maria helena zamora notas maioridade

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Notas sobre a redução da maioridade penal Maria Helena Zamora 1 Adaptado do artigo para o Jornal La Insignia 2 No Brasil, a mídia dá enorme destaque aos chamados "crimes hediondos" praticados no nosso país. Contudo, nos últimos dez anos, vejo que, em geral, o que "causa indignação" no meio jornalístico é o crime que envolve a participação de adolescentes e jovens, quase sempre pobres e negros. Ora, a mídia deve tratar os fatos com seriedade, sem sensacionalismos que buscam apenas explorar o medo de populações angustiadas com problemas que têm origem social definida. Editando-se as entrevistas populares, a mídia destaca uma panacéia que supostamente acabaria com a violência: a redução da maioridade penal. Encarcerar adolescentes mais cedo é sempre apontado como a solução, sem que jamais apareçam os elementos argumentativos que baseiam essa indicação. Talvez não apareçam os tais elementos pela razão singela que eles não existem. Os adolescentes (de 12 a 17 anos) são cerca de 15% da população brasileira. Um levantamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 2003, identificou que apenas 0,2% deste total estavam no sistema socioeducativo em razão de sua conduta. Sabemos ainda que 70% do total de adolescentes em conflito com a lei ali se encontravam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, o que pressupõe que sejam atos infracionais menos graves. Além disso, examinando neste período o total de crimes cometidos no país, percebeu-se que menos de 10% deles são 1 Maria Helena Zamora é doutora em Psicologia e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Também é professora convidada da especialização em Psicologia Jurídica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Psicologia Jurídica da Universidade Potiguar (RN) e vice-coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-Rio). 2 http://www.lainsignia.org/

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Notas sobre a redução da maioridade penal

Maria Helena Zamora1 Adaptado do artigo para o Jornal La Insignia2

No Brasil, a mídia dá enorme destaque aos chamados "crimes hediondos" praticados no nosso país. Contudo, nos últimos dez anos, vejo que, em geral, o que "causa indignação" no meio jornalístico é o crime que envolve a participação de adolescentes e jovens, quase sempre pobres e negros. Ora, a mídia deve tratar os fatos com seriedade, sem sensacionalismos que buscam apenas explorar o medo de populações angustiadas com problemas que têm origem social definida.

Editando-se as entrevistas populares, a mídia destaca uma panacéia que supostamente acabaria com a violência: a redução da maioridade penal. Encarcerar adolescentes mais cedo é sempre apontado como a solução, sem que jamais apareçam os elementos argumentativos que baseiam essa indicação. Talvez não apareçam os tais elementos pela razão singela que eles não existem.

Os adolescentes (de 12 a 17 anos) são cerca de 15% da população brasileira. Um levantamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 2003, identificou que apenas 0,2% deste total estavam no sistema socioeducativo em razão de sua conduta. Sabemos ainda que 70% do total de adolescentes em conflito com a lei ali se encontravam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, o que pressupõe que sejam atos infracionais menos graves. Além disso, examinando neste período o total de crimes cometidos no país, percebeu-se que menos de 10% deles são

1 Maria Helena Zamora é doutora em Psicologia e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Também é professora convidada da especialização em Psicologia Jurídica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Psicologia Jurídica da Universidade Potiguar (RN) e vice-coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-Rio).

2 http://www.lainsignia.org/

cometidos por adolescentes. O ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), entre 2000 e 2001, mostrou que, dentre 2.100 adolescentes acusados, apenas 1,6% haviam cometido algum crime contra a vida, qualificado como homicídio. A maioria dos delitos é contra a propriedade.

Ou seja, essa análise recente, como outras, nos mostra claramente que o universo de jovens que cometem crimes graves é relativamente pequeno, se comparado ao do adulto. Dentro dele, a proporção dos que cometem homicídios é menor ainda, e o subconjunto dos crimes hediondos é raríssimo! Portanto, a redução da maioridade penal não teria qualquer impacto na melhora do atual quadro de violência. Na verdade, poderia piorá-lo. É fácil imaginar o porquê: basta pensar no sistema penal, em nossas cadeias e indagar se elas são um sucesso para os que vivem e trabalham ali e para a sociedade?

Mas, se é assim, por que a idéia da redução persiste e ressurge sempre? Provavelmente porque esse argumento canaliza o ódio e o medo da sociedade contra jovens, negros, pobres, favelados. Parece que é ele o inimigo em um país socialmente considerado dos mais desiguais do mundo, onde 1% da população rica detém 13,5% da renda nacional, contra os 50% mais pobres, que detêm 14,4% desta.

É esse também o perfil de quem geralmente vai para a cadeia no nosso país, isso quando consegue crescer um pouco mais. Suas mortes são vistas como "naturais". Morrem mais meninos e jovens entre 13 e 24 anos no Brasil que em muitos países em guerra. Os números e fatos espantosos, apontados nos relatórios dos Mapas da Violência, disponíveis na internet.

O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente já prevê punições suficientemente severas para jovens infratores. Em vez do rebaixamento da maioridade penal, aqueles que verdadeiramente se importam devem lutar pelo Estatuto, exigindo o seu cumprimento, pois trata-se de uma legislação elaborada para garantir direitos, sem distinção de classe social, com a participação das idéias e sugestões de toda a sociedade.

O que incomoda no Estatuto da Criança e do Adolescente? Certamente a ampliação do poder real que ele confere ao povo, aos cidadãos, a todos nós. Entretanto, apesar de ser uma legislação em plena vigência, falta ser colocado plenamente em prática.

O Estado brasileiro ainda não garantiu a prioridade às crianças e adolescentes. Não estabeleceu políticas públicas voltadas à orientação, apoio e promoção sócio-familiar. Não garantiu a proteção social às crianças vulneráveis à exploração sexual, do trabalho infantil, à violência. Não há número suficiente de Conselhos Tutelares e nem de abrigos na maioria das cidades e nem seu funcionamento e estruturas são adequados.

Ora, se o Estado não faz valer o Direito, como fará para estabelecer o cumprimento do Dever? Vamos sim aplicar o Estatuto, antes de procurar modificá-lo. Vamos sim cobrar do Estado uma educação e saúde de qualidade, a criação de espaços de lazer e cultura nos lugares sem equipamentos sociais, programas sociais com atendimento de excelência para todos os meninos e meninas de nosso país. O Estatuto é nossa procuração, ele diz que é responsabilidade de todos nós (da sociedade), da família e do Estado priorizar em tudo a criança e o adolescente – e isso quer dizer na aplicação do dinheiro de nossos impostos também.

Como recuar do caminho dos direitos humanos, do direito a ter direitos? Como é possível pensar que a multiplicação de prisões, o aumento dos anos de internação, o rebaixamento da maioridade penal, os maus tratos, a indiferença, podem melhorar o que ou quem quer que seja? São dezesseis adolescentes que morrem todo dia no Brasil! Trata-se, isso sim, com urgência, de enfrentar o extermínio dessa população ameaçada e não escolher o velho caminho das soluções repressivas.