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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS DOUTORADO
MARIA ISABEL DANTAS
O SABOR DO SANGUE: uma anlise sociocultural do chourio sertanejo
NATAL (RN) 2008
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MARIA ISABEL DANTAS
O SABOR DO SANGUE: uma anlise sociocultural do chourio sertanejo
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutora no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, rea de Concentrao em Cultura e Representaes Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Prof. Dr. Julie Antoinette Cavignac.
NATAL (RN) 2008
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MARIA ISABEL DANTAS
O SABOR DO SANGUE: uma anlise sociocultural do chourio sertanejo
Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutora no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, rea de Concentrao Cultura e Representaes Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. APROVADA EM: _______________________________________________
___________________________________________________________ Prof Dr Julie Antoinette Cavignac
Programa Ps-Graduao em Cincias Sociais, UFRN (Orientadora)
___________________________________________________________ Prof Dr Maria Eunice Maciel
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, UFRS (Membro externo)
___________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional, UFRJ (Membro externo)
___________________________________________________________ Prof. Dr. Aldnor Gomes da Silva
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, UFRN (Membro interno)
____________________________________________________________ Prof. Dr. Patrick Le Guirrieck
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, UFRN (Membro interno)
_____________________________________________________________ Prof. Dr. Edmilson Lopes Jnior
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, UFRN (Membro interno - suplncia)
______________________________________________________________ Prof. Dr. Muirakytan Kennedy de Macdo
Departamento de Histria, CERES, UFRN (Membro externo - suplncia)
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s mestras de chourio do serto nordestino, em especial a minha adorada mestra e me, Angelita Dantas.
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AGRADECIMENTOS
Para a realizao desta pesquisa, precisei da cooperao de muitas pessoas. Sei que
dificilmente poderei retribuir a todas, mas, pelo menos, quero mencion-las aqui, apesar de
entender que muitas delas, provavelmente, nunca tero oportunidade de ler este escrito.
Agradeo, portanto:
A meus pais, Olu Arajo Dantas (j falecido) e Angelita Maria Dantas, que, com
humildade e sabedoria, me ensinaram a caminhar nesta vida e, com muito esforo, resignao
e perseverana, me propiciaram as condies necessrias obteno do saber. Com eles,
tenho dvidas que jamais pagarei.
A meu esposo, amigo e querido companheiro, Antnio de Pdua dos Santos, que, com
o afeto, o carinho, a perseverana e o bom humor de sempre, me encorajou a trilhar mais este
caminho;
Aos meus doze irmos (inclusive Odivan Arajo, j falecido) e aos meus sobrinhos,
pelo carinho, companheirismo e solidariedade como tambm pela esperana que em mim
depositaram;
A Goreti Santos, por me ter propiciado inmeras oportunidades na vida;
A todos os meus interlocutores, pelo carinho e ateno assim como pelas inmeras
informaes prestadas para a pesquisa e, principalmente, pela confiana que tiveram em
contar-me um pouco de suas vivncias no chourio.
Em particular, quero agradecer professora Julie Cavignac, minha orientadora, por
haver acreditado na minha capacidade de superar as dificuldades acadmicas e por ter-me
dedicado muito de seu tempo e de seu saber, contornando minhas angstias e indecises com
serenidade, competncia e dedicao.
Agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, em especial ao
professor Aldenr Gomes da Silva, pelas valiosas sugestes para a pesquisa, e aos professores
Ana Laudelina, Alpio de Sousa, Elisete Schwade, Luciana Chianca, Edmilson Lopes e
Willington Germano, como tambm as gentilezas dos servidores Otnio e Geraldo.
Quero agradecer as contribuies valiosssimas prestadas pelo professor Luiz
Fernando Duarte bem como seu desejo de se aventurar pelo serto. Sou bastante grata tambm
professora Maria Eunice Maciel, pelas sugestes e incentivos oferecidos durante a pesquisa,
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e aos professores Edmilson Lopes, Patrick Le Guirrieck e a Muirakytan Macdo, pela
gentileza em participarem da banca.
Sou muito grata aos meus colegas da base de pesquisa Cultura, Ideologia e
Representaes Sociais, pelos momentos agradveis e proveitosos que me proporcionaram, e
aos do doutorado, pelo companheirismo e amizade construdos no decorrer do curso;
Ao Centro Federal de Educao Tecnolgica do Rio Grande do Norte, pelo apoio e
incentivo para a realizao deste trabalho, em especial Diretoria de Pesquisa, ao
Departamento Acadmico de Formao de Professores e aos docentes do Ncleo de Arte
(Elane Simes, Roderick Fonseca, Ana Judite, Marinalva Moura e Marcos Aurlio),
coordenao de Multimdia (nas pessoas de Erivaldo Cabral, Edson Lima e Rufino Costa) e
aos bolsistas da base de pesquisa Cultura, Arte e Sociedade, Bruno Felipe e Larissa Vieira.
Tambm a Elosa Faria, pela cuidadosa e delicada concepo esttica desta tese; a Joo
Carlos, pela criao dos desenhos; a Tnia Carvalho, pela boa vontade, pacincia e
profissionalismo com que comps a parte grfica do texto; ao Prof. Artemlson Lima, pela
direo do documentrio Festa do sangue; e ao Prof. Valdenildo Pedro, meu colega e
conterrneo, pelas inmeras sugestes que me fez;
professora Edileusa de Arajo, pelo cuidado e carinho com a reviso lingstica do
texto;
A Oswaldo Lamartine (j falecido), pelos bons momentos em que, da varanda de seu
apartamento falamos sobre o nosso serto;
A Fernando Marinho, pela gentileza em me permitir o acesso a sua biblioteca.
Quero, ainda, agradecer a Flvio Teotnio, Helder Macdo, Teresa Maranho, Jamilo
Galdino, Eliana Quirino, Lus Antnio e Glria Morais, pelas contribuies para este trabalho,
e a todos aqueles que eu porventura tenha esquecido e que, de alguma forma, estiveram
presentes no feitio deste chourio.
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RESUMO
Este estudo prope uma leitura do chourio, um doce feito de sangue, fabricado e consumido, em todo o Serid potiguar. Graas observao etnogrfica que realizamos de 2003 a 2007, descobrimos uma economia domstica, uma organizao social, formas de sociabilidade e de solidariedade em torno da criao de porcos e da culinria. Essa observao tambm revelou um estilo alimentar, discursos, percepes, gostos e comportamentos relativos ao consumo do doce que resultam, em grande parte, de uma relao dinmica entre uma norma idealizada e prticas observadas que mostraram tenses e contradies entre o dito e o feito. Na leitura da cultura alimentar que realizamos, com o estudo do chourio nossa inteno foi problematizar a aplicabilidade das normas sociais e sua inscrio na realidade. Assim, ao fazermos uma anlise simblica do chourio, consideramos em conjunto os aspectos sociais e os simblicos e descrevemos como os seridoenses pensam sua alimentao em correlao com as prticas alimentares e as sociabilidades. O estudo revelou que os princpios da confiana e do interconhecimento, baseados nos laos sociais, estruturam relaes constitudas em torno da criao do porco e da produo, da distribuio e do consumo do chourio. De um ponto de vista simblico, no estilo alimentar, o sangue central: aparece como uma no-comida e releva proibies e transgresses. A contrastividade entre prticas e discursos tem relao direta com a natureza do chourio, feito com o sangue do porco e considerado um doce.
Palavras-chave: Chourio. Sociabilidade. Comportamento alimentar. Anlise simblica.
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RSUM
Cette tude propose de raliser une lecture du chourio, une confiture faite avec du sang, fabrique et consomme dans tout le Serid potiguar. Grace lobservation ethnographique ralise entre 2003 et 2007, nous dcouvrons une conomie domestique, une organisation sociale, des formes de sociabilit et de solidarit contruites autour de llevage des porcs et des pratiques culinaires. Cette observation a aussi rvl un style alimentaire, des discours, des perceptions, des gots et des comportements relatifs la consommation de la confiture qui rsultent, em grande partie, de la relation dynamique entre une norme idalise et des pratiques observes qui ont montr des tensions et des contradictions entre ce qui est dit et ce qui est fait. Avec ltude du chourio, nous relisons une lecture de la culture alimentaire; notre intention a t de problmatiser lapplicabilit des normes sociales et leur inscription dans la ralit. Ainsi, em faisant une analyse simbolique du chourio, nous considrons ensemble les aspects sociaux et symboliques et nous dcrivons comment les habitants du Serid pensent leur alimentation en corrlation avec les pratiques alimentaires et les formes de sociabilit. Ltude a rvl que les prncipes de confiance et dinter-connaissance, fonds sur les liens sociaux, structurent les relations constitues autour de llevage des porcs et de la production, de la distribution et de la consommation du chourio. Dun point de vue symbolique, le sang est central dans le style alimentaire: il apparat comme une anti-nourriture et rvle des prohibitions et des transgressions. La contrastivit entre les pratiques et les discours est en relation directe avec la nature du chourio, fait avec le sang du porc et considr comme un dessert.
Mots-cls: Chourio. Sociabilit. Comportement alimentaire. Analyse symbolique.
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RESUMEN
Este estudio propone una lectura del chorizo, un dulce hecho de la sangre, fabricado y consumido, en todo el Serid (comarca en que realizamos la pesquisa). Gracias a la observacin etnogrfica que realizamos desde 2003 hasta 2007, descubrimos una economa domstica, una organizacin social, formas de sociabilidad y de solidaridad alrededor de la creacin de cerdos y de la culinaria. Esa observacin tambin revel un estilo alimentar, discursos, percepciones, gustos y comportamientos relativos al consumo del dulce que resultan, en gran parte, de una relacin dinmica entre una norma idealizada y prcticas observadas que han mostrado las tensiones y las contradicciones entre el dicho y el hecho. En la lectura de la cultura alimentar que realizamos, con el estudio del chorizo nuestra intencin fue problematizar la aplicabilidad de las normas sociales y de su registro en la realidad. As, al hacer un anlisis simblico del chorizo, consideramos en conjunto los aspectos sociales y los simblicos y describimos como los seridoenses (toponmico de la regin estudiada) piensan su alimentacin en correlacin con las prcticas y la sociabilidad. El estudio revel que los principios de la confianza y el interconocimiento, basados en los lazos sociales, estructuram las relaciones constituidas alrededor de la creacin del cerdo y de la produccin, de la distribucin y del consumo del chorizo. De un punto de vista simblico, en el estilo alimentar, la sangre es central: aparece como una no-comida y releva prohibiciones y transgresiones. El contraste entre prcticas y discursos tiene relacin directa con la naturaleza del chorizo, hecho con la sangre del cerdo y considerado un dulce.
Palabras clave: Chorizo. Sociabilidad. Comportamiento alimentar. Analisis simblica.
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LISTA DE ILUSTRAES
Mapa 1: Mapa da regio do Serid
Figura 1: Categorias sociais envolvidas com o chourio
Fotografia 1: Almoo de matana de porco. Residncia da famlia Birro
Fotografia 2: Almoo de matana de porco. Residncia de Pedro Baeta
Desenho 1: Residncia rural e seus entornos
Fotografia 3: Chiqueiro de porco e criadora. Carnaba dos Dantas
Fotografia 4: Pocilgas comunitrias. Carnaba dos Dantas
Fotografia 5: Maria das Vitrias e porco. Carnaba dos Dantas
Fotografia 6: Transporte de comer de porco. Francisco Ferreira de Sousa. Carnaba dos
Dantas
Desenho 2: Formas de venda do porco em p
Desenho 3: Forma de venda do porco em bandas
Desenho 4: Partes do arrasto do porco
Fotografia 7: Latada no quintal da residncia de Da Luz Dantas. Carnaba dos Dantas
Fotografia 8: Fogo apropriado ao cozimento do chourio. Residncia de Maria de Joo Melo
Fotografia 9: Tacho do fundo reto
Fotografia 10: Tacho do fundo arredondado
Fotografia 11: Colher de pau
Fotografia 12: Palheta
Fotografia 13: Pilagem de especiarias. Maria de Joo Melo
Fotografia 14: Quebra das castanhas de caju. Jardim do Serid
Fotografia 15: Esfriamento do sangue. Maria de Joo Melo
Fotografia 16: Matana de porco. Abatedouro pblico de Jardim do Serid
Fotografia 17: Temperos e ingredientes do chourio
Fotografia 18: Maria de Joo Melo e Jos Bento
Fotografia 19: Maria de Joo Melo enchendo as latas de chourio
Fotografia 20: A raspada do tacho
Fotografia 21: Festa do chourio. Residncia de Mariquinha de Lal
Fotografia 22: Festa do chourio. Residncia de Mariquinha de Lal
Fotografia 23: Rifa do chourio. Residncia de Mariquinha de Lal
Fotografia 24: Rifa do chourio. Residncia de Mariquinha de Lal
Fotografia 25: Mulheres preparando o chourio
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Fotografia 26: Aparo do sangue
Fotografia 27: Picado
Fotografia 28: Buchada e panelada
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 1: Partes da carne de porco, valor comercial e social e uso culinrio
Grfico 2: Comidas feitas base de sangue animal
Grfico 3: Comidas carregadas (ou doentias) e descarregadas (ou sadias), fracas (ou sem
sustncia) e fortes (ou com sustncia)
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SUMRIO
1 A FEITURA DESTE CHOURIO 15 1. 1 SAINDO DO TACHO 15 1. 2 O CHOURIO NA MESA: UMA LEITURA ANTROPOLGICA 17 1. 3 PROBLEMATIZANDO O CHOURIO 19 1. 4 OS TEMPEROS DO CHOURIO 24 1. 5 NAS BORDAS DO TACHO 31 2 O DOCE NA ALIMENTAO DO SERIDOENSE 39 2. 1 O CHOURIO DE CAETANO DANTAS 41 2. 1. 1 Chourio: uma prova de fogo 43 2. 1. 2 O cenrio socioeconmico 47 2. 1. 2. 1 Os stios: unidades produtivas 49 2. 1. 2. 2 As parcerias 52 2. 1. 2. 3 A permanncia de um sistema de valores 57 2. 1. 3 O sabor da cozinha seridoense 58 2. 1. 3. 1 O cardpio de ontem e o de hoje 60 2. 1. 4 Farinha de mandioca 68 2. 1. 5 Carne: mistura que no pode faltar no prato 71 2. 1. 5. 1 Festa de matana de porco 74 2. 1. 6 Rapadura 77 2. 1. 6. 1 O fascnio pelo acar 77 2. 1. 6. 2 O doce do sertanejo 82 2. 1. 7 Doce dos ricos e doce dos pobres 89 2. 1. 8 Doaria seridoense 93 2. 1. 8. 1 Como se fazia chourio antigamente 95 3 A CRIAO DE PORCOS 104 3. 1 O PORCO: UMA POUPANA VIVA 105 3. 1. 1 O trabalho da mulher 111 3. 1. 2 Performance do porco e porcofobia 120 3. 2 UMA ATIVIDADE COMPARTILHADA 122 3. 2. 1 Modos de criar 125 3. 2. 2 Comer de porco, um bem simblico e econmico 134 3. 2. 3 Acordo apalavrado 142 3. 2. 4 O destino do arrasto e do chourio 146 3. 3 LGICAS COMERCIAIS E SOCIABILIDADES 156 4 ETNOGRAFIA DO CHOURIO: RITO E SMBOLO 160 4. 1 O CHOURIO DE MARIA DE JOO MELO 167 4. 1. 1 preciso matar o porco 181 4. 1. 2 A festa do chourio 189 4. 2 O CHOURIO DE MARIQUINHA DE LAL 200 4. 2. 1 A rifa do chourio 205 4. 2. 2 O disputado chourio de Mariquinha de Lal 208 4. 3 UMA LEITURA DA CHOURIADA 215
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5 A CINCIA DO CHOURIO 221 5. 1 O SANGUE NA ALIMENTAO HUMANA 222 5. 1. 1 A fonte da vida 222 5. 1. 1. 1 Os cuidados com o sangue 224 5. 1. 2 Comidas de sangue 228 5. 1. 3 O sangue na culinria seridoense 234 5. 1. 4 As especificidades do chourio 236 5. 2 SABERES E FAZERES 242 5. 2. 1 Sangue menstrual e cozinha 244 5. 2. 2 A mo do homem 250 5. 2. 3 O desonerado 255 5. 3 O CARREGO 261 5. 3. 1 Carregado e descarregado 262 5. 3. 1. 1 O medo de comer o porco 264 5. 3. 1. 2 Outras carnes doentias 269 5. 3. 2 Comidas fortes e comidas fracas 275 5. 4 DOCE CARREGADO 282 6 SANGUE E DOCE: COMBINAO AMBIVALENTE 286 6. 1 ESTTICA DO DOCE 289 6. 1. 1 As latas de doce 291 6. 1. 2 Temperos de cheiro 294 6. 2 COMER O SANGUE DOCE 304 6. 2. 1 Espao e tempo da festa 306 6. 2. 2 A prova 310 6. 3 A REPULSA DO CHOURIO 312 6. 3. 1 A marca da mestra 314 6. 3. 2 Comer sangue? 316 6. 3. 3 Um mistura singular 323 CONCLUSES 329 REFERNCIAS 335 GLOSSRIO 350
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1 A FEITURA DESTE CHOURIO
Um chourio, sendo bem cozinhado, o
melhor doce do mundo. (Expedito Medeiros)
Este estudo prope uma leitura do chourio1, um doce feito de sangue, fabricado e
consumido em todo o Serid potiguar. Graas a uma observao etnogrfica que realizamos
de 2003 a 2007, descobrimos uma economia domstica, uma organizao social, formas de
sociabilidade e de solidariedade em torno da criao de porcos e da culinria. Tambm se
revelaram um estilo alimentar, discursos, percepes, gostos e comportamentos relativos ao
consumo do doce que resultam, em grande parte, de uma relao dinmica entre uma norma
idealizada e prticas observadas. De fato, a descrio da cultura alimentar que realizamos,
com o estudo do chourio, leva em conta, necessariamente, as dimenses econmicas, sociais
e simblicas envolvidas no processo, revelando tenses e contradies entre o que dito e o
que feito.
1. 1 SAINDO DO TACHO
Todos os anos minha2 me costumava matar um porco, momento em que a famlia
trabalhava, se divertia e comia mais do que era necessrio. Morvamos num stio e aquela era
a nica festa da nossa casa. Meu pai, Olu, que era agricultor, costumava vender a carne do
porco para melhorar o oramento familiar. Minha me, Angelita, preocupava-se em distribuir
o chourio entre os parentes e os vizinhos. Os doze filhos tnhamos que acordar cedo para
ajudar nas tarefas da casa e da matana. Meu pai ameaava cortar os punhos da rede dos
preguiosos. As mulheres eu e minhas irms, j que minha me tinha que aparar o sangue
do porco dvamos um jeito de nos esconder para no vermos a matana do porco.
Lembranas dos tempos bons, que hoje se fizeram raros! Lembro-me de ter passado
dias cuidando dos preparativos para as festas de matana de porco para fazer chourio. Em
1 Todas as palavras sublinhadas que aparecem no decorrer deste texto fazem parte de um glossrio de termos
empricos com alguns dos respectivos significados mais recorrentes no contexto sertanejo. 2 Neste item do trabalho, por me referir a uma experincia bem particular minha, ligada as minhas origens,
falarei, a partir deste momento, na primeira pessoa do singular, para poder distinguir claramente as declaraes que se referem a mim, particularmente, de outras que se referem a mim juntamente com outras pessoas. No item 1.2, voltarei a usar apenas a primeira pessoa do plural.
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meio euforia para degustar a to esperada guloseima, eu ouvia sempre dizer que o doce era
proibido para os doentes. Todos desejavam comer o chourio, mas respeitavam as regras, sem
question-las. Mesmo assim, algumas pessoas que no podiam comer no resistiam ao cheiro
que saa do tacho no momento da fervura um sabor e um aroma j conhecidos e
terminavam burlando as normas prescritas e dando um jeitinho para provar um pouco do
doce. Aqueles que tinham medo de provar do chourio se sentiam satisfeitos participando
apenas da festa.
No final do ano de 2003, tive a idia de transformar minha experincia em uma tese de
doutorado, depois da exibio de uma reportagem sobre uma chouriada que minha me fez
em nosso stio, em Carnaba dos Dantas. O programa foi produzido pela Intertv Cabugi,
afiliada da Rede Globo de Televiso, e exibido no programa Fantstico em dezembro de
20023, tendo uma grande repercusso local. Na reportagem, havia cenas da preparao do
doce em que minha me aparecia cuidando do sangue. Logo depois, passei a ouvir relatos de
conhecidos queixando-se de que tinham ficado decepcionados com as imagens exibidas, pois
eram muito chocantes. Segundo eles, antes comiam o doce e sabiam que era feito do sangue
de porco, mas no tinham visto sua feitura ou no tinham conscincia de que o sangue era
usado na sua forma lquida. Curiosamente, alguns me confessaram que, praticamente, tinham
nascido ao redor do tacho do chourio, como eu. As reaes foram diversas, porm a mais
comum foi de repulsa ao lembrar do sangue4.
Ingressando no curso de doutorado, em 2004, comecei a dar os primeiros passos para
me afastar do tacho de chourio de minha me, quando percebi que o doce ainda era bastante
apreciado e que continuava sendo feito por parentes e vizinhos. Verifiquei ento a
importncia da matana do porco na vida social do Serid. Por outro lado, ouvi muitos dos
meus conterrneos expressarem indignao e nojo por essa comida. Numa conversa com
Marcos Antnio Dantas, historiador, funcionrio pblico e vereador em Carnaba dos Dantas,
perguntei se, em sua residncia, havia algum que no comesse aquele doce, ao que ele
respondeu surpreso: E h algum no Serid que no come chourio? Se ele um doce que
faz parte de nossa cultura... Aquela resposta, em tom de indagao, vinda de um historiador,
me aliviou e, ao mesmo tempo, me preocupou, pois minhas observaes preliminares sobre o
chourio foram postas em debate. At ento eu acreditava, como Marcos, que todo mundo
3 A reportagem, intitulada Natal do Serto, foi ao ar em rede nacional no dia 22 de dezembro de 2002, no
programa Fantstico. 4 A referncia a minha pessoa deu-se em virtude de eu aparecer na reportagem exibida localmente comentando
alguns aspectos socioculturais sobre o chourio feito por minha me.
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comia chourio, com exceo dos que estavam doentes. Mas a verdade que ele conhecia,
sim, algum que no comia chourio.
A conversa foi se estendendo e, aps ouvir outras pessoas, percebi que o chourio era
tido como doce tradicional aceito por uns e rejeitado por outros. Foi ento que me dei conta
de que aquele doce, para mim to familiar, tinha uma dimenso maior do que aquela que eu
tinha vivenciado quando morava no stio: no se tratava de uma simples comida, mas de um
doce que tinha muito a dizer sobre a realidade da terra onde nasci e me criei: ele revelava
comportamentos alimentares, prticas sociais e solidariedade peculiares. Assim, me convenci
de que, na leitura do chourio, era preciso considerar as dimenses social e simblica. Para
analisar essas duas dimenses, optei pela etnografia e pela observao demorada de algumas
situaes.
1. 2 O CHOURIO COMO PROBLEMA
Entre os diferentes doces encontrados e consumidos no Serid, est o chourio, feito
com sangue e banha de porco, rapadura, farinha de mandioca, leite de coco, castanha de caju,
gua e especiarias cravo, canela, gengibre, erva-doce e pimenta-do-reino. A feitura desse
doce requer um saber-fazer especializado, normalmente dominado pelas mulheres maduras.
So necessrios longas horas de cozimento e o envolvimento de membros da famlia e da
vizinhana. Fazer um chourio ainda hoje um grande rebulio, no qual se evidenciam
questes, fundamentalmente, de ordem simblica e social. Por meio do estudo do chourio,
possvel observarem-se elementos que informam sobre uma economia local invisvel, uma
organizao social (em particular, a sociabilidade e a solidariedade) e um estilo alimentar.
No obstante o chourio ser um doce tradicional proibido para os doentes e
repugnante para algumas pessoas, ele continua sendo produzido e consumido na sociedade
contempornea.
A seguir, apresentamos alguns questionamentos que nortearam o desenvolvimento
deste estudo, assim sintetizados: De que forma se articulam as questes de natureza simblica
relativas proibio com as prticas culinrias? Como se constituem as posies contrastivas
dos comensais em relao ao chourio que o reafirmam como uma comida aceita por uns e
repudiada por outros? De que maneira os sujeitos viabilizam seus interesses socioeconmicos
na produo, na distribuio e no consumo do chourio? Que relao h entre as
representaes construdas a respeito do porco e a condio de comida carregada? Em que a
chouriada pode ser realizada como um ritual? Como se articulam os elementos constitutivos
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que tornam o chourio comestvel ou proibido? Alm desses questionamentos, pergunto,
ainda: Por que o chourio, mesmo sendo uma comida carregada, to desejado? Por que ele
perturba alguns sujeitos, chegando a provocar repugnncia? Como se explica o desejo que
alguns sentem pelo doce, mesmo sabendo do perigo que ele representa? Esses
questionamentos, sem dvida, se tornaram grandes desafios deste estudo, entretanto o
questionamento geral, que norteou o desenvolvimento desta tese, foi o seguinte: Como o
estudo do chourio permite visualizar a sociedade seridoense contempornea e entender as
mudanas dessa sociedade em relao economia, aos laos sociais, aos comportamentos
alimentares e ao sistema simblico que est por trs disso tudo?
Alguns dos pressupostos que nortearam o desenvolvimento do estudo dizem respeito
criao do porco. O animal no aparece nos registros oficiais, mas est presente na economia
domstica, no Serid, pelo menos desde o sculo XIX. Tentaremos demonstrar isso na
terceira sesso deste trabalho. O tecido social tradicional, que subsiste, baseado nos
princpios da confiana e do interconhecimento, est presente nas relaes
socioeconmicas. No estilo alimentar do Serid, o sangue central: ao mesmo tempo, aparece
como uma no-comida, relevando proibies e transgresses associadas s comidas doentias,
e tambm um alimento muito aceito. Existe um contraste entre prticas e discursos que est
em relao direta com o fato de o chourio ser feito com o sangue do porco e com sua
qualificao como doce. O chourio um alimento, por excelncia: revela um estilo alimentar
e lhe esto associadas representaes em torno da comida e formas de sociabilidade,
solidariedade e identidade social.
Ao analisar as prticas e os discursos que envolvem a criao de porco, pudemos
compreender o papel desse animal na economia domstica e seu lugar no universo simblico
do Serid. Por ser considerado sujo, o porco tem pouco valor comercial e social. Veremos
que, no caso de uma criao compartilhada, a partilha, a comunho e a festa tornam-se
obrigatrias e objeto de conflitos. O porco, quase sempre, rene pessoas, cria laos sociais,
marca fronteiras socioeconmicas; assim, sua carne e o chourio tornam-se bens valorados
socialmente. As relaes de cooperao que so tecidas para criar o animal e para fazer o
chourio so fundadas nos laos de interconhecimento.
As prticas ambivalentes dos comensais em relao ao chourio se originam,
geralmente, das noes construdas socialmente sobre o sangue e o doce e sobre a combinao
inusitada desses dois elementos. Apesar de o chourio no ser recomendado para pessoas
doentes, ele valorizado culturalmente, principalmente quando se participa diretamente ou
indiretamente de sua feitura e quando se reconhece a marca da mestra que o preparou.
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Nesse sentido, nosso argumento central est ligado aos princpios da confiana e do
interconhecimento que estruturam relaes sociais travadas em torno do doce, sua feitura e
seu consumo.
Para responder aos questionamentos levantados, utilizamos uma anlise simblica que
se situa numa perspectiva da antropologia clssica, com alguns aportes mais contemporneos,
mais particularmente no que concerne ao estudo das lgicas sociais, das normas e prticas e
do estilo alimentar.
1. 3 O CHOURIO NA MESA:UMA LEITURA ANTROPOLGICA
Os estudos antropolgicos e sociolgicos a respeito da alimentao j realizados
adotam a perspectiva da anlise simblica, inspirando-se no modelo estruturalista5. Vrios
modelos tericos explicativos centram suas anlises em determinismos funcionais, simblicos
e/ou materiais, sem considerar os alimentos em seus contextos histricos, socioculturais e
econmicos. Nem sempre os estudos se fazem acompanhar de uma pesquisa etnogrfica na
qual o conjunto desses aspectos possa ser cuidadosamente analisado, como pensa Mauss
(2003), o qual considera que, nos fenmenos sociais, como fatos sociais totais, as aes so
inseparveis das representaes.
Nesse sentido, entendemos que a anlise do chourio que pretendemos realizar precisa
contemplar de forma integrada o estilo alimentar, o sistema simblico, as prticas e as
relaes sociais e econmicas que envolvem essa comida. Mesmo sabendo que toda anlise
dessa natureza deve levar em conta o simblico e o social, nossos esforos se voltam para
relacionar os discursos dos sujeitos com suas prticas sociais. Assim, compreendendo a
realidade como uma construo social dinmica, pretendemos mostrar que o chourio soube
adaptar-se s modificaes da sociedade contempornea.
contra a mitologia do paraso culinrio perdido (POULAIN, 2004), da comida
como algo esttico, que precisa ser protegido, que nos aventuramos nesta pesquisa. Queremos
perceber as mudanas e as permanncias nas prticas culinrias e a singularidade do chourio.
Sendo assim, a idia de comida tradicional que desenvolvemos aqui se deve designao
5 No estudo das sociedades primitivas, os primeiros etnlogos que analisam a alimentao estavam centrados,
principalmente, em aspectos rituais e sobrenaturais do consumo dos alimentos, insistindo sobre a importncia das dimenses sociais e simblicas destes. Na primeira metade do sculo XX, o campo epistemolgico da antropologia e da sociologia balizado, particularmente, pelas correntes tericas funcionalista, estruturalista e culturalista passa a centrar seu interesse em estudos sobre a temtica da relao entre alimentao e cultura (CONTRERAS; GRACIA, 2005; POULAIN, 2004).
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emprica que significada scio-historicamente. Dessa forma, acreditamos que o estudo do
chourio permite perceber as relaes entre as dimenses culturais, sociais e alimentares, uma
preocupao presente na antropologia da alimentao e ainda pouca explorada nos estudos
sobre essa temtica, principalmente no Brasil, e sobretudo no Nordeste.
Ao fazermos uma incurso pelo campo epistmico da alimentao, percebemos que
excetuando-se algumas perspectivas mais contemporneas o debate sobre as escolhas e as
decises alimentares ainda est centrado nas mximas postuladas pelo estruturalismo lvi-
straussiano e pelo materialismo cultural de Harris (1978): se bom para pensar, ento bom
para comer e se bom para comer, ento bom para pensar. Para esse autor, as escolhas e as
decises alimentares esto associadas aos recursos tcnicos disponveis em cada sociedade.
Assim, as proibies alimentares, como, por exemplo, o tabu relativo carne de porco, so
regras culturais criadas a partir de problemas de adaptao ecolgica, ou seja, de ordem
prtica e utilitria, e no fruto de operaes simblicas, como pensa Douglas (1991), entre
outros autores.
Para Lvi-Strauss (2004a, 2004b, 1965), Douglas (1991) e Sahlins (2003), os
indivduos pensam os alimentos e os classificam em comidas comestveis e no-comestveis
por meio de um cdigo cultural que determina as escolhas e informa as proibies. Lvi-
Strauss e Douglas, em particular, esto mais interessados na anlise de signos (semitica), ou
melhor, nos elementos internos das formas simblicas, e no no entendimento das relaes
sociais e das situaes alimentares. Excetuando-se algumas anlises feitas por Douglas (1991)
e por Sahlins (2003), em geral os autores defendem uma viso de autonomizao do
simblico em relao ao social. por meio de categorias de pensamento, ou de percepo,
que os sujeitos agem; assim, as representaes simblicas exprimem a maneira como os
homens se situam no mundo, natural e social. Nessa perspectiva, para se entender a sociedade,
necessrio, antes, saber-se como os homens pensam. Assim, sero obtidas informaes
sobre como eles se organizam, como agem, transgridem regras, lutam e vivem. A
compreenso das lgicas culturais importante para se entenderem as prticas.
Nas ltimas dcadas, surgiram muitas abordagens terico-metodolgicas com o intuito
de problematizar os determinismos exacerbados dessas correntes e superar a oposio entre
idealismo e materialismo, reconhecendo a dinmica social, os contextos sociais e histricos
nos quais os alimentos esto inseridos e, principalmente, os diversos sentidos que so
atribudos s prticas alimentares. No entanto so poucos os enfoques que tm superado, com
xito, as carncias deixadas pelas correntes tericas clssicas (CONTRERAS, GRACIA,
2005).
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Num cenrio de mltiplos percursos e saberes, inscrevem-se, por exemplo, a
abordagem multidimensional da antropologia da alimentao, representada por autores como
Garine (2002), Contreras e Gracia (2005), Gracia (2002), Milln (2004, 2002), dentre outros.
O interesse da antropologia da alimentao est voltado para uma leitura do universo
alimentar que considera as interaes entre os aspectos biolgico, ecolgico e social. Portanto,
para esses autores, o espao alimentar no somente um fato social total, como pensa Mauss
(2003), mas um fenmeno humano total, nos termos elaborados por Morin (1973). Fischler
(1995) prope que se pense a relao entre o cultural e o biolgico, e Poulain (2004), a partir
da noo de espao social alimentar, faz uma anlise das vrias dimenses articuladas do fato
alimentar. Por reconhecer que a proposta da antropologia da alimentao e a de Poulain
(2004) contemplam diversos aspectos da alimentao, retomamos, nesta pesquisa, a idia de
cultura alimentar como um conjunto de normas e de prticas que vem sendo desenvolvida
por esses autores. A proposta de Fischler (1995) nos ajuda a pensar sobre as relaes que
existem entre alimentao e sade ou doena.
Alm dessas abordagens mas sem defender a perspectiva que considera o homem
como um ser biocultural , esto os enfoques ps-modernos, ps-estruturalistas,
construcionistas e desconstrucionistas, que, partindo de abordagens clssicas, tentam superar a
antinomia entre o material e o simblico, o ideal e o real, o objetivo e o subjetivo, o macro e o
micro, tenses que tm dominado grande parte das anlises sobre a realidade social e as
prticas alimentares, no ltimo sculo. A via interacionista inclui autores contemporneos,
como, por exemplo, Corbeau (2005a, 2005b) e Mintz (2001). Para essas abordagens, a
realidade observvel uma construo social, e no algo natural, ou dado a priori. O foco de
anlise do construcionismo, que se reconhece na antropologia simblico-interpretativa a
linguagem e os discursos da produo de significados ocupa um lugar central na anlise dos
dados empricos (CONTRERAS e GRACIA, 2005). Se, por um lado, a comida um tema
recorrente nas escolas do pensamento antropolgico contemporneo, o interesse pelo campo
ainda no est totalmente consolidado na sociologia (POULAIN, 2004).
Seja em concordncia com os modelos clssicos da antropologia e da sociologia, seja
discordando deles, os pesquisadores brasileiros tm se interessado pela comida, sobretudo a
partir das ltimas dcadas do sculo XX. Apesar de existirem trabalhos relevantes, na rea da
antropologia social, a respeito das prticas, do simbolismo e da sociabilidade, poucos esto
centrados na relao entre simblico e scio-histrico. Algumas pesquisas etnogrficas
desenvolvidas na segunda metade deste sculo, como, por exemplo, as de Maus e Maus
(1980) e Peirano (1975), realizadas em comunidades de pescadores, respectivamente nos
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povoados de Itapu, no Par, e Icara, no Cear, do mais nfase s lgicas culturais,
relacionando-as muito pouco aos aspectos da sociabilidade e do contexto de interao social.
Nessa perspectiva, tambm foram realizadas algumas pesquisas sobre hbitos alimentares de
populaes de baixa renda, como as que foram coordenadas por Velho (1977), no Norte e no
Nordeste, e por Brando (1976), em Mato Grosso.
J numa perspectiva que contempla, de certa forma, os aspectos simblicos e as
dimenses do social, h pesquisas etnogrficas, como a de Castro (2002), sobre algumas
noes cosmolgicas dos Yawalapti, povo do Alto Xingu, a de Maciel (2004, 1996), que
analisa o churrasco como um prato emblemtico do gacho, um marcador de identidade
regional, e as de Woortmann (1978, 1986). Dentre outros, existem ainda os trabalhos de Rial
(1996), Tonial (2001) e Pinto (2005). Para essa ltima autora, a partir do modelo alimentar
bsico (farinha, feijo e carne), forjado no perodo colonial, so pensadas as formas de
constituio da estrutura da sociedade brasileira. Sendo assim, podemos incluir nessa
perspectiva este estudo sobre o chourio.
No campo dos estudos histricos, seguindo enfoques diversos, situamos os trabalhos
de Carneiro (2003), de Fisberg, Wehba, Cozzolino (2002) e de Cascudo (1973, 1971, 2004).
Este ltimo, em particular, tenta mostrar as constncias e as permanncias alimentares a partir
de informaes histrico-culturais. Numa perspectiva sociolgica e geogrfica, existem os
estudos realizados por Freyre (1997, 2002) e por Castro (2005). O primeiro faz uma leitura da
sociedade brasileira, em especial a nordestina, por meio das variaes da culinria e dos
hbitos alimentares, para isso utilizando-se do conceito de raa, em vez do de cultura. Castro,
por sua vez, analisa a alimentao tomando por base a relao entre fome, eugenia e evoluo
social. Nessas abordagens, d-se nfase aos aspectos histricos, sociais e climticos, em
detrimento dos simblicos.
Em obras folclricas, histricas, sociolgicas e antropolgicas, o chourio j tem sido
contemplado, porm percebemos a ausncia de leituras que tratem, de forma integrada, das
dimenses simblica e contextual implicadas nessa comida. Em Cascudo (2004), o chourio
visto como uma extenso da cozinha portuguesa no Nordeste brasileiro. J em Freyre (1997),
ele um doce que expressa um pensamento mestio, smbolo de uma alimentao edulcorada,
ou melhor, de uma sociedade cujos hbitos alimentares foram adocicados, em virtude da
expanso do acar. Nos escritos de Medeiros (1997), Silva (1999), Gomes (2004) e Cirne
(2004), o chourio tem apenas um carter ilustrativo na cultura e na histria da gastronomia
do Serid potiguar. Ele mais uma sobremesa, no meio do diversificado cardpio de
guloseimas regionais. Em Macdo e Silva (2000), mesmo que de forma breve, so apontados
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alguns aspectos sociais que envolvem o chourio. Em geral, as informaes sobre esse doce
trazidas pela grande maioria dos autores mencionados so receitas, modos de preparao e
regras de comensalidade. Alm disso, no apresentam registros consistentes de dados
etnogrficos, e as informaes histricas so descontextualizadas no que tange ao tempo e ao
espao.
Apesar dos esforos desses campos epistmicos no estudo da comida, verificamos que
uma grande parte dos que se inspiram no funcionalismo, no estruturalismo e no culturalismo
centra suas anlises em aspectos unilaterais dos fenmenos alimentares, enfatizando somente
as lgicas utilitrias e/ou simblicas. As dimenses biolgica, econmica e ecolgica tambm
esto implicadas no ato alimentar, mas sozinhas no determinam a rede simblica e social que
o norteia. Alm do mais, o simbolismo e as prticas alimentares so criaes definidas no
espao e no tempo pelas sociedades e as convenes podem ser re-vividas rigorosamente ou
no. Ademais, elas no so determinadas to-somente pelas condies materiais, as quais, no
mximo, podem constituir-se em condies necessrias, jamais suficientes. Nesse sentido, a
escolha de uma comida no se justifica simplesmente por meio dessas razes objetivas e
racionais, mas sim por sua significncia sociocultural e histrica.
A problematizao da relao entre o simblico e sua inscrio na realidade scio-
histrica ausente em muitas abordagens clssicas somente retomada, de certa forma, por
alguns enfoques contemporneos, com os quais dialogamos, na medida do possvel, neste
texto. A preocupao aqui no centrar a anlise em aspectos funcionais, simblicos e/ou
materiais, mas pensar as interfaces entre as diferentes dimenses do social. Foi por perceber
poucas experincias nessa perspectiva no estudo da alimentao que propusemos uma anlise
simblica do chourio considerando o conjunto de normas e prticas relativas ao
comportamento alimentar e sociabilidade.
O objeto desta pesquisa se insere nas preocupaes com o estudo dos comportamentos
alimentares nas sociedades contemporneas, os quais representam uma parte importante dos
estudos no campo da alimentao. Nesse sentido, por um lado, a temtica da pesquisa emergiu
a partir das escolhas e das decises alimentares. Abordar essa temtica no uma tarefa fcil,
em virtude de essas escolhas e decises serem orientadas por motivaes de ordem moral,
identitria, esttica, simblica, higinica, religiosa, social, diettica. Por outro lado, graas
descrio do chourio, conseguimos perceber uma organizao econmica, formas de
sociabilidade e de cooperao econmica e tambm um estilo alimentar que revela
representaes sobre alimentos. Como apontamos, existem poucos estudos recentes sobre a
cultura alimentar no Nordeste em particular, no mbito da antropologia. Para atingir nosso
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objetivo, elegemos algumas categorias conceituais, por meio das quais, pudemos vislumbrar
os aspectos simblicos e sociais e outros que esto relacionados ao chourio. Eis, alguns dos
temperos deste chourio.
1. 4 OS TEMPEROS DO CHOURIO
Neste estudo, partimos da constatao de que existem discrepncias entre as prticas
declaradas (o que interiorizado) e as prticas objetivadas (o que realmente feito)
(CONTRERAS, GRACIA, 2005; POULAIN, 2004). Essa perspectiva contempla, de forma
integrada, as normas e as prticas, pois a anlise da identidade cultural realizada em
conjunto com a das formas de sociabilidade e de solidariedade que so construdas em torno
da alimentao e da festa. Entendemos norma como um modo generalizado de
comportamento que tem sido convencionado ou aceito por toda (ou por uma boa parte de)
uma populao e cuja funo principal a de atuar de guia ou modelo para quem compartilha
uma mesma sociedade ou cultura (CONTRERAS, GRACIA, 2005, p. 183)6. J as prticas
so as aes concretas dos sujeitos, e se dividem em prticas reais e prticas declaradas. As
primeiras so aquelas que se observam, e as segundas as que so interiorizadas pelos sujeitos.
claro que nem sempre as prticas reais correspondem s declaradas. Dependendo do
contexto, pode haver diferenas significativas entre o dito e o feito7.
Autores como Carrasco (1992), Corbeau (1980), Garine (1980) e Murcott (1988),
citados por Contreras e Gracia (2005), observam que diferentes investigaes terico-
empricas tm constatado que h desajuste entre o ideal e o real, ou seja, entre o que se
pensa e o que se faz na realidade. Gracia (1996) e Poulain (2004) desenvolveram pesquisas
empricas sobre o comportamento alimentar de grupos sociais, respectivamente, das cidades
de Barcelona e Paris. Nesses estudos, os autores detectaram discrepncias entre os discursos
sobre alimentao e as prticas alimentares, uma dimenso pouco explorada nos estudos da
alimentao, em particular no Brasil, e que consideramos relevante nesta pesquisa, pois, as
diferenas detectadas entre os discursos construdos pelos interlocutores e suas realidades
alimentares so chave para compreender o sentido, a funo e, em definitivo, o significado de
suas prticas cotidianas, como estruturantes da ordem sociocultural (CONTRERAS,
GRACIA, 2005, p. 197-8).
6 Todas as tradues desses e de outros autores citados neste texto so de nossa inteira responsabilidade. 7 Essas idias tambm so defendidas por Poulain (2004).
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O conjunto de representaes, de crenas, conhecimentos e de prticas herdadas e/ou
aprendidas que esto associadas alimentao e que so compartilhadas pelos indivduos de
uma cultura dada ou de um grupo social determinado dentro de uma cultura forma uma
cultura alimentar (CONTRERAS, GRACIA, 2005, p. 37). Por meio da cultura alimentar, os
indivduos constroem um espao alimentar, que compreende as formas de produo,
aquisio, preparao, distribuio, comercializao e consumo de sua alimentao, redes de
sociabilidade e de solidariedade, formas de organizao e de diviso social do trabalho, dentre
outras dimenses.
Por outro lado, consideramos as normas e as prticas no apenas como um conjunto
ordenado, como pensam esses ltimos autores, pois os comportamentos alimentares no
obedecem to-somente a critrios determinados socialmente nem resultam simplesmente de
aes prticas; eles so fruto de uma dialtica entre normas e prticas. A despeito das
determinaes sociais, esses comportamentos esto sujeitos a transformaes, em virtude das
mudanas sociais. Isso porque as vises que as pessoas tm do mundo e de seus modos de
vida podem modificar as normas e as prticas alimentares. Assim, conveniente assinalar que
a relao entre os sujeitos e a sociedade dinmica e contextualizada no tempo e no espao,
podendo os modelos culturais ser questionados ou reafirmados na ao prtica, como sugere
Bourdieu (2004), Elias (1992), Castoriadis (1982) e tanto outros autores. Poulain (2003, p.
205), parafraseando Corbeau (1997), afirma que os comensais no esto em parte
subdeterminados por suas origens sociais, mas dispem simultaneamente de um espao de
liberdade mais ou menos amplo que lhes permite adaptar, modificar e fazer evoluir as formas
de suas prticas alimentares. Assim tambm Contreras e Gracia (2005, p. 104) alertam para o
fato de que diferentes investigaes demonstram que h sempre discrepncia entre os
discursos dos sujeitos e suas prticas alimentares, fato que precisa ser investigado pelo
pesquisador.
Ao problematizar a parcela de indeterminao, incerteza e abertura entre as regras (ou
normas) e as prticas sociais, Bourdieu (2004) observa que a conformao destas ltimas s
normas no uma recorrncia em todas as aes; acontece com mais freqncia quando a
codificao vista como um fundamento da integrao social. O habitus sistema de
disposio para a prtica , mesmo sendo um fundamento objetivo de condutas regulares, no
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auto-aplicvel; ele obedece a uma lgica prtica, a lgica do fluido, do mais-ou-menos, que
define a relao cotidiana com o mundo (BOURDIEU, 2004, p. 98)8.
Assim, mesmo que haja uma aplicao imediata de determinados valores, em suas
aes concretas os sujeitos no agem de forma totalmente inconsciente. Muitas vezes, antes
de pensarem logicamente as coisas do mundo e executarem suas prticas, os sujeitos
imaginam, refletem e lhes do significaes que esto impregnadas de racionalidade e de
simbolismo. Da por que preciso considerar o componente da imaginao na construo de
todo simbolismo, como faz, por exemplo, Castoriadis (1982)9. nesse sentido que
entendemos aqui o imaginrio um conjunto de imagens construdas pelos sujeitos sobre si
mesmos e sobre a sua realidade social, natural e sobrenatural como sendo o produto de todas
as representaes sociais e individuais; noutros termos, o conjunto de lgicas culturais.
As escolhas alimentares nem sempre so resultantes de critrios coerentes, mas de
critrios ambguos e contraditrios: respondem a lgicas culturais diversas, que se
transformam ao longo dos tempos. Elas esto relacionadas diretamente questo do gosto
alimentar, s noes de sade e doena, de vida e morte, de limpeza e sujeira, pois os
alimentos podem ser fonte de energia e de prazer, vetores de contaminao e causas
potenciais de doena. As prticas ambivalentes em relao ao chourio so um exemplo de
que o comportamento alimentar pode ser orientado tanto por normas sociais (incluindo as de
ordem identitria, higinica, religiosa, moral) como pelas dietticas.
As normas sociais, fruto de um contexto sociocultural e histrico, so interiorizadas e
comungadas pelo conjunto dos membros de uma sociedade. As normas dietticas so
constitudas por um conjunto de prescries apoiadas em conhecimentos cientficos
nutricionais e difundidos por meio dos profissionais da sade as quais podem ser
interiorizadas pelos sujeitos (POULIAN, 2004, p. 82). As normas dietticas professam que as
comidas gordurosas, como, por exemplo, os alimentos derivados do porco, e os doces
representam grande mal para a sade e para a integridade dos indivduos e devem ser
evitadas. Se o chourio sempre foi julgado como um doce gostoso porm no indicado para
pessoas doentes, com a instaurao e a interiorizao de normas dietticas nos parece que ele
passa a ser ainda mais rejeitado. No obstante ser julgado como ofensivo sade e rejeitado
8 Apesar de reconhecer a importncia da sociologia da prtica de Bourdieu para os estudos da alimentao,
informamos que, por uma questo de escolha terica, no empregamos seu mtodo nesta pesquisa. Contudo, utilizaremos, na medida do possvel, alguns aspectos de sua teoria.
9 no imaginrio que se encontra o simblico, s podendo este exprimir-se por meio daquele. Em parte, essa noo de imaginrio tem relao com o entendimento sobre esse conceito de Castoriadis (1982). Esclarecemos que, nesta pesquisa, no utilizaremos o mtodo scio-histrico, proposto por esse autor.
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por alguns comensais, o chourio uma comida marcadora de identidade: comer esse doce
marca o pertencimento do seridoense a uma cozinha, a uma cultura, a um grupo social, a uma
regio.
Comungamos com Bauman (2005, 2003) ao pensar a identidade como um processo a
ser construdo social e individualmente, de forma ininterrupta, a partir de valores culturais
mltiplos situados no tempo e no espao, afirmando interesses comuns e algumas
similaridades com outros valores. Isso acontece quando o indivduo e a coletividade se
identificam de forma espontnea com algo quer seja smbolo, objeto, palavra, gesto, comida
que gere um certo sentimento de pertencimento. Nesse sentido, a identidade no algo
predefinido, esttico, uma realidade a priori, uma fico, mas sempre um processo em
construo, gestado na prxis humana, um objetivo a ser alcanado. algo que d certa
segurana ontolgica ao sujeito e coletividade e uma inveno socialmente necessria,
pois, como lembram Halbwachs (1990), Pollak (1992) e Bauman (2005, 2003, p. 13), mesmo
a identidade sendo um assunto pessoal, ela s vivida e formada no mundo e no dilogo do
indivduo com os outros. Trata-se, portanto, de um fenmeno individual e social. Nesse
sentido, as consideraes desse ltimo autor so interessantes, pois ele enquadra como
identidades coletivas todos os investimentos que um grupo deve fazer ao longo do tempo,
todo o trabalho necessrio para dar a cada membro do grupo quer se trate de famlia ou de
nao o sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia. Assim, pensamos a
identidade como um processo dialtico pelo qual o indivduo, simultaneamente, se integra em
uma coletividade de referncia e se distancia dela.
Por outro lado, devido a seu carter dinmico, a identidade sempre se submete a
interferncias sociais, estando sujeita a flutuaes, transformaes e mudanas constantes. Ela
tanto pode pr em risco as normas, os vnculos e as prticas como propor uma nova ordem
social (BAUMAN, 2005, 2003). Talvez isso explique por que muitos comensais se arriscam a
comer o doce, mesmo estando proibidos de fazer isso. Nesse contexto de incertezas, medos e
ousadias, reside grande parte das defasagens entre o dito e o feito as quais emergem do
cruzamento dos dados comportamentais (o que realmente fazem os comedores) com as
normas individuais, que correspondem s normais sociais e dietticas interiorizados
(POULAIN, 2004, p. 83)10. As discrepncias entre os discursos e as prticas objetivadas, e
vice-versa, podem ser compreendidas, em certa medida, pelo papel que julgam, por um lado, 10 Queremos registrar que o fato de estarmos dialogando com Poulain (2004) a respeito da defasagem entre
normas e prticas sociais no significa uma adeso a sua proposta de espao social alimentar nem ao modelo utilizado por ele e por Claude Grignon para analisarem as transformaes das prticas alimentares cotidianas dos franceses.
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as normas alimentares e, por um lado, as prticas alimentares (CONTRERAS; GRACIA,
2005, p. 183). Em se tratando desse desacordos, a festa do chourio aparece como um evento
de reafirmao e ruptura de valores estabelecidos.
Entendemos aqui a festa como forma ldica de sociao e como um fenmeno
gerador de imagens multiformes da vida coletiva, conforme Perez (2002, p. 17), que adota as
noes de forma e de sociao (ou interao) de Simmel (2006, p. 60). Para esse ltimo autor,
as formas so formulaes conceituais construdas a partir de certas caractersticas dos dados
reais; a sociao o processo social bsico por meio do qual acontece a socializao dos
sujeitos. Somente h formas de sociao quando h interao entre os indivduos, gerada por
motivaes que impulsionam a busca pela satisfao de finalidades como comer, amar,
trabalhar, dentre outras. Nesses termos, a sociabilidade , ento, uma forma ldica de sociao
(SIMMEL, 2006, p. 60).
Concordamos com Vandenberghe (2005, p. 86) quando ele desconfia da distino
entre formas e contedos proposta por Simmel, considerando-a puramente relativa. Tambm
consideramos, como Vanderberghe que os contedos das formas de sociao so sociais.
Mesmo que haja algo da dimenso da natureza humana para [...] os impulsos, os desejos, os
fins, etc., em resumo, as motivaes e os interesses que incitam os indivduos a se associarem
em formas sociais no so dados naturais, mas produto dos processos de socializao e de
controle social ( p. 86). Assim, na leitura da festa do chourio consideramos no apenas a
estrutura formal dessa festa, mas tambm o seu contedo, os sentidos atribudos pelos
seridoenses a ela.
Mesmo assim, a festa como uma forma de sociao polissmica, favorvel criao
de sentidos diversos um momento propcio satisfao de interesses sociais. Nela, os
sujeitos esto munidos de um sentimento e uma satisfao de estarem juntos, religados
(DURKHEIM, 1989, SIMMEL, 2006). Mas, apesar de ela ser uma prtica coletiva, que
celebra solidariedades e integrao social, sua potencialidade no reside somente em exprimir
ou ilustrar uma cultura, mas tambm na possibilidade de os sujeitos contestarem seus
elementos e dela se afastarem, lembra Duvignaud (1983). Isso porque o social e os sujeitos
inventam novas formas de sociabilidade e de identidade, mesmo quando reproduzem
normas e prticas institudas socialmente. Apesar de a festa ser um fenmeno extraordinrio,
atemporal e transcultural e de ser um momento de grande efervescncia coletiva, cuja forma
o estabelecimento do vnculo social (DURKHEIM, 1989; DUVIGNAUD, 1983), ela est
sintonizada com a realidade sociocultural e histrica na qual produzida (HEERS, 1987).
Sobre o domnio autnomo das formas ldicas de sociao, Simmel (2002, p. 63) assinala que
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de sua origem que as mantm atreladas vida que retiram sua fora e sua
profundidade.
Devido festa do chourio apresentar um carter de efervescncia coletiva como
tambm aspectos ritualizados acentuados, consideramo-la um ritual, mesmo sendo um
momento de produo de sentidos diversos. Pois, nessa festa, existem diversos elementos que
configuram um ritual: uma estrutura morfolgica prpria, um carter repetitivo, uma
dimenso coletiva, uma configurao espao-temporal, elementos codificados e
emblemticos, fases recorrentes, estados de transio e uma eficcia social e simblica. Nesse
sentido, optamos pela noo de ritual de Segalen (2002, p. 148) como um recurso terico-
metodolgico relevante, por essa autora entender o rito em sua forma estrutural e em seu
contexto scio-histrico. Ela traz para o debate, assim como fazem outros autores, como, por
exemplo, Turner (1974) e Peirano (2000), a tenso entre a estrutura e os processos sociais, ou
seja, entre as normas e as prticas, entre as representaes e as relaes sociais. Essa ltima
autora, numa tentativa de diminuir as antinomias entre representaes e aes sociais (mito e
rito), prope uma abordagem performativa para a anlise dos rituais, em vez de uma anlise
de narrativas, por entender que esses eventos falam muito sobre as relaes sociais. A
propsito, ela afirma: [...] anlises de eventos tm nos feito examinar pressupostos bsicos da
vida social (PEIRANO, 2000, p. 23).
Segalen (2002) v o rito em suas funes de simbolizao, e no apenas de coeso
social, como enfatiza Durkheim (1989). Para isso, ela conta com as contribuies de Van
Gennep (1977) e de Turner (1974) sobre processo ritual. De Van Gennep, ela retoma o estudo
do ritual em sua totalidade, a comparao contextualizada e a valorizao dos indivduos
sociais. De Turner, o que interessa mais especificamente a noo de liminaridade como um
momento do ritual que permite aos indivduos, momentaneamente, um posicionamento fora
da hierarquia das classes e da ordem social. O grande investimento da autora para
demonstrar a plasticidade, ou seja, a polissemia dos ritos, a capacidade destes de assumirem
formatos adequados s novas situaes sociais. Ao perceber isso, ela reabilita, em sua
interpretao, os significados que os indivduos atribuem aos rituais, para negar a tese de que
so estes que criam os sentidos para os indivduos.
Observando rituais contemporneos, ela afirma que os indivduos parecem saber que
sentido dar aos ritos que executam (SEGALEN, 2002, p. 148). No tocante aos significados
do ritual para os sujeitos, a autora enftica ao afirmar que ele ordena, atribui sentido ao
acidental e ao incompreensvel, confere aos sujeitos os meios para dominar o mal, o tempo e
as relaes sociais. O sentido essencial do ritual combinar o tempo individual e o tempo
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coletivo (SEGALEN, 2002, p. 31-2). Assim, a plasticidade do rito do chourio est em ele
conferir sentido existncia social e individual, sendo, portanto, ordenado, abrir brechas para
o inesperado, para a ruptura, e propiciar o despertar da conscincia em face de novas
situaes.
Alm desses conceitos, outros foram requeridos para a compreenso de nossa
problemtica. Para pensar como so estruturadas as relaes por vnculos sociais e familiares,
recorremos teoria da ddiva, proposta por Mauss (2003) e desenvolvida por autores como
Godbout, Caill (1999) e Godelier (2001). Segundo Mauss (2003), em algumas sociedades, a
comida assume carter de ddiva, possibilitando, dessa forma, o prprio convvio social. Aqui
se insere o chourio. Em seu estudo sobre o sistema de troca e de prestaes totais em
sociedades antigas, esse autor observa que os homens so motivados a criar sistemas
complexos e codificados de trocas e de prestaes, visto que, em momentos especiais, como
em festas, podem trocar e/ou dividir os alimentos (assim como outros bens e outros servios)
entre parentes, amigos, e at inimigos. Para ele, a ddiva a prpria lgica da organizao da
vida social, sendo irredutvel razo utilitria e econmica. Ela estabelece uma tripla relao
dar, receber, retribuir , que foge aos interesses contratuais e s obrigaes legais. Nesse
sentido, o autor desenvolve sua teoria sobre a ddiva ressaltando que as relaes no apenas
se do pela obrigao de retribuir os presentes recebidos, mas tambm supem duas outras
obrigaes: a de d-los sem esperar devoluo, criando o princpio da incerteza, e a de receb-
los para honrar a ddiva recebida e criar o vnculo. Mauss (200) observa que os fundamentos
dessas obrigaes no esto na coisa em si, mas nas relaes sociais.
Em Mauss (2003, p. 304) e Caill (2002, p. 142-3), a relao entre simbolismo e
tradio ainda mais precisa, quando eles afirmam que o dom uma fora ao mesmo tempo
mstica e prtica que une e separa simultaneamente os sujeitos, liga o presente ao passado e
inscreve sua marca no campo do simblico, do antiutilitarismo11. O dom [...] toda prestao
de servios ou de bens efetuada sem garantia de retribuio, com o intuito de criar, manter ou
reconstituir o vnculo social . Nesse caso, o vnculo mais importante que o bem a ser
trocado, doado, retribudo e, mesmo sendo utilitrio, ele , por natureza, simblico. Lembra
Lvi-Strauss (2003) que o dom no tem um poder em si mesmo, como pensa Mauss (2003),
mas os sentidos que o transformam em relao. A renovao cclica do dom motivada por
11 Antiutilitrio no quer dizer, de modo algum, no-utilitrio, intil, gratuito (sentido de sem motivo), sem razo de ser. Pelo contrrio, nada mais precioso que a aliana selada pelo dom, visto que ela permite a passagem, sempre revogvel, da guerra paz e da desconfiana confiana (CAILL, 2002, p. 8).
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questes morais, materiais e, sobretudo, sociais d-se porque o consenso ou o pacto social
frgil e vulnervel, sendo, portanto, possvel haver desacordo.
A complexidade revelada no chourio nos levou a realizar uma etnografia dos
processos de criao e de elaborao da comida estudando alguns casos, para
compreendermos questes que foram levantadas para o estudo. Entretanto, outra questo
constitui-se em um grande desafio para a realizao da pesquisa: a mudana da posio de
participante do chourio para a de pesquisadora implicou um esforo para fazermos pesquisa
em casa. Tivemos que sair do tacho do chourio de nossa me, tarefa difcil mas prazerosa,
pois, a partir de nossa experincia e de nosso pertencimento ao Serid, pudemos adentrar com
mais facilidade os terreiros e as cozinhas das mestras de chourio.
1. 5 NAS BORDAS DO TACHO
Apesar de os esforos consagrados nas pesquisas etnogrficas serem, a priori, para
se dar sentido ao outro, de preferncia aquele que est distante do pesquisador, ao escrever
este texto sentimo-nos responsvel por fazer entender uma comida, uma cultura e uma
sociedade muito familiares. Fazemos parte de um conjunto de pesquisadores do Serid que
tm procurado lanar um olhar de sua cultura, ou melhor, de seu lugar de pertencimento
para o lugar do outro, uma postura, na verdade, que no nova no campo das cincias sociais,
em especial no da antropologia. Diversos antroplogos vm estudando sua prpria sociedade,
sobretudo no Brasil e, certamente, muitos outros continuaro fazendo o mesmo. Portanto,
mergulhar no prprio tacho para, de suas bordas, falar de si para os outros, tem sido
considerado uma tarefa bastante arriscada para alguns estudiosos. Leach (1989) e outros
autores j alertaram aqueles que pensam em estudar sua cultura de que essa tarefa est
reservada queles que esto suficientemente preparados. Assim, Os antroplogos sociais
podem estudar, e estudam, membros da sua prpria sociedade e tm-no feito desde h
bastante tempo, embora no o faam suficientemente bem. Certamente que o trabalho de
campo deste gnero no coisa que recomende a inexperientes (LEACH, 1989, p. 119).
Temos certeza de que ainda resta muito a percorrer, no campo epistmico, para nos
tornarmos essa pesquisadora iluminada de que fala Leach e talvez a ao voraz do tempo
no nos permita chegar a isso. Portanto, antes que sejamos vencida pela velocidade do tempo,
nos aventuramos a experimentar, mais uma vez, abrir nossas portas para o mundo. Sentimo-
nos desejosa disso, mesmo diante das advertncias de Leach (1989), pois j experimentamos a
vestimenta de etnlogo em outra ocasio, quando, no curso de mestrado em Cincias
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Sociais, realizamos uma etnografia da festa de Nossa Senhora das Vitrias, padroeira do
Monte do Galo, um santurio localizado em nossa cidade.
O universo da pesquisa o Serid potiguar. Encravada em pleno serto, essa regio
est situada no semi-rido do Nordeste brasileiro, mais precisamente na poro centro-
meridional do Rio Grande do Norte. Para efeito de anlise, e por entendermos que a idia de
uma regio construda scio-historicamente a partir de sentimentos de pertencimento e de
identidade que legitimam o nome e a configurao espacial de um lugar , estamos usando o
recorte geogrfico e sociocultural feito por Morais (2005) e Azevedo (2007) para delimitar a
regio do Serid12.
Tomamos como foco de investigao as experincias com o chourio realizadas nas
zonas rurais e urbanas dos municpios de Acari, Caic, Carnaba dos Dantas, Cruzeta, Jardim
do Serid, Parelhas e So Jos do Serid, conforme se pode perceber no mapa 1. A escolha
desses municpios deu-se em funo da grande extenso territorial dessa regio, da quantidade
de municpios que a compem e, principalmente, do fato de eles desenvolverem uma
produo intensa do chourio. Apesar das dificuldades para aprofundarmos a pesquisa em
outras regies do Serto nordestino, durante uma viagem de frias mas sempre munida do
esprito de pesquisadora , tivemos contatos pessoais com mestras de chourio e com
comensais de alguns municpios dos estados da Paraba, do Cear, do Maranho, de
Pernambuco e do Piau. As entrevistas que realizamos com algumas mestras de chourio
nesses estados foram significativas para compreendermos algumas semelhanas e
particularidades do chourio sertanejo13.
12 Conforme se pode observar no mapa 1, na pgina seguinte, compem a regio os seguintes municpios: Acari,
Caic, Carnaba dos Dantas, Cerro Cor, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Ipueira, Jardim do Serid, Jardim de Piranhas, Flornia, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, So Fernando, So Joo do Sabugi, Santana do Serid, So Jos do Serid, Serra Negra do Norte, So Vicente, Tenente Laurentino e Timbaba dos Batistas. O Serid potiguar compreende os municpios da regionalizao anterior a 1989, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) fragmentou essa regio em duas microrregies (Serid Ocidental e Serid Oriental) e desmembrou municpios para constituir outras regies.
13 Realizamos entrevistas com as seguintes mestras: Maria da Penha dos Santos, em Junco do Serid (PB); Maria Jos Paulina da Silva, em Crato (CE); Maria Marques da Silva, em Piripiri (PI); Tereza Nogueira Mapurunga, em Viosa do Cear (CE); e com Sebastio Florncio da Silva, funcionrio pblico e ex-criador de porco em Areia, na Paraba.
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Mapa 1: Mapa da regio do Serid. Fonte: Iron Medeiros Bezerra. Gegrafo. O encontro etnogrfico nos aproximou ainda mais do universo do chourio, da criao
domstica de porco, da matana e de formas de comercializao e de partilha do porco. Da
cozinha, observamos a preparao, a feitura, a distribuio e momentos de consumo e
comensalidade. Em perodos intercalados, entre os anos de 2003 e 2007, adentramos
chiqueiros de porcos, abatedouros pblicos, quintais, terreiros, cozinhas e casas de algumas
famlias seridoenses na tentativa de compreendermos as significaes socioculturais
atribudas pelos sertanejos ao chourio. Os encontros etnogrficos aconteceram durante a
produo do chourio e em outros momentos da vida cotidiana, nas residncias dos
interlocutores.
Para pesquisar o chourio das bordas do tacho, inicialmente pedimos informaes
aos comerciantes e moradores sobre as pessoas que faziam esse doce. Tambm obtivemos
informaes importantes em feiras livres e em pontos de nibus. Nas feiras livres,
encontramos pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, com o chourio, as quais prestaram
informaes preliminares relevantes para o sucesso da pesquisa. Nesses locais, acertamos
muitos contatos para entrevista e para participarmos de festa de chourio, sobretudo com
sitiantes que estavam trabalhando na feira. Tambm obtivemos informaes proveitosas para
o andamento da pesquisa em outras situaes. De posse de dados preliminares sobre os
futuros interlocutores, fomos em busca deles em suas residncias rurais e/ou urbanas.
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Algumas visitas foram acertadas por telefone e outras tiveram que ser buscadas a partir de
informaes prestadas por outras pessoas.
Logo percebemos que nossa ligao com o Serid e as famlias Dantas e Azevedo
facilitavam o acesso residncia e intimidade de muitas famlias. Em algumas situaes,
quando chegamos casa, antes de nos apresentar j fomos interrogada sobre nossa
procedncia e, ao informarmos que ramos seridoense de Carnaba dos Dantas hoje residindo
em Natal, as pessoas passaram a tratar-nos como conhecida. As portas se abriam ainda mais,
ao dizermos que pretendamos pesquisar o chourio, pois todos tinham algo a dizer sobre esse
doce. Quando menos espervamos, j nos encontrvamos na cozinha da casa, um lugar
reservado para as pessoas mais prximas da famlia e os familiares. Na cozinha, realizamos
uma grande parte de nossas entrevistas. Muitas vezes, tivemos que interromp-las para
saborearmos, a convite da(do) anfitri(o), um caf acompanhado de guloseimas, um almoo
ou um jantar.
Estivemos presente em nove experincias de feitura do chourio. No final de 2003,
participamos de uma festa de matana de porco, na residncia de Maria de Joo Melo, na
cidade de Jardim do Serid, e, em 2004, estivemos em Acari, na casa da famlia de seu
Josenilde Oliveira. Em 2005, participamos de trs chouriadas em Carnaba dos Dantas: em
fevereiro, no stio da famlia de Da Luz de Pedro Baeta; em maio, na casa de Ernandes de seu
Otaclio; e, em junho, na residncia de Gorete de Lai. Nesse ltimo ano, em junho, tambm
estivemos na feitura de um chourio no stio Olinda propriedade da famlia de Neto de Birro
, localizado no povoado Virao, em So Jos do Serid. Em 2006, foi a vez de visitarmos a
famlia de Mariquinha de Lal, na cidade de Carnaba dos Dantas. Em julho de 2007,
participamos da produo do doce na residncia de Dona Luzia Neta, na cidade de Caic e,
em seguida, estivemos presente, como pesquisadora do chourio, no stio Carnaba de Baixo,
de nossa me, Angelita de Olu14.
Nas residncias em que tivemos a oportunidade de participar da festa do chourio,
fizemos mais de uma entrevista com algumas pessoas. As conversas com os marchantes
aconteceram, em sua grande maioria, antes da realizao do abate do porco, e com as mestras
conversamos sempre antes ou aps a feitura do chourio. As inmeras tarefas demandadas por
suas respectivas atividades tornavam-se empecilho para a concentrao necessria s
conversas mais aprofundadas. Alm do mais, procuramos respeitar os apelos, muitas vezes, 14 Os nomes (ou apelidos) referidos acima so como essas pessoas so conhecidas em seus municpios.
Informamos, ainda, que algumas palavras pronunciadas pelos interlocutores na forma usual deles, tiveram sua forma adaptada, no sentido de facilitar a compreenso do leitor e evitar um nmero excessivo de notas de rodap.
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disfarados feitos por todos eles para no serem perturbados quando estavam em ao. Em
algumas ocasies, deixamos o gravador ligado durante a realizao desses eventos para captar
os discursos aleatrios dos interlocutores claro que com a permisso deles. Muitos dados
interessantes foram revelados nos interstcios das entrevistas mais formais.
Por meio da anlise dos depoimentos dos interlocutores, pudemos identificar as
lgicas culturais vigentes e correlacion-las com as prticas, para percebermos como elas so
aplicadas e/ou transgredidas na realidade. A pesquisa etnogrfica tornou-se mais intensa e
mais difcil ao notarmos que, muitas vezes, as vises que os sujeitos ofereciam de suas
prticas alimentares por meio dos discursos, em resposta s nossas indagaes e em
conversas informais , no condiziam com o que eles executavam na realidade. Assim, os
contatos passaram a ser mais longos e freqentes, inclusive com retorno a algumas conversas
anteriores, o que foi possvel, principalmente nos casos em que as entrevistas foram feitas
antes da realizao da festa do chourio, durante a qual, de fato, tivemos oportunidade de
observar, sobretudo, as prticas alimentares dos comensais.
As incontveis horas que passamos ao p do fogo, esperando o borbulhar do
chourio e participando das conversas animadas e excitantes de seus fazedores e comensais,
foram, decididamente, fundamentais para a feitura deste chourio. Alm de participarmos
desses momentos de grande intensidade coletiva, tivemos conversas demoradas com
criadoras15 de porcos, juntadoras de restos de comida, marchantes e seus ajudantes
(abatedores, magarefes, auxiliares e tratadores(as) de fato), mestras(es) e mexedores(as),
donas ou donos do chourio, comensais, no-comensais, jogadores e comerciantes. A
figura 1 mostra a participao de homens e mulheres em cada uma dessas categorias. A
escolha por esses interlocutores deu-se porque so eles quem d sentido e realidade ao
chourio. No entanto, nem todos foram ouvidos na pesquisa, uma vez que recorremos a
amostras intencionais, sendo um pequeno nmero de indivduos escolhido, em funo de sua
relao com a situao considerada.
15 Utilizamos, ao longo do texto, os termos criadoras e juntadoras, no feminino, para referir-nos, de forma
geral, tanto aos homens como s mulheres que esto envolvidos com a criao de porco e com todo o complexo do chourio, mesmo sabendo que estamos contrariando as normas lingsticas tradicionais. Trata-se de uma deciso apenas operatria, que no tem a inteno de desqualificar a presena masculina nessa prtica, marcadamente feminina.
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Figura 1: Categorias sociais envolvidas com o chourio Fonte. Joo Carlos. Designer grfico. O grupo das criadoras formado por mulheres e homens em idade que varia entre 12 e
70 anos. A grande maioria so donas de casa e agricultoras, e algumas delas so funcionrias
pblicas. O grande contingente de homens envolvidos com a ocupao compreende aqueles
que criam os animais consorciados com suas esposas e os que desenvolvem a criao
associada produo de queijo de manteiga e de coalho. As juntadoras so mulheres de todas
as classes sociais e que exercem diversas atividades. Os homens encarregados de juntar
restos de comida so, principalmente, donos de estabelecimentos comerciais ou de bancas de
feira que no desenvolvem a criao, por isso doam os produtos estragados para alguma
criadora.
Os marchantes so homens adultos, com idade varivel, que compram, abatem e
comercializam bovinos, caprinos, ovinos e sunos. Normalmente, aprenderam a profisso com
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seus pais, parentes ou conhecidos. Em suas tarefas dirias, eles necessitam do servio de
ajudantes, como os abatedores, os magarefes e os tratadores de fato, que podem ser ou no
parentes seus. Os abatedores realizam o abate dos animais e preparam a carne, podendo,
eventualmente, serem chamados de marchantes. muito comum um ajudante tornar-se depois
marchante. H, ainda, os marchantes que abatem os animais somente em sua residncia ou
como cortesia. Os tratadores de fato so mulheres e/ou homens que prestam servios nos
abatedouros pblicos aos marchantes e que ganham por produo. Quando o abate realizado
na residncia do criador do animal, a tarefa de tratador exercida pelas mulheres e pelas
crianas.
As mestras de chourio so mulheres maduras, criadoras ou ex-criadoras de porcos,
domsticas, agricultoras, casadas e que residem ou j residiram na zona rural. Aprenderam o
ofcio com mestras da sua famlia ou com outras mestras conhecidas. Fazem o doce para
consumo da famlia e para comercializao, muitas delas em casa de amigos. So tambm
conhecidas por chouriceiras ou fazedoras de chourio. Normalmente, so elas que
comercializam o doce, seja de porta em porta, seja com intermedirios, seja por meio da rifa
do chourio. Os mexedores so homens e, s vezes, mulheres de confiana das mestras,
responsveis por mexer o chourio. O domnio tcnico requerido para a tarefa aprendido na
prtica e sob a superviso da mestra. Os(as) donos(as) do chourio so aquelas pessoas que
fazem o doce em sua residncia, mas que no dominam o saber-fazer do chourio e por isso
precisam convidar uma mestra conhecida na comunidade para realizar a tarefa.
Os comensais e os no-comensais, como a designao revela, so, respectivamente,
aqueles que comem o doce e aqueles que no o comem, incluindo os que pertencem a outras
categorias. Os jogadores so as pessoas a maioria homens que participam da rifa do
chourio. Os comerciantes so aqueles que comercializam o chourio e a carne de porco.
Iniciaremos a discusso avaliando o lugar do doce na alimentao e na sociedade
seridoense. Perguntaremos, assim, que papel tem o do doce na culinria e no cardpio do
Serid. Observaremos que, a partir da produo do chourio, evidencia-se uma economia
tradicional de troca fundamentada nos laos de parentesco e de vizinhana. A descrio
etnogrfica das atividades de criao de porco vem complementar esse quadro, pois a criao
de um porco implica uma cooperao entre vizinhos. Mostraremos tambm que, mesmo
sendo invisvel nos registros oficiais, o porco participa da economia domstica, sobretudo nas
casas mais modestas. A despeito de ser desvalorizado do ponto de vista econmico, na criao
compartilhada ele valorizado socialmente. Escrevendo uma etnografia do chourio,
apresentaremos algumas experincias de feitura do doce realizadas nessa regio.
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Mostraremos, que, por meio desse rito, o sangue transformado em comida. A reflexo em
torno do simbolismo ligado ao porco e ao chourio explica a condio de comida carregada
do chourio principalmente por esse doce conter as impurezas do porco. Por fim,
analisaremos as motivaes de ordem simblica, esttica, identitria e as prticas que
justificam o comportamento alimentar dos seridoenses em relao ao chourio. Mostraremos
que as prticas ambivalentes construdas em torno do consumo desse doce esto diretamente
associadas ao fato de ele ser feito de sangue e a sua qualificao de doce.
Estamos ciente do risco que corremos em tentar tornar o chourio uma racionalidade
evidente e no questionvel estando imersa em seu tacho, portanto no apreciando de forma
justa os aspectos que o fundamentam e o singularizam, tal como adverte Castoriadis (1992),
em relao aos casos em que o pesquisador pertence sociedade que estuda. Talvez por esse
receio e para espanto do leitor , nosso sangue, ou melhor, nosso chourio cozinhou por
muito mais tempo do que normalmente acontece com o cozimento do doce, at tornar-se esta
tese que est sendo lida e que, acreditamos, para alguns, seria melhor se fosse comida.
Seguimos os conselhos de Expedito Medeiros, que jura no comer o doce, ao mesmo tempo
diz que: um chourio sendo bem cozinhado o melhor doce do mundo.
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2 O DOCE NA ALIMENTAO DO SERIDOENSE
Pra fazer o chourio uma multido de gente,
uma festa, uma reunio familiar. (Fernando Dantas Arboes)
Tomando por base o chourio, analisarmos a importncia do doce na alimentao do
seridoense. Aqui, investigaremos conjuntamente a memria oral e dados etnogrficos e os
comparamos aos de estudos realizados localmente. Analisando alguns dados histricos sobre
a conformao socioeconmica da sociedade seridoense, percebemos que, em torno da
produo de alimentos necessrios para a sobrevivncia, desenvolveu-se um tipo de economia
domstica baseado em laos de parentesco e de vizinhana. Algumas das prticas
desenvolvidas funcionavam com base na troca de bens e de servios, em vez de serem regidas
somente por regras do mercado. A produo de alimentos como a farinha, a carne, a rapadura
e outros doces entre estes, o chourio , muitas vezes, era feita com base no trabalho
consorciado. Assim, tambm podiam ser realizadas criaes de terreiro16, como de galinha
caipira e de porco, dentre outras atividades, uma economia de troca estruturada nos
princpios da aliana, da confiana e da amizade que ainda permanece, a despeito das
mudanas sociais que vm ocorrendo no contexto em estudo. Em particular, ela pode ser
observada na criao de porco e na produo do chourio. As relaes sociais e econmicas,
no Serid, so constitudas com base em laos familiares. Assim, Macdo (2007, p. 234)
observa que [...] a estrutura complexa do parentesco foi determinante para construir
sociabilidades e solidariedades prprias de uma realidade humana onde imperava a
precariedade das relaes econmico-financeiras e o relativo isolamento [...]. Esses fatores
negativos se refletiram [...] na propriedade de terra e sua fragmentao (herana, compra e
venda), alianas matrimonial, cultural material e simblica.
Para analisarmos os aspectos sociais do chourio, investigamos o lugar do doce no
consumo domstico e na alimentao, como tambm o terreiro17, espao que circunda as
residncias dos stios e das fazendas, onde so localizados os currais e os chiqueiros dos
animais domsticos e realizados os eventos mais importantes da famlia. Considerado como
16 Empiricamente, so consideradas criaes de terreiro galinha, peru, guin e pato. Para efeito de anlise e pelas
coincidncias com estas, acrescentamos a do porco, mesmo sabendo que, em parte, ela realizada, separadamente das outras, em reas perifricas das cidades interioranas.
17 Aqui, denominamos tambm de terreiro o espao reservado, na territorialidade urbana, para o criatrio de sunos.
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uma extenso da casa, o terreiro do domnio da mulher, que prepara os alimentos e cuida
dos animais de terreiro. um espao organizado em torno de relaes de parentesco e de
vizinhana. Com base em registros histricos e dados de memria, percebemos que o doce
(em especial, a rapadura e o chourio) est presente na alimentao do seridoense desde muito
tempo e que as criaes de terreiro e, sobretudo o porco, tm ainda uma presena marcante
nos espaos de vida cotidiana rurais (stios e antigas fazendas) e urbanos.
Aqui, comungamos a idia desenvolvida por autores como Campanhola e Graziano da
Silva (200-?), Gomes da Silva (2002) e Moura (2005, p. 123), ao perceberem o meio rural
como um espao de vida e [...] polissmico em que coexistem atividades econmicas de
natureza diversa como a prpria agricultura, a indstria, o comrcio, o turismo e o lazer entre
outros, um espao de produo multidimensional marcado pela pluriatividade. Esses e outros
autores discordam da idia do campesinato contemporneo como um segmento arcaico e
sinnimo de atraso para o desenvolvimento socioeconmico, adotando a viso que considera
as especificidades e as particularidades locais18.
Segundo Carneiro (1998, p. 148), a pluriatividade uma categoria conceitual
introduzida no campo sindical terico francs na segunda metade do sculo XX, para designar
as [...] atividades complementares ou suplementares produo agrcola exercidas tanto por
aqueles que estudam a questo agrria quanto pelos agentes sociais a implicados (agricultores
e tcnicos agrcolas) [...]. Tal perspectiva pretende compreender a dinmica das mudanas
que vm acontecendo em situaes e processos heterogneos que engendram as relaes entre
o mundo rural e a sociedade industrial. Nesse sentido, o conceito de pluriatividade agrega
todas as atividades realizadas pelos membros da famlia quer gerem ganhos monetrios quer
no, [...] inclusive as ocupaes por conta prpria, o trabalho assalariado e o no-assalariado,
realizados dentro e/ou fora das exploraes agropecurias (DEL GROSSI; GRAZIANO DA
SILVA, 1998, p. 26). Nesse sentido, o conceito se aplica leitura de atividades mais antigas
desenvolvidas no Serid, como, por exemplo, a prtica das criaes de terreiro, em especial a
de porco e a da produo de doces, como o chourio. Nessa perspectiva, a estratgia da
pluriatividade no uma novidade introduzida na regio com o processo industrial; ela vem
sendo praticada pelos seridoenses tanto no espao rural como no urbano, e no apenas em
perodos de estiagem e seca.
18 Para saber mais a respeito do paradigma terico estrutural que universaliza a idia de campesinato e que
termina considerando-a como algo estacionado e no aplicvel ao conjunto das experincias dessa natureza, consultar, dentre outros, Almeida (2007).
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Nessa regio, o universo feminino e o de muitas famlias pobres demarcado pela
pluriatividade. So as mulheres que, normalmente, desenvolvem atividades suplementares s
agrcolas, como, por exemplo, criaes de terreiro e produes artesanais e culinrias, dentre
estas a doaria. A produo de doces, de bolos e de outras guloseimas aparece, nos dados que
analisamos, como uma atividade pouco valorizada, apesar de ser uma fonte de renda para
muitas mulheres, muitas vezes realizada de forma cooperada. Doces, como o chourio, tm
importncia no cardpio de festas, como um acepipe para ser oferecido a visitantes e como
bem de troca. Nesse sentido, a importncia da doaria tambm est na rede de sociabilidades e
de solidariedades constituda em seu entorno.