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MARIA INÊS SARNO OTRANTO A INTERAÇÃO LINGUAGEIRA DENTISTA-PACIENTE NA ATIVIDADE DE TRABALHO EM TRIAGEM DE CLÍNICA ODONTOLÓGICA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguagem em Situações de Trabalho, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2006

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MARIA INÊS SARNO OTRANTO

A INTERAÇÃO LINGUAGEIRA DENTISTA-PACIENTE NA ATIVIDADE

DE TRABALHO EM TRIAGEM DE CLÍNICA ODONTOLÓGICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada e

Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguagem

em Situações de Trabalho, sob a orientação da Profª. Drª.

Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo

2006

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(assinaturas da banca examinadora, após a defesa pública da dissertação) Banca Examinadora ____________________________________________ Profª Drª Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva ____________________________________________ Profª Drª Beth Brait ____________________________________________ Profª Drª Elenice Aparecida Nogueira Gonçalves

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Ao Tom, por todos os quês. Aos meus pais, vivos na minha saudade, pelo quê definitivo.

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Agradeço À Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, pela orientação, tanto a empírica como

a discursiva.

À Profª. Drª. Beth Brait, pelo estímulo inestimável.

À Profª. Drª. Elenice Nogueira Gonçalves, pelo incentivo primeiro: chamamento.

Ao CNPq, pelo patrocínio da imprescindível bolsa de estudo.

Aos colegas do Grupo Atelier, pelo apoio acadêmico, e mais ainda, pela amizade.

À Denise, pela disponibilidade para testar uma hipótese.

À Otília Ninin, por fada-madrinha.

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Creio que este texto do teólogo Rubem Alves expressa bem as dificuldades encontradas

quando se escreve uma dissertação. Foi difícil o processo de construção desta pesquisa:

fazer, desfazer, refazer. Mas ela foi “escrita com sangue”. É continuação do meu corpo,

minha casa, minha bandeira, meu horizonte, meu altar...

O mundo acadêmico é algo aterrorizador. Escrever é uma coisa que produz medo.

E todos tratam de se proteger pelo estilo rebuscado e excessivamente técnico, na

esperança de que os leitores tomem águas barrentas por águas profundas. De fato,

o ideal de um texto científico é de algo tão perfeitamente tecido, tão provado e

comprovado, que o leitor fique mudo, só lhe restando o silêncio... Estou seguindo

um conselho de Nietzsche: “escrever com sangue”. É necessário que o texto, como

continuação do meu corpo, participe das minhas sombras e das minhas luzes. O

texto tem de abrigar o desejo, sugerir o fascínio dessa fala que pode virar pele,

casa, bandeira, horizonte, altar...

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RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo caracterizar o gênero de atividade do dentista como uma

atividade de trabalho / relação de serviço, presumindo que o atendimento dado ao paciente

durante a consulta inicial poderia começar a construir um efeito de sentido de “atendimento

humanizado”. Ela foi feita no Setor de Triagem da clínica odontológica de uma escola de

aperfeiçoamento profissional, na cidade de São Paulo, e se justifica porque, atualmente, há

uma demanda social por “humanização no atendimento ao paciente odontológico”, em que

o dentista, além de cuidar da promoção de saúde e da prevenção de doenças bucais,

segundo as prescrições do seu trabalho técnico-profissional e de acordo com o Código de

Ética Odontológica, também compreenda a dimensão da comunicação por meio da

interação linguageira com o paciente. Desse modo, vai-se procurar estabelecer a relação

texto/contexto, levando-se em conta a memória discursiva em relação à Odontologia,

quando comparada à Medicina. Para a análise dos dados, recorre-se a um pluralismo

teórico-metodológico: à ergologia (Schwartz), à psicologia do trabalho na vertente da

Clínica da Atividade (Clot) e à autoconfrontação simples (Faïta), disciplinas do trabalho; ao

princípio do dialogismo (Bakhtin) e às noções da teoria enunciativo-discursiva

(Maingueneau), teorias de linguagem; e utilizam-se os aportes e as contribuições do grupo

“Linguagem e Trabalho” sobre a co-construção de sentidos na interação, durante a

atividade (Boutet, Lacoste, Grosjean). Na elaboração dos dados de pesquisa, os métodos

usados foram entrevista, diário de campo, gravação em áudio e autoconfrontação simples.

O resultado da pesquisa, em que pese o fato de se haver analisado apenas um único ator

social, aponta para uma possível conclusão de que, ao exercer sua atividade de trabalho

segundo os preceitos ético-profissionais exigidos, o dentista pode promover um

atendimento humanizado, quando cria condições de o outro – o paciente, expressar sua voz.

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SUMMARY This research aims to analyse the genre of activity of the dentist, considering it as a work

activity / service relationship, and presuming that the “humanized attendance care”

meaning effect starts building itself during the dialogic interaction activity in the first

consultation. The research data were collected at the Triage Room of the dental clinic of a

professional improvement school, in São Paulo. The research justifies itself because, now-

a-days, there is a social demand for the “humanized care for the dental patient” whith the

dentist following the techno-professional prescriptions of his work (i.e. taking care of,

promoting oral health and preventing bucal diseases) and of the Dental Ethic Code, but also

being aware of the comunicative interaction with the patient. In this sense, the text/context

relationship will be established, considering the discursive memory relating the dental and

the medical professions. For the analysis of the data corpus various theories and

methodologies were used, as ‘ergologics’ (Schwartz), the psychology of the work as seen

by the ‘Activity Clinic’ (Clot) and self-confrontation (Faïta), work disciplines; the

‘dialogism’ concept (Bakhtin) and the ‘french enunciative-discoursive discourse analysis’

(Maingueneau), language theories; and the french group ‘Language and Work’ conceptions

and contribuitions about the meaning co-construction during interaction in the activity

(Boutet, Lacoste, Grosjean). The methods used for the research data construction were

interviews, field booknotes, audio recordings and self-confrontation. The research outcome,

despite the fact that only one social actor was analysed, points out to a possible conclusion

that during his work activity the dentist can be as ethical as professionally required and

promote a humanized attendance, when creating conditions to the other – the patient, to

express his voice.

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SUMÁRIO

Primeira parte: Linguagem e trabalho em pesquisa sobre a atividade do dentista

Introdução, p. 11

a. Problemática, p. 18

a.1. O gênero da atividade do dentista, p. 20

a.2. As cenas do encontro dentista-paciente: interação e diálogo, p. 25

b. Corpus: natureza e constituição

b.1. Contexto da pesquisa, p. 28

b.2. A Escola de Aperfeiçoamento Profissional e os vários setores, p. 28

b.3. O Setor de Triagem da EAP, p. 29

b.4. As funcionárias da Triagem: a dentista, a auxiliar, p. 30

b.5. Os pacientes atendidos pela Triagem, p. 31

b.6. Os textos que circulam na Triagem, p. 32

c. Objetivo e Questão de pesquisa, p. 33

d. (Hipótese e) Justificativa, p. 35

Capítulo 1: Alguns elementos históricos nas representações sobre a Odontologia, p. 38

Capítulo 2: Conceitos de “humanização”, p. 56

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Segunda parte: Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa, p. 68

Capítulo 3: Disciplinas do trabalho, p. 69

3.1. A ergonomia, p. 69

3.2. A ergologia e a renormalização das situações de trabalho, p. 71

3.3. A clínica da atividade e a confrontação dos sujeitos, p. 73

3.4. O método da autoconfrontação simples, p. 75

Capítulo 4: Teorias da linguagem, p. 77

4.1. O princípio do dialogismo, p. 78

4.2. A Análise do Discurso enunciativo-discursiva, p. 80

4.3. A co-construção de sentido na atividade, p. 85

Terceira parte: Metodologia, p. 88

Capítulo 5: A construção dos dados de pesquisa, p. 88

5.1. A entrevista inicial para autorização e consentimento, p. 88

5.2. O diário de campo, p. 89

5.3. A observação direta na Triagem, p. 90

5.4. A gravação em áudio da consulta inicial, p. 91

5.5. A autoconfrontação simples, p. 94

Quarta parte: Análise dos dados da pesquisa, p. 96

Capítulo 6: Categorias de análise lingüística, p. 98

6.1. As pessoas do discurso, p. 99

6.2. A modalização do próprio enunciado, p. 100

6.3. As vozes dos interlocutores, p. 105

6.4. O interdiscurso: Medicina / Odontologia, p. 110

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Quinta parte: Discussão e considerações finais, p. 113

Sexta parte: Referências, p. 118

Apêndice: convenções usadas na transcrição dos diálogos da atividade, p. 125

Anexos

Primeira parte: materiais escritos sobre humanização

a. Anexo um: press release do Ministério da Saúde (divulgação 17 set. 2004) , p. 126

b. Anexo dois: notícia do jornal O Estado de São Paulo (19 ago. 2004), p. 127

c. Anexo três: notícia do jornal O Estado de São Paulo (9 abr. 2004), p. 128

Segunda parte: materiais agrupados pela pesquisadora, que se referem à Odontologia

d. Anexo quatro: Planta do 2º andar da EAP, p. 129

e. Anexo cinco: Decreto 9.311, p. 130

f. Anexo seis: Livreto Código de Ética Odontológica –

Capítulo V: DO RELACIONAMENTO, p. 131

g. Anexo sete: Ficha de triagem, p. 132

Terceira parte: materiais transcritos das gravações

h. Diálogo entre dentista e pesquisadora, em entrevista (Hospital do Câncer)

Anexo seis: Dentista F. e pesquisadora (cassete 1, lado A), p. 133

i. Diálogo entre dentista e paciente em consulta inicial (EAP)

Anexo sete: Dentista D. e paciente J. (cassete 2, lado A), p. 135

j. Diálogo entre dentista e pesquisadora - autoconfrontação simples (EAP)

Anexo oito: Dentista D. e pesquisadora. (minicassete 1, lado A), p. 144

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Primeira parte

Linguagem e trabalho em pesquisa sobre a atividade do dentista

Introdução

“Há possibilidades infinitas de captar o mundo. Muitos pontos de vista nos escapam. No entanto, podemos dizê-los: pela linguagem, falamos das fisionomias ocultas e não percebidas das coisas. Falamos delas em sua ausência. Neste sentido, a palavra transcende todos os pontos de vista. A realidade não se reduz ao que pode ser visto. Identifica-se também ao que pode ser dito”.

(Japiassu, 1990: 3)

O interesse no estudo da linguagem para as ciências do trabalho, desde o último

quarto do século XX, deve-se ao efeito das mudanças que sobrevieram no universo da

organização do trabalho, em que, de modo diversificado, mas contínuo, o lugar e o papel

do “fator humano” se impuseram de forma incontornável (Faïta, 2002: 45).

Nos últimos cinqüenta e poucos anos, na sociedade globalizada contemporânea, o

setor de serviços tem aumentado muito, com as necessidades econômicas do mercado,

constituindo-se uma parte significativa do universo do trabalho. Isso condicionou mudanças

que apresentam, entre outras conseqüências, uma transformação do estatuto, do

reconhecimento e do lugar da linguagem nos cenários profissionais, onde se pressupõem

competências relacionais, discursivas e comerciais com o destinatário, o usuário ou o

cliente do serviço. Ordens hierárquicas, modos operatórios, planejamentos, regulamentos,

encadeamentos de procedimentos, etc., são formas prescritivas assumidas pela coordenação

da ação, que recorrem ao manejo da linguagem (escrita e/ou oral). Do mesmo modo, a

interação oral está presente em quase todas as atividades de trabalho e é indispensável à

efetuação da maioria delas, o que torna a linguagem parte integrante essencial dessas

atividades. Relações de poder, de dominação, de cooperação, de aprendizagem mútua e de

solidariedade alimentam as múltiplas interações cotidianas (Lacoste, 2001: 24),

expressando-se pela linguagem.

Essa modificação de paradigma no mundo do trabalho gera condições em que a

produtividade e a competitividade se baseiam cada vez menos nos recursos primários e na

produção de bens básicos, e cada vez mais no conhecimento e na prestação de serviço,

intercambiados como mercadorias progressivamente mais valiosas, o que implica várias

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mudanças, tanto para a economia, a política e a cultura, como, principalmente, para o

desenvolvimento individual das pessoas e para a sua interação social.

A palavra sempre se dirige a um interlocutor e é função da pessoa desse

interlocutor, variando caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social ou não; caso a

pessoa seja superior ou inferior na hierarquia social; caso a pessoa esteja ligada ao

locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido); etc.

(Bakhtin/Volochinov, 2004: 112). Além disso, todo discurso incorpora outras vozes enunciativas. Assim compreendida, a orientação dialógica, isto é, o permanente (e nem sempre simétrico) diálogo entre discursos é um fenômeno característico deles, que implica interação viva e intensa. Cumpre, aqui, fazer a notação de que “dialógico” é diferente de “dialogal”. Nas situações de interação oral, as palavras do enunciador podem, a qualquer momento, lhe “escapar” (se ele for interrompido pelo interlocutor), podem precisar ser recuperadas ou tornadas mais precisas, em função das reações do outro, o que constitui um discurso dialogal. No entanto, toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é marcada por uma interatividade constitutiva, dialógica: é uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores reais ou virtuais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual o enunciador se dirige e com relação à qual ele constrói o próprio discurso. A conversação pode ser considerada uma importante forma de manifestação da interatividade essencial do discurso (Maingueneau, 2002: 54).

Daí a relevância da interação linguageira dentista-paciente, na primeira consulta,

para que se configure não apenas a impressão de competência e habilidade técnico-

profissional (que o paciente não tem condições de avaliar), mas também para que comece a

se estabelecer o efeito de sentido “atendimento humanizado” (noção que será explicitada

com mais detalhes no Capítulo 2: Conceitos de “humanização”). A linguagem é vetor de

estratégias, de relações de poder, de identidades profissionais, de modelos culturais, e a

maneira de o dentista interrogar o paciente ou de responder às suas perguntas, o modo de

explicar os tratamentos necessários, o grau de participação que ele permite ao paciente, isto

é, o dar voz ao paciente, podem fornecer pistas de leitura, em que o exercício do trabalho é

configurado por uma institucionalização da palavra (Lacoste, 2001: 40), apropriada a esse

gênero de atividade.

O trabalho oferece um exemplo sem equivalente das ligações intimamente entrelaçadas entre a comunicação e a atividade, tanto na aprendizagem como na cooperação, em que a prática inclui o ato material, o tocar, o gesto, a visão, e também a palavra. A comunicação participa ativamente da construção social dos conhecimentos, da sua memorização, da sua transmissão. O trabalho é um lugar privilegiado para estudar as ligações entre comunicação e cognição (ibid.: 52).

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Em todos os setores do trabalho, os apoios organizacional e instrumental da ação

coletiva evidenciam a necessidade de comunicações, que vêm ativá-la, atualizá-la,

completá-la, elucidar os erros de apreciação ou de interpretação, etc. As comunicações

tomam a forma de trocas no curso da atividade, para transmitir informações, passar

recomendações, discutir um problema urgente, programar a atividade em curso, entre

outras. Elas alimentam os atos de linguagem orientados segundo as linhas profissionais e

hierárquicas: ordens de cima para baixo (mas também de circulação horizontal) e avisos;

requisições, notificações, formulários; fichas, prontuários, atestados, relatórios; laudos,

pareceres, depoimentos, etc. Elas são indispensáveis ao funcionamento de organizações

complexas (como é o caso da gestão de uma clínica odontológica, por exemplo). As

comunicações fazem a palavra ir de um contexto sócio-histórico a outro, onde ela terá um

entendimento diferente. As comunicações também favorecem a confrontação e a reflexão,

ainda que, às vezes, possam ser consideradas como “tempo perdido”. No entanto, nas

comunicações ligadas à atividade de trabalho (sempre premida e restringida pelo tempo), o

uso da linguagem escrita1 constitui importante fato documental em eventuais processos de

natureza ético-administrativos - civis e/ou penais -, devidos tanto ao efeito de leis do

Código Civil como à lei 8.078, de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), circunstância

sempre passível de acontecer, nas relações de serviço.

Para além da necessidade profissional, a dimensão social das interações de trabalho

permite que se resolvam problemas em conjunto; que se conheçam melhor os colegas de

trabalho; que se partilhem lembranças; que se sinta prazer, ou desprazer, de estar junto. A linguagem é parte integrante da estruturação das identidades profissionais, no estabelecimento, na manutenção de comunidades de trabalho e na vida dos “mundos sociais” da empresa. As identidades se marcam e se demarcam pelos modos de interação e pelas formas discursivas. A comunicação também é o lugar da expressão de desigualdades sociais, de antagonismos profissionais, de relações de dominação e de elaboração de compromissos (Lacoste, 2001: 48).

Entretanto, comunicar-se não é fácil. A transparência da linguagem é uma ilusão, o

sentido se revela fugidio, a intercompreensão é sempre parcial, e a divergência de

perspectivas ou a diferença de experiências e de interesses é freqüente. Longe de ser uma

1 A linguagem oral, a computadorizada e a gravada em áudio e/ou vídeo ainda têm validade discutível como fato documental.

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evidência ou um dado, a comunicação é um trabalho sempre imperfeito, um ganho

provisório sobre a não-comunicação.

Até recentemente de importância desconhecida ou ignorada pelas profissões da área

de saúde, a prática do uso de linguagem adequada ao momento da interação inicial face a

face com o paciente é, entretanto, indispensável para garantir a eficácia da comunicação,

considerando-se que a interação é o caminho essencial que, enquanto dimensão

linguageira, se articula constitutivamente ao conceito de dialogismo (Brait, 2002: 135). A

relação entre a linguagem e a atividade de trabalho do dentista se evidencia não só em

textos que se produzem na própria situação de trabalho (prontuários, fichas clínicas,

receituários, atestados, formulários, avaliações, indicação ou pedido de encaminhamento e

de tratamento, laudos, etc.), mas também em texto prescritivo2 institucional sobre o ensino

da profissão: as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia

(Brasil. MEC/CNE, 2001). Instituídas em 2001, pela Câmara de Educação Superior do

Conselho Nacional de Educação (criado em 1998), essas Diretrizes elaboram um programa

pedagógico a ser executado e que está sujeito a avaliações periódicas na maneira como é

aplicado e ensinado aos estudantes. Vários documentos serviram como referência àquelas

Diretrizes: Constituição Federal Brasileira, de 1988; Lei Orgânica do Sistema Único de

Saúde, de 1990; Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996; Declaração

Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, da Conferência Mundial sobre o Ensino

Superior, UNESCO: Paris, 1998; Relatório Final da 11ª Conferência Nacional da Saúde, de

2000, entre outros. No Art. 4º - referente às competências e habilidades gerais do

cirurgião-dentista-, inciso III, as Diretrizes estabelecem que os profissionais precisam

aprender a se comunicar com pacientes, com outros profissionais da saúde e com a

comunidade em geral por meio de comunicação verbal, não verbal e habilidades de escrita

e leitura; e devem ter o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira, além de

conhecerem tecnologias de comunicação e informação (Brasil. MEC/CNE, 2001: 23). E

estabelecem também, no Art. 6º, II3 (ibid.: 25), a inclusão de conteúdo curricular referente

2 Texto prescritivo: a prescrição de um trabalho, de uma tarefa ou de um ato, caracterizado por algumas propriedades enunciativas, como emanar de um expert cuja presença enunciativa é apagada, e mencionar um destinatário ou agente das ações prescritas, entre outras (Adam apud Machado, 2003:3). 3 Art. 6º - Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Odontologia devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão (...) e devem contemplar: II. Ciências Humanas e Sociais – que

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a Ciências Humanas e Sociais, para responder à demanda da sociedade por profissionais

dentistas que, além de cuidar da promoção de saúde e da prevenção de doenças, tenham

também formação humanística, cultural e ética à altura das exigências do mundo atual.

Tendo em vista a prescrição, o professor de Ciências Humanas e Sociais em

Odontologia tenta realizar essa tarefa organizando as condições de aprendizado dos alunos

(Amigues, 2002: 1), considerando que as práticas de leitura e escrita fazem parte da

organização científica do trabalho, gerando uma obrigação de letramento dos

trabalhadores, em todas as profissões (Boutet, 2005b: 1). Alguns estudantes, entretanto,

parecem não ter interesse em relação ao conteúdo da disciplina, talvez por pensarem que

Ciências Humanas e Sociais não se referem diretamente ao agir concreto do dentista, ou,

possivelmente, por não se aperceberem de que nenhuma forma de trabalho (inclusive o do

profissional da área da saúde) está separada das relações políticas, sociais, econômicas e

culturais que fundamentam as estruturas e os costumes de uma sociedade. Esses alunos não

se dão conta, provavelmente, de que toda forma de trabalho se expressa, em grande parte,

por meio da comunicação linguageira e, desse modo, parecem não valorizar o aprendizado

daquela disciplina.

Seguindo o prescrito pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de

Graduação em Odontologia, o projeto pedagógico (Gonçalves, 2003) de uma faculdade

particular, em São Paulo, incluía, até 2004, a disciplina de Ciências Humanísticas em todos

os semestres do curso. Em classe, os alunos eram estimulados a valorizar a comunicação

verbal e as habilidades de escrita e leitura. No entanto, para justificar a falta coletiva à

aula, alunos do 6º semestre redigiram bilhetes que mostram não apenas o baixo nível de

desempenho na produção de um texto escrito, como também a pouca importância atribuída

à disciplina, em comparação com outras do currículo (Fisiologia e Patologia, por exemplo),

o que estabelece uma relação com a problemática considerada neste estudo.

Verificar alguns bilhetes, a seguir:

incluem conteúdos referentes às diversas dimensões da relação indivíduo/sociedade, contribuindo para a compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença.

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a. Problemática

Hoje em dia, há uma maior complexidade nas atividades de trabalho que são

relações de serviço em que o “produto” oferecido é a saúde - bem inestimável, devido à

redução de investimentos em políticas de saúde pública; aos problemas sociais de

atendimento clínico e/ou hospitalar, principalmente para a população de baixa renda; aos

avanços das práticas clínico-terapêuticas e à conseqüente necessidade de atualização do

conhecimento específico; ao constante desenvolvimento tecnológico de instrumental e

aparelhos operatórios; e, principalmente, à mudança de peso dos valores atribuídos aos

pólos econômico, político (das dimensões propriamente históricas da situação) e o do

debate de saberes investidos na atividade, a que se vê convocado todo indivíduo, num meio

de trabalho particular (Schwartz, 1997: 31).

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O profissional da saúde não ignora que, como ele, o paciente é um ser humano

complexo, com emoções, sentimentos e necessidades que vão além do problema físico mais

aparente e imediato. Como o profissional, o paciente é um ser vivo com humor, disposição

e disponibilidade extremamente variáveis, com individualidade e história próprias, com

valores pessoais e sociais, desejos, angústias, saberes, preocupações, a serem considerados

e respeitados, já que não existe um “eu” pronto ou onipotente; existem estados cerebrais

que estão em constante mutação por influência da história pessoal, das emoções, do meio

social, do acaso, os quais arranjamos em nossa narrativa particular. Natureza e cultura

não se opõem; elas se relacionam o tempo inteiro, numa troca incessante e não-linear

entre o herdado e o vivido (Ridley, 2003)4. Para lidar com essas realidades, não basta

apenas conhecer a teoria específica das ciências biológicas básicas e da propedêutica clínica

própria da área odontológica, no caso desta pesquisa, mas também há que considerar a

representação sócio-histórica que foi sendo construída sobre essa atividade de trabalho ao

longo tempo, na nossa cultura, e quais efeitos de sentido se estabelecem, para o paciente,

sobre a profissão e o profissional.

A pesquisa na situação de trabalho adota como pressuposto que o mundo só existe

como representações sócio-históricas atualizadas nos diálogos entre a atividade, o

pensamento e a linguagem (Vieira, 2002: 19). A atividade não se limita àquilo que se fez,

mas engloba também todo o entorno de possibilidades – o que não foi feito, o que poderia

ou deveria ser feito, o que se gostaria de fazer, e o que se faria para não fazer o que precisa

ser feito-, como considera a Clínica da Atividade (a ser conceituada no Capitulo 3.

Disciplinas do trabalho). Na perspectiva deste estudo, coloca-se um outro problema à

compreensão da proposta: considerar a associação do gênero da atividade primeira consulta

odontológica ao gênero cientifico da reflexão sobre a atividade do dentista como a transposição de uma postura tradicional de isolar o material de análise da sua situação de origem para justificar a descoberta de regularidades que, a seu turno, induzam à aplicação de regras/respostas independentemente da dinâmica própria do desenvolvimento da situação observada. Assim, é preciso considerar a relação entre estabilidade das estruturas e instabilidade dos efeitos de sentido aí integrados, devido à variabilidade das situações de comunicação, e ao papel da comunicação na produção de sentidos (Faïta, 1998 apud Vieira, 2002: 20).

4 RIDLEY, Matt. (2003). Nature via nurture. Reino Unido: Harper Collins. Disponível em : http://www.edge.org/books/books_index.html#ridley. Acesso em 4/abr./2005.

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a.1. O gênero da atividade do dentista “O gênero da atividade é um modo de saber se situar na situação de trabalho e saber como agir; é um recurso para evitar errar sozinho diante da quantidade de bobagens possíveis. Sua adoção marca o pertencimento a um grupo e orienta a ação.”

(Darré, 1994 apud Clot, 2001: 19)

A análise das formas históricas dos diferentes modos de cooperação e de divisão do

trabalho não é nova, e a reflexão sobre esse assunto vem sendo desenvolvida desde os

pensadores da Antigüidade até hoje em dia, passando por Adam Smith (1723-90) e por

pensadores do século XIX: Marx (1818-83) falava do “trabalhador coletivo”, enquanto Proudhon (1809-65) usava o termo “produtor” (coletivo de trabalho) em oposição a “trabalhador” (indivíduo, elemento do produtor). Atualmente, muitos autores concordam que há “uma escalada do coletivo” no trabalho, em correspondência a transformações de ordem cultural, sociológica, tecnológica, econômica, etc., o que reativou, por parte dos pesquisadores, a atenção atribuída ao caráter coletivo do trabalho e aos modos de utilização da força coletiva (Efros, 1997: 42).

Os americanos Taylor (1856-1915) e Ford (1863-1947) desenvolveram modelos de

trabalho com modos específicos de organizar o processo produtivo de gerir o trabalho, de

influir e de ser influenciado por outros atores sociais, que tanto favorecem quanto impõem

limites à elaboração e disseminação de um projeto racional de mudança nas formas de

organização dos processos produtivos e nas relações sociais (Régnier)5.

Existe, entre a organização do trabalho e a atividade do próprio ator social, um

trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma recriação da

organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo. Pesquisadores

contemporâneos, como Clot et al. (2001: 19), designam essa reorganização do trabalho

como o gênero social do ofício, ou gênero profissional6, isto é, as “obrigações” a que estão

sujeitos os trabalhadores para poder trabalhar, freqüentemente apesar de tudo, às vezes

5 RÉGNIER, Karla von Döllinger. Alguns Elementos sobre a Racionalidade dos Modelos Taylorista, Fordista e Toyotista. Disponível em: http://www.senac.br/informativo/BTS/232/boltec232d.htm. Acesso em 3/dez./2005. 6 Gênero profissional ou gênero do métier (do ofício), tomados como sinônimos, é o que leva em conta as características do coletivo de trabalho, enquanto gênero da atividade é qualquer atividade, e todo o entorno em que ela é exercida, independente de ser atividade de trabalho e de ser ou não remunerada, segundo Seaujat (2005). Nos limites desta pesquisa, usam-se os termos gênero de atividade e gênero profissional (Odontologia) como equivalentes.

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apesar da organização prescrita do trabalho. É uma espécie de “intercalaire” social, um

corpo de avaliações partilhadas que regulam tacitamente a atividade pessoal.

Os gêneros da atividade se constituem das maneiras de pensar e de agir

sedimentadas no meio de trabalho e moldadas por ele. Isso inclui também implícitos, que

se apresentam sob a forma de normas e de regras prescritivas: valores exógenos,

elementos de cultura profissional, ou de rotinas (Faïta, 2001: 282).

Para justificar o uso da noção de “gênero”, Clot e Faïta (2000: 9) se reportam ao

conceito bakhtiniano: gêneros de discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados

(Bakhtin, 2003: 262). Em cada esfera da atividade humana e da comunicação existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo. Uma determinada função (científica, técnica, pública, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (ibid.: 266).

As relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas, elas se manifestam

nos gêneros de discurso disponíveis, sendo que se eles não existissem e fosse preciso criá-

los pela primeira vez no processo do discurso, durante a interação, a comunicação

discursiva seria impossível (ibid.: 283). Partindo da oposição entre tarefa prescrita e

atividade real no trabalho, as formas prescritivas que os trabalhadores se impõem são, ao

mesmo tempo, coerções e recursos Clot e Faïta (2000: 11), já que, se fosse preciso criar a

cada vez, cada uma das nossas atividades na ação, o trabalho seria impossível. O gênero da

atividade repousa sobre um princípio de economia da ação e é a parte subentendida da

atividade, aquilo que os trabalhadores de um determinado meio conhecem, esperam e

reconhecem; o que lhes é comum e que os reúne sob condições reais de vida; o que eles

sabem dever fazer graças a avaliações pressupostas, sem que seja necessário reespecificar a

tarefa cada vez que ela se apresenta. É como uma “senha” conhecida apenas pelos que

pertencem ao mesmo horizonte social e profissional. É uma memória mobilizada pela ação. Memória impessoal e coletiva que caracteriza a atividade em situação: maneiras de se comportar, maneiras de se dirigir ao outro, maneiras de começar e de terminar uma atividade, maneiras de conduzi-la eficazmente ao seu objetivo. Essas maneiras de considerar as coisas e as pessoas, em um determinado meio de trabalho, formam um repertório de atos convencionados, retidos pela história desse meio (...) e constituídos por uma gama sedimentada de técnicas intelectuais e corporais, tecidas entre as palavras e os gestos do ofício. Isso constitui um esquema “pronto para agir”, um meio econômico de se colocar na situação (...) e de organizar atribuições e obrigações do

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gênero profissional. Ele rege não as relações intersubjetivas mas as relações interprofissionais. (Clot et al., 2001: 19).

Se o aspecto normativo dá consistência e perenidade ao gênero da atividade, este

também é o recurso para enfrentar as exigências da ação, e o objeto de ajustes e de

modificações daqueles que o utilizam. Esse trabalho de ajustamento do gênero, para

transformá-lo em instrumento da ação, é o estilo da ação do trabalhador na situação

profissional, ou um tipo de emancipação em relação a certas coerções genéricas: na

verdade, uma dupla emancipação (ibid.: 19). De um lado, há uma emancipação em relação

à memória impessoal, com o sujeito se distanciando da coerção, conservando o benefício

do recurso, modificando e metamorfoseando a regra, o gesto ou a palavra, inaugurando uma

variante do gênero profissional. De outro lado, a emancipação em relação à história pessoal,

em que os esquemas pessoais, mobilizados na ação, são ajustados sob o duplo impulso do

sentido da atividade e da eficiência das operações. O estilo é, então, um “misto” que

descreve o esforço de emancipação do sujeito em relação à memória impessoal e em

relação à sua memória singular, esforço sempre voltado para a eficácia do seu trabalho

(ibid.: 20), havendo tantos estilos diferentes quantos são os atores sociais, num mesmo

gênero de atividade. Essa implicação complexa do ator social se expressa de duas formas, qualificadas como estilo: de um lado, a estilização do gênero profissional, ou adaptação à situação atual de hábitos e efeitos da memória coletiva e das culturas do meio de trabalho, e, por outro lado, a construção contínua de um reposicionamento pessoal do sujeito, um gênero individual (Faïta, 2001: 282).

O gênero da atividade se apresenta, portanto, sob a forma de uma sucessão de

momentos que oferecem problemas - sempre inéditos no todo ou em parte-, a serem

resolvidos pelos atores sociais, nas situações de ação. Tais problemas supõem decisões ou

escolhas e impõem normas diferentes, afastadas da ação propriamente dita: determinações

econômicas, técnicas, regimentais, institucionais ou hierárquicas, que obrigam o sujeito a se

redefinir a partir de seus próprios conhecimentos e valores, e que convocam gêneros de

técnicas, isto é, a ponte entre a operacionalização formal e prescrita dos equipamentos materiais e das maneiras de agir e de pensar, com uma gama de atividades impostas, possíveis ou proibidas, e com significações e operações anteriores formando a textura do gênero e suas variantes. Poder-se-ia dizer que os gêneros de discurso e os gêneros de técnicas formam os gêneros da atividade (Clot et al., 2001: 12).

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O exercício da linguagem no universo de trabalho é dependente de um conjunto de

condições de natureza ecológica, como o barulho, o tempo, o posicionamento dos atores

sociais (Boutet, 2005b: 3). Essa ancoragem forte da linguagem no contexto da ação e nos

contextos ecológicos caracteriza uma maneira própria de se comunicar e de interagir e gera

um conjunto de propriedades dos gêneros profissionais, segundo Boutet.

Há a considerar, também, que a linguagem oral é acompanhada por manifestações

semióticas não verbais (olhar, mímicas, gestos, entonação), próprias à oralidade e

estreitamente imbricadas à atividade de trabalho que ela acompanha ou realiza (Grosjean,

2001: 143). A interação face a face, definida pela co-presença dos participantes, implica

uma prática plurissemiótica. Nela, um pequeno número de pessoas entra em contato, se vê e se ouve, e o espaço delimita a ação, o movimento e a disposição respectiva das pessoas, a distância, a orientação dos corpos e dos olhares, a atenção ao outro, os gestos, as mímicas, o conjunto dos comportamentos expressivos. (ibid.: 146).

Na análise dos dados deste estudo, algumas manifestações semióticas não-verbais

serão consideradas como parte integrante da interação dialógica que se estabelece na

primeira consulta, o que significaria, em hipótese, que tais manifestações colaboram com o

aspecto lingüístico-discursivo na construção do efeito de sentido de uma atitude

humanizada no atendimento ao paciente.

No consultório odontológico, o trabalho do dentista está sujeito a várias prescrições,

originadas em diferentes níveis e em constante tensão: a) prescrições que vêm da formação

acadêmica, com saberes específicos (Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de

Graduação em Odontologia), e prescrições ético-profissionais (Código de Ética

Odontológica e leis que regulam o exercício da profissão); b) prescrições organizacionais,

que se modificam conforme a instituição, o hospital ou a clínica em que esteja localizado o

consultório; c) prescrições e autoprescrições, na própria situação de trabalho, em que

ocorre reorganização das tarefas em função de interações, tanto com outros profissionais e

com pessoal auxiliar (atendente de consultório, secretária, etc.), como com o paciente (e,

eventualmente, com o acompanhante deste). Isto vai exigir do dentista, além das

competências técnicas específicas, competências discursivas, comerciais e relacionais

(estabelecidas inclusive no Capítulo V do Código de Ética - Anexo seis), a serem

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constantemente reorganizadas na situação de trabalho do consultório, em função das várias

interações que aí se estabelecem.

No entanto, os enunciados que acontecem durante a consulta inicial mostram uma

falta de variedade de tipos de discurso, um registro lexical limitado e uma complexidade

sintática fraca, além de uma característica muito marcante que é a repetição (mesmas

frases ou mesmas palavras: o que está incomodando o senhor? Sente dor? Por que veio

procurar este serviço?), e pontuada pelo questionamento relativamente estruturado do

profissional (Grosjean, 1993: 33).

Não somente os interlocutores do dentista são numerosos, como as funções

preenchidas por ele nas suas diversas atividades são muito variadas e ele se ocupa de cada

uma dessas atividades de maneira diferenciada. Assim, o dentista, como todo indivíduo em

situação de trabalho, dispõe de diversas “vozes”, modos de interação materializados em marcas lingüísticas, pelos quais ele exprime sua implicação na situação e as posições que assume, em relação ao seu interlocutor. Esta capacidade de passar facilmente de uma posição enunciativa a outra é uma condição necessária ao exercício de toda profissão de saúde, que certamente implica empatia com o paciente, mas que também supõe ser capaz de manter um distanciamento em relação a ele, o que permite ao profissional exercer um saber e aplicar técnicas que o paciente não possui e pelos quais ele está ali (ibid.: 44).

Se as formas prescritivas estabelecem o que deve ser feito no atendimento clínico-

terapêutico e como executá-lo, elas não indicam, porém, como se apresentar

discursivamente ao paciente na situação não-clínica da primeira consulta-entrevista. Assim,

na sua ação no consultório, o dentista “fabrica” (Seaujat, 2005) uma interação linguageira

para além das perguntas pré-estabelecidas do prontuário7, e prévia à ocorrência de

procedimentos clínicos. O que é ensinado na formação acadêmica e está prescrito em leis e

no Código de Ética, é que haja preenchimento de prontuário, com o objetivo de

documentação e/ou defesa em eventual processo ético ou legal. Isto é, na graduação

aprende-se gênero de discurso, gênero de técnica e a linguagem do ofício (Boutet, 2005b:

6). O gênero da atividade ou gênero profissional “consulta inicial” é construído na prática

7 O prontuário do paciente é preenchido na primeira consulta clínica, com respostas às perguntas sobre dados de identificação pessoal; anamnese, com queixa principal e história da doença atual; história médica; história odontológica; antecedentes mórbidos familiares; hábitos; exame físico geral extra e intrabucal - dentes e tecidos moles (língua, bochechas, lábios).

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da atividade industriosa cotidiana, em que o estilo de cada dentista seria uma

ressingularização das normas antecedentes (Schwartz, 1997), nas quais as seqüências das operações são preconcebidas com um luxo de precisão, como em todos os gêneros, de tal forma que nenhuma outra “racionalização” pareça possível, embora modalidades múltiplas de recomposição seqüencial, espacial e temporal, além de micro-utilização do instrumental ou micro-cooperações, negociadas no instante mesmo da atividade, obriguem a levar em conta outras “razões”, tão legítimas como as dadas e consideradas como sem concorrência possível (ibid.: 5).

a.2. As cenas do encontro dentista-paciente: interação e diálogo

Houve considerável avanço na área de pesquisas científicas em Odontologia e

grande desenvolvimento tecnológico dos instrumentos e aparelhos usados na prática

profissional. Atualmente, melhores efeitos terapêuticos são conseguidos com os novos

medicamentos e há mais qualidade nos materiais e maior eficácia dos métodos empregados

nos tratamentos. Esse progresso diz respeito à parte técnica do gênero profissional, no qual,

entretanto, a interação linguageira (também) exerce um papel importante, considerando-se

que a Odontologia é uma relação de serviço, na qual a comunicação é é um bom exemplo da contribuição da linguagem na resolução de problemas, já que há uma relação duplamente desigual: desigualdade de status entre os interlocutores, e disparidade, menos reconhecida mas bem mais sensível, no acesso de um e de outro aos elementos constitutivos da experiência, e aos modos de formalização e de representação dos saberes operatórios (Faïta, 2001: 265).

O exercício da atividade profissional do dentista envolve um terceiro, o paciente,

alvo de intervenções especializadas e participante implicado na co-construção dos sentidos

e na re-elaboração de representações sócio-históricas construídas, ao longo do tempo, a

respeito da profissão Odontologia. O paciente é o indivíduo que “precisa de atendimento” e

solicita um serviço ao dentista, colocando-se naquela situação duplamente desigual: tanto

porque a demanda por tratamento ou cura o torna agente passivo e tributário da resposta do

profissional, como pelo fato de haver diferença de saberes formais entre esses

interlocutores. Por sua vez, o dentista está sujeito a exigências específicas, a normas (e

renormalizações) de procedimentos e à tomada de microdecisões, independente e apesar de

todos os prescritos que circulam no ambiente de trabalho.

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O trabalho do dentista é sui generis, já que, mesmo quando faz parte de uma equipe

multidisciplinar, em geral ele trabalha sozinho junto ao paciente, enquanto executa os

procedimentos de sua especialidade (a menos que essa intervenção seja cirúrgico-

hospitalar). Outra particularidade do gênero profissional do dentista é que, em geral,

enquanto exerce sua atividade clínica, no consultório, e manipula instrumentos e aparelhos,

trabalhando na boca do paciente8, o dentista quase não fala, a não ser para fazer alguma

observação sobre o procedimento (“Vou passar uma pomada anestésica, aqui”, “Agora,

vou tirar uma radiografia”, “Atenção! Vai doer um pouco!”), se informar quanto à reação

do paciente (“Quando e como esse dente doeu?”, “Está sentindo o lábio anestesiado?”), ou

dar uma ordem (“Pode cuspir!”, “Abra mais a boca!”, “Levante a mão, se doer!”). Por

sua vez, enquanto está sendo tratado, sentado na cadeira odontológica do consultório, o

paciente não fala absolutamente nada, por razões óbvias... portanto, não há diálogo.

Cada universo de trabalho é marcado por um estilo de comunicação, uma cultura

verbal e formas privilegiadas de troca oral e/ou escrita. No trabalho, a linguagem verbal é, ao mesmo tempo, mais essencial e menos autônoma do que em geral se admite. Mais essencial porque as situações sem palavras são raras, mas menos autônoma porque a comunicação se materializa numa pluralidade de modalidades semióticas complementares: gestos e atos, palavras e escritos. Nesse universo, onde coexistem múltiplas fontes de informação, a palavra funciona em estreita relação com o contexto. (...) Ela sanciona os acontecimentos técnicos, ela os prolonga, os anuncia, os interpreta. Esta “linguagem da ação”, elíptica, às vezes codificada, dependente do contexto, coagida pelo espaço-tempo do trabalho, ilustra a construção mútua da atividade e da comunicação numa estreita reciprocidade entre o fazer e o dizer (Lacoste, 2001: 30).

O dentista se apresenta discursivamente na consulta inicial quando, ao preencher o

prontuário com o histórico do paciente, estarão ambos sentados frente a frente,

provavelmente num ambiente diferente daquele da sala de atendimento.

Essa primeira consulta é o momento crucial do desenvolvimento de parcerias,

estratégias, conflitos e competências, durante a qual podem ocorrer alterações importantes

na prática e na construção de sentido dessa atividade, com modificação dos assuntos

abordados e da seqüência de perguntas do prontuário, com questões pré-estabelecidas e

respostas previsíveis (Vieira, 2002:38). Nessa situação, podem ocorrer alterações

8 Paciente, neste trabalho, refere-se sempre ao paciente adulto, uma vez que tanto a clínica odontológica pediátrica como a hebiátrica têm especificidades muito próprias, e nada do que se refira ao paciente criança ou adolescente será contemplado nesta pesquisa.

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importantes na prática e na construção de sentido da atividade odontológica, com

modificação dos assuntos abordados e da seqüência de perguntas do prontuário, que tem

questões pré-estabelecidas e respostas previsíveis. Nesse momento, sim, a palavra funciona

como “linguagem da ação” (Lacoste, 2001: 30), em que há reciprocidade entre o fazer e o

dizer, e há relação com o contexto sócio-histórico. As condições de produção e recepção do

discurso são coagidas pelo espaço-tempo da atividade de trabalho, com o profissional

explicando os procedimentos terapêutico-clínicos a serem seguidos nas consultas seguintes,

segundo um plano de tratamento que não propõe oferecer um “produto” pré-fabricado,

estandardizado ou com garantia de durabilidade, mas estabelece um plano de tratamento

individualizado e único para cada paciente, para alcançar um determinado “objetivo” (uma

restauração, uma prótese, um tratamento endodôntico, etc.), e justificar porque o

planejamento original poderia ser modificado em função de “n” razões fisiológicas ou

patológicas, ou por imprevistos, tudo isso afetando o “resultado” final. Assim, nas

próximas vezes em que o paciente retornar para atendimento, a manipulação do

instrumental e de aparelhos implicará interação linguageira bem mais específica,

diretamente misturada às atividades materiais, às condutas perceptíveis, gestuais, e às

manipulações de objetos e de instrumentos (ibid.: 30), o que poderia caracterizar uma

linguagem funcional, ou linguagem operativa (Boutet, 2005b: 6), nas quais as trocas não responderiam nem ao formato do diálogo, nem àquele da conversação ordinária; eles desenhariam uma prática da linguagem e da comunicação específica, fortemente coagida tanto pelas ações e pelas tarefas do trabalhador, como pelo universo material no qual elas se desenvolvem – com máquinas, aparelhos, barulho, posicionamento dos atores sociais (ibid.: 4).

Desse modo, aquela prévia apresentação discursiva do dentista pode ser

determinante para a comunicação efetiva (ou não) com o paciente, já que este, ao se

submeter ao tratamento, tem condições de avaliar a atitude, mas não a competência do

profissional nos procedimentos técnico-operatórios de especificidade odontológica.

M

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b. Corpus: natureza e constituição

b.1. Contexto da pesquisa

Tendo em vista a formação acadêmica desta pesquisadora, graduada pela Faculdade

de Odontologia da USP, com curso de especialização na disciplina de Endodontia9, feito

em Escola de Aperfeiçoamento Profissional particular (EAP), e a necessidade dela de

responder a uma questão de pesquisa, analisando o diálogo dentista-paciente na consulta

inicial, foi definida a escolha de um contexto em que o tratamento odontológico oferecido

a pacientes com baixo poder aquisitivo implicasse comprometimento social e, talvez por

isso, humanização no atendimento (no sentido aqui estabelecido). Por outro lado, levando

em conta que o conhecimento sobre a situação de trabalho a ser analisada, além de facilitar

a pesquisa, alcançaria um melhor resultado se contasse com o apoio dos atores sociais

envolvidos, dependendo de confiança, credibilidade e comprometimento que a

pesquisadora pudesse lhes inspirar, foi escolhido o setor de Triagem das clínicas daquela

Escola de Aperfeiçoamento Profissional, em São Paulo.

b.2. A Escola de Aperfeiçoamento Profissional e os vários setores

A Escola de Aperfeiçoamento Profissional (EAP) foi fundada em 1954, na cidade

de São Paulo. Desde 2002, a EAP tem sede própria em prédio de cinco andares, com quatro

clínicas e 110 consultórios informatizados e com equipamentos de última geração;

auditórios, teatro, biblioteca; Centros de Radiologia, Tomografia e Laser; Laboratórios de

Patologia, de Microscopia Operatória, de Informática e de Prótese; Triagem; e Pronto-

Socorro comunitário (funcionando 24 horas). A EAP oferece mais de 70 opções de cursos

(pagos), nas diversas áreas da Odontologia, visando a elevar a capacitação técnico-

científica de profissionais já formados. Há cursos de especialização (duração de 700 a

2.000 horas), atualização (duração de 96 a 180 horas) e reciclagem (duração de 30 a 90

9 Disciplina que trata de etiologia, diagnóstico, terapêutica e profilaxia das doenças e lesões que afetam os tecidos dentários pulpar e periapical.

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horas), além de cursos másteres, projeto Reciclar e cursos mensais (nas férias, por exemplo)

para atrair profissionais-alunos de outros Estados. É o mais moderno centro de educação

continuada da América do Sul e não está ligada a nenhuma universidade, embora os

professores contratados (por 50% do arrecadado pelo curso ministrado) para dar as aulas

tenham títulos acadêmicos. Os cursos de especialização são credenciados e reconhecidos

pelo Conselho Federal de Odontologia e a utilidade pública da EAP é reconhecida nos

âmbitos federal, estadual e municipal. A EAP está ligada à entidade credenciada como

filantrópica, pelo Programa de Expansão Profissional – PROEP, desde 1973, processo MJ

nº 52.375/74.

As quatro clínicas (com quarenta e oito equipos), as salas de material cirúrgico, de

esterilização de instrumental, de apoio à Prótese e do Almoxarifado; o Centro de

Radiologia; a Triagem; a sala da Assistência Social; a sala de espera dos pacientes (60

lugares); as salas de arquivos de pastas, radiografias, prontuários e documentos; o

escovódromo e um auditório (30 lugares) ficam localizados no 2º andar do prédio da EAP,

servido por lances de escada em três disposições tópicas diferentes e por quatro elevadores,

o que permite, sem dificuldades, o acesso de crianças, gestantes, idosos e deficientes físicos

aos diversos serviços especializados. (No escopo deste estudo, a facilidade de acesso aos

vários setores de serviços e a possibilidade da eventual remoção de paciente em cadeira de

rodas ou em maca são consideradas atitudes promotoras de atendimento humanizado aos

pacientes da EAP.)

A planta mostrada no Anexo quatro permite a visualização topográfica desse espaço.

b.3. O Setor de Triagem da EAP

Na sala da Triagem da EAP, estão montados três consultórios completos, embora

nenhum outro procedimento clínico se realize nesse espaço, a não ser a consulta para triar

os pacientes. Os boxes são separados por muretas de alvenaria de 1m de altura; todos têm

bancada com pia e armários; o do meio tem um computador que, teoricamente, deveria ser

usado para colocar os dados cadastrais e a anamnese dos pacientes em rede com os

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computadores existentes nos consultórios das

clínicas. No entanto, até agosto de 2004,

prontuários, ficha de triagem e de

encaminhamento eram preenchidos

manualmente. A profissional D., ator social

desta pesquisa, utiliza o consultório central, e

como não há escrivaninha onde apoiar a

documentação a ser feita, ela usa a mureta que

separa os boxes para fazer isso, de maneira a

não dar as costas ao paciente, como seria o caso

se a bancada fosse usada. O espaço físico do consultório é o mínimo necessário para a

instalação do equipo completo, da cadeira odontológica e do mocho (cadeira) da dentista.

Não há lugar ou cadeira para acompanhante.

Essa cenografia é a que atribui um estatuto pragmático e social ao gênero

profissional consulta odontológica inicial para triagem, a que pertencem os textos que

ocorrem durante a interação dentista – paciente. Isso implica essa cena específica, com

papéis para os parceiros, um modo de inscrição no tempo e no espaço, uma finalidade, etc.:

essa cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra

(Maingueneau, 2002: 87).

b.4. As funcionárias da Triagem: a dentista, a auxiliar

A profissional D. é cirurgiã-dentista, formada pela Faculdade de Odontologia da

UNISA, com especialização em Periodontia10, na mesma UNISA. Atualmente, faz pós-

graduação no Programa de Mestrado Ensino em Ciências da Saúde, da Escola Paulista de

Medicina, UNIFESP. Ela é a única dentista que trabalha na Triagem e é hierarquicamente

submissa apenas à Coordenação da EAP. Desde o início de 2004, D. faz parte do quadro

efetivo de funcionários da EAP, diferentemente dos professores ministradores dos cursos,

contratados para a prestação deste serviço específico e sem vínculo empregatício com a

10 Disciplina que se especializa no estudo dos tecidos de sustentação do órgão dentário: gengivas, osso alveolar e ligamento periodontal, e no tratamento de suas afecções.

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escola. Isso implica diferenças de direitos, de deveres e de responsabilidades que

influenciam a gestão do trabalho, as relações interprofissionais e o envolvimento da

dentista no atendimento dado ao paciente.

Embora uma multiplicidade de atividades esteja implicada no trabalho da dentista,

quando no consultório da Triagem ela trabalha sozinha, sem auxiliar nem atendente. A

secretária C., da recepção do Setor de Triagem (verificar localização na planta do 2ª andar,

Anexo quatro), funcionária contratada da EAP, traz as pastas com ficha da assistente social

e radiografias dos pacientes, acompanha-os até a entrada do consultório e, às vezes, dá

alguma informação solicitada, postando-se em pé e atrás da cadeira do paciente. Ela nem

auxilia na recepção/acomodação dele (colocando guardanapo, por exemplo), nem interfere

em nenhum procedimento (como escrever anotações ditadas pela dentista, durante o exame

clínico).

b.5. Os pacientes atendidos pela Triagem

Para um paciente ser tratado na EAP, ele não pode ter condição financeira que lhe

permita arcar com o custo do tratamento em consultório ou clínica odontológica particular.

A avaliação sócio-econômica é feita por uma assistente social, funcionária da EAP, por

meio de entrevista agendada por telefone. Na data marcada, quando chega à portaria do

prédio, o paciente é encaminhado diretamente à sala de Assistência Social e, após a

entrevista, ele segue para o Centro de Radiologia, na sala ao lado, onde são feitas as

radiografias panorâmicas11 iniciais. Em seguida, no Centro de Atendimento ao Paciente

(Recepção e Arquivo de Prontuários), o encaminhamento prossegue: todo paciente deverá

ser examinado no Serviço de Triagem, para só então, e eventualmente (caso haja

necessidade didática ou interesse de algum professor no problema particular do paciente),

ser marcado um horário para que ele seja atendido em algum curso em andamento nas

clínicas da EAP. Atualmente, em função do elevado número de candidatos ao tratamento

nas clínicas de alto padrão tecnológico e baixo custo financeiro, há uma lista de espera (por

11 Radiografias de toda a arcada dentária, superior e inferior, numa mesma película. No decorrer do tratamento, outras radiografias – periapicais (de pequenos grupo de dentes) - serão tiradas na própria clínica, durante o atendimento do paciente.

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ordem de chegada) de 2.000 pacientes, que já passaram pela assistente social e pela

Radiologia, e que aguardam, às vezes até dois anos, ser chamados pela Triagem.

Os casos em que haja necessidade de um diagnóstico diferencial ou mais específico

nos tecidos moles (gengiva, língua, bochechas, lábios, palato mole) são encaminhados pela

Triagem à Semiologia, no 3º andar. Os casos de emergência são atendidos imediatamente

no Pronto-Socorro da EAP, após o que são encaminhados para a Assistência Social e

prosseguem o cadastramento habitual. Os casos indicados para as especialidades de

Ortodontia (aparelhos de correção), Cirurgia buco-maxilo-facial ou que tenham necessidade

de atendimento hospitalar se constituem exceções e são encaminhados diretamente para

esses serviços, sem passar pela Triagem.

Resumindo, uma prescrição hierárquica oral determina que, na Triagem, apenas

pacientes já avaliados pela assistente social sejam atendidos e encaminhados para os cursos,

sem nenhuma exceção, quer para funcionários da EAP, quer para parentes de alunos ou

para pessoas indicadas por professores.

A consulta gravada em áudio, para esta pesquisa, foi a do paciente J.: o tratamento

dele na clínica da EAP ainda não havia sido terminado, devido a diferentes imprevistos que

interferiram no seu agendamento. No momento daquela consulta odontológica, havia um

problema médico a ser levado em conta - a aplicação de uma série de radioterapias para

combater um câncer de próstata.

b.6. Os textos que circulam na Triagem

Há um movimento dialógico entre os vários níveis de circulação dos prescritos

escritos e orais, no consultório de Triagem, onde o trabalho da dentista conjuga diversos

tipos de atividade:

I) a atividade odontológica da consulta inicial, delimitada por prescrições

institucionais (leis específicas e Código de Ética), hierárquicas (necessidade de prontuários;

ficha da assistente social; ficha de triagem; horário de funcionamento da Triagem) e

autoprescrições (desconhecimento de algum procedimento, limitação técnica, cansaço em

função do horário diurno ou noturno de atendimento, falta de tempo, valores pessoais e

sociais);

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II) a atividade organizacional (dos horários de atendimento; de preenchimento de

papéis administrativos; de sugestão sobre a seqüência do plano de tratamento indicado para

cada paciente; de encaminhamento de formulário);

III) atividade de interação com o paciente (tanto para lhe fornecer explicações

diversas sobre o próprio caso, como sobre o plano de tratamento indicado para ele, numa

linguagem acessível ao entendimento do paciente);

IV) atividade de relacionamento interdisciplinar (com colegas dentistas da

Semiologia 12, da Radiologia e da coordenação da escola, todos funcionários contratados da

EAP; com professores e alunos, profissionais autônomos, os primeiros recebendo

porcentagem do que os segundos pagam, para fazer os cursos ministrados nas clínicas da

EAP; com a assistente social; etc.); e

V) atividade de interação com o pessoal auxiliar (eventuais auxiliares de

consultório; secretárias dos diversos serviços da EAP; serviço de limpeza; serviço de

compras e almoxarifado; etc.).

Nesse contexto, os escritos e os ditos a propósito de cada paciente, em diferentes

ocasiões de atendimento, tanto fornecem à dentista material que permite o conhecimento da

história clínica desse paciente ao longo do tempo, na EAP, como agem no sentido de

facilitar cooperação e colaboração do coletivo de trabalho em prol do tratamento de cada

paciente pelos vários especialistas.

c. Objetivo e Questão de pesquisa

Descrever a atividade de trabalho da área de serviços responde a um duplo cenário.

Por um lado, um cenário científico: no seio das teorias da linguagem trata-se de descrever a

emergência de gêneros discursivos, sua produção endógena e local, seus funcionamentos

lingüísticos e comunicacionais. Por outro lado, um cenário social, na medida em que estas

descrições contribuem para a definição de uma profissão e do seu modo de agir, segundo

Boutet (2005c).

12 Disciplina que estuda os sinais, sintomas, propedêutica e tratamento das doenças dos tecidos moles do órgão bucal.

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No gênero de atividade da primeira consulta odontológica, acontece um discurso13

polifônico entre dentista-agente-enunciador, que apresenta várias identidades (profissional

da saúde detentor de um saber acadêmico, entrevistador, confidente, parceiro, “torturador”,

amigo, etc.), e paciente-cliente-interlocutor, que ocupa um lugar discursivo também

perpassado por muitas vozes, que é participante e que atribui sentido ao discurso do

dentista. O papel da linguagem, aqui, mostra que

o sentido da ação do profissional não se esgota na ação-atividade considerada, mas se elabora de maneira privilegiada no modo como os atores dizem e se dizem. O sentido não está dado nem é pré-existente, mas se manifesta no momento da troca com o outro, se estabelece na atualidade da ação do atores, possuidores de subjetividade e saber próprios. A ação engloba uma multiplicidade de decisões locais, que não seguem um plano pré-estabelecido, mas são adaptadas conforme circunstâncias aleatórias (urgência, carga de trabalho, etc.), que tornam cada dia diferente do outro. A ação jamais se realiza sem variações contextuais (Lacoste, 1995: 29).

Assim, o objetivo deste trabalho é, ao caracterizar o gênero de atividade do dentista

como uma atividade de trabalho / relação de serviço, refletir sobre a situação da primeira

consulta (durante a qual ocorre o preenchimento de prontuário), e estabelecer a relação

texto/contexto.

Dado esse objetivo, a questão de pesquisa a ser investigada é:

Como começa a se construir o efeito de sentido “atendimento humanizado” por

meio das práticas e imagens discursivas do dentista na consulta inicial, considerando que há

várias prescrições (institucionais, hierárquicas e autoprescrições) circulantes no consultório

de Triagem e que o paciente avalia o profissional por meio da atitude humana

transformada em um texto que pode ser compreendido como atitude e não ação física

(Bakhtin, 2003: 312), isto é, não pela ação do trabalho odontológico propriamente dito?

Este estudo foi desenvolvido no Programa de Estudos Pós-graduados de Lingüística

Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e se

insere na linha de pesquisa Linguagem e Trabalho. Nesse sentido, sua contribuição direta é 13 Neste trabalho de pesquisa, para simplificar noções que são mais complexas, serão tomados como semelhantes os termos “discurso”, “texto”, “enunciado” e “enunciação”: produto da interação verbal de dois indivíduos socialmente organizados; ato de fala delimitado pela situação social mais imediata, determinado tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém: é o produto da interação do locutor e do ouvinte (Bakhtin, 2004: 113). No Capítulo 5, Teorias da linguagem, esses termos serão re-examinados.

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dada ao projeto de pesquisa denominado O papel da linguagem na análise de práticas

profissionais (Produtividade em Pesquisa – CNPq nº 300474/04-0), desenvolvido pela

Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, coordenadora do grupo Atelier. A minha

participação nesse grupo, formado por professores, doutorandos e mestrandos do

LAEL/PUC-SP, e de pesquisadores da UERJ, UFMT, UFPe, Uni-Rio, UNISINOS e USP,

colaborou para o meu entendimento da significação das práticas de linguagem na situação

de trabalho do profissional dentista.

d. (Hipótese) e Justificativa

Se todo discurso se atualiza como um evento, todo discurso é compreendido como

significação (Ricoeur, 1976: 23). Desse modo, o diálogo (entendido aqui no sentido

dialógico) na interação linguageira durante a primeira consulta odontológica talvez tenha

uma importância crucial nos sentidos que o paciente poderá vir a construir sobre a atividade

de trabalho do dentista.

Incorporando a idéia e a premissa segundo as quais só existe progresso se à

habilidade técnica e aos desenvolvimentos teórico-científicos próprios da profissão

corresponder desenvolvimento humano, vai-se partir da hipótese de que a atividade de

comunicação linguageira, na primeira interação dentista-paciente, poderia começar a

estabelecer um efeito de sentido de humanização no atendimento clínico, correspondendo

assim à demanda social em que, junto com a competência e a ética profissionais, atenção,

consideração e respeito no trato com os pacientes sejam exercidos e valorizados.

Apesar do interesse que o tema “humanização” desperta desde o início da década de

90 na área de ciências da saúde, em função de uma nova ideologia política, de cunho

humanístico e social (Reale, 2005)14, há poucos trabalhos escritos, segundo meu

conhecimento, voltados a entender a interação linguageira (do ponto de vista discursivo)

entre o profissional de Odontologia e o paciente. Embora se considere, aqui, a importância

do projeto pedagógico de Gonçalves (2003) - que inclui a disciplina “Ciências 14 REALE, Miguel. (8/out./2005). Quatro prêmios à cultura nacional. In: Jornal O Estado de São Paulo. Espaço Aberto. p. A2.

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Humanísticas” em todos os semestres do curso de graduação em Odontologia, e cujo foco,

portanto, é a educação -, as pesquisas concentram-se mais em outras atividades, tanto na

área de humanas como na de saúde: relações públicas (Nassar, 2003), psiquiatria (Labov,

197715; Ribeiro, 199516; François, 1995; e Vieira, 2002), guichê hospitalar (França, 2002),

psicologia (Sancovski, 2002), enfermagem (Fiorano, 2002), pacientes oncológicos

terminais (Pisoler, 2002)17, psicanálise (Settineri, 2001)18, medicina hospitalar e não-

hospitalar (Fernandes, 1993), entre outros. [Por curiosidade, um levantamento generalizado

de referências de textos científicos sobre os assuntos “interação médico-paciente” e

“interação dentista-paciente” foi feito na Internet, considerando-se as referências escritas

tanto em português como em outras línguas. Os resultados apontam um número muito

maior de ocorrências para a área de Medicina do que para a de Odontologia19.]

Por isso, o presente trabalho visa a preencher uma lacuna ao caracterizar, sob o

ponto de vista enunciativo-discursivo, o gênero de atividade do dentista, observando a

realidade para refletir sobre ela e talvez, eventualmente, num processo constante de

reformulação e análise, sugerir uma interação mais humanizada entre dentista e paciente.

15 LABOV, William e FANSCHEL, David. (1977). Therapeutic discourse: psycotherapy as conversation. New York: Academic Press. Referência disponível em: http://www.oup.com/pdf/elt/library_classics/learning_index.pdf?cc=gb. Acesso em 30/set./2005 16 RIBEIRO, Branca Maria Telles. (1995). A interação médico/paciente em uma entrevista psiquiátrica. Espaços e interfaces da Lingüística e da Lingüística Aplicada. Rio de Janeiro: p. 159-172. 17 PISOLER, Lucas Timm et al. (2002). Humanização do atendimento a pacientes extremamente graves. Documento em PDF, disponível em: http://www.google.com.br/search?hs=9cG&hl=pt-BR&client=firefox-a&rls=org.mozilla%3AptBR%3Aofficial_s&biw=1016&q=PISOLER%2C+Lucas+Timm++&btnG=Pesquisar&meta=. Acesso em 28/jun./2005. 18 SETTINERI, Francisco Franke. (2001). Quando falar é tratar: o funcionamento da linguagem na interpretação psicanalítica. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Letras da PUC-RS, em 1º/jun./2001. 19 Em 16 de fevereiro de 2005, no portal GOOGLE, a procura para “medical-patient interaction” mostrou 1.360.000 ocorrências; para “doctor-patient interaction”, 537.000 ocorrências; para “dentist-patient interaction”, 92.800 ocorrências; para “interação médico-paciente”, 926 ocorrências e para “interação dentista-paciente”, 31 ocorrências. Para a Odontologia, algumas pesquisas são feitas sob o ponto de vista de psicólogos (que enfocam emoções, como confiança e simpatia, medos e angústias) e outras, sob o ponto de vista da Odontologia clínico-laboratorial, mais centrados no atendimento a pacientes especiais (grávidas, cardíacos, diabéticos, pacientes leucêmicos, pacientes HIV positivos, pacientes com hepatopatias, idosos, portadores de deficiências mentais – paralisia cerebral, síndrome de Down, etc.). Disponível em: http://bank.rug.ac.be/ttaw2000/proia.htm. Acesso em 9/out./2005.

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Como, no espaço dialógico em que a atividade “consulta inicial” se desenvolve, se

refletem representações sobre a profissão do dentista, e ocorrem diversas esferas de

influência, com colaborações elaboradas e conflitos gerenciados, a avaliação das trocas

discursivas que aí acontecem se constitui um fértil campo de análises.

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Capítulo 1 Alguns elementos históricos nas representações sobre a Odontologia

Enquanto as doenças foram consideradas como punições de deuses encolerizados e

durante todo o tempo em que conselhos, cuidados e terapêuticas provinham mais de

comunidades religiosas que de “cirurgiões”, colocou-se em termos vagos a

responsabilidade deles, tanto pelo sucesso como pelo fracasso dos tratamentos

administrados, bem como por dor, angústia ou sofrimento que o paciente pudesse vir a

sentir.

No entanto, o código de Hamurabi, promulgado por este rei da Babilônia por volta

do século XVIII a.C., exigia que se cortasse a mão de um cirurgião, caso ele fosse

responsável por uma morte; e entre 282 preceitos, dedicava três à responsabilidade

médica, com um recurso inquietante à Lei do talião20 (Meyer, 2002: 19). Esses preceitos já

indicavam que o erro deveria ser atribuído ao cirurgião e não ao sacerdote ou ao mago.

Os deveres e as normas de conduta para os cirurgiões foram definidos por

Hipócrates no texto do Juramento, no século V a.C. A escola hipocrática separou a

medicina da religião e da magia; afastou as crenças em causas sobrenaturais das doenças e

fundou os alicerces de uma medicina mais racional e científica. Além disso, deu um sentido

de dignidade à profissão médica, estabelecendo as normas éticas de conduta que devem

nortear a vida do médico tanto no exercício profissional como fora dele, alertando para a

necessidade de compaixão, piedade, altruísmo e humanidade no trato com os pacientes.

Por volta dessa época, médicos e cirurgiões já não mais exerciam a tarefa de extrair

dentes, alegando que havia muitos riscos para o paciente (hemorragias, inevitáveis

infecções e possibilidade de morte) e argumentando que, se “arrancassem dentes”, suas

mãos poderiam ficar pesadas e sem condições para as intervenções mais delicadas de sua

atividade médica.

20 A Lei do talião (do latim talis: tal, parelho) consiste na justa reciprocidade do crime e da pena, sendo freqüentemente simbolizada pela expressão olho por olho, dente por dente. É uma das mais antigas leis existentes. Os primeiros indícios da Lei do talião foram encontrados no Código de Hamurabi, em 1730 a.C. Ela permitia evitar que as pessoas fizessem justiça elas mesmas, introduzindo, assim, um início de ordem na sociedade com relação ao tratamento de crimes e delitos. (Informação disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_do_Tali%C3%A3o. Acesso em 25/abr./2005)

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A partir de então e ao longo da História, as representações sobre a Odontologia

foram sendo construídas de modo que a desqualificam, em relação à Medicina, tanto pela

arte (iconográfica e literária) e pela propaganda, como pelo senso comum.

Para interpretar esses efeitos de sentido, recorro a textos não verbais (iconográficos)

e verbais (escritos), considerando que texto é a realidade imediata (realidade do

pensamento e das vivências), a única da qual podem provir disciplinas e pensamento, já

que onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento (Bakhtin, 2003: 307). Ou

ainda que, no sentido amplo de conjunto coerente de signos, também as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, palavras sobre palavras, textos sobre textos: é nisso que reside a diferença fundamental entre as ciências humanas e as ciências naturais, nas quais o homem é estudado fora do contexto e independente deste (como em anatomia e fisiologia). A história do conhecimento deve estar orientada para pensamentos, sentidos e significados dos outros, realizados e dados ao pesquisador sob a forma de texto, do qual partem os estudos, quaisquer que sejam os seus objetivos. A reprodução de um texto pelo pesquisador (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva, que se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos. Há uma complexa inter-relação do texto (objeto de estudo e reflexão) e do contexto emoldurador a ser criado pelo pesquisador que interroga, faz objeções, etc. (ibid.: 311).

O texto é um produto comunicativo que se constrói na fronteira entre o que foi

explicitamente dito e/ou mostrado e aquilo que ficou subentendido, o não-dito e/ou não-

mostrado, fronteira entre o verbal e o extraverbal. O texto se organiza dentro de

determinado gênero discursivo, a partir dos mais diversos planos de expressão. Assim,

podemos falar em texto visual diante de um quadro, de uma foto ou de um filme (Brait,

2003).

A possibilidade de integrar textos não lingüísticos à interpretação das

representações sobre a Odontologia permite proceder a uma leitura mais compreensiva

daquelas representações, valendo-se do diálogo entre textos verbais e iconográficos

semanticamente convergentes, em que os diversos suportes semióticos não são

independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas sanções históricas e às

mesmas coerções temáticas (...), em domínios semióticos variados: enunciados, quadros,

etc. (Maingueneau, 1984: 158). Nos limites desta pesquisa, textos verbais e iconográficos

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são usados para ilustrar o interdiscurso subjacente entre Medicina e Odontologia,

considerando que a escrita é comparada à pintura. Longe de produzir menos do que o original, a atividade pictórica reconstrói a realidade com base num alfabeto óptico limitado. Deste modo, o principal efeito da pintura é resistir à tendência entrópica da visão ordinária - a imagem umbrática de Platão - e aumentar o sentido do universo apreendendo-o na rede dos seus signos abreviados. Porque o pintor pode dominar um outro material alfabético ele consegue escrever um novo texto da realidade, apoiando em um conjunto de signos mínimos. A pintura aproxima-se da ciência ao desafiar as formas perceptivas, relacionando-as com estruturas não perceptivas. A escrita, no sentido limitado da palavra, é um caso particular de iconicidade. A inscrição do discurso é a transcrição do mundo e a transcrição não é reduplicação, mas metamorfose (Ricoeur, 1976: 52-3).

As operações produtoras de sentido são sempre interdiscursivas, mantendo uma

relação dialógica com vários outros discursos, no interior de um certo universo discursivo

(por exemplo, a literatura). Da mesma maneira, o princípio da intertextualidade21 também é

válido entre universos discursivos diferentes (por exemplo, a literatura, as artes plásticas, a

música e as ciências naturais) além de haver, no processo de produção de um discurso, uma

relação intertextual com outros discursos relativamente autônomos que, embora

funcionando como momentos ou etapas da produção, não aparecem na superfície do

discurso “produzido” ou “terminado”. A inteligibilidade do conteúdo das obras literárias ou

iconográficas e, em geral, dos documentos culturais, se relaciona com as condições sociais

da comunidade que os produziu ou a que se destinavam. Explicar um texto significa,

primariamente, considerá-lo como a expressão de certas necessidades socioculturais e

como uma resposta a certas perplexidades bem localizadas no espaço e no tempo (Ricoeur,

1976: 101). Em sua realização num modo determinado, o texto - a palavra, o gesto, o signo,

a pintura, o desenho, o som musical, etc. -, constitui um fato objetivo e uma força social,

ambos ideologicamente impregnados (Bakhtin/Volochinov, 2004: 118).

Em Análise do Discurso, memória discursiva e interdiscurso (tomados quase como

sinônimos) levam em consideração, na análise dos dados textuais da pesquisa, tanto a

História, a cultura, a sócio-psicologia e os fatores tecnológicos e ideológicos (como as

novas maneiras de ver o cidadão e o trabalho), como as condições de produção, circulação

e recepção dos textos. Como sugeriu Possenti (2004), “o discurso é o encontro de uma

historicidade e de uma língua”.

21 Termo cunhado por Julia Kristeva para designar o fato de que todo texto, ou toda obra, está na realidade dialogando com outros textos, ou outras obras.

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Assim, o processo histórico da construção de sentidos pode ser verificado em

inúmeros documentos e textos, produzidos por locutores que se expressam de vários

lugares enunciativos: fazer história das mentalidades é inicialmente realizar alguma leitura de não importa qual documento. Tudo é fonte para o historiador de mentalidades. Romances, narrações escritas ou orais, poemas, contos, atas, túmulos, instituições, objetos de maneira geral, filmes, cartas, costumes, entre outros, passam a ser considerados, então, documentos históricos (Le Goff, J. apud Gregolin, 2003: 72).

As representações feitas sobre a Odontologia, em diferentes épocas, culturas e

sociedades, podem ser verificadas na dimensão dialógica de textos verbais e não verbais

(portanto, em planos textuais diversos), que carregam outros tipos de estruturas semióticas,

que refletem e refratam as interpretações dos posicionamentos discursivos sobre a Medicina

e a Odontologia, em relação de concorrência e reciprocamente se delimitando.

Nos textos iconográficos a seguir,

observa-se como a prática da Odontologia se

restringia a procedimentos cruentos e dolorosos,

praticados por “arranca-dentes”, geralmente

auxiliados por “assistentes” que os ajudavam na

contenção mecânica do paciente.

À esquerda, ilustração de uma tradução turca da

Cirurgia Imperial, manuscrito persa do séc. XII:

um dentista árabe usa uma cânula protetora para

cauterizar, com ácido, a polpa dental de um dente do paciente (RING, 1998: 68).

A inicial D, do manuscrito em latim Omne

bonum, de Jacobo, o inglês, escrito no século XV,

está decorada com a cena de um dentista arrancando

o dente de um paciente, o qual tenta segurar-lhe a

mão. [O fórceps desenhado nessa iluminura é o

mesmo instrumento de tortura usado para arrancar a

língua dos condenados a este suplício (RING, 1998:

111).]

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A gravura satírica do séc. XVI (acima) mostra a grande quantidade de serviços

oferecidos por barbeiros: sob o mesmo teto, o paciente podia ter um dente arrancado (figura

em segundo plano), ter suas feridas curadas (figura em terceiro plano), ter o cabelo cortado

(figura em primeiro plano, no centro), ou ser sangrado (figura em primeiro plano, á direita)

(RING, 1998: 125). [É de se notar que as pernas de todas as pessoas foram pintadas como

se fossem patas de animais: insinuação de que, nesse contexto, todos os seres humanos se

assemelhariam a animais de duas patas?]

No século XVII, a depreciação do dentista em relação ao médico pode ser observada

comparando-se os discursos22 que dialogam em dois textos de linguagem visual: uma água-

forte, de 1622, e um quadro a óleo, de 1632.

22 Discurso = texto = enunciado = enunciação: é um produto da interação verbal quer se trate de um ato de fala imediato determinado pela situação de fala ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística (Bakhtin/Volochinov, 2004). O conceito de enunciado/enunciação será retomado no Capítulo 4: Teorias da linguagem - 4.1. O princípio do dialogismo.

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Em Der Zahnarzt (O Dentista)23,

um “barbeiro”, na função de

“dentista”, extrai um dente

anterior inferior, com a ajuda de

boticão ou alavanca (já não mais

uma tenaz). O efeito de sentido

criado é o da sensação de

sofrimento causado por dor

intensa. O ato cirúrgico acontece

no mesmo ambiente de trabalho utilizado para outros serviços - um lugar sem assepsia e

cheio de instrumentos como navalhas, tesouras e pincéis. Não há hierarquia nos

posicionamentos espaciais dos atores: todos se amontoam em volta do paciente. Nem o

barbeiro nem os homens que seguram o paciente vestem roupas diferentes das que usam no

exercício das tarefas diárias. A iluminação é promovida por uma única vela, segura na mão

de um pajem. O paciente senta-se na mesma cadeira onde, provavelmente, são atendidos

também os que deverão ser sangrados ou ter o cabelo cortado. Entre os observadores,

parece haver mais curiosidade que solidariedade ou respeito pelo desconforto do ser

humano vivo que está sendo sujeitado a um tratamento doloroso.

Em A lição de Anatomia do

Dr. Nicolaes Tulp24, já o título da

obra cria o efeito de sentido do

compromisso entre ensinar e

aprender, na ciência de saúde

Medicina. A hierarquia sócio-

cultural é definida pelo

posicionamento do mestre, à frente

e separado dos aprendizes,

23 HONTHORST, Gerard von. (1622). Água-forte do quadro Der Zahnarzt (RING, 1998: 148). 24 REMBRANDT van Riyn. (1632). A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp. Óleo sobre tela 169,5 x 216,5 cm. Haia: Mauritshuis. Referência obtida em: http://www.rembrandthuis.nl/2004/anatomischeles_en.html. Acesso em 19/out./2005.

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colocados todos juntos e de um mesmo lado da mesa cirúrgica. Professor e alunos estão

paramentados em figurinos cheios de compostura, diferentes dos do dia-a-dia; a aula

acontece em um ambiente despojado de móveis e utensílios, de aparente assepsia, e onde

não se encontra nada que não diga respeito à atividade de trabalho aí realizada. A

iluminação é promovida talvez por um lustre de velas, colocado acima da mesa cirúrgica,

fora do campo de visão do espectador do quadro. Mesmo o objeto de estudo sendo o corpo

de um cadáver (um ladrão condenado à forca, não um paciente doente que morreu), face e

mãos do Dr. Tulp revelam a atitude de um cirurgião concentrado em seu objetivo de

ensinar e os discípulos demonstram atenção e respeito à lição.

Os sentidos possíveis desses dois textos não verbais, a começar dos títulos e

levando-se em conta a sua natureza constitutivamente social, histórica e cultural, os liga a

enunciações anteriores e a enunciações posteriores, produzindo e fazendo circular

discursos (Brait, 2005: 68) que desqualificam a Odontologia em relação à Medicina.

Nos últimos anos do século XVIII e no início do século XIX, a medicina moderna fixou sua data de nascimento juntamente com o aparecimento da anatomia patológica. É a partir desse momento que os médicos passam a organizar um discurso sobre a manifestação da doença no corpo dos homens, um discurso capaz de incluir aquilo que durante séculos permaneceu abaixo do limiar do visível e do enunciável. Esse período histórico coincide com o desenvolvimento do capitalismo que terá como um de seus efeitos a socialização do corpo enquanto força de trabalho e de produção. Essas duas dimensões – do corpo político e do corpo biológico – se articularão no discurso médico; a preocupação com as doenças e com a saúde geram atos médicos capazes de restaurar as forças produtivas, de garantir a circulação adequada das mercadorias e de sustentar a administração e organização dos primeiros núcleos urbanos. "O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro”, segundo Foucault. No entanto, a entrada de outros discursos, seja o do sujeito que tem um corpo doente, seja o de outros profissionais, cria alguns impasses nesse discurso hegemônico. É no palco desses impasses que surge a possibilidade de um grupo de trabalho, da construção de novas representações sobre os lugares de cada um e da abertura para algumas mudanças dentro da instituição. Afinal, se a história das instituições é sempre reveladora da história do discurso dominante, ela não deixa de ser também a história das tentativas de resistência a esse discurso. Somos arrastados pela linguagem da "tribo" e sofremos quando não conseguimos que a singularidade de nossa fala se faça reconhecer. (Ribeiro de Souza, 1999).

Nas instituições públicas, acadêmicas ou hospitalares, todavia, o discurso dos

dentistas nem opunha resistência ao discurso dominante dos médicos, nem sequer

conseguia se fazer reconhecer. Várias obras plásticas do século XIX, dialogando com

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discursos anteriores, traduziram e interpretaram, de maneira séria ou satírica, o ofício do

“tiradentes”, ligando-o quase sempre ao desconforto, algumas vezes à tortura, e sempre à

dor.

Na xilogravura de 1800, à esquerda, ajoelhado à frente do

paciente aparentemente impassível, ao estilo japonês, o

dentista lhe extrai um dente anterior superior. No solo,

observam-se dentaduras de madeira sobre uma folha de

papel de arroz (RING, 1998: 99).

Na gravura colorida à direita, produzida

por Adrien-Victor Auger em 1817, um charlatão,

que se anuncia como “dentista do Grande

Mogol”, arranca o dente de um paciente que

esperneia, apesar de manietado por um assistente

(RING, 1998: 164).

Durante o século XIX, a Europa ficou atrasada em

relação aos Estados Unidos da América, no que se referia à

Odontologia. Havia, entre os europeus, muita brincadeira a esse

respeito. O fato está ilustrado, à esquerda, no quadro de Filippo

Palizzi (1818-1899), Il caccia-mole in carnevale, no qual um

charlatão finge ter extraído parte da mandíbula (de um animal)

de um “dolorido paciente” (RING, 1998: 214).

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Nessa mesma época, nos Estados Unidos, e pela primeira vez na história médica,

um paciente foi operado sem dor, graças à descoberta de um dentista. A cena inédita foi

protagonizada no Hospital Geral de Massachussetts, pelo dentista William Thomas Green

Morton, e pelo cirurgião John Collins Warren. No dia 16 de outubro de 1846, o médico

excisou um tumor do

pescoço do jovem Gilbert

Abbott, sem que este

emitisse nenhum gemido,

por estar sob o efeito do éter

sulfúrico.

No quadro Um dia de

éter25, esse episódio é

reproduzido: o dentista

segura o inalador de cristal

por ele projetado para conter

a droga anestésica, enquanto

o cirurgião opera, observado

pelo dentista-anestesista e

por uma platéia interessada

no novo invento. Assim,

esse recurso importante e

definitivo contra a dor nos

procedimentos clínico-

cirúrgicos, foi “descoberto”

por um dentista americano.

Rapidamente a novidade se

difundiu pela Europa: em Londres, no dia 21 de dezembro de 1846, o cirurgião inglês

Robert Liston amputou a perna de um paciente, enquanto este dormia. Depois, voltando-se

para os médicos que assistiam à operação, Liston exclamou: “esse truque ianque é vinte

25 HINCKLEY, Robert. (1882). Um dia de éter. Francis A. Countway Library if Medicine, Harvard Medical Library/Boston Medical Library, Boston. (RING, 1998: 245).

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vezes melhor que a hipnose!” (Ring, 1998: 233), embora o truque ianque não tenha sido

especificamente creditado ao dentista.

È de se notar que, em 1906, quase três séculos após “A Lição de Anatomia do Dr.

Nicolaes Tulp”, de Rembrandt, Vuillard pintou o quadro “Dr. Georges Viau dans son

cabinet traitant Annette Roussed”26, no qual o artista dá o tratamento de “doutor” ao

dentista, em uma obra pictórica (francesa) que não ridiculariza ou desqualifica esse

profissional, em relação ao médico. Neste quadro, o dentista está paramentado com avental

branco; um refletor frontal fornece o foco de luz específico, além da iluminação elétrica

geral do ambiente do consultório; os móveis e utensílios parecem ser apropriados ao

ambiente de trabalho odontológico; e a paciente está sentada na cadeira, (aparentemente)

tranqüila como se estivesse anestesiada e segura de que não sofrerá dor.

26 VUILLARD, Édouard. (1906). Dr. Georges Viau dans son cabinet traitant Annette Roussed. Disponível em: http://www2004.free.fr/sujets/peinture-musee-4.htm. Acesso em 9/out./2005.

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Enquanto na América do Norte e na Europa aconteciam avanços técnico-operatórios

da profissão, e o dentista passava a ser mais bem considerado, no Brasil, até o final do

século XVIII, ainda era o barbeiro ou sangrador que exercia o ofício de “tiradentes”.

Geralmente uma pessoa ignorante e tida em baixo conceito pela comunidade, eles

aprendiam a atividade de “arrancar dentes” com alguém mais experiente e deviam ser

fortes, impassíveis e rápidos. As suas técnicas eram rudimentares, o seu instrumental era

inadequado e não havia nenhuma norma de higiene nem recurso de anestesia.

O termo “dentista” só apareceu, aqui, em 1800. O candidato ao ofício precisava

passar por uma avaliação de conhecimento parcial de anatomia, métodos operatórios e

terapêuticos. Em 1808, com a vinda da família real para cá, foi criada a Escola Anatômica

Cirúrgica e Médica do Hospital Militar e da Marinha, transformada mais tarde na

Faculdade de Medicina da Bahia. Assim, até o século XIX, a Odontologia como atividade

de trabalho restringia-se quase que apenas às extrações dentárias, sendo que significado e

conceito de "barbeiro" podem

ser avaliados conferindo-se a

quarta edição do Novo

Dicionário da Língua

Portuguesa, de Eduardo de

Faria, publicado no Rio de

Janeiro em 1859 (Rosenthal,

1995): Barbeiro: s.m. - o que faz barba; (antigo) "sangrador", cirurgião pouco instruído que sangrava, deitava ventosas, sarjas, punha cáusticos e fazia operações cirúrgicas pouco importantes, entre as quais incluíam-se extrações dentárias.

“Barbeiro, Cabellereiro, Sangrador, Dentista, e Deitão-se Bixas”: o desenho27 de Debret

feito no Rio de Janeiro, em 1821, ilustra o conceito acima.

27 LARA, Sílvia. (abr. 2005). Médicos ou monstros. In: Pesquisa Fapesp, n. 110, p.90.

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Em 1851, exigia-se que os médicos, cirurgiões, dentistas, boticários e parteiras

apresentassem suas cartas de habilitação a uma Junta de Higiene Pública. Em 1879, um

decreto determinava que ficassem anexos a cada faculdade de Medicina um curso de

Obstetrícia e Ginecologia, uma escola de Farmácia e um curso de Cirurgia Dentária. O

primeiro curso de Odontologia nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro

foi oficialmente criado por meio do decreto 9.311, de 1884 (Anexo cinco).

No século XX, embora o dentista passasse a ser visto sob outro enfoque, devido aos

avanços tanto das técnicas operatórias, como dos instrumentos e aparelhos odontológicos, o

senso comum ainda elaborava, a respeito da profissão, representações que são

transformadas e reinterpretadas por poetas, escritores e compositores populares brasileiros.

Em “D(u)(Ent)al”, o poeta José Nêumanne28, verseja tão monologicamente quanto

é possível em poesia, sobre a sensação dual de um tratamento dentário: Um sorriso anestésico A lâmpada na retina

O dente roto O peito em frangalhos

O nervo exposto

A paixão secreta

A gengiva em flor O ferro na bochecha

No espelhinho as estrelas Do céu da boca aberta A broca rói A face paralítica

A língua em rosca Num beijo por dentro?

Imóvel na cadeira À mercê de tudo

O mundo em revista Na sala de espera

E a vida que roda Aqui dentro

28 NÊUMANNE, José. (1996). Solos do silêncio: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial. p. 83.

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Num espiral Dual De dor e alívio.

Em um trecho do conto “O cobrador”, o escritor Rubem Fonseca29 reforça os

sentimentos de desconforto e raiva do paciente em relação ao dentista, e o pouco caso e

desconsideração deste em relação àquele: não há consulta inicial com interação linguageira,

nem preenchimento de prontuário, nem condição do paciente expressar a própria voz. Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco. Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado. Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui - e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente. Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito.

No entanto, em um outro conto do mesmo autor30, “A escolha”, subentende-se o

dentista como o profissional capaz de restituir a função mastigatória desejada pelo

personagem. (...) Nunca sentei numa cadeira de rodas, mas dentaduras eu já tive, duplas, e sinto uma falta danada delas. Lembro com saudade das duas, tão bonitas dentro do copo de água onde eu as punha de noite ao deitar, a parte rosada brilhando e os dentes todos aparecendo limpinhos, através da água. Eu escovava os dentes pelo menos meia hora, toda noite antes de pôr no copo, usava sabão de lavar roupa, aquele azul, não tem melhor para limpar os dentes. Um sujeito sem nenhum dente como eu tem que saber comer direito. Banana é fácil, agora gosto mais ainda de banana, eu as espremo com as gengivas na boca antes de engolir, vira uma pasta, sinto muito melhor o gosto. Pão eu só posso comer o de forma, molhado no café com leite, para não ferir minhas gengivas. Gosto de tomar sopa e comer purê de batata. E posso comer carne moída bem cozida. Sonho, pelo menos uma vez por mês, com costeleta de porco frita.

29 FONSECA, Rubem. (1979). O cobrador . In: O cobrador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 163-182. 30 FONSECA, Rubem. (2002). A escolha. In: Pequenas criaturas. São Paulo: Cia das Letras. p. 9-13.

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Já a letra da música de Moreira da Silva, Fui ao dentista31, fala de um profissional

que mais se assemelha aos antigos “tiradentes/brutamontes” do século passado do que aos

profissionais modernos e preparados de hoje em dia (embora, na letra, o autor-paciente faça

menção a um cheiro que o faz perder a consciência. No Brasil, essa é uma técnica elitista,

moderna e acessível a poucos profissionais, pelo custo da aparelhagem específica e do

investimento em curso de especialização, já que até recentemente o manuseio desse

equipamento não estava incluído na graduação: a analgesia inalatória, ou sedação

consciente, com óxido nitroso). Fui ao dentista, pra chumbar uma panela, Mas o gajo achou que ela, não podia obturar. Ele me disse: “Vou mudar toda a mobília, Tu vais ver que maravilha, Morengueira vai ficar. Arranco tudo, arranco até o maxilar…” - Mas doutor, o que está me doendo é o pré-molar. Eu acho que vou ter um atrito com o senhor… - Mas quando eu vi o boticão que ele trazia, Minha tripa ficou fria, começou a tremedeira. Quem foi que disse que o papai a boca abria, Pra espetar a anestesia, na gengiva do Moreira. Mas tem que ser, queira ou não queira. Em vista disso, pra acabar com o meu berreiro, O doutor me deu um cheiro, e eu ferrei numa soneca E quando acordo, nem te conto camarada, Minha boca está chupada, e a gengiva está careca. Meu panelão levou a breca… Enquanto espero, se a gengiva murcha e seca, Pra mudar a perereca, provisória no bocão. Tudo o que é efe, sai comprido, sai soprado, Que até fico encabulado, com tamanha assopração: Farora fofa faz fofoca no feijão.

Os efeitos de sentido e a própria memória discursiva, isto é, o discurso que traz em

si também o interdiscurso, o pessoal e o coletivo - os ´outros` indeterminados, não

concretizados, sobredestinatários que esfacelam fronteiras de espaço e de tempo (Brait,

2005: 72)-, parecem manter uma unidade discursiva (Maingueneau, 1984: 179) sobre a

Odontologia. Essas representações desqualificariam o dentista, ao não relacioná-lo à

31 SILVA, Moreira da. Fui ao dentista . Música cifrada. Disponível no site: http://cifraclub.terra.com.br/cifras/cifras.php?idcifra=16193. Acesso em 6 jun. 2005

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especialidade da área de ciências biológicas que trata de estruturas orgânicas essenciais

para a saúde (mastigação, fonação, nutrição, etc.) e para a comunicação social interpessoal,

mas, sim, relacionando-o à profissão menos “importante”, menos “digna”, menos “nobre” e

de “menor prestígio” em relação à Medicina, tida como humanitária, salvadora, mitigadora

da dor e dos sofrimentos humanos.

Mesmo em âmbito institucional, o Projeto de Lei nº 25, de 2002, do Senado Federal,

que define o Ato Médico32, causa reações tanto por interferir na autonomia, como por

desvalorizar e hierarquizar, em relação à Medicina, as funções de outras profissões da área

de saúde como Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia,

Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Nutrição, Psicologia, Serviço Social, e

Técnicos em Radiologia, além da Odontologia.

Uma outra disposição institucional federal, de setembro de 2005, reforça a

desqualificação das ciências da saúde, Odontologia inclusa, em relação à Medicina. É a

Nova Tabela das Áreas do Conhecimento33, proposta pela Comissão Especial de Estudos

nomeada por CNPq, CAPES e FINEP, e que reduz os níveis hierárquicos da tabela em

vigor, estabelecendo apenas grande área, área e sub-área. Nela, o item 2 estabelece que,

com exceção das Ciências Biológicas e das Ciências Humanas, a denominação da grande

área é alterada: de Ciências da Saúde para Ciências Médicas e da Saúde.

No entanto, é de se salientar que o Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São

Paulo, referência nacional no atendimento ao paciente oncológico, foi pioneiro na

implantação de uma equipe de cirurgiões-dentistas no corpo clínico, visando à integração

multidisciplinar entre os profissionais envolvidos no tratamento do câncer, para oferecer

32 Projeto de lei que assegura ao médico a exclusividade na prescrição de tratamentos e na ocupação de cargos de chefia em unidades de saúde. A proposta tramita no Congresso Nacional desde 2002. No entanto, está parada na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, devido às manifestações contrárias de profissionais de outras áreas de saúde porque, defendendo interesses corporativistas dos médicos e tornando a prescrição terapêutica exclusividade deles, tira a autonomia daqueles outros para atender seus pacientes, nas unidades públicas de saúde. 33 Informação disponível em: http://www.capes.gov.br/capes/portal/conteudo/NovaTabela_AreasConhecimento.pdf. Acesso em 23/set./2005.

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uma melhor qualidade de vida aos pacientes. Nesse hospital, a Estomatologia34 (formada

por um Diretor, um Titular, quatro residentes, um atendente de consultório odontológico e

dois alunos de mestrado) interage com outras especialidades odontológicas e com algumas

áreas da Medicina, como Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Radioterapia, Oncologia Clínica,

Pediatria, Dermatologia e Oncologia Genética, uma vez que, qualquer que seja o tipo de

tratamento ao qual o paciente oncológico seja submetido (cirúrgico, quimioterápico ou

radioterápico), é comum haver efeitos colaterais no sistema estomatognático.

Por esse motivo, e para constatar: a) que representação se faria sobre o dentista,

nesse ambiente hospitalar específico; b) se o dentista seria considerado parte integrante da

equipe multidisciplinar, do mesmo modo que o médico oncologista e os outros

profissionais da área de saúde (psicólogos, enfermeiras, radiologistas, fisioterapeutas,

fonoaudiólogas, patologistas, etc.); e c) como seria o procedimento da primeira consulta,

fosse ela médica ou odontológica; no dia 10 de agosto de 2004 foi gravada em áudio uma

entrevista, previamente agendada com o diretor do Departamento de Estomatologia, Dr. F.,

na saleta dele dentro daquele contexto hospitalar (Anexo oito). Esse material não faz parte

do corpus da pesquisa: serve apenas para ilustrar o sentido de equipe multidisciplinar, na

qual o dentista é considerado um profissional do mesmo nível de qualificação e com

responsabilidade semelhante à dos outros especialistas. Isso pode ser conferido no recorte a

seguir, feito da transcrição daquela entrevista:

6. F: e:: a primeira consulta normalmente o paciente já chega ao departamento com uma queixa ... e frente a essa queixa são feitas todas as ... as perguntas ã:: com relação a tempo de evolução da doença a: a queixa se dói não dói o MOTIVO que ele chegou ao departamento... quando ele já passou por outros departamentos, a entrevista:: se restringe aPEnas aos cuidados da boca. ... quando ele:: ... chega PRIMEIRO no departamento de Estomatologia é:: são feitas perguntas de ordem geral, pra saber sobre a saúde do paciente ... as doenças prévias ... 7. P: prontuário fixo estabelecido já? 8. F: sim... o prontuário daqui é fixo né? ... é o mesmo prontuário que se este paciente passar por OUTRO departamento... ele vai lá tendo a minha entrevista...

34 Especialidade da Odontologia com diferentes denominações: Diagnóstico Bucal, Diagnóstico Oral, Medicina Bucal e Semiologia. É responsável pelo diagnóstico e tratamento das doenças da boca e do sistema estomatognático (ossos, músculos, dentes, gengiva, nervos, vasos, articulações e ligamentos), como as alterações benignas e malignas de tecidos moles e ósseos, que podem ser manifestações de um quadro mais grave e podem interferir na saúde geral do indivíduo.

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Do último terço do século XX para cá, a representação vigente sobre os dentistas

vem se modificando e, hoje em dia, talvez em função da ideologia da beleza jovem, eles

parecem ser considerados os “estetas do sorriso”, e mais do que ser associada aos efeitos de

sentido historicamente construídos - dor, ansiedade, “tortura” e sofrimento, desconforto,

medo do tratamento preventivo e/ou curativo-, a Odontologia estaria antes relacionada ao

fato de ser a única profissão da área de saúde capaz de dar, a quem possa arcar com os

custos financeiros de tal tratamento, um belo, franco e comunicativo “sorriso de estrela”,

com gengivas sadias e rosadas e todos os dentes muito brancos e bem alinhados, como o da

figura35 abaixo. “Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. Na frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só.” (Rosa, 1965: 28) .

Essa associação mostraria, de certa forma, a aceitação da ideologia da beleza jovem,

mais ou menos generalizada, atualmente, em que todas as funções orgânicas parecem estar

ligadas à, e serem dependentes da estética visual.

No entanto, pode ser curioso

observar que, para os maias do

século IX, estético e desejável para

os que pudessem arcar com esse

luxo (naquela época, como agora,

reservado aos mais ricos), era ter os

dentes serrados e incrustados com

pedrinhas de jade e turquesa, como

se vê no crânio exposto no Museu Nacional de Antropologia do México (Ring, 1998: 14).

35 Capa do Suplemento Feminino de 14/15 ago. 2004, do jornal O Estado de São Paulo.

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Convém observar, entretanto, que algumas pesquisas acadêmicas resultaram em

contribuições da Odontologia para a Medicina, o que talvez ajude a modificar as

complexas relações interdiscursivas entre essas profissões: a osseointegração, os dentes de

proveta e um estudo, em andamento, sobre células-tronco obtidas a partir da polpa36 de

dentes decíduos.

Descoberta em 1957 e, desde então pesquisada e difundida mundialmente pelo

ortopedista sueco professor Per-Ingvar Brånemark, osseointegração é a técnica que

permite que pessoas sem alguma parte do corpo, em decorrência de amputação, acidente,

doença ou problema congênito, possam usar uma prótese ligada diretamente ao osso por

um pino de titânio - metal leve, resistente, e não sujeito à rejeição orgânica. Esta última

característica, a bio-compatibilidade com o osso, é decisiva, tanto para a Odontologia

como para a Medicina, por permitir a reabilitação protética funcional e estética, de dentes,

de membros, de orelhas e narizes, etc.

Por outro lado, mais recentemente, o desenvolvimento de técnicas de engenharia

genética para criar dentes vivos, “de proveta”, a partir de tecidos embrionários, põe a

Odontologia na era da Medicina regenerativa e abre caminho para a criação de órgãos

maiores (Sharpe, 2005: 70)37.

Notícia veiculada na imprensa38, em dezembro de 2005, divulgou um estudo feito

por pesquisadores do Instituto Butantã, da Universidade de São Paulo, e da Fundação

Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o comportamento de células-tronco obtidas da tecido pulpar

de dentes decíduos (dentes de leite): no futuro, essas células poderiam ser uma alternativa

terapêutica ao uso de células do cordão umbilical e até, talvez, das de embriões humanos.

Os estudos preliminares demonstram que aquelas células pulpares preservam características

típicas de células-tronco embrionárias e, como elas, podem dar origem a uma série de

tecidos diferenciados, como neurônios, osso, cartilagem e músculo.

36 Polpa dentária (tecido pulpar): tecido conjuntivo muito vascularizado e inervado, situado na parte central do dente, e que assegura a nutrição, a sensibilidade e a defesa do elemento dental. 37 SHARPE, Paul T. e YOUNG, Conan S. (set. 2005). Dentes de proveta. In: Scientific American Brasil. Edição 40. p. 70-73. 38 ESCOBAR, Herton. (2/dez./ 2005). Cientistas brigam por autoria de estudo. In: Jornal O Estado de São Paulo. VIDA&. p. A19.

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Capítulo 2

Conceitos de “humanização”. “A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos). Cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular e nisso reside todo o seu sentido. É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história.”

(Bakhtin, 2003: 312)

A atual preocupação globalizada com o tema “humanização” é evidenciada em

diferentes contextos sócio-culturais - hospitais, salas de aulas em faculdades

(principalmente de Ciências Humanas e de Ciências da Saúde) e organismos institucionais

(Ministério da Saúde, governos estaduais, Estatuto da Criança e do Adolescente) -, e

veiculada em vários suportes materiais - mídia eletrônica, imprensa escrita e televisiva, etc.

Para refletir sobre a adequação do conceito de “humanização no atendimento ao

paciente odontológico”, do ponto de vista das várias questões teóricas pertinentes à

abordagem enunciativa dos discursos, faz-se necessário um ajuste conceitual na definição e

na expansão de possíveis acepções filosóficas, sociais e institucionais do termo

“humanização”.

Num dicionário geral da Língua Portuguesa, humanização é definida como ato ou

efeito de humanizar(-se) , de tornar(-se) benévolo ou mais sociável (Houaiss, 2001: 1.555).

E, no entanto, esse ato ou efeito tem significado diferente, quando se consideram os pontos

de vista de ciências humanas, exatas ou da saúde.

I. Ponto de vista filosófico

De um determinado ponto de vista filosófico leigo, o ser humano é um agente

transformador capaz de ampliar os limites que a natureza lhe impõe. Fabrica artefatos e cria

significados por meio do conhecimento. A identidade humana é definida por esse ser

indivisível, sujeito original dotado de necessidades próprias, cuja história singular vai da

fecundação à velhice e se enraíza num contexto sócio-cultural: família, educação, trabalho,

lazer, etc.

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Se a compreensão de cada indivíduo a seu próprio respeito passa necessariamente pela relação com seus semelhantes, já que cada um de nós nasce dentro de um contexto sócio-cultural, a humanidade precisou criar canais comunicativos em seu interior, entre semelhantes. A forma mais desenvolvida de comunicação é a linguagem, base das relações entre mundo e conhecimento, entre indivíduo e sociedade, entre grupos e seus integrantes (p.7). O processo de humanização, que se realiza em relação ao conhecimento, à linguagem e à ação, produz um conhecimento que se situa nas condições materiais de produção da vida, nos valores, no sentido que se atribui à existência. A humanização tornou-se possível porque, ao mesmo tempo em que suplanta suas carências, o indivíduo é capaz de atribuir significado às suas experiências. A preservação das experiências passadas, a memória coletiva da sociedade, mediada pela linguagem, torna possível a vida humana (p.8). (André, 2002).

Um outro ponto de vista filosófico leigo pondera que tornar-se humano não é

simplesmente um processo biogenético, mas, sobretudo sócio-cultural, já que cada pessoa

se constitui no interior da coletividade (Ponce, 2002:16). A evolução da humanidade, enquanto processo de humanização, ao se revelar na História, o faz em duplo sentido: como evolução das relações estabelecidas entre a humanidade e o mundo e como evolução das relações mútuas dos seres humanos entre si (p.17). Quanto mais essas relações se humanizarem, mais a humanidade será livre. Humanização e libertação são, portanto, o mesmo. Além do avanço do conhecimento, para a humanização é fundamental o grau de socialização. Se fosse garantido a todos o acesso ao patrimônio científico, tecnológico, filosófico e artístico da humanidade, então seríamos hoje mais livres que ontem. Quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. Alienado de si mesmo, forma mais grave de alienação, o indivíduo desumaniza-se cada vez mais (p.18). (Ponce, 2002).

II. Ponto de vista em uma área das Ciências Exatas

No ambiente acadêmico do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), USA,

fundado em 1865, por algum tempo houve a proposta de ensino de elementos artísticos

unidos à pedagogia para engenheiros, com história da arte, ciências humanas e sociais

sendo ensinadas, com o objetivo de dar educação humanística aos futuros técnicos em

engenharia. Mas o MIT retornou hoje ao que era antes da última guerra: um instituto onde são formados engenheiros, ligado à indústria e à produção militares. As virtudes morais da estética não são mais invocadas ali. Os discursos sobre a necessidade de humanizar a vida social tecnocrática e alargar a sensibilidade do engenheiro não têm mais vez na fala da administração (Epstein, Judith apud Romano, 2004: 215).

III. Pontos de vista em áreas das Ciências da Saúde

Na área de saúde, principalmente na Medicina, também se verificam diferentes

acepções da definição ou do conceito de humanização, tanto em ambiente acadêmico como

em instituições e na mídia impressa e televisiva.

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a. Em ambientes acadêmicos

Na França, desde abril de 1993, um decreto ministerial tornou obrigatório o ensino

de humanidades e de história das ciências médicas, em todas as faculdades de Medicina do

país: uma medicina mecanizada e materialista, esquecida da diversidade humana e da

unicidade de cada homem, cometeria estragos. Para preservar o humanismo da Medicina,

impõe-se competência, compaixão e um mínimo de calor humano nas relações dos médicos

com seus doentes. O tempo de um olhar, a troca de uma palavra ou de um gesto, não se

medem; a qualidade da presença é um bem inestimável para o doente (Meyer, 2002:17).

No Brasil, cumpre salientar que, como no exterior, quase todos os trabalhos de

pesquisa ou de divulgação sobre a importância do inter-relacionamento paciente-

profissional referem-se à Medicina e são feitos sob a ótica de profissionais de outras áreas,

como as de Psicologia: humanizar é realizar movimentos simples como sorrir, aproximar-se, resgatar a empatia no contexto profissional, aproximar-se com delicadeza, consideração e humildade. Ter consideração e pesar pela dor do outro, transmitidos pelo olhar, pelo tom de voz, pelo cuidado com as palavras, pelo aperto de mão, pelo sentir (Sancowski, 2002: 132),

de Relações Públicas:

As principais reclamações dos clientes dizem respeito ao atendimento, desde a recepção até o relacionamento estabelecido com o médico. Entre tantas contribuições, a definição de estratégias de comunicação para a área de saúde deve levar em consideração transparência, ética, responsabilidade social, humanização na prestação de serviço, credibilidade, qualidade no atendimento e no pós-atendimento ao paciente (Nassar, 2003: 154),

e de Enfermagem:

A temática da “humanização em saúde / enfermagem” vem se constituindo, desde uma perspectiva caritativa até a preocupação atual com a valorização da saúde como direito do cidadão, inserida em projeto político de saúde. Artigos mostram a necessidade de investir no trabalhador, valorizando a dimensão subjetiva. A humanização do atendimento supõe encontro entre sujeitos que compartilham saber, poder e experiência vivida, o que implica transformações políticas, administrativas e subjetivas (Casate, 2005)39,

39 CASATE, Juliana Cristina e CORREA, Adriana Katia. (2005). Humanization in health care: knowledge disseminated in brazilian nursing literature. In: Rev. Latino-Am. Enfermagem. [online]. Jan./Feb., v.13, n.1, p.105-111. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-1692005000100017&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em 29/ago./2005.

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A pesquisa quantitativa do dentista Bibancos (2003) visou a traçar o perfil da

opinião de uma amostra da população da cidade de São Paulo sobre a Odontologia. O

pesquisador destaca que além dos procedimentos técnicos, há fatores que interferem na satisfação do paciente, alguns diretamente ligados às características pessoais do profissional - como atenção e respeito ao paciente -, outros, à higiene e organização do consultório.

b. Em instituições

Por outro lado, tanto organismos institucionais federais e estaduais, como alguns

particulares, usam o termo “humanização” sob outras acepções conceituais da palavra.

b.1. O Edital MCT/SCTIE/DECIT/MS/CNPq 037/2004, de 16 de julho de 2004,

estabelece a Seleção Pública de Propostas sobre Sistemas e Políticas de Saúde – Qualidade

e Humanização no SUS, com o objetivo de expandir a produção do conhecimento básico aplicado sobre Sistemas e Políticas de Saúde – Qualidade e Humanização no SUS, que contribua para o desenvolvimento de ações públicas voltadas para a melhoria das condições de saúde da população brasileira e para a superação das desigualdades regionais e socioeconômicas, por intermédio do apoio a projetos cooperativos de pesquisa executados por grupos atuantes na área. As propostas deverão fortalecer a interação entre pesquisa de campo, serviço de saúde (reorganização da atenção nos hospitais psiquiátricos, universitários e de pequeno porte: acesso, humanização, financiamento, regionalização e integração na rede assistencial), laboratório de pesquisa, e os setores públicos, privados, acadêmicos e empresariais40.

b.2. Para o Ministério da Saúde, ações que signifiquem a humanização do Sistema

Único de Saúde (SUS) são: reduzir filas e diminuir o tempo que os pacientes esperam por atendimento, a partir de ações simples, práticas e criativas, como a implantação de equipes responsáveis por fazer “acolhimento com classificação de risco”; promover o direito dos pacientes de serem atendidos com respeito, eficiência, rapidez, informação e segurança; permitir o direito de o paciente receber visitas abertas e ser acompanhado, visando à reabilitação do doente, à diminuição do tempo de internação e à melhora da qualidade da permanência do paciente na unidade de saúde (Anexo um).

40 Disponível no site: http://www.cnpq.br/servicos/editais/ct/edital_0372004_sist_saude.htm. Acesso em 9/fev./2005.

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b.3. O Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino, contemplado pela

portaria interministerial (Ministérios da Educação e da Saúde) nº 1000 de 15 de abril de

2004, prevê um aperfeiçoamento do processo de humanização do atendimento ao paciente,

com redução das filas do pronto-socorro e da demora no agendamento de consultas. (...) Assim, não haveria mais pacientes com doenças graves nas filas de espera, mas sim nos leitos, merecendo tratamento cada vez mais avançado, prestado por profissionais cada vez mais preparados (Anexo dois).

(No dia 7 de abril de 2005, o presidente da República em exercício José Alencar

sancionou uma lei que pretende “humanizar o atendimento às parturientes”, concedendo-

lhes o direito a um acompanhante antes, durante e após o parto, em todo e qualquer hospital

público ou conveniado ao SUS.)

b.4. Para a Secretaria de Saúde do governo do Estado de São Paulo, o trabalho de humanização do hospital começa com a contratação de estudantes “acolhedores” que cumprirão a função de recepcionar as pessoas e ajudá-las a receber o tratamento nas unidades públicas estaduais de saúde (Anexo três).

b.5. Para entidades, hospitais e associações que cuidam de pacientes crianças e

adolescentes, assistência humanitária é considerada toda e qualquer atividade para os

acompanhantes, geralmente as mães das crianças hospitalizadas, mas também admitem a

permanência dos pais, durante o dia, nas casas de apoio para os parentes das crianças de

outros Estados. Isso já acontece na Associação de Assistência à Criança Cardíaca e à

Transplantada do Coração (ACTC), na Casa Hope e no Grupo de Apoio ao Adolescente e à

Criança com Câncer (Graacc)41.

b.6. O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei nº 8.069, de 13 de

julho de 1990, ganhou força com a tendência à humanização, surgida no início da década

de 90. Programas de humanização hospitalar de alguns hospitais infantis (como Hospital

do Câncer A.C. Camargo e Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de

Medicina da Universidade de São Paulo) incluem aulas de arte ministradas por artistas

41 LOPES, Adriana Dias. (10/out./ 2004). Aula, passeio e bingo. Tudo para esquecer a dor. Jornal O Estado de São Paulo. Primeiro Caderno, Geral, Saúde, p. A18.

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plásticos da Associação Viva e Deixe Viver, ou palhaçadas feitas pelos atores Doutores da

Alegria (foto abaixo)42, para que os pacientes internados possam assim enfrentar melhor a

dura rotina dos tratamentos a que têm de se submeter.

b.7. Desde 2002, as Diretrizes

Curriculares Nacionais dos Cursos

de Medicina, Odontologia,

Enfermagem e outros, da área de

saúde, determinam a inclusão de

disciplina de Ciências Humanas e

Sociais na grade curricular,

visando à formação cultural,

humanística e ética dos

estudantes, de modo a contribuir

para a compreensão, por parte

deles, dos determinantes sociais,

culturais, comportamentais,

psicológicos, éticos e legais da

profissão43.

b.8. O 1º Fórum Internacional de Ética, Humanização e Qualidade do Hospital

Israelita Albert Einstein, de São Paulo, ocorrido em julho de 2001 e feito por médicos para

médicos, psicólogos e enfermeiras que atuam em unidades de terapia intensiva, já se

preocupava com questões relacionadas, especificamente, ao atendimento de pacientes

internados na UTI do hospital. Durante o evento, chegou-se à conclusão de que

“humanizar é uma atividade de pessoa para pessoas” e citou-se a frase atribuída a

Theodore Roosevelt: Nobody cares how much you know, until they know how much you

care.

42 Capa da revista hands. (2004). São Paulo. ano 4, n.21, abr./mai. 43 Disponível em http://www.redeunida.org.br/diretrizes/docs/Odontologia_Resolucao_0302.pdf. Acesso em 23/ago./2004.

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c. Na mídia

c.1. Para o médico clínico e geriatra André Jaime, presidente do Departamento de

Clínica Médica da Associação Paulista de Medicina, há que se fazer um atendimento mais

humanizado, mostrar outras formas de entender o indivíduo que procura tratamento. O

peso que cada palavra de um médico tem, quando dita para o paciente, não é ensinado

durante as aulas. Já o professor titular da cadeira de Semiologia Médica da Faculdade de

Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, José Carlos Aguiar Bonadia, tem noção de

que, sendo o volume de informações técnico-científicas muito grande, nas Ciências

Biológicas, os alunos perdem o interesse em relação às Ciências Humanas. Daí os dois

colegas terem tido a idéia de estruturar um “1º Encontro de Humanidades” para médicos,

psicólogos e outros especialistas (Vieira, 2003:35)44.

c.2. O artigo “Doutor, me ouça!”, da revista VEJA, admite que médicos que não só

auscultam, mas escutam os pacientes são o grande objetivo a ser atingido, sendo que o primeiro recurso de um médico, durante a consulta, é basicamente a história contada pelo paciente. E, para entendê-la, ele precisa compreender a essência desse relato. Os profissionais capazes de apreender as nuances das histórias de seus pacientes desenvolvem com eles uma relação mais estreita, o que resulta em tratamentos mais precisos e eficazes. Ao se sentir ouvido, o paciente aceitará melhor o diagnóstico e a terapia proposta, por mais duros que sejam. “Cada palavra dita por um médico ao seu paciente é um veredicto. Assim como o escritor, ele deve avaliar cada palavra e saber usá-la com extremo rigor”, afirma o médico sanitarista e escritor Moacyr Scliar (Buchalla, 2004)45.

c.3. Devido à comoção pública provocada pelo caso Terri Schiavo, no primeiro

semestre de 2005, ocorreram, nos meios jornalísticos impressos e televisivos, novas

discussões a respeito do sentido de humanização e cuidados paliativos para pacientes

terminais. O padre Leo Pessini, um dos membros da Associação Internacional de Bioética e

vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, se confessa sensibilizado por causa dos

casos em que não vê respeitado o direito do paciente de morrer em paz, com dignidade, e

diz nunca ter se sentido tão perto do ser humano e tão longe da humanização. Ele afirma

que 44 VIEIRA, Ana Luísa. (17 set. 2003). Dose de atenção. Carta Capital, São Paulo, ano X n. 258, p.35. 45 BUCHALLA, Anna Paula. (5 mai. 2004). Doutor, me ouça! VEJA, São Paulo, ano 37 n.18.

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nas áreas de saúde e ciências da vida, já se incorpora a disciplina de bioética. É impossível imaginar um médico que não se preocupe com esses valores humanos em sua prática diária. Para além da mera informação, procura-se a formação. Já se tem, no Brasil, o primeiro mestrado stritu sensu em bioética, no Centro Universitário São Camilo, que estende o curso para diferentes áreas além da Medicina, como Direito, Enfermagem, Psicologia, Ciências Humanas e Jornalismo (Manir, 2005)46.

Já para o médico especialista em economia da saúde Marcos Bose Ferraz, do Centro

Paulista de Economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), humanização no

atendimento de pacientes terminais seria a “desospitalização”, ou home care (internação em

domicílio), que reduziria custos, em relação à internação hospitalar, e daria ao paciente a

oportunidade de estar na própria casa, entre familiares e amigos. No Hospital do Câncer

A.C.Camargo, em São Paulo, há alguns médicos que consideram o home care um

tratamento paliativo que, embora não vise à cura, mas ao alívio dos sintomas da doença,

evita sofrimentos desnecessários para o paciente e desocupa leitos hospitalares (Lopes,

2005)47.

c.4. No fôlder48 do Hospital Samaritano, de São Paulo, o superintendente geral Dr.

José Antonio de Lima afirma que o processo de humanização em um hospital se inicia

pelo tratamento que se dá aos colaboradores e se estende pela assistência aos clientes e

pacientes antes, durante e depois da internação.

c.5. O primeiro Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) foi

criado em 2004 para substituir o Provão. Segundo o professor Rui V. Oppermann49, da

UFRGS, nesse ano a prova para a área da Odontologia avaliou

para além dos aspectos estritamente técnicos da Odontologia, o cidadão, sua formação ideológica, humana e intelectual. Na prova, foram abordados desde a

46 MANIR, Mônica. (27/mar./2005). Vida e morte, uma questão de dignidade. Jornal O Estado de São Paulo. Aliás. p. J4. 47 LOPES, Adriana Dias. (3/abr./2005). Quanto mais perto da morte, maior o custo. Jornal O Estado de São Paulo. Primeiro Caderno. Vida&. p. A21. 48 O objetivo É SER humano. (out./2005). Fôlder do Hospital Samaritano. Fascículo 4. p.2. 49 Análise das provas do ENADE. (8/nov./2004). 140 mil fazem o novo Provão. Jornal O Estado de São Paulo. Primeiro Caderno, VIDA &, Educação, p. A10.

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globalização, o crescimento populacional e a clonagem, até a sensibilidade artística e poética.

c.6. O tratamento domiciliar, como aparece em matéria de jornal50, não será

considerado atendimento humanizado, por não levar em conta princípios de biossegurança

apropriados ao correto exercício da profissão e pela limitação dos procedimentos possíveis

de serem executados nessas condições de atendimento.

O atendimento em domicílio se limita, nos dias de hoje, a muito poucos

procedimentos operatórios (profilaxia supragengival, por exemplo). Será que com as

técnicas e os recursos modernos, o atendimento em domicílio caracterizaria um

“atendimento humanizado” ou apenas um conforto para aplicável a número muito limitado

de terapêuticas odonto-clínicas?

(Vale notar que não se está considerando, aqui, o caso de pacientes acamados ou

sem condições de locomoção para atendimento em outro local, quer consultório particular,

quer ambiente hospitalar.)

50 O dentista na sala. Capa do caderno ESTADÃOESTE do jornal O Estado de São Paulo, n. 570, 11/mar./2005.

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Convém ressaltar que é possível que

o tratamento em domicílio já

existisse desde há algum tempo, para

quem pudesse pagá-lo, levando-se

em conta o quadro Il cavadenti51. Em

1875, quando ele foi pintado, ainda

não existia a luz elétrica. O

tratamento, como representado no

quadro, estará sendo feito às

7h55min, à luz da manhã, ou às

19h55min, à luz de velas? Pela

sombra na parede, firme e definida, a

hora parece ser a da manhã: a luz

entra por uma janela grande e alta, à

direita do espectador do quadro. O

dentista, paramentado com o que

parece ser um guarda-pó claro, atende uma senhora, cujas roupas e jóias dão a impressão de

ser ela de classe social elevada. O tratamento instituído não é o de extração dentária, mas o

de restauração dentária, a se considerar o título do quadro, a aparência e a forma de

preensão do instrumento usado no procedimento. O local de atendimento seria a sala da

casa da paciente, sentada em uma poltrona de aparência confortável? Ou seria esse o

consultório particular do dentista? Supondo-se que esse seja o domicílio da cliente, o

profissional levou seus instrumentos e medicamentos até ali. No último quarto do século

XIX, como hoje em dia, apenas algumas pessoas podiam arcar com o custo de um

tratamento em domicílio. Naquela época, antes do advento da anestesia e dos princípios de

assepsia e de biossegurança, esse conforto não excluía a apreensão, o medo e a dor do

tratamento (reparar a postura das mãos, a expressão do olhar e o aparente enrijecimento do

corpo da cliente), nem o risco de infecção a que o paciente estava sujeito.

51 CEFALY, Andrea. (1875). Il cavadenti. óleo sobre tela, 130x104 cm. (Museo Provinciale, Catanzaro) Disponível em: http://www.abramo.it/cefaly/opere10.htm . Acesso em: 2/out./2005.

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Embora, nas áreas da saúde, a preocupação com a humanização no atendimento ao

paciente tenha surgido no final da década de 90, o foco atual dos dentistas não parece ser a

Odontologia preventiva ou curativa, funcional ou mais humanizada, mas parece visar

apenas à Odontologia estética, muito cara e ao alcance de bem poucos.

Hoje em dia, há grande sofisticação de técnicas cirúrgicas e anestésicas, com o

desenvolvimento de pesquisas e de aparelhagem diagnóstica mais elaborada, mais eficaz e

menos invasiva; há medicamentos de última geração e com grande freqüência são feitas

novas descobertas nos campos de genética, física e química molecular; há manipulação do

genoma e de células-tronco. No entanto, paradoxalmente, a atenção, a consideração, o

respeito e o cuidado na interação durante o atendimento ao paciente parecem ter sido

relegados a um segundo plano. Os profissionais das ciências biomédicas parecem não se

lembrar de como o paciente se sente, tendo em vista as representações construídas ao longo

da História sobre essas atividades de trabalho, nas quais a assimetria das relações de

autoridade (ou de poder) é constitutiva. Os profissionais de saúde teriam se esquecido de

que tratar ainda conta, às vezes, tanto quanto curar? questiona-se Meyer (2002:11). E, no

entanto, esse efeito de sentido poderia começar a ser construído por meio da linguagem, na

interação social da consulta inicial, já que o sentido não está inscrito no texto falado: ele é

sempre múltiplo e variável de acordo com o contexto. Dessa maneira, a desigualdade de

posições na comunicação profissional-paciente, devida aos mais diferentes fatores (níveis

de conhecimento acadêmico, valores pessoais, culturais, históricos e sociais), talvez se

atenuasse.

Em vista do que foi exposto, vai-se partir da hipótese de que humanização não seja

apenas ato ou efeito, como define o dicionário; nem seja demonstrar compaixão e calor

humano ou dirigir-se ao paciente com respeito; nem seja ouvi-lo com atenção ou recorrer a

um profissional da comunicação para melhorar a interação profissional da saúde-paciente,

como propõem os autores citados neste capítulo.

Nos limites deste estudo e em que pese o fato de se haver analisado apenas um

único ator social, vai-se considerar que humanização no atendimento odontológico seja a

atitude humana transformada em um texto individual, único e singular (Bakhtin, 2003:

312), estabelecida no contexto dialógico do consultório quando, ao exercer sua atividade de

trabalho segundo os preceitos ético-profissionais, o dentista leva em conta a alteridade

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constitutiva (história, valores, cultura e sentimentos) do Outro – o paciente – e cria

condições de ele expressar sua voz.

Tal atitude (atendimento humanizado) parece começar a se constituir por meio da

interação linguageira nessa situação específica de trabalho, durante a qual o discurso do

profissional dialoga com textos prescritivos e com discursos de vários interlocutores

(incluindo o interdiscurso em relação à Medicina), e na qual se expressam também as

memórias convergentes, já que o discurso se encontra preso entre duas delas: uma memória “interna”, que se enriquece e aumenta sua autoridade à medida que o tempo passa e que os textos se acumulam; e uma memória de filiação “externa”, que legitima o discurso ao inscrevê-lo na linha dos anteriores semelhantes e ao colocar uma linha correspondente de adversários (aquela com a qual se identificam as figuras do Outro). Que, dentre todo o dizível de uma formação discursiva, uma coisa e não outra coisa tenha sido dita é um dado incontornável (Maingueneau, 1984: 131).

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Segunda parte

Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa

“O trabalho do pintor está sob a pintura, assim como a realidade está sob o visível. O trabalho e a realidade são, desse modo, dissimulados pela visibilidade que criam.”

(Bernard Noël, in Guérin, 2001:VIII)

A atividade humana sempre é uma arbitragem, um espaço de possíveis a negociar,

um debate de normas antecedentes (ligadas a gêneros da atividade e à “tradição”) e

renormalizações, ao mesmo tempo operacionais e éticas, onde não existe execução, mas

criação de estratégias singulares para enfrentar os desafios do contexto de trabalho

(Schwartz, 2000: 34). A transmissão de prescrições e a reincorporação de normas são

imanentes a toda atividade, o tempo todo são retrabalhadas, estão sujeitas a microdecisões

e são recolocadas, em diferentes graus, na história da atividade, dependendo de como, de

por quê e do que se transmite (saberes, técnicas, procedimentos coletivos, valores), numa

relação dialógica entre conceitos e experiências. Isso confere uma dimensão “humanizada”

ao trabalho, em que saberes científicos, saberes advindos da experiência profissional,

questões éticas e existenciais, desafios econômicos, exigência de qualidade técnica, etc., se

cruzam, se superpõem, se reencontram, se completam, se enriquecem mutuamente

(Matheron, 1997: 256).

Essa relação entre fazer e dizer se materializa na criação verbal da interação,

refletindo o pluripertencer dos sujeitos a vários universos simultaneamente (cognitivo,

afetivo, fisiológico, social) ligados a um centro humano de singularização (França, 2002:

75), e implica a criação de uma metodologia específica para cada situação particular, em

que estão misturadas atividades materiais, práticas sociais sem linguagem, prática

profissional e manifestações plurissemióticas, como fala e escrita, tom de voz, gestos,

olhar, ações, etc.

Desse modo, sem se tratar de assunto exclusivo a lingüistas, a integração linguagem

e trabalho se constitui questão de interesse para pesquisadores ergonomistas, filósofos,

sociólogos, médicos, psicólogos e outros profissionais, que perceberam o quanto não é

possível compreender a atividade de trabalho humana sem incluir o exame das trocas

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linguageiras que acontecem entre as pessoas direta ou indiretamente envolvidas nas

situações do trabalho sob investigação. Assim,

a troca conceitual entre disciplinas não traz nenhuma solução; igualmente ineficaz é a escolha de uma disciplina, dentre várias, como liderança teórica que teria a responsabilidade de fornecer modelos às demais. É no engajamento conjunto no terreno das situações de trabalho, na confrontação e na avaliação dos avanços recíprocos que os benefícios da troca podem ser constatados e formalizados. (Faïta, 2002: 59).

Em vista do exposto, vai-se recorrer a conceitos de disciplinas do trabalho e de

teorias de linguagem, para embasar a análise do corpus desta pesquisa.

Capítulo 3

Disciplinas do trabalho “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe é no meio da travessia.” (Rosa, 1965)

3.1. A ergonomia

A ergonomia surgiu como uma disciplina cujo objetivo era contribuir para a

discussão teórica e a pesquisa de métodos de ação que pudessem sugerir processos de

melhoria e transformação das condições do trabalho humano, adaptando a máquina ao

homem.

Na França, a ergonomia começou a ser desenvolvida na metade da década de 1950,

com Suzanne Pacaud, André Ombredane, Faverge e Leplat. Em 1954, foi criado o primeiro

laboratório de ergonomia em meio industrial francês, sem que se adotasse, ainda, a palavra

ergonomia: Laboratório de Estudos Fisiológicos. Mais recentemente, muitos trabalhos de

pesquisa se desenvolvem no laboratório de ergonomia do Conservatoire National des Arts

et Métiers, sob a direção do professor Alain Wisner, onde se reconhece que compreender o

trabalho para transformá-lo é um desafio que passa por muitos níveis, por ser uma questão

de cidadania, fundamental para os desenvolvimentos pessoal, social, tecnológico e

econômico (Sznelwar: 2001: XI). É importante mencionar que a formação de Wisner em

Medicina foi fundamental para sua trajetória de ergonomista, e justifica a ênfase que ele

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atribui à estreita relação entre saúde e trabalho, na medida em que há heterogeneidade de

mundos sociais e confronto de normas implicados na vida no trabalho, e a gestão da tensão

entre subjetividade e atividade tem conseqüência para a saúde do trabalhador.

Para a ergonomia, a tarefa, isto é, o trabalho prescrito, fixado em condições

determinadas e prevendo resultado antecipado, se cumpriria no trabalho real, sem

considerar que a atividade de trabalho é sempre uma estratégia de adaptação do ator social

à situação, em que há uma distância entre as condições reais de trabalho e os resultados

efetivos. O trabalho apresenta um caráter duplo - pessoal e sócio-econômico, conforme o

ângulo em que é abordado, o da pessoa que trabalha ou o da empresa, e o analista do trabalho sempre se confronta com a singularidade de uma pessoa que, no ato profissional, põe em jogo toda a sua vida pessoal (história, experiência profissional e vida extraprofissional) e social (experiência na empresa, identidade e reconhecimento profissional). Mas, ao mesmo tempo, defronta-se com o modo como essa singularidade fundamental é objeto de uma gestão sócio-econômica por parte da empresa, na gestão dos recursos humanos, nas políticas sociais e na organização do trabalho (Guérin, 2001: 17).

Assim, como proposta para avaliar o trabalho, a análise ergonômica das atividades

passou a incluir a linguagem e a comunicação, das quais considerava tanto a palavra

prescrita, como a imprevista ou até mesmo a “inconsciente” (Vieira, 2002: 101), uma vez

que em todas as atividades observadas, as operações são de extrema variedade e o trabalho

realizado é sempre diferente daquele que foi pensado, projetado ou prescrito, não se

sucedendo segundo a ordem pré-estabelecida, mas com as atividades se engrenando umas

nas outras e, às vezes, com algumas sendo abandonadas momentaneamente em benefício

de outras, mais urgentes. O resultado da atividade de um trabalhador é sempre singular, e

o trabalho humano nele investido traz o traço pessoal, mesmo ínfimo, daquele que o

realizou: é uma “obra” (´ergon´) (Guérin, 2001: 18), como uma impressão digital dele.

No gênero de atividade do dentista, sujeito à heterogeneidade dos mundos sociais

(da empresa, do paciente, do próprio profissional), ao confronto de normas, e às várias

prescrições (institucionais, hierárquicas, éticas, leis específicas, autoprescrições), a

atividade de trabalho da primeira consulta odontológica raramente será realizada como

planejada ou projetada, mesmo que o profissional tente seguir uma ordem prescrita ou pré-

estabelecida, porque ocorrem interrupções e imprevistos acontecem, e a gestão dessa tensão

entre subjetividade e atividade sempre tem conseqüências para a saúde do dentista. Isso se

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reflete, se refrata e se expressa por sua palavra prescrita, imprevista ou “inconsciente” na

interação linguageira com o paciente: porque o dentista não é apenas aquele da atividade

realizada, mas é também o sujeito que não a realiza do modo como gostaria, ou que a

realiza de forma diferente daquela que dele esperavam (o real da atividade), por estar

necessariamente envolvido por todo aquele universo de fundo.

3.2. A ergologia e a renormalização das situações de trabalho “... o trabalho sofre um ´subdimensionamento´ profundo, assimilado a uma atividade de simples ´execução´, despojado de suas habilidades, de seus ajustes. A situação do trabalho deixa de ser um lugar de exigência social, individual, um espaço de valores em jogo que se refere permanentemente aos julgamentos e escolhas de seus protagonistas.”. (Schwartz, 1996: 115)

Na década de oitenta, começou a se definir um grupo, na Universidade de Provence,

na França, constituído por um lingüista, Daniel Faïta, um sociólogo, Bernard Vouillon, e

um filósofo, Yves Schwartz. A proposta deles era a análise pluridisciplinar da situação de

trabalho. Referendado na ergonomia, o grupo Analyse Pluridisciplinaire des Situations de

Travail (APST) apresentou uma série de concepções sobre a atividade de trabalho,

interessando-se particularmente pelos estudos e reflexões que associam linguagem como prática linguageira e o trabalho como atividade socialmente situada e remunerada, compartilhando uma visão de mundo em que a apreensão e compreensão do real passa necessariamente por processos inter-relacionais, inseridos em uma esfera da atividade social, assumindo a impossibilidade de pensar o trabalho sem considerar o discurso do seu protagonista direto: o trabalhador nas relações construídas com o outro (Vieira, 2002: 103).

No final da década de noventa, o movimento APST se desdobrou em outros dois

grupos: um, de vertente filosófica, a ergologia (Schwartz), e outro, filiado à psicologia do

trabalho, a Clínica da Atividade (Clot). Ambas as disciplinas têm como propedêutica a

ergonomia; analisam a atividade humana em situação de trabalho; e conferem importância

fundamental à linguagem usada em tal situação, o que tem implicações teóricas e influencia

os caminhos metodológicos de construção dos instrumentos e das formas de analisar as

relações entre atividade e discurso.

A disciplina ergológica reflete sobre como se entrelaçam o corpo, o psiquismo e as

normas, como se articulam o privado e o púbico, o valor de mercado e os valores que não

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têm escala de medida, o ético, o histórico e o político (Schwartz, 1997: 1), tudo isso

mostrando que o trabalho não é jamais uma realidade simples: ele questiona da mesma

maneira os que tentam produzir sua análise e os seus protagonistas diretos. Embora as

condições sejam sempre singulares, aquelas variáveis constituem jogos de reciprocidades

entre o dizer e o fazer, o tempo todo renormalizados. A atividade de trabalho implica

sempre uma gestão complexa, dispendiosa em energia, e que exige arbitragens de valores e

microdecisões, na dialética do que é antecipado pelos saberes e de como as normas

antecedentes são re-singularizadas, isto é, como ocorrem as renormalizações dos prescritos,

de acordo com as circunstâncias pessoais do trabalhador, ser vivo enigmático e complexo.

Devido a sua variabilidade, suas histórias e suas regulações, o trabalho é lugar de

debate e um espaço de possíveis sempre a negociar, onde existe uso do trabalhador,

convocado em todo o seu ser industrioso52. O trabalho sempre envolve uso de si por si – já que os trabalhadores renormalizam prescrições e criam estratégias singulares para enfrentar os desafios do seu meio. Isso causa uma tensão contraditória, com demanda específica e incontornável feita a um sujeito que dispõe de um capital pessoal único. E há uso de si pelos outros - por ser o trabalho, em parte, heterodeterminado por meio de normas, prescrições e valores constituídos historicamente. (Schwartz, 2000: 34).

As micro-escolhas, no interior das coerções materiais e sociais do trabalho, fazem

aparecer de qual ponto o “si” é convocado: o trabalho é sempre um dramático uso de si

mesmo.

A ergologia leva em conta que, na atividade de trabalho sempre há, por parte do

trabalhador, uma dupla antecipação: a primeira, em função de normas, regras e prescrições

das disciplinas profissionais (Medicina, Enfermagem, Administração Hospitalar, etc.), e a

segunda, em função das renormalizações e do uso de si que médicos, enfermeiras e

administradores fazem, para exercer sua atividade de trabalho. Nessa situação, a linguagem

é “atividade na atividade”, enraizada na complexidade ergonômica e nas relações sociais, e

convoca um “dispositivo de três pólos” (Schwartz, 2004):

52 O vivente, em sendo vivo, está sendo industrioso. São capacidades e recursos infinitamente mais vastos do que aqueles que são explicitados, que a tarefa cotidiana requer (Schwartz, 1996).

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1º) pólo dos saberes instituídos (ou saberes acadêmicos, ou saberes da

organização), que se refere a prescrições e normas antecedentes, ao saber

descontextualizado, anterior à atividade de trabalho: primeira antecipação;

2º) pólo dos saberes investidos na atividade, que são as forças de convocação, os

“saberes anônimos da experiência”, a prática renormalizadora individual: segunda

antecipação;

3º) pólo ético (ou filosófico, ou epistemológico), que é lugar de exigências e de

humildade (Schwartz, 1997: 31), onde estão os valores individuais, que não podem ser

graduados.

Para que a atividade profissional do dentista (pólo do saber instituído) se exerça

satisfatoriamente, sem que haja desrespeito ao paciente, ou desatenção aos seus problemas

de saúde e aos seus sentimentos (pólo ético), e sem que haja desperdício de energia,

estresse, descontentamento e desgaste do dentista, há “uso” de si não somente por si mesmo

(com capacidades singularmente adquiridas e tendência a usar de si para recompor, de

modo infinitesimal, um mundo que lhe seja mais conveniente – pólo do saber investido na

atividade), como também há uso de si pelos outros (explicitado nos confrontos, conflitos e

antagonismos de relações e interações sociais), o que influencia a sua atividade de trabalho

individual. Levando em conta ainda o pólo econômico e o político-social, o equilíbrio

dinâmico entre tantos pólos contraditórios é vivido em todos os graus entre o formal e o

informal (Schwartz, 2000: 42), considerando-se a não-homogeneidade fundamental que

caracteriza a execução de práticas idênticas, a variabilidade das reações fisiológicas e

psicológicas durante o desenvolvimento de um procedimento clínico, as interrupções, etc.

Tudo isso vai se refletir e refratar na interação linguageira dentista-paciente.

3.3. A clínica da atividade e a confrontação dos sujeitos

A análise ergonômica da atividade foi propedêutica tanto para a ergologia, como

também para a “clínica da atividade”, metodologia de análise do trabalho que assume a

forma de uma atividade reflexiva do coletivo de trabalho sobre seu próprio trabalho, para

compreender a dinâmica da ação dos trabalhadores. O objetivo da clínica da atividade não é

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que o pesquisador faça a observação do que o ator social faz, no seu trabalho, mas o

desenvolvimento, pelo trabalhador, da observação de sua própria atividade: há uma troca de protagonistas da observação, e é por esse deslocamento que a experiência vivida pode se tornar um meio de viver outras experiências. Uma observação viva, feita a partir do ponto de vista do pesquisador, sempre está impregnada de significação e de valor próprios. No entanto, a parcialidade e a limitação do ponto de vista do observador serão retificadas, completadas, transformadas, inventariadas, com a ajuda dessa mesma observação feita do ponto de vista diferente do trabalhador (Clot, 2001: 10).

A clínica da atividade propõe uma conceituação nova de atividade: a atividade não

se limita apenas àquilo que se faz. A atividade realizada não é toda a atividade e o real da

atividade é também aquilo que não se faz; aquilo que se procura fazer sem conseguir – o

drama dos fracassos; aquilo que se pensa que se poderia fazer de outro modo; aquilo que se

faz para não fazer o que deveria ser feito; as atividades suspensas, contrariadas, ou

impedidas; a atividade retirada, ocultada ou recolhida. A gestão da tensão existente entre o

possível e o impossível, entre o trabalho prescrito e todas essas variantes forma, com a

atividade realizada, uma unidade desarmônica, e eventualmente causa sofrimento ao

trabalhador (Clot et al., 2001: 24).

A atividade linguageira é indissociável da compreensão da atividade, sempre mais

global do que apenas a ação: não é suficiente focalizar apenas a ação de realizar uma tarefa,

é necessário levar em conta que a atividade se compõe também de seu entorno não

evidente, de implícitos, de maneiras de pensar e de agir sedimentadas no meio de trabalho e

forjadas por ele, que se sobrepõem a normas e regras prescritivas (Faïta, 2001: 282). A

atividade é uma prova subjetiva, na qual o trabalhador mede a si mesmo e aos outros,

contrapondo-se ao real para ter chance de realizar o que deve ser feito, sendo que o trabalho

realizado implica muitas micro-escolhas.

A metodologia da clínica da atividade se apóia na análise das práticas de

linguagem usadas no fluxo da atividade em contextos específicos, identificadas por

enunciações singulares e que produzem sentido no interior desses contextos (Souza-e-

Silva, 1997: 30). A especificidade dessa abordagem é não poder ser baseada na simples

aplicação de ferramentas pré-construídas, mas é ser uma estratégia particularizada na

observação de regulações e interações que perpassam a fala no trabalho, e interpretadas

pela abordagem discursiva dos enunciados (considerando a linguagem como atividade), no

sentido de dar conta da inscrição do discurso e da atividade em múltiplas temporalidades,

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da heterogeneidade dos estratos simbólicos e da diversidade dos indivíduos implicados e

dos seus respectivos status (simultaneamente sujeitos, atores, locutores) (Souza-e-Silva,

2001: 139).

Trabalhar, hoje em dia, é freqüentemente fazer face a uma injunção: assumir

responsabilidades sem ter responsabilidade efetiva na definição do trabalho. Isto é,

assumir responsabilidades sem responsabilidade: eis uma das dissociações maiores do

trabalho atual (Clot, 2001: 11).

A clínica da atividade foi a metodologia escolhida para observar e analisar o

trabalho da dentista no consultório de Triagem da EAP, enquanto essa atividade se

desenvolve. Nesse contexto, a responsabilidade da profissional se limita à consulta de

triagem, sem que ela tenha responsabilidade pelo prosseguimento (indicado por ela) do

tratamento do paciente. O método da autoconfrontação, indissociável da clínica da

atividade, ajuda na reconstrução de sentidos da atividade, para o sujeito. Daí, a opção de

solicitar a expressão do ator social, para a reflexão conjunta do analista-pesquisador e do

trabalhador-protagonista sobre o sentido das escolhas do que ele faz e do que ele diz, no

trabalho.

3.4. O método da autoconfrontação simples

Na segunda metade dos anos 90, inserido no movimento de análise do trabalho pela

revalorização da compreensão da atividade, desenvolvido pela análise pluridisciplinar das

situações de trabalho (APST), Faïta propôs o método da autoconfrontação, no sentido de

desenvolver um procedimento de pesquisa e análise que avançasse na compreensão da

complexidade do encontro entre atividade e discurso (Vieira, 2003: 261).

A autoconfrontação é um registro audiovisual de seqüências da atividade do ator

social, seguido da filmagem dos comentários desse sujeito de pesquisa a respeito de sua

própria atividade, para que o trabalhador se (auto)confronte com os traços materiais /

observáveis de seu comportamento e produza elementos de validação do material coletado

pelo pesquisador (Alvarez, 2003: 233), aquele respondendo à atividade deste. Esse método

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permite que o pesquisador se certifique sobre sua compreensão do que foi observado e,

além disso, estabelece um contrato técnico e ético entre pesquisador e pesquisado.

O desenvolvimento do diálogo, na autoconfrontação, testemunha um conflito de

valores que sustenta as contradições entre os estilos dos diferentes agentes de um gênero de

atividade, além de colocar em evidência os esforços dos atores para, pelo menos pela

explicação, justificar seu estilo singular (que pode, ou não, estar em conformidade com a

prática generalizada daquele gênero profissional). Nesse sentido, o processo parece ser

facilitado quando pesquisador e trabalhador partilham conhecimentos e saberes necessários

à execução da atividade, uma vez que o pesquisador estaria mais bem qualificado para

compreender tanto a justificativa das preferências e das opções, como as razões das

escolhas, com menor desigualdade de status entre os interlocutores e menor disparidade,

entre um e outro, dos elementos constitutivos da experiência, dos modos de formalização e

de representação de saberes operatórios (Faïta, 2001: 265).

Ao promover o diálogo ação-explicação, a autoconfrontação cria um espaço-tempo

diferente daquele da situação de trabalho, e faz da atividade passada do ator social o objeto

especial de sua atividade presente, provisoriamente independente do encadeamento ação-

representação. Assim, a autoconfrontação organiza o diálogo entre duas atividades

pertencentes a esferas (ou planos) diferentes: entre o sujeito que age consigo mesmo; entre

o sujeito que age e o pesquisador; entre o sujeito que age e o alter ego (o outro), e a

percepção intuitiva que o trabalhador tem de sua atividade vai se transformar em percepção

reflexiva e vários procedimentos que ele fazia de modo “automático” vão se tornar

conscientes, de modo que o trabalho real fica em foco e pode ser analisado, por meio da

materialidade da linguagem.

(Convém observar que, no caso deste estudo, as gravações da consulta e da

autoconfrontação simples foram feitas apenas em áudio.)

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Capítulo 4

Teorias da linguagem “O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto.” (Bakhtin/Volochinov, 2004: 106)

Os estudos que correlacionam situações de trabalho e linguagem são relativamente

recentes - da década de 90 no Brasil (Souza-e-Silva, 2002), e apontam para a diversidade de

enfoques (segundo a formação profissional, o setor de serviço, etc.) e de campos de

intervenção (lingüístico, ergonômico, ergológico, psicológico, educacional, sociológico,

etc.), sempre de natureza inter, trans e/ou multidisciplinar.

Tornando-se parte ativa da situação de trabalho, a linguagem implica mudança da

problemática e da metodologia, já que não se trata apenas de suscitar palavras sobre o

trabalho, mas observar as que são ditas ou produzidas naturalmente - todas as que, no

trabalho, não são tarefa propriamente dita, mas estão ligadas à atividade linguageira, a

dimensões como memorização, confrontação de objetivos e de valores, e ao conhecimento

do outro como ser humano, conforme Lacoste (1995:23).

Uma das características de articular práticas de linguagem e situações de trabalho é

o entendimento de que há indissociabilidade entre as formas lingüísticas e seu

funcionamento nas interações socialmente situadas (Souza-e-Silva, 2001: 137).

Para proceder à análise lingüística dos dados desta pesquisa e avaliar como a

movimentação discursiva da profissional, na atividade de trabalho da consulta inicial no

contexto da Triagem, começa (ou não) a estabelecer o efeito de sentido “atendimento

humanizado”, vai-se recorrer ao princípio do dialogismo, aos embreantes lingüísticos (as

pessoas do discurso, e os dêiticos espaciais e temporais), à modalidade, à noção de

interdiscurso, como são compreendidas pela Análise do Discurso enunciativo-discursiva, e

a algumas noções sobre a co-construção de sentidos na interação durante a atividade, do

grupo “Linguagem e Trabalho”.

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4.1. O princípio do dialogismo “Dialogismo e polifonia são alicerces necessariamente calcados num conceito de “outro” discursivo, ideológico e interacional.”

(Brait, 2001: 7)

O tornar inteligível a sua fala é o momento abstrato do projeto concreto de discurso

do falante. Isso subentende alguns enunciados antecedentes, próprios e alheios, os quais o

enunciado atual do falante simplesmente pressupõe, confirma, rejeita ou completa; com os

quais entra em relação, polemiza; nos quais se baseia e aos quais responde.

Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros

enunciados, e é pleno de ecos e ressonâncias deles: as outras vozes do discurso. O

enunciado é pleno de tonalidades dialógicas (Bakhtin, 2003: 297), e o direcionamento a

alguém é seu traço constitutivo essencial. O dialogismo, a relação com o Outro, é o

fundamento generalizado de toda discursividade. O ouvinte, ao perceber e compreender o

significado lingüístico do discurso, passa a ocupar uma posição responsiva ativa, em

relação a ele, concordando, discordando, obedecendo, ou até mesmo silenciando.

As relações entre enunciações sempre pressupõem um “outro” discursivo, e nesse

sentido, são sempre dialógicas. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-

la com outras posições, e cada enunciado contém atitudes responsivas a outros enunciados

de uma dada esfera da comunicação discursiva, e determinados pela situação social mais

imediata. A palavra procede de alguém e se dirige a alguém, é produto da interação de

interlocutores, e serve de expressão a um em relação ao outro. A situação dá forma à

enunciação, impondo-lhe um determinado efeito de sentido em vez de outro: exigência,

ordem, solicitação, afirmação de direitos, segurança, etc. A verdadeira substância da língua

é constituída pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação

ou das enunciações (Bakhtin/Volochinov, 2004: 123), modeladas pela tensão entre a

palavra do locutor, o meio extraverbal e a palavra do outro: a compreensão é uma forma de

diálogo e compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra.

Além disso, toda palavra (oral ou escrita) usada na interação é impregnada de tema

(sentido definido, individual e não reiterável da enunciação completa), de significação

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(estágio inferior da capacidade de significar (ibid.: 131)), e também de um acento de valor

apreciativo.

Quando exprimimos nossos sentimentos, damos a uma palavra que veio à mente por acaso uma entoação expressiva e profunda. Freqüentemente, uma interjeição ou uma locução vazias de sentido têm carga semântica muito grande e resolvem, de forma puramente entoativa, situações ou crises da vida cotidiana, servindo de válvulas de segurança entoativa: “pois é...pois é”, “sei...sei”. Pode-se pronunciar a mesma palavrinha com uma infinidade de entoações diferentes, conforme as diferentes situações ou disposições que podem ocorrer na vida. (...) Os acentos apreciativos dessa ordem e as entoações correspondentes não podem ultrapassar os limites estreitos da situação imediata. Eles podem ser qualificados como auxiliares marginais das significações lingüísticas, (...) embora a entonação não traduza adequadamente o valor apreciativo. (ibid.:134).

A significação objetiva é perceptível na superfície do discurso e evidencia o caráter

social do signo e da enunciação. Ela traduz a apreciação entre os interlocutores, e reflete

reavaliação ou ressignificação.

No consultório odontológico, uma grande quantidade de vozes está em

concorrência, e os discursos em circulação, ali, assumem significações e valores

apreciativos diferentes, conforme o ponto de vista do ator social enfocado.

(Torna-se necessário, aqui e dentro dos limites deste trabalho, esclarecer que a

simplificação feita, ao se tomar como semelhantes os termos texto, discurso, enunciado e

enunciação, foi feita devido à falta de melhor conhecimento, por parte da pesquisadora,

para usar com mais propriedade, um ou outro.) Os termos enunciado/enunciação têm seu lugar garantido em diferentes teorias lingüísticas, enunciativas e discursivas, assumindo, necessariamente, dimensões teóricas diferentes, justamente porque partem de perspectivas epistemológicas diferentes. Mesmo dentro do pensamento bakhtiniano as possibilidades de leitura dos termos enunciado, enunciado concreto e enunciação só têm sentido na articulação com outros termos, outras categorias, outras noções, outros conceitos que, mais do que a constitutiva proximidade, lhes conferem sentido específico, diferenciado de qualquer outra perspectiva teórica. (Brait, 2005: 62)

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4.2. A Análise do Discurso enunciativo-discursiva

“Estamos condenados a pensar uma mistura inextricável entre o mesmo e o outro, uma rede de relações constantemente aberta.”

(Maingueneau)

A “escola francesa de análise do discurso” surgiu em meados dos anos 60, mas o

momento-chave de seu desenvolvimento foi em 1969, quando a revista Langages publicou

um número, “L´Analyse du discours”, elaborado no departamento de Lingüística de

Nanterre, e Michel Pêcheux publicou um livro, “Analyse automatique du discours”, editado

pela Dunot, de Paris. Esses dois textos marcaram o ato de nascimento oficial de uma

corrente, para a qual convergem uma certa tradição de pesquisa, uma prática escolar e

uma conjuntura intelectual (Maingueneau, 1991: 18). O pensamento de Louis Althusser

serviu de catalisador a esse novo projeto, e a psicanálise de Jacques Lacan de modelo, no

sentido em que, como o psicanalista, para aceder ao impensado, o praticante da escola

francesa de análise do discurso buscava decompor as continuidades verbais (ibid.: 18).

Com a publicação dos livros “A arqueologia do saber”, de 1969, e “A ordem do discurso”,

de 1971, a influência de Michel Foucault passou a ser considerável, no desenvolvimento

dos trabalhos sobre a enunciação lingüística e sobre a coerência textual, embora Foucault

não se preocupasse em estabelecer instrumentos metodológicos para o estudo dos textos.

Na Europa, a corrente original de reflexões sobre a linguagem é representada por C.

Bally, E. Benveniste, R. Jakobson, A. Culioli. A “escola francesa”, no sentido mais

restrito, pertence hoje à história das idéias, tendo sido marginalizada pelo desenvolvimento

de uma nova maneira de praticar a análise do discurso, de “tendência francesa”, com uma

concepção diferente da discursividade enunciativa, e com quatro traços particularmente

significativos, de acordo com Maingueneau (ibid.: 24):

• o interesse por um corpus relativamente “restrito”;

• a preocupação pela materialidade lingüística;

• a relação privilegiada com as problemáticas da enunciação lingüística,

inseparável de uma reflexão sobre o Sujeito; e

• a afirmação da primazia do interdiscurso sobre o discurso.

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O corpus

O corpus “restrito” não é um corpus menos “livre”: não se trata necessariamente de

enunciados escritos, mas de enunciados associados a um contexto institucional definido e

controlado por seus protagonistas; que sempre pressupõem a inter-relação entre formas

prescritas e formas e menos rígidas da palavra; e que, freqüentemente, têm uma relação

com a memória. Com a possibilidade do registro sonoro e audiovisual, tais enunciados são

conservados, repetidos, comentados e transformados, o que modificou profundamente a

relação com a memória e com a noção de “escrito” (hoje em dia, um enunciado oral

registrado pela mídia radiofônica ou televisiva pode comprometer seu autor tanto quanto

um depoimento escrito).

O discurso é prática construída na história e tem relação constitutiva com a memória

discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras

formulações, com o aumento progressivo dos saberes compartilhados pelos interlocutores

no decorrer de uma troca em contexto (concebido não como algo exterior, mas como uma

realidade cognitiva: contexto lingüístico, situação extralingüística e conhecimentos gerais

anteriores). Além disso, o discurso também é dominado pela memória de outros discursos

historicamente situados. Assim, toda formulação estaria na intersecção de dois eixos: o

“vertical”, do pré-construído, do domínio da memória, e o “horizontal”, da linearidade do

discurso, que oculta o primeiro eixo. O “domínio da memória” representa um

interdiscurso transverso (Maingueneau, 1997: 115).

Fala-se, aqui, não da memória psicológica, presumida pelo enunciado enquanto

inscrito na história (memória psicológica que é entendida por médicos e psiquiatras

segundo outros parâmetros).

O poder da memória é o poder da própria vida: a memória é a morada do significado. Assim, quem perdeu a memória, como na amnésia ou na doença de Alzheimer, perdeu a si mesmo e à sua unicidade, pois sem história não há identidade, não há passado, nem futuro. Para que a vida tenha significado, é preciso ter preservada a capacidade de nos lembrarmos das coisas, senão perde-se a orientação do comportamento rumo a alvos e propósitos, já que estes são resultados de uma memória funcionante e ativa (Marino Jr., 2005: 94).

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A materialidade lingüística

O lingüista leva em consideração as propriedades formais dos enunciados a analisar,

interessando-se por suas formas e não somente por sua função social: a morfologia, a

sintaxe, o léxico, os fenômenos enunciativos, um "a gente” em vez de um “eu”, uma

construção passiva, uma designação, tudo isso é suscetível de chamar a atenção do analista

do discurso.

Todo enunciado, antes de ser esse fragmento da língua natural que o lingüista

procura analisar, é o produto de um acontecimento único, sua enunciação, que supõe um

enunciador, um co-enunciador, um momento e um lugar particulares: portanto, todo

discurso é um fenômeno de comunicação sócio-histórico-cultural, define sua identidade em

relação ao outro e é constitutivamente heterogêneo. Esse acontecimento enunciativo deixa

marcas lingüísticas observáveis, como os embreantes, cuja função consiste em articular o

enunciado à situação de enunciação: as pessoas do discurso (eu x você) e os dêiticos

espaciais e temporais, os quais carregam uma significação nova a cada enunciação

(Souza-e-Silva, 2001: 134). Esse conjunto de referências (eu x você – aqui – agora)

constitui a dêixis lingüística e define as coordenadas espaço-temporais implicadas em um

ato de enunciação. A dêixis discursiva tem a mesma função, mas manifesta-se em outro

nível: o do universo de sentido que uma formação discursiva constrói por meio de sua

enunciação (Maingueneau, 1997: 41).

O sentido de elementos como eu, mim, me, não permanece imutável de uma

enunciação a outra: eu, a primeira pessoa do discurso, sendo sempre o locutor, se reveste de

uma significação nova a cada enunciação, da mesma maneira que você (o interlocutor, a

segunda pessoa do discurso), e os dêiticos espaciais (aqui, em cima da bancada, lá naquele

endereço) e temporais (hoje, naquele ano, daqui a algum tempo). Eu e você remetem a

papéis, indissociáveis e reversíveis, em que todo eu é um você em potencial, e todo você é

um eu, na troca lingüística.

No entanto, há enunciados que, a despeito de sua natureza individual, escapam à

condição de pessoa, isto é, não remetem a eles mesmos mas a uma situação “objetiva”: é o

domínio da “terceira pessoa”. A “terceira pessoa” representa o membro não marcado da correlação da pessoa : a “não-pessoa” - o único modo de enunciação possível para as instâncias do discurso que não devem remeter a elas mesma, mas que predicam o processo de não importa quem ou não importa o que. (...) É uma função de “representação”

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sintática, que se estende a termos tomados às diferentes “partes do discurso”, e que corresponde a uma necessidade de economia, substituindo um segmento do enunciado e até um enunciado inteiro, por um substituto mais maleável. Assim, não há nada de comum entre a função desses substitutos e a dos indicadores de pessoa (Benveniste, 2005: 282).

É de se notar que a expressão “a gente” é uma forma de não-pessoa, invariável em

gênero e número, sempre sujeito da frase, sempre designando um ser humano, e associado

a um verbo em terceira pessoa do singular.

A enunciação

Na perspectiva dos lingüistas da escola de tendência francesa, a atividade

enunciativa dos participantes da comunicação verbal desempenha papel privilegiado, e toda

enunciação se inscreve no enunciado por meio de múltiplos traços: marcas de pessoas, de

tempo, de lugar, mas também de determinação ou de modalidade. Ao privilegiar a inscrição

do enunciador (locutor) e de seu co-enunciador (interlocutor) no enunciado, o analista do

discurso considera que a subjetividade, que implica o discurso, frustra toda exterioridade

simples entre um Sujeito lingüístico (discursivo) e um Sujeito psíquico e social (empírico)

que se coloca independentemente da língua.

O sujeito enunciador é ao mesmo tempo ponto de referência (eu indica que o sujeito

do enunciado é idêntico ao enunciador) e de modalizações. A modalidade é definida como

a forma lingüística de um julgamento intelectual, de um julgamento afetivo ou de uma

vontade que o sujeito enuncia a propósito de uma percepção ou de uma representação de

seu espírito (Bally, 1965 apud Maingueneau, 1991:114). A modalidade pode ser assertiva,

quando coloca um enunciado como verdadeiro ou falso, ou apreciativa, quando emite um

julgamento de valor. Neste sentido, um estatuto privilegiado é dado às “designações”, na

maioria das vezes depreciativas, associadas a uma apreciação do enunciador e

intrinsecamente ligadas ao ato mesmo de enunciação.

A primazia do interdiscurso

Admitir a primazia da interdiscursividade é recusar toda aproximação que faria de

uma identidade discursiva uma pura referência a si mesmo. A interdiscursividade não é a

comparação ou o simples contraste entre discursos considerados independentemente um do

outro. A identidade de um discurso não é um dado, é um processo que não se completa

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senão com a emergência e a preservação de uma certa configuração enunciativa. O

intradiscursivo e o interdiscursivo estão ligados, a relação com o “outro” é uma modalidade

de relação consigo mesmo, que não se fecha em si mesmo. A enunciação não se desenvolve

a partir de uma intenção firmada, ela sempre é atravessada por múltiplas formas de

convocação de palavras reais ou virtuais, pela ameaça de escorregadelas naquilo que não

deve jamais ser dito, aquilo cuja presença invasiva e invisível dobra constantemente a

enunciação (Maingueneau 1991: 26).

Sendo assim, como todo discurso tem a propriedade de estar em relação multiforme

com outros discursos, anteriores a ele e independentes dele, isso determina que o sentido

de uma enunciação não seja a projeção de um “querer dizer”, mas antes, que o sentido seria

fruto de uma “negociação”, num espaço fundamentalmente conflituoso, de estabilidade

jamais assegurada, e sob a dupla coerção do já-dito e do dizível.

Em sentido restritivo, o interdiscurso é também um espaço discursivo, um conjunto

de discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantém relações

de delimitação recíproca uns com os outros. Em sentido mais amplo, o interdiscurso é o

conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores) com os quais um

discurso particular entra em relação implícita ou explícita. Assim, a unidade de análise

pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos

convenientemente escolhidos (id., 1984: 11).

No caso deste estudo, em que se procura caracterizar o gênero de atividade do

dentista, isso é feito levando em consideração o interdiscurso Medicina/Odontologia, isto é,

a sempre presente relação de delimitação recíproca com o gênero de atividade do médico,

embora haja diferenças na estrutura e no funcionamento deles, que se refletem nas posições

enunciativas dos locutores, dentistas ou médicos. A unidade de análise não seria, então, o

discurso do dentista, mas o espaço de trocas entre os dois discursos (sujeitos a prescrições,

regras e normas semelhantes, determinadas para o atendimento na área da saúde, mas que

expressam concorrência, competição e antagonismo profissionais).

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4.3. A co-construção de sentido na atividade

“Todo diálogo verdadeiro contém silêncios. Ora, um silêncio não deixa traços semióticos. Como, então, interpretá-lo, que significa ele?” (Boutet, 1997: X)

Em qualquer situação linguageira, a atividade de linguagem se desenvolve no seio

de contextos sociais e a maneira como as palavras são colocadas no discurso não têm o

mesmo significado para enunciador e interlocutor, porque os indivíduos não se confrontam

com uma palavra já elaborada anteriormente; porque o sujeito do discurso é

constitutivamente heterogêneo, múltiplo, clivado; porque o discurso é lugar privilegiado

para manifestação de uma ideologia, além de o texto ser um efeito discursivo. Isso tanto

pode gerar aproximação, como ambigüidade, variação semântica, conflito lingüístico

(Boutet,1997: VII). A heterogeneidade social é constitutiva da construção de sentido pelos

participantes da troca verbal e a situação de pertinência de um locutor a uma determinada

classe social, assim como a posição que ele ocupa na relação de forças, tudo isso se

manifesta no seu discurso. Esta maneira de teorizar a situação coloca os limites da

competência do lingüista: ele não tem como objeto situações concretas mas apenas as suas

representações simbólicas (ibid.: 55) e deve levar em conta, na análise das interações

verbais, um “já-dito” que as precede e que as caracteriza parcialmente. Por outro lado, há

sempre opacidade no sentido, uma vez que ele é construído embasado num processo que,

além de sócio-cultural, também é ideológico, marcado pelo modo de ser e pela visão de

mundo de cada um e, portanto, está inscrito em múltiplas temporalidades, na

heterogeneidade dos estratos simbólicos, na diversidade dos indivíduos implicados e seu

respectivo status (Souza-e-Silva, 2001:139).

A interpretação e a análise dos dados de pesquisa são atividades que o pesquisador

faz em um tempo diferente do da ação: ele toma como objeto de análise uma interação já

construída. A interpretação do lingüista constitui uma atividade metalingüística e não

lingüística, segundo Boutet (1997: 27), e resulta de dois deslocamentos: um, entre a

interpretação que um enunciador constrói de seus enunciados e a interpretação construída

na interação pelo co-enunciador; e outro, o deslocamento feito pelo pesquisador lingüista,

confrontado com esses enunciados e construindo interpretações sobre eles, de fora da

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situação empírica em que eles aconteceram, baseando-se em regularidades formais e

observáveis dos dados a serem analisados.

Nessa análise, leva-se em conta que há uma dependência entre as propriedades

organizadoras dos gêneros de atividade - ligadas ao contexto da ação -, e algumas formas

lingüísticas recorrentes: as interações profissionais estão submetidas a um princípio muito

generalizado e comum: a máxima de polidez de Grice, que se aplica particularmente às

profissões de prestação de serviços (Boutet, 2005b: 11). Sendo a comunicação verbal

também uma relação social, ela se submete a regras de polidez: transgredir uma lei do discurso (falar fora do assunto, ser hermético, não dar as informações solicitadas, etc.), o fato de dirigir a palavra a alguém ou monopolizar a atenção do interlocutor, já é uma intrusão no seu espaço, um ato potencialmente agressivo. Esses fenômenos de polidez estão integrados na teoria “das faces”, desenvolvida desde o final dos anos setenta, principalmente por P. Brown e S. Levinson, que se inspiraram no sociólogo americano E. Goffman (Maingueneau, 2002: 38).

No gênero de atividade do dentista, que também é uma relação de serviço, isso se

aplica especialmente, já que a interação que se estabelece entre os atores sociais é

assimétrica tanto no sentido de conhecimento científico, como no de nível sócio-cultural,

colocando em evidência as relações de forças e de dominação de um locutor sobre o outro.

Visto que uma mesma fala pode ameaçar a face positiva de um, com o intuito de preservar

a do outro, os interlocutores são constantemente levados a buscar um acordo, a negociar, a

gerir conflitos, com o dentista procurando um meio de preservar a própria face sem

ameaçar a face negativa do paciente. Nessa situação, os discursos exigem, do profissional,

competências desenvolvidas em quatro registros: competências técnicas e regulamentares

(procedimentos técnicos, letramento para textos escritos e orais referentes ao gênero

profissional), competências contratuais (colocar-se de acordo com a instituição e com o

paciente), competências sociais (gerir a interação face a face). Os dois últimos conjuntos de

competências remetem a competências de natureza comunicativa (Boutet, 2005b: 11), em

que os discursos nunca acedem à univocidade, e traduzem a desigualdade entre os

interlocutores, cada qual com uma maneira própria de interpretar seu Outro. As noções de assimetria dos interlocutores nos diálogos se inscrevem numa história de idéias lingüísticas e filosóficas que parecem evoluir a partir de problemáticas de poder e dominação. Elas estão no fundamento da constituição de disciplinas como a sócio-lingüística e a análise do discurso, e colocaram em discussão noções como as de relação de forças, de hierarquia, de autoridade, de desigualdade: dominação de um grupo social sobre outro, ou de um locutor sobre outro em situações sociais como as consultas nos consultórios médicos, por exemplo (Boutet, 2005a).

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No consultório odontológico, a relação de serviço poderia ser definida como a

posição de um “eu-dentista” que sabe, oposta a um “você-paciente” que não sabe, posição

na qual o profissional-agente é reconhecido por uma competência que o paciente-cliente

não possui, o que autoriza o profissional a questionar, prometer, avaliar, dar as ordens

(Grosjean, 1993: 37).

Além disso, na interação face a face que acontece no consultório odontológico,

definida pela co-presença dos participantes, está implicada, também, uma prática na qual

ocorrem manifestações semióticas não verbais (olhar, mímicas, gestos, entonação),

próprias à oralidade e estreitamente imbricadas à atividade de trabalho que ela

acompanha ou realiza (Grosjean, 2001: 143).

Na atividade do dentista, como em toda enunciação situada, a palavra está sujeita a

escolhas e à variação, e permite marcar as relações de intersubjetividade pelo jogo dos

tempos, dos modos, das pessoas, pelas escolhas lexicais, pelos acentos de valor apreciativo,

etc.: a palavra da ação nunca é puramente funcional, ela carrega também um acento

sociolingüístico (Lacoste, 1995: 25).

O trabalho do profissional de Odontologia coloca em evidência as heterogeneidades

sociais, o confronto de normas implicadas na vida no trabalho, as trocas simbólicas que

acontecem entre as pessoas direta ou indiretamente envolvidas nesse trabalho, a co-

construção dos sentidos que os atores sociais vão desenvolvendo, no decorrer da interação

linguageira dentista-paciente.

A construção de sentido na atividade de pesquisa, pela escolha dos dados para a

pretensa análise da atividade de trabalho do dentista, por sua vez, coloca o pesquisador

frente a múltiplos desafios: a interpretação dos discursos do dentista pelo paciente e vice-

versa, e a interpretação que o pesquisador faz dos discursos de cada um, por exemplo, na

seleção do que lhe pareça mais ou menos importante, mais ou menos recorrente, mais ou

menos significativo para o propósito do seu estudo.

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Terceira parte

Metodologia

Capítulo 5

A construção dos dados de pesquisa

Valendo-se de suas relações pessoais e profissionais com a coordenadora da Escola

de Aperfeiçoamento Profissional e com a dentista responsável pela triagem de pacientes

para os cursos ministrados nas clínicas da EAP, a pesquisadora teve um encontro com

ambas, na sala da Coordenadoria, no 4º andar da EAP, em agosto de 2004. Foi feita uma

entrevista para que um espaço dialógico pudesse ser co-construído e, desse modo, se

transformasse a atividade de trabalho dos atores sociais no núcleo do desenvolvimento de

uma situação de pesquisa.

5.1. A entrevista inicial para autorização e consentimento

Tal entrevista foi usada como dispositivo de produção de textos a partir de uma

ótica discursiva sócio-culturalmente situada, que produz um "material excedente” com

menção a fatos que não foram perguntados e com digressões, e que permite

retomar/condensar várias situações de enunciação ocorridas em momentos anteriores

(Rocha, 2004: 12). Nesse sentido, a entrevista promoveu a interlocução de vários já-ditos, e

representou uma opção política da pesquisadora, ao se levar em conta a alteridade e a voz

do “outro”, na análise dos dados, embora priorizando determinados fragmentos da

entrevista em detrimento de outros, que não pareceram relevantes à pesquisa, evitando

confundir a ótica da pesquisa e a ótica do sujeito pesquisado, isto é, impedindo que

viessem a coincidir lugares que são essencialmente distintos (ibid.: 15) - como quando a

dentista disse não atender os pacientes da EAP do mesmo modo que atende clientes no seu

consultório particular, por não dispor do mesmo tempo e da mesma autonomia de ação, já

que na Triagem ela está sujeita aos prescritos hierárquicos e institucionais da EAP.

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Essa primeira entrevista foi, na realidade, uma conversa informal, não gravada, em

que o objetivo da pesquisa foi explicado: ao caracterizar o gênero profissional do dentista

como uma atividade de trabalho / relação de serviço (admitindo a hipótese de que o

atendimento durante a consulta inicial talvez possa começar a construir o efeito de sentido

“atendimento humanizado”), analisar a relação texto/contexto e refletir sobre a integração

entre linguagem e situação de trabalho da dentista na Triagem. O fato de o corpus de

pesquisa ser constituído no contexto do consultório da Triagem se justificou por este ser o

setor pelo qual todos os pacientes a serem tratados na EAP devem passar, antes de serem

encaminhados para qualquer uma das clínicas de especialidades. Nesse encontro, também

foram mencionados os métodos a serem usados: gravação em áudio da consulta e

autoconfrontação do ator social, em uma data posterior, após a transcrição dos diálogos em

situação.

Na primeira entrevista, atendendo ao prescrito pelo Comitê de Ética em Pesquisa da

PUCSP, foram assinados o Protocolo de Ação junto à Coordenadoria Clínica da Escola de

Aperfeiçoamento Profissional (pela coordenadora), o Consentimento Livre e Esclarecido e

a Declaração de Concordância do Participante (pela dentista).

Ficou, assim, estabelecida a gravação da consulta do primeiro paciente do período

noturno, a ser feita nesse mesmo dia, 31 agosto de 2004.

5.2. O diário de campo

Tanto os dados coletados na conversa com a dentista como as observações feitas

durante a gravação da consulta foram anotados em diário de campo (um caderno de notas).

A organização do atendimento na Triagem visa a, em uma única consulta, detectar

os principais problemas orais; fazer a avaliação da boca como um todo, com preenchimento

do prontuário geral do paciente; elaborar um plano de tratamento, sugerindo-lhe uma

seqüência; e encaminhar o paciente para o curso de especialização ou atualização indicado,

no qual o paciente receberá o tratamento preconizado na ficha de Triagem (turno 40 da

autoconfrontação, Anexo 10):

40. D: a Triagem começou aqui em 2003 antes ela tinha se estabelecido de uma forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer levantava todos os problemas de uma

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boca mas não direcionava não fazia uma seqüência ... por exemplo esse paciente tem o perfil de prótese .. não orientava em nenhum momento aquele paciente ... então hoje em dia você pega um paciente que tem ... a história final dele é prótese ... mas você tem que ver se dá para gente viabilizar ... Isso porque, em virtude do grande número de pacientes examinados, a consulta-

triagem de um paciente não garante o seu imediato atendimento nas clínicas dos cursos da

EAP, podendo ou haver uma longa espera, ou nem haver o agendamento para tratamento.

O horário de funcionamento da Triagem, prescrito e estabelecido pela própria

dentista D. foi assim determinado: às segundas e terças-feiras, das 18h às 20h30min; às

quartas-feiras, das 14h às 18h30min; às sextas-feiras, das 9h às 11h. Em princípio,

conforme o período (noturno, vespertino ou matutino), de quatro a oito pacientes deveriam

ser atendidos: um a cada meia-hora, em média. No entanto, o tempo gasto com cada

paciente, bem como alguns outros determinantes ecológicos do gênero profissional

(Boutet, 2005b: 4), como atrasos ou faltas dos pacientes, interrupções dos procedimentos

pela auxiliar, eventuais atendimentos não agendados, ou conversas que se prolongam com o

paciente em consulta, modificam o esquema de horário, sempre alterado e invariavelmente

dilatado.

5.3. A observação direta na Triagem

A observação da consulta não foi participante, embora a pesquisadora tivesse

vestido avental branco, para poder ficar no ambiente do consultório. O paciente J. entrou,

acompanhado da auxiliar C., que trazia a pasta contendo a toda a documentação dele. A

dentista. D. recebeu e cumprimentou o paciente, estendendo-lhe a mão; explicou a presença

da pesquisadora e lhe pediu que, se estivesse de acordo que sua consulta fosse gravada em

áudio, com finalidade de estudo, assinasse a Declaração de Concordância do Participante.

Após essa introdução, feita pela dentista, a pesquisadora ficou sentada no mocho do

primeiro consultório da Triagem, fazendo anotações no diário de campo sem opinar nem se

manifestar de qualquer maneira. Nesse dia, a secretária C. ficou no consultório durante

algum tempo, e interferiu no diálogo dentista-paciente quando solicitada pela dentista,

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como ela mesma explica, no turno 6 da autoconfrontação (Anexo 10): eu chamo a C. ou a

C. aparece né?

5.4. A gravação em áudio da consulta inicial

A consulta odontológica se organiza em três fases distintas como instâncias de

interação dialógica, em que os mecanismos lingüísticos utilizados ressaltam variados

aspectos da importância da assimetria para a realização da interação (Vieira, 2002: 57):

a) a entrevista - com anamnese53, preenchimento de prontuário e ficha de Triagem-,

durante a qual o paciente fala sobre suas queixas físicas e a dentista as investiga, levando

em conta o histórico médico-odontológico dele, para determinar quais os atuais problemas

estomatológicos apresentados e em que seqüência eles deveriam ser tratados,

b) o exame físico - visual, apenas com utilização de espelho bucal e explorador, e

c) o fechamento - com o agendamento do paciente para tratamento em algum curso

ministrado nas clínicas da EAP, ou o encaminhamento dele para a lista de espera, na

eventualidade de seu caso clínico não ser de interesse didático para os cursos em

andamento.

Enquanto faz a consulta, as deixas, o riso, as oscilações sonoras da voz da dentista,

as interrupções, etc. podem denotar a possibilidade de acolhimento ou rejeição de

intromissões no seu discurso, ou ainda, de abertura para negociar significados (ibid.: 57),

tendo em vista a assimetria de lugares sociais na interação dentista-paciente.

No dia em que foi feita a gravação, o paciente J. era o primeiro do período e havia

sido agendado para passar pela Triagem pela primeira vez, embora ele fosse um paciente

antigo da EAP, em tratamento desde que a antiga clínica de atendimento funcionava em

outro endereço. O tratamento dele ainda não havia sido terminado, ou porque os alunos

responsáveis por seu caso não conseguiram finalizar os procedimentos clínicos necessários

antes da conclusão do curso que freqüentavam, ou porque imprevistos surgiram entre um

atendimento e outro (como falta ou atraso dos alunos), ou porque o próprio paciente J. teve

problemas médicos que interferiram no agendamento de seu tratamento odontológico. Isso

53 Anamnese: histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente.

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leva o paciente a se justificar, repetidamente, para requerer o direito de ser atendido sem ir

para a lista de espera, pela tripla razão de ser paciente antigo da EAP, de não ter condições

de pagar um tratamento odontológico em consultório particular e por ter pressa de terminar

o tratamento odontológico para começar o médico (Anexo nove):

7. D: qual que é o problema? 8. J: ...sou aposentado (por invalidez, não é?) e tenho esse processo de ... de... tenho

essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu também um câncer ehn prostático né?

9. D: (da próstata) 10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais

(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez

A consulta durou 26 minutos, e durante o preenchimento do prontuário, ao verificar

que o tratamento prescrito, começado há longo tempo, ainda não fora completado, a

dentista se dirigiu à auxiliar C., funcionária antiga da EAP, para obter informação a respeito

disso. A auxiliar, por sua vez, recorre ao paciente, para se lembrar do que teria acontecido.

31. D: ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só me dizer qual ... um pouquinho do histórico dele? ele tratou na ((Rua)) Humaitááá ...

32. Auxiliar: seu J. aQUI ... eu lembro mais do tratamento dele AQUI ... o senhor fez os canais aqui né seu J.?

33. D: o senhor fez um canal aqui? 34. J: não dona () ... foi lá na ... 35. D: na Humaitá ainda?

No endereço anterior onde se localizava a EAP, os pacientes eram atendidos

diretamente na clínica, sem passar por triagem, já que este setor de atendimento ainda não

existia. Esse foi o caso do paciente J.

51. D: humhum... isso aqui é de 97 99 ... essas aqui já são de ... 52. J: é ... foi do ano passado ... 53. D: do ano passado? 54. J: aqui já ... 55. D: é já tava tratando aqui então

No turno 6 da autoconfrontação, a dentista faz comentário a respeito dessa situação,

ressaltando a importância dos dados escritos na documentação antiga do paciente J.:

6. D: eu tô perguntando porque eu tô com uma ficha de canal na mão ... daqui da EAP... e ... alguma coisa me instigou ... deve ser algum tipo de papel para que eu possa fazer isso... porque eu apoio ali ((na mureta entre os boxes)) porque os arquivos ficam aqui em cima ((na bancada)) né? ... eu

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nunca sei se é na Humaitá que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio então a ficha dele deve ter uma série de coisas como os exames médicos dele ... o histórico particular ... mas já foi feito canal na época de 97... 98 ... 99 ... porque até 2002 era feito na Humaitá ... ele provavelmente estava estacionado ... ele é um paciente que tavam com a ficha dele ... há muito tempo e parou () ... em função da doença dele ... agora no momento em que parou:: () ... 2004 o ano passado ... já passou por aqui ... mas ele não tem uma seqüência de tratamento ... ele já passou por tanta gente que eles não sabem o que fazer com ele ...

Durante a consulta, o gravador ficou apoiado sobre a mureta de separação entre os

consultórios, tendo sido desligado por alguns minutos (entre os turnos 214 e 215), a pedido

da dentista, quando houve uma interrupção no procedimento da consulta para que ela

resolvesse o problema de uma paciente não agendada. Embora haja a prescrição de que

apenas pacientes já avaliados pela assistente social sejam atendidos na Triagem (sem

exceção para funcionários da EAP, parentes de alunos ou pessoas indicadas por

professores), muitas vezes isso é desconsiderado. Foi o que aconteceu no próprio dia da

gravação: a auxiliar interrompeu os procedimentos da dentista e lhe comunicou haver uma

paciente não agendada que precisava ser atendida, por solicitação (indevida) de um

professor. Essa paciente não passara pela avaliação da assistente social, não tinha

radiografias, não fora agendada pela secretaria da Triagem e, segundo ela mesma, só dera

uma “passadinha”, no horário em que o professor “mandara”, pra Triagem dar uma

“olhadinha” nela. Isto é, o professor queria, para seu curso em andamento, o “caso clínico”

dessa paciente específica, e precisava (por força de prescrição para os professores

ministradores de cursos na EAP) da ficha de Triagem da paciente. A exigência discursiva

do professor revela diferentes esferas de influências (a da instituição, a da Coordenadoria,

a de desigualdade social no status e na relação de poder entre professor de curso e dentista

funcionária da EAP, a de compromissos assumidos com os pacientes agendados), além de

competição e antagonismo profissionais que, em última análise, vão influenciar o

atendimento e a interação dentista-paciente. Para resolver a nova situação, a dentista tomou

a microdecisão de “renormalizar” a prescrição, fazendo “uso de si” e criando uma

estratégia singular para enfrentar aquele desafio (Schwartz, 2000: 34): ela agendou, fora

do esquema previsto e entre consultas já marcadas, uma outra, para atender a um colega de

profissão com o qual ela não tem obrigação contratual ou vínculo empregatício, permitindo,

assim, o uso de si pelos outros (ibid.: 42).

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A reação da dentista só foi testemunhada pela pesquisadora, transformada em

interlocutora empírica quando D. lhe chamou a atenção, na situação de pesquisa (mas

dirigindo-se, na realidade, a outros interlocutores discursivos) para o absurdo do pedido e

para a dificuldade de resolvê-lo, contra todas as prescrições estabelecidas.

“Você viu? E agora, o que é que eu faço? Você estava lá, você ouviu as ordens da coordenadora”.

Os determinantes ecológicos do gênero profissional (Boutet, 2005b: 4) da dentista

(como a interrupção dos procedimentos pela auxiliar e o atendimento não agendado, nesse

caso) influenciam no desenvolvimento da atividade de trabalho na Triagem. Na

autoconfrontação (Anexo dez), a dentista D. responde à pergunta da pesquisadora P. sobre

como lidar com esse tipo de “interferência”, que pode surgir na atividade de marcação de

consulta:

36. P: aí você encaixa ela entre os dois pacientes? porque você não tem tempo ... tá tudo marcado 37. D: é ((suspiro)) ... faz parte do atendimento aqui da Triagem ... a gente tem que dar uma direção pro paciente né? ... favorece (o serviço) ... esta atividade aQUI tá montada pra agilizar o gerenciamento clínico pra não deixar o paciente estacionado ... pra conseguir fornecer o material humano-didático pro professor

5.5. A autoconfrontação simples

Depois de transcritos os diálogos ocorridos na consulta (Anexo nove), foi marcado

um novo horário para o encontro entre pesquisadora e ator social, para proceder à

autoconfrontação, que aconteceu no dia 16 de maio de 2005, no consultório da Triagem,

antes que começasse o atendimento dos pacientes agendados nessa data e sem que houvesse

nenhuma interferência pela presença de outras pessoas.

A dentista D. lia a transcrição escrita levada pela pesquisadora, enquanto ouvia a

gravação. Não fez nenhum comentário, não parou a fita, não levantou os olhos do chão, a

atenção toda absorta na escuta. Sorria e balançava a cabeça, constantemente. Após o turno

103 da consulta inicial do paciente J., o gravador foi parado pela pesquisadora, que fez a

primeira pergunta à dentista:

1. P: Quer dizer que esse paciente veio já com um MONte de coisa na ficha clínica dele ... ainda assim ele teve de passar pela assistente social e daí

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pela Triagem pra ver o que vai precisar ser feito Aqui ... o que foi feito lá na Humaitá ... ele não PAssa automaticamente da Humaitá pra cá pra ser atendido ...

2. D: Não ... acho que esse paciente tava perdido 3. P: Ele não tinha passado pela assistente social? 4. D: Não ... ele já passou ... já passou pela assistente social mas como ele

tem o prontuário ...

Para explicar a variação de humor e a menor paciência em relação aos pacientes que

atenderia, em virtude de cansaço físico e mental, a dentista se refere à primeira paciente

agendada nesse dia da autoconfrontação, uma jovem mulher que deverá passar por uma

cirurgia médica:

a. D: mas dá vontade de falá bom então que troço que ... pára ... por isso que eu digo tem que ter uma paciência né? porque ... no caso a pessoa ... hoje por exemplo eu tô com menos paciência do que eu tava nesse dia ... eu acho que tem dia que a paciência ... porque influencia né?

b. P: claro c. D: cê vê hoje eu tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive que entregar

papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não tô com paciência pra... d. P: mas vai atender do mesmo jeito os pacientes marcados né? e. D: é ... por exemplo aqui tá escrito que ela tá desempregada né? ela tá com

problema de endometRIOSE ... ela SOFRE muito porque hemorragias e ... não consegue nem trabalhar e ... SOFRE muito...

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Quarta parte

Análise dos dados da pesquisa

“Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona.” (Clarice Lispector - A hora da estrela)

Neste estudo, enfoca-se o tema “humanização no atendimento ao paciente”,

entendendo-se tema como o sentido da enunciação completa. O tema deve ser único, ou não haveria base para definir a enunciação. O tema da enunciação é individual, não reiterável, expressão de uma situação histórica concreta que originou a enunciação e é determinado pelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações, mas igualmente por elementos não verbais da situação). (...) O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, tanto quanto o instante histórico ao qual ele pertence (Bakhtin/Volochinov, 2004: 129).

O tema não é localizado no aparato técnico do significado, mas é abordado à luz

da noção de objeto de sentido, no nível da movimentação discursiva, dos acabamentos e da

história da atividade em desenvolvimento, recuperados a partir da dinâmica da interação

em situação de trabalho (França, 2002: 126). O tema implica também elementos

extraverbais, como olhar, gestos, mímicas e entonação - manifestações próprias da

oralidade, que integram a situação de produção, recepção e circulação dos discursos, nas

interações de trabalho que eles acompanham ou realizam. No discurso, uma entonação

particular, um efeito de voz, um gesto que o acompanha podem ter como conseqüência

tornar avaliadores termos que, a priori, não o são (Cervoni, 1989: 77). Tais manifestações

semióticas não-verbais podem ser consideradas como parte integrante da interação

dialógica que se estabelece na primeira consulta, e, em tese, colaboram com o aspecto

lingüístico-discursivo na construção do efeito de sentido de uma atitude humanizada no

atendimento ao paciente. Assim, o fato de a dentista manter contato de olhos, [A questão do olhar é fundamental na problemática da alteridade. Em Levinas, por exemplo, o olhar é aquilo que convoca a dimensão ética na relação com o outro, lugar de reconhecimento na diferença (Amorim, 1996: 106).]

fazer os gestos de cumprimentar o paciente estendendo-lhe a mão, de não lhe dar as costas

enquanto faz anotações na ficha de Triagem, de colocar luvas de borracha e máscara facial

só depois dos primeiros procedimentos da entrevista-anamnese e do preenchimento do

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prontuário e apenas antes de realizar o exame clínico propriamente dito (que implica ações

físicas, com instrumentos), além de manter o tom de voz baixo e atencioso, tudo (nesse

nível dos aspectos intersemióticos da atividade) contribui para atribuir um acento

apreciativo positivo para essa situação, na qual mesmo locuções vazias de sentido têm

carga semântica muito grande e podem ser qualificadas como auxiliares marginais das

significações lingüísticas (Bakhtin/Volochinov, 2004: 134). Na consulta gravada, a dentista

D. dá um valor afirmativo de concordância e respeito aos “hãhã” que vai entoando,

enquanto presta atenção (auditiva) ao que o paciente lhe diz, mesmo sem que haja contato

de olhos, preservando, assim, a face positiva do paciente (turnos de 122 a 125 e de 163 a

165, da consulta):

122.J: foi ... eu ... vinha fazendo um acompanhamento ... é:: com o urologista o Dr. C. lá do hospital ... o PSA todos os anos fazia né? e:: do ano passado pra cá começou a ... a dar uma certa diferença ... () um aumento ... do PS ... PSA né?

123. D: hãhã 124. J: então é:: foi ele passou uns medicamentos pra mim eu tomei 125. D: hãhã 163. D: a boca fica seca também? ... ou saliva bem? 164. J: não ... saliva ... saliva bem ... agora:: a síndrome do olho seco ... é desde 91

também que eu faço o acompanhamento ... agora passou ã::: do do oftalmologista pra neuroftalmo ...

165. D: hãhã::

Enquanto a dentista está verificando a documentação ou fazendo alguma anotação

na ficha de anamnese, o paciente J. vai falando, ininterruptamente, sobre seu problema, mas

sem dar os subsídios necessários à profissional. Ela, no entanto, quase não o interrompe

(turnos 6 e 13 a 19, da autoconfrontação) e, ao criar condições de J. expressar a própria voz,

ela o valoriza:

6. D: daí enquanto ele tá falando eu estou organizando o prontuário e às vezes eu pergunto ... eu estou vendo uma radiografia ...

13. D: ... então nesse momento eu percebo que eu tenho NECEssidade de ter mais informação ... ele não tá me dando (subsídio)

14. P: ele tava falando muito ... muito ... 15. D: ele TÁ falando ... mas ele ... lógico ele vai percebendo que né? ... dá vontade da

gente interrompê-lo 16. P: mas você não faz isso ... deixa ele ir falando ... 17. D: algumas vezes eu interrompi ... 19. D: mas dá vontade de falar bom então que troço que ... pára ...

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A atitude da dentista D. visa a uma compreensão responsiva ativa por parte do

paciente:

222.D: acho que a gente deve botar a sua ficha em suspenso ... um pouquinho ... tá? 223. J: pois não 224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai

avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá? 225. J: certo 226. D: dependendo da ... do ... do que eles forem falar pra gente ... 227. J: pois não 228. D: aí sim a gente... conversa de novo ... já começa a fazer a ... a ... sua ficha ...

mesmo que seja durante seu processo de tratamento 229. J: perfeitamente 230. D: tá bom? 231. J: tá bom 232. D: e ... porque eu receio que ... a gente não possa:: atuar enquanto o senhor esteja

fazendo isso ... 233. J: certo

Capítulo 6

Categorias de análise lingüística

“As análises lingüísticas permitem exibir e testar as habilidades lingüísticas, as competências comunicacionais mobilizadas pelos agentes nas interações e servem para descrever e compreender a atividade de trabalho pesquisada.”

(Boutet, 2005c)

A situação “consulta inicial na Triagem” é atividade que deixa transparecer uma

movimentação dialógica entre aquilo que se deve fazer, aquilo que se pode fazer, aquilo

que não se costuma fazer (“uso de si”) e aquilo que se faz com sofrimento (atividade

contrariada). Tudo isso se reflete em marcas lingüísticas que organizam as relações

espaciais e temporais em torno do ator social e evidenciam a relação deste sujeito com o

seu dizer e, por meio dele, com o mundo. Nos enunciados da dentista D. ressoam ecos de

outros discursos circulantes no próprio coletivo de trabalho, na instituição, e na sociedade,

que influenciam nas representações que o paciente possa ter a respeito da Odontologia,

além de se refletirem na interação dentista-paciente durante a consulta.

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Para tentar demonstrar a hipótese deste trabalho, de que humanização é uma atitude

humana transformada em um texto que pode ser compreendido (como atitude e não como

ação física) no contexto dialógico da própria época (Bakhtin, 2003: 312), na análise dos

dados do corpus de pesquisa, vão ser considerados os embreantes (as pessoas do discurso,

os dêiticos temporais e espaciais), e a modalização do próprio discurso. Além disso, vão ser

levados em conta, na análise da situação de trabalho do dentista, as vozes dos interlocutores

e o interdiscurso Medicina/Odontologia..

6.1. As pessoas do discurso (e os dêiticos temporais e espaciais)

Um enunciado não se assenta no absoluto, ele é situado em relação ao próprio ato

enunciativo do qual é produto, sendo que as características que definem a situação de

enunciação lingüística são: enunciador, co-enunciador, momento (expresso pelo tempo

verbal ou por advérbios) e lugar (contexto sócio-histórico, neste caso, a Triagem):

(Transcrito da autoconfrontação) – 21. D: você ((co-enunciador discursivo)) vê hoje ((embreante temporal, advérbio)) eu ((enunciador empírico e discursivo)) tive ((embreante temporal, tempo verbal)) um ... acordei ((embreante temporal, tempo verbal)) cedo fui dormir ((embreante temporal, tempo verbal)) tarde tive ((embreante temporal, tempo verbal)) que entregar papéis fui testada ((embreante temporal, tempo verbal)) o dia inteiro então hoje ((embreante temporal, advérbio)) eu ((enunciador empírico e discursivo)) não tô com paciência para ... (Transcrito da consulta) – 39. D: seu J. tá mas enfim aQUI ((embreante espacial)) o senhor foi atendido? o senhor veio um/ muitas vezes aqui ((embreante espacial)) já (Transcrito da autoconfrontação) – 6. D: porque eu ((enunciador empírico e discursivo)) apoio ali ((embreante espacial, mureta de separação dos boxes)) porque os arquivos ficam aqui em cima ((embreante espacial, bancada)) eu nunca sei se é na Humaitá ((embreante espacial, endereço)) que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio ((embreante espacial))

Ao lado das “pessoas” propriamente ditas, enunciador e co-enunciador, há também

o “a gente”, forma de não-pessoa, com grande polivalência, e cuja referência varia

conforme o modo como é mobilizado no interior de um processo discursivo particular.

Pode ser interpretado como se referindo ao enunciador, ao co-enunciador, à dupla

enunciador + co-enunciador, a um grupo ou a um conjunto indefinido de pessoas:

181.D: pra que a gente ((dentista/enunciador + conjunto indefinido dos outros dentistas especialistas)) possa ter um controle maior do da situação não é?

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218. D: a radioterapia ... ela é super delicada ... eu não sei o nível de envolvimento que isso pode estar tendo ... deixa eu ver se o senhor tem algum foco sério aqui ... a gente ((a Semiologia)) tem que ver isso antes de o senhor fazer a radioterapia ... 222. D: acho que a gente ((dentista D. - enunciador empírico)) deve botar sua ficha em suspenso

261. D: a gente ((Triagem)) vai cuidar ... o senhor de qualquer forma volta aqui

273. D: porque dependendo do que eles falarem a gente ((curso da EAP)) pode optar por um caminho ... ou por outro

Algumas vezes, a segunda pessoa discursiva “você” é usada com o sentido de “eu -

enunciador empírico”:

13. D: quando ele fala de Rivotril ... você não tem idéia ... ele toma 2 mg ... Tylex sim que é um analgésico próprio ...mas o Rivotril você associa a ... e se não me engano é 0,5 mg que você toma quando você fica ...

Outras vezes, o “você” é usado com o sentido de “a gente - enunciador genérico”,

um paciente, ou os doentes em geral, aos quais os médicos não dão atenção:

36. D: ... aí ele falou “então você ((paciente, co-enunciador do médico)) quer ter FILHO?” ... “você ((paciente, co-enunciador do médico)) não quer mais ter filhos?” mas se você ((enunciador genérico)) pergunta pra qualquer um ... até pra mim (dentista D. - enunciador empírico) que não sou casada tenho 42 se falarem pra mim (dentista D. - enunciador empírico) você ((dentista D. - enunciador empírico)) não quer mais ter filhos ... eu sou capaz até de dizer não

6.2. A modalização do próprio enunciado

É por meio das situações e das relações sociais que a palavra toma a “cor” que a

situa em diferentes domínios (ideológico, estético, profissional, etc.). A comunicação

verbal é inseparável de outras formas de comunicação e implica conflitos, relações de

dominação e resistência, adaptação à hierarquia e à tensão entre valores sociais

contraditórios.

Em virtude do desconforto da situação de atendimento odontológico e da relação de

assimetria social entre dentista e paciente, a profissional lança mão de atitudes

(procedimentos lingüístico-discursivos) que servem, no trato com o paciente, como

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estratégias de polidez: os atenuadores de um ato ameaçador, a prova mesma de que o ato

ameaçador não pode ser evitado e que não resta senão atenuar sua realização (Souza-e-

Silva, 1998). Assim, na análise de dados desta pesquisa, serão consideradas algumas

posições enunciativas da dentista, nos diálogos da interação na atividade, de modo a

verificar se elas poderiam caracterizar atitudes humanizadas no atendimento ao paciente.

O acolhimento

Nos enunciados preliminares próprios do gênero da atividade de consulta, ao passar

do tratamento de “senhor” para “você”, a dentista D. realiza uma mudança de espaço

enunciativo, sem dizê-lo explicitamente: ela sai das normas sociais ao mesmo tempo em

que sai das normas de linguagem (Maingueneau, 2001: 22). Assim, o paciente que ela trata

de “você” fica menos distante, há efeito de sentido de acolhimento e diminui a assimetria

entre suas posições sociais (embora continue a existir o respeito às convenções):

11. D: transtorno do que? ... do disco lombar ... o senhor machucou as costas? 39. D: seu J. tá mas enfim o senhor foi atendido? o senhor veio muitas vezes aqui já

105. D: é::: dá pra ver ... o senhor tá com alguma dor? Há transformação da relativa em franca proximidade, no decorrer do procedimento:

17. D: como é que chama o que você ... o que você tinha? 59. D: esse é o último ... esse é o último que ... você ...

169. D: ã::: a sua radioterapia ... ou quimioterapia que você começa ou as duas? 151. D: e você toma alguns remédios?

277. D: não você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde

278. J: na 3ª ou na 5ª? 279. D: espera ... eu vou anotar aqui procê não esquecer

Entretanto, num primeiro momento, o paciente trata a profissional de um modo

diferente (menos qualificado) daquele que ele usa, quando se refere a outros dentistas que

o trataram (turnos 33 a 36). Mais adiante, na consulta, o tratamento muda, quando ele

percebe o empenho dela em agendar um horário de atendimento para ele (turno 188):

33. D: o senhor fez um canal aqui? 34. J: não dona ... foi lá na

35. D: na Humaitá ainda? 36. J: na Humaitá ... foi até indicado pelo dr. N. () que é esposo da dra I.

188. J: certo ... ã::: doutora ...

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Durante o atendimento, várias vezes o paciente enfatiza a sua precária condição

financeira (turnos 7 a 10; 38; 194 a 196), visando a justificar a sua necessidade de ser

atendido sem ir para a fila de espera, apesar de estar em tratamento na EAP há muito

tempo. A dentista acolhe esses argumentos, em vista dos motivos apresentados, e procura

agendá-lo (turno 203):

11. D: qual que é o problema? 12. J: ...sou aposentado por invalidez, não é? e tenho esse processo de ... de... tenho

essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu também ehn uum um câncer ehn prostático né?[

13. D: (da próstata) 14. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais ehn

(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez

38. J: que ele trabalha lá no no Hospital do Servidor Público ... aí ele peDIU até na época foi foi o ... o... despesa ... as despesas foram ... ehn ... ele pediu pra ... pra ... dada a situação da da ...

194. J: foi até encaminhado por uma dentista certo? ela ... que mora ... ela tem consultório logo ... 195. D: tá 196. J: como eu não podia pagar ... então ela me encaminhou pra cá ((EAP))

203. D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ((na EAP))

O único “nós” que aparece no decorrer da consulta é ambíguo, e não permite saber

se a dentista está adotando uma atitude de acolhimento, solidária ao problema do paciente,

ou se está sendo paternalista. Ou se o “nós” se refere a ela, enunciadora empírica, junto

com o paciente. No entanto, certamente esse não é um “nós” coletivo:

29. D: tá ... então nós vamos ter um tratamento radioteRÁpico ...

A reformulação do enunciado

Para “traduzir” um termo “técnico” que o paciente não compreende, a dentista o

reformula:

75. D: o senhor fez cirurgia periodontal? 76. J: ... 77. D: cortaram sua gengiva? 78. J: cortaram ... lá na Humaitá ... aqui ((apontando com o dedo indicador e a língua)) 79. D: huuum ... ((examinando o local apontado)) fizeram um enxertozinho aí

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80. J: foi ... é:: o freio que fala né? 81. D: é o freio tava atrapalhando o dente né?

As designações (modalidade apreciativa)

Todo enunciado possui marcas de modalidade, que indicam a relação que o

enunciador estabelece com o co-enunciador, por meio do seu ato de enunciação. A

modalidade apreciativa é a forma lingüística associada a um julgamento de valor do

enunciador, e está intrinsecamente ligada ao ato mesmo de enunciação. Nesse sentido, um

estatuto privilegiado é dado às “designações”, na maioria das vezes depreciativas (turnos da

autoconfrontação):

6. D: (...) o homem ((o paciente J.)) só veio pra cá em 2002

25. D: esse rapaz ((o paciente J.)) que tem um problema de próstata

40. D: são muitos caras ((pacientes)) que os cursos não pegam porque não é o ideal

As “falsas designações”

Para não nomear, ou para atenuar a gravidade da doença do paciente, a dentista usa

eufemismos, “falsas designações” (turnos 113 e 183, da consulta):

113. D: o senhor tá tratando desse problema ((em vez de câncer)) que o senhor tem né?

183. D: a correlação entre esse negócio desse tumor e o tratamento dentário

Os elementos minimizadores (desculpas, diminutivos)

As desculpas e as palavras no diminutivo são procedimentos lingüísticos que tentam

minimizar um problema, e demonstram atenção às normas de polidez da interação face a

face (respeito à face positiva do outro):

25. D: tem um monte de papel seu aqui particular né ((risos)) ... desculpe

30. D: ((silêncio, enquanto examina o prontuário do paciente)) dá licença um pouquinho ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só me dizer um pouquinho do histórico dele? ele tratou na Humaitááá ...

Os diminutivos poderiam ter várias interpretações, na situação considerada aqui: um

modo de atenuação do problema odontológico de J., face ao seu problema médico (câncer

de próstata),turno 79; uma infantilização do diálogo, turnos 85 e 203; e/ou uma atitude de

paternalismo e condescendência, turno 265:

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79. D: hu:::m ((examinando o local apontado)) fizeram um enxertozinho aí 85. D: foi só esse dentinho que o senhor tratou?

203. D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ... () só que ele vai fazer radioterapia ... ... pode tirar sua mãozinha ((pedindo que o paciente retire a mão da boca)) que eu só vou olhar ... tá bom? 265. D: e agora o senhor espera pra C. dá uma orientação pro senhor ... se tiver oportunidade de passar ... bom a gente aí já dá uma geralzinha aí na gengiva...

As ambigüidades

A escolha de recursos discursivos que têm por efeito atenuar os fatos, potencialmente

ameaçadores, de o paciente não ser encaminhado de imediato para tratamento clínico, de o

paciente ter de ir para uma longa lista de espera, ou de o paciente não ser um caso

interessante para os cursos da EAP, disfarça a ambigüidade dessa situação e sugere que a

própria dentista poderá fazer o procedimento de raspagem nos dentes do paciente (turno

261), caso ele não seja atendido na clínica, por aluno de algum curso, no próprio dia da

consulta (3ª-feira), ou caso ele não consiga ser atendido como paciente extra, na 5ª-feira:

247. D. ((para auxiliar)): pergunta ... pergunta pro professor S. ... ou pra B. se existe algum professor ... algum aluno ... que tá sem fazer nada ... né? ... se ((o aluno)) tem raspadores pra poder ... explica que ele ((paciente J.)) vai fazer a radioterapia ... se ele ((aluno)) não podia fazer uma raspagem ... só pra dar um apoio ((ao paciente J.))

248. Auxiliar: eu vou fazer isso que a doutora tá pedindo ... tá mandando ... senão ... se não tiver ninguém pra raspar ... se o senhor puder vir como paciente extra ...

249. D: extra 250. Auxiliar: 5ª-feira ... eu converso com ele ((professor S.)) pra ver ... mas paciente

extra 251. J: 5ª-feira? 252. Auxiliar: é ... às vezes tem um paciente marcado que falta ... aí a aluna fica sem

paciente ... ela raspa 253. D: eu gostaria muito que o senhor fizesse isso 254. Auxiliar: sabe por que? é de 5ª-feira ... tem que esperar e é como paciente extra ...

pode ser que não falte ninguém e eu não consiga encaixar o senhor 255. J: agora ... é depois de amanhã? 256. Auxiliar: isso 257. D: se já tiver hoje ótimo ...senão o senhor vem hoje e vem na 5ª também ... se der

pra passar hoje passa hoje ... aí vem na 5ª como extra também 258. J: tá bom (...) 261.D: a gente vai cuidar ... o senhor de qualquer forma vai voltar aqui

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No entanto, como a dentista havia dito que o paciente precisaria ser examinado também

pela Semiologia (turnos 224, 226-7), cujo dia de atendimento seria na próxima 3ª-feira, e o

encaixe a ser feito na clínica, para o procedimento de raspagem, é na 5ª-feira, o paciente

fica confuso (turnos 278-280):

224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá?

(...) 276.J: tudo bem ... agora tem ... ã:: um:: pra passar com eles eu tenho que marcar ... 277. D: não não você ... você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde 278. J: na 3ª ou na 5ª? 279. D: espera ... eu vou anotar aqui procê não esquecer ... que é muita informação não

é? ((riso)) tá bom? 280. J: tá bom ... por favor

Há ambigüidade também quando a dentista dá a entender que J. será atendido na

clínica de algum curso, quando não é ela quem decide sobre a necessidade de um caso

clínico como o dele, nem sobre o agendamento de pacientes para os cursos. A recusa de

resposta negativa ao que o paciente solicita (a dentista não diz ao paciente que ele não

será atendido imediatamente) é, aqui, exemplo vivo do trabalho como “uso de si”, no

sentido em que a execução da tarefa de fazer a consulta na Triagem requer uma

implicação social do sujeito muito mais complexa do que a simples execução dos

prescritos. Essa produção linguageira na interação dentista-paciente poderia começar a

estabelecer um efeito de sentido de atendimento mais “humanizado”.

215.J: eu ... queria muito recuperar esse dente ... 216. D: é lógico 217. J: e... vê o que ... o que ... se podia fazer a respeito desse aqui 218. D: tudo bem ...

6.3. As vozes dos interlocutores

Os diálogos que ocorrem durante a atividade de preenchimento do prontuário do paciente

se inserem em práticas profissionais e sociais, são componentes constitutivos do contexto de

enunciação integrantes do enunciado (França, 2002: 125). Isso possibilita que a articulação

entre a prática discursiva, a prática profissional e a prática social vinculem a linguagem à

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situação avaliada na pesquisa, explicitando as “vozes” de “outros” discursos, provenientes

de locutores social e ideologicamente diferentes .

Nas interações face a face, nos setores de serviço, os saberes e as relações de poder

são assimétricos, e essas forças em tensão se materializam discursivamente. A linguagem

usada na Triagem tem uma descontinuidade temática, já que há ali dois tipos de ações: um

trabalho físico (único e diferente para cada paciente examinado) e um trabalho de

linguagem, com interrupções permanentes, com silêncios, com imbricações entre dizer e

fazer, entre oral (interação linguageira), leitura (da ficha cadastral da assistente social, das

radiografias do paciente, dos tratamentos clínicos anteriores), e escrita (dos dados de

anamnese, do encaminhamento para tratamento numa seqüência indicada, de um eventual

pedido de atendimento em outro serviço). Sendo a única responsável pela Triagem, tanto

pelo atendimento clínico, como pelos trabalhos de organização e gerenciamento dos

pacientes, a profissional se engaja na situação de atendimento dentro dos limites fixados

tanto pelos prescritos da EAP (da qual ela é a porta-voz) e pelo tempo estabelecido de

consulta (determinante ecológico), como também por autoprescrições (limites do próprio

conhecimento específico, cansaço, horário de atendimento matutino, vespertino ou noturno,

etc.). Assim, na voz da dentista D., locutora empírica, recuperam-se diferentes vozes, que

expressam lógicas e ideologias diferentes: a da instituição EAP, a da Semiologia, a do

paciente, a dos médicos e dentistas que atenderam o paciente J., a dos professores e alunos

dos cursos, a da auxiliar e a da própria dentista.

A voz da EAP aparece refletida no comentário que a dentista faz, ao atender uma

paciente não agendada, no dia da gravação da consulta do paciente J.:

• você ((pesquisadora)) ouviu o que ela ((coordenadora)) disse; ou refratada no que ela diz, na primeira entrevista na sala da Coordenação:

• a filosofia pedagógica da Coordenação da EAP estimula interdisciplinaridade entre os vários serviços;

• em casos complicados, eu recorro aos especialistas da Semiologia.

Há uma relação profissional de compromisso assumido e de colaboração entre os

vários setores da EAP, vozes em diálogo da Assistência Social, da Radiologia, da

secretaria, da Semiologia, etc.:

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177.D: mas .. e ... acho que seu primeiro encaminhamento vai ser pra Semiologia ... porque eu acho que não sei se é muito compatível você tratar o seu dente ... e passar por esse tratamento ((radioterápico)) que por si só já é uma coisa pesada

178. J: sei:: 179. D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante 180. J: perfeitamente 181. D: pra que a gente possa ter um controle maior da situação não é? pra ver como é

que ... porque eu desconheço ... eu não entendo muito bem ... 182. J: sei 183. D: a correlação entre esse negócio desse tumor ... e o tratamento dentário ... e a

terapia ... e ... esse pessoal ((da Semiologia)) é o:: que manja disso 222.D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante 224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá? 225. J: certo 226. D: dependendo do que eles forem falar pra gente ...

271. D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que aquela turma que entende de radioterapia disser ... entendeu? 273. D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optar por um caminho ...

ou por outro compreendeu?

Embora o paciente J. esteja preocupado com seu tratamento odontológico, uma vez

que o radioterápico já está agendado e garantido, a dentista D. insiste em respeitar a

avaliação (a voz) da Semiologia:

268. J: eu queria ... há possibilidade de ... de recuperar esse ((dente)) aqui ... né? 269. D: ... ã:: há ... lógico que dá ... dá:: 270. J: e aqui seria:: ã::: seria:: é:: 271. D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que aquela turma que entende de radioterapia dizer ... entendeu? 272. J: ah sim 273. D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optar por um caminho ... ou por outro compreendeu? 274. J: pois não ... compreendi 275. D: é:: é:: a avaliação deles é muito importante

A voz do paciente está subentendida na queixa, na necessidade e na expectativa que

ele tem, em relação ao atendimento na clínica da EAP:

188. J: a minha preocupação é porque quando eu vim aqui ... esse dente aqui era inteiro 189. D: é::: 190. J: eu tinha um dente aqui 191. D: sei ... quebrou né?

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192. J: eu tinha um dente aqui ... era ... ã::: ã:: ele era muito sensível ... 193. D: ãhã::: 194. J: né? foi até encaminhado por uma dentista ... que mora ... ela tem consultório ... 195. D: tá 196. J: como eu não podia pagar ... então ela me encaminhou pra cá ... () 197. D: aí você fez o canal desse ... 198. J: eu vim aí ... acharam por bem fazer o canal ... 199. D: uhum ... 200. J: e eu perdi o dente ... 201. D: é ... porque faz tempo ... o senhor fez o canal foi em novem... foi o ano passado

202. J: foi o ano passado ... foi em outubro ... 203.D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ... () só que você vai fazer

radioterapia ...

215. J: eu queria muito recuperar esse dente...

A voz a dos médicos (turnos 43, 151, 169 e 233), que indicaram o tratamento do

problema oncológico, e a de diferentes especialistas, que fizeram (turno 64) ou vão fazer

(turno 243) tratamentos odontológicos no paciente J., são recuperadas na da locutora

empírica:

43. D: é essa parte eu vou ver ... primeiro estava vendo a parte médica ... 151. D: você toma alguns remédios? 169. D: a sua radioterapia ... ou quimioterapia ((indicação do médico oncologista)); 232. D: a gente não pode atuar enquanto o senhor estiver fazendo isso ... ((tratamento oncológico))

64. D: fez canal ... fez a extração desse aqui; fez cirurgia periodontal; restauração

no curso do Dr. P.

243. D: pois é:: ... mais importante até que coroa ((tratamento protético)) aqui seria raspar ((tratamento periodontal)) porque a influência da radioterapia ((tratamento oncológico)) tá na cicatrização ((gengival))

A voz dos professores e dos alunos dos cursos está expressa no turno 40 da

autoconfrontação:

40. D: são muitos caras ((pacientes)) que os cursos ((EAP)) não pegam porque não é o ideal ((para os cursos)) é muito complexo ... uma das funções aqui ((Triagem)) é tentar fazer com que aquela pessoa ((paciente)) CHEGUE a um curso ((EAP)) ... o professor RECEBA o que ele ((professor)) deseja ... o aluno APRENDA o que ele ((aluno)) tá se propondo a aprender não é?

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A voz da auxiliar é recuperada na instrução da dentista ao paciente: 265. D: o senhor espera pra C. dar uma orientação pro senhor

Não somente os interlocutores da dentista são numerosos, como as funções

preenchidas por ela nas suas diversas atividades são muito variadas e ela se ocupa de cada

uma dessas atividades de maneira diferenciada. A dentista, como todo indivíduo em

situação de trabalho, dispõe de diversas “vozes”, modos de interação materializados em

marcas lingüísticas, pelos quais ela exprime sua implicação na situação e as posições

enunciativas que assume, em relação ao seu interlocutor. Assim, as “vozes” da dentista D.

se recuperam todas as vezes em que ela é a própria locutora discursiva, primeira pessoa do

diálogo (turnos 6 e 21 da autoconfrontação, entre outros):

6. D: eu tô organizando o prontuário...às vezes eu pergunto...quando eu constato; 21. D: eu tô com menos paciência do que eu estava nesse dia,

ou quando explicitam a tensão, o embate e as relações de força entre todas essas diferentes

vozes, como nos turnos 7, 15, 29 e 40, da autoconfrontação:

7. D: precisa ter paciência ((a própria dentista, enunciadora empírica e discursiva)) 15. D: ele ((o paciente, co-enunciador)) TÁ falando ... ele vai percebendo que né? ... dá

vontade da gente ((a própria dentista, enunciadora empírica)) interrompê-lo ((o paciente, co-enunciador)) porque::

19. D: mas dá vontade ((a própria dentista, enunciadora empírica)) de falar ((para o paciente J.)) bom então que troço... pára ((o paciente, co-enunciador))... por isso que eu digo ((a própria dentista, enunciadora empírica e discursiva)) tem que ter uma paciência né? porque ... no caso a pessoa ((a própria dentista))... hoje por exemplo eu ((a própria dentista, enunciadora empírica e discursiva)) tô com menos paciência do que eu tava 21. D: você ((a pesquisadora, interlocutora empírica)) vê hoje eu ((a própria dentista,

enunciadora empírica e discursiva)) tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive que entregar papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não estou com paciência

40. D: a Triagem começou em 2003 então ela ((a Triagem)) tinha se estabelecido de uma forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer ((a Triagem)) levantava todos os problemas de uma boca ((o paciente)) não direcionava não fazia uma seqüência ... por exemplo esse paciente tem o perfil de prótese ((curso da EAP))... não orientava em nenhum momento aquele paciente ... então hoje em dia você ((a Triagem)) pega um paciente que... a história final dele é prótese ... mas você tem que ver se dá para gente ((a Triagem)) viabilizar ... no caso pode ser que a coroa dele seja ótima ... se a raspagem dele é algo assim básico ... MAS se de repente todo o processo sistêmico dele ((problema médico do paciente)) interFEre no tratamento então ele não é o paciente pra mim ((cursos da EAP))... eu ((a própria dentista D.)) tenho que detectar isso ... senão ninguém ((o paciente)) nunca

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sai do sistema ((EAP)) porque ((os pacientes)) acabam perdidos ... uma vez que ((os pacientes)) não têm o perfil da EAP e nenhum curso acaba aceitando eles ((os pacientes))... que é o que tava acontecendo com ele ((o paciente J.))... com a maioria ... são muitos caras ((pacientes)) que os cursos não pegam porque não é o ideal ((para o curso)) é muito complexo ... uma das funções aqui ((Triagem)) é tentar fazer com que aquela pessoa ((o paciente)) CHEGUE a um curso ... o professor RECEBA o que ele deseja ... o aluno APRENDA o que ele tá se propondo a aprender não é?... o gerenciamento ((a Triagem)) precisa direcionar esse indivíduo ((paciente))

6.4. O interdiscurso: Medicina / Odontologia

A comunicação verbal, nas interações em atividades de trabalho, possibilita conhecer desde

a heterogeneidade de normas sociais e institucionais, até os conflitos de fundo

organizacional; da adaptação ou resistência à hierarquia, às relações de dominação e poder

ou às ideologias em tensão. Na interação, fica evidente o pluripertencer do sujeito a vários

universos (cognitivo, afetivo, fisiológico, social), ligados a um centro humano de

singularização. Aqueles que trabalham são necessariamente envolvidos por esses

universos de fundo (França, 2002: 75), em que um processo dialético se desenvolve nas e

pelas práticas discursivas, ao longo das suas atividades de trabalho.

Desde tempos imemoriais, a interdiscursividade e o contraste entre os discursos de

Medicina e Odontologia sugerem uma tensão sempre atravessada por múltiplas formas de

convocação de palavras reais ou virtuais (Maingueneau 1991: 26), e refletem a ideologia

de que a primeira é esfera de atividade socialmente mais valorizada e tem predominância

em relação à segunda.

Essa relação de delimitação recíproca de uma com a outra, o efeito de sentido de

menor importância do tratamento odontológico em relação ao médico, está sempre,

implícita ou explicitamente, presente no interdiscurso entre as duas profissões, e é

detectável tanto na consulta inicial:

8. J:... tenho essa declaração do médico neurologista né e então agora apareceu também um câncer prostático né?

9. D: (da próstata) 10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais

(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez [ 11. D: transtorno do disco lombar ... o senhor machucou as costas?

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como na interação dentista-pesquisadora (turnos 9, 14, 23, 25 e 40, da autoconfrontação).

Os médicos não dão informação aos dentistas sobre os problemas de saúde geral dos

pacientes, sobre os efeitos ou as possíveis reações cruzadas dos medicamentos utilizados

nos tratamentos médicos, etc. Quando precisam de tratamento odontológico, os pacientes

não sabem como proceder, quanto à prevalência de um tratamento sobre o outro. Se a

dentista não sabe como a radioterapia poderá agir sobre os tecidos bucais, o médico

oncologista também não alertou o paciente J. para a necessidade de fazer o eventual

tratamento dentário antes das sessões de radioterapia:.

9. D: eu ((a dentista)) quero saber se ele ((o paciente)) pode se tratar ((os dentes)) mesmo agora ou não ... ele diz que vai se submeter à radioterapia ... a radioterapia é o fato que tava me incomodando mais ... entendeu? é o que tava me incomodando mais ... mas digamos que ele pudesse passar pelo tratamento ((dentário)) uma vez executada a radioterapia quer dizer isso é uma anamnese normal ... quais são os remédios que ele toma ... e aí ... é complicado isso ... eu vou tentar explicar isso eu tô tentando discernir qual são os dois problemas ... qual é o remédio você toma ... é pra isso que você toma?

197.D: é terrível ... aqui quando ele ((o paciente)) fala de Rivotril ((medicamento anticonvulsivante)) ... ele toma 2 mg ... ele tá falando de um remédio que ... Tylex ((medicamento analgésico)) sim que é um analgésico próprio ...mas o Rivotril você associa a ... e 20 mg ... 2 mg ... geralmente se não me engano é 0,5 mg que você toma quando você fica: ... não que alguém ((o médico)) tenha me ensinado isso ... são coisas que eu observo

A dúvida, sobre se de fato a atividade de trabalho Medicina é uma profissão mais

nobre e mais humana que a Odontologia, está implícita no comentário sobre o descaso dos

médicos em relação ao problema ginecológico de uma paciente da Triagem, agendada para

ser atendida, em seguida ao compromisso da dentista com a pesquisadora, no dia em que

foi feita a autoconfrontação.

23. D: é mas toda vez que eu encontro alguém ((um paciente)) que tenha muitos problemas sei lá ... eu SINto que eles ((pacientes)) não têm condições de serem objetivos ... eu tenho pena deles coitados né? então por exemplo aqui tá escrito que ela ((a paciente)) tá desempregada né? ela ((a paciente)) tá com problema de endometRIOSE sei lá o que é ... um problema de miOMA e ela ((a paciente)) SOFRE muito porque hemorragias e ... ((a paciente)) não consegue nem trabalhar e ... SOFRE muito... ((a paciente)) já passou por diversos médicos ... uns ((médicos)) falam que tem de tirar o útero ... tirar o útero () ... aí finalmente ela ((a paciente)) chegou à cirurgia ((tratamento médico)) que ela não sabia nem o que era que ((os médicos)) iam fazer ... se era por laparoscopia ((tratamento médico)) se era tirar o útero ... aí ele ((o médico)) falou “então você ((a paciente)) quer ter

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FILHO?” ... “você ((a paciente)) não quer mais ter filhos?” ela ((a paciente)) tem o que? 19 anos 20 anos ela já tinha TRÊS filhos ... lógico que ela não vai querer ... mas se você ((médico)) pergunta pra qualquer um ((paciente))... até pra mim ((a dentista)) que não sou casada tenho 42 se ((os médicos)) falarem pra mim ((a dentista)) você ((paciente)) não quer mais ter filhos ... eu ((a dentista)) sou capaz até de dizer não mas sei lá se eu ((a paciente)) sou muito nova ((sorriso)) eu ((a paciente)) vou dizer peraí ...

25. D: é difícil entende? ... ((os médicos)) não prepararam ela ((a paciente)) pra ver as conseqüências as vantagens as desvantagens

Sempre dialogando com o interdiscurso Medicina/Odontologia, a dentista D.

reconhece o perigo de fazer alguns procedimentos odontológicos, quando o paciente tem

determinadas doenças ou condições patológicas específicas da área médica:

39. D: configurar ali um quadro ou uma síndrome mais complexa que precisa de um atendimento hospitalar ou ... um outro nível de atendimento ((médico))... já peguei aqui um hemangioma ... você vê aquela mancha vermelha ... assim ... enorme ... então não é pra ser ((clínico-odontológico)) ... é hospitaLAR ... imagina ... a gente ((dentista da EAP)) atende aqui ... perfura ... dá uma hemorraGIa:: é graVÍssimo ... é pra cirurgião vascuLA::R ((médico))

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Quinta parte

Discussão e considerações finais “Minha tese é que, na passagem da situação de campo para a situação da escrita, não há apenas transcrição de resultados, mas também descoberta e invenção. A escrita configura uma nova cena enunciativa, onde o que muda fundamentalmente é a relação com o outro, ou melhor, com todos os outros que atravessam o caminho de um pesquisador em Ciências Humanas e Sociais.”

(Amorim, 2003b)

A pesquisa em Ciências Humanas deve sugerir uma necessidade pessoal do

pesquisador mas também deve ter um interesse social. Assim, ela precisa articular, sempre,

os sentidos ético e estético do trabalho, qualquer que seja a área do conhecimento em que

esteja sendo desenvolvida, já que o objeto de pesquisa é sempre um sujeito, um “tu/você”,

um “outro”, com voz própria. O “eu” pesquisador ouve e interpreta essa voz - alteridade

expressa em discursos e textos, numa determinada situação e num dado contexto sócio-

histórico-cultural, do qual o pesquisador participa apenas como observador. Depois, na

elaboração e na produção da pesquisa (a teoria e a estética somente se tornam éticas

quando viram ato), sua própria voz (todo discurso produz-se como ato num contexto

singular e irrepetível), sua singularidade e a marca de seu lugar enunciativo vão expressar

a diversidade, os embates e o confronto de valores (Amorim, 1996) ali implicados, uma

vez que o pesquisador se dirige a eventuais leitores, fala de determinados atores sociais e

revela a sua ideologia. O conhecimento filosófico e científico, assim como a criação estética, são modos de objetivação e, como tais, constituem apenas um momento da cognição do mundo. É preciso ter como eixo de toda reflexão a questão da alteridade, o que significa estar instalado, por princípio, em um lugar de tensão e instabilidade (Amorim, 2003a).

Para estudar a atividade de linguagem socialmente situada, o corpus é constituído

não por dados construídos pelo pesquisador, mas por dados atestados, em que não há

homogeneidade, representatividade ou fechamento razoável (Boutet, 2005b), porque a

linguagem quase sempre está imbricada na atividade linguageira do trabalho: é dirigida ora

para um interlocutor, ora para fazer alguma coisa, numa cadeia de ações cuja finalidade vai

sendo desenvolvida ao longo de um intervalo de tempo.

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Nas interações durante a prestação de um serviço, na maioria das vezes, é por meio

da linguagem que se constroem ou delineiam as ações e que se delimitam as relações

sociais duráveis ou provisórias, que lhes são intrínsecas. No momento em que falam, os

agentes sociais devem significar ao outro em que contexto eles se situam, que ações eles

executam, qual relação eles têm com a instituição, quais são seus objetivos e suas

expectativas (Lacoste, 1992: 99). Nas relações face a face entre um “usuário-cliente” e um agente representando uma instituição, o diálogo ata-se a normas, regulamentos e procedimentos codificados, o que evidencia como é delicada essa negociação que, na hora, deve operar ajustamentos felizes entre o singular – a pessoa e seu pedido - e essas definições regulamentadas de casos. (...) Os cuidados médicos ilustram de modo paradigmático esse ingrediente de competência: a equipe de profissionais da saúde deve, ao mesmo tempo, dominar a nosologia, a tecnicidade e as terapêuticas, bem como ficar frente a frente com doentes singulares, cujos aspectos clínicos e cujas capacidades de suportar o tratamento, o ambiente social e humano – condição de prosseguimento mais ou menos feliz do tratamento – deverão ser apreciadas em virtude de uma experiência tanto individual como coletiva (Schwartz, 1998: 120).

Entretanto, a evolução de uma atividade de trabalho no setor de serviços, até mesmo

na área de saúde, parece prestes a se industrializar ou a se mecanizar sugerindo a

emergência de um “neo-taylorismo” (Boutet, 2005a: 11), com padronização dos serviços,

com modo de organização industrial, com modelos acabados de formulários e até mesmo

de prontuários médicos e odontológicos, tudo isso feito com rigoroso controle do tempo de

atendimento. Nestas situações, talvez fosse melhor assumir uma posição “intermediária”

mais complexa, mas também mais pertinente: a parte do atendimento em que são feitos os

procedimentos técnicos poderia ser parcialmente “padronizada”, embora, em se tratando do

corpo humano, haja variações individuais e, na mesma pessoa, variações ao longo do

tempo, que impossibilitam qualquer intervenção clínico-cirúrgica de ser uniformizada. No

entanto, na parte da interação pessoal, há uma demanda social por “humanização”.

É difícil, quase impossível, aplicar um modelo “neo-taylorista” a profissões em que

a dimensão da interação pessoal face a face é forte e influencia o comprometimento ético-

social ao longo do processo de atendimento, como é o caso da relação de serviço

profissional da área de saúde/paciente, por exemplo.

No caso deste estudo, a atividade de trabalho da dentista se caracteriza por uma

tensão entre um modelo “semi-industrial” (com prescrições de leis específicas e do Código

de Ética Odontológica; com coerções, estandardização e normas de procedimento do

trabalho na Triagem da clínica odontológica da EAP, como duração do tempo de cada

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consulta; etc.) e um modelo quase “artesanal”, particularizado pela subjetividade e pelo

investimento do uso de si da dentista, com adaptação e ajustamento dela ao caso e ao tempo

próprio de cada paciente, e com personalização do diálogo e da comunicação intersubjetiva.

No momento em que fala, o ator social (a dentista) induziria o outro (o paciente) a

significar que, como eles se situam no contexto de uma triagem (cuja cena enunciativa

empírica subentende direcionamento e imediata indicação de atendimento do paciente em

determinado curso: Prótese, Dentística, Cirurgia etc.), o agendamento para tratamento

clínico terá o rápido encaminhamento esperado, o que não é o caso, na maioria das vezes.

Para conseguir efetuar isso, no entanto, durante todo o procedimento a dentista toma

microdecisões e, fazendo uso de si por si mesma, executa ações que, mesmo tendo relação

com os prescritos da instituição EAP e com o cronograma dos cursos, de certa forma são

adotadas à revelia deles, à custa de renormalizações de procedimentos. Quando ela

considera os objetivos, as expectativas e as necessidades do paciente (e expressa isso

discursivamente): “porque aí sim nesse caso é um ... um atendimento humanizado ...

porque nesse momento aí eu ((a dentista)) tô vendo só ele ((o paciente))”, não o colocando

na fila de espera de 2.000 pacientes, por seu caso clínico não ter maior interesse para os

cursos em andamento na clínica profissionalizante; quando ela o direciona para um pronto

atendimento na Semiologia, ou se disponibiliza para fazer um tratamento mais simples

como a profilaxia (raspagem), preocupada com o histórico médico da doença oncológica e

com o longo tempo em que ele é paciente da EAP, sem que seu caso clínico tenha sido

resolvido ou terminado, ela está valorizando, particularizando e criando condições de o

paciente J. exprimir a própria voz, ao mesmo tempo em que ela dialoga com as outras

várias vozes em circulação na situação de trabalho na Triagem (turno 42, da

autoconfrontação, Anexo dez,): a dos médicos oncologistas, a sua própria voz de

responsável pela Triagem, a de professores e alunos dos cursos, a dos prescritos

institucionais escritos e orais da EAP, a da auxiliar, a dos dentistas especialistas em outras

áreas:

42. D: como ele ((o paciente)) ia sofrer a tal da radioterapia ((tratamento médico)) eu ((a dentista)) achava importante que ele fizesse a raspagem ((tratamento odontológico))... então na 5ª-feira ele foi fazer a ... independente ((do prescrito dos cursos; do prescrito da Triagem de apenas triar e direcionar o paciente, sem marcação de tratamento; da fila de espera de muitos outros pacientes, alguns talvez mais interessantes, como caso clínico, para os diferentes cursos))... porque aí sim

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nesse caso é um ... um atendimento humanizado ... porque nesse momento aí eu ((a dentista)) tô vendo só ele ((o paciente))... eu solicitei pra C. ((a auxiliar, funcionária da EAP)) colocar ele ((o paciente)) num curso de férias ((da EAP)) porque eu queria que ele desinflamasse ((problema odontológico)) pra ele poder fazer a radioterapia e durante o período de internação ((tratamento médico)) dele ((o paciente)) ou o tratamento ((médico))... não ter tanto problema ((odontológico))... porque aGOra eu sei que não tem tanto problema porque há distância né? mas naquele momento eu temi que pudesse influenciar a cicatrização ((gengival - tratamento odontológico))... que pudesse ter um abscesso ((problema odontológico)) daí num pode mexer porque pode dar rádio-osteoporose ((problema médico decorrente da radioterapia))... coisa assim ... sabe? ... aprendi ((com os especialistas da Semiologia)) que ...

Como, na relação de serviço do gênero de atividade do dentista, o “produto” a ser

entregue é a saúde, um bem imaterial, a apresentação discursiva do profissional, na consulta

inicial, pode determinar interação e comunicação efetivas e produtivas (ou não) com o

paciente, que tem condições de avaliar a atitude do dentista, por sua palavra viva (Boutet,

1997: 49), mas não a competência, a qualidade dos serviços clínicos, ou o cumprimento de

objetivos terapêuticos propostos pelo profissional.

A relação paciente-profissional, da maneira como tem sido praticada, pode ser

entendida como um instrumento para manter o poder do profissional da saúde sobre o

paciente (Fernandes, 1993: 21). No entanto, talvez uma transformação ocorresse se, no

processo dialético desenvolvido ao longo da atividade de trabalho da primeira consulta, e

respeitando os princípios éticos da profissão, o dentista adotasse a atitude de considerar

alteridade, valores e história do paciente, e levasse em conta o efeito de sentido que este

constrói, ou a compreensão que ele possa ter, do que lhe está sendo explicado ou sugerido

como tratamento. Além disso, a atitude profissional transformada em texto (Bakhtin, 2003:

312), por meio da expressividade discursiva da interação linguageira no contexto dialógico

do consultório odontológico, talvez evitasse eventuais processos éticos e/ou judiciais

causados por mal-entendidos.

Hoje em dia, as necessidades de jugular as despesas com a saúde, o problema da

falta de assistência pública odontológica e as (ainda vigentes) representações sociais sobre a

Odontologia transformam a atividade de trabalho do dentista num assunto de interesse para

a pesquisa qualitativa em Ciências Humanas. Desse modo, esse gênero profissional foi o

foco de preocupação deste estudo, para sugerir uma reflexão que considere o ponto de

encontro entre saberes científicos e saberes vindos da experiência profissional, com a

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117

linguagem usada nessa interação, em que vão pesar desafios - éticos, econômicos e de

qualidade-, ligados a coerções organizacionais e à necessidade de eficácia no trabalho.

Procurou-se caracterizar a atividade da primeira consulta odontológica (que, de

modo geral, é prévia aos procedimentos clínico-terapêuticos propriamente ditos) como o

espaço organizador do processo de trabalho / atividade do dentista nas consultas

subseqüentes de tratamento. E procurou-se demonstrar que a linguagem usada naquela

interação inicial traduziria uma atitude que sugere um efeito de sentido de “humanização no

atendimento ao paciente”, já que a linguagem funcional, ou linguagem do ofício (Boutet,

2005b: 6) - “Pode cuspir”, “Abra mais a boca”, “Está doendo?” - está mais relacionada a

ações físicas específicas do fazer profissional e não propriamente à comunicação

interpessoal. Entretanto, vale salientar que a atividade da dentista D. durante a consulta na

Triagem foi única, tendo sido descontínua no tempo (com interrupção por paciente não

agendada), na temática (comentário da interrupção com a pesquisadora) e na ação

(entrevista com o paciente, leitura da documentação dele, esclarecimentos solicitados à

auxiliar, explicações dadas ao paciente etc.). Além disso, por se haver analisado apenas um

único ator social, essa situação, não repetível e sempre passível de renormalizações, não é

representativa de todas as primeiras consultas odontológicas, nem é generalizável para

outros atendimentos, quer na própria Triagem, quer em consultório particular, quer em

clínica odontológica.

Na passagem da situação de campo, singular e única, para a nova cena enunciativa

que é a situação de escritura da pesquisa, descobri que é impossível apreender, mesmo em

parte, a quantidade imensa de “outros” que atravessam o caminho da “invenção” do tecido

da dissertação. O “outro” são todos: os atores sociais, a situação de trabalho na Triagem, eu

como pesquisadora, eu como dentista, eu como escritora de um texto acadêmico. E a

pesquisa é um processo constante de fazer, desfazer, refazer, que implica escolhas e

descartes, que é “escrita com sangue”, que é nunca acabada, e que, a partir de um ponto de

partida escolhido e determinado, oferece um imenso leque de possibilidades para mais

descobertas e outras invenções: novas pesquisas cujos pontos de chegada estarão, sempre,

no horizonte.

Passarinho que se debruça – o vôo já está pronto!, escreveu Rosa (1965: 13).

Elaborar este trabalho na área de Lingüística Aplicada me deu asas, me fez querer voar!

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Sexta parte

REFERÊNCIAS

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Apêndice

Normas para transcrição extraídas de

CASTILHO, A.T. e PRETI, D. (1986). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo: T.A. Queiroz / EDUSP, p.9-10.

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO Incompreensão de palavras ou segmentos

( ) do nível de renda...( ) nível de renda nominal...

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado (com o gravador)

Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre)

/ e comé/e reinicia

Entoação enfática Maiúsculas porque as pessoas reTÊM moeda

Alongamento de vogal ou consoante (como s, r)

: : podendo aumentar para : : : ou mais

ao emprestarem os... éh: : : ... o dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção Interrogação ? e o Banco... Central... certo? Qualquer pausa ... são três motivos... ou três

razões...que fazem com que se retenha moeda... existe uma...retenção

Comentários descritos do transcritor

((minúsculas)) ((tossiu))

Comentários que quebram a seqüência temática da exposição; desvio temático

- - ...a demanda de moeda - - vamos dar essa notação - - demanda de moeda por motivo

Superposição, simultaneidade de vozes

Ligando as [ linhas

A. na casa da sua irmã [ B. sexta-feira? A. fizeram lá... [ B. cozinharam lá?

Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo.

(...) (...) nós vimos que existem...

Citações literais, reproduções de discurso direto ou leituras de textos, durante a gravação

“ ” Pedro Lima... ah escreve na ocasião... “O cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma baRReira entre nós”...

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a. Anexo um: press release do Ministério da Saúde (divulgação 17 set. 2004)

I Seminário HumanizaSUS

Ações que contribuem para melhorar atendimento a pacientes do SUS serão compartilhadas em Brasília

17.09.04

Reduzir filas e diminuir o tempo que os pacientes esperam por atendimento

é só um dos desafios que os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentam. Mas o problema pode ser resolvido, a partir de ações simples, práticas e criativas. Uma delas é a implantação de equipes responsáveis por fazer “acolhimento com classificação de risco”, medida já adotada com sucesso por diversas unidades de saúde do país.

Partilhar experiências que contribuíram para a redução de filas é uma das atividades previstas no I Seminário HumanizaSUS, que acontece em Brasília, entre 20 e 22 de setembro, que servirá para o compartilhamento de experiências bem-sucedidas em humanização na gestão da saúde.

Representantes de secretarias municipais e instituições que adotaram o acolhimento foram convidados para falar sobre a experiência, que incentiva a implantação de iniciativas que promovam o direito dos pacientes de serem atendidos com respeito, eficiência, rapidez, informação e segurança.

O Ministério da Saúde irá distribuir cartilhas que explicam os fundamentos dessas experiências e de outras ações que promovem a humanização do Sistema Único de Saúde como: a gestão participativa e co-gestão; a clínica ampliada, que sugere uma versão abrangente do paciente, que não se reduz apenas à doença; a mudança de atitude do corpo de funcionários das unidades de saúde; a formação dos Grupos de Trabalho de Humanização; entre outros. Mais informações Assessoria de Imprensa do Ministério da Saúde Fones: (61) 315-2351 / 2005 Fax: (61) 225-7338 E-mail: [email protected]

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b. Anexo dois: notícia do jornal O Estado de São Paulo (19 ago. 2004)

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c. Anexo três: notícia do jornal O Estado de São Paulo (9 abr. 2004)

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e. Anexo quatro: Planta do 2º andar da EAP

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d. Anexo cinco:

Decreto n° 9311, de 25 de outubro de 1884,

dá novos Estatutos às Faculdades de Medicina

sando da autorização concedida pelo art. 2 § 7º da Lei nº 3. 141 de 30 de outubro de 1882: Hei por bem que nas Faculdades de Medicina do Imperio se observem os novos Estatutos que com

este baixam, assinados por Filippe Franco de Sá, do Meu Conselho, Senador do Imperio, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Imperio, que assim o tenha entendido e faça executar.

U

Palacio do Rio Janeiro em 25 de outubro de 1884,

63º da Independência e do Imperio

Com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador

Felipe Franco de Sá

ESTATUTOS DAS FACULDADES DE MEDICINA, A QUE SE REFERE O DECRETO N° 9311 DESTA DATA

Art. 1º - Cada uma das faculdades de Medicina do Imperio se designará pelo nome da cidade em que tiver assento; será regida por um Director e pela Congregação dos Lentes, e se comporá de um curso de sciencias medicas e cirurgicas e de tres cursos anexos: o de pharmacia, o de obstetricia e gynecologia e o de odontologia.

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d. Anexo seis: LIVRETO CÓDIGO DE ÉTICA ODONTOLÓGICA

CAPÍTULO V : DO RELACIONAMENTO

SEÇÃO I : COM O PACIENTE

Art. 7°. Constitui infração ética: I - discriminar o ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto; II - aproveitar-se de situações decorrentes da relação profissional/paciente para obter vantagens físicas, emocionais, financeiras ou política; III - exagerar em diagnóstico, prognóstico ou terapêutica; IV - deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do tratamento; I V - executar ou propor tratamento desnecessário ou para o qual não esteja capacitado; VI - abandonar paciente, salvo por motivo justificável, circunstância em que serão conciliados os honorários e indicado substituto; VII - deixar de atender paciente que procure cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro cirurgião-dentista em condições de fazê-lo; VIII - iniciar tratamento de menores sem a autorização de seus responsáveis ou representantes legais, exceto em casos de urgência ou emergência; IX - desrespeitar ou permitir que seja desrespeitado o paciente; X - adotar novas técnicas ou materiais que não tenham efetiva comprovação científica; XI - fornecer atestado que não corresponda à veracidade dos fatos ou dos quais não tenha participado; XII - iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento prévio do paciente ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou emergência.

SEÇÃO II: COM A EQUIPE DE SAÚDE

Art. 8°. No relacionamento entre os membros da equipe de saúde serão mantidos o respeito, a lealdade e a colaboração técnico- científica. Art. 9°. Constitui infração ética: I - desviar paciente de colega; II - assumir emprego ou função sucedendo o profissional demitido ou afastado em represália por atitude de defesa de movimento legítimo da categoria ou da aplicação deste Código; III - praticar ou permitir que se pratique concorrência desleal; IV - ser conivente em erros técnicos ou infrações éticas, ou com o exercício irregular ou ilegal da Odontologia; V - negar, injustificadamente, colaboração técnica de emergência ou serviços profissionais a colega; VI - criticar erro técnico-científico de colega ausente, salvo por meio de representação ao Conselho Regional; VII - explorar colega nas relações de emprego ou quando compartilhar honorários; VIII - ceder consultório ou laboratório, sem a observância da legislação pertinente.

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e. Anexo sete: Ficha de Triagem (EAP)

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f. Anexo oito: Diálogo entre dentista e pesquisadora, em entrevista Transcrição de entrevista feita no Setor de Estomatologia do Hospital do Câncer, no dia 10 de agosto de 2004 Pesquisadora (P): Maria Inês Otranto Entrevistado (F): Prof. Dr. F.

1. Pesquisadora: como é feito ... como é o procedimento da primeira consulta do paciente? 2. Dentista F: é:: sempre tem a participação de um residente e de um titular...ã:::...na primeira consulta E TAMBÉM nas outras consultas. 3. P: essa primeira consulta, é feito o prontuário... 4. F: sim 5. P: como ele é conduzido? Simplesmente se FAZ a pergunta e o paciente responde ou existe uma conVE::rsa, existe mais algum envolvimento mais pessoal, mais personalizado... com o paciente? 6. F: e:: a primeira consulta normalmente o paciente já chega ao departamento com uma queixa ... e frente a essa queixa é feita todas as ... as perguntas ã:: com relação a tempo de evolução da doença a: a queixa se dói não dói o MOTIVO que ele chegou ao departamento... quando ele já passou por outros departamentos, a entrevista:: se restringe aPEnas aos cuidados da boca. ... quando ele:: ... chega PRIMEIRO no departamento de Estomatologia é:: são feitas perguntas de ordem geral, pra saber sobre a saúde do paciente ... as doenças prévias ... 7. P: prontuário fixo estabelecido já? 8. F: sim... o prontuário daqui é fixo né? ... é o mesmo prontuário que se este paciente passar por OUTRO departamento... ele vai tá tendo a minha entrevista... o prontuário é fixo, né? 9. P: sei mas por exemplo o paciente não sabe termos médicos, não sabe termos odontológicos... 10. F: unhum:: 11. P: ... o dentista se esforça por falar de uma maneira que o paciente entenda, quer dizer, tenta ser mais SIMples... mais... 12.F: é a linguagem a gente vai fazendo de acordo com o:: nível de entendimento do paciente, né? ã:: exemplo se tem uma doença cardíaca ... pergunta se tem problemas do coração uma coisa nesse sentido ... problemas de pressão alta pressão baixa não se é hipertenso ou hipotenso ... 13. P: por exemplo um paciente doente do coração ele ENTENDE porque que ele está vindo ou porque ele precisa passar por um departamento de Estomatologia? ele faz essa relação ou VOCÊS que têm de explicar? 14. F: sim: a::: normalmente os pacientes DO hospiTAL são pacientes oncológicos... pacientes que têm câncer ... então ele pode ter um problema de coração né? ... por exemplo cardíaco e ter o câncer então o problema cardíaco aí na verdade ele vai só: atrapalhar o tratamento do câncer não é ... por isso a gente às vezes tem de fazer essas perguntas para explicar pro paciente:: no que interfere esse problema... 15. P: quer dizer que os problemas bucais TAMBÉM interferem tanto na doença cardíaca como no câncer 16. F: si::m

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17. P: os pacientes que por exemplo NÃO precisarem de tratamento odontológico mas ã:: devido às conseqüências da quimioterapia da radioterapia preCIsam por causa de todos os: efeitos colaterais vêm ... eles são atendidos ... respondem ao mesmo tipo de prontuário ... é sempre a mesma coisa? ou não daí o profissional dentista já sabe que é só uma conseqüência ... que ele não vai intervir ã:: na parte odontológica propriamente dita mas nas conseqüências ... 18. F: As perguntas ... a anamnese ela é feita PREviamente ao exame intra-oral ou extra-oral né?... a anamnese ela SEMPRE é feita ... ã:: então todas essas perguntas de ordem geral sistêmica pela saúde sistêmica do paciente são feitas independente das condições bucais 19. P: a parte de ética ã:: que é essencial em toda profissão ... 20. F: unhum... 21. P: ... como ela é ... não encarada ã:: ... mas valorizada ... como ela é apliCADA num caso tão especial como é o do paciente oncológico? 22. F: unhum... aqui no Hospital do Câncer além de ser um hospital DE tratamento é um hospital:: que faz pesquisas ... né?... e um dos principais hospitais na América Latina na pesquisa do câncer então tem um comitê de ... de ética em pesquisa onde todos os trabalhos científicos é:: previamente passa por essa análise do comitê e só então há o prosseguimento das pesquisas... mas há necessidade de aprovação do comitê ... 23. P: claro...

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g. Anexo nove: Diálogo entre dentista e paciente em consulta inicial (EAP) Transcrição de consulta inicial realizada na Triagem da EAP, no dia 31 de agosto de 2004 (Tempo de duração: 26 minutos) Dentista (D): Dra D. Paciente (J): J.

1. D: () ... e dois ... sete vírgula trinta e dois 2. J: é 3. D: e esta pasta aqui contém aqui a sua parte médica? 4. J: é ... 5. D: qual que [ 6. J: ] ... o tratamento médico que eu faço porque... 7. D: qual que é o problema? 8. J: ...sou aposentado (por invalidez, não é?) e tenho esse processo de ... de... tenho

essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu também ehn uum um câncer ehn prostático né? [

9. D: ] (da próstata) 10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais ehn

(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez [ 11. D: ] transtorno do

que? ... do disco lombar ... o senhor machucou as costas? 12. J: é ... disco lombar ... não não ehn ... [ 13. D: ] o que aconteceu? 14. J: isso aqui foi uma ... uma ... ehn ... foi de doença mesmo né? [ 15. D: ] aaah 16. J: fiz uma tomografia computadorizada mielomiografia () fui internado em 91 pra ...

(internação) imediata para cirurgia fiquei quinze dias aí depois acharam por bem não fazer a cirurgia e sim o tratamento né o acompanhamento ...

17. D: como é que chama o que você/ o que você tinha? 18. J: ehn então eessa ... essa parte do ... ehn disco é um problema da da coluna [ 19. D: ] ahnhan 20. J: ehn ... ehn ... é ... bastante complicado 21. D: é porque o ... o ... 22. J: tanto é que com quinze dias a internação foi pedida imediata e ... [ 23. D: ] ahnhan 24. J: com quinze dias eu não não ... eu não ... ehn ...foi a época assim () não consegui a

cirurgia ... na época ... então foi pedido afastamento né foi pedido afastamento e ... 25. D: tem um monte de papel seu aqui particular né ((risos)) ... desculpe achar ... 26. J: esse é o ... o [ 27. D: ] o remédio 28. J: o medicamento que eu comecei a tomar.. a..agora .. antes da da da radioterapia

que vai começar iniciar agora dia 14 de setembro aí na ... () 29. D: tá ... então nós vamos ter um um tratamento radioteRÁpico ... 30. J: certo ... é esse aí é só... né? () 31. D: ((silêncio)) dá licença um pouquinho ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só

me dizer qual ... um pouquinho do histórico dele? ele tratou na Humaitááá ...

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32. Auxiliar: seu J. aQUI ... eu lembro mais do tratamento dele AQUI ... o senhor fez os canais aqui né seu J.? o senhor andou fazendo alguns canais...

33. D: o senhor fez um canal aqui? 34. J: não dona () ... foi lá na ...[ 35. D: ] na Humaitá ainda? 36. J: na Humaitá ... foi até indicado pelo dr. N. () que é esposo da dra I. 37. D: ah eu não lembro... 38. J: que ele trabalha lá no no Hospital do Servidor Público ... aí ele peDIU até na

época foi foi o ... o... despesa ... as despesas foram ... ehn ... ele pediu pra ... pra ... dado a a situação da da ...

39. D: seu J. tá mas enfim aQUI que o senhor foi atendido? o senhor veio um/MUItas vezes aqui já

40. J: aqui eu vim pra ... pra...[ 41. D: ] pra prótese? 42. é fazer ... não ... pra fazer um pequeno ... pequeno tratamento nesse dente aqui e foi

feito conforme tá marcando aí 43. D: é essa parte eu vou ver ... primeiro tava vendo a parte médica aqui pra ver o que

tá acontecendo ... 44. J: foi tirado ... foi tirado o o ... foi feito o canal ... mas depois ehn demorou um

pouco e aí quando eu voltei o dente lascou ehn [ 45. D: ] e quebrou? 46. J: ... no meio ... aí foi feito curativo ... foi feito a limpeza ... né? o curativo ... 47. D: 97... 99... 48. J: certo 49. D: isso aqui tem a ver com a gente? 50. J: não isso aí é ... do... () ... anotações ... 51. D: humhum... isso aqui é de 97 99 ... essas aqui já são de ... 52. J: é ... foi do ano passado ... 53. D: do ano passado? 54. J: aqui já ... 55. D: é já tava tratando aqui então 56. J: perfeitamente 57. D: ah tá... ... tá ... 58. J: é... 59. D: esse é o último ... esse é o último que ... você ... () 60. J: então ... aí o dente tava inteiro né? esse dente aqui ói ... 61. D: aí ... entendi ... 62. J: tava inteiro aí quebrou aí continuou quebrando 63. D: o senhor fez o canal né ... foi ... foi () 64. J: fez canal ... continuou quebrando né? ...depois foi ... esse ano aqui foi a extração

desse aqui ó ... 65. D: ahnuhn ... () ((para a auxiliar)) isso significa que ele passou? 66. Auxiliar: passou ... passou ... 67. D: cirurgia oral ... é... e ele fez aqui né? seu J. ... precisou tirar ... cirurgia

periodontal ... tava condenado ... 68. J: foi ... foi ... 69. D: esse aqui ... () ...

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70. Auxiliar: restauração ... 71. D: isso aqui também restauração no curso do Dr. P.? 72. J: não 73. D: mas tem várias vezes né? não fizeram nada? 74. J: nada 75. D: o senhor fez cirurgia periodontal? 76. J: ... 77. D: cortaram sua gengiva? 78. J: cortaram ... lá na Humaitá ... aqui 79. D: huuum ... () fizeram um enxertozinho aí 80. J: foi ... é:: o freio que fala né? 81. D: é o freio tava atrapalhando o dente né? 82. J: é 83. D: tá deixe eu ver essa anamnese aqui 84. Auxiliar: o senhor fez essa cirurgia oral ... foi o último tratamento que o senhor fez

aqui né seu J.? 85. D: foi só esse dentinho que o senhor tratou? Só esse aí? 86. J: foi 87. D: cirurgia oral tá aqui ... que mais? ... endodontia ... tratamento abertura preparo

canal ... endometria ... instrumentação e obturação dente 46 ... então 46 esse aqui é ... isso aqui é de Pério

88. Auxiliar: isso aqui é a parte periodontal 89. D: 2003 ... 97 ... 01 ... 90. J: eu eu eu passei né ... lá no 3º andar na Pério não é? aí foi feito:: 91. D: é ... raspagem ... foi isso aqui a última vez raspagem na Periodontia em 11 do 3 92. Auxiliar: 11 do 5 ... 11 do 3 93. D: isso ... e 11 do 12 ... polimento ... () radicular ... término do curso tá ... então

vamo dá:: ... tem mais alguma coisa? 94. Auxiliar: esse aqui ... peraí ... isso aqui ainda é antigo isso aqui é lá da Humaitá ...

isso aqui é de 2001 95. D: 2001 interessa [ 96. Auxiliar: ] exame clínico 97. D: ] porque a pério foi feita em 2003 né? ... 2003 ... o canal foi feito

em ... 2003 também 98. J: 2003 é:: ... eu fui () 99. D: hãhã ... tá marcado 100. J: tá 101. D: () essas radiografias aqui são () 102. J: são 103. D: o senhor já tava com aquele dentinho lá né? 104. J: é:: aquele tava sol... é:: ... a... tava ligava nesse outro aqui né ... por baixo

tava ... é:: sem raiz já 105. D: é::: dá pra ver ... o senhor tá com alguma dor? 106. J: é::: ... na boca? 107. D: é ... nos dentes 108. J: () é ... eu eu sinto assim ã:: esse aqui ... e aqui 109. D: você sente sensibilidade

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110. J: é ... muito forte ... uma sensibilidade muito forte 111. D: sente ela ... ela quando você ... quando você sente? 112. J: até com o próprio ar assim muitas vezes é:: o próprio ar e e:: é:: ... coisa

muito quente () 113. D: o senhor tá tratando desse ... desse problema que o senhor tem né? 114. J: certo 115. D: o senhor já fez algum tipo de radioterapia antes? 116. J: não 117. D: algum tipo de quimioterapia? 118. J: não ... foi ... vou começá agora 119. D: o quadro se instalou quando ... quando é que cê descobriu que cê tinha

isso? 120. J: foi ... eu ... vinha fazendo um acompanhamento ... é:: com o urologista o

Dr. C. lá do hospital ... o PSA todos os ano fazia né? e:: do ano passado pra cá começou a ... a dar uma certa diferença ... () um aumento ... do PS ... PSA né?

121. D: hãhã 122. J: então é:: foi ele passou uns medicamentos pra mim eu tomei 123. D: hãhã 124. J: não é? mas insistiu ... foi aumentando [ 125. D: ] isso? 126. J: ... melhora pouca ... no ano passado 127. D: é::: no ano passado ... é ... final do ano passado? meio? 128. J: não ... meio do ano 129. D: meio do ano? 130. J: é ... ((tosse)) ... e agora esse ano ã:: continuou ... aí aumentou ... eu fiz uma

uma ultra-sonografia da próstata ...aí deu um aumento que eu ... 131. D: sensível ... ((para a auxiliar:obrigada C)) 132. J: aí fiz a biópsia e () 133. D: e quanto ao teu problema das costas ... quando que ele apareceu? 134. J: esse é ... em ... 91 ... 135. D: 91 e ... 136. J: a internação que eu tive fiquei paralisado da cintura pra baixo () ... aquele

tranco né ... 137. D: hãhã 138. J: muitas vezes até no no assim no plano né? num lugar ... ou no chão ... () 139. D: sem cê estar fazendo exercício nem nada 140. J: é aquele tranco que eu sentia () não conseguia 141. D: hãhã ... não conseguia nem se mexer 142. J: não ... tanto é que na época foi preciso:: foi preciso ... me aconselharam () 143. D: entendi ... mas dava de repente não era toda hora 144. J: não ... de repente e ... 145. D: aí você fez esse tratamento né? 146. J: foi 147. D: e ã::: e aí melhorou pra caramba ... chegou a sarar ou ainda tem algum

problema? 148. J: não ... tem uns problema ... mais controlado ... porque aqui eu tenho ... 149. D: ã::: mais controlado

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150. J: é:: tem veiz que eu tenho até quatro retorno né? ... faço acompanhamento na neurologia ...

151. D: e você toma alguns remédios? 152. J: tomo ... 153. D: pra isso? 154. J: tomo 155. D: quais são esses remédios? 156. J: olha quando quando eu tenho retorno eu tomo:: quando a crise é muito

forte é:: o Tilex 30 157. D: tá ... analgésicos ... 158. J: é Tilex 30 ... e de uso contínuo desde que eu fui internado na neurocirurgia

eu tomo ã:: uhm:: Rivotril 2mg ... e ... mais ou menos ... de 95 pra cá eu tomo o () 25mg ... ... de vez em quando é preciso também ...

159. D: quantas gramas? 160. J: 25mg ... de vez em quando é preciso também o ... o ... () 5.000U ... ... isso

fora colírio que ... eu tenho síndrome do olho seco também né? isso foi foi junto o acompanhamento desde 91 também junto com esse problema

161. D: e aparece mais alguma coisa no corpo que acompanha isso? secura no olho na boca também?

162. J: é::: 163. D: a boca fica seca também? ... ou saliva bem? 164. J: não ... saliva ... saliva bem ... agora:: a síndrome do olho seco ... é desde

91 também que eu faço o acompanhamento ... agora passou ã::: do do oftalmologista pra neuroftalmo ...

165. D: ãhã:: 166. J: neuroftalmo ... então amanhã inclusive eu tenho que fazê:: tenho um

retorno amanhã às às 8 e 30 né pra ... pra reavaliação ... porque eu passo colírios né? uso contínuo e ... a bolsa lacrimal secou ...

167. D: uso contínuo né? 168. J: é ... uso contínuo ... ... ... 169. D: ã::: a sua a sua radioterapia ... ou quimioterapia que você começa ou as

duas? 170. J: é: radioterapia 171. D: primeiro? 172. J: é ... mas eu ... 173. D: começa dia 14 ... agora 174. J: dia 14 ... de setembro ... eu ... é::: comecei dia 9 a tomar esse medicamento

() tomá treiz veiz esse medicamento e agora dia 14 de setembro vou começar o ... a minha terapia ... 39 radioterapia ... de 2ª a 6ª ... seguido ... somente menos sábado domingo e feriado

175. D: tá ... eu vou marcar também as coisas que eu vou ver nas usa boca ... tá? 176. J: pois não 177. D: mas .. e ... acho que seu primeiro encaminhamento vai ser pra Semiologia

... porque eu acho que ... uhn::: uhn:: não sei se é muito compatível você tratá o seu dente ... e passá por esse ... por esse tratamento que por si só já é uma coisa pesada ... né?

178. J: sei::

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179. D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante 180. J: perfeitamente 181. D: pra que a gente possa ter um um controle maior do da situação não é? pra

ver como é que ... como é que ... porque eu desconheço ... eu não ... eu não entendo muito bem ...

182. J: sei 183. D: a correlação entre ... entre pesquisa ... esse negócio desse tumor e ... e o

tratamento dentário ... e a terapia ... e ... esse pessoal é o:: que manja disso 184. J: perfeitamente 185. D: tá bom? 186. J: tá bom 187. D: mas eu vou anotá o que eu tô percebendo aqui 188. J: certo ... ã::: doutora ... a minha preocupação é porque quando eu vim aqui

... esse dente aqui era inteiro ... 189. D: é::: 190. J: eu tinha um dente aqui 191. D: sei ... quebrou né? 192. J: eu tinha um dente aqui ... era ... ã::: ã:: ele era muito sensível ... era pra

fazê uma uma correção em cima que tava ... o canto do dente tava ... desgastado ... 193. D: ãhã::: 194. J: né? foi até encaminhado por uma ... uma ... uma dentista certo? ela ... que

mora ... ela tem consultório logo () ... 195. D: tá 196. J: como eu não podia ã:: ã:: pagá ... então ela me encaminhou pra cá ... () 197. D: aí cê fez o canal desse ... 198. J: eu vim aí ... acharam por bem fazer o canal ... 199. D: uhum ... 200. J: e eu perdi o dente ... e agora tá olha ... 201. D: é ... porque faz tempo ... o senhor fez o canal foi em noven... foi o ano

passado ... 202. J: foi o ano passado ... foi em outubro ... 203. D: é:: então tá mais do que na hora de começá a tratá ... () só que ele vai fazê

radioterapia ... ... pode tirá sua mãozinha que eu só vou olhá ... tá bom? 204. J: tá ... 205. D: ((para auxiliar)) : ... ele vai tê que passá pela Pério () 206. Auxiliar: ele já passou por vários cursos () inclusive recentemente pelo curso

de Dentística ... 207. D: peraí que eu não ... 208. Auxiliar: () não é isso seu J.? () 209. J: foi... foi ... 210. Auxiliar: () 211. D: eu vou anotá ... 212. J: sei 213. D: ((para auxiliar)) : ... ... isso já foi feito? 214. Auxiliar: () já ... já ...

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((interrupção da gravação a pedido da dentista, para que ela resolvesse um problema de atendimento de paciente não agendada que queria ser atendida, por solicitação –indevida – de professor do curso profissionalizante)) 215. J: eu ... queria muito recuperar esse dente ... 216. D: é lógico 217. J: e... vê o que ... o que ... se podia fazê a respeito desse aqui 218. D: tudo bem ... .... mas::: veja bem ... a radioterapia ... ela é s::uper ... s::uper

delicada então ela () ela é mu:ito ... mu:ito delicada a radioterapia ... então ã::: eu não ... eu não sei o nível de envolvimento que isso pode ... pode estar tendo ... deixa eu ver se o senhor tem algum foco sério aqui ... a gente tem que ver isso antes de o senhor fazer a radioterapia ... fora a sua sensibilidade o senhor não tem dor

219. J: não ... ... só que a sensibilidade é muito forte e a dor () 220. D: dia 14 que tá marcado 221. J: dia 14 222. D: é::: eu acho o seguinte ... eu acho que a gente deve botar a sua ficha em

suspenso ... um pouquinho ... tá? 223. J: pois não 224. D: e ... a hora que o senhor passá pela Semiologia ... que é o pessoal que vai

avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá? 225. J: certo 226. D: dependendo da ... do ... do que eles forem falá pra gente ... 227. J: pois não 228. D: aí a gente sim ... conversa de novo ... já começa a fazê a ... a ... sua ficha

... mesmo que seja durante seu processo de tratamento 229. J: perfeitamente 230. D: tá bom? 231. J: tá bom 232. D: e ... porque eu receio que ... a gente não possa:: atuar enquanto o senhor

esteja fazendo isso ... 233. J: certo ... eu vou fazê ... essa ... essa ... esse ... total de sessão de radioterapia 234. D: 39 235. J: como eu falei ... é::: direto 236. D: na seqüência 237. J: na seqüência ... 238. D: dia 14 cai quando hein? 239. J: amanhã é dia 1º ... 240. D: daqui a duas semanas ... o senhor tem que vir na 3ª-feira 241. J: pois não 242. Auxiliar: Dra D. dá pra fazê essa coroa antes da rádio dele ... se a gente

conseguir uma vaga? 243. D: pois é:: ... mais importante até que coroa aqui seria raspá ... porque a

influência do do da ... da radioterapia tá na cicatrização ... entendeu? seria ... mais importante () ... seria mais importante do que ... qualquer coisa ...

244. Auxiliar: () 245. D: pode ... pode sê () ... tem algum pac... tem algum aluno sem fazê nada

hoje aí?

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246. Auxiliar: preciso vê () hoje tem muita cirurgia ... 247. D. ((para auxiliar)): pergunta ... pergunta pro professor S. ... ou pra B. se

existe algum professor ... algum aluno ... que tá sem fazê nada ... né? ... se tem raspadores pra podê ... explica que ele vai fazê a radioterapia ... se ele não podia fazê uma raspagem ... sabe ... geral assim ... só pra dá um ... apoio ... pra ... pra isso

248. Auxiliar: senão seu J. ... eu vou fazê isso que a doutora tá pedindo ... tá mandando ... senão ... se não tiver ninguém pra raspá ... se o senhor puder vir como paciente extra ...

249. D: extra 250. Auxiliar: 5ª-feira () eu converso com ele pra vê ... mas paciente extra 251. J: 5ª-feira? 252. Auxiliar: é ... às vezes tem um paciente marcado ele falta ... aí a aluna fica

sem paciente ... ela raspa 253. D: eu gostaria muito que o senhor fizesse isso ... 254. Auxiliar: sabe por que? é de 5ª-feira ... tem que esperá e é como paciente

extra ... pode ser que não falta ninguém e eu não consigo encaixá o senhor ... 255. J: agora ... é depois de amanhã? 256. Auxiliar: isso 257. D: vamos tentá vê hoje ... se já tivé hoje ótimo ...senão o senhor vem hoje e

vem na 5ª também ... se dé pra passá hoje passa hoje ... aí vem na 5ª como extra também ... que é pra dá uma recauchutada

258. J: tá bom 259. D: pra dá ... por que é ... é ... ainda tem um pouquinho ... não é muito mas

tem pouquinho ... precisa dá uma garibada aí 260. J: tá bom 261. D: tá? e aí eu vou marcá umas coisinhas a mais aqui ... na realidade ... o

senhor até que ... ... tem uma boca boa ... a gente vai cuidá ... ...() ... o senhor de qualquer forma vai voltá aqui ... ok?

262. J: ok 263. D: então ã::: ... eu vô deixá sua ficha em pendência ... tá bom? 264. J: ok tá bom 265. D: e agora o senhor espera pra C. dá uma orientação pro senhor ... se tiver

oportunidade de passar ... bom a gente aí já dá uma uma geralzinha aí na gengiva... 266. J: pois não 267. D: tá bom? 268. J: tá bom ... ago:ra ... eu queria ... há há possibilidade de ... de recuperar esse

aqui ... né? 269. D: ... ã:: há ... lógico que dá ... dá:: 270. J: e aqui seria:: ã::: seria:: é:: 271. D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que

aquela turma que entende de radioterapia dizê ... entendeu? 272. J: ah sim 273. D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optá por um

caminho ... ou por outro compreendeu? 274. J: pois não ... compreendi 275. D: é:: é:: a avaliação deles é muito importante

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276. J: tudo bem ... agora tem ... ã:: um:: pra passar com eles tenho que marcá ... eu tenho que marcá ...

277. D: não não você você você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde 278. J: na 3ª ou na 5ª? 279. D: espera ... eu vou anotá aqui procê não esquecê ... que é muita muita

informação não é? (riso) tá bom? 280. J: tá bom ... por favor 281. D: ok vamo lá ... deix´eu pegá aqui um receituário aqui ...

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h. Anexo dez: Diálogo entre dentista e pesquisadora – autoconfrontação simples

Entrevista realizada no Serviço de Triagem da EAP, no dia 16 de maio de 2005 Pesquisadora (P): Maria Inês Otranto Dentista (D): Dra D. 103 ...

((Até este ponto, a dentista D. só ouvia a gravação, seguindo a transcrição escrita. Não fez nenhum comentário, não parou a fita, não levantou os olhos do chão, a atenção toda absorta na escuta. Sorria e balançava a cabeça, constantemente. O gravador foi parado pela pesquisadora, que fez a primeira pergunta à dentista.))

1. P: quer dizer que esse paciente veio já com um MONte de coisa na ficha:: na ficha clínica dele ... ainda assim ele teve de passar pela assistente social e daí pela Triagem pra ver o que vai precisar ser feito Aqui ... o que foi feito lá na Humaitá ... num ... num ... ele não PAssa automaticamente da Humaitá pra cá pra ser atendido ...

2. D: não ... acho que esse paciente tava perdido 3. P: ele não tinha passado cê acha pela assistente social? 4. D: não ... não ... ele já passou ... já passou pela assistente social mas

como ele tem o prontuário 5. P: sim mas ele tem um prontuário antigo ... no mínimo de 2000 ... antes

de pegar o prontuário você pergunta se ele tem alguma queixa daí ele começa a contar toda a história dele

6. D: daí enquanto ele tá falando eu tô organizando o prontuário e às vezes eu pergunto ... quando eu constato ... eu perguntei pra ele aqui ... se o senhor fez canal aqui... eu que tô perguntando porque eu tô com uma ficha de canal na mão ... daqui da EAP... e ... ou eu tô vendo uma radiografia ou algo me indica pra perguntar ... alguma coisa me instigou ... deve ser algum tipo de papel para que eu possa fazer isso ... porque eu apoio ali porque os arquivos ficam aqui em cima né geralmente né ... eu nunca sei se é na Humaitá que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio ... eu preciso acrescentar essa ... aí ... como:: eu chamo a C. ou a C. aparece né ... então a ficha dele deve ter uma série de coisas assim como os exames médicos dele ... o histórico particular ... mas já foi feito canal na época de 97... 98 ... 99 ... então faz ... tem muito exame ... o homem só veio pra cá em 2002 ... porque até 2002 era feito na Humaitá ... ahn::: ele provavelmente estava estacionado ... ele é um paciente que tavam com a ficha dele ... há muito tempo e parou () ... em função da doença dele entendeu ... enfim de alguma:: de tá perdido mesmo ... o fato de não tarem levantando a ficha dele ... agora no momento em que parou:: () ... 2004 o ano passado ... já passou por aqui ... mas ele não tem uma seqüência de tratamento ... ele já passou por tanta gente que elas não sabem o que fazer com ele ... é um tipo de paciente ...

157 ...

7. D: precisa ter paciência né?

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8. P: por que você faz tantas perguntas a respeito do quadro clínico ... você pode de alguma maneira interferir ou isso é só pra você ter um contato maior com o ... 9. D: não não eu quero saber se ele pode se tratar mesmo agora ou não ... ele diz que vai se submeter à radioterapia ... a radioterapia é o fato que tava me incomodando mais ... entendeu? é o que tava me incomodando mais ... mas digamos que ele pudesse passar pelo tratamento uma vez executada a radioterapia quer dizer isso é uma anamnese normal ... quais são os remédios que você toma ... e aí ... é complicado isso eu ... eu vou tentar explicar isso eu tô tentando discernir qual são os dois problemas ... qual é o remédio você toma ... é pra isso que você toma? 10. P: sei ... ele é muito indeciso né? ele hum ... ele ãhn ... ele esquece de dados palavras ... ele quer chegar até o nível do médico e do dentista né? ... ele não quer falar assim ... 11. D: é ... ele tá há muito tempo 12. P: já adquiriu o vocabulário ... da profissão né? 13. D: é terrível ... aqui quando ele fala de Rivotril ... você não tem idéia como () ele toma 2 mg ... ele tá falando de um remédio que ... () Tylex sim que é um analgésico próprio ...mas o Rivotril você associa a ... e 20 mg 2 mg ... geralmente se não me engano é é 0,5 mg que você toma quando você fica: ... não que alguém tenha me ensinado isso ... são coisas que eu observo ... assim 2 é bastante ... por isso ... então nesse momento eu percebo que eu tenho NECEssidade de ter mais informação que ele não tá me dando (subsídio?) 14. P: ele tava falando mu::ito muito ... 15. D: não ele TÁ falando ... mas ele ... ele ... lógico ele vai percebendo que né? ... dá vontade da gente interrompê-lo porque:: 16. P: mas você não faz isso ... deixa ele ir falando ... 17. D: algumas vezes eu interrompi ... 18. P: muito poucas ... é ... 19. D: mas dá vontade de falá bom então que troço que ... pára ... por isso que eu digo tem que ter uma paciência né? porque ... no caso a pessoa ... hoje por exemplo eu tô com menos paciência do que eu tava nesse dia ... eu acho que tem dia que a paciência ... porque influencia né? 20. P: claro 21. D: cê vê hoje eu tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive que entregar papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não tô com paciência pra pra ... 22. P: mas vai atender do mesmo jeito os pacientes marcados né? 23. D: é mas toda vez que eu encontro alguém que tenha muitos ...muitos problemas sei lá ... eu SINto que eles não têm condições de serem objetivos ... eu tenho pena deles coitados né? então por exemplo aqui tá escrito que ela tá desempregada né? ela tá com problema de endometRIOSE sei lá o que que é um problema de miOMA e ela SOFRE muito porque hemorragias e ... não consegue nem trabalhar e ... SOFRE muito ... já passou por diversos médicos uns falam que tem de tirar o útero ... tirar o útero () ... aí finalmente ela chegou a a à cirurgia que ela não sabia nem o que que era que iam fazer ... se era por laparoscopia se era tirar o útero ... aí ele falou “então você quer ter FILHO?” ... “você não quer mais ter filhos?” ela tem o que? 19 anos 20 anos ela já tinha TRÊS filhos ... lógico que ela não vai querer ... mas se você pergunta pra qualquer um ... até pra mim que

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não sou casada tenho 42 se falarem pra mim você não quer mais ter filhos ... eu sou capaz até de dizer não mas sei lá se eu sou muito nova (sorrisos) eu vou dizer peraí ... porque que eu tenho que parar ... 24. P: é acabar com tudo de uma vez é bem diferente 25. D: é difícil entende? ... não prepararam ela pra ver as conseqüências as vantagens as desvantagens () sabe? () pronto acabou () esse rapaz por exemplo que tem um problema de próstata então imagine você... eu não sei ... ele tem algum problema mental ele falou que tem alguma coisa assim? 26. P: não 27. D: eu tô tentando entender o fichário dele também provavelmente veio totalmente sem cronologia e ele é um paciente antigo ... desde 98 certo? e você tem que tentar achar o que que ele fez porque tem que prosseguir o tratamento mas ele é muito pouco ... objetivo né?

160... 28. D: ele devia tá tentando me explicar a síndrome que ele tem certo? quer

dizer ele tem muito problema olhaí tá vendo? ele não tem água no olho ... pode ser () sei lá ... mas tem algumas síndromes essas ()

174... 29. D: ... tudo bem ...

214... 30. P: quando você passa pro pessoal da Semio eles ... atendem? em seguida? 31. D: atendem ... () 32. P: independente de ter horário de algum tipo de ()

257... 33. D: ele conseguiu ... senão fica muito distante né? ... a gente ()

261... 34. P: então se ele quisesse voltar e você precisasse fazer alguma coisa ... isso não é sua obrigação ... você estaria fazendo em atenção a esse paciente ... 35. D: não na verdade não é uma obrigação da Triagem mas ... um serviço que você sente que ... um atendimento pode ser até gentil pro paciente mas a gente também visa a esclarecer o rendimento do cliente ... então se ele for pra Semio e a Semio disser que o paciente pode tratar e esse paciente já sair das mãos da C. (auxiliar) eu não preciso passar ... ele não precisa passar por mim ... mas ãhn:: se por acaso ele passou por () e não deram ... mandaram um papel PRA mim ... entendeu? né? 36. P: aí você encaixa ele entre os dois pacientes? porque você não tem tempo ... tá tudo marcado 37. D: é (suspiro) ... faz parte do do atendimento aqui da Triagem ... a gente tem que dar uma direção pro paciente né? ... é gentil com o paciente mas também favorece (o serviço) ... esta atividade aQUI tá montada pra agilizar o gerenciamento clínico pra não deixar o paciente estacionado pra conseguir fornecer o material humano-didático pro professor 38. P: isso começou a funcionar assim na Triagem só quando você entrou aqui? 39. D: quando a atual coordenação me contratou com esta proposta ... proposta dela ... né? 39. P: quer dizer antes ficava essa bagunça ...

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40. D: a Triagem começou aqui em 2003 antes ela tinha se estabelecido de uma forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer levantava todos os problemas de uma boca mas não direcionava não fazia uma seqüência ... por exemplo esse paciente tem o perfil de prótese .. não orientava em nenhum momento aquele paciente ... então hoje em dia você pega um paciente que tem um ... vai ... a história final dele é prótese ... mas você tem que ver se a partir de ... se dá para gente viabilizar no caso pode ser que a coroa dele seja ótima ... se a raspagem dele é algo assim básico ... MAS se de repente todo o processo sistêmico dele interFEre no tratamento então ele não é o paciente pra mim ... eu tenho que detectar isso ... não deixar ele ah pode entrar... vem coração de mãe né? vem vem vem ... e ninguém nunca sai do sistema porque acabam ... perdidos ... uma vez que não têm o perfil da EAP e nenhum curso acaba aceitando eles ... que é o que tava acontecendo com ele ... com a maioria ... são muitos caras que os cursos não pegam porque não é o ideal é muito complexo ... uma das funções aqui é tentar fazer com que aquela pessoa CHEGUE a um curso ... o professor RECEBA o que ele deseja ... o aluno APRENDA o que ele tá se propondo a aprender não é?... o gerenciamento precisa direcionar esse indivíduo ... esse ir e voltar ... é que cê pegou um azar de um paciente cheio de pepinos né? pacientes assim com essa complexidade de tratamento ... a Cirurgia não pega porque ãhn:: tem outros casos na frente dele ... e eles ficam estacionados no sistema e não andam né? então a Triagem precisa tentar possivelmente ... () configurar ali um quadro ou uma síndrome mais complexa que precisa de um atendimento ou hospitalar ou ... um outro nível de atendimento ... já peguei aqui um hemangioma ... você vê aquela mancha vermelha ... assim ... enorme ... então não é pra ser ... é hospitaLAR ... imagina ... a gente atende aqui ... perfura ... dá uma hemorraGIa:: é graVÍssimo ... é pra cirurgião vascuLA::R ()

281... 41.P: quer dizer ele foi encaminhado ... () ou ele fica esperando que algum curso queira um paciente do tipo dele? 42. D: não no caso dele em particular ã::: como ele ia sofrer a tal da radioterapia eu eu achava importante que ele fizesse a raspagem ... então na 5ª-feira ele foi fazer a ... independente ... porque aí sim nesse caso é um ... um atendimento humanizado ... porque nesse momento aí eu tô vendo só ele ... eu solicitei pra C. colocar ele num curso de férias porque eu queria que ele desinflamasse pra ele poder fazer a radioterapia e durante o período de internação dele ou tratamento ... não ter tanto problema ... porque aGOra eu sei que não tem tanto problema porque há distância né? mas naquele momento eu eu temi que pudesse influenciar a cicatrização ... que pudesse ter um abscesso daí num pode mexer porque pode dá rádio-osteoporose ... coisa assim ... sabe? ... aprendi que ... com esse caso mesmo ... que num ... 43. P: muito obrigada