arte br: demostrou ter competência para formar leitores visuais, pois, ao seguir os passos

propostos pelo material com a fundamentação semiótica, o aluno pôde desconstruir e reconstruir

novamente a imagem, e se descobrir como sujeito receptivo e interpretativo, sujeito leitor.

Diálogo: ouso afirmar que a busca pelo diálogo nas duas turmas envolvidas na pesquisa foi fruto da

minha vivência à luz de lamparina e da militância nos movimentos organizados de juventude e

populares. O diálogo foi um fator importante nessa mudança de um estado dos sujeitos envolvidos:

inicialmente demostravam uma resistência à disciplina de Arte como um discurso construído socialmente

para um envolvimento, um querer-fazer Arte.

Nesse sentido, esta experiência reforça a convicção de que a presença das imagens na sala de aula é

extremamente importante, porque vivemos em sociedade onde a imagem, segundo Pillar (2002, p. 75),

"[...] é um componente central da comunicação". Assim, torna-se necessário que a escola seja um

espaço de competência do "saber ler imagem". Elas não podem ser usadas apenas como suporte para

outras disciplinas. Imagens precisam ser vistas como texto objeto de significação.

Percebi também que uma aula por semana, de cinqüenta minutos, é pouco para que o professor

trabalhe a disciplina de Arte com conhecimento, capaz de provocar transformações. Dessa forma, ouso

afirmar que esta disciplina precisa ser de fato inserida no Projeto Político-Pedagógica da escola com o

mesmo grau e importância das outras disciplinas.

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ANEXOS

ANEXO A - Primeira Conversa (carta de apresentaçã o do arte br)

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ANEXO B – Entrevistas