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COMPLEXO EDUCACIONAL DAMÁSIO DE JESUS CENTRO DE ESTUDOS PESQUISA E ATUALIZAÇÃO EM DIREITO PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO ADRIAN GABRIEL CAMPOS POGGI DE ARAUJO IDELFONSO A LEI MARIA DA PENHA E OS DIREITOS HUMANOS Rio de Janeiro 2012

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COMPLEXO EDUCACIONAL DAMÁSIO DE JESUS

CENTRO DE ESTUDOS PESQUISA E ATUALIZAÇÃO EM DIREITO

PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO

ADRIAN GABRIEL CAMPOS POGGI DE ARAUJO IDELFONSO

A LEI MARIA DA PENHA E OS DIREITOS HUMANOS

Rio de Janeiro

2012

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ADRIAN GABRIEL CAMPOS POGGI DE ARAUJO IDELFONSO

A LEI MARIA DA PENHA E OS DIREITOS HUMANOS

Monografia de conclusão do

curso de pós-graduação em

direito público, apresentada

como pré-requisito parcial para

obtenção do grau de

especialista em Direito Público.

Sob a orientação da Professora

Dra. Eliane Chaia

Orientadora: Professora Dra. Eliane Chaia

Rio de Janeiro

2012

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Idelfonso, Adrian Gabriel Campos Poggi de Araujo. A Lei Maria Da Penha E Os Direitos Humanos – Rio de Janeiro: 2007. 60p.

Monografia apresentada ao Complexo Educacional Damásio De Jesus - Centro De

Estudos Pesquisa E Atualização Em Direito, como exigência parcial para obtenção

do título de especialista em Direito Público, sob orientação da Profª. Dra. Eliane

Chaia.

1. A Lei Maria Da Penha E Os Direitos Humanos I. Título.

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ADRIAN GABRIEL CAMPOS POGGI DE ARAUJO IDELFONSO

A LEI MARIA DA PENHA E OS DIREITOS HUMANOS

Monografia de conclusão do

curso de pós-graduação em

direito público, apresentada

como pré-requisito parcial para

obtenção do grau de

especialista em Direito Público,

no Complexo Educacional

Damásio de Jesus, 2012.

Orientadora: Professora Dra. Eliane Chaia

Aprovação

____________________________________

____________________________________

____________________________________

Rio de Janeiro

2012

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho:

A Deus por ter me oferecido a oportunidade

de viver, evoluir a cada dia e conhecer todas

as pessoas que citarei abaixo.

Aos meus pais pelo apoio e carinho

oferecidos em todo momento de minha vida

e principalmente neste.

Aos meus avós, tios e demais familiares, por

terem acreditado e fornecido condições para

que eu concluísse mais uma etapa desta

vida.

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AGRADECIMENTO

Aos velhos mestres da PUC – Minas, pelo

apoio, paciência, credibilidade e

compreensão que me proporcionaram

durante todo o curso de graduação.

Aos Professores do CEPAD pelos

ensinamentos e orientações oferecidos

durante todo o curso de pós-graduação.

Aos meus amigos advogados pelo apoio,

atenção e contribuição em minha formação

profissional, além das longas horas de

debates sobre temas de relevância para este

trabalho.

A todos que contribuíram direta e

indiretamente na realização deste trabalho.

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“O futuro pertence àqueles que acreditam na

beleza de seus sonhos.”

Elleanor Roosevelt

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar profundamente as normas

constitucionais e de direitos humanos ao qual o Brasil se submete e avaliar se a lei

Maria da Penha se norteia por essas normas, bem como obter a melhor percepção

sobre a aplicabilidade e eficácia da mesma.

Para cumprir com esse objetivo, faz-se necessária uma análise evolutiva dos

principais sistemas normativos ao longo da história e consequentemente tentar

identificar elementos cujo conteúdo demonstre a existência de normas e princípios

de direitos humanos e de situações que se enquadrem como protetivas ou

violadoras.

Com isso, poderemos obter uma percepção mais próxima da realidade, no

que se referem ao papel da mulher em diversas culturas, sociedades e

ordenamentos jurídicos.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Direito Constitucional; Lei Maria da

Penha; Aplicabilidade; Eficácia.

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ABSTRACT

The objetive of this work is to deeply analyze the constitutional rules and the

human rights which Brazil is subjected and evaluate of the if the law "Maria da

Penha" is oriented by these rules, in addition to achieve the best perception about

the applicability and effectiveness of such rules.

To acomplish such objetive, it's necessary to make an evolutive analysis of

the main normative systems throughout the history, and therefore, try to indentify the

elements which the contents show the existence of the rules and principles of the

human rights and situations that fit as protective ou violatives.

With that, we can have a perception of the closest perception of reality as

how is the role of women in many cultures, societies and juridical ordainments.

Key words: Human Rights; Constitutional law, Law Maria da Penha,

Applicability; Effectiveness.

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INTRODUÇÃO

Assim como qualquer trabalho acadêmico, este pretende realizar algumas

pesquisas e averiguações, particularmente, visando uma análise focal da evolução

humana, do tratamento dispensado e da violência praticada contra a mulher ao

longo dos séculos, da evolução da sistemática de direitos humanos e o fenômeno

denominado Lei Maria da Penha.

Valendo da técnica de documentação indireta, utilizando a pesquisa

documental (leis, sentenças, acórdãos) que pode ser encontrada nos sites dos

tribunais na internet, bem como a pesquisa bibliográfica (livros, jornais, revistas,

artigos) tanto em ambiente físico, como bibliotecas e também em ambiente virtual,

sites jornalísticos e específicos do universo jurídico e sociológico.

O propósito basilar é analisar profundamente as normas constitucionais e de

direitos humanos ao qual o Brasil se submete e avaliar se a Lei Maria da Penha se

norteia por essas normas, bem como obter a melhor percepção sobre a

aplicabilidade e eficácia da mesma.

Para atingir uma análise realmente condizente com a realidade, não bastará

apenas a análise de elementos normativos voltados à defesa e proteção dos direitos

humanos e dos princípios consagrados na Carta Magna de 1988, mas adentrar no

âmago do processo histórico evolutivo não só do status do gênero feminino no

decorrer do tempo, nas sociedades em âmbito mundial, mas principalmente no

Brasil, como também dissecar o conhecimento a respeito das práticas de atos ou

condutas com cunho de violência ou repressão contra as mulheres, além dos

motivos originadores das normas de direitos humanos e sua evolução histórico-

política no contexto interno e externo.

As hipóteses a serem analisadas neste trabalho, cuja conclusão pretende-se

chegar ao fim do mesmo, dizem respeito aos entendimentos existentes na doutrina e

na jurisprudência que tem se surgido desde que a lei em questão entrou em vigor e

avaliar se há viabilidade, aplicabilidade e eficácia, ou não.

A Lei Maria da Penha tem intuito garantidor e protetor do gênero feminino,

oriunda do clamor público pela coibição de atos atentatórios contra a dignidade física

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e mental daquelas que historicamente tem sido subjulgadas e relegadas, o que torna

a missão em questão, um tabu a ser analisado, pois qualquer resultado a que se

chegue, muito provavelmente, será como a abertura de chagas nos brios,

sentimentos, opiniões de muitos que apoiam ou criticam a existência de tal ato

normativo, o que torna imperioso a realização desta pesquisa acadêmica, sem que

haja nenhum tipo de tendência e que se mantenha total imparcialidade até o

momento que seja possível emitir embasadamente qualquer juízo de valor.

É sabido que a violência contra a mulher traz em seu seio, estreita relação

com as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder, que

ainda são regidas pelo machismo patriarcal que sempre existiu na sociedade

brasileira, a qual atribui aos homens o direito a dominar e controlar suas mulheres,

podendo em certos casos, atingir os limites da violência.

A violência contra a mulher já foi objeto de artigos, matérias, livros, filmes,

documentários, teses e outros meios produzidos nas últimas décadas, que mostram

inclusive o grande interesse da sociedade e do público em geral por essa questão

específica. A pretensão aqui é analisar o conteúdo sobre o tema, mas fazer uma

correlação com a legislação em vigor atualmente.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: p. 10

1. HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO SOCIAL DA MULHER p. 13

2. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS CONSTITUCIONAIS p. 21

2.1 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS p. 22

2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS p. 42

3. LEI MARIA DA PENHA: SURGIMENTO E MOTIVAÇÃO p. 44

4. ENTENDIMENTOS E POLÊMICAS p. 46

5. CONCLUSÃO p. 52

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 57

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1. HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO SOCIAL DA MULHER

A figura da violência contra a mulher como denominamos hoje em dia, não é

um fator novo derivado da modernidade, da nova era e dos novos costumes, não é

uma implicação ou um fenômeno social recente.

Desde os primórdios dos tempos, da linha temporal evolutiva e histórica

como conhecemos ou temos registros, a mulher em grande parte desse tempo, foi

tida como o sexo frágil, um elemento de acompanhamento do homem, que precisa

da proteção masculina e que por tal condição necessitaria se submeter ou de certa

forma compensar o homem por isso.

Ao longo dos séculos a mulher foi colocada numa posição à parte, relegada

pela sociedade e elevada não só a condição de companheira, mas de responsável

pelo lar, como procriadora e responsável pela criação e cuidados da casa, da

criação e educação da prole e satisfação de seu homem sob todos os aspectos.

Uma boa visão sobre o tema é a trazida pela psicanalista e escritora Regina

Navarro Lins:

“Durante cinco mil anos, as mulheres sofreram todo tipo de

constrangimento familiar e social. Foram humilhadas, desprezadas,

escravizadas. A elas foram negadas quase todas as experiências do

mundo. Consideradas incompetentes e desinteressantes ficaram

relegadas ao espaço privado. A luta das mulheres para se livrar da

opressão tem sido longa e árdua.” (LINS, 2011, p. 33).

A discriminação e preconceito contra a mulher ao longo da história, gerando

a desigualdade de gênero, é basicamente um processo segregador baseado em

questões biológicas, religiosas e sociais, onde é criada a idéia de supremacia do

gênero masculino sobre o feminino.

“Por exemplo, na Grécia, os mitos contavam que, devido à

curiosidade própria de seu sexo, Pandora tinha aberto a caixa de

todos os males do mundo e, em consequência, as mulheres eram

responsáveis por haver desencadeado todo o tipo de desgraça. A

religião é outro dos discursos de legitimação mais importantes. As

grandes religiões têm justificado ao longo dos tempos os âmbitos e

condutas próprios de cada sexo.” (PULEO, 2004, p. 13).

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A Grécia Antiga diferenciava o gênero masculino e o gênero feminino a tal

ponto, que as mulheres eram praticamente analfabetas, o estudo e educação lhes

eram negados, pois se consolidavam em atividades de cunho exclusivamente

masculino, assim como não possuíam direitos, capacidade jurídica, ou autorização

para sair sozinha de casa, local onde passavam a maior parte dos seus dias. Já aos

homens, estes e muitos outros direitos eram permitidos.

“[...] o homem era polígamo e o soberano inquestionável na

sociedade patriarcal, a qual pode ser descrita como o ‘clube

masculino mais exclusivista de todos os tempos’. Não apenas gozava

de todos os direitos civis e políticos, como também tinha poder

absoluto sobre a mulher.” (VRISSIMTZIS, 2002, p. 38).

A exclusão social, jurídica e política durante todo o Império Romano, nada

mais era do que a afirmação de que as mulheres não eram de forma alguma

consideradas cidadãs do Império, mas apenas um ser cuja função social era sua

destinação a procriação, o que significava que qualquer identificação enquanto

sujeito político, público e sexual lhe era negada, sendo colocada no mesmo patamar

que as crianças e os escravos.

A perspectiva sobre a mulher no contexto judaico-cristão é bem relatada por

Tânia Pinafi, onde:

“Com o advento da cultura judaico-cristã tal situação pouco se

alterou. O Cristianismo retratou a mulher como sendo pecadora e

culpada pelo desterro dos homens do paraíso, devendo por isso

seguir a trindade da obediência, da passividade e da submissão aos

homens, — seres de grande iluminação capazes de dominar os

instintos irrefreáveis das mulheres — como formas de obter sua

salvação. Assim a religião judaico-cristã foi delineando as condutas e

a ‘natureza’ das mulheres e incutindo uma consciência de culpa que

permitiu a manutenção da relação de subserviência e dependência.

Mas não foi só a religião que normatizou o sexo feminino, a medicina

também exerceu seu poder, apregoando até o século XVI a

existência de apenas um corpo canônico e este corpo era macho. Por

essa visão a vagina é vista como um pênis interno, os lábios como o

prepúcio, o útero como o escroto e os ovários como os testículos.”

(PINAFI, 2007).

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A visão de Aristóteles é comentada por Laqueur, segundo a qual, a

percepção da mulher como uma criatura inferior por ser um homem invertido,

perdurou por séculos, conforme se vê:

“O kurios, a força do esperma para gerar uma nova vida, era o

aspecto corpóreo microcósmico da força deliberativa do cidadão, do

seu poder racional superior e do seu direito de governar. O esperma,

em outras palavras, era como que a essência do cidadão. Por outro

lado, Aristóteles usava o adjetivo akuros para descrever a falta de

autoridade política, ou legitimidade, e a falta de capacidade biológica,

incapacidade que para ele definia a mulher. Ela era, como o menino,

em termos políticos e biológicos uma versão impotente do homem,

um arren agonos.” (LAQUEUR, 2001, p. 68).

Segundo Tânia Pinafi: “o modelo de sexo único prevaleceu durante muito

tempo por ser o homem — ser humano nascido com o sexo biológico masculino, ou

seja, pênis — o alvo e construtor do conhecimento humano. Dentro dessa visão

androcêntrica, a mulher consistia em uma categoria vazia.” (PINAFI, 2007).

Com a evolução política, econômica e cultural dos homens, surgiu também a

necessidade de se reanalisar as diferenças anatômicas e fisiológicas constatáveis e

repensar esse modelo de sexo único, onde a mulher seria apenas uma versão

masculina incompleta, piorada ou inferior.

“Assim, o antigo modelo no qual homens e mulheres eram

classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor

vital, ao longo de um eixo cuja causa final era masculina, deu lugar,

no final do século XVIII, a um novo modelo de dimorfismo radical, de

divergência biológica. Uma anatomia e fisiologia de

incomensurabilidade substituiu uma metafísica de hierarquia na

representação da mulher com relação ao homem.” (LAQUEUR, 2001,

p.17).

A inserção social foi diferente para ambos os sexos, prevalecendo até o final

do século XVIII, uma visão meramente naturalista, segundo a qual, caberiam aos

homens o desenvolvimento de atividades mais relevantes como a filosofia, a política

e as artes; enquanto às mulheres caberiam cuidar da prole, bem como tudo aquilo

que diretamente estivesse ligado à subsistência do homem, como: a fiação, a

tecelagem e a alimentação.

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“A rigidez dos deveres relativos dos dois sexos não é e nem pode ser

a mesma. Quando a mulher se queixa a respeito da injusta

desigualdade que o homem impõe, não tem razão; essa

desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos, obra do

preconceito, e sim da razão; cabe a quem a natureza encarregou do

cuidado com os filhos a responsabilidade disso perante o outro.”

(ROUSSEAU apud EGGERT, 2003, p. 03).

A partir da Revolução Francesa começou o processo de reanálise do

contexto relativo a diferenciação de gênero, passando as mulheres a lutar ao lado

dos homens em busca dos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade, acreditando

que estes ideais seriam amplamente estendidos ao seu gênero. Porém, contudo, ao

perceberem que tais conquistas políticas não lhes seriam acessíveis, passaram a

levantar suas vozes e lutaram para conquistar seu espaço.

Um texto de Olympe de Gouges, publicado em 1791, intitulado Os Direitos

da Mulher e da Cidadã traz em baile a questão:

“Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir o meu sexo? [...]

Ele quer comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas

as faculdades intelectuais. [...] Esta Revolução só se realizará quando

todas as mulheres tiverem consciência do seu destino deplorável e

dos direitos que elas perderam na sociedade.” (ALVES, &

PITANGUY, 1985, p. 33-34).

Com a revolução industrial, o crescimento e fortalecimento do capitalismo no

mundo, vieram também grandes mudanças no polo econômico, religioso e social. A

mulher antes reclusa à suas atividades domésticas, como cuidar da prole, alimentar

a família, limpar e conservar o lar e satisfazer o marido, agora deixa o âmbito privado

do lar e passar a atuar na esfera pública, abarrotando as fábricas e se tornando em

uma das principais mãos de obra do meio produtivo industrial.

Justamente por deixar o ambiente meramente doméstico e fazer parte do

processo produtivo industrial como sendo uma das principais engrenagens para seu

funcionamento, que o gênero feminino, passa a renegar incisiva e definitivamente a

perspectiva da sociedade de que estão em um patamar de desigualdade com os

homens, inferiores a estes, articulando-se de todos os meios possíveis para provar

que são tão aptas para ocupar posições de destaque na sociedade quanto os

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homens, fazendo tão bem, ou melhor, as mesmas coisas que eles, dando início

assim a semente geradora do feminismo, que pode ser assim definido:

“Grosso modo, pode-se dizer que ele corresponde à preocupação de

eliminar as discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais

de que a mulher é vítima. Não seria equivocado afirmar que

feminismo é um conjunto de noções que define a relação entre os

sexos como uma relação de assimetria, construída social e

culturalmente, e na qual o feminismo é o lugar e o atributo da

inferioridade.” (GREGORI, 1993, p. 15).

Ao longo dos séculos XIX e XX as transformações começaram as tornar

mais efetivas, as mulheres começaram a questionar o mecanismo social de

diferenciação de gêneros e a concentração de poder construído ao longo dos

tempos, fortalecendo e ampliando o movimento feminista.

“O movimento feminista da década de 60, amparado no advento da

pílula, contribuiu para por fim à discriminação sexual. As escolas

passaram a ser mistas e todas as profissões tornaram-se acessíveis

às mulheres. Agora elas podem escolher entre ser ou não mães. O

controle da fecundidade da mulher pelo homem se tornou coisa do

passado. Mas nem todos aceitaram bem essas mudanças. A reação

esperada ao movimento feminista surgiu na década de 80. A mídia

americana divulgou alarmantes sinais de que as mulheres haviam

perdido muito com sua revolta contra a histórica opressão masculina.

A revista Newsweek informou que o estresse atacava mulheres, que

agora eram executivas de empresas. As mulheres solteiras e

independentes estavam "deprimidas e confusas" devido à “falta de

homens”, disse o New York Times. A Harper’s Bazar, revista de

moda, opinou dizendo que o movimento feminista deu às mulheres

mais perdas do que ganhos. Uma terapeuta americana conclama os

casais a não se separar, mesmo havendo insatisfação na vida a dois;

outra prega em seu livro que as mulheres devem obedecer e ser

submissas a seus maridos; jovens declaram não querer ter profissão,

mas se realizar como donas de casa; cantoras famosas defendem a

virgindade. Acredito, entretanto, que as afirmações absurdas contra

as mulheres citadas acima não sejam um retorno aos antigos valores.

Mesmo porque tanto homens como mulheres possuem o mesmo

potencial para os diversos comportamentos. A supremacia masculina,

que perdurou tanto tempo, envenena todas as relações humanas,

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prejudicando também os homens. Apesar da onda conservadora que

tenta limitar os avanços do Movimento Feminista, ele se consolida

cada vez mais nos países ocidentais. Contudo, o caminho para uma

igualdade entre homens e mulheres ainda é longo, mas as mudanças

são irreversíveis. As novas gerações, filhos e filhas dos participantes

da contestação dos anos 60 e 70, demonstram, de forma inequívoca,

que nada será como antes.” (LINS, 2011, p. 33).

O direito ao voto, por exemplo, foi uma das primeiras e maiores vitórias do

movimento feminista ao longo dos tempos, em 1893, por exemplo, a Nova Zelândia

se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino; em 1918, o voto feminino

passou a vigorar no Reino Unido; em 1931 é a vez de Portugal permitir a

manifestação das mulheres nas urnas.

No Brasil faz pouco mais de meio século que a mulher brasileira passou a

ter o direito de votar. Esse direito foi obtido por meio do Código Eleitoral Provisório,

de 24 de fevereiro de 1932. Porém, a conquista não foi absoluta, pois o código em

questão permitia apenas que mulheres casadas com autorização do marido, viúvas

e solteiras com renda própria pudessem votar.

As limitações estabelecidas quanto ao exercício do voto feminino só foram

abolidas no Código Eleitoral de 1934, porém, o código não tornava obrigatório o

sufrágio feminino, apenas era obrigatório o masculino. O voto feminino, sem

restrições, só passou a ser obrigatório em 1946.

No âmbito da construção das relações familiares, pode-se dizer que o intuito

era fazer com tais relações se eternizassem através do casamento, tanto que não

existia a figura da separação judicial ou do divórcio, ou seja, por mais que uma

relação não fosse satisfatória, o máximo que se poderia fazer era utilizar a figura do

desquite, que se traduzia grosseiramente em uma separação de corpos, pois

efetivamente os laços não se rompiam, fazendo com que homens e mulheres não

pudessem se unir novamente em novo matrimônio.

A discriminação social era tamanha, fazendo com que a mulher desquitada

fosse relegada pela sociedade e tratada muitas vezes como se fosse prostituta.

Além de ser mal vista, qualquer deslize seu era motivo para a perda da guarda dos

filhos.

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Em 1962 é aprovado o Estatuto da Mulher casada (Lei 4.121/62), porém,

apesar de trazer alguns avanços, mantém no seu bojo a visão conservadora e

machista, segundo a qual a mulher continua não tendo autonomia plena para todos

os atos da vida civil.

Melhora significativa em relação a sua condição perante a sociedade, a

mulher só começou mesmo a perceber a partir da Constituição de 1988 e das

alterações legislativas que se deram até os dias de hoje, principalmente em relação

ao Código Civil de 2002, que derrubaram muitos dos paradigmas e preconceitos

existentes e que deixavam a mulher ainda relegada à supremacia masculina, como

ser inferior e submissa.

Nesse período inúmeras conquistas foram realizadas, hoje contando o

gênero feminino com sua participação efetiva e forte em vários segmentos, como

Poder Judiciário, Poder Executivo e Poder Legislativo, nos mais altos cargos. A

legislação não só obriga, como incentiva as mulheres a participar da vida social do

país, estabelecendo até critérios percentuais de participação mínima. O Brasil hoje

conta com centenas de prefeitas, milhares de vereadoras, deputadas estaduais e

federais, governadoras, senadoras e até presidente da república.

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2. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS CONSTITUCIONAIS

Por milhares de anos o homem vem evoluindo, consequentemente a

sociedade a qual faz parte também evolui. Com toda evolução é preciso delimitar as

condutas humanas e regulá-las, com isto, cada sociedade ao longo dos tempos, se

viu obrigada a criar normas reguladoras, leis que tornassem possível a convivência

mútua entre seus membros e estruturação de seus estados nacionais.

Conforme já exposto anteriormente neste trabalho, historicamente a mulher

tem sido oprimida, relegada e inferiorizada perante o homem, tendo virado vítima

constante da sociedade e de todo tipo de violência existencial, física e psíquica.

Contudo, ao analisarmos a história do direito, por mais que cidadania,

direitos civis e outros, lhes fossem negados, podemos verificar em alguns

dispositivos legais, que desde os primórdios dos tempos as mulheres constam dos

itens normativos e são de certa forma até protegidas.

Estes diplomas legais existentes ao longo da história da humanidade, na

grande maioria das vezes, tiveram como motivação ou inspiração, preceitos

teológicos e/ou religiosos que influenciaram o direito até os dias atuais, estando

presente em preceitos de direitos humanos e em constituições. Influíram não só nos

direitos que os sucederam, como no direito moderno.

“Espelhando o seu mundo social e seu tempo, os velhos direitos

tiveram certos pigmentos de universalidade, uma vez que uma

inspiração superior presidiu igualitariamente à elaboração de certas

normas consuetudinárias.

Daí a razão de, muitas vezes, encontrarmo-nos amistosamente com

Moisés, Hamurabi, Manu, os Decênviros, Maomé, os bispos ingleses

e João Sem Terra, os deputados franceses de 1789 e Napoleão

Bonaparte, entre os artigos e parágrafos dos códigos

contemporâneos.” (ALTAVILA, 2006, p. 15 e 16).

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2.1 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A lei mosaica em Deuteronômio capítulo 1, versículo 16 e 17, já fazia uma

ressalva quanto ao tratamento isonômico a ser dispensado entre nacionais e

estrangeiros, vedando qualquer forma de distinção ou privilégio.

“E no mesmo tempo mandei a vossos juízes, dizendo: Ouvi a causa

entre vossos irmãos, e julgai justamente entre o homem e seu irmão,

e entre o estrangeiro que está com ele.” (Bíblia Sagrada,

Deuteronômio 1:16).

“Não discriminareis as pessoas em juízo; ouvireis assim o pequeno

como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de

Deus; porém a causa que vos for difícil fareis vir a mim, e eu a

ouvirei.” (Bíblia Sagrada, Deuteronômio 1:17).

“Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas, nem receberás

peitas; porquanto a peita cega os olhos dos sábios, e perverte as

palavras dos justos.” (Bíblia Sagrada, Deuteronômio 16:19).

No que tange a mulher, podemos verificar que acusações relativas à má

conduta da mesma, se constatadas como falsas, gerava ao homem punições físicas

e pecuniárias.

“Quando um homem tomar mulher e, depois de coabitar com ela, a

desprezar,

E lhe imputar coisas escandalosas, e contra ela divulgar má fama,

dizendo: Tomei esta mulher, e me cheguei a ela, porém não a achei

virgem;

Então o pai da moça e sua mãe tomarão os sinais da virgindade da

moça, e levá-los-ão aos anciãos da cidade, à porta;

E o pai da moça dirá aos anciãos: Eu dei minha filha por mulher a

este homem, porém ele a despreza;

E eis que lhe imputou coisas escandalosas, dizendo: Não achei

virgem a tua filha; porém eis aqui os sinais da virgindade de minha

filha. E estenderão a roupa diante dos anciãos da cidade.

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Então os anciãos da mesma cidade tomarão aquele homem, e o

castigarão.

E o multarão em cem siclos de prata, e os darão ao pai da moça;

porquanto divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. E lhe será

por mulher, em todos os seus dias não a poderá despedir.” (Bíblia

Sagrada, Deuteronômio 22:13-19).

Já naquele tempo a lei maior já se preocupava com a integridade sexual da

mulher, condenando a morte o homem que praticasse sexo forçado com mulher

casada, e condenando ao casamento, indenização à família e proibição de vê-la

despida, no caso de relação sexual não consentida com mulher solteira.

“E se algum homem no campo achar uma moça desposada, e o

homem a forçar, e se deitar com ela, então morrerá só o homem que

se deitou com ela;

Porém à moça não farás nada. A moça não tem culpa de morte;

porque, como o homem que se levanta contra o seu próximo, e lhe

tira a vida, assim é este caso.

Pois a achou no campo; a moça desposada gritou, e não houve quem

a livrasse.

Quando um homem achar uma moça virgem, que não for desposada,

e pegar nela, e se deitar com ela, e forem apanhados,

Então o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça cinqüenta

siclos de prata; e porquanto a humilhou, lhe será por mulher; não a

poderá despedir em todos os seus dias.” (Bíblia Sagrada,

Deuteronômio 22:25-29).

Ao tratar do que na época seria comparável com normas de direito

internacional, há a previsão de proteção à mulher viúva em caso de guerras e

invasões, quando algumas circunstâncias deveriam ser observadas.

“Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão; nem tomarás em

penhor a roupa da viúva.” (Bíblia Sagrada, Deuteronômio 24:17).

“Quando sacudires a tua oliveira, não voltarás para colher o fruto dos

ramos; para o estrangeiro, para o órfão, e para a viúva será.” (Bíblia

Sagrada, Deuteronômio 24:20).

“Quando vindimares a tua vinha, não voltarás para rebuscá-la; para o

estrangeiro, para o órfão, e para a viúva será.” (Bíblia Sagrada,

Deuteronômio 24:21).

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No que tange as relações de trabalho existentes na época, podemos

destacar elemento normativo protetor da mulher e do homem em pé de igualdade,

sem quaisquer vestígios de favorecimento e preconceito.

“Quando teu irmão hebreu ou irmã hebréia se vender a ti, seis anos te

servirá, mas no sétimo ano o deixarás ir livre.” (Bíblia Sagrada,

Deuteronômio 15:12).

Outra base normativa que também influenciou o universo jurídico que

conhecemos, foi o Código de Hamurabi, que inclusive teve influência presente na

legislação vigente no período colonial Brasileiro, donde, além de Portugal, se

aplicavam também as disposições do Quinto Livro das Ordenações, título LXIII,

instituído por D. João V, nosso então Rei.

Tendo nascido por volta de 1810 a.C. e falecido em 1750 a.C., Hamurabi foi

o sexto rei da primeira dinastia babilônica. Hamurabi segundo até onde se tem

conhecimento, foi um grande respeitador do ser humano, possuidor de uma grande

visão de democracia e de direitos humanos.

“Hammurabi conseguiu manter-se no poder graças à sua tendência

democrática de considerar os demais seres humanos.” (Wikipedia,

2011).

O código de Hamurabi assim como diversas codificações legais existentes

ao longo da história da humanidade, apresentaram pontos positivos e pontos

negativos, alguns cujo conteúdo foi objeto de inspiração para elementos normativos

atuais.

Nos dois artigos abaixo, podemos ver a proteção ao bem único e a

preservação da integridade da esposa e da(s) filha(s). O bem único é comparável ao

que hoje chamamos de bem de família, e item essencial à manutenção da mesma,

porém, havendo outros bens que não sejam os essenciais para a mantença, estes

poderão ser utilizados como pagamento do débito.

“38. Um capitão, homem ou alguém sujeito a despejo não pode

responsabilizar pela manutenção do campo, jardim e casa a sua

esposa ou filha, nem pode usar este bem para pagar um débito.

39. Ele pode, entretanto, assinalar um campo, jardim ou casa que

comprou e que mantém como sua propriedade, para sua esposa ou

filha e dar-lhes como débito.” (Código de Hamurabi).

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A preocupação com a reputação da mulher e seu bem estar é algo que não

escapou a Hamurabi em sua codificação, para tanto criou um dispositivo com intuito

único de preservar, desencorajar e punir aquele que cometesse qualquer atentado

injurioso contra a honra da mulher.

“127. Se alguém difama uma mulher consagrada ou a mulher de um

homem livre e não pode provar se deverá arrastar esse homem

perante o juiz e tosquiar-lhe a fronte.” (Código de Hamurabi).

Outra das preocupações de Hamurabi era a regular as instituições do

casamento e sucessão, além de proteger a entidade familiar, nos artigos seguintes

podemos ver a dualidade existente, onde por um lado protege a mulher, por outro

ainda a deixa a mercê de paradigmas machistas oriundos da sociedade patriarcal da

época.

“128. Se um homem tomar uma mulher como esposa, mas não tiver

relações com ela, esta mulher não será considerada esposa dele.

129. Se a esposa de alguém for surpreendida em flagrante com outro

homem, ambos devem ser amarrados e jogados dentro d'água, mas o

marido pode perdoar a sua esposa, assim como o rei perdoa a seus

escravos.

130. Se um homem violar a esposa (prometida ou "esposa-criança")

de outro homem, o violador deverá ser condenado à morte, mas a

esposa estará isenta de qualquer culpa.

131. Se um homem acusar a esposa de outrem, mas ela não for

surpreendida com outro homem, ela deve fazer um juramento e então

voltar para casa.

132. Se o "dedo for apontado" para a esposa de um homem por

causa de outro homem, e ela não for pega dormindo com o outro

homem, ela deve pular no rio por seu marido.

133. Se um homem for tomado como prisioneiro de guerra, e houver

sustento em sua casa, mas mesmo assim sua esposa deixar a casa

por outra, esta mulher deverá ser judicialmente condenada e atirada

na água.

134. Se um homem for feito prisioneiro de guerra e não houver quem

sustente sua esposa, ela deverá ir para outra casa, e estará isenta de

toda e qualquer culpa.

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135. Se um homem for feito prisioneiro de guerra e não houver quem

sustente sua esposa, ela deverá ir para outra casa e criar seus filhos.

Se mais tarde o marido retornar e voltar à casa, então a esposa

deverá retornar ao marido, assim como as crianças devem seguir seu

pai.

136. Se um homem fugir de sua casa, então sua esposa deve ir para

outra casa. Se este homem voltar e desejar ter sua esposa de volta, a

esposa não precisa retornar a seu marido, já que ele tinha fugido.

137. Se um homem quiser se separar de uma mulher ou esposa que

lhe deu filhos, então ele deve devolver a ela o dote e parte do

usufruto do campo, jardim e casa, para que ela possa criar os filhos.

Quando ela tiver criado os filhos, uma parte do que foi dado aos filhos

deve ser dada a ela, e esta parte deve ser igual a de um filho. A

esposa poderá então se casar com quem quiser.

138. Se um homem quiser se separar de sua esposa que não lhe deu

filhos, ele deve dar a ela a quantia do preço que pagou por ela e o

dote que ela trouxe da casa de seu pai, e deixá-la partir.

139. Se não tiver havido preço de compra, ele deverá dar a ela uma

mina em ouro como presente de libertação.

140. Se ele for um homem livre, deverá dar a ela 1/3 de uma mina em

ouro.

141. Se a esposa de um homem, que vive em sua casa, desejar

partir, mas incorrer em débito e tentar arruinar a casa deste homem,

negligenciando-o, esta mulher deverá ser condenada. Se seu marido

oferecer-lhe a liberdade, ela poderá partir, mas ele poderá nada lhe

dar em troca. Se o marido não quiser dar a liberdade a esta mulher,

esta deverá permanecer como criada na casa de seu marido.

142. Se uma mulher brigar com seu marido e disser "Você não é

compatível comigo", as razões do desagrado dela para com ele

devem ser apresentadas. Caso não haja erro de conduta no seu

comportamento, ela deverá ser eximida de qualquer culpa. Se o

marido for negligente, a mulher será eximida de qualquer culpa, e o

dote desta mulher deverá ser devolvido, podendo ela voltar para casa

de seu pai.

143. Se ela não for inocente, e deixar seu marido e arruinar sua casa,

negligenciando seu marido, esta mulher deverá ser jogada na água.

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144. Se um homem tomar uma esposa e esta der ao seu marido uma

criada, esta criada tiver filhos dele, e este homem desejar tomar outra

esposa, isto não deverá ser permitido, e que ele não possa tomar

uma segunda esposa.

145. Se um homem tomar uma esposa e esta não lhe der filhos, e a

esposa não quiser que o marido tenha outra esposa, se ele trouxer

uma segunda esposa para a casa, a segunda esposa não deve ter o

mesmo nível de igualdade do que a primeira.

146. Se um homem tomar uma esposa e ela der a este homem uma

criada que tiver filhos dele, então a criada assume posição de

igualdade com a esposa. Porque a criada deu filhos a seu patrão, ele

não pode vendê-la por dinheiro, mas ele pode mantê-la como

escrava, entre os criados da casa.

147. Se ela não tiver dado filhos a este homem, então sua patroa

poderá vendê-la por dinheiro.

148. Se um homem tomar uma esposa, e ela adoecer, se ele então

desejar tomar uma segunda esposa, ele não deverá abandonar sua

primeira esposa que foi atacada por uma doença, devendo mantê-la

em casa e sustentá-la na casa que construiu para ela enquanto esta

mulher viver.

149. Se esta mulher não desejar permanecer na casa de seu marido,

então ele deve compensá-la pelo dote que ela trouxe consigo da casa

de seu pai, e então ela poderá ir-se embora.

150. Se um homem der à sua esposa um campo, jardim e casa e um

dote, e se após a morte deste homem os filhos nada exigirem, então

a mãe pode deixar os bens para os filhos que preferir, não precisando

deixar nada para os irmãos do falecido.

151. Se uma mulher que viveu na casa de um homem fizer um

acordo com seu marido que nenhum credor pode prendê-la, ela deve

possuir um documento atestando este fato. Se tal homem incorrer em

débito, o credor não poderá culpar a mulher por tal fato. Mas se a

mulher, antes de entrar na casa deste homem, tenha contraído um

débito, seu credor não pode prender o marido por tal fato.

152. Se após a mulher ter entrado na casa deste homem, ambos

contraírem um débito, ambos devem pagar ao mercador.

153. Se a esposa de um homem tiver matado por outro homem a

esposa de outrém, os dois deverão ser condenados à morte.

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154. Se um homem for culpado de incesto com sua filha, ele deverá

ser exilado.

155. Se um homem prometer uma donzela a seu filho e seu filho tiver

relações com ela, mas o pai também tiver relações com a moça,

então o pai deve ser preso e ser atirado na água para se afogar.

156. Se um homem prometer uma donzela a seu filho deflorar a

moça, sem que seu filho a conheça, ele deverá pagar a ela ½ mina

em ouro, e compensá-la pelo que fez à casa do pai dela. Ela poderá

casar com o homem de seu coração.

157. Se alguém for culpado de incesto com sua mãe, ambos deverão

ser queimados.

158. Se alguém for surpreendido por seu pai com a esposa de seu

chefe, este alguém deverá ser expulso da casa de seu pai.

159. Se alguém trouxer uma amante para dentro da casa de seu

sogro, e, tendo pago por sua esposa o preço de compra, disser para

o sogro "Não quero mais sua filha", o pai da moça deverá ficar com

todos os bens que este alguém tenha trazido consigo.

160. Se alguém trouxer uma amante para dentro da casa de seu

sogro, tendo pago por sua esposa o preço de compra, e o pai da

moça disser a ele "Eu não te darei minha filha", o homem terá de

devolver a moça a seu pai.

161. Se um homem trouxer uma amante para a casa de seu sogro e

tiver pago por sua esposa o preço de compra, e um amigo dele o

enganar com a moça, e então seu sogro disser ao jovem esposo

"Você não deve se casar com minha filha", a este jovem deve ser

dado de volta tudo o que trouxe consigo, sendo que o amigo dele não

poderá se casar com a moça.

162. Se um homem casar com uma mulher e esta lhe der filhos,

quando esta mulher falecer o pai dela não terá direito ao dote, pois tal

dote pertencerá aos filhos dela.

163. Se um homem casar com uma mulher, e esta não lhe der filhos,

quando esta mulher morrer, se o preço de compra que ele pagou por

sua esposa for devolvido pelo seu sogro, o marido não terá direito ao

dote desta mulher, pois ela pertencerá à casa do pai dela.

164. Se seu sogro não devolver a este homem a quantia do preço da

compra de sua esposa, ele deverá subtrair do dote a quantia relativa

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ao preço de noiva, e então pagar o remanescente ao pai da esposa

falecida.

165. Se um homem der a um dos filhos que prefere um campo, um

jardim e uma casa, quando mais tarde o pai morrer e os filhos

dividirem sua propriedade, eles devem dar em primeiro lugar o

presente do pai ao irmão preferido por este, dividindo o restante da

propriedade paterna entre si.

166. Se um homem tomar esposas para cada um de seus filhos,

excetuando seu filho menor, quando este homem morrer e seus filhos

dividirem seus bens, devem deixar de lado uma parte do dinheiro

para o preço de compra da esposa para o irmão menor.

167. Se um homem casar com uma mulher e ela der-lhe filhos, e se

sua mulher morrer e ele tomar outra esposa que também lhe dê

filhos, quando esse homem morrer, os filhos devem repartir a

propriedade igualmente entre todos eles.

[...]

170. Se uma esposa der filhos a um homem e a criada dele der-lhe

filhos também, e o pai reconhecer os filhos da criada enquanto vivo,

quando este pai falecer os filhos da esposa e da criada devem dividir

os bens paternos entre si. Os filhos da esposa são quem deve fazer a

divisão e efetuar as escolhas.

171. Se, entretanto, este pai não tiver reconhecido seus filhos com a

criada, e vier a falecer, os filhos da criada não deverão compartilhar

os bens paternos com os filhos da esposa, mas a eles e à sua mãe

será garantida a liberdade. Os filhos da esposa não terão o direito de

escravizar os filhos da criada. A esposa deve tomar seu dote (dado

por seu pai) e os presentes que seu marido lhe deu, podendo viver na

casa do marido por toda sua vida, desde que use a casa e não a

venda. O que a esposa deixar, deve pertencer a seus filhos e filhas.

172. Se seu marido não lhe deu presentes, a esposa deverá receber

uma compensação como parte da herança do marido, igual a parte

de um filho. Se os filhos dela forem maus e a forçarem para fora de

casa, o juiz deve examinar o caso, e se os filhos estiverem em falta, a

mulher não deverá deixar a casa de seu marido. Se ela desejar deixar

a casa, ela deve deixar a seus filhos os presentes que recebeu do

falecido marido, mas poderá levar seu dote consigo. Então ela poderá

casar com o homem de seu coração.

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173. Se esta mulher der filhos ao seu segundo marido, quando ela

morrer os filhos do casamento anterior e os filhos do casamento atual

devem dividir o dote de sua mãe entre si.

174. Se ela não tiver filhos do segundo marido, os filhos do primeiro

marido deverão herdar o dote.

175. Se um escravo, do Estado ou de um homem livre, casar com a

filha de um homem livre e nascerem filhos, o dono do escravo não

terá o direito de escravizar os filhos e filhas deste.

176. Se, entretanto, um escravo do Estado ou de um homem livre,

casar com a filha de um homem livre, e após o casamento ela trouxer

um dote da casa de seu pai, e então os dois gozarem deste dote,

fundando um lar e acumulando meios, quando o escravo morrer a

esposa deve tomar o dote para si, e tudo o que ela e seu marido

trabalharam para obter deverá ser dividido em duas partes: uma para

o dono do escravo e a outra para seus filhos.

177. Se uma viúva, cujos filhos forem pequenos, desejar entrar para

uma outra casa (casar-se novamente), ela não deverá fazer isto sem

o conhecimento do juiz. Se ela entrar numa outra casa, o juiz deve

examinar o estado da casa de seu primeiro marido. Então a casa do

primeiro marido será dada em confiança ao segundo marido e a viúva

será a sua administradora. Um registro deve ser feito do ocorrido.

Esta mulher deverá manter a casa em ordem, criar as crianças que

houverem e não vender o que estiver dentro da casa. Aquele que

comprar os utensílios dos filhos de uma viúva deverá perder seu

dinheiro, e os bens serão restituídos a seus donos.

178. Se não for dito que uma mulher devotada ou uma sacerdotisa, a

quem o pai tenha dado um dote e um bem, pode dispor desse bem

como quiser, ou que tem direito de fazer o que bem entender com o

bem, quando seu pai morrer os irmãos dela devem manter para esta

moça o campo e o jardim, dando a ela cereais, óleo e leite, de acordo

com a porção que lhe for devida. Se os irmãos dela não lhe derem

cereais, óleo e leite de acordo com a cota dela, então o campo e o

jardim devem dar o sustento a esta moça. Ela deve ter o usufruto do

campo e do jardim e de tudo o que seu pai lhe deixou, ao longo de

toda vida, mas ela não pode vender suas propriedades para outros.

Sua posição de herança deve pertencer a seus irmãos.

179. Se uma "irmã de um deus" ou sacerdotisa receber um presente

de seu pai, e estiver explicitamente escrito que ela pode dispor deste

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bem conforme seus desejos quando o pai falecer, então ela poderá

deixar a propriedade para quem ela quiser. Os irmãos desta moça

não terão direito de levantar queixa alguma a respeito dos direitos da

moça.

180. Se um pai der um presente para sua filha - que possa casar ou

não (uma sacerdotisa) - quando ele morrer ela deverá receber sua

porção dos bens do pai, e gozar de seu usufruto enquanto viver. Sua

propriedade, porém, pertence aos irmãos dela.

181. Se um pai der sua filha aos deuses como donzela do templo, ou

virgem do templo, e não lhe der presente algum, quando este pai

morrer a moça deve receber um terço de sua parte da herança de

seu pai e gozar o usufruto enquanto viver. Mas sua propriedade

pertence a seus irmãos.

182. Se um pai der sua filha como esposa de Marduk da Babilônia e

não lhe der presente algum, quando o pai desta moça morrer ela

deverá receber um terço de sua parte na herança, mas Marduk pode

deixar a propriedade dela para quem ela o desejar.

183. Se um homem der à sua filha com uma concubina um dote, um

marido e um lar, quando este pai morrer a moça não deverá receber

bem algum das posses de seu pai.

184. Se um homem não der dote à sua filha com uma concubina,

quando este pai morrer seu irmão deverá dar a ela um dote, de

acordo com as posses de seu pai, assegurando um marido para esta

moça.” (Código de Hamurabi).

Hamurabi ao regular a seara criminal, disciplina várias situações contra

delitos, lesões corporais e outros crimes, além de arbitrar indenizações e

composições que visam coibir violência e proteger a mulher.

“209. Se um homem bater numa mulher livre e ela perder o filho que

estiver esperando, ele deverá pagar 10 shekels pela perda dela.

210. Se a mulher morrer, a filha deste homem deve ser condenada à

morte.

211. Se uma mulher de classe livre perder seu bebê por terem batido

nela, a pessoa que bateu deverá pagar cinco shekels em dinheiro à

mulher.

212. Se esta mulher morrer, ele deverá pagar 1/2 mina.

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213. Se ele bater na criada de um homem, e ela perder seu bebê, ele

deverá pagar 2 shekels em dinheiro.

214. Se esta criada morrer, ele deverá pagar 1/3 de mina.” (Código

de Hamurabi).

Outro elemento que merece ser observado é o Código de Manu, pois ao

contrário de Hamurabi, tolerância e preocupação com a mulher não era um elemento

fundamental para a sociedade Hindu, cuja estrutura, além de patriarcal, é baseada

no sistema de castas, onde há seres superiores e seres inferiores de acordo com

suas tradições e convicções teológicas.

Além dessa diferenciação por castas e a prática de discriminação social em

larga escala, a discriminação de gênero era algo igualmente praticado e com muita

ênfase.

Como não poderia deixar de ser, a mulher se encontrava em extrema

desvantagem, numa condição de completa passividade, dentro desse Código. Ela

era considerada uma escrava dentro da sociedade e reprimida principalmente por

esses artigos:

“Art. 413º Uma esposa, um filho e um escravo são declarados pela lei

nada possuírem por si mesmos; tudo que eles podem adquirir é a

propriedade daquele de quem dependem.” (Código de Manu).

“Art. 415 - Uma mulher está sob a guarda de seu pai durante a

infância, sob a guarda de seu marido durante a juventude, sob a

guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais conduzir-

se à sua vontade.” (ALTAVILA, 2006, p. 74).

Um dos pontos mais rígidos do Código de Manu era referente a os crimes de

adultério, onde se tinha tremenda preocupação com que a mulher fosse alvo ou

praticante de más condutas sexuais, pois segundo preceitos, é do adultério que

nasce no mundo a mistura de classes.

“O capítulo mais apurado e mais minucioso é o Do Adultério

ampliando-se por 69 artigos, por vezes repetidos. O zelo por esse

aspecto da vida hindu deixa-nos distante deste dilema: ou a previsão

social era sincera, ou as mulheres da Índia antiga não eram muito

sérias. Propendemos para a primeira asserção, pois o artigo inicial

mandava que o rei punisse o sedutor com “mutilações infamantes” e,

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em seguida banisse do reino “aqueles que se comprazem em seduzir

as mulheres dos outros”. (ALTAVILA, 2006, p. 73).

“Art. 353º Aquele que fala à mulher do outro em um lugar de

peregrinação, em uma floresta ou em um bosque, ou na confluência

de dois rios, isto é, em um lugar afastado, incorre na pena de

adultério.

Art. 354º Ter pequenos cuidados com uma mulher, mandar-lhe flores

e perfumes, gracejar com ela, tocar nos seus enfeites ou nas suas

vestes, sentar-se com ela no mesmo leito, são considerados pelos

sábios, como as provas de um adultério.

Art. 355º Tocar o seio de uma mulher casada ou outras partes do seu

corpo de uma maneira indecente, deixar-se tocar assim por ela, são

ações resultantes do adultério, com consentimento mútuo.” (Código

de Manu).

Algumas disposições contidas em Manu, sob a nossa ótica ocidental e

contemporânea, poderiam parecer até piadas, de tão absurdas, não fosse o

pensamento de que tais dispositivos causaram tantos transtornos a uma sociedade,

com tantas práticas cruéis e discriminadoras.

“Art. 361º Aquele que faz violência a uma rapariga, sofrerá logo uma

pena corporal; mas, se ele goza dessa rapariga porque nisso ela

consente, e se ele é da mesma classe que ela, não merece castigo.

Art. 362º Se uma rapariga tem amor a um homem de classe superior

à sua, o rei não lhe deve fazer pagar a menor multa; mas se ela se

liga a um homem de nascimento inferior, deve ser encerrada em sua

casa, sob boa guarda.

Art. 363º Um homem de baixa origem que faz promessas a uma

senhorita de alto nascimento merece pena corporal; se faz a corte a

uma rapariga da mesma classe que ele, dê a gratificação do costume

e despose a rapariga, se o pai nisto consente.

Art. 364º O homem que, por orgulho, macula violentamente uma

rapariga pelo contato de seu dedo, terá dois dedos cortados

imediatamente, e merece, além disso, uma multa de seiscentos

panas.

Art. 365º Quando a rapariga tem consentido nisso, aquele que a

poluiu dessa maneira, se é da mesma classe, não deve ter os dedos

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cortados; mas é preciso fazer-lhe pagar duzentos panas de multa

para impedi-lo de reincidir.

Art. 366º Se uma senhorita macula outra pelo contato do dedo, que

ela seja condenada a duzentos panas de multa; que ela pague ao pai

da rapariga o duplo do presente de núpcias e receba dez chicotadas.

Art. 367º Mas, uma mulher que atenta da mesma maneira contra o

pudor de uma rapariga, deve ter imediatamente a cabeça raspada e

os dedos cortados, segundo as circunstâncias e deve ser levada

pelas ruas, montada em um burro.

Art. 368º Se uma mulher, orgulhosa de sua família e de suas

qualidades, é infiel ao seu esposo, que o rei a faça devorar por cães

em um lugar bastante frequentado.

Art. 369º Que ele condene o adúltero seu cúmplice a ser queimado

sobre um leito de ferro aquecido ao rubro e que os executores

alimentem incessantemente o fogo com lenha até que o perverso seja

carbonizado.

[...]

Art. 372º Por adultério com uma mulher da classe dos Brâmanes, que

era guardada, um Vaisya será privado de todo seu bem depois de

uma detenção de um ano; um Ksatriya será condenado a mil panas

de multa e terá a cabeça raspada e regada com urina de burro.

Art. 373º Mas, se um Vaisya ou um Ksatriya tem relações culpadas

com uma Brâmane não guardada por seu marido, que o rei faça

pagar ao Vaisya quinhentos panas de multa e mil ao Ksatriya.

Art. 374º Se todos dois cometem adultério com uma Brâmane,

guardada por seu esposo, e dotada de qualidade estimável, devem

ser punidos como Sudras ou queimados com fogo de ervas de

caniço.

Art. 375º Um Brâmane deve ser condenado a mil panas de multa, se

ele goza, à força, de uma Brâmane vigiada; só deve pagar

quinhentos, se ela se prestou aos seus serviços.

Art. 376º Uma tonsura ignominiosa é imposta em lugar da pena

capital a um Brâmane adúltero, nos casos em que a punição das

outras classes seria a morte.

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Art. 377º Que o rei se abstenha de matar um Brâmane, ainda que ele

estivesse cometido todos os crimes possíveis; que ele o expulse do

reino, deixando-lhe todos os bens, e sem lhe fazer o menor mal.

Art. 378º Não há no mundo maior iniquidade que o assassinato de um

Brâmane; eis porque o rei não deve mesmo conceber a idéia de

condenar à morte um Brâmane.

Art. 379º Um Vaisya, tendo relações criminosas com uma mulher

guardada, pertencente à classe militar e um Ksatriya, com uma

mulher da classe comerciante, devem sofrer todos dois a mesma

pena que no caso de uma Brâmane não guardada.

Art. 380º Um Brâmane deve ser condenado a pagar mil panas, se ele

tem comércio criminoso com mulheres vigiadas dessas duas classes;

por adultério com mulher da classe servil, um Ksatriya e um Vaisya

sofrerão uma multa de mil panas.

Art. 381º Por adultério com uma mulher Ksatriya não guardada, a

multa de um Vaisya e de quinhentos panas; um Ksatriya deve ter a

cabeça raspada e regada com urina de burro ou pagar a multa.”

(Código de Manu).

Mais um estatuto legal, e não menos importante, é a lei das XII Tábuas, cuja

análise nos ajuda a compreender melhor os avanços e transformações de

pensamento das sociedades que antecederam as atuais.

Jayme Altavila afirma que a lei das XII Tábuas, foi o mais sucinto e mais

autoritário compêndio legal já produzido até os dias de hoje. (ALTAVILA, 2006, p.

83).

As XII Tábuas significou um avanço social, pois a partir de então, iniciou-se

um processo de produção legislativa assemelhada ao praticado atualmente nas

culturas ocidentais e em algumas orientais, onde tem-se preferido manter um

aspecto laico, afastado ou não fundamentado em dogmas religiosos.

De certo também representou um avanço, no sentido de que seu advento foi

significativo no que tange a proteção, não só das classes mais abastadas, mas

também das mais humildes e trabalhadoras.

“Entretanto, o direito havia perdido o seu mistério; deixara de ser

frustradamente sagrado; saíra da escuridão conveniente dos templos;

poderia ser agora consultado e invocado por patrícios e plebeus [...].”

(ALTAVILA, 2006, p. 85).

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Alguns dispositivos são curiosamente incumbidos de proteger a mulher e

outros de subjugá-las ao homem, apesar disto muitos dispositivos foram inclusive

aproveitados pelos legisladores romanos do ano 300 dc. Abaixo podemos vislumbrar

a proteção à herança, preservando a mulher para que não fique desamparada em

questões sucessórias e ao mesmo tempo a possibilidade de punição pelos irmãos e

marido em caso de adultério, além de punição em caso embriaguez.

“XV – Compartilhe a mulher, com o marido, das coisas existentes no

seu lar.

XVI – A filha não é somente herdeira do pai, mas também do marido.

XVII – É lícito ao marido e aos irmãos castigar convenientemente a

mulher adúltera.

XVIII – Se uma mulher se embriaga em sua casa, será punida como

se tivesse sido encontrada em adultério.” (ALTAVILA, 2006, p. 86-87).

Um dos compêndios legais relevantes de ser visto é o Alcorão, pois além de

ser considerado polêmico e de certa forma machista, é um instrumento normativo

baseado na religião, crença e costumes islâmicos, ou seja, não ocidentalizado e sem

vínculos com as tradições e costumes até então dominantes.

O Alcorão cuja inspiração se deu pelo profeta Maomé, foi tida como norma

máxima, seguida como base por muitos povos e tribos árabes, dispensando quase

sempre leis ou normas complementares e formais.

Seu arcabouço foi constituído de preceitos religiosos rígidos e seguidos à

risca pelo povo mulçumano, porém, apesar de tal rigidez, sob alguns aspectos

demonstrava um caráter mais “humano”, pois apesar de machista como boa parte

dos compêndios legais existentes em sociedades e povos passados, buscou

resguardar à mulher algumas proteções, bem como a aplicação de penalidades

iguais ao homem em algumas circunstâncias, evidenciando um relativo avanço na

forma como a sociedade patriarcal tratava questões pontuais das suas relações

sociais e cotidianas, consolidando ainda que remotamente a existência e aplicação

do princípio da isonomia.

Altavila cita parte da norma, segundo a qual:

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“2 – Infligireis ao homem e à mulher adúlteros cem chicotadas a cada

um. Que a compaixão não vos impeça no cumprimento deste

preceito, se credes em Deus e no derradeiro dia. Que este suplício se

realize em presença de certo número de crentes”. (ALTAVILA, 2006,

p. 128).

Outro ponto de interessante observação diz respeito ao divórcio, segundo o

qual:

“...

- A mulher repudiada será despedida generosamente pelo marido.

- As mães repudiadas terão direito ao amamento dos filhos pelo

tempo de 2 anos.

- A mulher repudiada antes da coabitação terá direito a metade do

dote estipulado previamente.

- As mulheres repudiadas têm direito a um “sustento decente”.

(ALTAVILA, 2006, p. 133).

Como podemos ver, há uma evolução histórica das legislações pretéritas até

o advento do Alcorão, pois além de uma aplicação igualitária de penalidades, passa

também a garantir direitos, bem como demonstrar uma preocupação com a questão

patrimonial e de subsistência da mulher.

Vislumbramos diversos pontos de algumas das principais compilações

legais, históricas, que serviram como marco basilar e comparativo dos momentos de

relevância ímpar na história da humanidade, conseguindo inclusive captar a

alternância entre os momentos no que tange a preocupação com alguns elementos

significativos que indiciam a presença, evolução ou regressão de conceitos

normativos protetivos não só ao cidadão genericamente, como a própria mulher.

Não cabe aqui analisar todos os padrões normativos da história da

humanidade, mas sim fazer pequenas menções a alguns dispositivos mais

relevantes, para que se compreenda que em toda a história da humanidade e das

sociedades civilizadas, houve avanços e regressões legislativas e protetivas, porém,

que de forma acentuada ou suave, acabaram por influenciar e inspirar a evolução

legislativa em diversos povos e sociedades.

Compete agora fazer um apanhado de dados relativos a um período

pretérito, mas relativamente recente sobre os padrões históricos.

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Ambientando-nos no período transitório entre a idade negra ou idade das

trevas e a idade média, vimos as transformação e evolução das sociedades

ocidentais, onde o patriarcado feudal acabou enfraquecido e fez ressurgir o poderio

das monarquias, que agregaram diversos feudos e sob uma só liderança

começaram a dar esboço aos primeiros estados nacionais, cuja rotina e as relações

começaram a ter que ser reguladas de um jeito mais uniforme, não apenas por uma

vontade momentânea do senhor ou do soberano.

Uma das primeiras tentativas de compilações legais desse período a que se

tem notícia foi a MAGNA CARTA, que surgiu com um movimento oriundo do

desgosto inglês contra as forças dos invasores e cujo ápice se deu com a tentativa

usurpadora de João Sem Terra.

Altavila opina dizendo que:

“Mas, recuperando o fio inicial, devemos considerar que o diploma

político inglês de 1215 deve ser considerado em suas proporções

formais, sem um desnecessário ânimo de entusiasmos, porém, como

uma justa consagração equitativa”. (ALTAVILA, 2006, p. 149).

O advento da Carta Magna representou a limitação de excessos pela

monarquia, ajudou a regular e garantir questões civis, possessórias, limitou o poder

eclesiástico e deu brecha para o surgimento do júri e para a Carta de Armas que

exigia de cada indivíduo uma parcela de responsabilidade pelo Estado Inglês,

abrindo precedentes que concederam muitos direitos aos cidadãos, inclusive as

mulheres.

Séculos mais tarde, mais precisamente em 1789, foi a vez da Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo bojo inspirado no iluminismo e na

revolução francesa, representou um marco no reconhecimento de direitos e

princípios protetivos do cidadão, seja homem ou mulher, ou seja, alargou o campo

dos direitos humanos e definiu os direitos econômicos e sociais.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão sintetizou em dezessete

artigos e um preâmbulo, os ideais libertários e liberais da primeira fase da Revolução

Francesa. São proclamados pela primeira vez, as liberdades e os direitos

fundamentais do homem moderno de forma ecumênica, visando abarcar toda a

humanidade, independente do sexo. Ela serviu inclusive de inspiração para as

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constituições francesas pretéritas, bem como para a atual. Também foi a base da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas.

Em 1945, através da Carta das Nações Unidas, os povos exprimiram a sua

motivação em resguardar as gerações seguintes das mazelas da guerra, além de

proteger os direitos fundamentais do Homem, a dignidade e valor da pessoa

humana, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como das nações,

grandes e pequenas, promovendo o progresso social e instaurando melhores

condições de vida.

O momento que teve mais importância na história dos Direitos Humanos, foi

a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamar em 1948, a Declaração Universal

dos Direitos Humanos, depois do mundo tomar consciência das tragédias e

barbaridades conhecidas durante a Segunda Guerra Mundial, visando estabelecer e

manter a paz no mundo.

A criação das Nações Unidas passa a simbolizar a necessidade de um

mundo de tolerância, de paz, de solidariedade entre as nações, que faça avançar o

progresso social e econômico de todos os povos.

Com isto, os principais objetivos das Nações Unidas, passam a ser: manter

a paz e a segurança internacional; desenvolver relações amigáveis entre as nações;

realizar a cooperação internacional resolvendo problemas internacionais de cunho

econômico, social, intelectual e humanitário; além de desenvolver e encorajar o

respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais sem qualquer tipo

de distinção, preconceito ou discriminação.

A Declaração representou tamanho avanço protetivo ao ser humano, que a

maioria dos documentos relativos aos direitos humanos fazem referência a esta,

chegando alguns Estados a fazerem referência direta nas suas constituições e

diplomas legais.

Poucos anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais

dois pactos foram efetuados em 1966, um deles foi o Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Políticos e o segundo foi o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, sócias e Culturais. Além disso, dois protocolos facultativos também

foram implementados, o primeiro foi o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que aboliu

a pena de morte, o segundo foi a Carta Internacional dos Direitos do Homem.

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Em 1967 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova resolução em que

se concretiza a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher,

fundamentada na proteção da dignidade, no valor da pessoa humana e na igualdade

de direitos entre homens e mulheres.

Tal declaração teve como argumento o fato de que apesar da Carta das

Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos, dos Pactos

Internacionais de Direitos Humanos e de outros instrumentos das Nações Unidas e

dos organismos especializados e apesar dos progressos realizados em matéria de

igualdade de direitos, continuava existindo considerável discriminação contra a

mulher.

Em 1969 podemos destacar o advento da Convenção Americana de Direitos

Humanos, conhecida também por Pacto de San José da Costa Rica, resumidamente

um tratado internacional entre os países-membros da Organização dos Estados

Americanos (OEA), que foi subscrita durante a Conferência Especializada

Interamericana de Direitos Humanos realizada na cidade de San José, na Costa

Rica, entrando em vigor em 1978, passando a ser uma das principais bases do

sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos.

Os Estados membros do Pacto se comprometeram a respeitar os direitos e

liberdades nela reconhecidos, além de garantir o livre e pleno exercício de direitos e

liberdades a toda pessoa que sujeita à sua jurisdição, sem qualquer fator

discriminatório, assegurando na legislação a adoção das medidas legais para que

estes direitos sejam reais e efetivos.

A Convenção estabelece, ainda, a obrigação dos Estados para o

desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais contidos

na Carta da OEA, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou outros

meios apropriados.

Como meios de proteção dos direitos e liberdades, a Convenção criou dois

órgãos para tratar de assuntos relativos ao seu cumprimento: a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Esta Convenção consagrou diversos direitos civis e políticos, entre outros: o

direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, o direito à vida, direito à

integridade pessoal, direito à liberdade pessoal e garantias judiciais, direito à

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proteção da honra e reconhecimento à dignidade, à liberdade religiosa e de

consciência, à liberdade de pensamento e de expressão, e o direito de livre

associação.

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2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ante o que fora exposto anteriormente, observando pequenas amostras de

costumes, leis, sociedades passadas, culturas, momentos de avanço e regressão de

direitos, conseguimos ter uma noção do surgimento e da evolução do direito como

um todo, de normas e princípios de direitos humanos e de normas protetivas aos

direitos da mulher.

Toda constituição justa, legítima e respeitada é um poderoso instrumento de

promoção humana e desenvolvimento social.

Após décadas de era “Vargas”, seguida de uma rígida “ditadura militar”, com

constituições autoritárias, eis que é promulgada em 1988 a atual Constituição da

República, chamada também de Constituição Cidadã, pois trazia em seu bojo uma

série de dispositivos protetivos e garantidores, que norteados por diversos dos

diplomas já citados, visava por fim a um sistema opressor de exceção e resguardar

os cidadãos. Tais dispositivos protetivos e garantidores de direitos humanos

previstos em tratados e convenções internacionais, quando incorporados no

ordenamento jurídico interno, principalmente nas Constituições, são chamados de

“Direitos Fundamentais”.

“Direitos Fundamentais são os direitos do ser humanos reconhecidos

e positivados na esfera do direito constitucional, portanto difere-se do

termo direitos humanos com o qual é bastante confundido na medida

em que este se aplica aos direitos reconhecidos e positivados na

esfera do Direito Internacional, por meio de tratados, convenções que

aspiram a atividade universal a todos os tempos e povos. Esses

direitos, advém da própria natureza humana, daí seu caráter

inviolável, atemporal e universal”. (SOUZA, CORREA, MOURA,

SOARES, 2010).

Os Direitos Fundamentais são inseridos dentro daquilo que o

Constitucionalismo denomina de Princípios Constitucionais, que são

os princípios que guardam os valores fundamentais da ordem

jurídica, pois sem eles a Constituição nada mais seria que um

aglomerado de normas que somente teriam em comum o fato de

estarem inseridas em mesmo texto legal; de modo que, onde não

existir Constituição não haverá Direitos Fundamentais. (SOUZA,

CORREA, MOURA, SOARES, 2010).

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Noberto Bobbio conceitua como:

“Aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens,

ou dos quais nenhum homem pode ser despojado. São aqueles cujo

reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da

pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização (BOBBIO,

1992).

Ainda, quanto a questão dos Direitos e Garantias Fundamentais, a

Constituição Federal de 1988 dedica cinco capítulos, a saber: Cap. I Dos Direitos e

Deveres Individuais e Coletivos (art. 5º Incisos I à XXVII); Cap. II Dos Direitos Sociais

(art. 6º a 11); Cap. III Da Nacionalidade (art. 12 e 13); Cap. IV – Dos Direitos

Políticos (art. 14 e 16); Cap. V – Dos Partidos Políticos.

Apesar de ser garantidora de direitos, a Constituição não pode ser

interpretada de forma leviana, como se tais direitos fossem elementos autorizadores

da prática de condutas irregulares, como salienta Alexandre Moraes:

“Os Direitos Humanos Fundamentais, dentre eles os direitos e

garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da

Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro

escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como

argumentos o afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou

penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao

desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito”. (MORAES, 2006).

O mais relevante direito protegido pela Constituição de 1988 é o direito à

vida, pois é a base essencial de todos os direitos, é o pré-requisito da existência e

exercício de todos os demais direitos.

Mas talvez o segundo princípio de maior relevância, seja o Princípio da

Igualdade, pois produz efeitos sobre todos os indivíduos de uma nação. O art. 5º da

Constituição Federal brasileira, por exemplo, proclama que todos são iguais perante

a lei sem distinção de qualquer natureza, deixando claro inda no inciso I, que

“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta

constituição”.

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3. LEI MARIA DA PENHA: SURGIMENTO E MOTIVAÇÃO 1

Por séculos a questão dos direitos humanos e fundamentais foi relegada

pela maioria dos compêndios legais, principalmente no que tange a proteção dos

direitos da mulher na sociedade, porém, em um traçado histórico que vem dos

primórdios da civilização até os dias atuais, houve um processo evolutivo nas

legislações de diversas sociedades e culturas.

Apesar desse processo evolutivo e das mudanças contemporâneas mais

concretas em relação às medidas protetivas aos direitos humanos, direitos

fundamentais e à mulher, ao longo da história, inclusive com o surgimento de

declarações, pactos, tratados e convenções, tal preocupação e observância só se

manifestou em nosso ordenamento jurídico a partir da Constituição da República

Federativa do Brasil promulgada em 1988 pelo então pode constituinte, recém-saído

de um longo período de regime militar, onde era padrão o cerceamento de direitos e

garantias dos cidadãos.

Toda legislação interna até então era cunhada por um molde machista de

uma sociedade patriarcal e preconceituosa, onde a mulher não exercia com

plenitude qualquer tipo de direitos, desde questões cíveis, familiares, patrimoniais,

criminais e até mesmo política com a restrição à candidatura, ao exercício de

mandatos eletivos e até o de voto.

Ainda assim, o advento da Constituição de 1988 apesar de textualmente

prever a proteção aos direitos humanos, estabelecer princípios fundamentais a

serem protegidos e igualar homens e mulheres em todas as situações, não foi capaz

de concretizar de imediato tais disposições.

Durante muitos anos houve divergências entre o Supremo Tribunal Federal e

o Superior Tribunal de Justiça acerca da aplicabilidade, eficácia e recepção do Pacto

de São José da Costa Rica – Convenção Interamericana de Direitos Humanos – no

ordenamento jurídico nacional, onde o primeiro entendia que a dita convenção se

enquadrava em âmbito infraconstitucional com o status de lei ordinária, enquanto o

segundo defendia a tese que o texto convencionado deveria ser recebido como

1 Texto compilado com dados públicos e notórios noticiados na imprensa em geral e no Wikipedia.

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norma de hierarquia equivalente ao texto da Constituição, por se tratar de normas

protetivas aos direitos humanos e fundamentais.

A emenda constitucional 45 de 2004 encerrou com o dilema ao reconhecer

que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, quando

aprovados por cada casa do congresso, em dois turnos, por três quintos dos votos

dos respectivos membros, serão recepcionados no ordenamento jurídico pátrio,

como se emendas constitucionais fossem.

Ainda assim, com todas estas mobilizações, alterações, evoluções legais e

interpretativas, a proteção ao gênero feminino aparentemente não estava surtindo os

efeitos esperados, parte por culpa das autoridades policiais que sem preparo

consideravam casos de violência como meras briguinhas domésticas, por muitas

vezes menosprezando a vítima de violência, como por culpa também das próprias

vítimas que por dependência econômica, tentativa de manter a integridade da família

ou até pelo próprio sentimento afetivo em relação ao agressor, deixavam de tomar

as providências necessárias e dar prosseguimento aos procedimentos de registros

de ocorrência, exame de corpo de delito, entre outros.

Apesar da existência de normas no ordenamento jurídico que efetivamente

protegessem a violência física e psíquica, presentes no código penal, na lei de

tortura, no código civil e em outros dispositivos, a ausência de resultados práticos,

aliados ao aumento estatístico dos casos de violência e a tendência política

contemporânea em legislar para as supostas minorias a título de ações afirmativas

protetivas, fizeram com que o legislador aprovasse uma norma específica que em

termos de direto material, apenas fez uma colcha de retalhos reunindo fragmentos

de diversos outros dispositivos, sem acrescentar muita inovação, mas que realizou

algumas inovações em termos processuais, cuja discussão tem trazido polêmica e

entendimentos divergentes – o que não é nosso objeto de análise -, além de debates

a cerca da constitucionalidade e observância aos princípios fundamentais e de

direitos humanos, tal lei foi denominada Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha como é conhecida a Lei n° 11.340 de agosto de 2006,

trouxe várias mudanças no ordenamento jurídico, sendo que a principal

característica promovida pela lei é o aumento no rigor das punições das agressões

contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar.

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A alcunha dada à Lei foi uma homenagem à senhora Maria da Penha Maia

Fernandes, uma biofarmacêutica brasileira, que lutou para que seu agressor viesse

a ser condenado. Hoje com 60 anos e três filhas, é líder de movimentos de defesa

dos direitos das mulheres vítimas da violência doméstica.

No início da década de 80, casada com um professor colombiano chamado

Marco Antonio Heredia Viveros, Maria da Penha foi vítima de tentativa de homicídio

por parte de seu marido, que tentou por duas vezes matá-la.

Na primeira tentativa de assassinato, ele simulou uma cena de assalto e

aturou diversas vezes contra a esposa, porém, esta sobreviveu aos disparos. Não

satisfeito, o marido tenta uma segunda vez, e nessa nova investida tentou

eletrocutá-la.

Por conta das agressões sofridas, Maria da Penha ficou paraplégica e nove

anos depois, seu agressor foi condenado a oito anos de prisão, mas por meio de

manobras legais e recursos, só ficou preso por dois anos e hoje está livre, tento sido

solto em 2002.

Por este motivo, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e o Comitê

Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, em conjunto com a vítima,

protocolizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da

OEA, que é um órgão internacional responsável pelo recebimento de denúncias

oriundas de violação aos acordos internacionais de proteção aos direitos humanos e

aos direitos da mulher.

O caso nº 12.051/OEA que relata a história de Maria da Penha chegou à

Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados

Americanos (OEA) e foi considerado, pela primeira vez na história, um crime de

violência doméstica.

Essa lei foi criada com os objetivos de impedir que os homens cometam

homicídios, lesões corporais e/ou psíquicas em suas esposas ou companheiras,

assim protegendo os direitos e integridade da mulher em geral.

Um dos principais argumentos é de que não se trata de uma lei que se

restringe a uma agressão física, mas que é muito mais abrangente e possibilitando

que vários tipos de violência sejam denunciados e a que Justiça seja mais ágil.

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A nova lei reconhece a gravidade dos casos de violência doméstica e retira

dos juizados especiais criminais – que julgam crimes de menor potencial ofensivo –

a competência para julgá-los.

Houve alteração no Código Penal Brasileiro, possibilitando que agressores

no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão

preventiva decretada.

Devido à reforma legislativa e a retirada do trâmite de casos como este, do

âmbito dos juizados especiais e a não aplicação das medidas de transação penal,

estes agressores passam a não poder mais ser punidos com penas alternativas.

A legislação passa também a aumentar o tempo máximo de detenção

previsto de um para três anos, prevendo ainda, medidas que vão desde a saída do

agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da mulher agredida.

Apesar de todos serem unânimes quanto à necessidade de se proteger as

vítimas de violência, há ainda muita discussão a respeito da Lei Maria da Penha, sua

legalidade e aplicabilidade, não por preconceito contra a mulher, mas por análises

meramente jurídicas, que englobam desde os direitos humanos, princípios

fundamentais, direito penal, direito processual penal, direito cível, direito processual

cível, entre outros.

Primeiramente deve-se levar em conta o princípio protetivo dignidade da

pessoa humana, independente de gênero, cuja essência garante proteção a todo ser

humano em um dos seus elementos mais básicos, que de tão relevante não tem

nem como ser mensurado ou valorado.

"(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988

[...] Tem razão a Arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço.

As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem

preço, vale para todos quantos participam do humano. Estamos,

todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito de tomar o que

pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor [valor de

quem se arrogue a tanto]. É que, então, o valor do humano assume

forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor

na qualidade e quantidade em que o mensure. Então o valor da

dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano, de

todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame

conforme o seu critério particular. Estamos então em perigo,

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submissos à tirania dos valores. (...)" (ADPF 153, voto do Rel. Min.

Eros Grau, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 6-8-2010.).

Junto a isto devemos levar em consideração o inciso IV do artigo 3º da

Constituição de 1988, que visa a proteção ao bem de todos independente de

quaisquer fatores, portanto, o debate sobre essa diferenciação entre homens e

mulheres estabelecidos na Lei Maria da Penha, cedo ou tarde esbarrará no texto já

mencionado, segundo o qual:

“IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Seguindo-se também do caput do artigo 5º da Constituição de 1988;

posteriormente o seu inciso I e o XLI segundo os quais:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

“I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos

termos desta Constituição;”

“XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e

liberdades fundamentais;”

Fora isso ainda tem a questão relativa a proteção e prevalência dos direitos

humanos que também é vislumbrado no inciso II do artigo 4º da Constituição de

1988, sob o qual o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou, no sentido de

que:

"No Estado de Direito Democrático, devem ser intransigentemente

respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos

humanos. (...)" (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício

Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004.).

Ainda sobre questões que ainda carecem de serem observadas, temos o

tema relacionado ao direito de propriedade e as possibilidades de intervenção que a

Lei tema deste trabalho autoriza, pois, apesar de ser entendimento do Supremo

Tribunal Federal de que o direito a propriedade não é absoluto, as hipóteses

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relacionadas a restrição do direito de propriedade estabelecido no incido XXII do

artigo 5º da constituição, geralmente fazem referência a função social, o que no caso

em questão não parece se enquadrar.

"O direito de propriedade não se revela absoluto. Está relativizado

pela Carta da República – artigos 5º, incisos XXII, XXIII e XXIV, e

184." (MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010,

Plenário, DJE de 13-8-2010.).

Os itens já mencionados referem-se a questões ligadas a princípios de

direitos fundamentais, humanos e de dispositivos da própria constituição, que

quando enfrentados pelas cortes, refletirão nos demais diplomas legais

infraconstitucionais no que tange ao direito material, porém, temos também algumas

questões como a do inciso XXXVII do artigo 5º, que veda a criação ou

funcionamento de juízo ou tribunal de exceção; a alínea “a” do inciso retro

mencionado, que garante a plenitude de defesa; o inciso LIII que trata protege os

cidadãos de serem processados e sentenciados por autoridade que não seja a

competente; o inciso LIV que garante que ninguém será privado de liberdade ou de

seus bens sem o devido processo legal; além do inciso LV que garante aos litigantes

o direito ao contraditório e a legitima defesa, com os meios e recursos inerentes a

ela, dispositivos estes que além de vinculados a direitos básicos e fundamentais, se

fundem a questões de natureza processual, o que não é o objeto de análise deste

trabalho.

Enfim, urge a necessidade de que a incorporação da Lei Maria da Penha ao

ordenamento jurídico se consolide ao ponto de que todos os pontos controversos

existentes sejam analisados e pacificados para a garantia e segurança jurídica de

todos.

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4. ENTENDIMENTOS E POLÊMICAS

Como já dito no capítulo anterior, não por preconceito contra a mulher, mas

por questões de análise jurídica, existem debates bem divergentes e acalorados a

respeito da Lei Maria da Penha, não tanto pela necessidade ou não de se proteger

pessoas vítimas de violência doméstica, mas por verificar se a norma ali contida

estaria violando ou não preceitos de direitos humanos e fundamentais, se estaria ou

não afrontando tratados, pactos e a própria constituição.

Um dos pontos polêmicos da Lei Maria da Penha diz respeito ao princípio da

isonomia ou da igualdade que estabelece os mesmos direitos e deveres para

homens e mulheres, porém, a lei em questão, é clara em sua redação ao afirmar

que: “Art. 1º - Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica

e familiar contra a mulher...”, ou seja, ela expressamente designa como objeto de

proteção de violência somente o gênero feminino.

O site Consultor Jurídico, especializado em matérias e artigos jurídicos,

publicou uma matéria em 8 de Fevereiro de 2011, falando a respeito do

entendimento de um juiz quanto a inconstitucionalidade da norma e a visão do

promotor de justiça que acha que a lei é constitucional e recorre das sentenças

desse juiz, por acha-las absurdas.

“O juiz titular da 2ª Vara Criminal de Erechim (RS), Marcelo

Colombelli Mezzomo, nunca aplicou a Lei Maria da Penha (Lei

11.340/06) por considerá-la inconstitucional e violadora da igualdade

entre homens e mulheres. Entre junho e julho de 2008, mais de 60

pedidos de medidas preventivas com base na lei foram negadas pelo

juiz, que reiteradamente afirmava nas decisões que o "equívoco

dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que

não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos,

seja onde for", e que "perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar

uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje

são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país".

Como noticiou o site Espaço Vital, em uma das decisões, Mezzomo

questionou: "quem protege um homem de 55 anos, enfermo, que

sofre violência em sua casa de esposa, companheira ou mesmo dos

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filhos?". E respondeu: "o Estatuto do Idoso não o abarca, porque ele

não tem 60 anos".

O promotor de Justiça João Campello Dill afirmou, à época, que o

Ministério Público recorria sistematicamente das decisões para fazer

valer as medidas preventivas solicitadas pelas mulheres da cidade.

Todos os recursos foram concedidos pelas Câmaras Criminais do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.” (CONSULTOR JURÍDICO,

2011, a).

Outro caso similar é noticiado na mesma matéria:

“Assim como Mezzomo, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, juiz titular

da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), considerou a Lei Maria da

Penha inconstitucional e suas decisões foram integralmente

reformadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

No caso de Rodrigues, entretanto, o Conselho Nacional de Justiça

decidiu condená-lo à disponibilidade provisória por dois anos. Nesta

quarta-feira (2/2), ele, com o apoio da Associação dos Magistrados

Mineiros (Amagis), recorreu ao Supremo Tribunal Federal para pedir

a suspensão da decisão do CNJ e para dizer que a avaliação da sua

conduta deveria ser feita, antes, pelo Tribunal de Justiça de Minas

Gerais.

Além da incompetência do CNJ, argumentou no Mandado de

Segurança ao STF que as declarações do juiz consideradas "prática

análoga ao crime de racismo" não ensejariam a punição, já que pela

Lei Orgânica da Magistratura Nacional a punição só é possível se o

juiz tivesse perpetrado crime contra a honra, o que ele nega.

O juiz declarou que a Lei Maria da Penha tem "regras diabólicas" e

que as "desgraças humanas começaram por causa da mulher", além

de outras frases igualmente polêmicas. Na ocasião da abertura do

processo, declarou à imprensa que combate o feminismo exagerado,

como está previsto em parte da lei. Para ele, esta legislação tentou

"compensar um passivo feminino histórico, com algumas disposições

de caráter vingativo".” (CONSULTOR JURÍDICO, 2011, a).

No dia 14 de dezembro de 2011 foi aprovado pela Comissão de Constituição

e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei

4367/08, de autoria da deputada Elcione Barbalho, estabelecendo que namorados

também poderão ser punidos pela Lei Maria da Penha.

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Além dos legisladores terem ampliado a Lei Maria da Penha para punir

relações envolvendo namorados, também temos agora o reconhecimento por parte

de alguns poucos e raros juízes, no sentido de reconhecer a aplicabilidade da norma

também para os homens e homossexuais vítimas de violência doméstica.

“Com base na Lei Maria da Penha, o juiz Osmar de Aguiar Pacheco,

de Rio Pardo (RS) concedeu uma medida protetiva a um homem que

alega estar sendo ameaçado por seu ex-companheiro. A decisão

proíbe que ele se aproxime a menos de 100m da vítima. As

informações são do jornal Folha de S. Paulo.

Segundo Pacheco, embora a Lei Maria da Penha tenha como objetivo

original a proteção das mulheres contra a violência doméstica, ela

pode ser aplicada em casos envolvendo homens, porque "todo

aquele em situação vulnerável, ou seja, enfraquecido, pode ser

vitimado. Ao lado do Estado Democrático de Direito, há, e sempre

existirá, parcela de indivíduos que busca impor, porque lhe interessa,

a lei da barbárie, a lei do mais forte. E isso o Direito não pode

permitir!".

O juiz também afirmou que, em situações iguais, as garantias legais

devem valer para todos, além da Constituição vedar qualquer

discriminação. Isso faz com que a união homoafetiva seja

reconhecida “como fenômeno social, merecedor não só de respeito

como de proteção efetiva com os instrumentos contidos na

legislação."

A advogada especializada em direito homoafetivo e desembargadora

aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria

Berenice Dias, disse que essa é a primeira aplicação da Lei Maria da

Penha a dois homens. "Como se trata de uma lei protetiva da mulher,

é uma analogia importante que fizeram, pois ela se aplica

independente da orientação sexual", explicou. Os casos anteriores

em que a Lei Maria da Penha foi aplicada a pessoas do mesmo sexo

envolviam apenas mulheres.”. (CONSULTOR JURÍDICO, 2011, d).

Outro ponto de relevância a ser visto, diz respeito ao fato de que na grande

maioria das vezes a mera alegação de agressão por parte da mulher, instiga o início

de uma longa jornada de defesa, onde o homem dificilmente consegue comprovar

que não deu início às agressões e responde às condutas tipificadas na Lei Maria da

Penha, porém, segundo a Justiça do Distrito Federal, conforme pode se observar no

Processo 2010.01.1.070202-7 e que tem sido o entendimento majoritário naquela

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corte, em caso de dúvidas ou contradições, até mesmo em caso de legitima defesa

o homem não deve responder pela tipificação gravosa da Lei Maria da Penha, ou

seja, é inaplicável.

“As penalidades previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) não

se aplicam nos casos em que o homem agride a mulher em legítima

defesa. A tese é da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do

Distrito Federal, que absolveu E.A.R., condenado em primeira

instância por dar um soco no rosto de sua companheira, S.R.V. Os

desembargadores entenderam que, como foi a mulher que começou

a agressão e apenas um soco foi dado para cessar a briga, ficou

configurada a legítima defesa.

O relator do caso, desembargador Jesuíno Rissato, destacou em seu

voto que, apesar de a Lei Maria da Penha representar um avanço na

proteção às mulheres, ela não significa que o homem, quando

agredido, deva apanhar sem reagir. “No caso, se o réu não reagisse à

primeira bofetada na cara, certamente levaria a segunda, a terceira e

por aí afora”. Ele observou também que a própria vítima confessou,

em juízo, que partiu dela a primeira bofetada.

Rissato afirmou que o soco foi necessário para interromper a

agressão iniciada pela mulher, ou seja, não houve

desproporcionalidade ou excesso na ação do marido, o que só

ocorreria se o homem continuasse a desferir outros golpes na mulher.

“O réu levou um tapa, reagiu com um soco, evidentemente mais forte.

Se tivesse reagido com outro ‘tapa’, com a mesma força ou mais leve

do que o recebido, a agressão não cessaria, e ambos continuariam

trocando ‘tapas’ até que um dos dois, em determinado momento,

desferisse golpe mais violento”.

O desembargador lembrou ainda que, em casos de agressões físicas

recíprocas, quando há dúvida sobre quem começou a briga, a

jurisprudência do tribunal determina que se absolva o homem. Em

julgado de junho de 2010, a 2ª Turma Criminal do TJ-DF reconheceu

que se houver contradição entre a versão da vítima prestada na

delegacia e a versão apresentada em juízo, gerando dúvida sobre

quem iniciou a agressão, deve ser acolhido o fundamento da legítima

defesa e absolver o réu, com base no benefício da dúvida.

Consta nos autos que no dia 27 de março de 2010, por volta das 2h,

o casal iniciou uma discussão a caminho de casa, após sair de um

bar no Edifício Rádio Center. Já na porta de casa, a discussão

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evoluiu para a agressão física, quando a mulher deu um tapa na cara

do marido. Em seguida, ele deu um soco na vítima, dando fim à briga.

E.A.R. foi condenado a três meses de detenção, em regime aberto,

pelo juízo de primeiro grau, por ter agredido sua mulher. O caso foi

enquadrado no parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal e no

inciso I, do artigo 5º, e I e II, do artigo 7º da Lei Maria da Penha. Ao

recorrer, a defesa do homem alegou que ele agiu em legítima defesa

e que o casal se reconciliou após a briga. Os desembargadores da 1ª

Turma Criminal do TJ-DF absolveram, por unanimidade, o réu”.

(CONSULTOR JURÍDICO, 2011, b)

Ao continuar observando as divergências e polêmicas da Lei Maria da

Penha, chegamos ao quesito competência, onde por um lado temos uma das linhas

mais aceitas, na qual a foro competente para o trâmite seria dos Juizados de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de acordo com a redação do artigo

1º da Lei, por outro lado, uma linha menos comum, como a do Tribunal de Justiça de

Sergipe, que determinou que os Juizados Especiais Criminais são incompetentes

para processar e julgar crimes de violência contra a mulher de qualquer gravidade,

remetendo seus feitos as varas criminais. Nos estados onde não existem esse

Juizado de Violência Doméstica, o entendimento tem se dado no sentido de atribuir

a competência para o julgamento deste tipo de feito tanto pra as varas criminais,

quanto pros juizados especiais criminais.

“Com base na Lei Maria da Penha, o Tribunal de Justiça de Sergipe

determinou que os Juizados Especiais Criminais são incompetentes

para processar e julgar crimes de violência contra a mulher de

qualquer gravidade.

Nos julgamentos de um Recurso em Sentido Estrito e de uma

Apelação Criminal ocorridos nesta segunda-feira (31/1) a Câmara

Criminal do TJ, por unanimidade, aplicou o artigo 41 da Lei Maria da

Penha: "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar

contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica

a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais)".

Relator em ambos os recursos, o desembargador Edson Ulisses

declarou que "todo este arcabouço jurídico revela, de forma cristalina,

a intenção do legislador em considerar que qualquer que seja a

intensidade ou alcance da violência, ainda que mínima, não pode ser

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considerada de pouca lesividade, ficando, portanto, afastada a

competência dos Juizados Especiais Criminais".

No julgamento da Apelação Criminal, o relator observou que os

Juizados Especiais Criminais e a Lei Maria da Penha têm objetivos

diferentes para negar o pedido de suspensão do processo. Os

Juizados teriam a essência despenalizadora, enquanto que a lei é

criminalizadora para desestimular a violência doméstica.

No mesmo sentido de negar a aplicação dos benefícios da Lei do

JECrim em casos de violência contra a mulher, no julgamento do

Recurso em Sentido Estrito a Câmara decidiu que a retratação não

poderia ser aceita, e que qualquer crime que implique violência

doméstica contra a mulher é irrenunciável por ser de interesse

público.

Segundo o desembargador, a retratação ou o desinteresse da maioria

das mulheres no prosseguimento dos processos ocorre porque na

maioria das vezes elas ainda dependem econômica e afetivamente

dos agressores. "Não podemos deixar de considerar que muitas

mulheres se sentem ameaçadas e desistem de representar contra o

autor do crime com a falsa esperança de evitarem novos episódios

violentos, todavia estes nunca cessam", explicou. As informações são

da Assessoria de Imprensa do Tribunal de Justiça de Sergipe.”.

(CONSULTOR JURÍDICO, 2011, c).

Existem diversas polêmicas e divergências quanto a Lei Maria da Penha,

porém, o escopo deste trabalho não é debater ou analisar questões processuais e

sim elementos de natureza mais ampla.

Um tópico que não tem sido mencionado nos debates é a situação

patrimonial gerada com a aplicação da lei, pois o juiz poderá determinar ao agressor,

com base no artigo 22, inciso II, o “afastamento do lar, domicílio ou local de

convivência com a ofendida”. Mas a lei em questão não faz qualquer menção a

situações onde a propriedade do imóvel seja de exclusividade do agressor

estabelecida pelo regime do casamento ou gravames sucessórios, o que interfere

diretamente no direito de propriedade.

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5. CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho pudemos observar que ao longo da história, nas

mais relevantes legislações existentes, houve momentos de avanço, regressão e até

omissão quanto à observância dos direitos humanos e da própria mulher, mas

percebemos que gradativamente, ainda que minimamente, existiu uma evolução

positiva e gradativa que culminou nas atuais normas protetivas.

De fato podemos afirmar que dos tempos mais remotos até a atualidade,

houveram muitos grupos ou segmentos, que de acordo com a época, sociedade e

cultura, foram segregados ou discriminados, ficando sem a proteção estatal ou sem

poder exercer direitos.

O grande problema dessa situação é que com o avanço da sociedade e a

necessidade de garantir um tratamento justo e igualitário entre os cidadãos,

independente de quaisquer fatores, os legisladores sob a falsa premissa de corrigir e

reparar erros históricos, além de motivações político eleitoreiras, têm criado medidas

tidas como “ações afirmativas”, gerando benefícios e privilégios para determinados

grupos, o que gera um efeito segregador que é respaldado pelo Estado, ou seja, o

próprio Estado criando, estimulando, legitimando e reconhecendo verdadeiros

“apartheids”, seja em relação a diferenças econômicas, de gênero, de raça ou etnia,

de opção sexual, entre outras, gerando de cada segmento um sentimento de ódio,

de raiva e de rejeição que só fazem aumentar os conflitos entre segmentos,

ampliando ainda mais a intolerância e o desrespeito para com os demais,

institucionalizando a discriminação e até a fomentando a violência física e moral.

No caso específico aqui analisado, creio que a intenção do legislador apesar

de positiva, acabou gerando alguns dissabores, dentre os quais podemos citar o

fator discriminatório e segregador da lei, criando distinções entre homens e

mulheres, além do reconhecimento da ideia de família constituída apenas por casais

heterossexuais, critério inclusive já derrubado no entendimento relativo a outras

situações, onde a família homossexual é reconhecida.

Aqui, se verifica, por exemplo, a necessidade de reconhecer a necessidade

de proibição da “violência doméstica” por ser uma violação grave de direitos

humanos, porém, a Lei Maria da Penha visa à proteção da integridade da mulher,

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que não pode ser vítima de qualquer violência, e não à proteção da “família”, o que

seria mais apropriado.

A Lei introduziu uma nova diferenciação no tratamento entre homens e

mulheres, sendo que quando o texto constitucional estabeleceu que eles fossem

iguais nos termos “desta Constituição”; ou seja, nos termos da redação de 1988

dada pelo legislador constituinte, não se poderia criar novas hipóteses, tendo em

conta o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, onde é vedada

emenda constitucional que vise abolir “os direitos e garantias individuais”.

Nas cláusulas pétreas e no texto de 1988 não existe autorização expressa

acerca da possibilidade do tratamento diferenciado na questão de que trata da lei.

Vale lembrar que, sendo a igualdade a regra, a exceção tem de ser expressa.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é inconstitucional e violadora da

igualdade entre homens e mulheres, pois o equívoco dessa lei foi pressupor uma

condição de inferioridade da mulher, que não é a mais a realidade existente no país,

já que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho

do país, ocupando os mais diversos cargos e posições, tanto na iniciativa privada,

quanto no serviço público. Maior prova disso é que o país hoje é governado por uma

mulher e diversos estados também tem uma mulher no comando. Perpetuar esse

tipo de perspectiva trazida pela lei é fomentar uma visão preconceituosa e

discriminatória.

Homens e mulheres são iguais, são cidadãos. A questão não é de ampliar

direitos, mas sim de assegurar que sejam os mesmos na lei e na prática, salvo

naquilo em que a Constituição permitir tratamento diferenciado.

Temos de começar a ver cidadãos e não sexos. Prestigiar inteligência,

caráter e competência, sem distinção de sexo. O protecionismo, sobretudo o

inconstitucional, antes de ajudar, só fomenta o machismo.

No que tange a inconstitucionalidade e a ferida aberta nos princípios de

direitos humanos, existem três possibilidades, na qual a primeira seria a declaração

de inconstitucionalidade pelo STF, o que não é provável; a segunda seria uma

alteração por parte do legislador, modificando o bojo do texto para garantir a

aplicabilidade da lei a homens e mulheres, além de casais heterossexuais ou

homossexuais e a terceira que seria a realização por parte do STF de uma

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interpretação hermenêutica conforme a constituição, ampliando o leque de

aplicabilidade da norma, assim como foi feito no caso relativo a união de casais

homossexuais e sobre casamento de homossexuais.

Como não parece ser interessante ao Legislativo fazer essas correções,

creio que caberá ao Judiciário preservar a dignidade, igualdade, solidariedade e a

liberdade, lembrando apenas de alguns princípios constitucionais pétreos e

princípios de direitos humanos, que garantem a vida de todo cidadão, pois a lei

merece interpretação bem mais ampliativa, abraçando outras pessoas que

inicialmente se pensou que não estariam sobre a proteção da Lei Maria da Penha.

Após esta análise de constitucionalidade e de violação aos princípios de

direitos humanos existentes, cabe também comentar alguns pontos importantes.

A Lei Maria da Penha em seu artigo 5º estabelece proteção à violência

psíquica, física e patrimonial, porém, a redação é meio vaga, sendo que no caso de

violência física e psíquica, uma melhor redação e proteção é dada pela lei nº 9.455,

de 7 de abril de 1997, que define crimes de tortura. No caso da violência física ainda

existem as medidas já previstas no Código Penal. Na questão patrimonial, o código

civil já faz previsão quanto a indenizações por danos morais e patrimoniais, o que

torna a lei apenas uma compilação ou reprodução mal elaborada de diversos textos

legais, uma verdadeira colcha de retalhos.

O Artigo 35 da Lei Maria da Penha apesar de prever em seu caput que “A

União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no

limite das respectivas competências: I - centros de atendimento integral e

multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência

doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes

menores em situação de violência doméstica e familiar; III - delegacias, núcleos de

defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal

especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e

familiar; IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e

familiar; V - centros de educação e de reabilitação para os agressores” é algo

cercado de utopias, pois prever a possibilidade de existência de algo, não significar

que na prática existirão em algum momento.

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Ainda no mesmo tema, vale ressaltar o artigo 39, segundo o qual “Art. 39. A

União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas

competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias,

poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício

financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei.”, porém não

há qualquer elemento que torne obrigatória a implementação dessas medidas, nem

prazos e nem responsabilidade em caso de não implementação, ou seja, como diz o

verbo do caput, “poderão” criar e promover, não que estão obrigados a criar e

promover.

A lei estabeleceu uma possibilidade, não uma obrigatoriedade, não é algo

compulsório. Então só resta concluir que tal disposição é meramente de cunho

político, existente apenas pra dizer que o “Estado” está tomando alguma

providência, sendo que de fato, não está.

O grande problema é o da falta de estrutura de apoio para dar boa aplicação

à lei, outra questão desconhecida da população em geral, que não sabe que, hoje,

as medidas acabam em sua maioria por se transformar em exortações vazias e

inócuas diante da falta de uma estrutura executiva que lhes dê efetividade.

Por fim, o último ponto que merece ser destacado, diz respeito as diversas

medidas que podem ser determinadas pela autoridade judiciária sem que sejam

ouvidas as partes e o Ministério Público, conforme preconiza o artigo 19 da Lei Maria

da Penha, segundo o qual “As medidas protetivas de urgência poderão ser

concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato,

independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério

Público, devendo este ser prontamente comunicado.”.

Existem duas questões importantes embutidas no parágrafo anterior, a

primeira é que de acordo com o artigo 22 e seus incisos, o juiz pode inclusive

determinar o afastamento do agressor do lar, além de adotar outras medidas

restritivas, porém, me parece estranho, cercear alguém de direitos, o que inclui ai a

restrição de acesso ao próprio patrimônio, sem sequer permitir qualquer

manifestação de contraditório ou de ampla defesa ao agressor, que ao que me

parece viola claramente a Constituição Federal no artigo 5º, inciso LV, segundo o

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qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral

são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes;”; também o inciso LIV que estabelece que “ninguém será privado da

liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” e por fim o inciso XXII, no

qual “é garantido o direito de propriedade;”, ou seja, a lei ao que me parece, viola

alguns dos direitos fundamentais e princípios de direitos humanos mais básicos de

qualquer cidadão, que é o de ser ouvido, de se defender e de usufruir livremente,

desde que dentro da lei, de seus bens e propriedades, que muitas vezes são

exclusivos pelo regime de casamento adotado e até mesmo por gravames

sucessórios.

Por fim, só resta aguardar algum movimento do poder Legislativo ou do

Poder Judiciário, para que medidas sejam tomadas para solucionar alguns impasses

gerados com o advento da Lei Maria da Penha.

Os Direitos Fundamentais, os Direitos Humanos são um conjunto de direitos

e garantias do ser humano, cuja finalidade principal é o respeito, com proteção

estatal, para que condições mínimas de vida e de desenvolvimento sejam

possibilitadas ao ser humano, para que possamos viver em harmonia em uma

sociedade justa e o mais possível igualitária em direitos.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTAVILA, Jayme de. Origem do Direito dos Povos. 11ª ed. São Paulo:

Ícone Editora, 2006.

ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. 1. ed. São

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