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Maria das Graças Oliveira
Ciclos de Formação, prática pedagógica e saberes docentes:
certezas e incertezas no cotidiano de uma Escola Plural.
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Sociologia e História da profissão docente Orientadora: Profª. Leila de Alvarenga Mafra
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG 2003
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Dissertação defendida e aprovada, em 26 de fevereiro de 2003
2003, pela banca examinadora constituída pelas professoras:
_____________________________________________________________________
Profª Drª Leila de Alvarenga Mafra – Orientadora (PUC Minas)
____________________________________________________________________ Profª Drª Léa Pinheiro Paixão – (UFF)
____________________________________________________________________ Profª Drª Anna Maria Casasanta Peixoto (PUC Minas)
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AGRADECIMENTOS À professora Leila de Alvarenga Mafra, orientadora, pelo acompanhamento do
processo de elaboração do trabalho, pelas leituras cuidadosas, pela ética com a qual
conduziu as orientações.
À Luzia Casas, pela amizade fraterna, pelo apoio e pelo incentivo constantes.
À Zenaide Aderne, presença indispensável neste percurso, pelas conversas e pelos
momentos de escuta e de apoio.
À Ana Maria, professora e amiga, pelas trocas de idéias.
Às amigas Maria Regina, Sandra Meira, Sandra Valentim e Weslane, pelo incentivo.
Às colegas de trabalho Lília e Maria Cristina, pelo apoio e pela colaboração.
Às equipes da GERED-VN e CEI-VN, pela concessão do período de férias-prêmio,
fundamental para a conclusão deste trabalho.
Aos professores da escola pesquisada, pelo acolhimento e pela oportunidade de
compartilhar o seu cotidiano na realização da pesquisa
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SUMÁRIO
Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------10
1. A proposta de educação básica no Programa Escola Plural----------------------------19
1.1. A Escola Plural e os ciclos de formação------------------------------------------------24
1.2.A implementação do Programa Escola Plural: mudanças e dificuldades apontadas
nos estudos recentes------------------------------------------------------------------------26
2. Delimitando as questões investigadas ---------------------------------------------------32
2.1. Percurso metodológico -------------------------------------------------------------------34
2.2. Espaços e procedimentos de coleta de dados------------------------------------------37
2.3. Análise e organização dos dados--------------------------------------------------------41
Capítulo 1 Os ciclos de formação e a participação coletiva dos professores na
organização pedagógica da escola-----------------------------------------------------------44
1.1. Os ciclos de formação: origem e experiências preliminares no Brasil--------------45
1.2.A organização dos espaços e tempos coletivos da escola: consensos, dificuldades e
tensões----------------------------------------------------------------------------------------53
1.2.1.O espaço da coordenação pedagógica-------------------------------------------------62
1.22. As reuniões dos professores por ciclos de formação --------------------------------70
Capítulo 2 Os ciclos de formação e a relação dos professores com o conhecimento
escolar---------------------------------------------------------------------------------------------85
2.1. Os professores e os saberes docentes----------------------------------------------------86
2.2. Os ciclos de formação e o projeto político-pedagógico da escola------------------89
2.3. O conhecimento escolar e a diversidade cultural da escola-------------------------111
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2.4. A relação dos professores com alunos com necessidades educativas especiais-----
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3.Disciplinas, projetos, interdisciplinaridade: o dilema da integração x fragmentação
do conhecimento escolar----------------------------------------------------------------------125
4. Os ciclos de formação e o desenvolvimento profissional dos professores----------139
Considerações finais---------------------------------------------------------------------------149 Referências bibliográficas--------------------------------------------------------------------159
Anexo -------------------------------------------------------------------------------------------167
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Resumo
Esta dissertação investiga os processos de organização do ensino por ciclos de
formação implementados na escola, pelos professores.
Considerando-se que os ciclos de formação, como implementados, implicam
alterações profundas na estrutura da escola, procurou-se compreender como essas
mudanças estão se concretizando na prática pedagógica escolar e de que maneira elas
estão sendo interpretadas pelos professores. Parte-se do pressuposto de que a
participação dos docentes nesta nova organização de ensino exige destes um
envolvimento maior na tomada de decisões a respeito dos assuntos administrativos e
pedagógicos da escola, alterando, dessa forma, a relação dos professores com os
saberes docentes, com os seus pares e com a sua prática pedagógica.
A observação realizada nos espaços de encontros coletivos dos professores na gestão
dos ciclos constituiu-se no procedimento central de coleta de dados. Procurou-se
investigar os saberes docentes desenvolvidos e /ou acionados nessa participação. Esses
dados permitiram desvelar os acordos, os consensos, as dificuldades, os conflitos e as
possibilidades presentes nas ações dos docentes.
Destaca-se nas análises que a dimensão participativa dos professores na gestão dos
ciclos de formação na escola os impulsionou a desenvolver novos “modos de fazer e
de ser” no exercício de sua profissão. Esses saberes interrelacionam-se com os saberes
da formação inicial e continuada, com os saberes da experiência pessoal e profissional
dos docentes, retratando uma prática docente “construída” em um processo de
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continuidades e descontinuidades com as ações pedagógicas anteriormente
desenvolvidas na escola
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Abstract This dissertation investigates the changes carried out by teachers in teaching work
organization after the introduction of the “cycles of basic education” into Public
Fundamental Schools, in the city of Belo Horizonte, Brazil.
Taking into account that the organization of the “cycles of basic education” might
bring about profound changes in teachers social relations, as well as, in the school
pedagogical organization, and that, participation in this new teaching work
organization will require a great deal of teachers’ involvement in the school
administrative and pedagogical matters, this research aimed at achieving the following
objectives: a) to follow these changes as they take place within the school routine and
teachers practice b) to grasp and analyse teachers’ feelings and representations about
these changes, c) to evaluate how teachers’ relation to school knowledge is affected by
these changes.
Data collection method was the observations of teachers’ meeting and assembly
organized to discuss and implement the three “cycles of basic education” in a school
which enroll children from 6 to 14 years old. These cycles were organized as follows:
the first cycle attend children from 6 to 8 years old, the second cycle, those from 9 to
11 years old and the third cycle, those from 12 to 14 years old. The observations focus
teacher’s knowledge and decisions-making process along with teachers’ discussions
and interactions, in small planning groups.
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The results uncover teacher’s difficulties, conflicts and consensus toward the school’s
limits and possibilities to carry out the “cycles of basic education” within its
organization and teaching process. They also have shown that planning the “cycles of
basic education” by teachers, in small group allow the development of news ways of
doing the teaching profession and being a teacher. Knowledge gathered during initial
and continuing teacher education, and teacher’s personal and professional experiences,
have also helped them to balance a new educational process with traditional
pedagogical actions previously developed by the school.
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INTRODUÇÃO
A profissão docente tem adquirido no cenário educacional um espaço cada vez mais
ampliado. É crescente a realização de seminários, congressos, pesquisas e encontros
cujos temas em discussão referem-se ao “ofício de mestre”1. Nestes, são discutidos os
saberes docentes, a formação inicial e continuada, o profissionalismo dos professores e
outros.
Nesse contexto, as abordagens autobiográficas dos estudos sobre a profissão docente
ganham relevância. Segundo Nóvoa (1995), estas são orientadas pela reflexão sobre as
dimensões pessoais e profissionais dos professores e sobre a ação e o saber deles,
centralizando-se nas dimensões da pessoa do professor, da sua prática e de sua
profissão.
Para Sacristán (1999:100), “descobrir a importância do pensamento dos professores,
como fez o cognitivismo durante os últimos 20 anos de pesquisa educacional é como
dar-se conta de que respiramos quando havíamos perdido a sensação da atmosfera
limpa”. A reflexão sobre a prática é algo inerente aos seres humanos. Os professores
possuem um saber fazer sobre a docência. Para ele:
O sistema conceitual que o pensamento pessoal ou senso comum proporciona aos indivíduos determina o que se considera como realidade, condiciona a sua compreensão e primeira atitude diante do mundo. As suposições e as crenças compartilhadas sobre a prática agem como se fosse um modelo de referência teórico comum para os grupos. Tanto a ação dos sujeitos, como a prática culturalmente firmada estão carregados de teoria. Admitir, refletir, dialogar com esse pensamento pessoal e compartilhado, é a primeira manifestação da reflexibilidade, mecanismo essencial para dotar as práticas de racionalidade, tornando os agentes conscientes das suposições que as influenciam. (Idem:105)
1 Arroyo, Miguel (2000)
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Segundo o autor, o paradigma do pensamento dos professores, utilizado nos últimos
20 anos de pesquisa educativa, postula que os docentes têm uma teoria subjetiva sobre
a educação e que essa teoria tem implicações sobre a prática. Essa abordagem tem
como implicação para os professores a recuperação da “imagem de pensadores
naturais do seu profissionalismo e elimina a concepção mecanicista e burocrática de
uma prática despersonalizada” (Sacristán, 1999:105).
Nesse contexto, o conhecimento informal dos sujeitos e o conhecimento da ciência
têm atenuadas as barreiras existentes entre eles. De acordo com o autor:
Rompe-se, assim, a barreira intransponível entre o conhecimento da ciência e o conhecimento dos sujeitos, o que não chega a significar que o senso comum passe a ter a estrutura da ciência, nem que toda ela penetre no senso comum. Em princípio, basta reconhecer que entre ambos os tipos de conhecimento existe a possibilidade de um diálogo que não anula os dois pólos, porque possuem um sentido próprio e uma funcionalidade peculiar, admitindo que nesse diálogo os conhecimentos pessoais e os conhecimentos sociais compartilhados são transformados. (Sacristán, 1999:109)
Além desses aspectos, a profissão docente, no contexto das políticas educacionais, é
também um tema incluído nos estudos educacionais. As mudanças propostas por essas
políticas, no entanto, contam com a adesão e o envolvimento dos professores para sua
efetivação no cotidiano da escola. A descentralização das decisões administrativas e
pedagógicas promovida nas últimas décadas no Brasil, ao transferir para o espaço
escolar a gestão da organização do ensino, nos aspectos inerentes à formação básica a
ser ministrada, tem repercutido de forma expressiva na maneira como os professores
vão exercer a sua profissão, pois requer práticas educativas mais coletivas do que as
até então utilizadas pelos professores. Tais políticas têm contribuído também para
ampliar o debate sobre a profissão docente, pois os professores são conclamados a
participar de modo mais ativo da discussão sobre o conhecimento escolar a ser
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ensinado e sobre os processos de sua formação profissional inicial e continuada. A
escola passa a ser o local onde essas discussões emergem e se concretizam nos debates
promovidos entre os professores, ou ampliados junto à comunidade de pais e de
alunos, abandonando, aos poucos, a imagem de a escola ser um espaço restrito à
transmissão de saberes selecionados externamente.
Nos debates educacionais recentes sobre a formação de professores, é cada vez mais
ressaltada a necessidade de se formarem profissionais com conhecimentos e
habilidades para desempenhar seu trabalho com autonomia e para decidir sobre as
diferentes dimensões de sua prática docente. Para isso, a defesa de uma formação
profissional continuada ganha novas dimensões nas escolas em que a divisão rígida do
trabalho cede espaço para a participação coletiva dos profissionais. Nessas condições,
a descentralização das decisões no interior da escola exige novas posturas dos
professores em relação à seleção, à organização e à distribuição do conhecimento
escolar e ao projeto educativo. Acredita-se que essa participação tende a valorizar o
saber adquirido na prática pelo professor e considerar a atividade formativa como
possibilidade de“(re) encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e
profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação
e dar-lhes um sentido no quadro de suas histórias de vida” (Nóvoa, 1997:25).
Para Nóvoa (1997), a concepção de formação contínua de professores subsidia-se em
duas lógicas: a primeira, do desenvolvimento profissional dos docentes e a segunda,
no desenvolvimento organizacional da escola.
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Na lógica do desenvolvimento profissional, a formação estaria colaborando para a
emancipação do docente na profissão e a consolidação de sua autonomia, ao subsidiar-
se nas dimensões coletivas e nos saberes dos professores. Isso suscita a promoção de
modelos diferenciados de formação em que aconteçam novas relações desses
profissionais com o saber pedagógico e com o saber científico. De acordo com o autor,
a formação passa pela experimentação, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de trabalho pedagógico. E por uma reflexão crítica sobre a sua utilização. A formação passa por processos de investigação, diretamente articulados com as práticas educativas. (Nóvoa, 1997:28)
A lógica do desenvolvimento organizacional da escola tem uma abordagem de
formação inserida no cotidiano da instituição e da atividade docente. Ele destaca,
ainda, a necessidade da criação de uma nova cultura de formação de professores, a
partir da interlocução entre experiências de formação implementadas na escola e
experiências da instituição de ensino superior. Nessa perspectiva, os docentes
participariam de forma ativa na definição da sua formação, da concepção ao
acompanhamento e à avaliação.
Nessa perspectiva de formação docente, as contribuições de Donald Schön (1997)
sobre o professor reflexivo têm influenciado esses debates. Na abordagem desse autor,
nas sociedades atuais, a crise na confiança no conhecimento profissional desencadeia
a busca de uma nova epistemologia da prática (Idem: 80). Essa crise no campo da
educação está centralizada no conflito entre o saber escolar e a reflexão na ação dos
professores. De acordo com o autor, três noções integram o pensamento prático do
professor: o conhecimento na ação, a reflexão na ação e a reflexão sobre a ação e sobre
a reflexão na ação.
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Na análise realizada por Alarcão (1996), ela argumenta que:
A proposta de Schön parece oportuna num momento em que alguns educadores se começam de novo a perguntar como é que se pode introduzir nos currículos o elemento da competência profissional que ronda a raia da competência artística, mas que além de não poder ser vista como uma mera aprendizagem artesanal, deve ser integrada com componentes de ciência pura e aplicada. Outros, pelo contrário, parecem teimar em não querer ver a importância desse elemento e, sobretudo, a sua articulação com os outros ingredientes do currículo. (Alarcão, 1996:24)
A articulação entre os componentes curriculares da formação de professores e o
componente prático proposto por Schön se define no que denomina de “reflective
praticum”, resultado de uma situação em que o aluno insere-se na investigação da
realidade da prática, com a orientação de um profissional (Alarcão, 1996).
No que se refere à perspectiva do “praticum” na formação dos professores, Zeichner
(1997) sugere inovações objetivando seu aperfeiçoamento. Entre outras, pode-se citar:
o desenvolvimento de programas temáticos de formação de professores, de um
currículo para o “praticum”, o conhecimento da escola e das vivências comunitárias
em que este será inserido e a existência de dois tipos de “praticum”: um centrado na
investigação e o outro, o “praticum reflexivo”, proposto por Donald Shön. Argumenta,
ainda, que o contexto estrutural e político e a atribuição de papéis mais politizados aos
formadores de professores precisam ser considerados.
Para ele, o valor educativo do “praticum” pode ser ameaçado por alguns obstáculos à
aprendizagem do professor. Entre as barreiras apresentadas destacam-se: a visão do
“praticum” como uma aprendizagem não-estruturada, a ausência de um currículo e de
uma ligação entre as aprendizagens na universidade e nas escolas, a discrepância entre
o papel do profissional reflexivo em decisões e discussões sobre o ensino e o
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currículo, e o papel do professor como técnico executor de instruções governamentais
e políticas educacionais.
Nessas discussões, o autor afirma que algumas alterações na formação do “praticum”
podem estar localizadas no contexto de concepções da prática de ensino como ciência
aplicada, ou o ensino, como prática reflexiva, embora não haja, até então, experiências
que busquem articular as duas tendências.
Essa perspectiva de formação docente por meio de uma prática reflexiva surge em
oposição ao modelo fundamentado na racionalidade técnica. Essa concepção
epistemológica, herança do positivismo, torna-se hegemônica ao longo do século XX,
dando sustentação aos modelos de racionalidade técnica, nos campos profissionais
(Gomez, 1997). Nesse sentido,
A atividade do profissional é sobretudo instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas. Pra serem eficazes, os profissionais da área das ciências sociais devem enfrentar problemas concretos que encontram na prática, aplicando princípios gerais e conhecimentos científicos derivados da investigação. (Idem:96)
A formação de professores, ao ser influenciada por essa racionalidade, tende a
privilegiar, nos processos de ensino e aprendizagem, dois componentes principais: “o
científico-cultural, que pretende assegurar o conhecimento do conteúdo a ser ensinado
e o componente psicopedagógico, que aborda formas de atuação na sala de aula”
(Gómez, 1992:98).
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No âmbito dessas discussões e a partir de minha atuação profissional no exercício da
docência em escolas da rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, surgem as
questões que orientam esta pesquisa. Ao longo de minha atividade, presenciei
momentos em que os profissionais da educação, com os quais convivia, reivindicavam
mais autonomia para realizar a ação docente. Acreditava-se que os problemas
educacionais, como a repetência, a evasão dos alunos, existentes nas escolas onde
atuávamos, poderiam ser discutidos de forma coletiva pelos professores e, a partir
dessas discussões, ser vislumbradas ações para a superação de tais dificuldades.
Objetivando dar respostas a esses questionamentos e reivindicações dos professores, a
Secretaria Municipal de Educação propôs, no início da década de 19902, a elaboração
do projeto político-pedagógico pelos profissionais da escola e a implementação do
processo eletivo para diretores e vice-diretores das escolas. Em 1994, foi feito um
levantamento de práticas pedagógicas inovadoras desenvolvidas em algumas escolas
municipais e que subsidiaram a implementação da política educacional do Município,
o Programa Escola Plural.
O Documento (1994) do Programa Escola Plural traz em seu texto propostas que
visam a romper com algumas características que marcaram os sistemas de ensino e a
organização da escola ao longo dos séculos XIX e XX, tais como: a lógica
2 De acordo com Arroyo (1999), Soares (2000) e essas ações e experiências desenvolvidas nas escolas da Rede Municipal de Ensino fazem parte do movimento de renovação pedagógica, surgido no Brasil no final dos anos 1970. Esse movimento, de educadores, organizados em associações, entidades sindicais, governos populares, escolas e universidades, está se articulando melhor nas últimas décadas com a crítica à escola seletiva existente. Zaidan (2001:23) Na década de 1990, são focalizadas nas discussões alternativas para a educação brasileira, objetivando uma escola inclusiva. A mesma autora afirma que, além de iniciativas locais de realização de mudanças, como, por exemplo, nas cidades de Belo Horizonte, Porto Alegre, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, promulgada no ano
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transmissiva do conhecimento, o currículo centrado na transmissão do conhecimento
pelo professor, a fragmentação das disciplinas e o ensino seriado. Foi proposta, então,
a reorganização dos tempos escolares dos professores e dos alunos, implementando-se
a organização do ensino fundamental em três ciclos de formação, com duração de três
anos cada um. Nesse contexto, o desafio de colocar os conteúdos a serem ensinados “a
serviço do aluno” inseridos nos ciclos de formação requer, igualmente, desencadear no
interior da escola a construção de uma nova cultura escolar, na qual os papéis de
professor e de aluno deveriam ser redefinidos.
Os eixos do Programa preconizam, assim, uma ressignificação do espaço da escola, da
organização dos tempos, da relação com o conhecimento e das relações entre os
envolvidos no processo educacional: discentes, docentes e comunidade escolar de
modo geral. Esses, considerados como sujeitos históricos e culturais, estariam, no
interior das escolas, reescrevendo os pressupostos contidos nos documentos oficiais a
partir de sua realidade social e cultural. A sistematização do currículo, que, nos termos
do Programa, passaria a ser feita no ambiente da escola e poderia provocar mudanças
significativas na estrutura que fundamentava o cotidiano escolar.
As intenções inerentes à política educacional proposta pela SMED estavam, pois,
referendadas por uma série de práticas denominadas “transgressoras” que vinham
sendo desenvolvidas na organização pedagógica das escolas. Tais práticas procuravam
buscar soluções para reduzir os altos índices de repetência, a seletividade e a exclusão
escolar presentes nessas escolas. Dentre elas, pode-se citar o novo ordenamento do
de 1996, traz em seu texto alguns elementos inovadores semelhantes aos propostos pelo movimento de renovação pedagógica dos professores.
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tempo escolar, as estratégias de continuidade das séries e de promoção escolares, a
diversificação de áreas de estudo, das formas alternativas de avaliação.
De acordo com Nóvoa (1995), as experiências pessoais e profissionais adquiridas
pelos professores influenciam de forma significativa seus posicionamentos, suas
concepções sobre o ensino, a forma de organização e condução de sua prática
pedagógica. Pode-se acrescentar a esses aspectos a possibilidade de influenciar
também a trajetória acadêmica do professor. Nesse sentido, a participação da
pesquisadora nessas experiências como docente e, posteriormente, na formação
continuada e em serviço, possibilitou-lhe extrair dos diálogos com os professores e da
sua convivência profissional aspectos que se revelavam ambíguos e dúvidas em
relação à implantação dos ciclos de formação, ao conhecimento escolar, enfim, aos
princípios do Programa Escola Plural.
Tendo em vista essas considerações e partindo do pressuposto de que a adesão a esta
política educacional se dá de maneira particular em cada escola, pretende-se, neste
estudo, analisar a relação dos professores com os ciclos de formação e desvelar os
saberes e as experiências desenvolvidos, por eles, nessa organização de ensino. Busca-
se, ainda, conhecer as incertezas e as certezas, os consensos, os acordos e os conflitos
compartilhados pelos docentes no cotidiano de suas relações pedagógicas na escola.
Para isso, procurou-se adentrar a organização escolar promovida pelos professores e as
suas discussões cotidianas, priorizando o espaço das reuniões dos docentes.
Pretendeu-se identificar o impacto dos ciclos de formação no cotidiano dos
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professores, ou seja, as possíveis mudanças ocorridas nos aspectos organizacionais da
escola e na relação dos docentes com os ciclos de formação, com o conhecimento
escolar e com seus pares. Acreditava-se que essa forma de organização do ensino
fundamental, ao ser gerida por um grupo de professores, desencadearia neles a
incorporação de novas maneiras de ser e de agir no exercício da docência e
promoveria o enfrentamento das dificuldades que alunos e professores
tradicionalmente comungavam no cotidiano de suas relações escolares.
1. A proposta de formação básica no Programa Escola Plural
Organizar os tempos escolares tendo o aluno como prioridade implica uma concepção
de tempo que acompanhe os processos de aprendizagem humana e uma
ressignificação dos conteúdos escolares, evitando rupturas em seus percursos. Nesse
sentido, a organização da educação básica por ciclos de formação e a organização
coletiva dos conteúdos escolares tornam-se centrais no desenvolvimento dos
pressupostos do Programa. Nos termos da proposta, os temas transversais, após serem
selecionados pelo coletivo das escolas, passariam a ser inseridos como uma das formas
de organização dos conteúdos.
Nesse contexto, os temas transversais seriam definidos pelos professores de forma
coletiva, a partir de temas colocados pela realidade social e se colocariam de forma
transversal às disciplinas escolares. Desse modo, segundo o documento, deveria
ocorrer uma interação entre as disciplinas escolares e os temas transversais, pois não
se poderia desconsiderar a importância da presença de ambos no processo de formação
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e na definição do currículo escolar. Assim, o currículo escolar deveria ser modificado
de modo a agregar às disciplinas tradicionais (Português, Matemática, Ciências Físicas
e Biológicas e outras) os temas denominados “transversais”. (Doc.1, 1994)
Os documentos propõem que as discussões dessa maneira diferente de pensar a
formação dos alunos fossem pautadas em assuntos da realidade sociocultural dos
educandos e na formação global dos mesmos, com vistas à interação destes, de forma
crítica e dinâmica, com a realidade social (Doc. 2:s/d). Ao propor um desenho
curricular delineado por esses traços muito gerais, os documentos sugerem a
necessidade de ressignificar os conteúdos escolares, o que requer “considerar as
questões e problemas, enfrentados pelos homens e mulheres de nosso tempo como
objeto de conhecimento”(doc.1:29). E sugerem que:
o aprendizado e vivência das diversidades de raça, gênero, classe, a relação com o meio ambiente, a vivência equilibrada da afetividade e sexualidade, o respeito à diversidade cultural, entre outros são temas cruciais que, hoje nos deparamos e, como tal, não podem ser desconsiderados pela escola (Idem, p.29).
Em documentos posteriores, a Secretaria Municipal procurou esclarecer pontos que se
mostravam obscuros em relação à formação básica e à construção curricular, lançando
uma série composta por três cadernos com o “objetivo de referenciar a prática
pedagógica e ao mesmo tempo subsidiar a construção de uma proposta curricular para
as escolas” (SMED, s/d. p:5)
O primeiro caderno tem como ponto de partida a análise de concepções de currículo
coletadas junto aos profissionais da Rede Municipal por meio de questionário, e
apresenta alguns relatos de experiências de construção curricular de escolas dessa
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Rede. Esses esclarecem que a concepção de currículo existente até então entre os
professores, “não atende às necessidades dos alunos, pois não leva em conta as
diferenças existentes entre as escolas, o contexto que estão inseridas e as
especificidades da sua clientela” (idem p.7). Sugerem a necessidade de se ter uma
visão mais ampliada de currículo, que incorpore aspectos tais como a discussão do
tempo e do espaço, os critérios de avaliação, a diversidade da realidade sociocultural
dos alunos ( SMED sd. p:9).
Os relatos das experiências de elaboração curricular de escolas municipais contidos
nesse Caderno mostram a construção de uma organização curricular que privilegia
tanto os projetos, quanto os conteúdos disciplinares. A partir de um tema geral do
ciclo, são retirados os conteúdos das disciplinas. Os temas a serem desenvolvidos nos
projetos de trabalho são escolhidos pelos professores a partir do conhecimento da
realidade local, do diagnóstico do aluno e de suas vivências culturais. Os professores,
nesse contexto centralizam as decisões da definição do que ensinar, do como e quando
ensinar. Esses relatos mostram a preocupação dos profissionais com o tempo de
execução dos projetos, pois, segundo eles, os planejamentos são extensos e com
estratégias para envolver o aluno nas discussões em sala de aula, no desenvolvimento
do trabalho.
O segundo Caderno (SMED, s/d) sugere que os processos culturais sejam os eixos de
construção de uma proposta de formação e organização curricular. Nesse sentido,
destaca como eixos: organizar a escola como um espaço de cultura viva; enxergar
como partes de um mesmo processo as atividades de ensino e de aprendizagem e os
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conteúdos que as sustentam; alargar a compreensão do que sejam os saberes escolares;
romper com a lógica fragmentada da seriação, organizando os ciclos de formação;
pensar na proposta curricular como um processo em construção, e não como um
documento acabado e pronto para ser cumprido. De acordo com esse Caderno,
considerar a escola como um espaço cultural é:
Propor um modelo de educação onde a organização do espaço e do tempo dos alunos e o modo de conceber o currículo, os conteúdos, os métodos e as formas de avaliação viabilizem o processo de recriação ativa da cultura. (idem, p:11)
O mesmo documento ressalta, ainda, a necessidade de se partir do pressuposto de que
o papel socializador da educação escolar é total, afetando todo o sujeito, e que o
currículo deve ser totalizador na formação que propicia e nas condições e meios para
desenvolvê-la. Nesse sentido,
A Proposta curricular da Escola Plural traz implicações práticas para o cotidiano das escolas, tanto no que se refere aos conteúdos a serem trabalhados quanto às formas de organizar o espaço/tempo para que a experiência escolar se viabilize. Ela exige uma escola e uma sala de aula onde se possa experimentar e viver o confronto aberto de opinião e a participação real de todos na determinação efetiva do rumo do processo, das normas e padrões que devem governar a turma assim como das relações do grupo e do coletivo escolar. (idem p:23)
O pressuposto de alargar a visão do que sejam os saberes escolares sugere que haja
uma valorização dos saberes cotidianos e estéticos no currículo e a realização de uma
abordagem histórica e contextualizada do conhecimento científico, vinculando-o aos
problemas sociais e aos contextos históricos a ele relacionados. Os processos culturais
como eixo de construção curricular do Ciclo de Formação,
Possibilitam respeitar os ritmos diferenciados desse processo de construção de conhecimento, por intermédio de uma organização cíclica dos conteúdos, o que permite retomar várias vezes os mesmos conteúdos, com distintos enfoques e níveis de profundidade. (idem p:27)
Pressupõe-se, assim, uma organização curricular capaz de promover uma “educação
básica nos dois primeiros Ciclos de Formação a serviço do processo de formação
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global do aluno, visando à sua interação com a realidade, de forma crítica e dinâmica
(Doc. E.P. s/d). Para tal, preconiza que a proposta curricular da escola avance no
“desencadeamento de processos pedagógicos que permitam aos alunos a expressão e o
desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, motrizes, afetivas, expressivas,
comunicativas e sociais”(Documento E.P: p.5) e prioriza conteúdos das disciplinas
que estejam relacionados aos problemas contemporâneos. “Essas duas perspectivas se
fundem na elaboração e no desenvolvimento de Projetos de Trabalho e Atividades
Significativas em cada ciclo”(Idem: p.5).
O mesmo documento afirma ainda a existência de diversas competências ou
instrumentos de formação global dos educandos. Entre elas, inclui o desenvolvimento
de um grau de autonomia do aluno em seu próprio processo de aprendizagem e a
construção de sua auto-imagem e de seu autoconceito. Desse modo, sugere como
competências a serem construídas no trabalho com o 1º e o 2º ciclos a participação da
vida social, a construção da autonomia e o tratamento da informação.
Neste documento, são também apresentados critérios a serem considerados para a
seleção e seqüenciação dos conteúdos: a) contato, uso e análise - é uma seqüência
que se inicia pelo contato com um novo conteúdo, passando a um contato mais
sistematizado, contínuo e usual, gerando um processo de análise; b) retomada e
progressão - a retomada do que já foi aprendido e de avanço a partir da introdução de
novos elementos; c) adequação em relação ao desenvolvimento dos alunos, buscando
estabelecer uma distância razoável entre o que os alunos já sabem e o que irão
aprender; d) eixos norteadores - para garantir a coerência na estruturação das
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seqüências de conteúdos, atuando como idéias centrais, capazes de sintetizar aspectos
fundamentais da intervenção pedagógica, dirigindo e orientando as escolhas dos
professores.
1.1. A Escola Plural e os ciclos de formação No Programa Escola Plural, o ensino básico passa a ser organizado em três ciclos, a
saber: o primeiro ciclo básico, composto por alunos na idade de 6-7, 7-8, 8-9 reúne o
período característico da infância, o segundo ciclo básico, composto por alunos de
idade entre 9-10, 10-11, 11-12, caracteriza o período da pré-adolescência; o terceiro
ciclo básico integra os alunos na idade de entre 12-13, 13-14, 14-15, período
característico da adolescência (Documento n.º1:1994). Essa organização dos tempos e
do conhecimento escolar tem como objetivo promover o respeito à temporalidade do
aluno, à sua identidade, às diferenças e às condições socioculturais dos educandos. O
pressuposto é que o aluno irá definir o tempo da formação básica e que o ciclo de
formação visa a inserir a educação escolar no processo de desenvolvimento humano,
se constituindo como uma estratégia para evitar a fragmentação das aprendizagens e
possíveis rupturas nos processos de socialização dos educandos.
A implantação dos ciclos de formação altera a relação de exterioridade do professor
com o conhecimento escolar, com o alunado e com seus pares. Denota, por parte dos
docentes, profissionalismo nas decisões a serem tomadas e na forma de se relacionar
com o ensino. Nesse sentido, no exercício da profissão, nas práticas coletivas da
docência, estariam desenvolvendo novos modos de ser e de estar na profissão.
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-
A transferência da sistematização do conhecimento escolar para o interior da escola
passa a exigir dos professores outras formas de se relacionar com os saberes escolares.
A inclusão, como princípio do Programa Escola Plural, tem sido acolhida pelos
professores nas escolas. Tal situação os tem colocado em contato mais estreito com a
alteridade e com as diferenças socioculturais. Para os professores, a seleção de
conteúdos escolares, de experiências de aprendizagem, sob a perspectiva da formação
humana, demanda saberes profissionais que extrapolam aqueles presentes na suas
experiências e na sua formação docente. Nesse contexto, pode-se afirmar que a
complexidade das questões de raça, classe, diversidade cultural exige uma discussão
ampliada e mais fundamentada do que nos termos apontados no documento publicado
pela Secretaria Municipal de Educação. Argumenta-se que a “fragilidade teórica”
dessas discussões e a falta de alternativas mais concretas para a sua implementação
estariam dificultando a compreensão desses postulados e, possivelmente, a sua
incorporação no cotidiano da escola.
Para Arroyo (1999), numa organização escolar por ciclos de formação, ou por ciclos
de vida humana, consideram-se professores e alunos como sujeitos sociais e culturais e
a ação educativa ocorre no contexto da interação entre as pessoas. O autor afirma que
essas propostas:
(...) recuperam o humanismo na educação escolar ou a pedagogia humanista entendida no sentido de que o currículo e a organização escolar são pensados para humanos. Humanismo pedagógico tão abafado pelo tecnicismo, pelos modelos prescritivos e pela preocupação com o treinamento e qualidade técnica dos transmissores. (p:160)
Nessa perspectiva, Lima (2000) destaca a necessidade de uma reflexão sobre o que é
conhecimento escolar e como estabelecer os parâmetros que vão definir suas formas,
25
-
mudando, conseqüentemente, as relações entre a organização do tempo e os conteúdos
a serem ensinados. Segundo a autora, são elementos fundamentais ao processo
educativo a utilização do conhecimento, a reflexão sobre as implicações de seu uso, a
compreensão de como se efetua, no ser humano, a sua construção e de como se
modificam os processos do pensamento e de memória. Desse modo, as discussões
sobre o conhecimento escolar incorporam aspectos dos processos de desenvolvimento
humano cultural e historicamente situados.
A autora citada ressalta que os tempos de transformação humana não correspondem à
organização de tempo das instituições, que, até então, tinham como eixo o calendário
civil. E afirma que:
O processo de desenvolvimento do ser humano é de ordem biológica-cultural, se realiza segundo os parâmetros estabelecidos pela genética da espécie, e é função da cultura. Isto faz com que os períodos de desenvolvimento, marcados por outras características distintas uns dos outros, primeiramente, não sejam regulares como a cronologia do calendário, em que cada ano tem sempre doze meses. (2000)
Ela aponta, assim, uma concepção de conhecimento escolar associada a um projeto de
formação do indivíduo em que os conteúdos são vistos como elementos mediadores do
desenvolvimento, incluindo o conhecimento formal e as formas de atividade humana
inerentes à construção desse conhecimento, tais como a expressividade, a
comunicação, a observação, a análise, a comparação e a síntese.
1.2. A implementação do Programa Escola Plural: mudanças e dificuldades
apontadas nos estudos recentes
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-
A implantação do Programa Escola Plural está quase completando o primeiro decênio.
Nesse período, a partir de estudos de casos realizados por diferentes autores, podem-se
encontrar diversos significados atribuídos por professores, pais, alunos e a sociedade
de modo geral a essa proposta educacional.
Dentre os primeiros estudos, Dalben (1998) sugere que a forma como os professores
interpretaram a proposta da Escola Plural acabou por gerar um foco de resistência à
mesma. O fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) estar na administração da
Prefeitura de Belo Horizonte e a idéia de que a proposta se destinava às camadas
populares, o que, na perspectiva dos professores, provocaria uma queda de nível do
conteúdo ensinado na escola, constituíram interpretações que dificultaram a “adesão”
dos professores ao Programa. A esse respeito ela ainda afirma que:
o problema da não retenção, da eliminação das notas e o medo de a Escola Plural “acabar” com os conteúdos escolares, tudo isso trazia uma série de discussões relacionadas aos parâmetros dos professores como referência de qualidade de escola. Ao lado disso, o temor pelo controle desta qualidade ligava-se ao tipo de relação que o próprio aluno teria com o ensino, com o seu processo de aprendizagem, com a escola e com o professor. (Idem, p. 89)
O formato dos cadernos da coletânea de construção curricular, a partir dos registros de
experiências de outras escolas, tem sido outro aspecto questionado, pois algumas
escolas seguem seu próprio processo de mudança a partir de sua experiência única,
negando as orientações que já estavam postas nos documentos. Outras aceitavam, sem
grandes questionamentos, o programa, a pluralidade de formatos de implantação e de
propostas (Dalben, 1998).
27
-
Dessa forma, a autora destaca três posicionamentos dos profissionais do ensino em
relação ao Programa: aqueles que empunhavam o Programa como bandeira, os que
não se envolviam na discussões e os que o consideravam um desafio.
No primeiro grupo, estavam aqueles que “empunharam a bandeira como um dogma ou
um ato de fé” (p:128). Esses não aceitavam as críticas ao Programa, adotando uma
postura de não estabelecer diálogo com posições contrárias aos seus pressupostos.
Essa postura “dificultou a condução do processo de implantação, porque muitas vezes
não conseguiu dialogar com idéias contrárias ou mesmo ouvir os demais” (idem,1998
p: 129).
No segundo grupo, os professores negaram-se a participar das discussões, sem, no
entanto, afetar o andamento dos trabalhos. Os que consideravam a proposta como
desafio procuravam “incorporar e envolver as diferentes percepções dos sujeitos, os
valores, as atividades rotineiras já existentes como significativas, necessárias e como
pontos de partida a serem tomados” (idem p:131).
O Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais - GAME realizou, no ano 2000, uma
avaliação mais ampliada da implementação do Programa Escola Plural. Essa
avaliação, de caráter qualitativo, foi realizada por amostragem estratificada e por meio
de estudos de caso múltiplos. Além de ampla pesquisa documental, três estudos de
caso semietnográficos foram conduzidos. A partir da análise de aspectos encontrados
na prática pedagógica das Escolas Municipais, a publicação do GAME3 traz algumas
3Esta publicação, em dois volumes, apresenta, no primeiro, uma coletânea de artigos de autores que participaram da pesquisa. Estes descrevem e analisam diversos aspectos pesquisados do Programa
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recomendações para a Secretaria Municipal de Educação (SMED), sugerindo que:
“Esses aspectos exigem investimento imediato por parte da SMED, porque significam
dificuldades enfrentadas pelos profissionais no cotidiano de seu trabalho”(Idem p:
112). Entre as sugestões apresentadas como prioritárias para a maioria das escolas está
a estruturação de parâmetros curriculares básicos próprios da Escola Plural para os três
ciclos de formação.
Outra recomendação é “construir parâmetros apontando competências cognitivas que
devem ser desenvolvidas pelos alunos em cada ciclo, favorecendo a construção de
referenciais de avaliação do ensino e da aprendizagem” (Idem p: 112). Nesse aspecto,
aponta a necessidade de que a SMED promova ações de formação para os professores
com o objetivo “de formar o ‘olhar do professor’ na perspectiva da relação do aluno
com o conhecimento”. E ainda afirma:
Os professores necessitam estabelecer relações entre as práticas anteriores e a nova proposta, entre os parâmetros anteriores e a nova realidade, estruturar linhas gerais de conduta e delinear com clareza objetivos de ação. Assim poderão estruturar parâmetros de trabalho e orientar-se sobre o desempenho dos alunos coletivamente. (GAME, 2000, p:113)
Os dados analisados por Dalben (1998) e pelos integrantes do GAME (2000) mostram
que existem questionamentos por parte dos professores da Rede Municipal de Ensino
em relação ao conhecimento escolar a ser ensinado. Nesse sentido, nas recomendações
finais, considera-se que a estruturação de parâmetros curriculares básicos para os
ciclos de formação, de maneira mais delimitada e fundamentada nos princípios da
Escola Plural, é uma prioridade. Dentre as implicações da ausência desses parâmetros,
Escola Plural. No segundo volume, são descritos o plano de avaliação do Projeto Escola Plural, a dinâmica do processo de avaliação e a forma de organização dos dados coletados avaliação.
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são apontados a dificuldade de organização dos ciclos, a articulação coletiva do
trabalho entre os ciclos e os processos de avaliação. E, ainda, que essa situação “tem
favorecido, inclusive, o retorno a uma perspectiva seriada, porque os professores têm
utilizado os materiais disponíveis no mercado e, todos eles, fundamentados no modelo
seriado” (GAME, 2000:113).
Nesse contexto, pode-se afirmar que os pressupostos contidos no Documento do
Programa Escola Plural (1994) a respeito dos conteúdos e dos temas transversais
parecem não ter sido suficientemente claros. As publicações posteriores da Secretaria
Municipal de Educação sobre a organização curricular passam a considerar os
processos culturais como “eixos” da construção curricular para os ciclos de formação,
deixando de lado os temas transversais sugeridos no documento inicial, possivelmente
por não contribuírem de maneira mais efetiva para a discussão sobre o conhecimento
escolar entre os docentes.
Dalben (1998) e (2000), Soares, (2000) e Zaidan (2001) ressaltam, no entanto, a
mudança do olhar dos docentes para a diversidade sociocultural dos educandos. Eles
têm procurado promover o atendimento às especificidades dos educandos por meio de
ações diversas, tais como a equalização dos tempos das disciplinas, promoção de
práticas pedagógicas voltadas para as diferenças, ampliação cultural dos educandos,
aceitação dos ritmos diferenciados dos estudantes, entre outras.
No entanto, essas ações parecem não ser suficientes para a efetivação do objetivo
educacional, no que se refere à formação global do aluno, como estabelecido pelos
princípios do Programa. De acordo com Soares (2000:177), “um aspecto que se
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revelou como uma dificuldade, para os professores e professoras, foi a tradução para o
âmbito da prática, dos princípios que a proposta apresenta”.
De acordo com essa autora, a concepção de ciclos como espaço contínuo de formação
do aluno tem-se constituído em um desafio, em que a construção de um novo
ordenamento escolar encontra na concepção de ensino/aprendizagem presente entre os
docentes um obstáculo, apresentando um caráter psicologizante, em que a
aprendizagem é considerada como conseqüência de atitudes e de comportamentos
psíquicos dos alunos, tais como atenção, empenho, esforço.
De acordo com Amaral (2000), os projetos de trabalho, ao serem interpretados como
uma “ruptura com o conhecimento formal”, possibilitaram posicionamentos diferentes
dos docentes em relação à abordagem dos mesmos em sua prática pedagógica. Isso
trouxe como conseqüência a realização de trabalhos com projetos mais voltados para
os Centros de interesse propostos por Decroly do que na perspectiva globalizadora
sugerida pelo Programa Escola Plural, fazendo com que os professores se
posicionassem pelo trabalho com conteúdos ou por temas.
A autora analisa que, apesar da existência de fatores que contribuem para a efetivação
de um trabalho globalizado nas séries iniciais, como, por exemplo, a formação
polivalente dos professores e a pouca necessidade de aprofundamento disciplinar,
constatou-se “a perda das referências curriculares e disciplinares, sem a devida
utilização da metodologia que deveria, globalmente, coordenar a apreensão dos
31
-
conteúdos básicos necessários” (Amaral, 2000:72). E destaca, ainda, o agravamento da
situação no 3º ciclo de formação, no qual as dificuldades de percepção pelos
professores das possibilidades de desenvolvimento curricular de conteúdos
disciplinares dentro dos projetos acentuam-se quando a formação destes em
licenciaturas em disciplinas específicas estaria contribuindo para uma visão a partir
das disciplinas, e não globalizadora.
É possível perceber que a incorporação dos princípios propostos pelo Programa Escola
Plural apresenta-se ainda como um desafio aos professores e profissionais envolvidos
nesse processo. A partir das avaliações aqui examinadas, as alterações mais profundas
promovidas nas escolas por este programa estão relacionadas aos tempos
educacionais, tais como a organização por ciclos de formação e os tempos coletivos
dos professores. Nesse contexto, mudanças são também percebidas na relação dos
atores escolares com o conhecimento escolar, objetivando o atendimento das
necessidades educacionais dos alunos, ao longo de sua permanência no ensino
fundamental, que na rede municipal pode alcançar uma duração de nove anos. Face a
essas ponderações, algumas questões continuam ainda sem respostas: Que outras
modificações o Programa Escola Plural tem promovido na prática pedagógica dos
docentes? Que tipos de debates têm sido promovidos nas escolas sobre o
conhecimento escolar? De que forma os ciclos de formação são abordados nesses
debates?
2. Delimitando as questões investigadas
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É no âmbito desse cenário educacional que está inserida a temática central investigada
nesta dissertação: a relação dos professores com os ciclos de formação implantados a
partir do Programa Escola Plural, tendo em vista obter respostas para as seguintes
questões mais específicas:
1. Que formas coletivas de organização pedagógica emergem na atividade docente dos
professores da escola estudada?
2. Que consensos, certezas, dificuldades e tensões são compartilhados nas relações
pedagógicas vivenciadas no cotidiano escolar e nas reuniões coletivas de planejamento
das ações escolares organizadas por esses professores?
3. Que saberes e experiências os professores desenvolvem em relação ao
conhecimento escolar e à prática pedagógica ao se confrontarem com a organização
por ciclos de formação?
4. Como os saberes da experiência e da formação profissional inicial e continuada são
acionados pelos professores ao longo dessas situações e condições escolares?
Tais questões se apóiam no pressuposto de que a escola é um espaço social e uma
realidade complexa e multirreferenciada, que se transforma, muitas vezes, em “um
campo de lutas” por ideais, valores, ideologias e concepções entre professores, alunos,
pais, comunidade. Ela é também uma construção histórica realizada cotidianamente
por seus atores, que exercem papéis diferenciados, em determinados momentos, quer
como protagonistas da ação educativa, quer como coadjuvantes.
Acreditava-se que a organização do ensino por ciclos de formação implicava a
realização de mudanças significativas nos espaços e tempos de alunos e de
33
-
professores, desencadeando atitudes e práticas mais coletivas por parte dos docentes,
possibilitando igualmente a construção de relações mais democráticas entre esses
atores e a emergência de um ambiente escolar mais permeado por conflitos pessoais,
ideológicos, epistemológicos e políticos. Postulava-se também que a participação dos
professores na implementação dos ciclos de formação pode possibilitar o
desenvolvimento de novos saberes docentes e maior utilização dos saberes adquiridos
nas trajetórias profissional e pessoal, na experiência de organização coletiva da escola
e do conhecimento escolar a ser ensinado.
2.1. Percurso metodológico
A partir das questões propostas anteriormente, optou-se por realizar uma pesquisa
qualitativa, que privilegiasse a análise e a compreensão das ações e reações dos
professores reunidos nos ciclos básicos de formação em uma escola da Rede
Municipal de Ensino de Belo Horizonte.
A investigação qualitativa é caracterizada por Bogdan & Bicklen (1994) como aquela
que preenche algumas características principais. Ela é realizada em ambiente natural,
que se constitui na fonte direta de coleta dos dados. Exige-se, portanto, do pesquisador
a permanência no local do estudo e uma preocupação especial com o contexto onde a
pesquisa se realiza, por se entender que a observação das ações no ambiente natural de
sua ocorrência possibilita uma melhor compreensão dos fatos.
34
-
A natureza descritiva dos dados é outra característica da investigação qualitativa,
exigindo a transcrição de entrevistas, notas de campo, a análise de fotografias e de
outros materiais iconográficos.
O investigador deve “analisar os dados em toda sua riqueza, respeitando, tanto quanto
o possível, a forma em que estes foram registrados ou transcritos” (Idem:48). Nesse
tipo de pesquisa, a ênfase é colocada nos processos, e não nos resultados, pois a
tendência é analisar os dados de forma indutiva, buscando o significado atribuído
pelos participantes às situações estudadas e às ações sociais dos indivíduos
observados.
Neste estudo, os procedimentos utilizados para a coleta de dados, tais como a
observação, a entrevista semi-estruturada e a análise documental, nos permitem
caracterizá-lo como uma pesquisa qualitativa, do tipo etnográfico, sem, no entanto,
configurá-lo como uma etnografia. Isso porque a permanência na escola não foi
suficiente para mergulharmos na sua cultura de modo a obter a “impregnação das
mentalidades”, como os estudos etnográficos exigem.
Nesse estudo, a convivência direta com a realidade estudada tornou-se necessária para
se obter uma melhor percepção dos valores, das teias de significados atribuídos pelos
diversos atores escolares, bem como a participação destes na gestão do ensino
organizado por ciclos de formação, e os conflitos, os consensos e as formas de
negociação existentes nas interações entre os sujeitos e nas atividades docentes
coletivas. Além desses aspectos, desvelar os saberes que os docentes desenvolvem e
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-
acionam nessas ações “exige um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de
observação e empatia” (Velho, 1978:37).
Para Velho (1978), situações como essa exigem também um certo estranhamento e
distanciamento do pesquisador do que pode lhe ser familiar. Ele destaca a
complexidade da categoria “distância” e postula algumas de suas implicações para o
trabalho científico. Em suas reflexões, determinadas situações com as quais se convive
de forma mais próxima podem ser familiares e, no entanto, não ser conhecidas e vice-
versa. E sintetiza:
em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Isto, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema. (Idem:40)
E continua:
O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações. O estudo de conflitos, disputas, acusações, momentos de descontinuidade em geral, é particularmente útil, pois, ao se focalizarem situações de drama social, pode-se registrar os contornos de diferentes grupos, ideologias, interesses, subculturas, etc.
Para André (1983), a utilização de dados qualitativos nas pesquisas educacionais
oferece algumas vantagens, mas envolve também alguns problemas. Entre as
vantagens por ela apontadas estão: a apreensão da complexidade dos fenômenos em
suas manifestações naturais e a captação de significados das experiências vividas no
ambiente escolar. Entre os problemas ela assinala a centralização da coleta de
informações no pesquisador, sobrecarregando-o nos estágios do estudo, ou seja, na
36
-
variedade de aspectos do fenômeno a ser observado, no volume de anotações, no
tempo das transcrições das observações e na dificuldade de codificar e interpretar os
dados e apresentar os resultados. Ela destaca, ainda, a ausência de métodos
apropriados de análise como o problema mais sério enfrentado pelos pesquisadores
que adotam essa metodologia de pesquisa.
2.2. Espaços e procedimentos de coleta de dados
Esta pesquisa foi realizada em uma Escola Pública da Rede Municipal de Ensino de
Belo Horizonte que atende ao ensino fundamental. Os critérios iniciais colocados
para a escolha da escola foram a existência de uma gestão democrática, a concordância
dos professores em participar da pesquisa e a adesão ao Programa Escola Plural por
parte da maioria dos professores. A escolha da escola, além de levar em consideração
esses critérios, se deu, também, por outras informações colhidas de maneira informal.
Após solicitar junto aos órgãos da Secretaria Municipal de Educação a indicação de
escolas que preenchessem os critérios citados, não foi possível encontrar, entre as
diversas sugestões apontadas, uma escola com as características estabelecidas
desejadas. Em conversa com colegas professores sobre essa dificuldade, me foi
sugerido conhecer a escola em que uma delas trabalhava, pois o que mais lhe causava
admiração era o fato de, nessa escola, “tudo passar pelo coletivo”, inclusive as
decisões sobre o conhecimento escolar. Por coincidência, naquele período a escola
faria uma apresentação de relato de experiência na Rede de Trocas promovida pelo
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-
CAPE4. Atendendo ao convite dessa professora, a pesquisadora esteve presente ao
evento e, nessa oportunidade, foram estabelecidos os primeiros contatos com a escola.
A apresentação da pesquisadora aos docentes e à direção da escola foi feita por essa
pessoa.
Em contato posterior com os coordenadores na escola, houve uma boa receptividade à
pesquisa, tendo sido solicitado que os resultados da pesquisa fossem posteriormente
apresentados para o coletivo de professores assim que fosse possível.
A pesquisa teve início no mês de outubro de 2000 e se prolongou até o mês de junho
do ano seguinte. As observações foram realizadas no período da tarde. Nesse turno,
funcionavam os três ciclos de formação. Optou-se por privilegiar as reuniões dos
professores. Esses espaços coletivos nessa escola são constituídos pelas reuniões da
coordenação pedagógica e do conjunto de docentes do turno, as reuniões dos
professores por ciclos de formação e reuniões gerais dos professores. Essas reuniões
possibilitaram apreender nas discussões as certezas e as dúvidas dos professores, as
concepções de formação dos professores no contexto em que ocorriam naturalmente.
Inicialmente, o período de observação mostrou-se difícil para ambos, pesquisadora e
professores. Foram momentos de estranhamentos, possivelmente comuns em situações
como esta. Aos poucos, os sujeitos pesquisados e a pesquisadora foram se
acostumando com a presença um do outro. O trabalho de campo foi marcado por
4 O CAPE é o Centro de Formação de Profissionais da Educação, órgão da Secretaria Municipal da Educação responsável pela formação dos profissionais da Rede Municipal de Educação. A Rede de Trocas é uma das suas ações de formação, em que as escolas que têm experiências significativas são convidadas a relatá-las.
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momentos em que prevalecia o distanciamento nas relações com os docentes
pesquisados e momentos de maior proximidade. Nestes, havia demonstrações de
curiosidade a respeito das anotações intermináveis, durante as reuniões. Ou, ainda,
situações em que expressavam a sua percepção a respeito da relação estabelecida entre
os pesquisadores da universidade e os professores. Essa crítica ficou evidenciada em
uma das reuniões de professores, no momento em que discutiam o assunto. Em um dos
comentários, uma professora afirmou que os pesquisadores, de modo geral, procuram
as escolas e as utilizam como “ ‘cobaias’ para escrever suas teses e dissertações e
depois desaparecem, não dando retorno nenhum para o grupo de professores
pesquisados”. Possivelmente, esse foi um dos motivos que levaram a coordenação a
propor, em contrapartida, a realização de uma discussão da pesquisa com os docentes.
Durante o período de realização da pesquisa de campo, procurou-se observar e
registrar a relação dos professores com a organização dos processos de ensino por
ciclos de formação e que auxiliassem a desvelar as possibilidades, dificuldades,
certezas e incertezas compartilhadas pelos docentes nas decisões tomadas na definição
do projeto pedagógico e na gestão pedagógica dos ciclos de formação. Esse registro
objetivava identificar os saberes que fundamentavam as discussões e os debates dos
professores no cotidiano, assim como apreender os conflitos, as concepções, posturas,
posicionamentos e saberes por eles acionados e/ ou desenvolvidos nesse processo
pedagógico coletivo.
Esta pesquisa demandava uma observação dos aspectos que fornecessem os dados
para a captação dos saberes docentes que fundamentavam as discussões e decisões dos
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professores e os significados construídos por eles sobre essa experiência educativa.
Entre esses aspectos, pode-se citar a participação coletiva do professor na organização
pedagógica da escola, nos espaços de encontros coletivos, a relação dos professores
com os ciclos de formação, com os colegas, com os alunos e com o conhecimento
escolar.
Os dados coletados durante a observação das reuniões dos professores eram anotados
no caderno de campo. Nas notas de campo, registravam-se os pronunciamentos dos
professores, os comentários, acontecimentos e outros. As impressões da pesquisadora
sobre o período da observação também constituíram-se como parte das notas de
campo.
A entrevista semi-estruturada constitui-se, também, um instrumento de coleta de dados
nesta pesquisa. Trata-se de um procedimento muito rico em pesquisas qualitativas,
tendo em vista o objetivo de captar, de forma mais aprofundada, os significados
atribuídos pelos sujeitos à realidade.
As observações, além de fornecer dados para a análise, subsidiaram também a coleta
de informações para a escolha dos sujeitos a serem entrevistados. Eles foram
escolhidos de acordo com os seguintes critérios: o grau de envolvimento nas
discussões coletivas dos professores, os posicionamentos nessas discussões, a posição
desses sujeitos no grupo de docentes, disponibilidade para participar da entrevista.
Foram entrevistadas seis docentes, sendo: duas representantes do segmento de
professores, duas da coordenação e duas da direção escolar.
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Uma das dificuldades desse momento da coleta de dados foi encontrar espaço na
agenda dos entrevistados para a realização das entrevistas. Devido à jornada dupla de
trabalho dos professores, ao período do ano letivo, alguns entrevistados estavam
envolvidos com a organização de ensaios para o evento interno da festa junina e,
ainda, o período de campanha salarial dos professores. Foram vários desencontros
entre a pesquisadora e as entrevistadas.
As entrevistas aconteceram no espaço da escola em ambientes como as salas de aula,
sala da direção e a biblioteca. Na sala de aula, as entrevistas transcorreram sem
interrupções, pois foram utilizadas nos horários em que os alunos estavam em
atividade fora da sala ou nos intervalos entre os turnos de trabalho dos professores. A
duração média das entrevistas foi de uma hora e meia. As entrevistas foram transcritas
e, posteriormente, editadas.
2.3. Análise e organização dos dados
Os dados coletados foram significativos. Foram inúmeras descrições das notas de
campo e dos depoimentos das entrevistas. Diante desse material extenso e rico,
necessitava-se estabelecer um procedimento para organizá-lo e analisá-lo e, nesse
momento, o pesquisador depara-se com grandes dificuldades metodológicas.
O material recolhido, as notas de campo, as entrevistas foram inicialmente lidos
exaustivamente. Essas leituras possibilitaram o desenvolvimento de “um sistema de
codificação para organizar os dados” (Bogdan & Bicklen, 1994:221 ).
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As anotações de campo foram codificadas, em um primeiro momento, de acordo com
o espaço escolar observado: reuniões gerais, reuniões de ciclo de formação, reuniões
nas percepções dos professores, os significados, valores defendidos, as incoerências,
os conflitos presentes, as dificuldades e confrontos enfrentados. O mesmo
procedimento foi realizado com as entrevistas.
Posteriormente, foi estabelecida uma estruturação dos capítulos que comporiam a
dissertação, com vistas ao aprofundamento da análise no decorrer da redação final. A
organização dos capítulos pressupõe que estes se complementem. Esta dissertação foi
organizada da seguinte maneira:
A Introdução tem por objetivo delimitar o campo de estudo que subsidiou as análises
da profissão docente. Aponta para perspectivas de pesquisa sobre os professores como
sujeitos de conhecimento e as implicações desses estudos para o cenário educacional,
assim como os pressupostos do Programa Escola Plural e alguns estudos realizados
recentemente que analisam as mudanças e dificuldades encontradas pelos docentes na
implementação do mesmo. Além disso, são apresentadas as questões que levaram à
escolha do tema desta pesquisa e a descrição de seu percurso metodológico, indicando
o método e os procedimentos utilizados para a coleta, a organização e a análise dos
dados.
O capítulo 1 tem por objetivo situar historicamente os ciclos de formação e analisar a
atuação coletiva dos professores, na organização dos ciclos de formação na escola.
Procurou-se captar os significados, as concepções e sentimentos dos docentes, assim
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como as dificuldades e dúvidas compartilhadas por estes nesse processo. Inicia-se a
explicitação dos saberes que fundamentam as discussões dos professores.
O capítulo 2 analisa a organização do conhecimento escolar implementada na escola e
a elaboração do projeto político-pedagógico a partir das prescrições do Programa
Escola Plural. Situa dificuldades, acordos, conflitos e possibilidades presentes nos
debates dos docentes, assim como os saberes acionados e/ ou desenvolvidos pelos
professores nessa participação coletiva.
Nas considerações finais, faz-se um retorno às questões discutidas neste estudo,
analisando a relação dos professores com os ciclos de formação. Para tal, revisam-se
dados analisados anteriormente, procurando destacar a participação dos professores na
organização do ensino fundamental implementada.
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Capítulo 1
Os ciclos de formação e a participação coletiva dos professores na organização
pedagógica da escola
Neste capítulo, será feita uma abordagem dos ciclos de formação e da participação
coletiva dos professores na organização pedagógica da escola. Serão analisados os
espaços de ação coletiva nos quais os professores realizam as discussões e os debates
para a elaboração do projeto político-pedagógico a ser desenvolvido nos ciclos de
formação. Nesse sentido, pretende-se desvelar as possibilidades, dificuldades,
necessidades, as certezas e incertezas compartilhadas pelos docentes, na tarefa de
definir as finalidades do projeto de formação educativa, nos âmbitos político e
pedagógico.
Pretende-se descrever e analisar as formas de organização pedagógica adotadas pelos
professores e identificar os saberes em que eles fundamentam as discussões e os
debates no cotidiano escolar, assim como que saberes da experiência e saberes
profissionais são acionados e/ou desenvolvidos por eles nesse processo.
Inicialmente, será apresentado um histórico dos ciclos de formação. Em seguida, serão
feitas a descrição e a análise dos espaços e tempos pedagógicos utilizados pelos
professores na elaboração do projeto pedagógico para os ciclos de formação. Esses
espaços e tempos coletivos nessa escola são constituídos pelas reuniões da
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coordenação pedagógica do conjunto dos docentes por turno, ou seja, as reuniões
gerais e dos professores de cada ciclo de formação.
1.1 Os ciclos de formação: origem e experiências preliminares no Brasil
Historicamente, os ciclos de formação têm sido implantados, no Brasil e em outros
países, com objetivo de correção de fluxo escolar dos alunos. Segundo Barreto &
Mitrulis (2001), os ciclos surgem dentro de perspectivas políticas e pedagógicas da
conjuntura de cada época. Na década de 1950, os regimes de progressão continuada
apresentaram-se no cenário educacional brasileiro nos debates sobre a retenção
escolar, tendo como argumentos favoráveis os de cunho econômico e psicológico. De
acordo com os primeiros, a nova ordenação do tempo escolar justificava-se pela
necessidade de se fazer a correção de fluxo de alunos da escola básica, permitindo o
atendimento de um número maior de educandos.
O outro argumento apontava os fatores emocionais decorrentes das situações de
constrangimento vividas pelo aluno fora da faixa etária, e que poderiam ser evitadas
caso se adotasse o regime. Nesse modelo de ciclo, a fragmentação do currículo
decorrente do regime seriado cederia lugar a uma ordenação de tempo escolar flexível,
de forma a favorecer o atendimento a clientelas de diferentes procedências e estilos de
aprendizagem, preservando-se as exigências educativas para o período de duração da
escolarização. No entanto, para alguns educadores, seria necessário modificar a
concepção de educação da época para transformar o caráter seriado e seletivo da
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instituição escolar, para aproximá-la das demandas sociais e das demandas das
crianças:
Os programas escolares mostravam-se alheios às urgências e necessidades sociais, e desatentos aos interesses e características da criança. Apresentavam uma surpreendente uniformidade de Estado para Estado, desde as primeiras décadas do século e prevaleciam acima das contribuições que as chamadas ciências da educação já disponibilizavam, apontando a necessidade premente de reformulações. (Idem:105)
Os argumentos contrários à adoção de uma flexibilização da trajetória escolar tendiam
a considerá-la como uma possibilidade de tornar mais graves as deficiências do ensino
fundamental no país, caso não fossem tomadas algumas providências anteriores à sua
implantação. E sugerem o investimento em políticas de reformulação dos programas
de ensino, a elaboração de material didático, o treinamento de professores, a renovação
das técnicas de ensino e, ainda, o desenvolvimento de ações objetivando “desenvolver
no magistério uma atitude receptiva às novas práticas” (Barreto & Mitrulis:107).
Nos anos 1960, com a permanência da repetência e da evasão escolar na escola
brasileira, os ciclos reaparecem em reformas educacionais nos estados de Pernambuco,
São Paulo e Santa Catarina. Acreditava-se que a flexibilização do currículo e o
trabalho diversificado contribuiriam para o ajustamento do ensino ao ritmo de
aprendizagem do aluno. As críticas a esse modelo situavam-se na elaboração de um
guia curricular mínimo, sem demarcações por séries, o que contribuiu para o aumento
da insegurança dos professores quanto aos procedimentos a serem utilizados.
No período da transição democrática no Brasil, a partir dos anos 1980, a tentativa de
resgatar a dívida pública com as massas da população foi decisiva para a
implementação dos ciclos de alfabetização. A medida tratava da reorganização da
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escola pública, com o objetivo de reduzir a distância entre o desempenho dos alunos
das diferentes camadas da população (Barreto & Mitrulis, 2001).
Em Minas Gerais, o Congresso Mineiro de Educação trouxe contribuições
significativas para a organização escolar no estado. Esse congresso convocou a
participação de profissionais do magistério, entidades de classe, parlamentares, a
comunidade em geral, com o objetivo de realizar um diagnóstico da situação
educacional no estado. Pretendia-se ainda conhecer as propostas pedagógicas em
desenvolvimento nas escolas e sistematizar as propostas das várias categorias para o
estabelecimento de uma política de educação (Cunha,1999).
Segundo Cunha, O Plano Mineiro de Educação enfatizou também a necessidade de se desencadear um processo de desenvolvimento curricular no ensino de 1º e 2º graus, em especial das disciplinas de Ciências, História, Geografia e Educação para o Trabalho. A elaboração da proposta de reformulação curricular foi realizada de agosto a dezembro de 1986, visando sua implantação em 1987. Sugestões partiram das escolas para as delegacias e destas para as regionais. (Cunha, 1999:178)
O Ciclo Básico de Alfabetização (CBA), implantado nas escolas estaduais de Minas
Gerais nesse período, tinha como objetivo combater as altas taxas de evasão e
repetência na 1ª e na 2ª séries do 1º grau, para o que propõe um aumento do tempo do
aluno para a aquisição da leitura e da escrita, articulando a 1ª e a 2ª séries em um
mesmo bloco (Cunha,1999). A implantação do CBA enfrentou problemas como a
lentidão na difusão dos princípios e concepções do programa, a rotatividade de
professores e as dificuldades financeiras. Entretanto, os resultados do processo
ensino/aprendizagem, se comparados ao período anterior, foram melhores.
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O predomínio das teorias construtivistas nessas propostas curriculares “deslocou o
eixo sócio-político que motivara a criação do ciclo básico nos Estados, transportando-
o para o terreno preponderantemente cognitivo e da interação dos indivíduos”(Barreto
e Mitrulis, 2001, p. 113).
Segundo essas autoras, a concepção de ciclos introduzida no Brasil tem a tendência de
ser uma medida intermediária entre o regime seriado e o regime de progressão
contínua. Segundo elas,
Ao final de cada ciclo, via de regra, o que se continua a esperar, não só no imaginário dos docentes como nos próprios dispositivos institucionais que vêm sendo utilizados para regular as experiências, é que todos os alunos manifestem certas atitudes, adquiram habilidades e dominem conhecimentos básicos em nível semelhante (Barreto e Mitrulis, 2001 p. 112).
Em suas análises, as autoras sustentam que as propostas curriculares, ao longo dessa
década, foram influenciadas pelos pressupostos teóricos de Jean Piaget, trazidos,
inicialmente, pelos estudos sobre alfabetização de Emília Ferreiro, pelas contribuições
da sociolingüística, da psicolingüística e do sociointeracionismo vygotskiano.
Essas primeiras experiências de implantação de ciclos no sistema escolar brasileiro
objetivaram combater o fracasso escolar de alunos do ensino fundamental. O maior
desafio constituía-se na criação de condições para a permanência do educando na
escola, garantindo-lhe a aprendizagem efetiva. Tais iniciativas promoveram a
flexibilização dos tempos escolares em ciclos com duração de dois anos, em níveis de
ensino, e a tentativa de adequação dos currículos escolares e das propostas
metodológicas ao público atendido, no sentido da obtenção de aprendizagem efetiva
por parte dos alunos.
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Na década de 1990, nas propostas educacionais dos municípios de São Paulo e de Belo
Horizonte, o ensino fundamental passa a ser organizado em ciclos. Esperava-se que
essas mudanças propostas, em que se preconizava uma integração de conteúdos
fundamentada em experiências socioculturais dos alunos, a substituição do regime
seriado por ciclos pudesse suscitar novas dimensões educativas no espaço escolar.
De acordo com Barreto & Mitrulis (2001:116), “tais ações estariam em busca de um
novo modo de operar a escola, capaz de romper a lógica da exclusão social e cultural
dos alunos”. Elas destacam, ainda, o fato de essas propostas estarem apoiadas nas
ações coletivas dos docentes e demandarem destes a apropriação das mesmas, bem
como a participação em sua construção e implementação.
Apresentado à comunidade escolar como um programa construído a partir de uma
multiplicidade de experiências pedagógicas bem-sucedidas5, que as próprias escolas
municipais vinham desenvolvendo, nem por isso o Programa Escola Plural tem sido
aceito incondicionalmente por todos os professores. Reações adversas e contraditórias
a essa política educacional e às modificações introduzidas nas formas de organização
das atividades docentes são registradas em pesquisas recentes. Estas denotam que, ao
propor o rompimento com a lógica da organização escolar e com a prática docente
instituída anteriormente na Rede Municipal de Ensino, o Programa Escola Plural exige
dos professores uma ruptura radical com todo um “saber fazer” que estes, um dia,
vivenciaram enquanto alunos, a que se submeteram e que incorporaram ao longo dos
cursos normais e de licenciaturas, e experimentaram em seus estágios docentes. Esse
“saber fazer” está fundamentando nas seguintes dimensões:
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a) O predomínio do caráter transmissivo no processo de ensino/aprendizagem,
centrado no ensino de conteúdos formais.
b) A organização de tempos e espaços escolares que estruturam o processo de
escolarização em níveis, graus de ensino, em séries e em disciplinas
hierarquicamente situadas em grades curriculares, com pré-requisitos formalmente
avaliados, ao longo de cada semestre e ano letivo.
c) A avaliação periódica e somativa desse processo de ensino/aprendizagem e, com
base nesta, aprovações e reprovações eram definidas.
d) Um processo de ensino que se distingue pela sua forma linear, gradativa e
cumulativa. Os conteúdos curriculares, ao serem previamente definidos como
conhecimento legítimo e socialmente valorizado, deveriam ser igualmente e
democraticamente ensinados a todos os alunos.
e) A uniformidade no processo de ensino/aprendizagem e a igualdade de
oportunidades no acesso ao conhecimento justificam, socialmente e
profissionalmente, a organização da escola e do trabalho docente segundo esses
parâmetros.
O Programa Escola Plural, ao optar pelo rompimento com essa concepção de
escolarização e organização escolar, propõe a sua substituição por uma nova lógica
centrada em quatro núcleos e princípios vertebradores, a saber: eixos norteadores da
Escola Plural, reorganização dos tempos escolares, conteúdos e processos e avaliação.
5 Entre essas experiências bem-sucedidas, podem-se destacar: aumento da jornada de trabalho, os tempos de direção, de coordenação de área, tempos de assembléia escolar, de colegiado, os conselhos de classe.
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As dificuldades de adesão a esses princípios têm sido, no entanto, apontadas por
alguns estudos. Dalben (1998) e Soares (2000), ao analisar as formas de apropriação
do Programa Escola Plural pelos professores, mostraram que estes, apesar de adotarem
anteriormente uma postura “plural”, “não se viam na proposta”. Até mesmo em
eventos de formação continuada, como seminários, fóruns ou conferências, pode-se
observar, nos depoimentos de professores, uma tendência reducionista a
responsabilizar o Programa Escola Plural por algumas das dificuldades enfrentadas no
cotidiano escolar, tais como: estudantes não-alfabetizados cursando o 3º ciclo, a falta
de professores, entre outros.
Diferentemente dessas experiências, os docentes da escola em questão revelaram uma
forte adesão à proposta implementada, procurando estabelecer uma interlocução
imediata com as instâncias responsáveis pelo desenvolvimento do Programa na
Secretaria Mu