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Uma história de Margarida Fonseca Santos Ilustrada por Sandra Serra

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Uma história de Margarida Fonseca Santos Ilustrada por Sandra Serra

— Todos compreendem a gravidade da situação?

— perguntou a professora, enquanto olhava, um a um,

para os seus alunos. — Vamos então perceber como

podemos resolver e prevenir este problema.

Tudo começara numa tarde demasiado quente de

abril. A aula de Educação Física, o momento preferido do

Luís, começara logo com corrida em volta do recreio. As

gotas de suor escorriam-lhe pela cara, mas ele mantinha-

-se dentro do seu fato de treino azul-escuro, o mesmo que

usara para as aulas no inverno.

A professora Susana sugerira a todos que se desemba-

raçassem da roupa em excesso, mas o Luís fora o único a

ignorar esta frase. E, durante alguns minutos, a professora

não insistiu. Contudo, quando a franja morena se colou à

testa do rapaz, Susana já não podia deixar de estranhar.

Segurando-o com ternura pelo braço, para poder ajudá-lo

a despir a parte de cima do fato de treino, viu-se perante

uma expressão de dor e de medo. As mãos do Luís segu-

ravam as mangas para baixo, e a professora tinha a certeza

de que o simples facto de lhe segurar no braço causava dor

ao rapaz.

Os outros miúdos continuavam um novo jogo sem

reparar nesta cena paralela que se desenrolava junto da

árvore. O Xavier gritava ordens feito tonto, e os colegas

corriam a cumpri-las. A Teresinha fazia muitas perguntas,

como sempre, e permitia assim ao Francisco recuperar

nessas pausas o fôlego que o peso a mais lhe tirava.

Consciente do que podia encontrar, a professora

Susana levantou com cuidado a camisola azul-escura

e cerrou os dentes em silêncio — uma marca, também

ela azul-escura, preenchia o antebraço do Luís, e podia

adivinhar-se o que escondia a outra manga, as calças e

a camisola.

Luís sentiu o coração a bater tão forte que uma

ligeira tontura o fez vacilar. O pavor estava alojado

no seu olhar. Susana pensou: onde estava o Luís que

conhecia tão bem? Não o reconhecia, parecia agora um

miúdo frágil, em pânico.

— Senta-te à sombra, Luís. Vamos inventar uma

mentira daquelas que se podem dizer, só por agora…

Estás… estás maldisposto, compreendido?

O Luís acenou que sim e sentou-se com alguma difi-

culdade no banco ao pé da árvore. Os olhos seguiam a

professora, que regressava para junto dos outros como

se nada tivesse acontecido. Pela primeira vez, naquela

semana, sentiu-se acompanhado…

A campainha tocara já para o intervalo da manhã, e o

4º C correu a lavar cara e mãos antes de agarrar no lanche

trazido de casa. Os pacotes de leite esperavam alinhados

perto do refeitório. Susana pegou num deles e dirigiu-se

para o banco perto da árvore. Sabia que o Luís estaria ali

à sua espera. Teve ainda tempo para segredar, sem que

o rapaz percebesse, à sua amiga e professora da turma,

Isabel, que o Luís talvez não voltasse depois do intervalo.

Conhecendo Susana há muito tempo, Isabel percebeu, de

imediato, que um assunto maior que a Matemática ou a

Língua Portuguesa se havia atravessado na vida do Luís.

Susana sentou-se ao lado dele, entregando-lhe o leite.

— Queres que te vá buscar mais alguma coisa?

— Não tenho fome, obrigada — respondeu o rapaz, de

olhos postos no chão.

— Quero contar-te uma coisa — começou Susana, pas-

sando-lhe um braço sobre os ombros. — Posso?

O Luís acenou que sim, enquanto o pacote de leite

permanecia fechado e esquecido nas suas mãos. E a pro-

fessora contou.

— Quando eu era pequena, para poder ir à escola, pas-

sava a semana em casa de uns tios que moravam na cidade.

Foi assim que os meus pais resolveram o problema de não

haver escola na minha aldeia. A minha tia era uma mulher

muito calada, triste. Mãe de dois gémeos da minha idade

punha-nos, aos três, à frente de tudo. Nada para ela era mais

importante que nós, vivia para nós…

Luís não comentava. Mantinha-se a observar o chão, en-

quanto sentia aquele abraço protetor que o acalmava.

— O meu tio… bom, o meu tio era um homem bruto, que

bebia muito e perdia muitas vezes a noção do que fazia. Se

algum de nós se portava mal, logo o cinto saía do seu sítio e

vinha aterrar nas nossas costas, pernas, onde calhasse. Só

parava quando a minha tia se metia entre nós e o cinto. Nós

fugíamos, como podes calcular, mas tenho a certeza de que

a minha tia nunca fugiu. O corpo dela estava muitas vezes

negro, mas nunca a ouvi dizer um ai…

Uma lágrima traiçoeira escapou-se pela cara abaixo, e o

Luís limpou-a com a manga.

— Quando finalmente tive coragem de contar aos meus

pais, estalou uma grande confusão. O meu tio negou tudo,

mas não pôde fazer nada quando a polícia apareceu e ajudou

a minha tia e os filhos a mudarem-se para nossa casa.

Interrompemos a escola, mas o meu pai dizia que isso se

remediava, o resto é que não.

— E ele?