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Angola e Brasil: convergências identitárias na invenção de um
pensamento nacionalista angolano (1789-1830)
Maria Cristina Portella Ribeiro1
Resumo: No primeiro quartel do século XIX, habitantes de Luanda e Benguela, enclaves
portugueses no litoral africano, manifestaram-se favoravelmente à sua separação de Portugal e
anexação ao Brasil, então em processo de independência. O objetivo deste trabalho é refletir
sobre as suas motivações, em diálogo com a historiografia que discute as ideias iluministas e
nacionalistas do período.
Palavras-chave: Angola. Brasil. Independência. Iluminismo. Nacionalismo.
AbstractIn the first quarter of the nineteenth century, the inhabitants of Luanda and
Benguela, Portuguese enclaves on the African coast, expressed favorably to his separation
from Portugal and annexation to Brazil, which was then in the independence process. The
objective of this paper is to discuss their motivations, in dialogue with the historiography that
discusses the Enlightenment and nationalist ideas in that period.
Keywords: Angola. Brazil. Independence. Enlightenment. Nationalism.
1. Introdução
Entre os anos 1817 e 1824, vários acontecimentos perturbaram o sossego das
autoridades portuguesas na costa ocidental africana, nas localidades de Luanda e Benguela.
Todos relacionaram-se com o processo de independência do Brasil. Num deles foram
apreendidos panfletos, provenientes do Pernambuco revolucionário de 1817, a pregar a luta
contra Portugal. Esses papéis, destinados ao juiz de fora de Luanda, Manuel Leite de Faria,
acabaram por chegar às mãos do governador de Angola, Luiz da Motta Feo e Torres, que
relatou o episódio ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, Thomaz
Antonio de Villanova Portugal.2 A comoção provocada pela Revolução Pernambucana em
Luanda pode ser medida pela tentativa de alguns dos seus moradores em juntarem-se a ela
1 Doutoranda do PPGHIS/UFRJ e bolsista do CNPq; e-mail: [email protected] 2 Loanda, 22 set. 1817, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Angola, 1ª seção, cx. 133, doc. 52, apud
PACHECO, Carlos. José da Silva Maia Ferreira, o Homem e a sua Época. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1990, p. 214.
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quando da Pedrosada, o movimento em que negros e mestiços liderados pelo militar mestiço
Pedro da Silva Pedroso rebelaram-se contra as autoridades coloniais em Pernambuco, em
1823.3
Ainda nos anos 1820, motivados pelas desavenças entre Brasil e Portugal, moradores
de Benguela e Luanda revoltaram-se. “Em 1823 tentou-se em Benguella uma sublevação para
se unir ao Brazil; mas não foi a effeito”, contou o militar português José Joaquim Lopes de
Lima, em relatório sobre a situação das possessões portugueses encomendado pela rainha D.
Maria II.4 Antes disso, a 5 de junho de 1822, a Junta do Governo Provisório da Província de
Benguela enviara um ofício ao então príncipe regente do Brasil, D. Pedro de Alcântara, a
solicitar a união daquela província ao Brasil, publicado meses depois na Gazeta do Rio.5
Roquinaldo Ferreira, em Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil
during the Era of the Slave Trade, utiliza a micro-história para revelar a trajetória de várias
personagens envolvidas de alguma forma no tráfico atlântico, entre elas um homem negro
nascido no Rio de Janeiro, enviado em 1800 para cumprir degredo em Benguela. Em duas
dezenas de anos, ele envolveu-se no tráfico de escravos e acabou por tornar-se um rico
comerciante, o que não evitou a sua prisão, em 1824, acusado, junto com outros negociantes,
de participar na revolta separatista da cidade.
A independência do Brasil, proclamada em setembro de 1822, provocaria uma profunda agitação em Angola, de tal maneira se encontravam interligados os interesses de ambos os territórios e reduzido ao mínimo o papel de Portugal, o que levaria ao aparecimento de um 'partido brasileiro', defensor da união de uma Angola independente com o Brasil.6
Em ofício dirigido ao governo central, o então governador de Angola Cristóvão
Avelino Dias explicava assim as razões da sublevação ocorrida em Luanda em 1823: “Podem
apontar-se diferentes causas da sublevação, mas a principal é o desejo de unir este reino ao
Brasil”.7 Em relatório de setembro de 1824, o seu sucessor, Nicolau de Abreu Castelo Branco,
dava conta das ideias subversivas dos demagogos, responsáveis pelas “comoções sediciosas”
3 “Ofício do Governador de Angola”, 17 fev. 1821, AHU, Angola, cx. 140, apud FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 228.
4 LIMA, José Joaquim Lopes de. Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas na Africa Occidental e Oriental; na Asia Occidental; na China, e na Oceania: Escriptos de ordem do governo de sua Magestade Fidelissima a Senhora D. Maria II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844, p. 127.
5 Gazeta do Rio. Rio de Janeiro, 5 out. 1822, n. 120. 6 GUIMARÃES, José Marques. A Difusão do Nativismo em África: Cabo Verde e Angola. Lisboa: África
Debate, 2006, p. 248. 7 “Ofício do governador e capitão-general de Angola ao conde de Subsserra”, 12 out. 1823, AHU, Angola, cx.
68, apud REBELO, Manuel dos Anjos da Silva. Relações entre Angola e Brasil (1808-1830). Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1970, p. 229.
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havidas em Luanda e Benguela, estando os habitantes de maior importância em oposição ao
governo.8
Tornou-se famoso o episódio em que dois dos três deputados de Angola eleitos às
cortes portuguesas em janeiro de 1822, Euzébio de Queiroz Coutinho, cunhado e primo de
primeiro grau de Inocêncio Matoso de Andrade e Câmara, de influente família angolana, e
Fernando Martins do Amaral Gurgel e Silva, optaram por não assumir os mandatos em Lisboa
e permanecer no Rio de Janeiro a defender a independência de Angola e a sua união ao Brasil,
naquele período em franco processo de separação de Portugal, sob a oportuna (para as elites
locais) liderança do herdeiro da Casa de Bragança. “(...) conhecendo eu, que nossas relações
comerciais, nossa posição geográfica, interessam com o Brasil, seria tão imprudente que não
fizesse têrmo em minha marcha para dar lugar à reflexão?”, justificou-se Amaral Gurgel e
Silva no Correio do Rio de Janeiro, três meses antes da independência oficial do Brasil.9 O
seu objetivo era participar da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil, estando a
aguardar instruções do governo de Luanda. Mesmo Manuel Patrício Correia de Castro, o
deputado que, ao contrário dos demais, acabou por viajar para Lisboa, vacilou antes de tomar
esta decisão10.
É plausível supor que as iniciativas até aqui relatadas no sentido de unir Luanda e
Benguela - enclaves portugueses num território predominantemente africano – ao Brasil
tenham tido como pano de fundo os interesses dos traficantes de ambos os lados do
Atlântico11e da sua rede – composta por pumbeiros,12 militares, funcionários e clérigos – na
manutenção do tráfico de escravos, ameaçado pela pressão britânica13e pela independência do
Brasil de Portugal.Mas seriam exclusivamente estas as razões a explicar a intensa atividade
política provocada pelo desejo desta união? Ou, pelo contrário, haveria uma teia mais
complexa a impulsionar esses homens a insubordinarem-se contra o domínio de Portugal?
8 AHU, Angola, cx. 145, doc. 76, apud PACHECO, Carlos, op. cit., p. 88. 9 SILVA, Fernando Martins do Amaral Gurgel e. Dulcis Amor Patriae. Correio do Rio de Janeiro, 21 jun.
1822, apud RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 134-136.
10 Em sua proclamação “Compatriotas Angolenses”, publicada no Correio do Rio de Janeiro em 7 jun. 1822, ele deixa clara a sua hesitação. Apud RODRIGUES, José Honório, op.cit., p. 134-135.
11 Sobre o controle do tráfico, a partir do século XVIII, por comerciantes do Rio de Janeiro ou lá estabelecidos cf. ALEXANDRE, Valentim. “O liberalismo português de África (1820-1839)”. In: REIS, Jaime (Org.). O século XIX em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1981; CÂNDIDO, Mariana P. An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its hinterland. New York: Cambridge University Press, 2013; e PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Lisboa: Bertrand Brasil, 1999.
12 Comerciantes nativos itinerantes que serviam de intermediários entre as cidades e o interior de Angola. 13 Após proibir, em 1807, os súditos britânicos de participarem do tráfico de escravos, a Inglaterra aumentou a
pressão para acabar com todo o tráfico internacional. Já em 1817, firmou acordo com Portugal proibindo o tráfico acima da linha do Equador e permitindo o direito de visita e apreensão de carga humana em navios portugueses.
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2. Relações Brasil-Angola
As relações de Luanda e Benguela com o Brasil, para além do tráfico, foram
sedimentadas com o frequente trânsito cultural entre as duas costas. Famílias bem-
posicionadas dessas duas cidades enviavam os seus filhos para receber educação literária no
Brasil, visto ainda como um local de repouso e lazer14.
A partir de 1808, com a vinda da família real para o Brasil e a abertura de escolas de
estudo superior até então proibidas, intensifica-se a vinda de africanos para a colônia sul-
americana. Nolivro de registro de alunos da Academia Médico-cirúrgica do Rio de Janeiro, do
ano de 1815, de um total de 77 alunos, 12 são africanos, seis deles de Angola.15 Em 1812, a
estudar no Colégio de Minerva, ao lado de filhos de alguns ricos traficantes da praça carioca,
como Antônio Gomes Barroso e Elias Antônio Lopes, estavam dois africanos, provenientes
de Angola e Moçambique.16
Mesmo antes da transferência da família real, Angola já mantinha com o Brasil
relações bem mais próximas do que com Portugal. Havia proximidade tanto na cúpula quanto
na base da sociedade. Por cima: entre 1648 e 1825, metade dos governadores de Angola
passou depois pelo Brasil; famílias poderosas de Luanda, como os Matoso da Câmara e
Amaral Gurgel e Andrade tinham origem em ramos “brasileiros”. Por baixo: a circulação de
degredados entre as duas margens era frequente e grande parte dos soldados para as tropas
angolanas era fornecida pelo Brasil. Na área da saúde a dependência do Brasil era tão grande
– os medicamentos eram enviados de lá, as famílias ricas tratavam-se lá e de lá vinham
produtos farmacognósticos, como raízes, ervas, sementes, óleos, resinas, etc. – que havia uma
esperança de que o Brasil sempre tivesse remédios para todos os males.17
Ao lado das razões de ordem cultural e afetiva, sedimentadas em séculos de relações
bilaterais, havia as de ordem política. Em comum entre brasileiros e angolanos havia uma
certa lusofobia – sempre tendente a aumentar em momentos de crise – contra os que, no final
das contas, detinham o poder e ocupavam os melhores lugares na administração civil, militar
e religiosa, em detrimento dos naturais. Era a “lógica do sistema colonial”, que, de forma
14 PACHECO, Carlos, op.cit., p. 110. 15 Os demais eram de Moçambique (três), Cabo Verde (um) e São Tomé (dois). Transcrição do livro de
registro de alunos da Academia Médico-cirúrgica do Rio de Janeiro, aberto em 1815. Disponível em: <http://www.museuvirtual.medicina.ufrj.br/painel/arquivos_obras/15032006135626.pdf> Acesso em 5 set. 2015.
16 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Ler, contar e escrever: educação e livros no Rio de Janeiro joanino (1808-1821). História: Questões & Debates, n. 60, 2014, p. 168.
17 PANTOJA, Selma. O litoral angolano até as vésperas da independência do Brasil. Textos de História, vol. 11, n. 1-2, 2003, p. 188-206.
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mais ou menos dissimulada, sempre existiu como prática, mas que em tempos de crise tendia
a assumir um vigor ainda maior, quando os antagonismos no seio da sociedade euro-africana
do litoral (Luanda, Benguela) e do hinterland, opondo naturais e europeus, se agudizavam.18
3. Os degredados e a maçonaria
Algumas das conspirações e revoltas ocorridas no Brasil – Inconfidência Mineira
(1789), Conjuração Baiana (1798) e Revolução Pernambucana (1817-1824) – tiveram um
grande impacto em Angola, seja através da circulação das ideias por elas defendidas,
transmitidas por jornais e panfletos, seja pelo contato com degredados que delas participaram.
Foram condenados a cumprir degredo em Angola os inconfidentes José Alvares Maciel,
Ignácio José de Alvarenga Peixoto, Luiz Vaz de Toledo Piza, Francisco Antônio de Oliveira
Lopes, Francisco de Paula Freire de Andrade, Domingos Vieira de Abreu e Fernando José
Ribeiro. Todos traziam ao aportar em África – a comprovar mais uma vez a multifacetada
rede existente entre as duas margens – cartas de recomendação de amigos do Brasil dirigidas a
conhecidos ou familiares a viver em Angola. Num dos casos, a carta de recomendação fora
assinada por um comerciante do Rio de Janeiro assumidamente maçon.19 Esses homens
chegaram a cumprir papéis importantes entre a elite local, como foi o caso, por exemplo, de
Luiz Vaz de Toledo e Piza, ao ingressar na poderosa Confraria de Nossa Senhora do Carmo,
em Luanda, que reunia “filhos do país”20 e brasileiros e exercia uma profunda influência
política e ideológica na sociedade local.21
Além dos inconfidentes de Minas Gerais, foram enviados para Angola Pedro Leão de
Aguilar Pantoja e o escravo Cosme Damião Pereira Bastos, por envolvimento na Conjuração
Baiana.
A presença dos degredados incomodava as autoridades portuguesas. Em 1821, o
governador de Angola Manuel Vieira de Albuquerque e Tovar queixou-se em carta ao Conde
dos Arcos22 de degredados vindos não só da Bahia e de Pernambuco, como do Rio de Janeiro,
considerado um importante centro da maçonaria no Brasil. De acordo com Oliveira Marques,
os primeiros grupos de deportados brasileiros ligados à maçonaria teriam chegado em 1744.23
18 PACHECO, Carlos, op.cit., p. 51. 19 Ibid., p. 89. 20 A expressão “filhos do país” é aqui utilizada para designar os negros e mestiços nascidos em áreas
subordinadas e/ou relacionadas de alguma forma à administração portuguesa em Angola. 21 GUIMARÃES, José Marques, op. cit., p. 240. 22 Ofício de Manuel Vieira de Albuquerque e Tovar para o Conde dos Arcos, Luanda, 17 fev. 1821, AHU,
Angola, 1ª seção, cx. 140, apud PACHECO, Carlos, op.cit., p. 89. 23 MARQUES, A. H. de Oliveira. Dicionário da Maçonaria Portuguesa. vol. I. Lisboa: Editorial Delta, 1986,
p. 75.
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Com efeito, durante a primeira metade do século XIX, a maçonaria exerceria uma importante
influência em Angola, quer sob a forma de clubes e de lojas maçônicas, quer indiretamente,
através de irmandades, como as confrarias de S. Pedro Gonçalves Telmo e a já mencionada
Nossa Senhora do Carmo, viabilizando a difusão e discussão, entre os seus membros, das
novas visões do mundo, das concepções iluministas e liberais, através de livros e panfletos
que circulavam de mão em mão.24
4. A literatura e as luzes
A simpatia demonstrada pelos angolanos pelas revoltas em terras brasileiras poderia
perfeitamente estar em sintonia com as ideias e notícias que também circulavam nas viagens
intercontinentais. Não podemos esquecer que estávamos na passagem do século das luzes
para o século dos nacionalismos, com a eclosão da Revolução Francesa e das guerras de
independência nos territórios americanos, em especial o Haiti e o seu forte apelo racial, e as
consequentes formações de estados nacionais.
Ainda sem imprensa, a elite letrada angolana aguardava com avidez jornais
portugueses e brasileiros que por lá chegavam. Entre 1808 e 1822, um dos mais procurados
foi o Correio Brasiliense, do brasileiro Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça.
Maçom, defensor de ideias liberais, da independência do Brasil e da abolição, gradual, do
trabalho escravo, foi perseguido pela coroa portuguesa, mas admirado nas suas possessões.
Alguns exemplares desse periódico proibido foram encontrados entre os livros pertencentes
ao advogado e alferes negro angolano Antônio Dias de Oliveira.25
Mas não foram só os jornais a circular de forma mais ou menos clandestina por
Luanda e Benguela entre o final do século XVIII e a segunda metade do século XIX. Havia, e
em grande quantidade, livros a pregar os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
provenientes da Europa e das Américas. A monarquia portuguesa bem que tentou proibir a
leitura dos filósofos das luzes: Raynal, Condorcert, Rousseau, Montesquieu, Voltaire ou
Diderot faziam parte do índex de obras proibidas pela Mesa Censória.26 Mas isso não impediu
que suas obras atravessassem o oceano clandestinamente para povoar as bibliotecas – e a
imaginação - dos poucos letrados da época. Foi assim no Brasil, mas também em Angola. Nos
24 PACHECO, Carlos. Leituras e bibliotecas em Angola na primeira metade do século XIX. Subsídios de uma primeira tentativa de abordagem. Vértice, n. 55, 1993, p. 99.
25 Ibid., p. 88. 26 VENTURA, Roberto. As leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, O. (Org.). A
Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo/Brasília: Nova Stella/Edusp/CNPq, 1990, p. 166-167, apud JANCSÓ, István. Na Bahia contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo/Salvador: Hucitec/Edufba, 1996, p. 160.
7
inventários de bens legados por ricos comerciantes e proprietários de Angola na primeira
metade do século XIX havia sofisticadas bibliotecas, nas quais podia-se encontrar os dois
volumes das Cartas do Marquês de Pombal, Les Aventures de Télémaque (1699), de Fénelon
(1651-1715), Pensamentos, de Pascal ou o Tratado de Geografia, de Balbi, mas também Le
cri des africains contre les européens leurs oppresseurs ou Coup d'oeil sur le commerce
homicide appelé traite des noirs, de Thomas Clarkson, a obra de Montesquieu e O Contrato
Social, de Rousseau.27O que justificaria a caracterização dos seus proprietários, pelo
historiador Carlos Pacheco, como “pessoas vivamente atentas ao que se passava pelo
mundo”.28
5. Contradições Iluministas
Ao refletir sobre a influência das ideias iluministas na atividade política dos líderes
das independências latino-americanas, John Lynch29 concorda que foi imensa, mas pondera
sobre as suas limitações. Ao contrário do conceito de liberdade, fartamente mobilizado, o de
independência colonial teria atraído a atenção de uma reduzida minoria de pensadores das
luzes, entre os quais se destaca Thomas Paine. Mesmo Rosseau, o principal defensor
intelectual da liberdade política contra as monarquias despóticas do século XVIII, não teria se
detido a aplicar as suas ideias revolucionárias aos povos coloniais. O próprio conceito de
revolução não fora uma das hipóteses apresentadas por Montesquieu, Voltaire ou Diderot,
possíveis críticos da radicalidade exibida pela Revolução Francesa se a esta tivessem
sobrevivido.
Quanto à escravidão africana, apesar da ambiguidade de Montesquieu30 sobre o tema
não constituir exceção entre os pensadores das luzes, Rousseau e Condorcet, com o seu
violento libelo Reflexões sobre a Escravidão dos Negros, demonstraram haver quem
advogasse pelo fim da prática odiosa.
No Iluminismo – definitivamente – não houve unanimidade. Como também não a
poderemos encontrar entre os indivíduos e grupos que influenciou, sempre prontos a
reelaborar ideias de forma a adequá-las às suas necessidades. Foi o caso de Bolívar, em sua
Carta de Jamaica, ao utilizar o conceito de despotismo oriental de Montesquieu para definir o
27 PACHECO, Carlos, 1993, p. 86-87. 28 Ibid., p. 86. 29 LYNCH, John. América Latina, entre colonia y nación. Barcelona: Crítica, 2001, p. 156-162. 30 HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Unesp, 2006, p.
113-117.
8
império espanhol.31 Mas também de Mariano Moreno, um dos fundadores do Estado
argentino, descrito pelos seus inimigos como jacobino por ter interpretado de forma bastante
truculenta, segundo eles, o lema de “liberdade, igualdade e fraternidade” durante a Revolução
de Maio de 1810.32
Benedict Anderson atribui ao medo das mobilizações políticas de índios e escravos
negros o impulso dos crioulos para a independência em relação a Madri nos casos da
Venezuela, México e Peru. E lembra que “o próprio Thomas Jefferson estava entre os
fazendeiros da Virgínia que, na década de 1770, se irritaram com a proclamação do
governador legalista que concedia liberdade aos escravos que rompessem com seus senhores
sediciosos”.33 Por mais que, na contemporaneidade, soe estranho, não se pode esquecer que
muitos líderes da independência das Treze Colônias eram magnatas agrários proprietários de
escravos. “O próprio libertador Bolívar opinou, certa vez, que uma revolta de negros era “mil
vezes pior que uma invasão espanhola”.34
Nada a estranhar, portanto, que um dos argumentos utilizados pela Junta do Governo
Provisório de Benguela, em carta dirigida ao príncipe regente D. Pedro de Alcântara para
convencê-lo a aceitar a união daquela província ao Brasil, tenha sido a ameaça dos “gentios
destes sertões vastíssimos correndo em enxames de todas as partes [a] caírem sobre esta
província, ameaçando nossas vidas, famílias e haveres com a chamada guerra preta”.35 Nessa
mesma carta, enviada pouco antes da independência do Brasil, seus autores demonstram estar
informados sobre os principais debates da época e alinham-se com a revolução liberal em
Portugal.
Como chegou enfim o tempo suspirado, em que o céu, compadecido dos males dos
portugueses, quebrou-lhes os vergonhosos grilhões do despotismo que a longos lustros
laxamente arrastavam, e como já nos consideramos livres nos nossos pensamentos, na nossa
língua e nossa pena, privilégios de que se goza em uma nação livre (…).
6. Hipóteses
Todos esses elementos – rebeliões, livros, panfletos, jornais, degredados, ligações
culturais e familiares e interesses econômicos entre as duas margens do Atlântico português -
devem levar-nos a concluir que a reivindicação de moradores de Benguela e Luanda para
unir-se ao Brasil foi a expressão de um sentimento mais amplo e enraizado favorável à
31 LYNCH, John, op.cit., p. 157. 32 Ibid., p. 162. 33 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p. 58-59. 34 Ibid., p. 59. 35 Gazeta do Rio. Rio de Janeiro, 5 out. 1822, n. 120.
9
independência daqueles territórios frente a Portugal? Se a investigação histórica publicada até
agora foi insuficiente para dar respostas mais categóricas a estas questões, não é possível
negar a existência das manifestações de rebeldia naquelas duas regiões da Angola portuguesa
e a sua manutenção, com grande vigor, durante o primeiro quartel do século XIX, como
indica a documentação. Também não parece correto desqualificá-las pelo fato de terem
recebido apoio de traficantes de escravos ou mesmo tendo sido lideradas por estes. Como
vimos, os líderes das mais importantes revoluções daqueles finais do século XVIII e primeira
metade do XIX – estadunidense, latino-americana e francesa, com a única exceção do Haiti –
ou foram proprietários de escravos, caso das duas primeiras, ou relutaram em suprimir a
escravidão em suas colônias, caso da França, que só aboliu essa forma de trabalho depois da
vitória da rebelião dos escravos de São Domingos, para depois restabelecê-la com Napoleão.
Ainda mais simplista seria enquadrá-las numa só grelha interpretativa – a do interesse na
manutenção do tráfico de escravos -, ignorando todos os outros fatores que ajudaram a tecer
aquela trama.
Ao analisar a Conjuração Baiana, em 1798, Jancsó procurou compreender como uma
sedição local situou-se numa conjuntura que a ultrapassava, fornecendo-lhe as suas
possibilidades e limites.36 Ao deslocar o ordenamento do real para a crise do Antigo Sistema
Colonial, a independência passou a ser a chave analítica para as revoltas coloniais do final do
século XVIII – e início do XIX, acrescentaria. Assim como fez o historiador em relação à
Bahia do final do século XVIII, é preciso integrar os acontecimentos de Luanda e Benguela
naquele primeiro quartel do século XIX à conjuntura de crise econômica e política no mundo
atlântico, mas sem perder de vista as suas peculiaridades. Como sublinha Jancsó, quando as
ideias-força da Revolução Francesa ganharam expansão “isso se deu nas linhas de força
tradicionais das formações econômico-sociais em cujo interior receberam guarida”.
Liberdade e igualdade, direitos do homem e democracia não eram conceitos absolutos: eram pensados a partir dos problemas concretos, das formas historicamente dadas de suas negações no interior das distintas sociedades, e as práticas políticas que aí produziram (…) traziam determinantemente a marca e os interesses objetivos do grupo social que assumia a direção da ação.37
Numa proposição mais ousada, como sugere Bonavena38, seria possível encontrar
nesse movimento pró-independência de Portugal por parte de setores da elite de Luanda e
36 JANCSÓ, István, op.cit.. 37 Ibid., p. 165. 38 Sobre a origem do nacionalismo angolano, o autor argumenta que esta pode ser encontrada no jornalismo
contestatário da segunda metade do século XIX, antecedida de uma “uma tomada de consciência que vai
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Benguela uma das raízes do nacionalismo angolano? Em termos de cronologia histórica, não
haveria qualquer anacronismo. Uma parcela importante da historiografia, senão a maioria,
concorda em afirmar que aquele foi o tempo do nacionalismo. Anthony D. Smith considera
que a ideologia e o movimento nacionalista surgiram no último quartel do século XVIII e na
primeira década do século XIX na Europa.39 A ideia de identidade nacional estaria presente
nas obras de Montesquieu e Rousseau, tendo este último declarado que cada povo tem ou
deveria ter um caráter nacional e, na sua ausência, seria necessário dotá-lo de um.40
A extensão do fenômeno à Ásia, África e América Latina seria, segundo Smith, uma
“mescla de imitação e reação: as elites, sobretudo intelectuais, adotam e adaptam as ideias
ocidentais de nação e de regeneração nacional”.41Mas, onde quer que surja, a nação seria uma
categoria inventada, não enraizada na natureza ou na história, construída pelos
“autodenominados” nacionalistas, “empenhados em conquistar o poder e colher os frutos da
luta política”.42 Numa das escassas sínteses possíveis em relação ao tema, conclui Smith que
“o sentimento da modernidade e da natureza 'construída' da nação é largamente compartilhado
por historiadores contemporâneos de todas as orientações”.43
Hans Kohn, segundo Smith, apesar de acreditar na modernidade das nações e do
nacionalismo, admitiria motivações étnicas pré-modernas e flexibilizaria o “sentimento
nacional” para incluir na sua elaboração não apenas os ideólogos nacionalistas.44 Numa
aproximação a Kohn, John Breuilly não confere a esses ideólogos sequer um papel
predominante na construção da nação. Para ele, os movimentos nacionalistas, como
movimentos de oposição, podem ser de secessão, unificação ou reforma e surgem em Estados
nacionais ou em outro tipo de estados, como impérios ou colônias. As nações não seriam
apenas construções recentes restrita a ideólogos profissionais, e o nacionalismo é apresentado
como “um instrumento de legitimação e mobilização por meio do qual os líderes e as elites
despertam o apoio das massas para sua luta competitiva pelo poder”.45
afirmar-se, ainda que ambivalente, de forma clara ao nível cultural e de forma quiçá ainda fragmentada, ao nível político, pelo menos até ao movimento pró-independência do Brasil, em 1822”. BONAVENA, E. As origens do nacionalismo africano (leitura crítica de Mário Pinto de Andrade). In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura (Org.). Mário Pinto de Andrade – um intelectual na política. Lisboa: Colibri, 2000, p. 188.
39 SMITH, Anthony D. O Nacionalismo e os Historiadores. In: BALAKRISHNAN, Gopal (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 186-187.
40 Id., National Identity. London: Penguin Books, 1991, p. 95. 41 Id., 2000, p. 186. 42 Ibid., p. 187. 43 Ibid., p. 197. 44 Ibid., p. 193. 45 Ibid., p. 197-198.
11
Apresentando, assim como a análise de Breuilly, um sentido “instrumentalista”, na opinião de
Smith, os ensaios de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, em The Invention of Tradition, considerariam
a nação, com os seus fenômenos associados – o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos e
histórias nacionais – como estreitamente ligados a “tradições inventadas” e tendo por base “exercícios
de engenharia social”. As nações não seriam nem antigas nem naturais, mas, pelo contrário, estariam
associadas a símbolos apropriados e, em geral, recentes ou “a um discurso feito convenientemente sob
medida”, como a própria história nacional.46 Uma visão até certo ponto compartilhada por Hobsbawm:
“As nações não fazem Estados e nacionalismos, o contrário é que é verdadeiro”.47
Em sua leitura de Hobsbawm, José Manuel Sobral considera que, para este, as
ideologias oficiais não constituiriam os veículos apropriados para compreender as atitudes e
comportamentos das massas, manifestações que designa como “protonacionalismo popular”.
Os elementos desse protonacionalismo popular seriam a língua, a etnicidade e a religião. Mas
o critério mais relevante em termos de protonacionalidade será a “consciência de se pertencer ou ter
pertencido a uma entidade política que perdurou”.48 Num recorte mais restrito e impositivo,
para Hobsbawm, o elemento crucial da nação moderna é a formação do Estado-nação. Para ele, “só há
nacionalismo moderno no contexto do século XVIII, vinculado a uma noção de soberania popular que
se exerce ou virá a ser exercida num Estado independente”.49
A reflexão de Renan, um contemporâneo das batalhas nacionais de meados do século
XIX na Europa, não consegue apresentar um conceito de nação sem o acordo de uma maioria,
fornecendo-lhe um caráter mais espontâneo:
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. (…) Uma nação é, portanto, uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios que fizemos e daqueles que estamos dispostos a fazer ainda. Ela pressupõe um passado; mas resume-se, no presente, a um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a viver em comum. A existência de uma nação é um plebiscito realizado a cada dia, assim como a existência do indivíduo é uma perpétua afirmação da vida.50
46 Ibid., p. 198. 47 “Nations do not make states and nationalisms but the other way round.” HOBSBAWM, Eric J. Nations and
Nationalism since 1780. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p. 10. Tradução minha. 48 SOBRAL, José Manuel. A formação das nações e o nacionalismo: os paradigmas explicativos e o caso
português. Análise Social, v. 165, 2003, p. 1098. 49 Ibid. 50 “Une nation est une âme, un principe spirituel.(...) Une nation est donc une grande solidarité, constituée par
le sentiment des sacrifices qu'on a faits et de ceux qu'on est disposé à faire encore. Elle suppose un passé ; elle se résume pourtant dans le présent par un fait tangible: le consentement, le désir clairement exprimé de continuer la vie commune. L'existence d'une nation est (pardonnez-moi cette métaphore) un plébiscite de tous les jours, comme l'existence de l'individu est une affirmation perpétuelle de vie.” RENAN, Ernest. Qu'est-ce qu'une nation ? Littérature et identité nationale de 1871 à 1914. Paris: Pierre Bordas et fils, Éditeur, 1991, p. 50-51. Tradução minha.
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Na Introdução de Um mapa da questão nacional, Benedict Anderson sintetiza o
“estado da arte” do debate nacional:
Não há desacordo que o nacionalismo está presente em todo o planeta há, no mínimo, dois séculos. Tempo suficiente, pode-se pensar, para que seja fiável e geralmente entendido. Mas é difícil pensar em qualquer fenômeno político que continue a ser tão enigmático e sobre o qual haja menos consenso analítico. Não existe nenhuma definição amplamente aceita.51
Ironicamente, na atualidade, uma das teses mais aceitas sobre nacionalismo e nação é
a do próprio Anderson:
Dentro de um espírito antropológico, proponho, então, a seguinte definição para nação: ela é uma comunidade política imaginada — e imaginada como implicitamente limitada e soberana. Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.52
Todas as comunidades maiores que as primitivas aldeias – e mesmo estas, enfatiza –
seriam imaginadas. Para o autor, essas comunidades não devem “ser distinguidas por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas”. Mais uma vez – como em
Jancsó, quando localizou a quase-sublevação baiana na crise do Antigo Sistema Colonial e do
Antigo Regime na Europa –, a época é elevada à categoria de chave-explicativa, agora de um
conceito: uma comunidade pode ser imaginada como soberana “porque o conceito nasceu
numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino
dinástico hierárquico, divinamente instituído”.53 Era uma época em que “tinha lugar uma
mudança fundamental nos modos de apreender o mundo, que mais do que qualquer outra
coisa, tornou possível 'pensar' a nação”.54
Como pensavam a “nação” os homens e as mulheres que viviam na colônia portuguesa
chamada Brasil naquela época? Jancsó comparou a América Portuguesa de finais do século
XVIII e início do XIX a um “compósito de mosaicos”, com diferentes níveis de integração
com Lisboa, mas sem qualquer ou com pouca integração entre si. Essa realidade teria
propiciado a cada região uma ideia particular de “pátria”, de qualquer forma bastante
51 “There is no disagreement that nationalism has been 'around' on the face of the globe for, at the very least, two centuries. Long enough, one might think, for it to be reliably and generally understood. But it is hard to think of any political phenomenon which remains so puzzling and about which there is less analytic consensus. No widely accepted definitions exists.” ANDERSON, Benedict. Introduction. In: BALAKRISHNAN, Gopal (Ed.). Mapping the Nation. London/New York: Verso, 1996, p. 1. Tradução minha.
52 Id., 1989, p. 15. 53 Ibid. 54 Ibid., p. 31.
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diferente da então proposta pelas cortes no Rio de Janeiro.55 “A nação no sentido moderno,
identificando sua soberania com a do Estado, era um projeto a ser inventado na América”,
pois não havia territórios passíveis de serem identificados como pertencentes a ancestrais
direitos nacionais, como acontecia na Europa naquele período.56 “Não existiam, aí, nem as
burguesias em busca de hegemonia no interior de formações sociais identificadas com as
nações” nem “nobrezas ameaçadas em suas liberdades tradicionais e hegemonias”, como no
velho continente. “Na América, a politização do nacional que acompanhou a crise do Antigo
Regime atendeu a exigências de classe muito distintas daquelas que informavam os objetivos
dos europeus envolvidos na sua superação.”57
Jancsó aponta aqui para a inexistência de um projeto moderno de nação na América ibérica e,
indo ainda mais longe, para a impossibilidade dele ser pensado devido às características que
condicionavam um território colonial, sem classes sociais definidas pelo padrão europeu e pela
existência estruturante de relações de produção escravagistas. Para os homens da época, “vivessem
em qualquer parte que fosse da América ibérica até o final do século XVIII, e desde que
fossem livres segundo os critérios então vigentes, a consciência do seu pertencimento a uma
comunidade imaginada de tipo nacional, nos termos de Benedict Anderson, era dotada de
perfeita nitidez”.58 Portanto, para Jancsó, o conceito de Anderson seria suficientemente
abrangente para englobar a ideia de “nação”, mas não a “nação moderna”, identificada com
um Estado soberano, pensada pelos iluministas e construída pelo “povo” nas ruas, dotado,
mesmo que de forma inconsciente, da ideia nacional.
Esta situação só começaria a ser alterada com a instalação da monarquia no Rio de Janeiro.
“O novo reino transformara, ainda que apenas no plano simbólico, um conglomerado de capitanias atadas pela subordinação ao poder de um mesmo príncipe numa entidade política dotada de precisa territorialidade, e de um centro de gravidade que, além de sê-lo do novo reino, era-o, também, de todo o império.”59
Mesmo com a manutenção das identidades locais até então existentes, havia agora condições
para uma alteração, com a sua transformação em brasileiras. “A partir daí, a nação brasileira tornou-se
pensável pela referência a um Estado - o Reino do Brasil - que definia seus contornos como
comunidade politicamente imaginável, retornando novamente aos termos de Benedict Anderson.”60
55 JANCSÓ, István. Independência, independências. In: Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 17-48.
56 JANCSÓ, István. Este livro. Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo, Ijuí: Hucitec, Fapesp, Editora Unijuí, 2003, p. 21.
57 Ibid. 58 Ibid. 59 Ibid., p. 26. 60 Ibid., p. 27.
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A ressaltar a complexidade da noção de identidade, Denis Antônio de Mendonça
Bernardes, na contramão da hipótese de Jancsó quanto à possibilidade da transformação das
identidades locais em identidade nacional brasileira com a transferência da Corte, considera
que esta foi, sob vários aspectos, “sentida por diversos setores sociais em Pernambuco, não
como o fim do sistema colonial, mas como a reiteração e mesmo agravamento de alguns
aspectos da tradicional relação metrópole/colônia”.61 Isto aconteceria devido a motivos
bastante concretos como o aumento da carga fiscal, atingindo largas camadas da população. A
monarquia deixou de ser vista apenas como um poder despótico, mas também “como um
corpo parasitário e sugador das riquezas da província, mediante os novos impostos, a
transferência de renda e as suas forças humanas em razão do recrutamento. A monarquia ia
deixando de ser sentida, por muitos, como um fator de coesão, transformando-se em um fator
de dissociação”.62
No âmbito da hipótese apresentada por Jancsó, mas integrando o contributo de Bernardes
sobre a realidade pernambucana, poderia ser legítimo refletir sobre o impacto local – em Luanda e
Benguela – da transferência da família real para o Rio de Janeiro e a sua constituição, na prática, de
centro do poder no Reino. Luanda, em 1805, era uma cidade portuária onde viviam 7.060 pessoas,
entre as quais 660 brancos (9,3%), em sua maioria portugueses, em boa parte integrados em alguma
função da burocracia colonial; 1.244 mestiços (17,6%), e 5.156 negros. Mestiços e negros constituíam
90,7% da população.63 Nesse mesmo ano, 50,9% desse total era constituída por gente livre e 49,1%
eram escravos, numa proporção bastante similar à do Brasil em algumas cidades e períodos temporais.
Para um breve termo de comparação, verifiquemos que, em 1821, na área urbana do Rio de Janeiro,
havia 86.323 moradores, dos quais 45.947 eram livres e 40.376 escravos. Mas tanto Luanda quanto
Benguela apresentavam uma grande diferença em relação ao Brasil, ao estarem, cercadas de povos
soberanos, que não estavam submetidos ao poder português.64
As singularidades e semelhanças entre Angola e Brasil é um tema que merece ser estudado,
inclusive no âmbito da problematização da questão nacional, mas foge ao objetivo deste trabalho. Da
mesma forma, o impacto econômico, social e cultural da transferência da Corte para o Rio de Janeiro.
De que forma esse evento fez recrudescer a lusofobia tão disseminada entre os “filhos do país” e, pelo
contrário, aproximou-os dos “brasileiros”, vistos como mais próximos, mais iguais.
61 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem constituição soberana não há união. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2003, p. 228.
62 Ibid., p. 231. 63 CURTO, José C.; GERVAIS, Raymond R. The population history of Luanda during the late Atlantic Slave
Trade, 1781-1844. African Economic History, n. 29, 2001, p. 57. 64 SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na Capital do Brasil: A Escravidão Urbana no Rio de Janeiro do
Século XIX. Rio de Janeiro: Faperj/7Letras, 2007, p. 380.
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Este texto é o início de uma reflexão sobre a origem do nacionalismo angolano, uma
trajetória que irá prosseguir, certamente cercada de desafios, armadilhas e poucas certezas.
Terminemos com um trecho de um texto de Rousseau, não tão conhecido como o Contrato
Social, mas que dá bem a dimensão da liberdade do pensamento naqueles anos iluminados:
“Se eu fosse chefe de algum povo da Nigritie [referência à África], declaro que ergueria na
fronteira do país uma forca onde enforcaria sem perdão o primeiro europeu que ousasse ali
penetrar, e o primeiro cidadão que tentasse dali sair”. 65
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65 “Si j'étais chef de quelqu'un des peuples de la Nigritie, je déclare que je ferais élever sur la frontière du pays une potence où je ferais pendre sans rémission le premier Européen qui oserait y pénétrer, et le premier citoyen qui tenterait d’en sortir”. ROSSEAU, Jean-Jacques. Dernière réponse de J. -J. Rousseau de Genève au discours de M. Bordes, académicien de Lyon. Discours qui a remporté le prix de l’Académie de Dijon em l’année 1750. Edição Eletrônica: Pierre Hidalgo, La Gaya Scienza, 2012. Disponível em: <http://www.ac-grenoble.fr/PhiloSophie/old2/file/rousseau_discours_sciences_art.pdf> Acesso em: 7 ago. 2014, p. 119. Tradução minha.
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