maria carla moutinho nery o direito de viver sem ... · a banca examinadora composta pelos...

98
MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL Dissertação de Mestrado Recife 2014

Upload: phamduong

Post on 22-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

MARIA CARLA MOUTINHO NERY

O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação de Mestrado

Recife

2014

Page 2: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

MARIA CARLA MOUTINHO NERY

O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Direito do

Centro de Ciências Jurídicas/

Faculdade de Direito do Recife da

Universidade Federal de Pernambuco

como requisito parcial para obtenção

de título de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Teoria e

Dogmática do Direito

Linha de Pesquisa: Transformações nas

Relações Jurídicas Privadas e Sociais

Orientador: Professor Doutor Paulo

Luiz Netto Lôbo

Recife

2014

Page 3: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

Catalogação na Fonte Bibliotecária Karine Vilela CRB/4-1422

N456d Nery, Maria Carla Moutinho

O direito de viver sem prolongamento artificial / Maria Carla Moutinho Nery. – Recife: O

Autor, 2014.

96f.

Orientador: Paulo Luiz Netto Lôbo.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2014.

Inclui bibliografia.

1. Direito constitucional - Brasil. 2. Direito civil – Brasil. 3. Ortotanásia. 4. Dignidade humana. 5. Doenças terminais – aspectos jurídicos. I. Lôbo, Paulo Luiz Netto (Orientador). II. Título.

342 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2014-012)

Page 4: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

MARIA CARLA MOUTINHO NERY

O DIREITO DE VIVER SEM PROLONGAMENTO ARTIFICIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em

Direito da Faculdade de Direito do Recife/ Centro de

Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco

como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Direito.

Área de Concentração: Teoria de Dogmática do Direito

Orientador: Prof. Dr. Paulo Luiz Neto Lôbo

A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do

primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível de Mestrado, e a julgou nos seguintes

termos:

MENÇÃO GERAL: ___________________________________________________________

Professor Dr. Paulo Luiz Neto Lôbo (Presidente-Orientador/UFPE)

Professor Dr. Roberto Paulino Albuquerque Júnior (1º Examinador externo/UFPE)

Julgamento:________________________ Assinatura: ________________________________

Professora Drª Fabiola Albuquerque Lôbo (2ª Examinadora interna/UFPE)

Julgamento : ______________________ Assinatura : ________________________________

Professor Dr. Torquato da Silva Castro Júnior (3º Examinador interno/UFPE)

Julgamento : ______________________ Assinatura : _________________________________

Recife 17 de janeiro de 2014.

Coordenador: Prof. Dr. Marcos Antônio Rios da Nóbrega

Page 5: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

À minha mãe, Lúcia Moutinho. Com ela

aprendi a dar os primeiros passos, a ler, a

escrever, a ser, a lutar pela vida, a amar, a

respeitar e a fazer o bem sem olhar a quem.

Por ela, segui os trilhos da vida acadêmica e

com ela perseguirei os caminhos mais estreitos

por onde se alcançam as grandes conquistas.

Ao meu esposo, Fábio Nery, pela paciência e

pelo amor incondicionais durantes esses anos

de muita renúncia e dedicação.

Page 6: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

AGRADECIMENTOS

Ao professor, orientador e amigo, a quem tanto admiro, Paulo Luiz Netto Lôbo pela

serenidade e competência em conduzir esta pesquisa com a maestria e a humildade que lhes

são peculiares;

Aos amigos Marcos Ehrhardt e Expedito Lima que abriram as portas e me mostraram

quão lindo é o horizonte da vida na academia;

Aos professores da UFPE - Fabíola Albuquerque Lôbo, Larissa Leal, Roberto Paulino

e Torquato de Castro Júnior, sem os quais essa pesquisa não teria sido levada a efeito, pelo

aprendizado diário que tanto me engrandeceram como estudante e como pessoa;

Aos amigos da UFPE - Maria Rita Holanda, Luciana Brasileiro, Gustavo Andrade e

José Barros, que tanto contribuíram para o meu crescimento com afeto, carinho, apoio e

atenção, e os quais aprendi a amar e admirar;

A minha família! Minha Mãe, Lúcia Moutinho, um exemplo a ser seguido. Com

doçura, força e competência, ela alcançou o mais alto título da academia, o pós-doutoramento,

posição onde um dia pretendo chegar. Meu pai, Múcio Moutinho, e meu irmão, Luiz Mário

Moutinho, por me fazerem iniciar a carreira jurídica, estimulando-me à busca do saber, com

exemplos de seriedade, compromisso e honestidade. Ao meu irmão Paulo Góes Moutinho, à

minha cunhada Claudia Nicoletto e à minha madrasta Nivalda Moutinho pela crença no

alcance desta vitória e pela compreensão dos longos meses de ausência. Às minhas irmãs do

coração Maíra Bailey e Camila Fonseca, pelo envio de textos, pelo apoio, pelo carinho e pela

torcida. Ao meu esposo, Fábio Nery, meu fã número um, pelo suporte diário, pelos finais de

semana renunciados, pela paciência e sobriedade durante essa longa jornada;

A Neurinete Carvalho pela paz, sabedoria e serenidade que me deu, as quais me

mantiveram firmes na realização deste trabalho;

Ao amigo, médico e estudioso da medicina Paulo Hernando Ferraz pelas orientações e

textos sempre bem aceitos sobre a ciência médica;

Aos colegas dos Grupos de Pesquisa „Virada de Copérnico‟ da UFPR, em especial,

Marcos Alberto Rocha Gonçalves, Carlos Pianovsky e Viviane Girardi, e „Perfis de Direito

Civil‟ da UERJ, principalmente, Paula Francesconi, Eduardo Nunes e Fernanda Nunes

Barbosa, sempre solícitos em enviar-me textos e outras contribuições para esta pesquisa;

A Maria Lia pela presteza e disponibilidade em me orientar sobre as normas da

ABNT. Ao professor João Luís Lins pelo conhecimento singular da Língua Portuguesa e

pelos ensinamentos grandiosos na transmissão de um texto claro e coeso;

Page 7: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

Aos amigos do Tribunal de Justiça de Pernambuco pela confiança, carinho e

compreensão. Ao meu chefe, o Desembargador Eduardo Sertório, por reconhecer os valores e

o conhecimento que só o ambiente acadêmico pode nos proporcionar, dando-me a

oportunidade para novos desafios profissionais.

Page 8: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

“Minha profissão é dizer o que penso”

Voltaire

Page 9: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

RESUMO

NERY, Maria Carla Moutinho. O direito de viver sem o prolongamento artificial. 2014. 96

fl. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de

Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

Esta dissertação enfoca o direito de viver sem o prolongamento artificial e como esse direito

pode ser exercido no Brasil. Para tanto, fez-se uma análise doutrinária sobre a ortotanásia, a

eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia com o objetivo de melhor compreender as

situações da terminalidade da vida. Em seguida, estudou-se os princípios da autonomia

privada e da dignidade da pessoa humana como fundamentos para o exercício do direito de

viver sem prolongamento artificial. Fez-se uma análise do tema na com o estudo da

Constituição Federal, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica, das Resoluções do

Conselho Federal de Medicina e dos Projetos de Lei em trâmite no País. Verificou-se a

possibilidade de se empregar o testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro como

instrumento hábil para o exercício do direito de viver sem prolongamento artificial. Fez-se

uma análise da experiência internacional sobre o assunto, notadamente, quanto as leis editadas

na Espanha, em Portugal, na Argentina, na Noruega, na Suíça, apontando os acertos e

desacertos destas legislações. Encontrou-se a representação mista como uma alternativa para

alcançar o direito de viver sem prolongamento artificial sem que a declaração de vontade

prestada nos momentos de lucidez pelo paciente terminal perca a sua eficácia. Como base

teórica, utilizou-se a doutrina do direito civil-constitucional, com ênfase nos direitos da

personalidade, tomando como fundamento os princípios da dignidade da pessoa humana e da

autonomia privada.

Palavras-chave: Vida. Ortotanásia. Autonomia privada. Dignidade humana. Testamento

vital.

Page 10: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

ABSTRACT

NERY, Maria Carla Moutinho. The right to live without the artificial prolongation. 2014.

96 fl. Dissertation (Master's Degree of Law) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro

de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

This dissertation focuses on the right to live without the artificial prolongation and how that

right may be exercised in Brazil. As such, there is a doctrinal analysis of orthothanasia,

euthanasia, assisted suicide and dysthanasia to better understand the terminal situations. That

force us to study deeply the doctrine of civil and constitutional law in the analysis of existing

normative regulations in Brazil on the subject, through the study of the Constitution, the

Criminal Code, Civil Code and Medical Ethics Code, the Resolutions of the Federal Council

of Medicine and Bills pending in the country. There was the possibility of using the living

will in the Brazilian legal system and skilled to perform the self-determination of the patient

terminal instrument when he becames incompetent. There was an analysis of international

experience on the subject , notably , as the laws published in Spain , Portugal, Argentina ,

Norway, Switzerland , pointing out the rights and wrongs of these laws . The attorneyship

show us an alternative way to achieve the right to live without artificial prolongation without

a declaration of will in moments of lucidity provided by terminal patients lose their

effectiveness. As a theoretical background, we used the doctrine of civil and constitutional

law, with an emphasis on personal rights, taking as a basis the principles of human dignity

and personal autonomy.

Key Words: Life. Orthothanasia. Private autonomy. Human dignity. Living will.

Page 11: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADI Ação direta de inconstitucionalidade

ADPF Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

CCB

Código Civil Brasileiro

CDC Código de Defesa do Consumidor

CEM Código de Ética Médica

CF Constituição Federal

CPB

Código Penal Brasileiro

CPC Código de Processo Civil

CRM

Conselho Regional de Medicina

EEG Eletroencefalograma

LCT Limitação Consentida de Tratamento

NSV Não-Oferta de Suporte Vital

ONR Ordem de Não-Ressuscitação

OMS

Organização Mundial de Saúde

PL Projeto de Lei

PLS Projeto de Lei do Senado

RSV Retirada de Suporte Vital

SNT Sistema Nacional de Transplante

STF Supremo Tribunal Federal

RENTEV Registro Nacional do Testamento Vital

VOLP Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa

UTI

Unidade de Terapia Intensiva

Page 12: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 111

1 A TERMINALIDADE DA VIDA ............................................................................ 155

1.1 Ortotanásia ................................................................................................................ 166

1.2 Eutanásia ................................................................................................................... 233

1.3 Suicídio Assistido ........................................................................................................ 29

1.4 Distanásia ................................................................................................................... 311

1.5 Crítica à expressão “morte digna” .......................................................................... 333

2 OS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA E DA DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA COMO FUNDAMENTO DO DIREITO À VIDA SEM

PROLONGAMENTO ARTIFICIAL ..................................................................... 377

2.1 Autonomia da vontade, autonomia privada e autonomia do paciente ................ 377

2.2 Liberdade e Dignidade Humana ............................................................................. 433

3 A REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA ORTOTANÁSIA ........................ 477

3.1 A Constituição Federal ............................................................................................... 48

3.2 A ortotanásia segundo a perspectiva dos códigos penal, civil e de ética médica. 533

3.3 As resoluções do Conselho Federal de Medicina. .................................................. 633

3.4 Os Projetos de Lei em tramitação no Brasil. ............................................................ 68

4 O “TESTAMENTO VITAL”: UMA DECLARAÇÃO VÁLIDA E EFICAZ ..... 722

4.1 Experiência Internacional ........................................................................................ 755

4.2 Condições de validade e eficácia. ............................................................................... 78

CONCLUSÃO.........................................................................................................................85

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88

Page 13: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

11

INTRODUÇÃO

O objetivo desta dissertação é a análise do direito de viver sem o prolongamento

artificial. Esse direito pode ser entendido como a extinção da vida de um paciente em estágio

terminal de forma indolor e fugaz, sem sofrimento. O tema se insere na área de Direito Civil-

Constitucional, com ênfase na doutrina dos direitos da personalidade bem como na Teoria dos

Direitos Fundamentais, partindo do pressuposto de que o direito à ortotanásia é um tipo de

direito da personalidade, garantido pelo sistema constitucional brasileiro.

O marco teórico utilizado para o desenvolvimento deste estudo foi a doutrina do

direito civil constitucional, segundo a qual os institutos de direito civil são interpretados

segundo a orientação dos princípios constitucionais, tomando como base as publicações do

Professor Paulo Luiz Netto Lôbo.

O estágio terminal de um doente está relacionado à evolução das técnicas médicas de

reavivamento. Isso porque, tradicionalmente, até o Século XVIII, os enfermos passavam seus

últimos dias em casa, ao lado dos entes queridos, com o acompanhamento do médico da

família. Os hospitais guardavam uma natureza protetiva e assistencialista aos desafortunados,

pois a morte, tanto como o nascimento, era um acontecimento social, próprio das famílias.

Com as duas grandes guerras mundiais, o progresso tecnológico também alcançou a

medicina. As técnicas de reanimação possibilitaram a remoção de pessoas gravemente

doentes de suas casas para os hospitais, onde realizariam todos os esforços terapêuticos

possíveis, em favor da manutenção da vida. Os médicos deixaram sua condição de „médico da

família‟ para ocuparem a função de especialista em determinado ramo da medicina.

A escolha da terapia mais adequada à doença ficava a cargo desses profissionais que

adquiriram um poder de decisão maior que o do próprio paciente em estágio terminal ou da

família deste. Os tratamentos das enfermidades passavam a fazer parte do cotidiano médico,

despersonalizando-se o processo de morte (MENEZES, 2003, p. 105).

Há uma perseguição irrefletida pela cura da doença, ainda que em detrimento do bem-

estar do enfermo. As atenções se voltam para a enfermidade e para as descobertas científicas

de novas terapias, ficando em segundo plano o ser humano, os interesses na minoração do

sofrimento dele e o seu conforto físico e mental. Isso gera a despersonalização do paciente,

pois se mantém a vida pela busca de uma cura inatingível, olvidando-se que o essencial é

cuidar do enfermo e não da doença a ele acometida.

Page 14: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

12

Em oposição a essa prática, emergiu a necessidade de se repersonalizar o processo de

finitude da vida. As doenças fatais, vistas como parte do ciclo vital, deixam de ocupar o

centro das atenções para que o ser humano volte a assumir esta posição, por meio da medicina

paliativa, que tem por objeto a minoração da dor em vez da busca desenfreada pela cura.

Nesse sentido, os avanços tecnológicos não mais se prestam para retardar o processo de

morte, mas para viabilizar esse acontecimento da forma mais tênue possível, utilizando os

aparatos médicos para poupar os pacientes de dores desnecessárias.

É nesse cenário que a prática da ortotanásia, objeto da presente dissertação, está

inserida, pois a pesquisa trata de situações em que, uma vez afastadas as possibilidades de

cura, espera-se a morte chegar, proporcionando ao paciente a minimização da dor e a

maximização do bem-estar dentro do contexto da doença por ele vivenciada. Optou-se pela

Ortotanásia em razão deste fenômeno, até o presente momento, ser o único dentre os

fenômenos da terminalidade da vida aceito pelo direito brasileiro.

A dissertação está organizada em quatro capítulos, além desta introdução e da

conclusão. Importa esclarecer, inicialmente, que, apesar de os pacientes terminais se

sujeitarem a todos os fenômenos da finitude da vida, a saber, a ortotanásia, a eutanásia, o

suicídio assistido e a distanásia, este estudo prioriza a ortotanásia com enfoque no paciente

terminal que tenha manifestado formalmente o desejo de não ter sua vida prolongada sem

necessidade.

Optou-se pela ortotanásia porque, por enquanto, é o único autorizado pelo

ordenamento jurídico, dentre os fenômenos relativos à finitude citados acima. Assim, no

primeiro capítulo, faz-se uma explanação geral da ortotanásia e destes fenômenos próximos a

ela, com a finalidade de ambientar o tema e de distingui-los uns dos outros.

Depois, avalia-se a inadequação do uso da expressão „morte digna‟, por meio das

variadas acepções dadas a ela pela doutrina, visando a contribuir com a discussão acerca das

nomenclaturas no âmbito da terminalidade da vida. Ao final deste capítulo, apontam-se

algumas legislações mais avançadas sobre o tema, notadamente, as leis promulgadas na

Argentina e em algumas regiões dos Estados Unidos da América, para demonstrar como esses

países vêm tratando as questões da terminalidade da vida bem como referendar a inadequação

da utilização da expressão „morte digna‟ como sinônimo de ortotanásia, sem a pretensão,

contudo, de fazer um estudo de direito comparado sobre o assunto.

Page 15: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

13

No segundo capítulo, enfoca-se o princípio da autonomia privada sob o ponto de vista

do direito, partindo da idéia inicial de autonomia da vontade construída por Immanuel Kant

no Iluminismo, a qual tem conotação subjetivista, para se chegar ao conceito atual de

autonomia privada, de natureza objetivista. Não haverá aprofundamentos em relatos

históricos, por fugir ao objeto deste trabalho.

Ressalte-se, todavia, que a abordagem dada ao princípio da autonomia privada leva em

consideração tanto atos de conteúdo patrimonial como os de essência existencial, tendo em

vista que ambos estão inseridos na categoria dos atos jurídicos. O escopo da presente

dissertação não é discutir a natureza dos atos jurídicos em si, mas o exercício da liberdade

individual, por meio da autonomia privada no âmbito das relações extrapatrimoniais,

notadamente, no que tange ao direito de viver sem o prolongamento artificial. Em seguida,

demonstra-se como a autonomia do paciente é definida pela doutrina do Biodireito,

particularizando a relevância do direito à informação do paciente para que este consinta na

escolha de seu tratamento. Assim, deve-se enfatizar que o objeto deste estudo restringe-se à

consideração dos contratos remunerados de prestação de serviço entre médico e paciente, cuja

natureza é, por excelência, de consumo.

Em um segundo momento, discorre-se sobre a preservação da vida e da saúde do ser

humano no âmbito da dignidade para demonstrar como o exercício da autonomia privada, um

dos vértices da liberdade, materializa a dignidade humana do paciente em estágio terminal.

Mais adiante, no capítulo terceiro, estudam-se as questões relativas à terminalidade da

vida na área da doutrina civil-constitucional, a partir de uma leitura da Constituição Federal

Brasileira, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica vigentes no Brasil, das Resoluções do

Conselho Federal de Medicina e dos projetos de lei brasileiros em tramitação sobre este tema,

utilizando-se a óptica kelseniana do sistema escalonado de normas jurídicas.

É oportuno registrar que a contribuição extraída das normas de natureza penal é

decorrente da tendência do legislador brasileiro em criminalizar condutas atinentes à

terminalidade da vida, típicas dos direitos da personalidade, razão pela qual se faz necessária

uma breve explanação sobre como o direito penal vem abordando esse assunto.

O último capítulo analisa as questões acerca do testamento vital, visto como um dos

instrumentos hábeis para o exercício da autonomia do paciente no que concerne ao direito de

viver sem prolongamento artificial. Nesta oportunidade, avaliam-se algumas legislações

editadas em outros países sobre o tema para verificar como este instituto vem sendo utilizado.

Page 16: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

14

Em um segundo momento, analisa-se a validade e a eficácia deste instrumento bem

como a sua adequação no direito brasileiro, ante a legislação pátria existente sobre os

testamentos tradicionais.

Importa registrar, neste ponto, que o objeto deste estudo restringe-se às hipóteses de

pessoas que oficialmente realizaram a sua manifestação de vontade em estado de consciência

e competência, isto é, em pleno gozo de suas faculdades mentais e, portanto, capazes para

decidir sobre os últimos dias de suas existências (DWORKIN, 2003, pp. 251-262). Nesse

sentido, situações de reconstrução judicial da vontade de pacientes, que não chegaram a

exteriorizar sua vontade formalmente, não estão abrangidas por esta dissertação.

Page 17: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

15

1 A TERMINALIDADE DA VIDA

Sumário: 1.1. Ortotanásia. 1.2. Eutanásia. 1.3. Suicídio Assistido. 1.4.

Distanásia 1.5. Crítica à expressão “morte digna”.

A indefinição semântica está sempre presente quando se trata das questões relativas à

„terminalidade da vida‟. Sobre esse assunto, registre-se que o vocábulo „terminalidade‟ já foi

inserido no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira

de Letras e, segundo Aulete (2013) )1, significa “estado ou condição do que é terminal”.

Nesse sentido, Marília Campos Telles e Antônio Carlos Coltro (2010, pp. 290-291) afirmam

que:

A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo médico diante

de um enfermo com doença grave e incurável: há, portanto, uma “doença em

fase terminal” e não um “doente terminal” e assim a prioridade deve ser a

pessoa doente não mais o tratamento da doença, buscando o bem estar físico

e emocional do paciente.

Advirta-se, contudo, que o objeto deste estudo prioriza a ortotanásia e os pacientes

terminais, isto é, aqueles que são vítimas de uma doença prolongada, incurável e progressiva,

cuja morte está próxima e, portanto, precisam de cuidados especiais como forma de garantir o

processo de humanização na finitude da vida.

Em razão disso, deve-se esclarecer serem os doentes terminais diferentes dos pacientes

em estado vegetativo persistente os quais, sendo vítimas de lesão cerebral aguda ou crônica,

não têm consciência plena e são alimentados artificialmente. Nesse ensejo, Leocir Pessini

(2001, p. 112) distingue os doentes em estado vegetativo daqueles em estágio terminal ao

afirmar que:

Os pacientes em estado vegetativo persistente não sofrem, porque os

mecanismos do sofrimento foram destruídos. Eles também não são doentes

terminais, porque a sobrevivência é possível por muitos anos. Contudo, são

incapazes de requerer a interrupção de tratamentos de suporte de vida.

Percebe-se, portanto, estarem esses doentes em estado de hibernação, sem nenhuma

vida de relação com as demais pessoas e o sofrimento, em essência, atinge a família e não o

enfermo, pois são os entes queridos que se afligem ao ver a suspensão de uma vida num leito

de hospital.

Da mesma forma, o estudo não abrange as vítimas de enfermidades, acidentes ou

traumas que, por conseqüência, acarretaram impossibilidade de movimentação corporal do

1 Disponível em: < http://aulete.uol.com.br/terminalidade >.

Page 18: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

16

doente, tal como, a tetraplegia. Exemplo disto foi o caso Ramón Sampedro, cuja vida foi

retratada no filme „Mar Adentro‟.

O espanhol Ramón tinha uma vida ativa e feliz quando, aos 22 anos, sofreu uma lesão

na coluna cervical, ao se lançar ao mar de cima de um rochedo, permanecendo tetraplégico

por 30 anos enquanto batalhava incansavelmente pela autorização judicial da sua morte. O seu

pedido não foi acolhido pelo Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo e ele somente

conseguiu o seu intento por meio da realização, às escondidas, de um suicídio assistido

(FERRAREZE FILHO, 2010, pp. 143-159).

Os pacientes terminais não se igualam, tampouco, aos doentes em estado grave, porém

com chances de cura, ainda que mínimas. É a hipótese, por exemplo, das vítimas de sepse,

décima causa de morte mais freqüente nos Estados Unidos, comumente conhecida por

infecção generalizada. Em termos técnicos, a sepse ocorre quando “[...] a síndrome da resposta

inflamatória sistêmica é decorrente de um processo infeccioso comprovado” (MATOS;

VICTORINO, 2013, p. 102).

Assim, a expressão „paciente terminal‟ está restrita a pessoas acometidas de doenças

graves, cujo processo de cura não mais será alcançado, fato que implica numa mínima

expectativa de vida. Pacientes assim estão sujeitas a sofrimentos físicos e psicológicos

atrozes. São, por exemplo, pessoas acometidas de câncer em estágio avançado ou de AIDS,

entre outras.

Nesse sentido, Genival Veloso França (2007, p. 501) assevera: “Como paciente

terminal, entende-se aquele que, na evolução da sua doença, não responde mais a nenhuma

medida terapêutica conhecida e aplicada, sem condições portanto de cura ou de

prolongamento da sobrevivência.”. De um modo mais objetivo, Rachel Sztajn (2002, p. 107)

resume doente terminal como “aquele cuja vida está próxima do fim”.

1.1 Ortotanásia

O vocábulo ortotanásia é traduzido pela expressão „morte correta‟ e a sua criação é

atribuída ao professor Jacques Roskam. Ao publicar seu estudo em um congresso de

gerontolgia, na cidade de Liège (Bélgica), em 1950, ele percebeu a existência de um liame

entre a abreviação célere da vida, por meio da eutanásia, e o excesso de terapias, responsáveis

por retardar ao máximo a morte do paciente, chamada de distanásia. O trabalho Roskam

revelou ser concebível a supressão de esforço terapêutico de pacientes terminais ou de pessoas

Page 19: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

17

em estágio de vida vegetativa como uma solução social e humana para doenças incuráveis,

pois, do mesmo modo que seria odioso acelerar a morte de um doente (eutanásia), a tortura do

prolongamento da sua sobrevida por meios artificiais seria repugnante. A esse fenômeno ele

denominou ortotanásia, referindo-se à morte justa, correta, ao tempo certo (ROSKAM, 1950,

pp. 709 - 713). Aliás, é este significado etimológico da palavra ortotanásia: „morte correta‟,

oriunda dos termos „orthos‟ (correto) e „thanatos‟ (morte).

O conceito de ortotanásia foi delineado por Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos

Velho Martel (2011, p. 107) ao afirmarem que:

Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos

extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada

por ação intencional externa, como na eutanásia. É uma aceitação da morte,

pois permite que ela siga o seu curso.

Adicionalmente, em entendimento concorde, José de Oliveira Ascensão (2009, p. 431)

diz que: “A ortotanásia consistiria em suspender os tratamentos extraordinários, mantendo

apenas os secundários, a alimentação e os cuidados paliativos – contra a dor, por exemplo”.

Todavia, cumpre registrar a compreensão dissonante de Genival Veloso de França (2007, pp.

493 e 500) sobre ortotanásia, ao considerar que:

A ortotanásia, como a suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de

vida de um paciente em coma irreversível e considerado em “morte

encefálica, quando há grave comprometimento da coordenação da vida

vegetativa e da vida de relação. (...) Ipso facto, a ortotanásia, constante da

supressão de meios artificiais para o prolongamento da vida de um indivíduo

em “coma dépasse”, já merece a compreensão da sociedade, tendo em conta

que ele se mantém com respiração assistida, arreflexia e perda irreversível da

consciência, associadas a um “silêncio” eletroencefalográfico. Para essas

pessoas, o prolongamento penoso de uma vida vegetativa, por seus aspectos

físicos, emocionais e, mesmo, econômicos, seria de nenhuma utilidade.

Lembre-se, por essencial, que o paciente em estágio irreversível de coma (“coma

dépassé”) e com comprometimento da vida de relação não é carecedor de cuidados paliativos,

por não estar mais vivo, segundo os parâmetros médicos e legais sobre a definição de morte

encefálica.

O direito brasileiro, acompanhando a orientação dada pelo Comitê ad hoc da

Universidade de Medicina de Harvard, utiliza a morte encefálica como o critério adequado de

verificação e decretação do encerramento da personalidade civil do indivíduo, fornecido pela

deontologia médica, positivado na Resolução 1.480/1997, do Conselho Federal de Medicina –

CRM, e aceito pela doutrina civilista brasileira2. A ocorrência da morte encefálica decorre de

2 (LÔBO, 2010, p. 118; EHRHARDT JÚNIOR, 2009, p.152).

Page 20: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

18

um diagnóstico imutável cuja causa conhecida, é atestada por dois médicos e verificada por

meio de exame clínico e de eletroencefalograma.

Nesse aspecto, os critérios clínicos para a sua verificação são dois: o coma aperceptivo

com ausência de atividade motora supra-espinal e a apneia (artigos 3º e 4º da Resolução

1.480/1997). O coma aperceptivo constitui a impossibilidade de reflexos e de quaisquer

movimentos; a ausência de atividade motora supra-espinal é a ausência total e irreversível do

sistema nervoso central e a apneia, por seu turno, é a impossibilidade de respiração sem a

ajuda de aparelhos. (CORRÊA NETO, 2010, p. 360).

Diversamente, praticar ortotanásia, portanto, é reumanizar o processo de finitude,

porque se permite que a vida tome o seu curso natural rumo à extinção, sem a adoção de

procedimentos de retardamento ou de aceleração, mediante os cuidados paliativos necessários

para esse fim. Com isso, elimina-se a dilação do tratamento do paciente terminal, mantendo-

se tão somente os cuidados terapêuticos, a fim de evitar a dor e o sofrimento até que o

enfermo expire naturalmente.

A assistência a ser dada ao doente é integral, isto é, busca-se garantir não só o bem

estar físico dele, mas também o mental e o espiritual. Desta maneira, o enfermo deve também

receber suportes psicológico e religioso, de acordo com suas convicções, além do

estreitamento das suas relações interpessoais, nutridas por entes queridos e familiares

(ASCENSÃO, 2009, p. 444).

A medicina paliativa se materializa na filosofia do hospices. Esta palavra está

vinculada ao radical do vocábulo „hospitium‟ que se significa „acolhimento‟. Nos dias atuais,

o hospices designa o ambiente onde são ministradas medidas de conforto, em que não mais se

obstina a cura, mas o bem estar dos doentes para reumanizar o processo de finitude, por meio

de um atendimento especial prestado por uma equipe multidisciplinar.

Essa prática teve início em Londres, em 1948, por meio de um trabalho realizado pela

Dra. Cicely Saunders no Hospital St. Thomas. Os ensinamentos da Dra. Saunders se

propagaram pelo mundo e foram sendo aprimorados com a criação de setores de cuidados

paliativos dentro dos hospitais e em domicílio (ALVES, 2001, p. 386).

O hospices, segundo Maria Helena Diniz (2007, p. 363), é um setor dentro do hospital

apropriado para dar amparo aos pacientes terminais, em que se garante o pronto atendimento

às necessidades especiais deles, pela prestação de auxílio psicológico e social, e com a

interação entre doentes e as respectivas famílias. Além disso, a ideologia defendida pelo

Page 21: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

19

hospices busca, na medida do possível, viabilizar a liberdade do doente fora dos hospitais,

como forma de abrandar sua dor e aflição, deixando o internamento hospitalar seja a última

opção de tratamento. Isso se materializa por meio de hospitais residência e de atendimento

domiciliar.

Acredita-se que a prestação eficiente da assistência paliativa, por meio do hospice,

mediante equipe especializada de profissionais, afasta do paciente terminal o desejo de

praticar a eutanásia ou o suicídio assistido (MENEZES, 2010, p. 16).

Os cuidados paliativos são, portanto, as medidas tomadas pelos médicos para minorar

o infortúnio do paciente em estágio terminal, diminuindo-lhe as dores e as tribulações. A

Organização Mundial de Saúde (OMS) define cuidados paliativos como aqueles destinados

aos pacientes acometidos de doenças com risco de morte, visando a prestar-lhes um

tratamento interdisciplinar mediante assistência física, psicológica e espiritual, aprimorando-

lhes a qualidade de vida (WHO, 2011, p. 6).

Nesse amparo, as dores físicas são controladas pela prescrição de analgésicos,

devendo, ainda, ser prestado o acompanhamento de profissionais na área de psicologia e

psiquiatria. Tudo isto com o objetivo de minorar as angústias sofridas pelo enfermo, pois as

doenças fatais normalmente vêm acompanhadas de doenças da alma, como a depressão. Além

disso, a depender da crença do indivíduo, é importante a disponibilização de auxílio espiritual

dado pelos capelães e ministros da fé, com a finalidade de prestar consolo nos tempos difíceis.

A interação do paciente junto à família e ao meio social é essencial para que ele se sinta

lembrado e amado por seus entes queridos.

Os fundamentos da medicina paliativa são relacionados por Leocir Pessini (2001, p.

209) da seguinte forma:

a) Afirma a vida e encara o morrer como um processo normal; b) não

apressa nem adia a morte; c) procura aliviar a dor e outros sintomas

angustiantes; d) integra os aspectos psicológicos e espirituais nos cuidados

do paciente; e) oferece um sistema de apoio para ajudar os pacientes a

viverem ativamente tanto quanto possível até a morte; f) oferece um sistema

de apoio para ajudar a família a lidar com a doença do paciente e com o seu

próprio luto.

Com tal, personaliza-se o tratamento, isto é, o feixe de luz deixa de ser a doença para

alcançar quem realmente merece atenção, o doente. É ele quem precisa ser cuidado, tratado,

medicado, enfim, poupado de qualquer terapia inócua para alcançar o seu último estágio vital

com dignidade.

Page 22: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

20

É de se notar, ainda, que, em determinadas hipóteses, as terapias utilizadas podem

gerar um duplo efeito, isto é, uma ação médica que produz duas consequências: uma almejada

e imediata; outra indesejável e colateral. A primeira decorre do objetivo primordial do

tratamento, ou seja, a redução da dor provocada pela enfermidade. A segunda surge das

implicações colaterais da medicação e resulta na abreviação não intencional da morte do

paciente. Exemplo disto é a utilização de morfina, como recurso analgésico, que pode resultar

na insuficiência respiratória do enfermo e em sua consequente morte.

Nessa perspectiva, o essencial é considerar que a vontade do paciente deve ser

respeitada, seja para manter uma medicação que poderá resultar na sua morte, seja para

suspendê-la, o que aumentaria a dor física sofrida. Reafirme-se: é o doente quem deve optar

pelo que entende ser melhor para si. Para tanto, é necessário que ele tenha o conhecimento

exato do estágio da doença e, com isso, possa expressar a sua vontade de forma idônea.

Dentro desse contexto, uma vez informado dos tratamentos disponíveis e dos efeitos

colaterais dele resultantes, o paciente pode, além de recusar o início do tratamento médico,

optar por restringir certas medidas de esforço terapêutico. Essa limitação consentida acontece,

por exemplo, quando uma pessoa com câncer em estágio avançado que, após cirurgias e

sessões de quimioterapia sem resultado, opta por não se submeter à medida extrema de

amputação de um membro atingido pela doença.

Além desse tipo de restrição ou recusa de terapia, o doente pode declarar seu desejo de

protelar ou não o procedimento para a ocasião em que o estágio de inconsciência avançar, isto

é, expressar se consente a aplicação de técnicas de reanimação e ressuscitação ou se prefere

esperar a chegada da morte sem a utilização de esforços terapêuticos. Sobre as medidas de

limitação consentida Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2011, pp. 108-

109) esclarecem que:

A retirada de suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital (NSV) e as

ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação (ONR) são partes

integrantes da limitação consentida de tratamento. A RSV significa a

suspensão de mecanismos artificiais de manutenção da vida, como os

sistemas de hidratação e de nutrição artificiais e/ou o sistema de ventilação

mecânica; a NSV, por sua vez, significa o não-emprego desses mecanismos.

A ONR é uma determinação de não iniciar procedimentos para reanimar um

paciente acometido de mal irreversível e incurável, quando ocorre parada

cardiorrespiratória. Nos casos de ortotanásia, de cuidado paliativo e de

limitação consentida de tratamento (LCT) é crucial o consentimento do

paciente ou de seus responsáveis legais, pois são condutas que necessitam da

voluntariedade do paciente ou da aceitação de seus familiares, em casos

determinados.

Page 23: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

21

Desta maneira, compete ao paciente, enquanto possível, escolher a forma como a sua

doença será vivenciada e tratada, devendo a sua vontade ser respeitada em qualquer

circunstância. A família, por seu turno, terá um papel essencial na preservação e no

cumprimento da vontade declarada pelo moribundo, não devendo se furtar a atender os

últimos desejos de quem está ver terminado o seu ciclo vital.

De outro modo, as mortes do Papa João Paulo II e do ex-governador de São Paulo

Mário Covas são dois exemplos importantes em que a ortotanásia foi defendida e vivenciada,

pois ambos, além de refutarem a utilização de técnicas de extraordinárias de tratamento ao

final de suas vidas, defenderam, cada um à sua maneira, a prática da ortotanásia por meio de

suas publicações.

O primeiro publicou a Carta Encíclica „Evangelium Vitae‟, em maio de 1995; o

segundo, enquanto Governador do Estado de São Paulo, sancionou a denominada Lei Mário

Covas (Lei Estadual Nº 10.241/99), de autoria do Deputado Estadual Roberto Gouveia,

destinada aos usuários dos serviços de saúde daquele estado-membro.

Karol Wojtyla teve uma longa história como chefe da Igreja Católica, com inúmeras

publicações de livros, cartas e encíclicas. Preocupado com a vinda da morte, chegou a

declarar no aditamento ao seu testamento que todos deveriam estar preparados para a chegada

deste dia (PAULO II, 1980, online). Entre seus escritos, João Paulo II defendeu, também, a

prática da Ortotanásia, na Cúpula da Igreja Católica, ao declarar que:

Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em

consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente

um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os

cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o

médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado

assistência a uma pessoa em perigo.3

Anos depois, publicou a Encíclica „Evangelium Vitae‟ que atestou o valor sagrado da

vida humana, buscando reafirmar a sua inviolabilidade, com o escopo de que ela seja vista

pelo homem como um bem primário do início ao fim. Nesta publicação, há uma repulsa a

tudo quanto se opõe à vida, notadamente, ao homicídio, ao genocídio, ao aborto e ao suicídio

voluntário, em respeito ao amor de Deus pelo ser humano. Ressalte-se que a Ortotanásia não

foi incluída pelo Papa como uma das formas de atos atentatórios à vida do ser humano. Ao

invés, ele autorizou aos cristãos a renúncia a tratamentos fúteis de prolongamento da vida,

quando o seu fim se avizinha de maneira incontestável, sem, contudo, interromperem-se os

3 (PAULO II, 1980, online).

Page 24: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

22

cuidados essenciais responsáveis por minorar o sofrimento do enfermo. O cristão tem o dever

moral de procurar um tratamento para suas enfermidades, devendo as terapias disponíveis ser

proporcionais à expectativa de evolução. Nesse sentido, o texto esclarece, ainda, que o

repúdio a meios extraordinários de tratamento não implica suicídio ou eutanásia, pois revela a

resignação do ser humano perante um fato irrefutável, a morte (PAULO II, 1995, online).

O Papa João Paulo II viria a falecer dez anos após a edição dessa encíclica, no dia 02

de abril de 2005, aos 84 anos, em seus aposentos, com vista para a Praça de São Pedro, no

Vaticano, cercado dos amigos mais próximos e de muitas orações dos inúmeros fieis que

faziam vigília permanente naquela praça. Vencido pelo Mal de Parkinson, que o acometia

havia algum tempo, a causa direta da morte do Papa João Paulo II foi choque séptico, seguido

de um colapso cardiovascular (BUZZONETTI, 2013, online). Após realizar uma

traqueostomia, em fevereiro daquele ano, com a finalidade de melhorar a sua respiração, o

Papa preferiu passar seus últimos dias no Vaticano, cercado dos cuidados médicos suficientes

para a espera de sua partida quando, dois meses depois, o seu estado de saúde foi considerado

irreversível (MENDES, 2005, p. 2).

No Brasil, especificamente no Estado de São Paulo, em 17 de março de 1999, entrou

em vigor a Lei Mário Covas que autorizava, no artigo 2º, inciso VII, os usuários dos serviços

de saúde a “consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada

informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados”.

A lei representou um grande avanço, permitindo ao meio médico e à sociedade dar

início às discussões sobre a terminalidade da vida, com o escopo de humanizar a prestação

dos serviços de saúde por meio do oferecimento de cuidados paliativos e da repulsa à

obstinação terapêutica. O artigo 2º do ato normativo buscou regular a prestação dos cuidados

paliativos, pois apontou a necessidade de proporcionar o conforto e o bem estar do paciente

(inciso XVIII), que deve ser atendido em local digno e adequado (inciso XIX) e acompanhado

por pessoas de sua confiança nas consultas e internações (no inciso XV). Além disso, o

mesmo dispositivo disponibiliza ao paciente a assistência moral, psicológica, social ou

religiosa, se assim ele desejar (inciso XX) bem como a opção pelo local onde almeja passar

últimos dias de sua vida (inciso XXIV). Por fim, merece destaque o inciso XXIII do artigo 2º

que autorizou a prática da ortotanásia ao permitir ao paciente a recusa de tratamentos

dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.

Dois anos após a promulgação desta lei, no dia 6 de março de 2001, o ex-governador

Mário Covas faleceu, no Instituto do Coração, por falência múltipla de órgãos, decorrente da

Page 25: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

23

irreversibilidade de um câncer. Sem possibilidade de cura, recusou-se a ir para a Unidade de

Terapia Intensiva (UTI), preferindo passar os últimos dias de sua trajetória na companhia de

seus familiares e sob o efeito de medicação para minoração da dor (ROZOWYKWIAT, 2001,

p. A4).

1.2 Eutanásia

O termo Eutanásia, oriundo do grego, significa boa (eu) morte (thanatos), também

conhecida como „morte doce‟ ou „morte suave‟. Originariamente, o vocábulo sugeria a ideia

de morte tranqüila, isto é, ausente de dor, sem que houvesse intervenção para o seu

abreviamento (ALVES, p. 28).

A protelação do tratamento do paciente terminal era eliminada, mantendo-se apenas os

cuidados terapêuticos, a fim de evitar a dor e o sofrimento resultantes da enfermidade, para

aguardar o óbito natural do doente. Hoje, esse comportamento é denominado de Ortotanásia e

não Eutanásia, como outrora. Dividiu-se, portanto, a classificação: na Eutanásia, ainda que

seja possível a cura, antecipa-se a morte; na Ortotanásia, em razão de não haver mais chances

de cura, espera-se a morte mediante a minoração da dor.

Ao longo dos anos, a palavra „eutanásia‟ foi utilizada de várias formas, englobando

situações divergentes entre si. Serviu tanto para métodos eugenésicos, com a finalidade de

selecionar a melhor raça (eutanásia eugênica), como para práticas econômicas em que as

crianças e os anciãos deficientes ou deformados eram sacrificados, por serem inúteis aos

interesses da comunidade (eutanásia econômica). Chamaram-se, ainda, de eutanásia criminal

os casos de pena de morte em que se imola um delinqüente socialmente perigoso. Já a

eutanásia solidarística tinha por escopo salvar a vida de alguém, por meio do sacrifício de

pessoa gravemente enferma para retirar-lhe os órgãos (SAWEN, 2008, p. 132).

Voltando para a significação etimológica do vocábulo, isto é, „boa morte‟, a eutanásia

teve outras acepções, tais como a religiosa, vista como um favor imerecido, concedido por

Deus, e a estóica, entendida como a libertação de toda inquietude terrena a que se sujeitam os

mortais. Ricardo Royo-Villanova y Morales (1933, p. 26) foi quem melhor sintetizou as

variadas concepções da eutanásia, englobando, entre outros, o conceito de: eutanásia natural,

eutanásia teológica, eutanásia estóica, eutanásia terapêutica, eutanásia eugênica e eutanásia

legal.

É a morte doce e tranquila, sem dores físicas nem torturas morais, que pode

sobrevir de um modo natural nas idades mais avançadas da vida, acontecer

Page 26: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

24

de um modo sobrenatural como graça divina, ser sugerida por uma exaltação

das virtudes estóicas ou ser provocada artificialmente, já por motivos

eugênicos, bem com fins terapêuticos, para suprimir ou abreviar uma

inevitável, longa e dolorosa agonia, porém sempre com o prévio

consentimento do paciente ou uma prévia regulamentação legal (tradução

livre).

Luis Jiménez de Asúa (1929, p. 186) entendeu que “Eutanásia significa «boa morte»,

mas em sentimento mais próprio e estrito é a que outro proporciona a uma pessoa que padece

uma enfermidade incurável ou muito penosa, e a que tende a truncar a agonia excessivamente

cruel ou prolongada.”. Na mesma linha de pensar, Luciano Santoro (2010, p. 21) afirmou que:

[...] pode ser entendida como a conduta, positiva ou negativa, que tem por

escopo abreviar, a vida de um paciente reconhecidamente incurável,

suprimindo-lhe a dor e o sofrimento. Portanto, uma pessoa dá início ao

evento que causará a morte. Diferencia-se de um homicídio simples (matar

alguém) por apresentar o componente de agir de forma piedosa, procurando

fazer um “bem” àquela pessoa. O seu elemento caracterizador é a

compaixão.

Atualmente, de forma mais simples, a eutanásia é vista como abreviamento da morte,

realizado por um terceiro que, imbuído do sentimento nobre da compaixão, viabiliza a

extinção da vida do paciente. A eutanásia se distingue de uma ação homicida porque a

misericórdia é a motivação para a prática do ato humanitário.

Assim, os pressupostos para a configuração da eutanásia são: a conduta de terceiro

(normalmente exercida por um médico ou por um familiar), o sentimento de clemência ante a

enfermidade de alguém e a forma de execução, que deve ser livre de qualquer sofrimento.

Por outro lado, apesar da tentativa doutrinária de chegar a um consenso sobre a

conceituação da eutanásia, reduzindo a polissemia do seu termo, a variedade de classificações

quanto às suas modalidades permanece. Nesse diapasão, dentro da significação de suavidade

da morte, os tipos mais freqüentes são: eutanásia voluntária, não-voluntária e involuntária e

eutanásia ativa e passiva.

Entende-se que eutanásia voluntária (ou consentida) é a forma mais comum porque

praticada com o consentimento prévio e expresso do paciente em estágio terminal. Nesse

sentido, Álvaro Lopes-Cardoso (1986, p. 90) afirma que:

Eutanásia voluntária, ou seja, o acesso à morte, pelos meios menos dolorosos

em casos de doentes incuráveis ou terminais e que manifestam (ou

manifestaram enquanto conscientes) a sua vontade de que a morte lhes seja

facultada com o máximo de dignidade e o mínimo de sofrimento.

A eutanásia não-voluntária e a involuntária têm como ponto comum a falta de

consentimento do paciente. A diferença entre elas é que na não-voluntária inexiste a

Page 27: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

25

manifestação de vontade do doente porque ele já se encontra incapaz de emiti-la, como, por

exemplo, nos casos de coma profundo. Na involuntária, diversamente, o enfermo tem

condições de expressar sua vontade, mas ela é desrespeitada (SINGER, 1998, pp. 186-191).

Esta última hipótese enquadra-se no tipo de homicídio qualificado por impossibilidade

de defesa da vítima (art.121, § 2º, inciso IV, do CPB4), não se subsumindo à ideia de boa

morte, por faltar-lhe elemento essencial, a saber, a vontade do paciente terminal.

Impende registrar que o fato de o enfermo se encontrar sem perspectiva de melhora,

ocupando um leito de hospital e, por óbvio, realizando despesas, não autoriza nenhum

profissional de saúde ou familiar a desligar os aparelhos que o mantêm vivo, com a finalidade

de contenção desses gastos. Condutas desse jaez, ao invés, resultam no acréscimo de mais

uma qualificadora ao tipo do homicídio, o motivo torpe (art.121, § 2º, inciso I, do CPB).

De outro modo, a diferença entre a eutanásia ativa e a passiva reside no ato comissivo

da primeira e no omissivo da segunda. Na forma ativa, o terceiro responsável pela antecipação

terapêutica da finitude da vida ministra, por exemplo, doses mortíferas de determinado

medicamento no paciente terminal, causando-lhe a morte. Na eutanásia passiva, a conduta é

um non facere que também resultará na morte do paciente. Nesta hipótese, ainda existem

tratamentos possíveis para o enfermo, mas opta-se por suspendê-los, antecipando

paulatinamente o advento de sua extinção como, por exemplo, a suspensão de alimentação e

hidratação.

Isso foi o que ocorreu no caso da americana Terry Schiavo, acometida de um ataque

cardíaco com comprometimento cerebral, enquanto se submetia a uma severa dieta de

emagrecimento, em 1990. Em extensa batalha judicial, o então marido e curador de Terry

conseguiu autorização para desligar os aparelhos que mantinham a alimentação dela,

causando-lhe a morte em 2005 (GOODNOUGH, 2005, online).

Deve-se salientar, ainda, a distinção entre a ortotanásia e a eutanásia passiva. Apesar

de parte respeitável da doutrina5 tratar a ortotanásia e „eutanásia passiva‟ como sinônimos,

estes fenômenos não se confundem, pois a ortotanásia tem como fundamento a inutilidade do

tratamento de cura, por não ser mais viável chegar ao fim almejado com os recursos

disponibilizados pela medicina.

4

Art. 121. Matar alguém: [...] § 2° Se o homicídio é cometido: [...] IV - à traição, de emboscada, ou mediante

dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

5 (ALVES, 2001, pp. 314-325); (GIOSTRI, 2007, pp. 155-170); (LÔBO, 2011, p. 116); (SÁ, 2005, p. 39).

Page 28: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

26

Já na „eutanásia passiva‟, como dito, omitem-se, inclusive, os cuidados paliativos de

manutenção da vida do paciente, antecipando-lhe a sua morte, como, por exemplo, mediante

supressão da alimentação por via de aparelhos. Sobre essa distinção, José Roberto Goldim

(2010, p. 30), doutor em Medicina e Bioética, ensina:

A melhor maneira de se descrever o que é ortotanásia é utilizar o conceito

de futilidade, isto é, reconhecer que alguns tratamentos são inúteis, sem

benefício para o paciente, e que podem ser não iniciados ou retirados. Não é

a ortotanásia que deve ser implantada como uma nova prática, mas a

futilidade que deve ser evitada. Evitar a futilidade é retirar as medidas inúteis

que apenas prolongam, de forma indevida, a vida do paciente. [...] A

eutanásia passiva, ao contrário, suprime a implantação de medidas que ainda

trariam benefício real para o paciente. Se intencionalmente elas não forem

implantadas, irão abreviar a vida do paciente, ainda que com a finalidade de

reduzir sofrimentos. Esta é a diferença. O reconhecimento da situação de

futilidade, ou ortotanásia, se quiserem, evita prolongar a utilização

desnecessária de medidas sem benefícios, permitindo que a morte ocorra em

seu devido tempo. O que diferencia ambas as situações são a intenção e o

resultado, pois uma antecipa a morte – eutanásia passiva – e outra –

futilidade – evita prolongar a vida.

No mesmo sentido, Eduardo Luiz Santos Cabette (2009, p. 25) pontua que:

É a „morte correta‟, mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo

tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional, ante a iminência da

morte do paciente, morte esta a que não se busca (pois o que se pretende

aqui é humanizar o processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente), nem

se provoca (já que resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece.

Nesses termos as condutas ortotanásicas diferem amplamente da eutanásia

passiva, pois nesta ocorre a provocação da morte do doente terminal por

meio da omissão quanto aos cuidados “paliativos ordinários e proporcionais”

que evitariam seu passamento.

Há de se ter em mente, portanto, que na ortotanásia espera-se a morte chegar,

proporcionando ao paciente a minimização da dor e a maximização do conforto, dentro do

contexto da doença sofrida pelo enfermo. Por outro lado, na eutanásia passiva suprime-se o

tratamento posto à disposição do paciente, abreviando o termo de sua existência.

Sobre esse ponto de vista, James Rachels (1975, p. 78) defende que a omissão inerente

à eutanásia passiva, consistente no „deixar morrer‟, pode ser mais lenta e penosa que a ação

letal da eutanásia ativa. O autor aponta a hipótese dos bebês com Síndrome de Down que

nascem com obstrução intestinal e precisam se submeter à cirurgia corretiva com pouca

esperança de sobrevivência. Alguns pais e médicos optam por não realizar a intervenção

cirúrgica e esperam que a morte sobrevenha em decorrência da infecção e da desidratação.

Comportamentos dessa estirpe, tidos como prática de eutanásia passiva, estão distantes

do que se compreende genuinamente por eutanásia, isto é, a abreviação da morte sem

Page 29: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

27

sofrimento para aqueles que se encontram acometidos de enfermidades insuperáveis, realizada

por alguém imbuído de piedade. Ao invés, essa omissão implica não só a majoração da dor,

como também evidencia a ausência de compaixão diante do sofrimento de alguém,

enquadrando-se no tipo de homicídio qualificado por impossibilidade de defesa da vítima e

mediante a prática de tortura (art. 121, § 2º, incisos III e IV, do CPB).

Impende esclarecer que a qualificadora da tortura não se confunde com o crime de

tortura, previsto na Lei 9.455/97. Aquela se refere à provocação da morte de alguém por

meios torturantes; o crime de tortura, por seu turno, diz respeito à utilização destes recursos

com a finalidade de obter informações ou confissões de alguém.

A abreviação da vida por omissão de tratamento, chamada de eutanásia passiva, não se

coaduna, em essência, com o que se pretende com a eutanásia, aproximando-se muito mais

das formas árduas de eutanásia de outrora como, por exemplo, a eugênica e a econômica.

Por outro lado, não se deve olvidar que muitos são os argumentos favoráveis e

contrários à prática da eutanásia. A corrente vitalista tem seu fundamento na sacralidade da

vida. Esta é vista como um bem irrenunciável e absoluto que antecede ao direito e supera a

autonomia da vontade, não sendo possível haver um direito subjetivo à morte porque daquela

não se pode dispor. Neste sentido, seria inconstitucional, por ofensa ao artigo 5º, caput, da

Constituição Federal, qualquer regramento tendente a macular a vida humana (DINIZ, M. H.,

2007, p. 439).

Além disso, os diagnósticos podem ser falhos e a possibilidade de superveniência de

novos tratamentos é sempre possível para a ciência. Tais fatos tornam a decisão do paciente

passível de instabilidade, pois, ao tomar conhecimento de novos tratamentos, o enfermo, se

consciente, poderia vir a desistir da ordem de não reanimação por ele proferida. Assim, a

permissão para a abreviação da morte de alguém, para a corrente vitalista, seria um ato

arriscado, pois nem sempre é possível aferir a real motivação do pedido proferido pelo

familiar ou pelo médico, se por motivo altruísta ou oportunista.

Na concepção dessa corrente, não existem parâmetros objetivos para a estimativa do

sofrimento dos doentes, pois o que é insuportável para alguns é ultrapassável para outros.

Dessa forma, não há a possibilidade de autorizar a morte de alguém em estágio de dor

exacerbada, quando não se tem um meio seguro para mensurar o que essa dor representa

(FRANÇA, 2007, p. 494).

Page 30: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

28

Os fundamentos dessa corrente vitalista são passíveis de críticas, pois, conforme se

verá no capítulo seguinte, o direito à vida não é absoluto. Se o fosse, o ordenamento

constitucional não permitiria a pena de morte no artigo 5º, XLVII, aliena „a‟, tampouco

admitiria como excludente de ilicitude, a realização do „aborto necessário‟, quando não há

meios de salvar a vida da gestante, e do „aborto humanitário‟, em que a gravidez resulta de

estupro (art. 128 do CPB).

Ademais, a má-fé dos familiares ou de profissionais médicos que têm interesses

escusos para a abreviação da morte de alguém, não se presume. Ao invés, dessas pessoas se

exige o dever de cuidado, de prestar informações claras e verdadeiras e de preservar os

desejos de última vontade do paciente.

O sofrimento decorrente de uma doença terminal não pode ser descrito; diversamente,

é vivido. Argumentar que não há parâmetros para a aferição do sofrimento de alguém não

afasta, mas corrobora a tese de que é a vontade do paciente que deve ser respeitada. Somente

ele sabe como e até quando suportará os efeitos da enfermidade. Nesse aspecto, a ciência deve

estar a serviço do homem, de modo que traga melhoria à qualidade de vida de todos, e não

para escravizá-lo e postergar o que é inevitável. O enfermo, diante das informações que lhe

forem prestadas, precisa ser ouvido.

Dessa forma, enfocam-se como fundamentos da eutanásia: a qualidade da vida, o

sofrimento incalculável, a compaixão, a irreversibilidade do diagnóstico e a preservação da

autonomia individual. Seguindo estes argumentos, Austrália, Holanda, Suíça e Bélgica

promulgaram leis que autorizam a prática de eutanásia (BARBOZA, 2010, pp. 31 - 49;

FRANÇA, 2007, pp. 494 - 499).

A qualidade de vida não está relacionada aos bens materiais reunidos durante o seu

curso ou à forma de usufruí-los, mas se destina à capacidade de realizar as atividades

cotidianas do ser humano como, por exemplo, levantar-se, sentar-se e alimentar-se. Nutre-se o

sentimento de compaixão por alguém que está acometido de doença cujo diagnóstico seja

irreversível, com a finalidade de mitigar-lhe o sofrimento, aplacando a dor.

Nesse sentido, repise-se, não se está a defender a tese de que alguém é inútil no meio

social, em razão da enfermidade, para descartá-lo do mundo existencial, realizando um tipo de

eugenia seletiva, com o propósito de salvaguardar aqueles que servem para continuar vivos.

Não é a sociedade ou o Estado que vão fomentar a abreviação da morte de pessoas com vidas

dispendiosas ou inservíveis e selecionar pacientes sem qualidade de vida para praticarem

Page 31: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

29

eutanásia. Ao contrário, o paciente sabedor das próprias limitações e enfermidades é que deve

optar pelas terapias a que deseja se submeter, em observância ao seu livre arbítrio.

Deve-se buscar a preservação do direito de escolha das pessoas. Cada um é

responsável por suas predileções, no decorrer da vida. Assim como todos são autorizados a

optar por construir ou não uma família, ou ter filhos, ou galgar um espaço no mercado de

trabalho, dentro de suas possibilidades, deve ser disponibilizada a alternativa para o

prolongamento ou não da vida com o suporte de aparelhos e remédios.

A ressignificação da eutanásia, numa perspectiva civil-constitucional, é a de que a sua

prática não é um pensamento utilitarista, mas humanitário. Enxerga-se a morte não como um

mal ou um castigo, mas como o último estágio da existência em que se deve preservar a

vontade do seu protagonista.

1.3 Suicídio Assistido

Na mesma linha de pensar da eutanásia voluntária estão as razões que levam o

paciente a buscar o suicídio assistido, ou auto-eutanásia, a saber, o sofrimento demasiado, a

péssima qualidade da vida e a enfermidade incurável. Em oposição a esses argumentos, a já

referida corrente vitalista defende que os médicos não devem transmudar-se em homicidas,

instruindo seus enfermos a como se alcançar a abreviação da vida, quando os analgésicos já

não mais abrandam a dor física. A eles não é dado o direito de poupar o sofrimento dos seus

pacientes desta maneira (DINIZ, M. H., 2007, pp. 20-103 e 334-376; FRANÇA, 2007, pp.

510-515).

Esse fenômenos distingue-se, por sua vez, da eutanásia na medida em que o agente

provocador da abreviação da vida é o próprio paciente terminal, que recebe auxílio de terceiro

para a consecução do seu desiderato. No suicídio assistido, há apenas uma colaboração para a

prática do ato; na eutanásia, de modo diverso, é o terceiro quem executa o gesto humanitário

(PESSOA, 2013, pp. 85-86).

Importa ressaltar, ainda, que a abreviação da vida, por meio do suicídio assistido,

depende da consciência inequívoca do paciente, pois a execução do ato letal é dele, em pleno

gozo do seu livre arbítrio, enquanto na eutanásia, em algumas hipóteses, isto não seria

possível, como, por exemplo, quando o paciente já mergulhou em coma profundo.

Ademais, o auxílio de terceiro para este fim é essencial à caracterização do suicídio

assistido, pois é ele quem viabiliza os meios necessários à realização da conduta do paciente

Page 32: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

30

terminal. Sem essa participação, o fato jurídico restringe-se à prática de suicídio simples,

motivado por sofrimento demasiado decorrente de enfermidade incurável (SANTORO, 2010,

p. 124).

O surgimento da AIDS, nos anos oitenta, contribuiu para que muitas pessoas

desejassem o suicídio, ao constatar que não viveriam os próximos anos da forma que queriam,

a despeito de não terem atingido, ainda, o estágio final da doença. Obviamente, essas pessoas

eram punidas quando alcançavam seu intento.

Davi Zimerman (2010, p. 129) pontuou o suicídio assistido da seguinte forma:

Já a expressão suicídio assistido refere ao fato de alguém, geralmente o

médico de confiança, oferecer ajuda necessária para facilitar a morte da

pessoa que deseja – conscientemente – e que está com uma doença incurável

ou fatal a curto prazo – que claramente, querem por fim ao seu ciclo de vida

e não encontram meios de como praticá-lo (a morte de Freud, que durante

algumas décadas tinha um sofrimento atroz devido a um incurável, na época,

câncer de maxilar, resultou de um acordo sigiloso com o seu médico

assistente).

Assim, o suicídio assistido é a abreviação da vida, praticada pelo próprio paciente

terminal, acometido de doença incurável, por meio de auxílio de um terceiro (médico, familiar

ou pessoa de sua confiança), imbuído de sentimento altruísta. Essa prática é autorizada, por

exemplo, na Suíça e em alguns estados-membros dos Estados Unidos da América. A

legislação americana6 estabelece que, para se autorizar o suicídio assistido, são necessárias

avaliações psiquiátricas e exames médicos com comprovação de diagnóstico e constatação de

que todas as possibilidades de tratamento foram exauridas.

Os casos mais emblemáticos de suicídio assistido foram realizados com o auxílio do

médico Jack Kervokian, conhecido como “Doutor Morte”, no Estado de Michigan, o qual

prestou mais de cem assistências a pacientes que apresentavam um diagnóstico exato de

irreversibilidade da doença, além do manifesto desejo de acabar com seus sofrimentos. O Dr.

Kervokian filmava as entrevistas com seus pacientes, esperava um período de reflexão e, em

seguida, permitia que eles tivessem acesso a uma das várias máquinas construídas por ele,

para a realização do „ato humanitário‟, ora por meio de injeções, ora por meio de inalação de

gás (SCHREIBER, 2011, p. 63).

Processado várias vezes, preso, perseguido por ativistas natalistas e com sua licença

médica cassada o objetivo do Dr. Kevorkian era que a sua causa humanitária chegasse à

6 Lei 127.800 até Lei 127.890, Lei 127.895 e Lei 127.897 do Estado de Oregon e Lei 70.245.010 até Lei

70.245.904 do Estado de Washington

Page 33: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

31

Suprema Corte americana. No entanto, isto não foi possível, por ele ter sido absolvido de

todas as acusações de participação na provocação de suicídio assistido, ao apresentar, no Júri,

as filmagens dos depoimentos dos seus pacientes. Finalmente, por ter praticado um ato de

eutanásia ativa, aplicando injeção letal no paciente Thomas Youk, que sofria de esclerose

amiotrófica (doença neurodegenerativa), com a finalidade de se ver novamente processado.

Desta vez, o corpo de jurados o considerou culpado de homicídio, tendo ficado preso entre os

anos de 1999 e 2007, sem que seu recurso chegasse à Suprema Corte, segundo reportagem de

Dirk Johnson, publicada no jornal The New York Times7.

Por outro lado, o médico Timothy Quill, no Estado de Nova York, receitou

barbitúricos para sua paciente Patrícia Trumbull, acometida de leucemia, instruindo-lhe sobre

a quantidade que deveria ser ingerida para que ela antecipasse o fim do seu sofrimento, o que

a levou a óbito. Nesse caso específico, não houve punição ao médico nem pelo Júri daquele

estado, nem pelo Conselho de Medicina, que entenderam não haver má conduta por parte

dele, pois sua participação não constituiu causa direta da morte. O Conselho consignou que a

conduta do Dr. Quill distinguia-se da do Dr. Kevorkian, uma vez que aquele mantinha estreita

relação com sua paciente e sabia das limitações e necessidades dela, enquanto este conhecia

os seus pacientes superficialmente sem que houvesse nenhum relacionamento duradouro entre

ele e seus doentes (DWORKIN, 2003, pp. 261-262).

Percebe-se, todavia, que o propósito para a conduta de ambos foi o mesmo: o

sentimento altruísta de libertar os seus pacientes do sofrimento exacerbado que suportavam.

Logo, não havia razão para que uma e outra prática humanitária tivessem tratamento distinto,

sendo uma punida pela entidade médica, e a outra não.

1.4 Distanásia

O vocábulo „distanásia‟ também é originário do grego. A tradução do termo resultaria

na morte desgraçada ou morte difícil, pois o prefixo „dys‟ tem o sentido de dificuldade,

contrariedade ou desgraça (PEREIRA, I., 1984, pp. 154 e 262) enquanto „thanatos‟ significa

morte.

Assim, pode-se entender por distanásia a morte lenta e eivada de demasiado

sofrimento, em que as técnicas de prolongamento da existência são aplicadas de modo

irracional e exagerado, sem que haja a preocupação com a qualidade de vida do paciente, mas,

7 (JOHNSON, 1999, online)

Page 34: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

32

tão-somente, com a sua duração. Quanto mais tempo se mantiver o enfermo vivo, mesmo com

elevado grau de dor física e espiritual, tanto melhor.

Neste sentido, Rachel Menezes (2010, p. 16) afirma que: “Já a distanásia significa um

processo de morte prolongado, com sofrimento, sendo considerada análoga ao

“encarniçamento” ou “obstinação” terapêutica”.

O ex-presidente da Venezuela, Hugo Chavez, por opção própria, foi um exemplo

recente desta prática, pois se utilizou de todos os métodos possíveis para se manter vivo – e

no comando do poder daquele país –, na tentativa de superar o advento da sua morte.

Os avanços da tecnologia, aliados ao desejo do ser humano de tornar-se imortal,

incentivam, de maneira insensata, esta prática, na busca constante de alongar o processo

natural de extinção. Acrescente-se a isso o fato de os profissionais de saúde enxergarem a

morte como um fracasso profissional. Em razão disto, há a desenfreada prática de obstinação

terapêutica, isto é, a persistência do tratamento da enfermidade, visando – em vão – a cura do

enfermo, ainda que esta seja impossível de alcançar e implique em um elevado tormento para

ele.

Também é possível se utilizar a expressão „accanimento terapêutico‟ em referência a

uma forma de empenho canino do paciente para se manter vivo (SCHREIBER, 2011, p. 58).

Percebe-se que não é mais a vida do paciente que se está a postergar, mas o processo de

morte. Geralmente, essa obstinação terapêutica está atrelada ao tratamento fútil, qual seja ao

manejo de técnicas inócuas que em nada contribuirão para reverter o quadro da enfermidade,

mas apenas traz transtornos ao doente, angústia aos seus familiares e, não raro, resultados

mais danosos que os produzidos pela doença.

De outro modo, deve-se ressaltar que não há uma definição objetiva sobre o que se

entende por obstinação terapêutica e tratamento fútil, pois o que é considerado essencial para

alguém, pode ser desmedido e ofensivo para outrem. Conseqüentemente, as técnicas de

reanimação e a ventilação mecânica podem, a depender do enfoque dado, parecer excessivas

de um lado ou essenciais de outro. No pensamento de Débora Diniz (2007, p. 295), há um

limiar muito tênue entre o que é útil e essencial e o que é desnecessário e excessivo,

inexistindo consenso sobre o assunto, por haver concepções de cunho pessoal sobre o que se

entende por vida com qualidade.

Apesar disso, pode-se afirmar que a futilidade é voltada aos tratamentos

extraordinários, isto é, aqueles em que há o prolongamento do processo de morte, como, por

Page 35: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

33

exemplo, a aludida ventilação mecânica em algumas hipóteses. Diversamente, distancia-se

desta prática a intervenção de meios ordinários, em que se busca prolongar a vida com o

objetivo de salvá-la efetivamente como, por exemplo, a colocação de um „stent‟ no coração de

um cardiopata.

Afastar a obstinação terapêutica não implica reconhecer a impotência dos médicos

perante seus pacientes, mas, ao invés, resulta na constatação de que a morte faz parte da

condição humana, admitindo-se que sempre haverá alguma incapacidade da técnica médica

em alcançar a imortalidade.

Ressalte-se que a futilidade de um tratamento está no sentido diametralmente oposto

ao dos cuidados paliativos. São os extremos da medicina: de um lado, a protelação do

processo de morte, mantendo-se uma vida com demasiado sofrimento; de outro, a

preocupação de trazer conforto e bem estar ao paciente, nos seus últimos dias de existência.

Portanto, não há limites para cuidar, dar carinho e atenção a quem chega ao estágio final do

processo de sua existência. Essa limitação deve existir para o sofrimento, para a dor do corpo

e da alma, cabendo ao paciente apontar onde estão as barreiras do suportável.

1.5 Crítica à expressão “morte digna”

Alguns autores tratam a ortotanásia como sinônimo da expressão „morte digna‟,

enxergando-a como a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana na seara do

direito de morrer. Nesse ensejo, Leocir Pessini (2001, pp. 30-31) diz:

[...] a atitude que honra a dignidade humana e preserva a vida é a que muitos

bioeticistas, tais como Javier Gafo, Marciano Vidal e outros espanhóis,

denominam ortotanásia para falar da morte digna, sem abreviações

desnecessárias e sem sofrimentos adicionais. [...] A ortotanásia,

diferentemente da eutanásia, é sensível ao processo de humanização da

morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com a

aplicação de meios desproporcionais que imporiam sofrimentos adicionais.

Na mesma linha de pensar, Luciano Santoro, ao tratar da morte, ensina que “Ela será

digna sempre que for natural, tendo o ser humano feito passagem desta vida com o mínimo de

sofrimento e com a máxima atenção – tanto médica quanto familiar – possível naquele

momento” (2010, p. 19). Por outro lado, Anderson Röhe (2004, pp. 30-31) dá à compreensão

de „morte digna‟ uma nuança individual, em que se concebe o exercício da autonomia da

vontade por parte do paciente terminal. Confira-se:

Morrer com dignidade significa poder decidir sobre o seu tratamento e sobre

sua vida (para isso o paciente precisa ter acesso à verdade); significa não ser

Page 36: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

34

abandonado pelo médico, quando este resolve que não há mais nada a fazer;

não ter seu tratamento prolongado infinitamente.

A „morte digna‟, no entender deste autor, aproxima-se da ortotanásia, já que ele faz

menção, em outro momento (RÖHE, 2004, p. 28), da necessidade de disponibilização dos

cuidados paliativos ao paciente terminal, mas não haja, em seu discurso, uma expressa

equiparação entre os temas.

Apesar dessas conceituações, percebe-se que não existe um consenso na doutrina apto

a autorizar a utilização da expressão „morte digna‟ como sinônimo de ortotanásia, pois

existem autores que conferem significado diverso à expressão. Cristiano Chaves de Farias e

Nelson Rosenval (2006, p. 111), por exemplo, emprestam à expressão „morte digna‟ o mesmo

significado defendido acima por Anderson Röhe, no sentido de haver um direito de decisão

individual sobre a finitude da vida, mas, em seguida, afirmam que: “como a dignidade da

pessoa humana é valor a ser preenchido concretamente, é possível chegar à ilação da

existência de um direito à morte digna, o que não significa, de nenhum modo, um discurso

favorável à eutanásia ou à ortotanásia”.

Já Maria Helena Diniz (2007, p. 339), ao tratar da dignidade na morte, destoa do

pensamento dos autores até então mencionados aqui, porque ela equipara a dignidade no

processo de morte à eutanásia ativa.

Em defesa do morrer com dignidade, há quem sustente a necessidade de

admitir-se legalmente, em certos casos específicos, a eutanásia ativa,

também designada benemortanásia ou sanicídio, que no nosso entender não

passa de um homicídio, em que por piedade, há deliberação de antecipar a

morte de doente irreversível ou terminal, a pedido seu ou de seus familiares,

ante o fato da incurabilidade de sua moléstia, da insuportabilidade de seu

sofrimento e da inutilidade de seu tratamento, empregando-se, em regra,

recursos farmacológicos, por ser a prática indolor de supressão da vida.

Acrescente-se que há um desalinho na própria conceituação dos fenômenos

relacionados à finitude da vida porque a inutilidade do tratamento é característica típica da

ortotanásia e não da eutanásia como parece crer a autora. Por outro lado, Luiz Flávio Gomes

(2007, p.171), ao tratar do tema não delimita o alcance da expressão „morte digna‟. Senão,

vejamos:

É a morte desejada por quem já não tem mais possibilidade de vida e que,

em estado terminal, está sofrendo muito. A morte nessas circunstâncias,

rodeada de vários cuidados (para que não haja abuso nunca), não se

apresenta como uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado jurídico

desvalioso, ao contrário, é uma morte “digna”, constitucionalmente

incensurável.

Page 37: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

35

Se a morte é buscada pelo paciente, não se está a falar de ortotanásia porque este

fenômeno se refere à espera da morte, isto é, a permitir o seu advento no seu tempo. O desejo

de antecipar a morte é inerente à eutanásia e ao suicídio assistido. Em contrapartida, os

cuidados referidos pelo autor, conhecidamente denominados de cuidados paliativos, são

típicos de uma conduta ortotanásica, fato que referenda a indefinição trazida pela expressão

„morte digna‟.

Marília Campos Telles e Antônio Carlos Coltro (2010, p. 278) situam a „morte digna‟

“no seio da família democrática, que defende a autonomia de seus membros, com respeito às

diferenças, permitindo que possam ter o direito de decidir sobre o fim de sua vida e que

tenham esta vontade respeitada”. Esta visão é voltada para a Antropologia Social e também

não delimita se a expressão em questão se aproxima do âmbito da eutanásia ou da ortotanásia.

Diante dessas ponderações, pode-se perceber a evidente indecisão dos doutrinadores quanto à

significação de „morte digna‟.

A imprecisão da expressão „morte digna‟ afasta, portanto, a possibilidade de ter uma

conceituação uniforme, pois o termo „digna‟ veio para adjetivar o substantivo „morte‟ sem

que se tenha um consenso sobre que sentido deve ser dado à dignidade atribuída aos

fenômenos relativos à morte, a saber: a ortotanásia, a eutanásia, o suicídio assistido e a

distanásia. No mesmo raciocínio, a „morte digna‟ também não pode ser arrolada como um

topos, isto é, como um lugar comum, pois não há consenso solidificado na doutrina e na

jurisprudência.

A divergência acerca do significado dessa expressão referenda o alto grau de

subjetividade que a ela possui, fato que a torna um mero juízo de valor subjetivo, não sendo

recomendável a sua utilização. Apesar disso, impende registra que a dispensa da utilização da

expressão „morte digna‟, não afasta a utilização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

como meio de materializar a humanização do processo de finitude do paciente em estágio

terminal.

No âmbito legal, a expressão „morte digna‟ também não traz uma conceituação

uniforme, pois as legislações que buscam regulamentar os aspectos da terminalidade da vida

promulgadas, por exemplo, na Argentina e em algumas regiões dos Estados Unidos da

América, ora tratam do direito de morrer com dignidade como sinônimo de ortotanásia (Lei

26.742 – Argentina), ora se referem ao suicídio assistido (Lei 127.800 até Lei 127.890, Lei

127.895 e Lei 127.897 do Estado de Oregon e Lei 70.245.010 até Lei 70.245.904 do Estado

de Washington).

Page 38: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

36

A Argentina publicou, em 24 de maio de 2012, a Lei 26.742, denominada de „Morte

Digna. Direitos do paciente em relação aos profissionais e instituições de saúde‟ (tradução

livre)8, e regula a prática da ortotanásia naquele país. Da leitura dos seus dispositivos,

depreende-se que a Argentina, na busca por um processo de humanização da morte, passou a

admitir que o paciente em estágio terminal tenha autonomia para aceitar ou rechaçar terapias,

intervenções médicas e técnicas de reanimação artificial, com ou sem justa causa, quando

estes tratamentos se demonstrarem excessivos ou desproporcionais.

Já, nos Estados Unidos da América, os estados de Oregon (Lei 127.800 até Lei

127.890, Lei 127.895 e Lei 127.897) e Washington (Lei 70.245.010 até Lei 70.245.904)

foram pioneiros na promulgação de normas legais com o título de „Lei da Morte com

Dignidade‟(tradução livre)9. Além destes, o estado de Montana referendou legislação no

mesmo sentido e outros projetos de lei semelhantes tramitam nos estados americanos de

Connecticut, Havaí, Kansas, Nova Hampshire e Nova Jérsei. Entretanto, a aprovação da „Lei

da Morte com Dignidade‟ não é consenso entre os estados. O estado de Massachusetts, por

exemplo, rejeitou o projeto de lei que autorizava a assistência médica ao suicídio do paciente

terminal.

É importante observar que as leis americanas não estão relacionadas à ortotanásia, isto

é, ao deixar morrer, mas ao suicídio assistido, pois autorizam a prescrição médica de remédios

letais para pacientes que se encontram acometidos de doenças terminais. Segundo essa

legislação, ao doente terminal é dado o direito de escolher como passar os últimos dias de sua

vida. Para tanto, é necessário formular dois requerimentos verbais e um escrito, submeter-se a

determinado procedimento para aferir o pleno gozo de sua capacidade volitiva, realizado pelo

médico que o acompanha e referendado por outro perito para, só então, receber a prescrição

para do medicamento letal.

Diante da legislação aqui apontada, depreende-se que expressão „morte digna‟ é um

juízo de valor, e, por conseguinte, de cunho subjetivo, razão pela qual não é possível utilizá-la

em substituição aos fenômenos da ortotanásia ou do suicídio assistido, pois a subjetividade

que a envolve resulta na falta de consenso sobre o seu significado.

8 Lei 26.742. „Muerte digna. Derechos del paciente en su relacion con los profesionales e instituciones de la

salud.‟ 9 „Death With Dignity Act.‟

Page 39: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

37

2 OS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

COMO FUNDAMENTO DO DIREITO À VIDA SEM PROLONGAMENTO

ARTIFICIAL

Sumário: 2.1. Autonomia da vontade, autonomia privada e autonomia do

paciente. 2.2. Liberdade e Dignidade Humana.

2.1 Autonomia da vontade, autonomia privada e autonomia do paciente

Etimologicamente, o vocábulo „autonomia‟, do grego, significa próprio (autós) norma

(nomos), isto é, a capacidade de prescrever suas próprias normas, de se autogovernar.

Oriundo dos postulados iluministas, o princípio da autonomia, originalmente

denominado de „autonomia da vontade‟, foi sistematizado pelo pensamento Kantiano como

princípio subjetivo da atividade humana. O direito fez uso de tais ensinamentos, atribuindo a

este princípio um formato dogmático-jurídico estrito. Ter o poder de reger-se segundo sua

vontade, no viés trazido pelo Estado Liberal, confundia-se com a ideia de liberdade, pois a

autonomia da vontade, cuja natureza era subjetiva, traduzia-se na busca dos desejos pessoais

do indivíduo sua própria lei. Aliás, ser livre, sob esse prisma, também implica não estar

impedido de reger seus atos. (LÔBO, 2010, pp. 98-99).

O proceder do indivíduo, segundo Kant, era guiado pelas acepções da vontade humana

capazes de criar uma legislação universal. Nela, as diferenças pessoais foram separadas para

que assim fosse estabelecido um conjunto de máximas de auto-regramento global, presente na

vontade de todos os seres racionais. A vontade perfeita estaria em harmonia com a moralidade

e com as leis objetivas (KANT, 2002, pp.51-64). A idéia de Kant estava na autonomia

limitada pela moralidade porque a vontade só poderia ser boa se fosse moralmente aceita pela

sociedade. Deste modo, Kant retirou um extrato da vontade racional dos seres humanos, por

meio de princípios válidos para todos, sem que o grau de subjetividade na busca da vontade

íntima do indivíduo estivesse ausente.

Numa concepção clássica, a autonomia da vontade foi consagrada pelo Código de

Napoleão (1804) como princípio informador do sistema jurídico de Direito Privado,

garantindo-se ao contrato, sob o prisma kelseniano, o status de norma jurídica disciplinadora

de relações particulares, por meio de uma construção jurídica voluntarista, circunscrita no

brocardo „pacta sunt servanda‟10

. A paixão burguesa pelo individualismo fez do contrato o

instrumento aplicável à circulação de bens, num ambiente em que se valorizava a vontade

10

Os pactos devem ser respeitados (tradução livre).

Page 40: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

38

como elemento nuclear, fonte de legitimação da relação jurídica contratual. Esta vontade livre

de vícios, portanto, era suficiente para impor ao indivíduo o cumprimento de todas as

obrigações por ele contraídas, ficando limitada apenas pela observância da lei (MEIRELES,

2009, pp. 66-67).

Essa concepção subjetivista, tida como vontade interiorizada, foi sendo substituída por

uma percepção mais objetiva, isto é, a vontade manifestada ou declarada, pois enquanto a

cogitação não ingressa no mundo dos fatos, não se torna cognoscível por parte da outra pessoa

e do sistema jurídico, existindo apenas na mente do indivíduo. Assim, é com a exteriorização

que o querer passa a ser relevante juridicamente (BORGES, 2009, p. 52). Ademais, foram

constatadas algumas contradições no sistema, tais como, a discrepância entre a vontade

interna e a exteriorizada, a impossibilidade de se perquirir a vontade dos incapazes ou, ainda,

a possibilidade de se aliar efeitos buscados pelos sujeitos a resultados indesejados por eles

(MORAES, 2005, p. 100).

Em razão disto, o direito se distanciou cada vez mais da denominação da autonomia da

vontade, por ser esta voltada para a psyché, em prol de um conceito de autonomia privada que

refinou as impurezas do subjetivismo para alcançar a face objetiva do princípio, decorrente da

exteriorização da vontade prestada pelo sujeito. Não se investiga mais o querer interior do

indivíduo e sim aquilo foi declarado por ele.

O direito brasileiro herdou o dogma da vontade, oriundo da Revolução Francesa,

buscando uma forma de o indivíduo ditar suas próprias leis, sem a interferência estatal,

quando a separação entre o direito público e o privado se evidenciava no individualismo das

codificações oitocentistas. Isto serviu de base para a teoria contratual clássica brasileira,

fulcrada na vontade dos contratantes e na igualdade formal, tornando a autonomia o

fundamento para a circulação de riquezas. Após a 2ª Guerra mundial, o Estado Social, com

ideais garantistas, passa a regular a ordem social e econômica, alicerçando o Estado de Direito

em outros valores para além da igualdade formal e da legalidade estrita. As constituições

mundiais começam a contemplar princípios de obediência compulsória, para proteger o

indivíduo da mão invisível do mercado, trazendo capítulos que regulam a ordem social e

econômica, e o paradigma principiológico se volta para proteger a pessoa, tida como centro da

tutela jurídica.

No Brasil, a Constituição Federal de 1934 foi a precursora desse intervencionismo,

porém o grande marco na valorização da justiça social veio com a Constituição Federal de

1988 que, além de estabelecer o princípio da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento

Page 41: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

39

da República Federativa do Brasil, positivou o princípio da Solidariedade Social (art. 3º,

inciso I), regulou a ordem econômica e social (artigos 170 e segs.) e instituiu a função social

da propriedade (art. 5º, inciso XXIII). Além disso, determinou a proteção do consumidor (art.

5º, inciso XXXII), da criança, do idoso e da família (artigos 226 – 230). Tudo isto, demonstra

a evidente escolha do constituinte de intervir nas relações entre particulares. No âmbito

infralegal, o Código de Defesa do Consumidor – e posteriormente o Código Civil –, sob a

égide da Constituição Federal de 1988, são promulgados para realizar os objetivos do Estado

Social, afastando-se do individualismo preconizado pelo então Código Civil de 1916. Assim,

o Código Civil de 2002 verteu em princípios a função social do contrato (art. 421), a boa-fé

objetiva (art. 422) e, implicitamente, a equivalência material (arts. 423 e 424).

O Estado Social trouxe, portanto, outro contorno ao exercício da autonomia privada,

pois substituiu a igualdade formal pela material, permitiu maior intervenção estatal nas

relações entre privados e, com isso, estreitou a dicotomia existente entre o direito público e o

direito privado, mediante a intervenção rotineira do Poder Público nas relações privadas. Esse

estreitamento entre o público e o privado demonstra que o princípio da autonomia é

garantidor do Estado Democrático de Direito, pois tanto o poder estatal como a vontade dos

sujeitos nas relações privadas são limitadas pelo direito. Este é visto como o conjunto de

normas jurídicas, formado não só pelas leis, mas também pelos princípios constitucionais,

sobretudo, o da dignidade humana e o da solidariedade social (MORAES, 2010, p. 44).

A livre manifestação da vontade não deixou de ser regra, porém a autonomia privada

foi profundamente relativizada para adequar-se aos preceitos da justiça social, sofrendo

restrições. A ideia negativa de liberdade, compreendida na atuação livre do indivíduo, sem a

interferência estatal, desde que não atinja a liberdade de outrem, que limitava classicamente a

autonomia privada por meio da lei, dos bons costumes e da ordem pública, mostrou-se

insuficiente para o Estado Social. A constitucionalização do direito privado fez uma releitura

dos dispositivos do Código Civil por meio das lentes da Constituição Federal de modo a

permitir que a solidariedade e a dignidade, valores sociais exaltados pelo constituinte,

assumam a função de limites para o exercício da autonomia. Esta, para manter o equilíbrio

entre os sujeitos das relações privadas, detém agora uma postura de incentivo destes valores.

Por outro lado, dentro da concepção de ato jurídico em sentido amplo, pode-se afirmar

que, nas questões patrimoniais, notadamente nos contratos, o alicerce da autonomia é pautado

nos valores sociais da livre iniciativa (art. 170 da CF/88). Já nas relações existenciais, como

ocorre, por exemplo, consentimento dos pais para o matrimônio de um filho menor de

Page 42: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

40

dezesseis anos, ou no reconhecimento da paternidade de um filho havido fora do casamento

(LÔBO, 2011, p. 21) o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, além de limitador, é

fundamento para o exercício dessa autonomia.

A autonomia privada, portanto, corresponde ao poder outorgado pelo sistema jurídico

ao indivíduo para que ele expresse livremente suas escolhas e, em decorrência, sujeite-se às

conseqüências jurídicas delas advindas, sejam estas constitutivas, modificativas ou extintivas

de direitos (PERLINGIERI, 2002, pp. 17 e 97). Não se ignora, contudo, que a melhor

expressão a ser utilizada seria a de autorregramento da vontade, criada por Pontes de Miranda

e entendida como “o espaço que o direito destina às pessoas, dentro dos limites prefixados,

para tornar jurídicos atos humanos e, pois, configurar relações jurídicas e obter eficácia

jurídica” (LÔBO, 2013b, online). Não obstante, nesta pesquisa, a preferência é seguir a

posição majoritária da doutrina11

e utilizar a expressão autonomia privada como o „poder de

autorregramento na relação entre privados‟.

Cumpre ressaltar, ainda, que o Biodireito, ao apoderar-se do conceito jurídico de

autonomia, para referir o direito de autodeterminação do paciente em relação aos tratamentos

a serem por ele vivenciados, retomou o subjetivismo de outrora, priorizando a autonomia da

vontade e a liberdade subjetiva. Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira, ao

conceber a definição dada pelo Biodireito de autonomia, afirmam que: “Considera-se

autonomia, ou direito à autonomia, a capacidade ou aptidão que têm as pessoas de

conduzirem suas vidas como melhor convier ao entendimento de cada uma delas” (SÁ e

MOUREIRA, 2012, p. 145). Na mesma linha de pensar, Rachel Sztajn (2002, p. 25) emprega

à autonomia privada12

o “poder de disposição de faculdades e direitos subjetivos,

reconhecendo, porém, que desse exercício resultam modificações em relações jurídicas”.

Percebe-se ter havido uma apropriação equivocada do atual conceito jurídico de

autonomia privada, pois a natureza objetiva assumida pelo princípio visou a preservar a

vontade exteriorizada do indivíduo, em substituição às escolhas não manifestadas, conforme

já explanado acima. Mais adequado, seria chamar a autonomia do paciente – enquanto

prerrogativa de decidir sobre si mesmo e sobre a própria saúde – de autodeterminação, isto é,

o direito de se determinar subjetivamente segundo sua vontade, suas crenças ou convicções

11

(MEIRELES, 2009, passim); (BORGES, 2009, passim); (TEIXEIRA, 2010; passim); (MORAES, 2010, pp.

41-54); (BARBOZA, 2010, pp. 31-49) 12

A autora utiliza a expressão „autonomia privada em sentido estrito‟.

Page 43: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

41

éticas, mantendo-se o conceito jurídico de „autonomia do paciente‟ no campo da objetividade,

isto é, da exteriorização formal da vontade.

Assim, a autonomia privada do paciente há de ser expressada e não pode ser objeto de

questionamento por parte do médico, devendo ser abandonada a ideia paternalista de que as

decisões clínicas dos profissionais de saúde são soberanas em relação aos seus doentes, para

que estes assumam o domínio sobre a escolha das terapias a que serão submetidos, mediante

os esclarecimentos prestados pelo médico responsável. Aliás, esta é a finalidade do artigo 24

do Código de Ética Médica13

: conceder ao paciente o direito de decidir livremente sobre sua

pessoa ou seu bem-estar.

Por outro lado, não se deve esquecer que, apesar da redação dada ao inciso XX do

Capítulo I do Código de Ética Médica14

, a relação jurídica decorrente de contrato remunerado

de prestação de serviços médicos é de consumo, cujas partes são o médico-fornecedor

(prestador de serviço técnico-científico) e o paciente-consumidor (pessoa física carecedora de

atendimento médico), nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor –

CDC, não tendo a regra de cunho deontológico o condão de afastar a proteção constitucional

concedida ao consumidor no art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal (PEREIRA, P.,

2011, pp. 39-44). Ademais, as normas instituídas pelo CDC são de ordem pública e de

interesse social e, nesta hipótese, destinadas a proteger toda pessoa que utiliza os serviços

médicos de forma remunerada.

Logo, dentre os inúmeros direitos decorrentes dessa relação de consumo conferidos à

parte vulnerável, enfocam-se: “o direito de decidir sobre o seu tratamento e sua vida; direito

de ser informado, passo a passo, dos procedimentos médicos aos quais será submetido; direito

de conhecer os serviços de saúde existentes, dar seu consentimento informado antes de

qualquer procedimento de diagnóstico ou de terapia; direito de recusar tratamento ou não-

aceitação da continuidade terapêutica nos casos incuráveis ou de sofrimento atroz.”

(PEREIRA, P., 2011, pp. 71-71). Tudo isto, resume-se no direito à informação, pressuposto

para que o paciente possa dispor do seu consentimento livre e esclarecido e, assim, realizar

sua autonomia.

O direito fundamental à informação é assegurado tanto pela Constituição Federal de

1988 (art. 5º, inciso XIV) como pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, inciso VI) e

13

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu

bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. 14

Inciso XX. A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo.

Page 44: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

42

tem por objetivo conceder ao consumidor o conhecimento e a compreensão dos dados

essenciais do produto ou serviço a ser adquirido por ele, repercutindo de forma direta e

imediata na sua escolha (LÔBO, 2001, online).

Numa análise mais detida, o paciente-consumidor tem o direito de ser informado tanto

sobre seu diagnóstico, em uma linguagem acessível, clara e precisa, quanto sobre as diferentes

alternativas terapêuticas, de acordo com a sua condição clínica, mediante a explanação das

vantagens, desvantagens, riscos, efeitos colaterais e possíveis reações adversas provenientes

do tratamento. Sobre o assunto, a Carta dos Direitos dos Usuários de Saúde (Portaria

1.820/2009) estabelece no artigo 4º, parágrafo único, inciso IX que é direito dos usuários dos

serviços de saúde: “a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas, de

acordo com sua condição clínica, baseado nas evidências científicas, e a relação custo-

benefício das alternativas de tratamento, com direito à recusa, atestado na presença de

testemunha”.

A informação prestada adequadamente materializa o „direito de escolha‟ do paciente-

consumidor denominado pelo Biodireito de „consentimento livre e esclarecido‟,

„consentimento informado‟, „consentimento pós-informação‟ ou „consentimento consciente‟

(BARBOZA, 2004, p. 06). Já o Conselho Nacional de Saúde, ao regulamentar, no inciso II.7

Resolução 196/96, as diretrizes e regras para pesquisas com seres humanos, preferiu a

expressão „consentimento livre e esclarecido‟, definindo-a da seguinte maneira:

II.7 - Consentimento livre e esclarecido - anuência do participante da

pesquisa e/ou

de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro),

dependência,

subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e

pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,

benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar.

Neste sentido, Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber (2009, p. 6) alertam que a

materialização do direito de autodeterminação do doente ocorre por meio do consentimento

informado, afirmando que:

A exigência de consentimento informado, como expressão do direito da

autodeterminação da pessoa humana, vem transformar a relação entre

médico e paciente, substituindo o paternalismo de outrora por uma

participação ativa do enfermo nas decisões terapêuticas, especialmente em

setores em que a medicina não oferece uma solução consagrada pela prática

médica, mas uma variedade ainda indefinida de tratamentos. O medicado

deixa, assim, de ser mero paciente para se tornar agente do processo de cura,

como expressão do seu direito de autodeterminação no campo biológico.

Page 45: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

43

O esclarecimento completo sobre o quadro clínico do doente repercute diretamente no

exercício da autonomia do paciente, por meio da sua manifestação de vontade, isto é, de seu

consentimento formal, competindo ao médico prestar todas as informações necessárias para

que o exercício desta autonomia seja realizado da maneira mais lídima possível, sem interferir

na opção adotada pelo doente.

2.2 Liberdade e Dignidade Humana

Com a evolução conceitual da autonomia privada, percebe-se que o poder de auto-

regrar-se, segundo sua própria vontade, não faz mais desta autonomia sinônimo da liberdade,

pois aquela, segundo Rose Meireles implica na “a expressão privada da liberdade jurídica”

(2009, p. 69) em que há auto-regência do indivíduo dentro dos limites impostos pelo

ordenamento jurídico já referidos acima.

Ademais, não há como conceder ao indivíduo um espaço de liberdade que macule os

preceitos constitucionais, pois a autonomia privada deve servir de instrumento para a

concretização da dignidade humana (BARBOZA, pp. 36-37, 2010). Aliás, a autonomia, vista

como expressão da liberdade, é uma das condições imprescindíveis à realização do indivíduo

como pessoa, sendo necessária, ainda, a conjugação dos demais princípios aqui abordados

para que o ordenamento jurídico possa proporcionar ao sujeito de direitos a fruição desta

dignidade. Neste sentido, Anderson Schreiber pontua:

A ordem jurídica não é contra ou a favor da vontade. É simplesmente a favor

da realização da pessoa, o que pode ou não corresponder ao atendimento da

sua vontade em cada caso concreto. Se a dignidade humana consiste, como

se viu, no próprio “fundamento da liberdade”, o exercício dessa liberdade

por cada indivíduo só deve ser protegido na medida em que corresponda a tal

fundamento (SCHREIBER, 2011, p. 26).

Saliente-se que não é a Dignidade Humana que será ponderada frente aos demais

valores constitucionais. Longe disso, ela é o ponto que deve ser atingido por meio da

ponderação desses valores, dentro da seara da razoabilidade, tomando as medidas necessárias,

adequadas e proporcionais, para alcançar a solução ideal do caso concreto com o mínimo de

sacrifício possível (MEIRELES, 2009, p. 198).

Atualmente, a liberdade, vista sob o prisma das relações extrapatrimoniais, tem por

escopo garantir a privacidade, a intimidade e o livre exercício da vida privada do indivíduo,

para que ele exerça as suas escolhas pessoais de maneira independente (MORAES, 2010,

p.108). No entanto, essa faceta da liberdade, expressada pela autonomia, no que concerne à

concretização de direitos existenciais, não é tida como absoluta e ilimitada, pois é incapaz de

Page 46: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

44

absorver, por si só, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, construído também pelos

valores da igualdade, da solidariedade e da integridade (MEIRELES, 2009, p.190).

Em uma análise mais detida, pode-se dizer que o direito de viver sem o prolongamento

artificial é uma das formas de materialização do princípio da autonomia privada, exercido por

meio da vontade declarada do doente terminal, com os contornos constitucionais desta

dignidade. A autodeterminação de um doente para a escolha do melhor caminho a ser

percorrido nos momentos finais da vida é melhor alcançada quando há uma reflexão sobre os

valores em questão. A saúde e a vida do ser humano devem ser preservadas, repita-se, dentro

do espaço da dignidade, construída pela conjugação da solidariedade, da integridade e da

igualdade, sem que, com isso, se exija do indivíduo o prolongamento de uma vida em

condições subumanas.

Ressalte-se, ainda, que a solidariedade, no âmbito das relações existenciais, não

assume somente a conotação de fraternidade extraída da ideia de função social, oriunda da

Revolução Francesa e seguida pelo artigo 3º da Constituição Federal. Ao invés, volta-se para

a pessoa humana como meta suprema do sistema jurídico brasileiro. (MEIRELES, 2009, pp.

43-45). Numa conotação personalíssima, a solidariedade é destinada ao indivíduo em si, com

o propósito de conceder-lhe uma convivência saudável no meio social dentro da sua

capacidade físico-psíquica. Dentro desta concepção solidarística, deve ser reinserido o

paciente terminal, por meio do recebimento de carinho e atenção dos que o cercam, para,

assim, ter o seu sofrimento minorado.

Por outro lado, a preservação da integridade do ser humano decorre do direito amplo à

saúde, definido pela OMS como um complexo de arranjos sociais, consubstanciado entre

normas e políticas públicas que busquem propiciar ao indivíduo um ambiente favorável para a

sua saúde (WHO, s.d.). A integridade psicofísica do indivíduo não se resume a questões de

manipulação genética, porquanto, no âmbito da terminalidade da vida, a materialização da

integridade consiste em viabilizar meios ao indivíduo para viver os últimos dias de sua

existência com o mínimo de sofrimento e o máximo de conforto físico e mental. Tal se

concretiza, como já foi visto, pela filosofia dos hóspice, em que o doente recebe

acompanhamento físico, psíquico, espiritual e familiar, evitados os tratamentos degradantes e

inúteis.

Ademais, para que a igualdade substancial do doente seja assegurada, as situações

devem ser analisadas caso a caso. Em outras palavras, a igualdade deve ser garantia

incondicional, não só no recebimento de informações sobre a doença, as quais devem ser

Page 47: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

45

precisas e adequadas, mas também no curso do tratamento, por se tratar de relação de

consumo, em que o paciente é parte vulnerável deste elo, sobretudo, pela enfermidade que o

acomete, razão pela qual deve ser tratado desigualmente na medida desta desigualdade.

Importante registrar, ainda, que a liberdade almejada nessa hipótese deve garantir

também ao paciente o direito de lutar obstinadamente por sua vida, buscando, quanto

possível, a cura, se tal for sua vontade, pois coibir o desejo de suportar um tratamento também

seria atentatório à autonomia, à dignidade, à integridade e à solidariedade. O que se pretende é

garantir a materialização da vontade do paciente, seja para afastar-se de tratamentos fúteis,

seja para buscar terapias de cura, com o objetivo de lutar por mais dias de vida, desde que

dentro dos parâmetros estabelecidos pelos princípios aqui ressaltados.

Defende-se então o respeito à opção do doente, pois será ele quem suportará as

conseqüências dos tratamentos escolhidos. Este pensamento se restringe a defender o direito

de escolha do paciente dentro da composição da dignidade garantida pelo ordenamento

jurídico, não se confundindo, contudo, com o poder de definição de dignidade pelo próprio

indivíduo, adotado por Roxana Borges, quando afirmou que “compete a cada um definir a sua

dignidade e apontar em que hipóteses ela é maculada” (2009, p. 143). Aliás, prefere-se

considerar que a garantia para o desenvolvimento da pessoa, não resulta somente do exercício

da autonomia do sujeito. Isto porque a definição individual do significado de dignidade,

extraída da vontade livre de vícios, finda por conceder à autonomia privada um caráter

absoluto que ela não detém (MEIRELES, 2009, p. 192 e MORAES, 2010, p. 44).

O poder de escolha do paciente é limitado, portanto, pelo Princípio da Dignidade da

Pessoa Humana, responsável por afastar esse caráter absoluto dado à Autonomia Privada.

Exemplo de violação à Dignidade Humana é a autorização de amputação de membros

superiores e inferiores aos „amputees by choice15

‟ ou „wannabes‟, isto é, pessoas portadoras

de um distúrbio psíquico, responsável por fazê-las crer que certas partes do seu corpo,

particularmente braços e pernas, são extremante doentes ou inservíveis, causando-lhes o

desejo de amputação desses membros. Há uma discrepância entre a realidade do corpo do

doente e a imagem psíquica dada por ele ao seu próprio corpo. O distúrbio se assemelha ao

sofrido por anorexos que pensam serem obesos e, na realidade, não o são.

15

Amputados por escolha (tradução livre).

Page 48: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

46

A justificativa do distúrbio mental não é suficiente para fazer um ser humano detentor

de membros motores saudáveis se tornar um cadeirante, pois a Dignidade Humana visa o

tratamento das enfermidades e não o aumento destas.

Isso é diferente da autorização dada para amputar um membro atingido por células

cancerígenas, pois, para alguns, pode ter como conseqüência uma mutilação insuportável;

para outros, será a porta de acesso à fé para dias melhores de vida. A experiência é pessoal e,

por isso, a decisão do paciente deve ser respeitada, para que seja mantido o livre

desenvolvimento de sua personalidade.

Na visão do Direito Civil Constitucional, a garantia da morte correta se materializa por

meio do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Isso ocorre não só quando é possível

prestar um bom tratamento médico, cercado dos cuidados paliativos e do acompanhamento

familiar, mas também quando se respeitam as convicções do indivíduo, honrando a sua

autonomia. Nesse sentido, Heloíza Helena Barboza (2010, pp. 46-47) pondera que: “A

autonomia revela-se, enquanto manifestação da liberdade e da dignidade humana, um dos

princípios norteadores a serem resguardados em tais situações, sob pena de violação do

princípio da dignidade da pessoa humana”.

Deve-se, portanto, cumprir a vontade do paciente terminal, a fim de permitir que ele,

somente ele, suportando o sofrimento da doença manifestamente incurável e, repita-se,

imbuído de todas as suas crenças, decida sobre o prolongamento da sua vida por meio de

aparelhos.

Page 49: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

47

3 A REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA ORTOTANÁSIA

Sumário: 3.1. A Constituição Federal. 3.2. A Codificação na perspectiva

penal, civil e médica. 3.3. As resoluções do Conselho Federal de Medicina.

3.4. Os Projetos de Lei em tramitação no Brasil.

Apesar de o Congresso Nacional ainda não ter editado uma lei ordinária federal

específica para regulamentar as questões relativas à terminalidade da vida, alguns dispositivos

contidos tanto na Constituição Federal do Brasil, como em outros regramentos, devem ser

levados em consideração na discussão do tema.

Neste capítulo, examina-se o direito à ortotanásia, mediante a análise da Constituição

Federal Brasileira, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica vigentes no Brasil, das

resoluções do Conselho Federal de Medicina e dos projetos de lei brasileiros em tramitação,

acerca da matéria, sob o prisma do sistema escalonado de normas jurídicas, adotado por Hans

Kelsen (KELSEN, 1997, pp. 246-255).

Destaque-se que, na teoria kelseniana (1997, pp. 95-100), as normas jurídicas são

classificadas em gerais e individuais. Aquelas, elaboradas pelos órgãos legislativos e adotadas

pelo costume, são regulamentadoras da conduta humana; estas, por exemplo, podem ser

emanadas de órgãos judiciários, por meio das decisões prolatadas no caso concreto, ou pela

vontade das partes, na hipótese dos contratos, todos elaborados em conformidade com as

normas gerais vigentes no ordenamento.

Assim, pode-se afirmar que as resoluções do Conselho Federal de Medicina se

enquadram como atos administrativos que, na teoria aqui utilizada, posicionam-se no final da

pirâmide de escalonamento, ao lado das decisões judiciais e dos contratos. Em razão disto,

embora normas jurídicas em sentido amplo, esses atos normativos são desprovidos de eficácia

erga omnes, uma vez que se classificam como regras éticas e técnicas destinadas a

determinada categoria de profissionais, com o escopo de, exclusivamente, disciplinar a

atuação do médico. Não alcançam, portanto, a órbita jurídica de terceiros, pois estão limitadas

à corporação profissional e não passam pelo crivo dos representantes do povo. Estes, reunidos

no Congresso Nacional, são os únicos legitimados a editar normas com efeitos gerais.

Sendo assim, sob a óptica da hierarquia abstrata das fontes, a resolução será incapaz de

afastar a aplicação da lei ou de qualquer norma jurídica de validade superior, se a esta for

contrária (ASCENSÃO, 1997, p.583).

Page 50: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

48

3.1 A Constituição Federal

O artigo 5º, caput, da Carta Constitucional de 1988, enumera alguns dos direitos

fundamentais da pessoa humana, dispondo que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: (...).

A corrente vitalista16, mais conservadora, ao discorrer sobre a interpretação que deve

ser dada a este dispositivo, mormente quanto à inviolabilidade do direito à vida, defende que

esse direito é pressuposto existencial para os demais direitos fundamentais, levando a crer que

o direito à vida é indisponível, absoluto e encontra-se em patamar superior em relação aos

demais direitos ali contidos.

Não haveria, portanto, um direito subjetivo à ortotanásia, revelando-se

inconstitucional, inclusive, quaisquer das práticas relativas à terminalidade da vida

(ortotanásia, eutanásia e suicídio assistido), ainda que visando a minorar o sofrimento do

paciente em estágio terminal. Em razão disto, será sempre vedado ao Poder Público qualquer

tipo de consentimento com relação a estas práticas.

Não obstante, o sentido dado ao artigo 5º da Constituição Federal é o de que ele

protege a inviolabilidade do direito à vida contra a atuação de terceiros, sem que isto resulte

na indisponibilidade de tal direito por parte do seu titular. Isso porque a inviolabilidade não se

confunde com a indisponibilidade. Àquela, como dito, refere-se à atuação arbitrária de

terceiros, esta, por seu turno, atinge especificamente o indivíduo, que não pode despojar-se,

de forma discricionária, de certos direitos a ele concedidos. O constituinte, no artigo 5º, caput,

preferiu utilizar a expressão „inviolabilidade do direito à vida‟ a „indisponibilidade do direito

à vida‟ (BASTOS, 2011, pp. 39 e 40).

No âmbito internacional, o Pacto de São José da Costa Rica (artigo 4º)17 e o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigo 6º)18, dos quais o Brasil

é subscritor desde 1992, resguardam, em essência, o direito à vida, registrando que dela

ninguém poderá ser privado arbitrariamente.

16

(DINIZ, M. H., 2007, pp. 20-103 e 334-376); (FRANÇA, 2007, pp. 510-515); (BRANCO, 2010, pp. 441- 449);

(BULOS, 2007, p. 116); (PELUSO, 2012, pp. 32-33). 17

Art. 4º. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em

geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. 18

Art. 6º. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá

ser arbitrariamente privado de sua vida.

Page 51: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

49

A compreensão dada pelos tratados internacionais também é no sentido de resguardar

a pessoa humana da privação arbitrária do bem jurídico „vida‟ por parte de um terceiro, que

dela não poderá dispor de forma despótica. É, portanto, uma maneira de limitar o exercício da

liberdade do ser humano, para que este não venha privar a vida de outrem a seu bel-prazer.

Anote-se, por essencial, que o termo „arbitrariamente‟, utilizado nos dois artigos

citados acima, é de singular importância, pois ilustra que a disposição da vida por parte de

terceiro não deve ser desregrada19, afastando-se da ideia de proibição do direito à vida sem

prolongamento artificial.

Em que pese o posicionamento contrário já exposto, enxergar a vida como algo de

valor absoluto não é a melhor interpretação a ser dada ao art. 5º em comento, pois, os direitos

fundamentais, embora de relevância ímpar, não devem ser assim compreendidos. Tais direitos

reúnem um caráter principiológico, em razão do qual se exige um procedimento racional de

ponderação para cada decisão no caso concreto. Por esse motivo, independentemente da

robustez, não há como lhes conferir esse caráter absoluto, podendo, a depender da hipótese,

ceder espaço a interesses de sentido oposto (CAMBI, 2009, p. 103).

Visto como um direito fundamental, o direito à vida deve conviver em harmonia com

os demais direitos individuais positivados na Constituição Federal, podendo vir a ser limitado,

se, por hipótese, houver colisão entre quaisquer dos valores ali descritos. Esclareça-se, por

oportuno, que a colisão de princípios aqui abordada se restringe a esfera de direitos inerentes

a uma só pessoa, como, por exemplo, a divergência entre a liberdade e a integridade física do

indivíduo (MORAES, 2010, p.188), cuja solução se dá por meio da técnica da ponderação20.

Contudo, tal não se confunde com a colisão de direitos fundamentais entre privados,

em que dois ou mais indivíduos, titulares de direitos fundamentais, têm interesses divergentes

entre si. Exemplo disto é a oposição entre a liberdade de imprensa, de um lado, e o direito à

honra, à imagem, à intimidade e à vida privada, de outro. Tais questões também são

solucionadas por meio da técnica da ponderação, porém não são objeto deste estudo.

19

Segundo o Dicionário Eletrônico Aulete, o significado de „arbitrário‟ é: “que depende do arbítrio ou vontade

de quem decide; que não tem regras estabelecidas (medidas arbitrárias)” (AULETE, 2013). 20

Enunciado 274 – Art. 11. Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil,

são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio

da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais,

deve-se aplicar a técnica da ponderação.

Page 52: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

50

Retomando, a discussão sobre o caráter não absoluto do direito à vida, Guilherme de

Souza Nucci (2009, pp. 581-582), ao introduzir o capítulo dos „crimes contra a vida‟, no seu

Código Penal Comentado, registra a relatividade deste bem jurídico, declarando que:

Em regra, protege-se a vida, mas nada impede que ela seja perdida, por

ordem do Estado, que se incumbiu de lhe dar resguardo, desde que interesses

maiores devam ser abrigados. O traidor da pátria, em tempo de guerra, não

tem direito ilimitado à vida. A mulher, ferida em sua dignidade como pessoa

humana, porque foi estuprada, merece proteção para decidir pelo aborto. O

seqüestrador pode ser morto pela vítima, que atua em legítima defesa. Em

fim, interesses podem entrar em conflito e, conforme o momento, a vida ser

o bem jurídico de menor interesse para o Estado, o que não o torna menos

democrático.

Sob esse prisma, o texto constitucional excepciona essa inviolabilidade do direito à

vida, ao admitir a pena de morte em caso de guerra declarada, no artigo 5º, inciso XLVII,

alínea „a‟, cujas hipóteses estão descritas no Código de Processo Penal Militar. A legislação

infraconstitucional também apresenta exceções quanto a essa inviolabilidade. O Código

Brasileiro da Aeronáutica, no artigo 303, permite a derrubada de aeronaves, consideradas

hostis ao espaço aéreo pátrio, pela autoridade administrativa nacional, o que, em

conseqüência, ocasionaria a morte dos seus ocupantes.

No mesmo sentido, o Código Penal, além das excludentes genéricas de ilicitude

(legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício

regular de direito), contidas o artigo 23, traz como excludentes específicas, no artigo 128, o

aborto terapêutico, quando a vida da gestante está em risco, e o aborto humanitário, em que a

gravidez decorreu de estupro.

Impende registrar que a inconstitucionalidade destes dispositivos não foi questionada

no Supremo Tribunal Federal. Ao invés, tanto no julgamento da ADI nº 3.510/DF como no da

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54/DF, este Tribunal

consignou ser inquestionável o caráter não absoluto do direito à vida, razão pela qual a

validade e a eficácia dos dispositivos são plenas.

Na primeira ação, a Corte declarou a constitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105/05

(Lei de Biossegurança) no que concerne à viabilidade de pesquisas com células-tronco.

Discutiu-se o início e o fim da vida, além dos inúmeros avanços que as pesquisas em

embriões inviáveis podem trazer para o tratamento e a cura de doenças. Ademais, na ADPF nº

54/DF conferiu-se interpretação conforme a Constituição Federal, também com fundamento

na relatividade do direito à vida, para afastar a incidência do crime de aborto, nas hipóteses de

antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico.

Page 53: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

51

A laicidade do Estado ficou evidenciada em ambas as ações. Explicitou-se que a opção

por um estado leigo não implica apenas a tolerância à liberdade de diversos cultos ou ao

direito de não acreditar em deus algum, mas, sobretudo, o dever de não guiar as decisões

estatais atinentes aos direitos fundamentais de toda uma sociedade sob a influência de crenças

confessionais. Nesse sentido, destaquem-se as palavras da Ministra Carmem Lúcia Antunes

Rocha, no julgamento da ADI nº 3.510/DF:

Aqui, a Constituição é a minha Bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz,

no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de Miranda, assim é porque o

Direito assim quer e determina. O Estado é laico, a sociedade é plural, a

ciência é neutra e o direito imparcial. [...] Emoção não faz direito, que é a

razão transformada em escolha jurídica.

Também merecem destaque as ponderações do Ministro Marco Aurélio Mello no

julgamento da ADPF nº 54/DF sobre a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico:

Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o

Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como

censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que

dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer:

concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer

minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar

circunscritas à esfera privadas. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência

dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada

do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem

hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as

orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer seja e por

quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade

religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não

professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia

desejam rever a posição até então assumida.

Desta forma, afastou-se a supremacia e o absolutismo do direito à vida para permitir a

pesquisa em células-tronco e autorizar antecipação terapêutica do parto, utilizando-se, dentre

outros fundamentos, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

As convicções sobre o caráter absoluto do direito à vida são subjetivas e, no mais das

vezes, traduzem as crenças de cada um. Não cabe ao Estado, portanto, ditar modelos de

comportamento que reflitam a intimidade do ser humano, mas respeitar as acepções

individuais, garantindo o cumprimento da escolha pessoal do sujeito seja para concordar, seja

para discordar da sacralidade da vida.

Nesse aspecto, impende registrar, por fim, que o dever de laicidade estatal é

decorrência do direito à liberdade de consciência e de crença, também garantido pelo artigo

Page 54: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

52

5º, inciso VI, da Constituição Federal21. A regra é bem abrangente, pois abarca não só o

direito que o indivíduo tem de crer em um ou em vários deuses, mas também a liberdade de

não crer em deus algum, permitindo que os ateus sejam também reconhecidos pelo

ordenamento jurídico como livres nas suas convicções.

Por outro lado, é certo reconhecer que a vida humana guarda um valor peculiar,

inerente ao homem. Porém, a materialização deste direito não deve ser vista de forma isolada

dos demais preceitos constitucionais, mas dentro de uma perspectiva civil-constitucional, por

meio de uma leitura sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal não

impôs nenhuma prevalência do bem jurídico „vida‟ em detrimento dos demais bens

positivados no transcrito artigo 5º (liberdade, igualdade, segurança e propriedade). Além

disso, todos os direitos ali assegurados devem estar em conformidade com o Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana.

Nesse sentido, deve-se ter em mente que esse princípio, positivado como fundamento

da República Federativa do Brasil, no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, é

“conformador da ordem jurídica brasileira” (LÔBO, 2010, p. 87), isto é, o valor fundante da

dignidade humana é arcabouço para as demais disposições normativas do ordenamento

jurídico pátrio.

O aludido princípio, portanto, serve de substrato normativo e valorativo para todos os

direitos existenciais, de modo que, ao se conceber o direito à vida, é necessário idealizá-lo

como um direito a uma vida com dignidade (FACHIN, 2006, p. 631). Em razão disto, antes

de se recusar ao paciente o direito de viver sem o prolongamento artificial, deve-se,

sobretudo, preservar-lhe a dignidade que lhe é inerente, por meio do respeito da liberdade de

escolha dele, no que tange à terapia que melhor lhe aprouver.

Dentro desta interpretação sistemática do texto constitucional, não se deve olvidar

tampouco que a vedação ao tratamento desumano e degradante, descrita no inciso III do artigo

5º da Constituição Federal22, não se restringe às práticas de tortura ocorridas durante o período

da ditadura militar, nem ao dever de se respeitar a integridade física dos encarcerados. A

interpretação do dispositivo, ao invés, deve ser ampla e irrestrita. Desse modo, a degradação

de um enfermo, mediante o prolongamento do seu sofrimento, por meio de utilização de

técnicas de ressuscitação, sem o seu consentimento, é inconcebível.

21

Art. 5º, inciso VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos

cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. 22

Art. 5º, inciso III - Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

Page 55: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

53

Nesse mesmo espírito, deve-se ter em mente que a promoção do bem estar de todos é

objetivo da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3º, inciso IV, da

Constituição Federal23, devendo o poder público estar atento às questões da terminalidade da

vida, de modo a incentivar práticas legislativas e governamentais, assecuratórias da

integridade do paciente terminal.

Em suma: o direito fundamental à vida está assegurado pela Constituição Federal de

1988, no mesmo patamar valorativo dos demais direitos ali previstos e mediante a

observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como forma de garantir que

ninguém venha a ser dele privado, por meio de investidas arbitrárias, sem que, para tanto,

àquele direito seja atribuído caráter absoluto e indisponível, se vier a colidir com outros

valores fundamentais ao indivíduo.

3.2 A ortotanásia segundo a perspectiva dos códigos penal, civil e de ética médica.

No âmbito das codificações penal e civil, também não existe uma posição específica

do legislador quanto ao direito à ortotanásia. Apesar disto, o Código de Ética Médica autoriza

sua prática. Assim, o direito à vida sem prolongamento artificial pode ser extraído, por meio

de uma interpretação teleológica, dos Códigos Penal, Civil e de Ética Médica sob diferentes

prismas, cada um na perspectiva do direito a qual regula, conforme se verá a seguir.

Registre-se, de início, que questões existenciais, como a versada no presente trabalho,

são ambientadas e discutidas, de maneira mais adequada, na seara civil-constitucional,

principalmente porque a terminalidade da vida é própria dos direitos da personalidade do

indivíduo. A criminalização de condutas dessa estirpe deveria ser a última escolha do

legislador. No entanto, não é o que ocorre no atual sistema penal brasileiro, pois, como se

verá, a eutanásia e o suicídio assistido são tipificados como crime. Além disso, a depender da

interpretação dada aos dispositivos do atual Código Penal Brasileiro (CPB), a ortotanásia

também pode ser enquadrada como tal.

A assistência ao suicídio, por exemplo, é prevista pelo Código Penal Brasileiro, no

artigo 12224, que impõe pena de reclusão de 02 (dois) a 06 (seis) anos, àqueles que prestam

auxílio a quem deseja matar-se. O dispositivo em comento não faz qualquer ressalva quanto à

possibilidade de diminuição da pena se a motivação do crime for humanitária. Não obstante, é

23

Art. 3º, inciso IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação. 24

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão de 02

(dois) a 06 (seis) se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 01 (um) a 03 (três) anos, se da tentativa de suicídio

resulta lesão corporal de natureza grave.

Page 56: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

54

possível aplicar a atenuante genérica, contida no artigo 65, inciso III, alínea „a‟, do CPB25,

com o escopo de ver reduzida a pena do agente causador do suicídio assistido por essas

razões.

Ademais, a ortotanásia e a eutanásia, em princípio, podem ser consideradas formas de

homicídio. A eutanásia ativa é tipificada como crime no artigo 121, § 1º, do CPB26, que

institui uma causa especial de diminuição de pena de 1/6 a 1/3, para quem suprimir a vida de

alguém, impelido por relevante valor moral.

A eutanásia passiva, em que são suprimidos os tratamentos ordinários, a exemplo da

alimentação parenteral, como já foi mencionado, pode configurar homicídio qualificado pela

tortura, cuja pena é reduzida ante a aplicação da causa de diminuição do relevante valor moral

(art. 121, §2º, inciso III, c/c §1º do CPB). O posicionamento incriminador encontra suporte na

citada doutrina vitalista27

, que defende o caráter absoluto do direito à vida. Apesar disto, em

defesa do agente causador da abreviação da vida do paciente terminal, é possível alegar o

consentimento do ofendido, como causa supralegal de exclusão da ilicitude (NUCCI, 2009, p.

590), ou a inexigibilidade de conduta diversa, como meio de afastar a culpabilidade, ou,

ainda, o perdão judicial, como forma de extinção da punibilidade.

Diversamente, a depender da interpretação dada aos dispositivos penais, a ortotanásia

pode também vir a ser considerada uma forma de homicídio, na modalidade omissiva. Isso

porque o médico adquiriria a posição de „garante‟ em relação à vida do paciente, nos termos

do artigo 13, § 2º, alínea „a‟, CPB28. No entanto, deve-se ter em mente que a omissão do

tratamento da doença pelo profissional de saúde, em relação à ortotanásia, é penalmente

irrelevante, já que ele é incapaz de evitar o resultado morte.

Assim, se o advento da finitude do paciente terminal é inevitável, em razão de a

doença se encontrar em estágio avançado e, portanto, sem possibilidades de cura, a escolha do

médico em manter apenas os cuidados paliativos não deve ser vista como conduta delituosa.

Na ortotanásia, não se deixa de prestar atendimento ao paciente, isto é, não há uma recusa ou

omissão do tratamento por parte do médico, mas tão-somente a indicação de uma terapia

25

Relevante valor social ou moral. 26

Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. § 1º Se o agente comete o crime impelido por

motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta

provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. 27

(DINIZ, M. H., 2007, pp. 20-633); (FRANÇA, 2007, pp. 510-515); (PELUSO, 2012, pp. 32-33). 28

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa.

Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (...) § 2º - A omissão é

penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a

quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

Page 57: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

55

paliativa, como meio de garantir o conforto do doente terminal, pois a obstinação terapêutica

não é recomendada, porque ineficaz. Tudo isto, torna atípica a conduta do médico.

Pelas mesmas razões, a conduta do terapeuta que pratica a ortotanásia também não se

enquadra no tipo do artigo 135 do Código Penal29, pois, além de os pacientes terminais não se

encontrarem em situação de desamparo, não há a negativa da prestação do atendimento

médico.

Em contrapartida, sob o prisma do Código Civil, partindo da perspectiva do Direito

Civil-Constitucional, existem dois vieses argumentativos para a admissão do direito à vida

sem prolongamento artificial.

O primeiro é considerar o reconhecimento da relativa disponibilidade dos direitos da

personalidade, mitigando a disposição das características contidas no artigo 11 do Código

Civil30, em favor da materialização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O direito à

vida é um dos tipos de direitos da personalidade e, como tal, entre outras características, é

intransmissível, irrenunciável e insuscetível de limitação voluntária, além de absoluto,

conforme entendimento consolidado na doutrina31.

Deve-se esclarecer, desde já, que o caráter absoluto dos direitos da personalidade,

notadamente, do direito à vida, refere-se a sua oponibilidade erga omnes, ou seja, a sua

eficácia é contra todos. Desta forma, tanto a coletividade como o Estado têm o dever jurídico

de respeitar estes direitos, sem que a sua garantia se torne ilimitada, ante a necessidade de se

conceder a toda a sociedade, ainda que minimamente, a sua eficácia.

Se, por hipótese, houver colisão de direitos fundamentais entre privados, a técnica da

ponderação há de ser utilizada, com o fito de garantir a todos a aplicabilidade desses direitos

existenciais, preservando a característica da oponibilidade contra todos.

Por outro lado, de acordo com a literalidade do mencionado artigo 11, os direitos da

personalidade são indisponíveis, pois não se admite a sua cessão a terceiros

29

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou

extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses

casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A

pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a

morte. 30

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e

irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. 31

(EHRHARDT JÚNIOR, 2009, pp. 191-195); (FARIAS e ROSENVALD, 2006, p. 105); (LÔBO, 2010, pp.143-

145); (TEPEDINO, 2008, pp. 26-62).

Page 58: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

56

(intransmissibilidade) ou a sua abdicação (irrenunciabilidade), além de não ser possível a sua

limitação por vontade própria, ressalvadas as hipóteses previstas em lei.

A interpretação literal do dispositivo em questão inviabiliza o exercício de alguns dos

direitos inerentes à pessoa humana, tais como, o direito à cirurgia de transgenitalização, o

direito à recusa de transfusão de sangue pelos adeptos da Igreja Testemunhas de Jeová ou,

ainda, o direito à vida sem o prolongamento artificial. Por esta razão, há que se admitir uma

disponibilidade moderada dos direitos existenciais, quando, dentro da esfera da

autodeterminação, haja o respeito e a realização do Princípio da Dignidade da Pessoa

Humana. Nesta linha de pensamento, a cessão do uso de direitos autorais, nos termos da Lei

9.610/98, e a permissão para utilização dos direitos de imagem de artistas são formas de

abrandamento do atributo da intransmissibilidade desses direitos.

Apesar disso, impende registrar que, em tais hipóteses, o que ocorre é a cessão da

repercussão patrimonial, decorrente do exercício do direito personalíssimo, e não a alienação

do direito em si (LÔBO, 2010, p. 144).

Em outra forma de interpretação, os direitos da personalidade, na seara da

relativização moderada, podem ser considerados renunciáveis e, portanto, disponíveis.

Esclareça-se, por essencial, que o sentido de disponibilidade adotado neste trabalho é o de

disponibilidade relativa, utilizado por Roxana Borges, significando a “liberdade jurídica de

exercer certos direitos de personalidade de forma ativa ou positiva, não apenas na forma

negativa” (BORGES, 2009, p. 112). Prefere-se, no entanto, utilizar a expressão

„disponibilidade moderada‟ para conceder um grau de proporcionalidade à abordagem da

liberdade do indivíduo, isto é, para expressar uma liberdade proporcional dos direitos da

personalidade, afastando-se da idéia de uma liberdade ínfima.

A disposição do próprio corpo é consentida pelo artigo 13 do Código Civil32 desde

que, por exigência médica, não haja a diminuição permanente da integridade física do

indivíduo e não ofenda os bons costumes. Em entendimento concorde, as Jornadas de Direito

Civil elaboraram os Enunciados 04 e 13933, autorizando a limitação voluntária dos direitos da

32

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar

diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei

especial. 33

Jornadas de Direito Civil: Enunciado 04 - O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação

voluntária, desde que não seja permanente nem geral. Enunciado 139 - Art. 11: Os direitos da personalidade

podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso

de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes.

Page 59: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

57

personalidade por parte do seu titular, desde que não seja permanente ou geral e não contrarie

a boa-fé e os bons costumes.

Apesar da vedação quanto ao caráter permanente da limitação, por orientação dos

enunciados e do artigo 13 do Código Civil, há hipóteses em que a limitação voluntária por

parte do indivíduo será imutável, sem que, para tanto, a conduta se torne contrária à norma

jurídica. A Lei 9.434/1997, por exemplo, permite a disposição gratuita de órgãos duplos e de

partes destacáveis do próprio corpo, para fins de tratamento ou de transplantes. Consideram-

se destacáveis, para os efeitos da lei, as partes organicamente renováveis como, por exemplo,

o sangue, a medula óssea e a pele. No entanto, a disposição de órgãos, ainda que duplos, é

permanente e não se renova.

Por outro lado, a expressão „exigência médica‟, nos moldes literais da redação do

citado dispositivo, sugere que a avaliação do profissional de saúde tem caráter absoluto,

sobrepondo-se a questões éticas e jurídicas. Sem embargo, ela não deve ser vista desta forma,

pois os direitos existenciais aqui abordados não envolvem apenas demandas terapêuticas. A

discussão vai além do parecer clínico que é apenas um entre os vários aspectos a serem

avaliados dentro deste contexto. Observe-se que, no nosso ordenamento jurídico, a perícia

médica não é absoluta e não vincula o julgador34

, razão pela qual deve-se buscar a temperança

nas decisões judiciais, pois o que o parecer clínico autoriza por „exigência médica‟ nem

sempre será acolhido pelo direito.

Não se deve aceitar, por exemplo, amputação de membros superiores e inferiores

saudáveis como a realizada pelo cirurgião Robert Smith que, sob a justificativa de „exigência

médica‟, amputou as pernas de dois „amputees by choice‟ em um hospital da Escócia,

causando perplexidade na imprensa internacional (BAYNE; LEVY, 2005, pp. 75-86).

Outra situação relevante de disponibilidade moderada de direitos existenciais, e já

aceita pelo direito, é o das cirurgias de transgenitalização, em que há a redesignação do sexo

da pessoa. Em princípio, o procedimento para mudança de sexo ofenderia a vedação contida

no artigo 13 do Código Civil, ante a disposição de caráter permanente do próprio corpo.

Porém, impor ao indivíduo que fique preso a um corpo cuja mente não o reconhece, sofrendo

preconceitos e problemas psicológicos, ofende não só o Princípio da Autonomia Privada, mas,

sobretudo, o da Dignidade da Pessoa Humana. Em razão disto, a cirurgia de

34

Art. 436 do CPC: O juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros

elementos ou fatos provados nos autos.

Page 60: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

58

transgenitalização é permitida35, mesmo em hospitais públicos, mediante avaliação de equipe

médica multidisciplinar, nos termos da Resolução 1.652/2002, que dispensa a necessidade de

determinação judicial para tanto. Sobre o assunto, Anderson Schreiber pontua que:

Controvérsias como aquelas envolvendo os amputees-by-choice e as

cirurgias de mudanças de sexo gravitam em torno de escolhas que não são

biológicas, nem clínicas, mas éticas e valorativas, ainda que amplamente

baseadas em dados técnicos. Para tais escolhas, um jurista não está menos

habilitado que um médico. Se é verdade que aqui, como em todos os outros

campos, a verdade jurídica não é verdade por inteiro, tampouco o será a

verdade médica. O melhor remédio há de surgir não da prevalência de uma

verdade sobre outra, como sugere o art. 13 do Código Civil, mas de um

aberto diálogo no meio social. A vedação generalizada às diminuições físicas

permanentes, com a única ressalva da “exigência médica”, é norma que não

se compadece com a necessária ponderação entre a tutela do próprio corpo e

outros princípios atinentes à realização da pessoa humana, como a liberdade

sexual, a liberdade de expressão e até a liberdade religiosa (SCHEREIBER,

2011, p. 45).

Exemplo recente de disposição permanente do próprio corpo, sem que houvesse

diagnóstico da existência de doença degenerativa, foi a da atriz norte-americana Angelina

Jolie que achou por bem retirar definitivamente as duas glândulas mamárias e os ovários,

diante da possibilidade de ser acometida por câncer nessas regiões do corpo. No artigo „Minha

escolha clínica‟ (tradução livre)36, publicado no jornal The New York Times, a atriz relata que

sua mãe faleceu, vítima de câncer de mama, aos 56 anos. Temerosa com a possibilidade de vir

a sofrer do mesmo mal, ela descobriu, por meio de exames, que teria 87% de probabilidade de

desenvolver a doença nas mamas, e 50% de desenvolvê-la nos ovários. Por isso, retirou as

duas mamas e, após a recuperação deste procedimento, fará outra cirurgia para a retirada dos

ovários. A atriz achou por bem dividir sua experiência nesse artigo, no qual ela diz que,

apesar de ter sido uma decisão muito difícil, está feliz com sua escolha, já que, agora, a

probabilidade de desenvolver a enfermidade foi reduzida para 5%. Não tardará muito para que

este tipo de intervenção cirúrgica seja permitida no Brasil, ainda que sem regulamentação

específica neste sentido.

É de se ver, portanto, que os direitos da personalidade são, em regra, indisponíveis.

Não obstante, permite-se a sua disponibilidade moderada, mesmo em caráter permanente,

quando o ato de disposição é voluntário, não ofende a ordem pública e se presta para realizar

o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, no caso concreto. Essa disposição é reconhecida

35

Enunciado 276 – O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica,

autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo

Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil. 36

(JOLIE, 2013, online)

Page 61: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

59

quando tem por escopo materializar, em essência, a existência do indivíduo, devendo,

contudo, ser afastada, se for conduzida por razões avessas à concreção da dignidade humana

do indivíduo (SCHREIBER, 2011, pp. 26-27).

Em razão disto, deve-se ter cautela na interpretação do artigo 15 do Código Civil37,

que consagra o princípio da autonomia do paciente, isto é, confere-lhe o direito de escolha,

relativamente aos tratamentos a que deseja submeter-se, contanto que seja prévia e

adequadamente informado.

Não se devem omitir as opiniões discordantes38

ao que aqui vem sendo defendido, no

tocante ao direito do paciente de escolher o tratamento que mais lhe pareça adequado ao seu

caso. Para essa corrente, o direito à vida é indisponível e absoluto, fato que inviabiliza o

pedido do paciente para interromper determinados tratamentos, pois a paralisação poderá

abreviar-lhe a morte. Em defesa da indisponibilidade do direito à vida, em detrimento do

direito de autodeterminação do paciente, Cezar Peluso (2012, p. 32), ao comentar o artigo 15

do Código Civil, declarou que: “O direito à vida é indisponível, de modo que o médico está

autorizado, em princípio a realizar todos os procedimentos para a recuperação do paciente,

independentemente da aquiescência deste”.

Uma leitura apressada do dispositivo pode levar à compreensão equivocada de que o

paciente estaria obrigado a submeter-se a terapias ou procedimentos cirúrgicos contra a sua

vontade, desde que não suscitassem risco de morte. No entanto, ressalvadas as hipóteses em

que há justo receio de prejuízo ao interesse público, a exemplo da prevenção de contágio de

doenças por meio de campanhas de vacinação, a permissão do paciente deve ser obtida

(SCHREIBER, 2011, p. 54).

É preferível, porém, crer que a escolha do paciente não deve estar submissa aos

julgamentos dos profissionais de saúde, dos familiares ou da sociedade, pois, conforme

ensinamento de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber (2009, p.7), “Se o risco, todavia, é

exclusivamente individual, a vontade informada do paciente deve ser respeitada, como

imperativo de proteção a sua autodeterminação e à dignidade humana.”.

Com efeito, é o caso de refletir sobre o constrangimento que sofrem certos pacientes,

quando se lhes impõe uma transfusão de sangue, em desrespeito às suas convicções religiosas,

37

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a

intervenção cirúrgica. 38

(DINIZ, M.H., 2007, pp. 20-633); (FRANÇA, 2007, pp. 510-515); (PELUSO, 2012, pp. 32-33).

Page 62: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

60

e a pretexto de indisponibilidade do direito à vida, afronta-se à liberdade de credo e à

dignidade da pessoa humana. É aqui que se trava a discussão sobre a imposição de transfusão

de sangue aos seguidores da Igreja Testemunhas de Jeová.

A Constituição Federal assegurou ao indivíduo não só o direito à vida e à liberdade de

consciência e de crença previstos nos já citado artigo 5º, caput e inciso VI, mas também

garantiu a escusa de consciência, positivada no inciso VIII do mesmo artigo39, para que

ninguém seja preterido do exercício de direito seu, em virtude de suas convicções, quer

religiosas, quer filosóficas.

Tanto a vida como a liberdade de crença são direitos formadores da personalidade do

indivíduo, cabendo a este, e não a terceiros, decidir o que é fundamental para si (TEPEDINO,

2002, p. 144). Desta maneira, não há como impor ao indivíduo a submissão a tratamento

contra a sua vontade, notadamente quando esta está lastreada em íntima convicção.

Ademais, em cumprimento ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, deve-se

observar não somente à integridade física, psíquica e intelectiva do indivíduo, mas também

respeitar a sua esfera de liberdade mínima, entre elas a liberdade de credo, cujo desrespeito

implica violação ao próprio conceito de vida digna (CHAVES; ROSENVALD, 2006, pp.

120-121).

Já se salientou que ao Estado compete o dever de laicidade. Obrigar um religioso a

receber sangue de outrem, mediante transfusão, e a que ele conviva com o sentimento de estar

em pecado permanente, sendo rejeitado pela comunidade em que vive, é o mesmo que

submeter uma gestante, também religiosa, contra a sua vontade, a realizar um aborto, sob o

argumento de que a gravidez é fruto de estupro, ou, a contrario sensu, negar-lhe o direito de

abortar, impondo-lhe que conviva com um filho fruto de violência sexual.

É em razão disso que se devem respeitar as convicções do paciente, conferindo-lhe o

direito de escolher o tratamento que mais lhe aprouver, observadas suas crenças (ou

descrenças) e sua liberdade de escolha, principalmente quanto ao tratamento a que deseja ser

submetido. Logo, como já se disse, não cabe aos médicos ou ao Estado intervir nessa decisão,

sob a justificativa de padronização de comportamentos.

39

Art. 5º, VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou

política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação

alternativa, fixada em lei;

Page 63: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

61

Apesar disso, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.021/80, com o

aval dos tribunais pátrios40 e de respeitável doutrina41, que autoriza aos médicos sedar seus

pacientes e realizar as transfusões de sangue que entenderem necessárias, mesmo sem o

consentimento deles. Essa prática distorce o papel hierárquico exercido pelas resoluções no

ordenamento jurídico brasileiro, conforme referenciado no início deste capítulo.

Por outro lado, a situação do paciente terminal, no âmbito da doutrina civil-

constitucional, deve manter o mesmo enfoque da disponibilidade moderada, até então

desenvolvida. Em outras palavras, pode-se dispor de uma vida – que já alcançou o seu estágio

terminal – em favor da preservação da dignidade do seu titular. Isso porque seria irracional

pensar que o paciente pode recusar certos tratamentos médicos, nos termos do artigo 15 do

Código Civil, mesmo que esta renúncia resulte na abreviação lenta e dolorosa de sua vida, e,

ao mesmo tempo, negar-lhe o direito à ortotanásia, sob o argumento de que tal conduta

resultaria em prática ilícita.

Tais atos de disposição, todavia, conquanto permanentes, não contrariam a boa fé e os

bons costumes, pois os cuidados paliativos são mantidos, afastando-se, tão-somente, a

obstinação terapêutica, para que o direito de viver sem o prolongamento artificial seja a

materialização da dignidade humana, na seara da terminalidade da vida.

Em contrapartida, a posição mais acertada para garantir aos pacientes terminais o

direito à vida sem o prolongamento artificial é considerar que a ortotanásia não constitui ato

de disposição desse direito. A disponibilidade acontece nos casos de eutanásia, suicídio

assistido e distanásia, mas não na ortotanásia. Nos dois primeiros, a disposição seria para

abreviar a vida; nesta, para prolongá-la.

Declarar o desejo de „não-prolongamento artificial de sua vida, preferindo a morte

natural‟, não é ato de disposição, mas aceitação do curso natural do ciclo vital. Diversamente,

a utilização artificial de aparelhos para manutenção das pessoas vivas é que contraria a

naturalidade do processo de existência, porque provoca o prolongamento antinatural da vida,

impedindo o fenecimento espontâneo.

40

8881 MS 2004.008881-7, Relator: Des. Josué de Oliveira, Data de Julgamento: 04/04/2005, 1ª Seção Cível,

Data de Publicação: 26/04/2005; 20060020045004 DF , Relator: SANDRA DE SANTIS, Data de Julgamento:

12/07/2006, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: DJU 31/08/2006; 155 RS 2003.71.02.000155-6, Relator:

VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 24/10/2006, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação:

DJ 01/11/2006 41

Por todos: (EHRHARDT JÚNIOR, 2009, pp. 206 - 208).

Page 64: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

62

Nesse sentido, Paulo Lôbo (2010, p. 148) pondera que: “Não se considera antecipação

ou violação do direito à vida, a pretensão à morte natural, quando a vida é mantida

artificialmente mediante o uso de equipamentos ou medicações”. Desta maneira, o direito de

viver sem prolongamento artificial não macula a indisponibilidade do direito à vida, pois a

ortotanásia, vista como morte natural, não viola a vida; ao invés, a integra.

Sob outra perspectiva, o Código de Ética Médica (CEM) traz princípios e regras sobre

a prática de ortotanásia. Dentre os princípios fundamentais, destacam-se os contidos nos

incisos VI e XXII42, que guardam o mesmo espírito, isto é, o de preservar o bem-estar do

doente, afastando-se de procedimentos causadores de demasiado sofrimento.

Sob outra perspectiva, o Código de Ética Médica (CEM) traz princípios e regras sobre

a prática de ortotanásia. Entre os princípios fundamentais, sobressaem os contidos nos incisos

VI e XXII43, que guardam o mesmo espírito, isto é, o de preservar o bem-estar do doente,

afastando os procedimentos causadores de demasiado sofrimento.

Assim é que, no inciso VI, proíbe-se o uso da ciência para produzir sofrimento físico e

mental nos enfermos, permitindo a utilização dos cuidados paliativos em substituição à

obstinação terapêutica. O médico deve agir com bom senso na oferta dos tratamentos

disponíveis, para que a sua atuação não ultrapasse as barreiras da dignidade.

Na mesma linha de entendimento, o inciso XXII orienta o profissional de saúde a

evitar tratamentos despiciendos, incentivando a prática de cuidados paliativos para os doentes

terminais. A morte não deve ser encarada pelos profissionais da medicina como uma derrota,

mas como um fato da existência humana, de forma que se deve evitar o prolongamento

desregrado da vida, como se fosse a única alternativa de terapia aos pacientes terminais.

Assim, a principiologia do Código de Ética Médica está em consonância com o texto

constitucional, na medida em que materializa o Princípio da Dignidade Humana e busca

afastar do âmbito da relação médico-paciente o tratamento desumano e degradante, nos

42

Inciso VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais

utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para

permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

Inciso XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos

diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados

paliativos apropriados. 43

Inciso VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais

utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para

permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

Inciso XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos

diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados

paliativos apropriados.

Page 65: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

63

termos dos já mencionados artigos 1º, inciso III, e 5º, inciso III, da CF/88 (DANTAS;

COLTRI, 2011, p.40).

Diversamente, no capítulo atinente à relação do médico com os seus pacientes, e com

os familiares deste, o Código de Ética Médica segue no espírito do exercício da medicina

eficiente e humanitária, com o propósito de utilizar a tecnologia em favor da cura, sem que,

para isso, tal objetivo seja perseguido a qualquer custo. Nessa perspectiva, o artigo 36, § 2º,

do CEM44, ao proibir que o médico abandone seus pacientes, sobretudo os que se encontram

em estágio terminal, reafirma a aplicação da medicina paliativa a esses enfermos, conforme já

referiu o inciso XXII.

Outrossim, observe-se que a prática da eutanásia e do suicídio assistido, além de

criminalizadas pelo Código Penal, como já foi dito, é coibida pelo Código de Ética Médica,

nos termos do artigo 4145. O dispositivo sugere, no parágrafo único, a existência de um direito

à ortotanásia, quando determina a disponibilidade da medicina paliativa aos enfermos

incuráveis, vedando, ao final, os procedimentos médicos típicos de prolongamento artificial

da vida do paciente terminal.

A suspensão de tratamentos inócuos não configura a antecipação da morte, vedada

pelo sistema jurídico brasileiro. Pelo o contrário, visa a permitir que a vida tome seu curso

natural, evitando-se a dilatação do sofrimento do paciente terminal. Percebe-se, portanto, que

a deontologia médica busca, sobretudo, o bem-estar do doente, garantindo-lhe o respeito e a

integridade necessários, para que ele ultrapasse as adversidades da enfermidade com o

mínimo de desconforto possível.

3.3 As resoluções do Conselho Federal de Medicina.

No mesmo espírito do Código de Ética Médica, as Resoluções 1.805/2006 e

1.995/2012, editadas pelo Conselho Federal de Medicina, são no sentido de humanizar a

finitude da vida, respeitando a vontade declarada do paciente para na escolha do tratamento

que mais lhe aprouver.

44

Art. 36, § 2º - Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não

abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que

para cuidados paliativos. 45

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados

paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando

sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante

legal.

Page 66: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

64

Editada antes do atual Código de Ética Médica, a Resolução 1.805/2006, no artigo 1º,

autorizou os médicos a suspender tratamentos que prolonguem inutilmente a vida de doentes

cujas enfermidades são incuráveis. Confira-se:

Art. 1º. É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos

que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e

incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º. O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal

as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º. A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º. É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma

segunda opinião médica.

Defende-se que a redação do dispositivo é contraditória, pois afirma que a vontade do

doente terminal deve ser respeitada, ao mesmo tempo que dá ao médico o poder de decidir

sobre a suspensão do tratamento fútil, desde que fundamente sua decisão no prontuário

(ASCENSÃO, 2009, p. 433). Entretanto, apesar pouca clareza redacional do artigo 1º, a

melhor interpretação para o dispositivo é a de reconhecer que o médico informará o paciente

sobre todas as terapias disponíveis e aplicáveis, com o objetivo de garantir que o

consentimento deste seja lídimo, para, assim, respeitar e fazer cumprir a decisão dele ou de

seu representante legal.

Tudo isto, numa leitura sistemática, é decorrência do consentimento livre e esclarecido

do paciente, ou melhor, do ato legítimo de vontade do doente, realizado após o recebimento

das informações imprescindíveis acerca do seu tratamento (PEREIRA, P. 2011, p. 114). A

informação prestada pelo médico ao paciente, fruto da relação de consumo existente entre

ambos, deve ser clara e precisa, para que a decisão tomada por este seja legítima e livre de

quaisquer vícios de vontade.

A Resolução 1.805/2006 assegura ainda, no artigo 2º46, a prestação dos cuidados

paliativos, para que o enfermo receba o alento necessário a minorar não só a sua dor física,

mas também seu sofrimento psíquico e espiritual. Nesse aspecto, a Resolução 1.805/2006

abriu portas para a discussão da preponderância do indivíduo sobre a doença que o acomete,

fazendo com que a medicina se preocupe menos em superar a morte, trazendo mais

naturalidade ao processo de finitude.

46

Art. 2º. O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao

sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive

assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Page 67: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

65

Por outro lado, impende registrar que o Ministério Público da União, no Distrito

Federal, ingressou com uma Ação Civil Pública (Processo nº 2007.34.00.014809-3),

objetivando suspender os efeitos da Resolução 1.805/2006, sob a alegação de que o Conselho

Federal de Medicina havia extrapolado os limites de sua competência, ao editar a mencionada

resolução. Argumentou-se que haveria ofensa ao artigo 22, inciso I, da Constituição Federal47,

uma vez que a ortotanásia, por ser uma forma de homicídio, deveria ser legislada pela União.

Como já se disse, a ortotanásia não se enquadra em nenhum dos tipos penais da

legislação brasileira. Ademais, a regulamentação da atuação médica é de competência do

Conselho Federal de Medicina, conforme determina o artigo 2º da Lei 3.268/195748. Apesar

disso, a liminar foi concedida para suspender os efeitos da Resolução 1.805/2006, ao passo

que, com mais acerto, no mérito, a ação foi julgada improcedente, razão pela qual a resolução,

atualmente, tem plena eficácia.

Após o advento do atual Código de Ética Médica, o Conselho Federal de Medicina

editou a Resolução 1.995/2012, que regulamenta as diretivas antecipadas de vontade dos

pacientes. Essa resolução reafirma a disposição inicial da Resolução 1.805/2006, segundo a

qual a escolha da terapia mais adequada é do paciente, que poderá revelar sua opção por meio

das denominadas „diretivas antecipadas de vontade‟, definidas no artigo 1º da Resolução

1.995/201249.

47

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: Inciso I - direito civil, comercial, penal, processual,

eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; 48

Art. 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética

profissional em tôda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-

lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo

prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente. 49

Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente

manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver

incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Page 68: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

66

O artigo 2º50 da aludida resolução buscou trazer o disciplinamento das diretivas

antecipadas de vontade, determinando, entre outras coisas, onde serão registradas e quem será

o responsável pelo seu cumprimento. Uma vez atingido o estágio de inconsciência, a vontade

do paciente expressada a título de „diretivas antecipadas de vontade‟ deverá ser cumprida pelo

médico e respeitada pelos familiares daquele, desde que não se contrariem os preceitos do

Código de Ética Médica.

Além das diretivas antecipadas de vontade, o médico poderá levar em consideração as

informações fornecidas pelo curador, designado previamente pelo enfermo, quando em pleno

gozo de sua capacidade. A vontade manifestada com antecipação pelo paciente, livre de vício,

de acordo com a Resolução 1.995/2012, será lançada no prontuário desse paciente, para que

todos os profissionais de saúde atuantes nos cuidados dele possam cumpri-la, para o bem dele.

Assim, ficou evidenciado no artigo 2º, § 3º da Resolução 1.995/2012 que as diretivas

antecipadas prestadas pelo paciente prevalecem, inclusive, sobre a vontade dos seus

familiares. Dessa forma, elas devem ser preservadas, ainda que não haja consenso da família

neste sentido. Aliás, os familiares devem atuar em colaboração com a equipe médica para o

benefício do enfermo, devendo ser ouvido, porém, o paciente, para que sua vontade declarada

não deixe de ser respeitada, em caso de discordância de entendimentos entre ambos. Isso se

justifica porque a família, em princípio, não tem aceita com facilidade que alguém querido

está prestes a falecer, e pode não guardar a imparcialidade essencial para decidir sobre o

melhor caminho a ser trilhado pelo enfermo.

50

Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se,

ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas

antecipadas de vontade.

§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em

consideração pelo médico.

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou

representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética

Médica.

§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive

sobre os desejos dos familiares.

§4º. O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente

comunicadas pelo paciente.

§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante

designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da

instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e

Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida

necessária e conveniente.

Page 69: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

67

Apesar de não ser da ordem natural das relações familiares, não se deve ignorar que

algumas pessoas podem ostentar o desejo de recusar o encargo de cuidar de um parente

enfermo, ou dos interesses sucessórios advindos da morte deste, ou, ainda, manifestar a

ambição de utilizar-se dos benefícios previdenciários do doente, proporcionada pelo

prolongamento da sobrevida deste.

Observe-se, por oportuno, que não havendo as diretivas antecipadas de vontade, e na

falta de consenso entre médicos e familiares, o artigo 2º, §5º da Resolução 1.995/2012 orienta

o médico a recorrer ao Comitê de Bioética, ou à Comissão de Ética Médica do Hospital, ou

aos Conselhos Regional e Federal de Medicina, para embasar sua decisão sobre eventuais

conflitos, quando necessário. Porém, em casos terminais, nem sempre há tempo hábil para se

aguardar o trâmite burocrático da realização de uma consulta a essas instituições. Em razão

disso, melhor seria que todos tivessem o propósito de manifestar sua vontade, antes que fosse

tarde demais para fazê-lo.

Assim como ocorreu com a Resolução 1.805/2006, o Ministério Público Federal, no

Estado de Goiás, ingressou com uma Ação Civil Pública (Processo nº 1039-

86.2013.4.01.3500), objetivando suspender os efeitos da Resolução 1.995/2012 e da

declaração incidental de sua inconstitucionalidade, sob a alegação de que o Conselho Federal

de Medicina extrapolou os limites de seu poder regulamentar, ao dispor sobre tema que

envolve questões familiares, sociais e de direitos da personalidade.

Segundo o Ministério Público Federal, o Conselho ofendeu o artigo 22, incisos I, XVI

e XXIII da Constituição Federal51, omitiu a necessidade de capacidade civil do paciente para

prestar tais declarações, não impôs limite temporal de validade para esta, nem tratou da sua

forma de revogação, e impediu a influência da família na formação da vontade do paciente.

Ademais, utilizou, de forma indevida, o prontuário como forma de registro para o desejo do

paciente, considerando que o seu caráter sigiloso impede o controle da atuação do médico.

Até o presente momento o mérito da ação não foi julgado, encontrando-se concluso

para sentença desde 08/10/2013, porém, o pedido de liminar foi negado pelo juiz federal

competente, sob o fundamento de que a finalidade da resolução é regulamentar a conduta

médica, respeitando a vontade do paciente quanto às terapias a que será submetido, em

51

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: Inciso I - direito civil, comercial, penal, processual,

eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; Inciso XVI - organização do sistema nacional

de emprego e condições para o exercício de profissões; Inciso XXIII - seguridade social;

Page 70: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

68

situações de terminalidade da vida. A decisão declarou, ainda, que a Resolução 1.995/2012 é

constitucional, pois se encontra em consonância com o Princípio da Dignidade da Pessoa

Humana, ao assegurar o paciente os cuidados paliativos, sem o prolongamento artificial de

sua vida.

Registre-se que as resoluções expedidas pelo Conselho Federal de Medicina são

normas éticas destinadas aos médicos e têm por escopo regular a conduta destes no exercício

da profissão. Eles têm o dever ético e jurídico de cumpri-las, sob pena de sofrerem processo

disciplinar, nos termos da Resolução 1.897/2009, além da possibilidade de serem

responsabilizados civil e penalmente.

Respeitar a vontade declarada pelo paciente, nos termos das Resoluções 1.805/2006 e

1.995/2012, é dever do médico, tanto por razões disciplinares, como pelos encargos

decorrentes da relação médico-paciente. Estes vão além da obrigação principal de realizar

procedimento cirúrgico e tentar a cura do enfermo, atingindo, inclusive, obrigações

acessórias, como, por exemplo, o acatamento do desejo do doente quanto às terapias a que

deseja se submeter.

3.4 Os Projetos de Lei em tramitação no Brasil.

O Congresso Nacional vem tentando debater e regulamentar a ortotanásia há muito

tempo. Além dos Projetos de Lei (PL) em tramitação, algumas iniciativas de leis sobre o

assunto foram propostas e arquivadas por falta de impulso. No Senado, por exemplo, o PL nº

125/96, que buscava autorizar a prática da morte sem dor, apresentado em 05/06/1996, foi

encaminhado para Comissão de Constituição e Justiça e, depois de ser redistribuído para

vários relatores, foi arquivado ao final da legislatura (29/01/1999).

Atualmente, duas propostas estão em trâmite por iniciativa do Senado Federal. São os

projetos de lei 116/2000 e 524/2009, ambos de autoria do Senador Gerson Camata. O PL nº

524/2009 encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e busca dispor sobre

os direitos da pessoa cuja doença está em fase terminal. Foram apensados a ele os projetos:

PL 79/2003 e PL 101/2005, todos com o objetivo de disciplinar os direitos dos pacientes em

serviços de saúde, e o PL 103/2005, que visa a instituir o estatuto do enfermo.

Por outro lado, o projeto de lei nº 116/2000, responsável por alterar o Código Penal

Brasileiro para retirar expressamente a ilicitude da ortotanásia, autorizando a renúncia ao

excesso terapêutico, acrescenta dois parágrafos ao final do artigo 121 do Código Penal

Brasileiro. A matéria chegou a ser arquivada, tendo sido reativada em 2007, ante o

Page 71: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

69

requerimento de 27 senadores. Após a realização de uma audiência pública, a Comissão de

Constituição e Justiça do Senado Federal efetuou emendas, aprovou o projeto e encaminhou

para a Câmara dos Deputados a proposta de criação do artigo 136-A52 para o Código Penal

Brasileiro. Na Câmara dos Deputados, esse projeto foi registrado em 23/12/2009, sob o

número 6.715/2009 e apensado às demais propostas no mesmo sentido. No dia 08/12/2010 foi

aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família, encontrando-se, atualmente, na

Comissão de Constituição e Justiça.

Antes de enfocar as propostas em tramitação na Câmara dos Deputados, impende

registrar que o projeto para o novo Código Penal (PLS 236/2012), em andamento no Senado

Federal, tipifica a eutanásia como crime, no caput do artigo 12253, impondo pena reduzida (2 a

4 anos) em relação ao Código Penal atual (6 a 20 anos). No parágrafo 1º54 do mesmo

dispositivo, o legislador pretende isentar o agente de pena, a depender das circunstâncias do

caso concreto, e, no parágrafo 2º55, reafirma a intenção de expressar a licitude da ortotanásia.

No entanto, na Câmara dos Deputados, a iniciativa legislativa mais antiga em

tramitação é a de nº 3.002/2008. A ela estão apensos, além do projeto de lei nº 6.715/2009,

proveniente do Senado Federal, os projetos nº 5.008/2009 e 6.544/2009. O projeto nº

5.008/2009 tem por escopo proibir a suspensão de cuidados de pacientes em estado vegetativo

persistente. Já o de nº 6.544/2009 visa a autorizar a ortotanásia, trazendo conceitos basilares

sobre assunto, sem, contudo, fazer uma regulamentação de como ela seria desempenhada.

Já os deputados federais, em vez de tratar da matéria no âmbito penal, optaram,

acertadamente, no projeto de lei nº 3.002/2008, por regulamentar a prática da ortotanásia no

território nacional, como já acontece na Argentina. A proposta define a ortotanásia como a

suspensão de procedimentos extraordinários, que se restringem a prolongar a vida de

pacientes terminais artificialmente, quando a cura já não é mais possível.

52 Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de

fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que

haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente

ou irmão.

§ 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos.

§ 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios

terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal. 53

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para

abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos. 54

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou

estreitos laços de afeição do agente com a vítima. 55

§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em

caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos

e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge,

companheiro ou irmão.

Page 72: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

70

Nessa perspectiva, o projeto distingue a obstinação terapêutica das terapias ordinárias,

que abrange os cuidados essenciais ao enfermo, englobando assistência de equipe

multidisciplinar, nutrição adequada, remédios para alívio da dor e medidas de conforto físico,

psíquico, social e espiritual. A proposta busca preservar o direito à informação do doente, pois

o médico tem o dever de assegurar que ele tome sua decisão, quando plenamente informado

sobre o seu diagnóstico, prognóstico, terapias disponíveis, além das alternativas para alívio da

dor. Deve, ainda, cientificá-lo que sempre será possível desistir da ortotanásia, a qualquer

tempo e sem nenhuma justificativa.

O projeto registra, ainda, que os planos de saúde, seguros de vida ou testamentos não

serão questionados em decorrência do pedido de ortotanásia realizado pelo doente, visto que,

nessa hipótese, a morte é natural. A iniciativa legislativa autoriza o médico responsável pelo

doente a praticar a ortotanásia, mediante solicitação expressa e por escrito deste ou de seu

representante legal, por meio de formulário próprio, que ficará registrado no prontuário. O

pedido do paciente deve ser datado e assinado na presença de duas testemunhas e uma junta

médica especializada o apreciará. Além do formulário preenchido, o prontuário deverá conter

o diagnóstico, o prognóstico, as informações prestadas ao paciente e o parecer da junta

médica especializada, ratificando a opinião do médico.

A proposta parece sugerir que é o médico, sob o aval da junta médica especializada,

quem decidirá sobre a autorização para a ortotanásia, o que seria uma falha. À equipe médica

compete investigar se o caso se enquadra numa situação terminal e prestar ao paciente todas

as informações necessárias para que ele possa decidir a respeito do assunto. A iniciativa

legislativa também se equivoca ao exigir que a prática da ortotanásia somente poderá ser

efetuada após parecer favorável do Ministério Público que, em caso de dúvida, deverá

provocar o Poder Judiciário para se manifestar sobre a o pedido do enfermo.

Com toda a deferência que esses órgãos merecem, a decisão é pessoal, não

competindo ao Estado, sob qualquer forma, imiscuir-se na vontade consciente e motivada do

doente terminal. Não se deve ignorar que esse tipo de expediente inviabiliza a materialização

do próprio direito do paciente à ortotanásia, pois o seu sofrimento será prolongado, não só

pelos aparelhos, mas pela morosidade e burocracia estatais.

Page 73: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

71

Lembre-se, por oportuno, que competirá ao Ministério Público fiscalizar eventuais

irregularidades, tais como: a prática de eutanásia social, traduzida na liberação desregrada de

leitos por profissionais de saúde, as negativas injustificadas dos planos de saúde para evitar

gastos com pacientes internados nas Unidades de Terapias Intensivas, além do interesse dos

hospitais privados em manter pacientes internados na UTI desnecessariamente com o objetivo

de auferir mais lucros.

Page 74: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

72

4 O “TESTAMENTO VITAL”: UMA DECLARAÇÃO VÁLIDA E EFICAZ

Sumário: 4.1. Experiência Internacional. 4.2. Condições de validade e

eficácia.

O mencionado trabalho de Jacques Roskam quanto à criação do termo „ortotanásia‟ já

anunciava que não seria possível ao paciente incapaz opinar sobre a suspensão de tratamentos

invasivos e terapeuticamente obstinados, salvo se ele tivesse manifestado por escrito seu

desejo de escapar de qualquer tipo de distanásia. Em caso de incapacidade, o consentimento

partiria dos familiares, após o parecer de três médicos, de autoridade científica moral

indiscutível, na presença de um tabelião, e levado ao presidente provinciano do Conselho de

Ética Médica (ROSKAM, 1950, p. 712).

Posteriormente, no final dos anos 60, quando ainda não havia um termo específico que

traduzisse com perfeição a idéia de „exteriorização da vontade garantidora da autonomia do

paciente terminal‟, a despeito da existência de várias terminologias, surgiu, nos Estados

Unidos o „testamento vital‟ (living will), também conhecido como „testamento biológico‟,

„testamento em vida‟, „testament de vie‟, „biotestamento‟, „diretivas avançadas‟, „vontades

antecipadas‟, „manifestação explícita da própria vontade‟ e „diretivas antecipadas de vontade‟.

A „Lei da Morte Natural‟ (tradução livre)56

, pioneira em regulamentar o assunto, surgiu a

partir do caso Karen Ann Quinlan, no estado da Califórnia, na década de 70, e exigia que o

documento fosse assinado por pessoa maior e capaz, na presença de duas testemunhas, vindo

a produzir seus efeitos após quatorze dias da assinatura, com validade de cinco anos e

revogabilidade a qualquer tempo (BORGES, 2009, p. 249) e (MARINELI, 2013, online).

Apesar de a primeira lei sobre o testamento vital ter sido criada na Califórnia, o caso

paradigmático de Karen Ann Quinlan ocorreu na Suprema Corte do Estado de Nova Jérsei, no

ano de 1976, quando se reconheceu judicialmente o direito de recusa de tratamento médico

para diagnóstico crônico e irreversível. Karen, segundo o boletim médico, estava em estado

vegetativo permanente, sem perspectiva de cura, em decorrência de overdose de

entorpecentes, sendo mantida por aparelhos. Naquela ocasião, como lhe fosse impossível

manifestar a própria vontade, seu pai requereu judicialmente o desligamento dos aparelhos

médicos, com fundamento no princípio constitucional da autodeterminação e da privacidade

(CASTRO, 2007, p. 291).

A legislação federal americana, no entanto, começou a ser modificada com o caso

Nancy Cruzan (Cruzan by Cruzan v. Director, Missouri Department of Health). Nancy

56

Natural Death Act.

Page 75: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

73

Cruzan sofreu um acidente automobilístico aos 25 anos de idade e foi diagnosticada como

paciente em estado vegetativo permanente e irreversível. Com isso, seus pais ingressaram

com um pedido judicial para a retirada dos aparelhos que a mantinham viva, sob o argumento

de que ela havia afirmado, inúmeras vezes, que não gostaria de ser mantida viva quando

tivesse menos da metade de sua capacidade normal. Embora o pedido tenha sido autorizado

em 1ª Instância, todavia o advogado designado para representar os interesses de Nancy em

juízo recorreu da decisão, e o Tribunal do Missouri negou o desligamento dos aparelhos, por

não existir prova clara e contundente da manifestação de vontade da paciente. Entretanto,

reconhecendo que pessoas capazes têm o direito constitucional de exigir que os seus suportes

vitais sejam desligados, a Suprema Corte Americana, depois de ouvir os colegas de trabalho

de Nancy Cruzan, testemunhas de que ela jamais desejaria viver em estado vegetativo,

determinou a retirada dos referidos suportes vitais. (DWORKIN, 2003, pp. 264-265);

(DADALTO, 2013, pp. 99-100).

Em 1991, como conseqüência direta do caso Cruzan, o Congresso Americano editou a

„Lei de Autodeterminação do Paciente‟(tradução livre)57

, cuja finalidade é conscientizar as

pessoas para estarem preparadas para as decisões médicas ao final da vida, regulamentando o

direito de autonomia de pacientes terminais ou em estado vegetativo. Os hospitais mantidos

por fundos federais passaram a ter o dever de informar aos pacientes que ali ingressassem

sobre o conteúdo das leis estaduais de autodeterminação, bem assim sobre as formalidades

que eles deveriam observar, sobretudo no tocante ao dever de exteriorizar seus desígnios no

momento em que lhes sobreviesse a finitude da vida, caso não desejassem submeter-se ao

prolongamento artificial. É importante observar que essa lei não cria o testamento vital no

âmbito federal, mas somente obriga os nosocômios que recebem recursos federais a informar

sobre a previsão do living will na legislação de cada estado.

Observe-se que esses paradigmas foram situações em que a reconstrução da vontade

judicial das pacientes teve de ser perquirida, pois elas já se encontravam em estado

vegetativo, quando a família solicitou o desligamento dos suportes vitais. Os aparelhos

mantenedores das vidas de Karen Quilan e Nancy Cruzan só foram desligados depois de

longa batalha judicial, justamente porque elas não manifestaram previamente seu desejo nesse

sentido, o que demonstra a relevância da exteriorização da vontade como meio de garantir a

autonomia do paciente no final de sua existência.

57

Patient Self-Determination Act

Page 76: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

74

A inadequação da expressão „testamento vital‟ é evidente, já que os testamentos

tradicionais têm efeitos post mortem, ao passo que a eficácia do testamento vital mantém-se

enquanto o paciente viver. Todavia, o testamento vital assemelha-se ao testamento comum

por ser um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável. Na realidade, o

termo provém de uma tradução equivocada do inglês, pois o substantivo „will‟ pode

significar: vontade, desígnio ou testamento e „living‟ é flexão do verbo viver („to live‟), razão

pela qual, apesar de a locução „testamento vital‟ ser a mais comum na doutrina58

, há quem

prefira a expressão „declaração prévia de vontade para o fim da vida‟ (DADALTO, 2013, p.

17).

Por outro lado, deve-se esclarecer que as chamadas „diretivas avançadas‟,

„manifestação explícita da própria vontade‟, „vontades antecipadas‟ e „diretivas antecipadas

de vontade‟ não se confundem nem com o „testamento vital‟, nem com o „mandato

duradouro‟ (ou procuração de saúde). Aquelas representam o conteúdo a ser materializado por

estes, tidos como instrumentos hábeis para tratar questões relativas à terminalidade da vida.

De modo diverso, Luciana Dadalto (2013, pp. 82-83) classifica as diretivas antecipadas como

gênero que tem como espécies o testamento vital e o mandato duradouro. A autora, baseada

na lei americana de autodeterminação do paciente, trata as diretivas antecipadas como um

documento apto a dar instruções acerca das terapias médicas de uma pessoa em qualquer fase

da vida, independentemente de esta ter ou não atingido o estágio terminal. Contudo, como já

referenciado acima, prefere-se utilizar o testamento vital e a procuração de saúde como

instrumentos das ditas diretivas antecipadas de vontade. Nesse sentido, a Resolução

1.995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina, definiu, no artigo 1º, diretivas

antecipadas de vontade como: “O conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados

pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que

estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”, referendando a ideia

de que as diretivas são, de fato, o conteúdo.

Ademais, cumpre registrar que o testamento vital e o mandato duradouro não se

confundem, pois, enquanto o testamento vital é o instrumento por meio do qual a pessoa

declara, antecipadamente, sua recusa - ou não - à obstinação terapêutica, com o propósito de

deixar claro como deseja vivenciar os momentos finais da sua existência; o mandato

duradouro é um documento pelo o qual o paciente constitui um procurador, conferindo-lhe

58

(LÔBO, 2013a, 237-240); (BORGES, 2009, p. 249); (MARINELI, 2013, online); (TEIXEIRA; PENALVA,

2010, pp. 57-82);

Page 77: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

75

poderes para tomar decisões atinentes à aceitação ou à recusa de tratamentos quando este

paciente atingir o estágio de inconsciência (DADALTO, 2013, p. 85).

Sob a perspectiva ontologicamente existencial, o testamento vital é a forma de garantir

a autonomia do paciente terminal nos últimos dias de sua vida. Na visão do Biodireito, ele é o

meio decidir sobre quais caminhos seguir no processo de finitude, permitindo que a extinção

ocorra sem obstinação terapêutica, com a concessão do máximo de conforto e o mínimo de

sofrimento possível aos pacientes e familiares; ou mesmo seja elastecida em decorrência do

desejo de mais dias de vida.

Juridicamente, segundo Paulo Lôbo (2013a, p. 237), testamento vital é, em essência,

um “negócio jurídico unilateral sujeito a condição suspensiva, isto é, o estado de

inconsciência duradoura do declarante”.

4.1 Experiência Internacional

Os norte-americanos, como dito, foram os pioneiros na edição de leis sobre o

testamento vital (Living Will), o mandato duradouro (Durable Power of Attorney for Care

Act), além das diretivas antecipadas de vontade (Advance Medical Care Directives), institutos

da manifestação de vontade do paciente, materializados em formulários próprios, em que,

logo após os imprescindíveis esclarecimentos da equipe médica, ele indica quais os

tratamentos que aceita e quais os que rejeita. Contudo, outras leis editadas no âmbito

internacional também merecem realce na regulamentação do assunto. Na Europa, a

Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina de 1997, ocorrida em Oviedo, e a

Recomendação do Conselho Europeu de 2009 são os documentos de maior evidência na

consideração do tema.

A Espanha regulamentou a matéria com legislação federal específica em 2002 (Lei

41/2002), apesar de algumas comunidades autônomas como, por exemplo, Catalunha, Galícia,

Navarra e Madri, já terem pronunciamento legislativo anterior no que tange às chamadas

„instruções prévias‟ ou „vontade antecipada‟. A Lei espanhola 41/2002, no artigo 11, dispõe,

em linhas gerais, que pessoas maiores e capazes estão autorizadas a realizar suas instruções

prévias acerca dos cuidados de saúde, tratamentos médicos e doação de órgãos, podendo

designar, inclusive, um procurador para cumprir a manifestação de vontade ali prestada. Tais

instruções são revogáveis a qualquer tempo, por escrito, e serão assentadas no Registro

Nacional de Instruções Prévias (DADALTO, 2013, pp. 102-109).

Page 78: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

76

Ressalte-se, por oportuno, que algumas comunidades autônomas da Espanha, tais como

Andaluzia, Valência e Navarra, nas respectivas leis locais, enfocam a possibilidade de

utilização das Diretivas Antecipadas de Vontade por parte de menores de idade, com a

exigência de que eles sejam emancipados (BLANCO, 2007, p. 66). Todavia, essa distinção

não tem utilidade para o sistema jurídico brasileiro, tendo em vista que as pessoas

emancipadas gozam de capacidade plena para os atos da vida civil.

Na mesma linha de pensamento, em Portugal, a Lei do Testamento Vital – Lei

25/2012, promulgada em 16 de julho de 2012 – tem por objetivo regular as „diretivas

antecipadas de vontade‟ em matéria de saúde, na forma de Testamento Vital. Essas diretivas,

à semelhança da lei argentina, descrita mais adiante, implicam na manifestação de vontade

escrita, unilateral e revogável, prestada por agente capaz, com o objetivo de explicitar quais

tratamentos o declarante deseja que lhe sejam aplicados, na hipótese de não mais ser possível,

no futuro, exprimir seus desejos. Distingue-se da norma da Argentina, contudo, porque,

enquanto as „diretivas antecipadas‟ daquele país não estipulam prazo de validade, a lei

portuguesa determina o período de eficácia de cinco anos para a declaração de vontade,

renovável mediante confirmação. Neste ponto, a lei argentina supera a lei portuguesa porque

não deveria haver prazo certo para o fim da produção de efeitos das declarações prestadas no

„testamento vital‟, considerando que não se sabe quando e em que situação a enfermidade se

instalará no corpo do declarante.

A Lei 25/2012 possibilita algumas exceções para o descumprimento do testamento, a

saber: a) em caso de urgência ou risco eminente de morte do declarante; b) quando se verifica

a desatualização da vontade do paciente, decorrente do avanço científico das terapias

disponíveis, e c) ante a possibilidade de escusa de consciência por parte do médico. Esta

última não implica desrespeito à vontade do paciente, pois a instituição de saúde fica obrigada

a proporcionar meios para que essa deliberação seja cumprida. Todavia, a família não pode

recusar-se a cumprir as declarações prestadas no testamento vital, exceto se o documento tiver

parado de produzir os seus efeitos. A ineficácia do testamento por caducidade aumenta a

insegurança do declarante, deixando-o vulnerável quanto ao momento da necessidade de

utilização do testamento.

Conforme já anunciado anteriormente, o Registro Nacional do Testamento Vital

(RENTEV), previsto na referida lei, apesar de não ser obrigatório para que a declaração tenha

eficácia, é de grande valia para o conhecimento dos procedimentos a serem adotados nos

Page 79: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

77

tratamentos dos testadores, por parte dos profissionais de saúde competentes, que devem

guardar o sigilo ético quanto ao teor destas declarações.

Em acréscimo, há um capítulo próprio relativo ao „procurador para cuidados em

saúde‟, pessoa nomeada para representar o doente, quando este não conseguir expressar a sua

vontade autonomamente. Existe um amplo regramento sobre as atribuições do representante

legal, devendo-se ressaltar que, em caso de conflito entre as decisões expressas no testamento

vital e a vontade do procurador de saúde, as disposições do outorgante prevalecerão.

Por outro lado, a Lei 26.742/2012 da Argentina autoriza que o enfermo, tendo sido

suficientemente informado sobre o seu estado de saúde, os tratamentos disponíveis, os

benefícios e os riscos destes decorrentes, firme a sua declaração de intenções, expressando, de

forma clara e precisa, que tipo de terapia deseja que lhe seja aplicada. O denominado

„consentimento informado‟, que pode ser proferido tanto pelo paciente como por seu

representante legal, é uma declaração unilateral de vontade revogável, que o profissional de

saúde deve respeitar, fazendo o devido registro no prontuário médico.

Além do consentimento informado, há, no artigo 11 da lei em comento, a previsão das

„diretivas antecipadas de vontade‟ em que a pessoa, em pleno gozo de suas faculdades

mentais, pode expressar quais são os tratamentos a que deseja submeter-se, e quais os que

pretende repelir. O médico responsável pelo tratamento do paciente deve aceitar essa

declaração, desde que não implique em prática de eutanásia.

Observe-se, contudo, que a Lei 26.742/2012 foi falha em alguns aspectos. Apesar de

existir norma da província de Buenos Aires, aprovada pelo Conselho Diretivo de Escrivães,

criando o primeiro „Registro de Atos de Autoproteção de Prevenção de uma Eventual

Incapacidade‟, o ato normativo federal foi silente quanto à criação de um registro nacional de

testamentos vitais. Além disso, não regulamentou a questão dos menores de idade, nem a

possibilidade de escusa de consciência por parte do médico, e, contrariando a essência do que

se pretende com a prática da Ortotanásia, autorizou a rejeição do paciente aos cuidados

paliativos.

Diversamente, na Noruega, a „lei de tutela‟ (tradução livre)59, que regulamenta o

„mandato para o futuro‟(tradução livre)60, foi editada no ano de 2010, porém, somente entrou

em vigor naquele país em julho de 2013. Em princípio, naquele país nórdico, assim como no

59

Law of guardianship. 60

Future Power of Attorney.

Page 80: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

78

Brasil, a procuração tradicional perde seus efeitos quando o mandante se torna incapaz para

reger os seus atos da vida civil. Todavia, a regra norueguesa foi alterada para que, em

observância à orientação do Conselho Europeu, havendo previsão no instrumento

procuratório, o mandato possa ter a sua eficácia diferida para o momento futuro e certo do

estado de inconsciência do sujeito. Ainda segundo essa legislação, o mandante deve ser maior

de idade e pode constituir mais de um procurador, seja para administrar questões financeiras,

seja para cuidar das questões existenciais, devendo o documento ser escrito, à semelhança do

testamento, na presença de duas testemunhas e assinado pelo declarante (HAMBRO, 2013, p.

305-311).

Do mesmo modo, a legislação editada na Suíça permite a emissão de „mandato

duradouro‟ para surtir efeitos quando o declarante atingir o seu estado de incapacidade,

exigindo, porém, que o documento seja feito de próprio punho, datado e assinado pelo

declarante, por meio de escritura pública, e registrado em uma central de banco de dados.

Ademais, a lei suíça permite a criação de uma diretiva antecipada de vontade para as decisões

relativas à saúde do declarante, sem exigir as formalidades do mandato duradouro. Estas são

mais restritas que aqueles, pois ficam limitadas à escolha dos tratamentos de saúde a serem

realizados no doente. Essa lei determina que a indicação de existência de uma diretiva

antecipada esteja registrada no cartão de saúde do paciente, ficando este livre para escolher

onde guardar o documento que contém suas disposições de vontade para sua saúde. O médico

fica obrigado a cumprir a diretiva antecipada, salvo se o seu conteúdo ferir a lei ou se houver

sérias dúvidas quanto à veracidade dos desígnios ali contidos (SCHWENZER; KELLER;

2013, pp. 375-380).

Analisando a diversidade de regulamentações quanto aos meios legais existentes para

fazer valer a autodeterminação da pessoa natural no que concerne aos seus desígnios para

quando alcançar o estágio da terminalidade, percebe-se que o direito brasileiro está muito

aquém das previsões internacionais sobre o assunto. Isso porque, como já visto, nosso

ordenamento jurídico limitou-se a regulamentar a matéria por meio de resoluções editadas

pelo Conselho Federal de Medicina, sem que o Congresso Nacional, até então, tivesse

disciplinado a matéria, de modo específico.

4.2 Condições de validade e eficácia.

Assim como todos os negócios jurídicos em geral, os testamentos, nos termos do

artigo 104 do Código Civil, para serem válidos, exigem agente capaz, objeto lícito e forma

expressa, ou não defesa em lei. Além disso, o regramento dos testamentos tradicionais

Page 81: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

79

reclamam certas formalidades, tais como, a presença de testemunhas em todos os tipos de

testamento, e concede capacidade testamentária ativa aos maiores de 16 anos, nos termos do

parágrafo único do artigo 1.860 do Código Civil61

. Contudo, a capacidade e discernimento

plenos são essenciais para a feitura de um testamento vital, não se demonstrando adequado

aos incapazes, ainda que relativamente, o exercício do direito de autodeterminação em

situações de terminalidade. Assim, o testador, para este tipo de declaração, deve estar em

pleno gozo de sua capacidade civil, pois o discernimento é da essência deste tipo de negócio

jurídico.

Ademais, o conteúdo das disposições de vontade ali descritas deve estar dentro do que

o direito autoriza, não sendo possível, por exemplo, a autodeterminação para a eutanásia

(ativa ou passiva), pois que vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, as

disposições podem conter, por exemplo, o posicionamento do paciente sobre prática de

ortotanásia, recusa à obstinação terapêutica e a medidas heróicas invasivas, não-oferta de

suporte vital, ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação, doação de órgãos e local

onde deseja passar seus últimos dias. Importa ressaltar, ainda, que é difícil encontrar o

equilíbrio entre o progresso científico e a condição mortal do ser humano, pois a velocidade

com que as terapias se tornam obsoletas é cada vez maior. Por isso, não se deve, no momento

da confecção do documento, nominar os tratamentos indesejados, pois eles podem ter caído

em desuso quando o estágio de inconsciência for alcançado pelo enfermo, o que tornaria a

declaração de vontade desatualizada (DADALTO, 2013, p. 94).

A forma, por sua vez, também se distancia dos testamentos tradicionais, pois há de ser

livre, desde que não proibida por lei, tendo em vista não haver prescrição legal específica para

tal. Não se pode, portanto, impor os requisitos extrínsecos essenciais a um testamento

ordinário, como a presença de testemunhas, por falta de determinação legal. Desta forma, o

documento pode ser público ou particular, dispensando-se, também, a escritura pública

lavrada por tabelião – solenidade típica do testamento público (art. 1.864 do CCB).

Com base na liberdade da forma, Marcelo Marineli (2013, online) aceita, além de

quaisquer escritos do declarante, ainda que não assinados, a gravação de vídeo como meio

idôneo para o doente expressar suas disposições de vontade, quanto aos tratamentos médicos

desejados por ele, a serem executados quando alcançar o estágio de inconsciência.

Recomenda-se, todavia, a forma escrita e assinada pelo interessado, por ser o meio mais

61

Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.

Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.

Page 82: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

80

seguro de o sujeito externar, de maneira clara e precisa, os seus desígnios, e afastar quaisquer

dúvidas sobre sua declaração.

Impende lembrar que o Conselho Federal de Medicina, seguindo a mesma orientação

adotada pela Lei Argentina, apontou o prontuário médico como instrumento hábil para o

registro das diretivas antecipadas de vontade do enfermo, tanto no §2º do artigo 1º da

Resolução 1.805/06, como no §4º do artigo 2º da Resolução 1.995/2012, já transcritos acima.

Contudo, esta indicação não parece ser a mais acertada, pois, caso o paciente receba alta

hospitalar, e, depois de algum tempo, volte a ser internado em outro hospital, em situação de

emergência, quando não mais seja possível externar a sua vontade, os médicos encarregados

de prestar este novo atendimento não terão conhecimento da declaração de vontade já

externada pelo enfermo em ocasião anterior, ante a falta de publicidade inerente ao

prontuário. Em razão disso, são mais adequadas as disposições das leis editadas na Europa, as

quais estabelecem um registro nacional de conservação e acesso às diretivas antecipadas de

vontade dos cidadãos, ou orientam a anotação da existência dessas informações na carteira de

saúde do indivíduo.

Para a confecção do testamento vital, é dispensável que o sujeito alcance o estágio

terminal da vida, aconselhando-se, inclusive, que isso ocorra antes mesmo do aparecimento de

quaisquer doenças tidas como graves e de cura difícil, quando então o discernimento do

indivíduo estará vulnerável a eventuais pressões oriundas da sua falta de saúde. Não se deve

ignorar, também, que o testamento vital é revogável a qualquer tempo, permitindo que o

sujeito altere suas disposições de vontade, durante o curso da sua vida, se casualmente suas

convicções mudarem com o passar do tempo, ou, ainda, se o avanço tecnológico permitir a

eficácia do tratamento. Nesse sentido, Paulo Lôbo (2013a, p. 240) assevera que:

O testamento vital apenas deve ser desconsiderado em virtude de mudança

das circunstâncias que estiveram presente no momento de sua feitura (rebus

sic stantibus), como a evidente desatualização da vontade do outorgante em

face do ulterior progresso dos meios terapêuticos, ou se se comprovar que

ele não desejaria mantê-lo, em respeito a sua autonomia, presumida na

primeira hipótese, expressa na segunda.

É importante lembrar que, como já foi referido, caso a escrita do testamento vital

ocorra após a ciência do diagnóstico irreversível, o doente deverá receber todas as

informações necessárias sobre os tratamentos disponíveis, de forma clara e precisa, para que,

assim, a sua escolha seja exercida com discernimento e coerência. Afinal, o doente deve ter

condições de agir com competência, isto é, “conceito clínico de possuir habilidades para a

Page 83: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

81

tomada de decisões válidas em relação ao tratamento” (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008,

online).

Por outro lado, para produzir efeitos, o testamento vital está sujeito ao implemento de

uma condição suspensiva, ou seja, o estado de inconsciência duradouro do enfermo. É nesse

estágio, sobretudo, que se deve respeitar as diretivas antecipadas de vontade, materializadas

no testamento vital. A produção de efeitos inter vivos afasta, mais uma vez, as disposições

legais sobre os testamentos tradicionais do testamento vital, pois enquanto aqueles são aptos a

surtir efeitos com o advento da morte, este busca produzir eficácia durante a vida do sujeito.

Apesar disso, a eficácia futura desta vontade estabelecida previamente é erga omnes,

isto é, contra todos, abrangendo, portanto, os profissionais de saúde e os familiares. Eventual

descumprimento do testamento vital somente se justificaria se o negócio jurídico fosse nulo,

nos termos do artigo 166 do Código Civil62

, deixando de produzir os efeitos jurídicos

desejados, em decorrência da nulidade e não em virtude de questões subjetivas pertinentes à

família ou aos profissionais de saúde.

Ressalte-se, por essencial, que, tal como ocorre nos testamentos tradicionais, a família

não pode modificar a declaração de vontade do testador no testamento vital, pois não é dado a

terceiros alterar os desígnios existenciais de quem testou. Assim, se não é possível, nos

testamentos ordinários, a rejeição de fatos que repercutam diretamente na divisão patrimonial

dos herdeiros, tais como a recusa das doações da parte disponível a um estranho ou o repúdio

ao reconhecimento de um filho, fruto de uma relação extraconjugal, por mais forte razão é

vedado aos familiares o descumprimento das disposições previstas no testamento vital. No

mesmo sentido, ao tratar da doação de órgãos, o Enunciado 277 das Jornadas de Direito

Civil63

confirma que a vontade declarada do doador prepondera sobre a de seus familiares,

que somente serão consultados no silêncio deste. Desse modo, tanto na doação de órgãos

como na ortotanásia, preserva-se o respeito às disposições de vontade externadas pelo sujeito.

Aliás, impende anotar que, em caso de dúvida, a interpretação do testamento vital deve ser

sempre em benefício do enfermo, buscando atender ao máximo o cumprimento de sua

62

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito,

impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial

para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou

proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. 63

Enunciado 277. O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com

objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de

órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97

ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador.

Page 84: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

82

vontade. Nesse aspecto, a lei portuguesa é esclarecedora ao determinar que, em caso de

divergência entre a vontade do testador e a do procurador de saúde, acata-se a daquele.

Sob outro prisma, os profissionais de saúde também têm o dever de executar as

disposições de vontade descritas no testamento vital, determinado pelo Código de Ética

Médica, consoante explanado no capítulo anterior. Os médicos somente estariam autorizados

a negar o cumprimento de tais disposições, se o conteúdo delas ofendesse norma jurídica ou

deontológica, o que, no caso da ortotanásia, não se aplica. A escusa de consciência é possível,

no entanto, outro médico deve assumir o tratamento para viabilizar o respeito à vontade do

indivíduo.

Ademais, apesar de não ser da ordem natural das relações familiares, tampouco da

conduta ética do médico, eles não devem ignorar as seguintes possibilidades: a) a ambição de

parentes de lançar mão dos benefícios previdenciários do doente, em decorrência do

prolongamento da sobrevida deste; b) o desejo de despojar-se do encargo de cuidar de

alguém; c) os interesses sucessórios, advindos da morte do enfermo, e d) a intenção do

médico em liberar leitos ocupados por vidas em via de extinção. Tais possibilidades

corroboram a necessidade do respeito às disposições individuais de caráter existencial do

paciente (ASCENSÃO, 2009, pp. 423 – 445); (ALVES, 2001, p. 73). Por esses mesmos

motivos, a construção judicial da vontade ou a vontade substitutiva por parte dos familiares

não é recomendável.

Em acréscimo, o Enunciado 528 das Jornadas de Direito Civil, ao comentar os artigos

1.729, parágrafo único, e 1.857 do Código Civil64

considera:

É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também

chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o

tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se

encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

Utilizou-se, por analogia, a regra contida no artigo 1.729, parágrafo único, do Código

Civil, que autoriza aos pais a nomeação de tutor, por meio de testamento, para ficar

responsável civilmente pelos filhos incapazes, com o objetivo de admitir a emissão de um

documento idôneo – não necessariamente um testamento – com a finalidade de viabilizar o

64

Art. 1.729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto. Parágrafo único. A nomeação deve

constar de testamento ou de qualquer outro documento autêntico. Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para

depois de sua morte. § 1o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento. § 2

o São

válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha

limitado.

Page 85: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

83

exercício da autodeterminação da pessoa, quanto aos tratamentos de saúde que deseja sejam-

lhe aplicados no final da vida.

No âmbito dos tribunais pátrios, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu

decisão pioneira sobre o assunto, reconhecendo expressamente ao paciente o direito à

ortotanásia. Na hipótese em questão, um idoso de 79 anos, obteve autorização judicial para

negar-se a ver sua perna amputada como meio hábil de tratamento para livrá-lo da morte. O

Ministério Público estadual recorreu da decisão (Apelação Cível Nº 70054988266 do TJRS),

utilizando o argumento da indisponibilidade do direito à vida. O julgamento, à unanimidade

de votos, foi ementado da seguinte forma:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO.

ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé

esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo

psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo

psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado

não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua

vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se

insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser

a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou

além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º,

caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto

no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável

qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão

pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a

tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera

infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou

intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não

havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser

constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de

eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta

nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº

1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida.

(Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013)

A decisão inovadora teve como fundamento primordial o Princípio da Dignidade

Humana no âmbito da terminalidade, reconhecendo, inclusive, o caráter não absoluto do

direito à vida, positivado no artigo 5º da Constituição Federal, e o direito de recusa a

tratamentos indesejados, nos termos do artigo 15 do Código Civil. O relator ressaltou,

também, a necessidade de discernimento do paciente, no sentido de ter competência clínica

para decidir sobre si, além da prevalência da vontade deste em relação à dos familiares e dos

profissionais de saúde.

Estranhamente, porém, o julgador reconhece o testamento vital como instituto presente

na Resolução 1.995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina, para regulamentar a

Page 86: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

84

atuação médica no âmbito das diretivas antecipadas de vontade. Tal fato, no entanto, não

desmerece o valor do julgamento no enfrentamento das situações existenciais, na seara da

terminalidade da vida. É possível que o início do debate judicial torne mais natural o

enfrentamento da questão, para que, assim, a finitude da vida seja vista de maneira mais

humana.

Page 87: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

85

CONCLUSÃO

Sob a perspectiva do Direito Civil-Constitucional, a terminalidade da vida é uma

matéria ainda pouco debatida no Brasil, mormente com relação ao direito de viver sem o

prolongamento artificial, pois, em que pese às publicações sérias sobre o tema, até aqui não há

consenso quanto ao regramento a ser adotado para as situações existenciais. Isso decorre

principalmente da omissão do legislador ordinário federal, que ainda não se posicionou sobre

o assunto, apesar da existência de alguns projetos de lei com esse fim.

Nesse sentido, a ortotanásia, materializado na medicina paliativa, tem o propósito de

permitir que o processo de morte ocorra naturalmente, com o mínimo de sofrimento possível e

o máximo de conforto prestado ao paciente em estágio terminal, não resultando, portanto, em

ofensa ao direito fundamental à vida. Permitir que a finitude da vida aconteça sem

prolongamentos, de forma suave, nada mais é do que atender ao escopo da ortotanásia, isto é,

do morrer corretamente.

Aliás, o direito fundamental à vida, assegurado pela Constituição Federal de 1988,

deve ser visto no mesmo patamar valorativo dos demais direitos nela previstos. Nesse

aspecto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana garante que ninguém venha a ser

privado do direito à vida, por meio de investidas arbitrárias, sem que, para tanto, àquele

direito seja atribuído caráter absoluto e indisponível. Do mesmo modo, os dispositivos do

Código Civil foram analisados para certificar que é possível extrair do sistema jurídico um

direito à ortotanásia, seja por meio do alcance da disponibilidade moderada dos direitos da

personalidade, seja porque a espera da morte natural não configura ato de disposição. Noutro

giro, a análise do Código Penal teve a finalidade de demonstrar que o tema está longe de ser

considerado como uma atuação delituosa, devendo a normatização da matéria ficar distante da

criminalização, por ser de natureza existencial e humanitária. Ademais, os regramentos

trazidos pelo Código de Ética Médica e pelas Resoluções do Conselho Federal de Medicina

estão restritos ao campo da deontologia profissional, mostrando-se insuficientes para

regulamentar um assunto inerente à natureza humana e à sua existência.

Seja com o testamento vital ou seja por meio do mandato duradouro, a experiência

estrangeira instrumentaliza o direito de viver sem o prolongamento artificial. No Brasil, uma

considerável parte da doutrina65

defende o testamento vital como meio hábil para o exercício

desse direito. No entanto, após esse estudo, percebeu-se que o instituto da representação mista

65

Por todos: (LÔBO, 2013a, pp. 237-240); (DADALTO, 2013, passim).

Page 88: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

86

manifesta-se como alternativa viável e acessível ao sujeito, no exercício dos seus direitos

personalíssimos.

Caio Mário da Silva Pereira (2007, p. 621) esclarece que essa nova espécie de

representação ocorre “quando os poderes vêm da lei, mas a designação do representante vem

dos interessados”, utilizando como exemplo o síndico de um condomínio edilício, detentor de

poderes especificados em lei, porém nomeado pelos demais condôminos. Nas situações de

terminalidade, a representação mista é convencional – para admitir a escolha de quem melhor

representaria o declarante nas situações de incapacidade, e é também legal – para prestar

eficácia aos poderes assumidos pelo representante durante essa incapacidade.

A possibilidade de eleição do representante misto pelo declarante preserva a

autonomia privada deste e afasta a incidência do artigo 1.775 do Código Civil66

. Com isso,

soluciona-se a problemática da parcialidade inerente aos familiares do enfermo terminal, seja

pelo sofrimento da perda de um ente querido, seja por interesse na situação econômica do

paciente, como ocorre na hipótese do rotineiro recebimento de benefícios previdenciários,

proporcionado pelo prolongamento da sobrevida deste. Além disso, a declaração de vontade

do enfermo permanece eficaz, mesmo após o advento da sua incapacidade, pois os poderes do

representante misto são garantidos por lei, conforme se verifica no artigo 1.780 do Código

Civil67

, sem que haja a incidência do artigo 680, inciso II, do mesmo diploma legal68

.

Por outro lado, o testamento e a procuração não constituem instrumentos essenciais

para o ato de nomeação do representante misto, pois a forma é livre, desde que não vedada

por lei, conforme prevê o artigo 104 do Código Civil. Para as situações existenciais como a da

terminalidade, melhor seria que o instrumento utilizado para consignar as disposições dos

últimos dias de vida fosse um formulário, porquanto é o meio mais simples e acessível para o

exercício do direito de viver sem o prolongamento artificial.

Assim, o „Formulário de Consentimento de Saúde‟ conteria a nomeação do

representante misto, bem como o posicionamento do declarante quanto à ortotanásia, à

66

Art. 1.775. O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro,

quando interdito.

§1o Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que

se demonstrar mais apto.

§ 2o Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.

§ 3o Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador. 67

Art. 1.780. A requerimento do enfermo ou portador de deficiência física, ou, na impossibilidade de fazê-lo, de

qualquer das pessoas a que se refere o art. 1.768, dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou alguns de seus

negócios ou bens. 68

Art. 682. Cessa o mandato:II - pela morte ou interdição de uma das partes.

Page 89: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

87

obstinação terapêutica, a medidas heróicas invasivas, à oferta (ou não) de suporte vital, à

doação (ou não) de órgãos e ao local onde deseja passar seus últimos dias, tudo escrito de

forma simples, clara, precisa e com ênfase às situações de negativa de tratamentos invasivos,

possibilitando ao interessado assinalar, de maneira rápida, as suas opções.

Embora o Conselho Federal de Medicina chame essas disposições de „diretivas

antecipadas de vontade‟, é preferível, todavia, o emprego da locução „Desígnio Cautelar para

Viver sem Prolongamento Artificial‟, porque melhor se ajusta ao que o paciente almeja, no

sentido de acautelar-se para que a sua decisão seja respeitada, quando não mais lhe for

possível a autodeterminação.

Tomando por base os regramentos internacionais estudados para este trabalho, o meio

mais eficiente de viabilizar um „Formulário de Consentimento de Saúde‟, contendo o

„Desígnio Cautelar para Viver sem Prolongamento Artificial‟, é a carteira de saúde do

cidadão, como ocorre na lei suíça, porquanto, quer seja ele usuário da rede pública de saúde,

quer da rede particular, terá sempre a posse desse documento para conseguir acesso aos

atendimentos médico-hospitalares.

Além disso, a experiência estrangeira demonstra ser mais adequada a aquisição da

capacidade civil plena para o exercício desse direito, afastando, portanto, a possibilidade dos

maiores de dezesseis anos de dispor sobre tais aspectos da vida, por não terem o

discernimento necessário. Também não é apropriada a estipulação de prazo de validade para a

declaração, podendo, todavia, tais disposições ser afastadas, nas hipóteses legais de nulidade

do negócio jurídico, como a coação, por exemplo, e em caso de verificação de desatualização

da vontade do paciente, devendo ser mantida também a revogabilidade do documento.

Impende registrar, ainda, que, embora sendo possível a escusa de consciência, outro médico,

todavia, deve assumir o tratamento, para viabilizar o respeito à vontade declarada do

indivíduo.

Page 90: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

88

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário Ortográfico da Língua

Portuguesa. Disponível em: <www.academia.org.br/abl>. Acesso em: 09 jan. 2013

ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia, bioética e vidas sucessivas. Sorocaba: Brazilian

Books, 2001.

ALVES, Cristiane Avancini; FERNANDES, Marcia Santana; GOLDIM, José Roberto.

Diretivas antecipadas de vontade: um novo desafio para a relação médico-paciente. Revista

HCPA, v.32, nº 3, pp. 358-362, 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/hcpa/article/view/

33981/22041>. Acesso em: 09 nov. 2013.

ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. Uma perspectiva luso-

brasileira. 10ª ed. Coimbra: Almedina, 1997.

_____. A terminalidade da vida. Revista Bioética e Responsabilidade. Editora Forense, Rio

de Janeiro, 2009, pp. 423-445.

AULETE, Caldas. Dicionário Aulete da Língua Portuguesa. 2013. Disponível em:

<http://aulete.uol.com.br/terminalidade>. Acesso em: 09 jan. 2013.

BARBOZA, Heloísa Helena. A autonomia da vontade e a relação médico-paciente no Brasil.

Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Coimbra, v. 1, n. 2, jul./dez. 2004,

pp. 05-14.

_____. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? Vida, Morte e Dignidade

Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. (31-49).2010.

BARROSO, Luís Roberto e MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é:

dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista do Ministério Público. Rio de

Janeiro, MPRJ, n. 40, abr./jun. 2011, pp. 103-139.

BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico

às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Doutrinas essenciais:

direitos humanos São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. (35-55).2011.

BAYNE, Tim; LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the

Ethics of Amputation. Oxford. 2005. Journal of Aplied Philosophy, v. 22, n. 1, 2005, pp.

Page 91: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

89

75-86. Disponível em: <http://www.philosophy.ox.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0016/1087/

amputees.pdf >. Acesso em: 07 de nov. 2013

BLANCO, Jaime Zabala. Autonomía e Instrucciones Previas: um análisis comparativo de

lãs legislaciones autonômicas del Estado Español. 2007. Tese – Universidad de Cantabria.

Departamento de Fisiología e Farmacología. Cantabria 19.12.2007. Disponível em:

<http://www.tesisenred.net/bitstream/handle/10803/10650/TesisJZB.pdf?sequence=1>.

Acesso em 27 nov 2013.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. 2ª

Ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais em espécie: direito à vida. Curso de

Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, pp. 441-515.2010.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

BUZAGLO, Samuel. Considerações sobre Eutanásia. Revista do Ministério Público, Rio de

Janeiro, Ministério Público, n. 24, pp. 217-245, jul./dez. 2006.

BUZZONETTI, Renato. Vaticano. 2013. Disponível em: <

http://www.vatican.va/gpII/documents/denuncia-morte-jp-ii_20050402_it.html >. Acesso em:

31 out. 2013

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia: comentários à Resolução

1.805/06 CFM - Aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Editora Juruá, 2009.

CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade: disponibilidade relativa,

autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: direitos fundamentais,

políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição e o direito ao corpo humano. Nos limites

da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspective dos direitos humanos.

Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, pp. 279-294, 2007.

CÔRREA NETO, Ylmar. Morte encefálica: cinqüenta anos além do coma profundo. Rev.

Bras. Saúde Mater. Infant. 2010, vol.10, suppl.2, pp. s355-s361. ISSN 1519-3829.

Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1519-38292010000600013> Acesso em: 28 mai.

2012.

Page 92: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

90

DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica:

Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2011.

DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. Nos limites da vida: aborto,

clonagem humana e eutanásia sob a perspective dos direitos humanos. Rio de Janeiro:

Editora Lumen Juris, pp. (295-307), 2007.

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Direito Civil: LICC e Parte Geral. Salvador: Editora Jus

Podivm, 2009.

EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del

Carratore. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

FACHIN, Luiz Edson. Direitos da Personalidade no Código Civil Brasileiro: elementos para

uma análise de índole constitucional da transmissibilidade. Direito Civil: Direito

patrimonial e direito existencial. Estudo em homenagem à professora Giselda Maria

Fernandes Novaes Hironaka. São Paulo: Editora Método, pp. (625-643), 2006.

FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 4ª ed. Rio

de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

FERRAREZE FILHO, Paulo. Direito à Morte (?): verdades possíveis a partir do caso Ramón

Sampedro. Revista da Ajuris: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre,

ano 37, n. 119, pp. 143-159, set 2010.

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 7ª ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara

Koogan S/A, 2004.

_____. Direito Médico. 9ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:

parte geral. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Page 93: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

91

GARDNER, D.et all. International perspective on the diagnosis of death. British Journal of

Anatesthesia. 2012, vol.108, suppl. 1, pp.i 14-28. Disponível em

<http://bja.oxfordjournals.org/> Acesso em: 30 mai. 2012.

GIOSTRI, Hildegard Taggesell. A morte, o morrer, a doação de órgãos e a dignidade da

pessoa humana. Biodireito e Dignidade da Pessoa Humana: diálogo entre a ciência e o

direito. Curitiba: Editora Juruá, pp. 155-170.2007.

GOLDIM, José Roberto. O direito de morrer: bioética, morte e morrer. Revista Consulex.

Brasília, Editora Consulex, n. 322, pp. 28-30, jun. 2010.

GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é

também dono da sua própria morte? Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro, MPRJ,

n. 26, pp. 171-179, jul/dez. 2007.

GOODNOUGH, Abby. Schiavo Dies, Ending Bitter Case Over Feeding Tube. New York

Times. Nova York. 2005. Disponível em:

<http://www.nytimes.com/2005/04/01/national/01schiavo.html?pagewanted=2&_r=0>.

Acesso em: 02 de nov. 2013

HAMBRO, Peter. Future Powers of Attorney. In ATKIN, Bill. The International Survey of

Family Law. pp. 305-319. Wellington: Family Law, 2013.

JOHNSON, Dirk. Kevorkian Sentenced to 10 to 25 Years in Prison. New York Times. Nova

York. 1999. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1999/04/14/us/kevorkian-sentenced-

to-10-to-25-years-in-prison.html>. Acesso em: 18 de mai. 2013.

JOLIE, Angelina. My medical choice. New York Times. Nova York. 2013. Disponível em:

<http://www.nytimes.com/2013/05/14/opinion/my-medical-choice.html?hp&_r=0>. Acesso

em: 29 de mai. 2013

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad.

Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Caret, 2002.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. 9ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,

2008.

LEÃO JÚNIOR, Paulo Silveira Martins e OLIVEIRA, Maurine Morgan Pimentel de. Direito

Fundamental à vida: pilar do Estado Democrático de Direito. Vida, Morte e Dignidade

Humana. pp. 303-330. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 303-330, 2010.

Page 94: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

92

LÔBO, Paulo. A informação como direito fundamental do consumidor. Jus Navigandi,

Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/2216>. Acesso

em: 4 nov. 2013.

_____. Direito Civil: parte geral. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

_____. Direito Civil: obrigações. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

_____. Direito Civil: sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013a.

_____. Autorregramento da vontade - um insight criativo de Pontes de Miranda. Jus

Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3748, 5 out. 2013b. Disponível em:

<http://jus.com.br/artigos/25357>. Acesso em: 04 nov. 2013.

MARINELI, Marcelo Romão. A Declaração de Vontade do Paciente Terminal. As diretivas

antecipadas de vontade à luz da Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Jus

Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3774, 31 out. 2013. Disponível

em: <http://jus.com.br/artigos/25636>. Acesso em: 9 nov. 2013.

MATOS, Gustavo Faissol Janot de e VICTORINO, Josué Almeida. Critérios para diagnóstico

de Sepse, Sepse Grave e Choque Séptico. Revista Brasileira de Terapia Intensiva. 2013,

pp. 102-104. Disponível em:

<http://www.amib.com.br/rbti/download/artigo_2010622183955.pdf> Acesso em 07 out.

2013.

MENDES, Marilene. A agonia do Papa chega ao fim. Diário de Pernambuco. 2005. Caderno

da Capa, p. 2, 03 abr. 2005.

MENEZES, Rachel Aisengart. Um modelo para morrer: uma etapa na construção social

contemporânea da pessoa? Revista de Antropologia Social. Paraná, vol. 3, pp. 103-116,

2003.

_____. Autonomia e decisões ao final da vida: notas sobre o debate internacional

contemporâneo. Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 09-29,

2010.

MEIRELES. Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de

Janeiro: Renovar, 2009.

MORAES, Maria Celina Bodin de. A causa dos contratos. Revista Trimestral de Direito

Civil. Rio de Janeiro: Editora Padma, vol. 21. pp. 95-119, jan/mar. 2005.

Page 95: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

93

_____. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de

Janeiro: Renovar, 2010.

MORALES, Ricardo Royo-Villanova. O direito de morrer sem dor: o problema da

eutanásia. 2ª Ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil Ltda, 1933.

MOREIRA, Luiza Amélia Cabus; OLIVEIRA, Irismar Reis de. Algumas questões éticas no

tratamento de anorexia nervosa. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Rio de Janeiro, v. 57, n. 3,

2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v57n3/01.pdf>. Acesso em: 24 nov.

2013

NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES. Rose Melo Vencelau. Apontamentos sobre o

direito de testar. Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 83-99,

2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª Ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2009.

PAULO II, João. O testamento de João Paulo II. Roma. 01 mar. 1980. Disponível em: <

http://www.vatican.va/gpII/documents/testamento-jp-ii_20050407_po.html>. Acesso em: 31

out. 2013.

_____. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração sobre a Eutanásia. Roma. 5

mai. 1980. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/

documents/rc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_po.html>. Acesso em: 31 out. 2013.

_____. Encíclica Evangelium Vitae. Roma. 25 mar. 1995. Disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-

ii_enc_25031995_evangelium-vitae_po.html>. Acesso em: 17 mar. 2013.

PELUSO, Cezar. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 6ª Ed. rev. e atual.

Barueri: Manole, 2012.

PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. Vol. III. 12ª Ed.

rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.

PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. 6ª Ed. Porto: Editorial

apostolado da imprensa, 1984.

PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Relação Médico-Paciente: o respeito à

autonomia do paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio

de Janeiro: Lumens Juris, 2011.

Page 96: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

94

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional.

2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

PESSINI, Leocir. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Centro

Universitário São Camilo: Loyola, 2001.

PESSOA, Laura Scalldaferri. Pensar o final e a honrar a vida: direito à morte digna. São

Paulo: Saraiva, 2013.

PETERKOVA, Helena. Rationing – A marginal argument in the end-of-life debate? Revista

Fórum de Direito Civil – RFDC. Belo Horizonte: Editora Fórum, ano II, n. 2, pp. 175-188,

jan/abr 2012.

RACHELS, James. Active and Passive Euthanasia. The New England Journal of Medicine.

2013. Vol. 292, p. 78-80. Disponível em:

<http://people.brandeis.edu/~teuber/Rachels_Euthanasia.pdf> Acesso em: 28/03/2013.

RIBEIRO, Diaulas Costa. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad.

Saúde Pública. Rio de Janeiro. Ago. 2006. v. 22, n. 8, Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

311X2006000800024&lng=en&nrm=iso> .Acesso em: 03 Nov. 2013.

RODOTÀ, Stefano. Autodeterminação e laicidade. Trad. Carlos Nelson Konder. Perché

laico. Bari: Laterza, 2010.

RÖHE, Anderson. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 2004.

ROSKAM, Jacques. Survie Purement Végétative dans La cérébrosclérose. Euthanasie,

Dysthanasie, Orthothanasie. Revue Médicale de Liège. Liège: Faculdade de Medicina de

Liège vol. V. nº 20. pp. 709 - 713, ISSN : 0370-629X, 15 out. 1950.

ROZOWYKWIAT, Tereza. Termina a luta de Covas. Diário de Pernambuco. 2001. Caderno

Brasil, p. A4, 07 mar 2001.

RUZYK, Carlos Eduardo Pianoviski. Institutos fundamentais do direito civil e

liberdade(s): Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da

família. Rio de Janeiro: GZ editora, 2011.

SÁ, Maria de Fátima Freire de. O direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2ª Ed.

Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

Page 97: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

95

SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo de Luna. Direito de Morrer: a realização

da pessoalidade e a efetivação do direito de viver. In Leituras Complementares de Direito

Civil: direito das famílias. Salvador: Editora Jus Podivm, pp. 357-369, 2010.

_____._____. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e diretivas

antecipadas de vontade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

SANTORO, Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba:

Juruá Editora, 2010.

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de Órgãos e eutanásia: liberdade e

responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Editora Atlas, 2011.

SCHWENZER, Ingeborg; KELLER, Tomie. A new law for the protection of adults. In

ATKIN, Bill. The International Survey of Family Law. pp. 375-386. Wellington: Family

Law, 2013.

SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: L&PM, 2011.

SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido.

São Paulo: Cultural Paulista. Universidade Cidade de São Paulo, 2002.

TEIXEIRA. Ana Carolina Brochado. Saúde, Corpo e Autonomia Privada. Rio de Janeiro:

Renovar, 2010.

TEIXEIRA. Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Testamento e

Autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. Vida, Morte e

Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 57-82. 2010.

TELLES, Marília Campos Oliveira e COLTRO, Antônio Carlos Mathias. A morte digna sob a

ótica judicial. Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 277-302.

2010.

TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento Civil-constitucional

Brasileiro. In Temas de Direito Civil. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

Page 98: MARIA CARLA MOUTINHO NERY O DIREITO DE VIVER SEM ... · A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível

96

TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Minorias no direito civil brasileiro. Revista

Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Editora Padma, v. 10, pp. 135-155, abr/jun

2002.

_____._____. O extremo da vida. Eutanásia, accanimento terapêutico e dignidade humana.

Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Padma, vol. 39, pp. 3-17, jul/set

2009.

VANRELL, Jorge Paulete. Manual de medicina legal (tanatologia). 3ª ed. Leme: Mizuno,

2007.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1968.

World Health Organization (WHO). National Cancer Control Programmes: Core

Capacity Self-Assessment Tool. NCC core self-assessment tool, 2011. 2011, ISSN 978 92

4 150238 2. Disponível em: <http://www.who.int/cancer/publications/nccp_tool2011/en/>

Acesso em: 10 set. 2012.

_____. Human rights. s.d. Disponível em: <http://www.who.int/topics/human_rights/en/>.

Acesso em: 12 out. 2013.

ZIMERMAN, David. A dignidade diante da morte, sob a ótica de um psicanalista. Vida,

Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 125-136, 2010.