mare de verao - charles sheffield.pdf

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  • 2osebodigital.blogspot.com

    MAR DE VERO

    Faltava pouco tempo para a Mar de Vero, o momento em que os planetas gmeos Opala e Tremorestariam mais prximos do seu sol, o que submeteria ambos Tremor, em particular agigantescas mars.

    E aquela seria a mais violenta Mar de Vero da histria, graas Grande Conjugao de estrelas eplanetas do sistema, algo que acontecia apenas uma vez a cada 350.000 anos.

    As visitas a Tremor naquela poca do ano eram proibidas, mas algumas pessoas muito insistentesestavam decididas a fazer a viagem. A professora Darya Lang, que dedicara a vida a estudar osartefatos deixados por aliengenas h muito desaparecidos, conhecidos como Construtores, tinha opalpite que durante a Mar de Vero poderia encontrar a pedra fundamental de sua pesquisa; LoisNenda e a cecropiana Atvar Hsial tinham seus prprios interesses em Tremor e estavam dispostos atudo para chegar l; e o conselheiro Julius Graves estava na pista de duas assassinas. Se elasestivessem escondidas em Tremor, no precisaria da autorizao de ningum para ir at l prend-las.

    A Hans Rebka e Max Perry, funcionrios do governo local, no restava opo a no ser viajaremtambm para Tremor, arriscando a prpria vida para proteger a dos visitantes... e descobrir, talvez, osegredo dos Construtores e da Mar de Vero...

    Um dos mais importantes escritores de fico cientfica da atuali-dade, Charles Sheffield cientista-chefe da Earth Satellite Corporation.

    Nascido e educado na Inglaterra, tem os graus de bacharel e mestre em matemtica e doutorado emfsica terica.

  • 4Charles Sheffield

    MAR DE VERO

    Traduo de

    Ronaldo Sergio de Biasi

    Editora Record

  • 6Prlogo

    Ano 1086 da Expanso (3170 d.C.)

    Um silncio de noventa e sete anos estava terminando.

    Durante quase um sculo, o interior da nave no ouvira nenhuma voz de humanos nem sentiraqualquer pegada humana. O veculo seguira seu caminho por entre as estrelas, enquanto ospassageiros hibernavam, sem sonhos, prximo ao zero absoluto. Uma vez por ano, seus corpos eramaquecidos at a temperatura do nitrognio lquido, enquanto as mesmas experincias eramimplantadas em todos os crebros a partir do banco de dados central da nave: memrias de cem anosde viagem interestelar, para corpos que envelheceriam menos de um dia.

    Nas semanas finais de desacelerao, chegou a hora de iniciar o processo de despert-los. Quandochegassem ao destino, talvez fosse necessrio tomar decises que estivessem alm da capacidadedas mquinas de bordo... uma idia que o computador principal da nave, o primeiro do seu tipo a serequipado com os circuitos emocionais de Karlan, considerava ao mesmo tempo ridcula e insultuosa.

    Primeiro, os corpos foram aquecidos. Sensores internos captaram o rudo tranquilizador doscoraes que voltavam a bater, os suspiros e murmrios dos pulmes que voltavam a funcionar. Aequipe de emergn-7

    cia seria acordada primeiro, de dois em dois, na ordem inversa daquela em que haviam entrado emhibernao; s com a aprovao deles os outros seriam despertados.

    A primeira dupla recuperou a conscincia com uma nica pergunta no crebro: tinham chegado aodestino... ou algo inesperado ocorrera?

    O computador havia sido programado para acord-los apenas em trs circunstncias. Seriamchamados se a nave estivesse se aproximando do objetivo, Lacoste-32B, uma estrela an da classeG-2, situada a trs anos-luz de distncia do farol estelar rosado que era Aldebar. Seu sono seriainterrompido se ocorresse algum desastre no interior da gigantesca nave elipsoidal de meioquilmetro de comprimento, um problema srio demais para que o computador pudesse resolv-losem interveno humana.A ltima possibilidade era de que um dos sonhos mais antigos dosastronautas se tornasse realidade:

    T/l Transferncia Imediata; Transio Interestelar; Transporte Instantneo; o sistema depropulso superluminal que revolucionaria a explorao do espao.

    Havia mais de mil anos que as naves de explorao e colonizao vagavam pelo espao,ampliando a esfera de influncia da Terra. O mil-

    nio resultara em quarenta colnias, distribudas em um globo com centro no Sol e setenta anos-luz de dimetro. Entretanto, cada centmetro daquela esfera tinha sido percorrido a menos de um

  • quinto da velocidade da luz. E todas as colnias, mesmo as menores e mais isoladas, possuam umprograma de pesquisa que buscava a propulso superluminal...

    As primeiras duas pessoas a serem acordadas foram um homem e uma mulher. Eles lutaram contra alassido de um sculo, examinaram os relatrios do computador sobre o estado da nave ecompartilharam o alvio que sentiram. No ocorrera nenhum desastre. No havia qualquer mensagemde emergncia, nenhuma notcia de um invento revolucionrio. No haveria um grupo de viajantessuperluminais para esper-los quando chegassem a Lacoste.

    frente da nave, o disco da estrela-alvo j era visvel a olho nu.

    A existncia de pelo menos dois grandes planetas havia sido deduzida muito tempo atrs, a partir demedidas da perturbao gravitacional da estrela. Agora, a existncia desses planetas podia serconfirmada por observao direta, juntamente com cinco planetas menores e mais prximos daestrela.

    A mulher estava se recuperando com maior rapidez que o homem.

  • 8Foi ela que deixou primeiro a unidade de hibernao Schindler, ps-se de p com dificuldade nocampo de um dcimo de g e foi examinar os monitores. Deixou escapar um som grave, um grunhidode satisfao emitido por cordas vocais que fazia muito no eram usadas, seguido por um pigarro.Conseguimos! L est ela.

    E estava mesmo. O disco dourado de Lacoste ocupava o centro do monitor. Dois minutos depois, ohomem estava ao seu lado, ainda lim-pando do rosto os restos de gelia protetora. Ele tocou o braoda companheira, em um gesto de congratulaes, alvio e amor. Os dois eram companheirospermanentes.

    Hora de acordar os outros.

    Daqui a alguns minutos disse a mulher. Lembre-se de Kapteyn. Primeiro vamos ver se valea pena.

    O exemplo da estrela de Kapteyn estava na memria de todos os exploradores: oito planetas, todosaparentemente com um potencial maravilhoso; todos, quando examinados mais de perto, totalmenteinabit-

    veis. A primeira nave de colonizao a visitar o sistema no tivera recursos suficientes para alcanarnenhum dos alvos secundrios.

    Estamos a apenas dois dias-luz de distncia prosseguiu a mulher. Podemos iniciar ainvestigao. Vamos procurar atmosferas com oxignio antes de acordar mais algum.

    O computador de bordo recebeu o comando e respondeu quase imediatamente. Um planeta comoxignio, disse, com sua voz suave. A probabilidade de vida de 0,92. A imagem no monitor foiampliada e deslocada, de modo que Lacoste cresceu rapidamente a princpio e depois desapareceuna parte superior da tela, enquanto um novo ponto luminoso aparecia no centro da tela e aumentavaat preench-la quase totalmente.

    o quarto planeta, disse o computador. Figura de mrito global para isomorfismo com a Terra,0,86. Distncia mdia, 1,22; faixa de temperaturas mdias, de 0,89 a 1,04; inclinao do eixo.. .

    Que diabo isso?

    O computador interrompeu o que estava dizendo. A pergunta do homem era incompreensvel.

    No centro da tela estava um planeta, uma esfera azul-acinzentada vista com ampliao suficiente paramostrar as largas faixas e vrtices as-sociados aos padres de circulao atmosfrica. Entretanto,tambm era visvel uma rede de linhas finas e espirais luminosas que envolvia todo o 9

    planeta.

  • Algum chegou aqui na nossa frente... A mulher no terminou a frase. Os planetas habitadosestavam em constante comunicao. A velocidade dos sinais era limitada velocidade da luz, masmesmo assim ela no podia acreditar que uma nave de explorao pudesse ser enviada a Lacoste semque eles tomassem conhecimento. E se outra nave tivesse mesmo chegado ali, a escala do queestavam vendo ia alm do que qualquer expedio colonizadora poderia fazer em alguns anos.

    Ou mesmo em alguns sculos.

    Vista panormica.

    O computador ouviu as palavras da mulher e ajustou a imagem. O

    planeta diminuiu para o tamanho de uma ervilha, tornando-se um pequeno ponto luminoso no centroda tela. As estruturas espaciais que o cercavam foram reveladas em toda a sua majestade, umemaranhado de fios nacarados no qual o planeta se aninhava como uma prola em uma ostra.

    Frgeis tentculos artificiais se estendiam em todas as direes, cada vez mais finos, at atingirem olimite de resoluo dos sensores da nave.

    No so gente como ns, Tamara murmurou o homem.

    No so da nossa espcie.

    Nenhuma obra humana, nem as cidades em forma de anel que cercavam a Terra, sequer seaproximava daquilo em tamanho e complexida-de. Alguns dos filamentos que envolviam o planetadeviam ter mais de quatrocentos mil quilmetros de comprimento e vrios quilmetros de dimetro.Deveriam ter sido feitos em pedaos pelas foras gravitacionais do planeta, pelas suas prpriasinteraes. No entanto, estavam ali, intactos.

    Hora de acordar os outros disse Tamara.

    E depois?

    Depois... ela suspirou ...depois, no sei o que vamos fazer.

    Aconteceu, afinal, Damon. Encontramos outra espcie inteligente. E tec-nologicamente muitoavanada. Mas se eles puderam construir aquilo

    apontou para a fantstica estrutura mostrada na tela, e sua voz se tornou rouca , por que no forameles que nos encontraram e no ns a eles?

    Bem, acho que saberemos a resposta daqui a alguns dias.

    Trs semanas depois, os mdulos de desembarque estavam se aproximando das veias e artrias doartefato espacial. Durante quinze dias, a nave-me se mantivera a cinco milhes de quilmetros dedistncia, esperando que os habitantes do planeta respondessem de alguma 10

  • forma aos sinais de rdio e de laser. Entretanto, o silncio havia sido total.

    Por fim, decidiram aproximar-se e comear a explorao direta.

    Vistos de perto, os filamentos nebulosos se transformaram em estruturas slidas que se ligavam paraformar uma rede de propores colossais. Eles se estendiam at a superfcie do planeta, um mundodesabitado aparentemente propcio colonizao humana, mas os tentculos tambm se prolongavamat as profundezas do espao, com objetivos que seria impossvel adivinhar.

    E no podiam contar com quem construra tudo aquilo para explicar esses objetivos; assim como oplaneta, o artefato tambm era desabitado.Tamara e Damon Savalle fizeram o seu mdulo se moverparalelamente a um dos filamentos, um tubo de polmero e metal de trs quil-

    metros de dimetro e cinquenta mil de comprimento. Mquinas de ma-nuteno se deslocavam aolongo da superfcie interna, movendo-se to lentamente que seu movimento era quase imperceptvel.As mquinas ignoraram totalmente o pequeno mdulo.

    Tamara estava no painel de comunicaes, em contato com a nave

    -me. O computador confirma: nossas anlises baseadas nos danos causados por meteorosestavam corretas disse ela. A estrutura tem pelo menos dez milhes de anos e est desabitadah mais de trs mi-lhes de anos. E no vejo nenhum motivo para voc estar sorrindo.

    Sinto muito disse Damon, com ar de quem no estava sendo sincero. Eu pensava no velhoparadoxo de antes da Expanso. Se os aliengenas existem, onde esto! Vinte dias atrs, achvamosque sabamos a resposta: os aliengenas no existem. Agora, temos que repetir a pergunta. Onde elesesto, Tammy? Quem ter construdo tudo isto? E

    onde est quem construiu?

    A moa deu de ombros. A pergunta de Damon continuaria sem resposta por mais de trs mil anos.

    Enquanto eles olhavam maravilhados, uma fraca transmisso estava chegando nave-me, vinda deuma colnia pequena mas combativa em Eta de Cassiopeia A. A mensagem falava de uma teoriafsica nova e curiosa, baseada na estatstica de Bose-Einstein, e tambm de uma experincia sutil ecomplexa, que s poderia ser realizada no espao e estava muito alm dos recursos limitados dapequena colnia.

    Como a ateno de todos em Lacoste se achava voltada para os Construtores, a mensagem foitotalmente ignorada.

  • 11Entretanto, os Construtores j no existiam havia muito tempo, e as viagens superluminais estavampara se tornar uma realidade.

  • 12

    ARTEFATO: CASULO

    N0 de srie: 1

    Coordenadas galcticas: 26.223,489/14.599,029/+ 112,58

    Nome: Casulo

    Conjunto estrela/planeta: Lacoste/Savalle N de Bose mais prximo: 99

    Idade estimada: 10,464 0,41 megaanos Histria da explorao: O Casulo ocupa um lugar especialna histria da humanidade, como primeiro artefato a ser descoberto por exploradores humanos, assimcomo Cspide (N. 300) foi o primeiro a ser descoberto pelos cecropianos. O Casulo foi descobertoem 1086 E. por uma nave colonizadora que estava procura de planetas habitveis no sistema deLacoste.

    Descrio: A forma do Casulo uma extenso para trs dimenses das cidades em forma de anelencontradas nas vizinhanas de muitos mundos habitados. Entretanto, vai bem alm das montagensusuais no plano equatorial, tanto em extenso quanto, presumivelmente, em funcionamento. O artefatoutiliza quarenta e oito Pilares Principais, que ligam o Casulo superfcie do planeta ao longo doequador e sustentam um anel circular a uma altitude constante. Quatrocentos e trinta e dois milfilamentos exteriores se estendem a quinhentos mil quilmetros do planeta. No existem doisfilamentos iguais, mas os tubos cilndricos ocos tm um raio exterior de dois a quatro quilmetros.Vista de vrios pontos, a superfcie de Savalle apresenta-se totalmente oculta pelo Casulo. Oscorredores do interior do Casulo so patrulhados por fagos (N0 1.067). Os exploradores devem estarconscientes deste perigo.

    Estrutura: O Casulo feito dos mesmos polmeros de alta resistncia usados na maioria dosartefatos dos Construtores. A ausncia de um segundo satlite natural de Savalle, embora os dadosarqueolgicos indiquem claramente que ocorreram mars causadas por dois satlites at dozemilhes de anos atrs, uma indicao de que a lua hoje desaparecida foi a fonte principal dematrias-primas para a construo do Casulo.

    Os filamentos do Casulo so mantidos em posio estvel pelo equilbrio entre a fora gravitacional,a fora centrfuga e a presso de radiao.

    No necessrio imaginar nenhum mecanismo desconhecido para explicar essa estabilidade, mas oprojeto do sistema exige a soluo de problemas de otimizao que esto alm da capacidade dosmelhores computadores conhecidos nos dias de hoje. O problema foi submetido ao Elefante (NP859), que chegou a uma soluo parcial (o chamado Problema Restrito do Casulo) em quatro anos-padro de computao.

  • 13Finalidade: O Casulo tem poucos segredos; um deles a necessidade de um sistema to grande. OsPilares Principais permitem transportar materiais da superfcie do planeta para o espao e vice-versaa um custo insignificante; com o auxlio dos Filamentos Exteriores, possvel transferir uma cargapara qualquer ponto do sistema estelar de Lacoste, usando o princpio da transferncia de momento.A capacidade do Casulo gigantesca: em princpio, seria possvel transferir anualmente umcinquenta mil avos da massa de Savalle para o espao, o suficiente para reduzir apreciavelmente avelocidade de rota-

    o e alterar em dois segundos a durao do dia de Savalle.,

    Do Catlogo Lang Universal de Artefatos Quarta Edio.

  • 14Captulo 1

    Ano 4135 da Expanso (6219 d.C.)

    ONDE ESTOU?

    Um homem que conhecia cinquenta planetas e tivera uma centena de empregos difceis, saindo-sebem em todos, devia ser como um gato, girando instintivamente o corpo para aterrissar de p emqualquer situao. Recentemente, porm, ele se sentia exatamente o oposto, mais desorientado a cadanova tarefa.

    Hans Rebka acordou e ficou de olhos fechados, esperando que a memria do lugar e do que tinha afazer tomasse conta do seu crebro.

    Quando isso aconteceu, a confuso foi substituda pela irritao.

    Uma semana antes, estivera em rbita em torno do Paradoxo, preparando-se para uma das missesmais delicadas de sua vida. Ele e trs companheiros tinham que entrar na esfera do Paradoxo,levando com eles um novo tipo de blindagem e um modelo totalmente novo de sensor.

    Se fossem bem-sucedidos, conseguiriam pela primeira vez extrair informaes do interior doParadoxo. Talvez descobrissem at mesmo alguma coisa sobre os Construtores.

    Para Rebka, o Paradoxo constitua-se na mais enigmtica de todas as estruturas dos Construtores. Erafcil entrar na escura esfera de cin-15

    quenta quilmetros de dimetro, mas impossvel sair dela sem que todas as memrias, orgnicas einorgnicas, fossem apagadas. Os computadores emergiam com todos os registros zerados. Oshumanos que haviam entrado na estrutura tinham voltado com as mentes de recm-nascidos.

    Depois de algum tempo, as tentativas de explorao haviam sido abandonadas. Ultimamente, porm,aqueles que visitavam a regio do Paradoxo tinham observado algumas alteraes. A aparnciaexterna da esfera havia mudado; talvez o mesmo tivesse ocorrido com o estado interno. Valia a penatentar mais uma vez.

    Era uma misso perigosa, mas Hans Rebka estava ansioso para co-mear. Tinha se apresentado comovoluntrio e fora escolhido para chefe da misso.

    Foi ento que chegou a mensagem, um dia antes da data marcada para entrarem no Paradoxo.

    O senhor foi designado para uma outra misso... A voz era fina e sibilante, reduzida em seuespectro de frequncias pela passagem atravs do sistema de comunicaes de Bose. ...no sistemade dois planetas de Dobelle. Deve partir sem demora...

  • A voz artificialmente aguda no tinha nada de autoritria, mas o comando partia do mais alto nvel degoverno do Crculo de Phemus. E

    era uma misso apenas para Rebka; os companheiros partiriam no dia seguinte para explorar oParadoxo. A princpio, soou como uma honra, um privilgio, que ele tivesse sido o nico escolhidopara a nova misso.

    Entretanto, quando lhe explicaram o que teria que fazer, Rebka sentiu-se confuso.

    Ele conhecia os prprios talentos. Era um homem prtico, acostumado a fazer e consertar coisas;nisso, era muito bom. Sabia pensar com os ps no cho e improvisar solues para problemasdifceis em tempo real; era um produto tpico do seu planeta natal, Teufel.

    Que pecados deve um homem cometer, em quantas vidas passa-das, para nascer em Teufel?Metade do brao da espiral conhecia aquele ditado. Como todos os planetas do Crculo de Phemus,Teufel era muito pobre de recursos naturais. Habitado em ltima instncia quando os sistemas vitaisde uma velha nave de colonizao comearam a falhar, era tambm um planeta maldito,excessivamente quente, pequeno demais, com uma atmosfera quase irrespirvel. A expectativa devida dos humanos que chegavam maturidade em Teufel a maioria no chegava

    era de menos da metade da mdia do Crculo de Phemus e inferior a um tero da dos habitantes dequalquer mundo da Quarta Aliana. As pesso-16

    as nascidas e criadas em Teufel desenvolviam um forte instinto de auto-preservao antes mesmo decomearem a falar... ou no viviam tempo suficiente para aprenderem a falar.

    Rebka era um homem franzino, cabeudo, com mos e ps grandes demais para o corpo. Tinha aaparncia abatida, ligeiramente deforma-da, de algum que sofrera de desnutrio e falta devitaminas durante a infncia. Entretanto, as privaes no haviam afetado a capacidade do seucrebro. Aprendera cedo a compreender a realidade da vida, pois tinha oito anos quando vira pelaprimeira vez um vdeo sobre os mundos abastados da Aliana que faziam fronteira com o Crculo dePhemus. As imagens o deixaram furioso. Ento aprendeu a usar a raiva que sentia, a canaliz-la econtrol-la para que se tornasse a fora propulsora do seu progresso, ao mesmo tempo que aprendiaa esconder os sentimentos atrs de um sorriso. Aos doze anos, j conseguira sair de Teufel e estavaem um programa de treinamento do governo do Crculo de Phemus.

    Rebka se orgulhava do seu passado. Comeando praticamente do nada, progredira continuamentedurante vinte e cinco anos. Dirigira grandes projetos de terraformao, tomando os corpos celestesmais ridos e pouco hospitaleiros e transformando-os em verdadeiros parasos (um dia faria amesma coisa com Teufel); comandara perigosas expedies ao corao da regio de cometas deantimatria, longe de qualquer possibilidade de socorro se alguma coisa desse errado; voara toperto da superfcie de uma estrela que as radiaes haviam tornado a comunicao impossvel e anave voltara da misso totalmente imprestvel. E comandara um grupo de explorao em uma visitaquase legendria ao Zirkelloch, a singularidade toroidal do espao-tempo que ficava na terra-de-ningum entre os mundos da Quarta Aliana e os da Federao de Cecrpia.

  • Tudo isso. E de repente... quando pensou no assunto, a confuso foi substituda pela raiva; a raivaainda era sua aliada ...de repente, havia sido rebaixado. Tinham-lhe retirado, sem nenhumaexplicao, todas as responsabilidades e fora enviado a um mundo distante, sem importncia, paraservir de bab ou confessor de algum dez anos mais moo.

    Afinal, quem esse Max Perry? Por que ele importante?

    Rebka fizera essa pergunta durante a primeira entrevista, assim que o sistema duplo de Dobelle setornou mais do que um nome para ele. Porque Dobelle era um lugar insignificante. Os dois planetas,Opala e Tremor, que giravam em torno de uma estrela de segunda classe, longe dos grandes centrosdaquele brao da espiral, eram quase to pobres quanto Teufel.

  • 17Escaldante, Desolado, Teufel, Estige, Caldeiro... s vezes Rebka tinha a impresso de que apobreza era a nica coisa em comum entre eles, a nica coisa que os mantinha unidos entre si eseparados dos vizinhos mais ricos. E, de acordo com os registros, Dobelle merecia pertencer aogrupo.Os dados a respeito de Perry tambm lhe foram transmitidos, para que pudesse examin-loscom calma. Como era tpico do seu tempera-mento, Hans Rebka tratou de estud-los sem perda detempo. No faziam muito sentido. Max Perry tivera uma infncia to pobre quanto Rebka. Era umrefugiado de Escaldante, e, como Rebka, subira rapidamente na vida.

    Aparentemente, estava destinado a um alto posto no governo do Crculo.

    Como parte do processo de formao dos futuros lderes, tinha sido destacado para passar um anoservindo em Dobelle.

    Sete anos depois, ainda no havia voltado. Quando lhe ofereceram promoes, recusara. Quandotentaram pression-lo para sair do sistema de Dobelle, ignorara as presses.

    Ele representa para ns um grande investimento murmurou a voz distante. Ns o treinamosdurante muitos anos. Queremos que ele nos pague pelo investimento... como o senhor nos pagou.Descubra a causa dos seus problemas. Convena-o a voltar, ou pelo menos a nos dizer por que serecusa a faz-lo. Ele ignorou uma ordem direta. Opala e Tremor precisam desesperadamente de mo-de-obra qualificada, e a lei de Dobelle no permite a extradio.

    Ele no vai me dizer nada. Por que o faria?

    O senhor est indo para Dobelle como supervisor de Perry. Conseguimos que fosse criada umanova posio na oligarquia, um nvel acima da dele. O senhor ir ocupar essa posio. Tambmachamos que um simples interrogatrio no far Perry revelar seus motivos. Isso j foi tentado. Useas suas qualidades. Use a sua sutileza. Use a sua iniciativa. A voz fez uma pausa. Use a suaraiva.

    No estou com raiva de Perry.

    Rebka fez outras perguntas, mas as respostas no o ajudaram em nada. A misso inteira no pareciafazer sentido. O comit central do Crculo de Phemus podia desperdiar seus recursos, se assimquisesse, mas era um erro primrio desperdiar os talentos de Rebka ele no era um adepto dafalsa modstia em um caso que parecia mais apropriado para um psiquiatra. Ou ser que elestambm j tinham tentado usar um, sem sucesso?

    Hans Rebka colocou as pernas para fora da cama e foi at a janela.

  • 18Olhou para cima. Depois de uma viagem de trs dias, passando por cinco ns da Rede Bose, e de umtrecho final em velocidade subluminal, havia finalmente pousado no hemisfrio estrelado de Opala.Mas falar de hemisfrio estrelado era apenas uma piada de mau gosto; embora fosse noite, no haviauma s estrela no cu. Naquela poca do ano, perto da Mar de Vero, era raro aparecer uma brechanas nuvens que envolviam o planeta. Ao se aproximar de Opala, no vira nada a no ser um globouniformemente branco. O mundo inteiro era coberto pela gua, e quando Dobelle atingia o mximo deaproximao de sua estrela companheira, Mandel, as Mars de Vero chegavam ao auge e osoceanos de Opala nunca viam a luz do sol. A segurana estava apenas nas Fundas, jangadas naturaisde terra e vegetao que vagavam na superfcie de Opala, ao sabor dos ventos e das mars.

    As maiores Fundas tinham centenas de quilmetros de largura. O

    espaoporto estava localizado em uma delas. Mesmo assim, Rebka imaginou o que aconteceria comele durante a Mar de Vero. Para onde iria?

    Conseguiria resistir fora das guas?

    Se Teufel, seu mundo natal, tinha sido Fogo, Opala sem dvida era gua. E Tremor, o outro planetado sistema de Dobelle?

    O Inferno, pelo que sabia. Em tudo que Rebka lera ou ouvira a respeito de Tremor, no havia umanica palavra favorvel. O que acontecia em Opala durante a Mar de Vero podia ser assombroso,assustador...

    mas havia maneiras de sobreviver. Em Tremor, isso era impossvel.

    Olhou de novo para o cu e ficou sobressaltado ao perceber que j era dia claro. Opala e Tremorestavam em ressonncia gravitacional e giravam em torno do centro de massa comum com umavelocidade es-pantosa. Um dia no sistema de Dobelle tinha apenas oito horas-padro.

    Enquanto pensava, o dia amanhecera. Teria tempo apenas para um rpi-do desjejum; depois, umcarro areo o levaria para o outro lado do planeta... e para a misso mais estpida e improdutiva detoda a sua carreira.

    Rebka praguejou baixinho, amaldioando o nome de Max Perry, e se dirigiu para a porta. Ainda noconhecia o homem, mas tinha certeza de que iria antipatizar com ele.

  • 19

    ARTEFATO: PARADOXO

    N de srie: 35

    Coordenadas galcticas: 27.312,443/15.917,902/135,66

    Nome: Paradoxo

    Conjunto estrela/planeta: Darien/Kleindienst N de Bose mais prximo: 139

    Idade estimada: 9,112 0,11 megaanos Histria da explorao: No se sabe quantas vezes oParadoxo foi descoberto para logo depois todo o conhecimento a respeito ser perdido. O que se sabe que, em 1379 E., Ruttledge, Kaminski, Parzen e Lu-lan organizaram uma expedio de duas navespara investigar a anomalia da retrao de luz hoje conhecida como Paradoxo

    Chegando primeiro, Ruttledge e Kaminski registraram no computador principal da nave a inteno deentrar na esfera do Paradoxo usando o m-

    dulo de explorao, deixando a nave-me a uma distncia segura. Cinco dias depois, Parzen e Lu-lanchegaram e encontraram a outra nave e seu mdulo, ambos em perfeitas condies. Ruttledge eKaminski estavam no mdulo, vivos mas seriamente desidratados e desnutridos. No podiam falarnem executar movimentos simples, e exames posteriores revelaram que suas mem-

    rias no continham mais informaes que a de um beb recm-nascido. Os bancos de dados e amemria principal do computador do mdulo tinham sido totalmente apagados.

    Depois de examinarem os registros da outra nave, Parzen e Lu-lan tira-ram a sorte para ver quemfaria a segunda viagem ao interior da esfera. Lu-lan ganhou e foi. Depois que ele entrou no Paradoxo,Parzen no recebeu mais nenhuma comunicao, embora tivesse ficado combinado que Lu-lan man-daria uma mensagem a cada quatro horas. Lu-lan voltou, em boas condies fsicas, depois de trsdias Sua memria no continha nenhuma informao aprendida, embora os conhecimentos somticos(instintivos) permanecessem intactosEm 1557 E., o Paradoxo foi considerado zona proibida paratodos, exceto os investigadores especialmente treinados.

    Descrio: O Paradoxo uma regio esfrica, com cinquenta quilmetros de dimetro. A superfcieexterna apresenta variaes de cor tipo bolha de sabo, refletindo ou transmitindo radiaes dediferentes comprimentos de onda de forma aparentemente aleatria.

    A esfera opaca em certas regies do espectro (1,2 a 223 metros) e perfeitamente transparente emoutras (5,6 a 366 micrometros) Nada se sabe 20

    a respeito do interior do Paradoxo

  • O tamanho e aparncia do Paradoxo no so imutveis. Mudanas de tamanho e colorao foramobservadas nove vezes desde que o artefato foi descoberto

    Estrutura: Com base em observaes feitas do exterior, acredita-se que o Paradoxo tenha umacomplexa estrutura interna. Entretanto, jamais foi ob-tida qualquer informao direta a respeito doseu interior. Muitos analistas acreditam que o Paradoxo uma extruso quadridimensional noespao-tempo de um corpo pertencente a uma dimenso muito maior, talvez a variedade com nsvinte/trs/sete de Ikro e Hmiran.

    Finalidade: Desconhecida. Entretanto, Scorpesi acredita que o Paradoxo seja um recipiente delimpeza para grandes artefatos inteligentes dos Construtores, como o Elefante, permitindo suareutilizao. preciso observar, porm, que esta sugesto incompatvel com as dimenses (4.000

    x 900 quilmetros) do Elefante, a menos que objetos desse tipo possam ser submetidos a mltiplaspassagens atravs do Paradoxo.

    Do Catlogo Lang Universal de Artefatos Quarta Edio

  • 21Captulo 2

    Mar de Vero menos trinta e seis.

    Embora o segundo turno do dia de trabalho mal estivesse come-

    ando, j era claro para Birdie Kelly que as coisas no iriam correr bem.

    O novo supervisor podia ainda estar a meio mundo de distncia, no lado das estrelas, mas o chefe jse queixava da chegada iminente do homem.

    Como que algum que sequer visitou este sistema pode ter competncia para controlar asviagens entre Opala e Tremor? Max Perry olhou para Birdie com uma expresso de infelicidadeno rosto. Birdie olhou de volta, viu a salincia macilenta da mandbula de Perry e pensou no bem queo outro homem faria a si prprio se comesse uma boa refei-

    o e descansasse um dia ou dois.

    O trfego para Tremor nosso trabalho prosseguiu Perry.

    Estamos nisso h seis anos. Que que esse Rebka, um perfeito estranho, sabe a respeito?Absolutamente nada. Ser que eles pensam, l no quartel-general do Crculo, que coisa fcil, quequalquer idiota pode entender Tremor? Ns sabemos que importante proibir o acesso a Tremor.Especialmente agora, to perto da Mar de Vero. Mas ser que eles sabem?Birdie escutou o rosriode queixas de Max Perry e fez que sim com 22

    a cabea. Uma coisa era certa: Perry era um bom homem e um chefe consciencioso, mas tinha suasobsesses. E o capito Hans Rebka, quem quer que fosse, certamente tornaria mais difcil a vida doprprio Birdie tambm.

    Birdie suspirou e se recostou na cadeira de vime. O escritrio de Perry ficava no ltimo andar domais alto edifcio de Opala do lado de Tremor, uma estrutura experimental de quatro andares quetinha sido construda de acordo com as especificaes de Perry. Birdie Kelly ainda se sentia pouco vontade no interior do prdio. Os alicerces atravessavam uma grossa camada de lama e umemaranhado de razes vivas e mortas se projetavam abaixo da Funda, mergulhando nas guassalobras do oceano de Opala e terminando em uma cmara oca, pouco abaixo da superfcie, cujoempuxo sustentava a maior parte do peso da estrutura.

    Mesmo um prdio baixo como aquele no lhe parecia seguro. As Fundas eram delicadas, nopermitiam a construo de alicerces slidos, e por esse motivo a imensa maioria das edificaes emOpala tinham apenas um ou dois andares. Durante os ltimos seis meses, aquela Funda estiveraamarrada no mesmo lugar, mas com a aproximao da Mar de Vero isso podia ser perigoso. Perrydera ordens para que dali a oito dias a Funda fosse deixada ao sabor das correntes marinhas... masno seria tarde demais?

  • O comunicador comeou a tocar. Max Perry ignorou-o. Estava re-costado na cadeira, olhando para oteto. Birdie alisou o palet branco surrado, inclinou-se para a frente e olhou para a tela.

    Deu um muxoxo. Aquela mensagem no contribuiria em nada para melhorar o humor de Max Perry.

    O capito Rebka est mais prximo do que pensvamos, chefe.

    Na verdade, deixou o lado das estrelas h algumas horas. Seu carro areo estar pronto para pousardaqui a alguns minutos.

    Obrigado, Birdie disse Perry, sem mudar de posio. Pea para nos manterem informados.

    Vou fazer isso, comandante. Kelly sabia que tinha sido dispensado, mas fingiu que nopercebera. O senhor devia ler isto aqui antes que ele chegue.

    Kelly colocou uma pasta sobre a mesa de tampo de vime que estava entre eles, recostou-se nacadeira e esperou. No estado de esprito em que Max Perry se encontrava no momento, era intiltentar apress-lo.

    O teto do aposento era transparente, mostrando o cu normalmente nublado de Opala. A localizaotinha sido escolhida com cuida-23

    do. Estavam perto do centro do lado de Tremor, em uma regio onde os padres de circulaoatmosfrica aumentavam a probabilidade de que houvesse brechas nas nuvens. No momento, o cuapresentava-se parcialmente limpo, de modo que Tremor estava visvel. Com a superfcie a apenasdoze mil quilmetros do ponto mais prximo de Opala, a esfera crestada ocupava mais de trinta ecinco graus do cu, como uma grande fruta murcha, roxo-acinzentada, madura demais, pronta paracair. Visto daquela distncia, parecia relativamente tranquilo, mas a borda escura do planeta jmostrava limites indefinidos que falavam de tempestades de areia.

    Faltavam apenas trinta e seis dias para a Mar de Vero, menos de duas semanas-padro. Da a dezdias, Perry ordenaria que a superfcie de Tremor fosse evacuada e supervisionaria pessoalmente essaevacuao.

    Em todos os xodos dos ltimos seis anos ele havia sido a ltima pessoa a deixar Tremor, e oprimeiro a voltar depois da Mar de Vero.

    Para Perry, era uma compulso. E, independentemente do que Rebka pudesse pensar ou querer,Birdie Kelly sabia que Max Perry tinha inteno de continuar da mesma forma.

    A noite j estava avanando sobre a superfcie de Opala. A sombra do planeta em breve criaria acurta falsa noite do eclipse de Mandel sobre Tremor. Entretanto, Perry e Kelly no poderiam ver oeclipse. A brecha nas nuvens estava se fechando, obstruda por torvelinhos nebulosos que se moviamrapidamente. Houve um ltimo brilho prateado, quando a Es-tao de Meio Caminho e a parteinferior do Cordo Umbilical refletiram a luz de Mandel; em seguida, Tremor desapareceutotalmente. Minutos depois, o teto acima deles comeou a mostrar as formas estelares dos primeiros

  • pingos de chuva.

    Perry suspirou, inclinou-se para a frente e pegou a pasta. Kelly no ignorava que o outro homemhavia registrado suas palavras sem realmente ouvi-las. Mas Perry sabia que, se o seu brao direitoachava que era melhor que examinasse a pasta sem demora, havia uma boa razo para isso. A pastaverde continha trs longos requerimentos, todos pedindo permisso para visitar a superfcie deTremor. No havia nada de estranho nisso. Birdie estava a ponto de conceder a aprovao de rotina,condicio-nando a aprovao final apresentao de um plano detalhado de viagem, quando viu quemhavia assinado os pedidos. Nesse momento, teve certeza de que Perry precisava v-los e examin-losde perto.

    O comunicador tocou de novo quando Perry estava comeando a 24

    folhear o contedo da pasta. Birdie Kelly leu a nova mensagem e deixou discretamente o escritrio.Rebka estava chegando, mas Perry no precisava ir at a pista de pouso para receb-lo. Birdie podiafazer isso no lugar dele. Era melhor deixar que Perry se ocupasse dos pedidos de visita.

    Todos vinham de fora do sistema de Dobelle. Na verdade, de fora dos planetas que constituam oCrculo de Phemus. Um era da Quarta Aliana, outro de uma regio remota da Comunidade dosZardalus, to distante que Birdie Kelly nunca ouvira falar dela; e o terceiro, o mais estranho detodos, tinha sido mandado pela Federao de Cecrpia. Aquilo era sem precedentes. Pelo que Birdiesabia, nenhum cecropiano havia jamais chegado a uma distncia menor que anos-luz de Dobelle.

    Mais estranho ainda: todos os visitantes queriam estar na superf-

    cie de Tremor durante a Mar de Vero.

    Quando Birdie Kelly voltou, fez uma coisa que reservava para emergncias. Bateu porta antes deentrar. Isso garantiu a ateno imediata de Perry.

    Kelly estava carregando outra pasta, e no se achava sozinho. Ao lado dele havia um homem magro,mal vestido, que olhava em volta com olhos castanho-escuros, muito vivos, e estava aparentementemais interessado na moblia modesta e surrada do escritrio do que na pessoa de Perry. Suasprimeiras palavras pareceram confirmar essa impresso.

    Comandante Perry, um prazer conhec-lo. Meu nome Hans Rebka. Sei que Opala no umplaneta rico, mas sua posio aqui certamente justificaria algo melhor do que isto.

    Perry colocou a pasta sobre a mesa e acompanhou os olhos inqui-sitivos do outro enquanto varriam oaposento. Era uma combinao de escritrio e quarto de dormir. Continha apenas uma cama, trscadeiras, uma mesa e uma escrivaninha, todos muito gastos e em mau estado de conservao.

    Perry deu de ombros.

    Sou um homem simples. Isto mais do que eu preciso.

    O recm-chegado sorriu.

  • Concordo. Acho, porm, que somos minoria.

    Fossem quais fossem os outros sentimentos que aquele sorriso pudesse esconder, parte da aprovaode Rebka era sincera. Nos primeiros dez segundos que passou com Max Perry, pde descartar umaidia que lhe ocorrera depois de ler a histria do outro. Mesmo o planeta mais pobre podia oferecerum luxo considervel para algumas pessoas, e certos 25

    homens e mulheres ficavam em um planeta porque haviam conquistado uma posio de riqueza e altopadro de vida, que no podiam transferir para nenhum outro lugar. Entretanto, aquele no eraevidentemente o segredo de Perry. Ele vivia com a mesma simplicidade que o prprio Rebka.

    Poder, ento?

    Dificilmente. Perry controlava o acesso a Tremor, e pouco mais que isso. As permisses paravisitantes de outros mundos passavam por ele, mas qualquer um que no fosse um p-rapadocompleto podia recorrer a uma autoridade mais alta no conselho do sistema de Dobelle.

    Nesse caso, qual seria a sua motivao? Tinha que haver uma; sempre havia. Qual seria?

    Durante as apresentaes oficiais e a troca de cortesias em nome do governo de Opala e doescritrio do Coordenador Geral do Crculo de Phemus, Rebka voltou sua ateno para o prprioPerry.

    Fez isso com interesse genuno. Preferiria estar explorando o Paradoxo, mas, apesar de desprezar anova misso, no podia deixar de se sentir curioso. O contraste entre o passado de Perry e suaposio atual era gritante. Com apenas vinte anos de idade, Perry tinha sido coordena-dor setorial deuma das regies mais perigosas do Crculo. Lidara com os problemas de forma sutil, mas sem perdera firmeza. A misso final, de passar um ano em Opala, era quase uma formalidade, a ltima tmperado metal antes que Perry fosse considerado pronto para trabalhar no escritrio do Coordenador.

    Ele tinha chegado a Opala. E ficara ali, ocupando um posto med-

    ocre, durante todos aqueles anos, recusando-se a partir, renunciando a todas as ambies do passado.Por qu?

    A figura do homem no fornecia nenhuma pista quanto causa do problema. Era plido e ativo, masRebka poderia ver a mesma palidez e atividade olhando-se no espelho. Ambos tinham passado ainfncia em planetas onde a sobrevivncia era um desafio e o conforto uma impossi-bilidade. Apapeira no pescoo de Perry falava de um mundo carente de iodo, e as pernas finas, ligeiramentearqueadas, sugeriam um caso antigo de raquitismo. Poucas espcies vegetais cresciam emEscaldante. Ao mesmo tempo, Perry parecia estar em excelente sade, algo que Rebka ainda teriaque confirmar. Entretanto, o bem-estar fsico apenas tornava mais claro que devia haver problemasmentais. Esses seriam mais difceis de localizar.

    A inspeo no era unilateral. Enquanto trocavam saudaes formais, Rebka sabia que Perry estavafazendo sua prpria avaliao.

  • 26Ser que ele tinha esperana de que o novo supervisor fosse um homem desgastado pelos cargosanteriores que ocupara, ou talvez o protegido de algum figuro? O governo do Crculo tinha sua cotade funcionrios em busca de sinecuras, preguiosos dispostos a deixar Perry e pessoas como eledirigirem a operao da forma que quisessem, contanto que o chefe no tivesse que fazer nenhum tipode trabalho.

    Aparentemente, Perry queria saber com quem estava lidando, e no descansaria enquanto nosoubesse, pois assim que acabaram de trocar as gentilezas de praxe pediu a Kelly para sair e, comum gesto, convidou Rebka a sentar-se.

    Suponho que no levar muito tempo para assumir suas novas funes, capito.

    Tem razo, comandante. Na verdade, minhas funes em Opala e Tremor j comearam. Ao queme consta, assumi o cargo no momento em que a nave pousou na base do lado das estrelas.

    timo. Perry mostrou-lhe a pasta verde e o quarto e ltimo documento que Kelly lhe entregara. Quando o senhor chegou, eu estava examinando estes papis. Gostaria que desse uma olhada e medissesse o que pensa.

    Em outras palavras, quer saber se eu sou esperto. Rebka pegou os documentos e folheou-os emsilncio por um minuto ou dois. Ele no sabia exatamente qual era o teste, mas no queria serreprovado.

    Parecem estar no formato correto observou, afinal.

    No observa nada de incomum?

    Bem, talvez a diversidade dos solicitantes. Vocs recebem muitos pedidos de fora do sistema deDobelle?

    No, isso muito raro respondeu Perry, fazendo que sim com a cabea, em sinal de respeito. E agora recebemos quatro desses pedidos, capito, em um nico dia. Todos querem visitar Opalae Tremor.

    Indivduos dos trs grupos principais de planetas, mais um membro de um conselho da Aliana. Sabequantos visitantes por ano costumamos receber aqui em Dobelle? Uns cinquenta... e todos vm deplanetas do nosso sistema, mundos do Crculo de Phemus. E ningum nunca quer ir a Tremor.

    Max Perry pegou de novo a pasta. Aparentemente, Rebka havia atendido a algum critrio inicial deaceitao, pois a atitude de Perry se tornara um pouco menos impessoal.

    Olhe para este requerimento. de uma cecropiana, pelo amor de Deus! Ningum em Dobellejamais viu um cecropiano de perto! Eu 27

  • mesmo nunca vi um. Ningum aqui seria capaz de se comunicar com um cecropiano.

    No se preocupe disse Rebka, apontando para os papis sua frente. Ela certamente vaitrazer um intrprete. Mas tem razo. Se recebem apenas cinquenta turistas por ano, quatro em umnico dia est fora de todos os limites estatsticos. E voc no mencionou o fato, pensou Rebka,mas na verdade foram cinco no mesmo dia, no foram? Esses pedidos chegaram no mesmo dia queeu. Para voc, sou apenas outro estrangeiro. Mas o que que eles todos querem, comandante?No li o suficiente para conhecer os seus motivos.

    Coisas diferentes. Este aqui Perry apontou para a pgina com um dedo emaciado acaba dechegar. J ouviu falar de um homem chamado Julius Graves? Ele representa o Conselho de tica daQuarta Alian-

    a, e de acordo com este requerimento quer vir a Opala para investigar um caso de assassinatosmltiplos, que de algum modo envolvem duas gmeas de Shasta.

    Um planeta rico, Shasta. Est muito longe de Dobelle, em vrios sentidos.

    Mas se eu conheo bem o regulamento, ele pode passar por cima de qualquer coisa que dissermosa respeito de sua vinda.

    Ele pode passar por cima de ns e de qualquer outra autoridade de Dobelle concordou Rebka,tomando o documento das mos de Perry. Nunca ouvi falar em Julius Graves, mas os conselhos detica so muito influentes. No deve ser fcil contrari-lo.

    E ele no explica por que est vindo para c?

    No precisa explicar. Rebka olhou de novo para o requerimento. Neste caso, orequerimento uma mera formalidade. Se ele quer vir, nada pode impedi-lo. E os outros? Por quequerem visitar Tremor?

    Atvar Hsial (este o nome da cecropiana) diz que sua especia-lidade o estudo da evoluo deorganismos submetidos a uma presso ambiental extrema. Tremor certamente satisfaz a essacondio. Ela diz que quer ir at l para ver como as formas de vida nativas se comportam durante aMar de Vero.

    Est viajando sozinha?

    No. Com algum ou alguma coisa chamada Jmerlia. Um lotfiano.

    Muito bem, ento deve ser o intrprete. Os lotfianos so outra forma de vida da Federao deCecrpia. Quem mais?

    Outra fmea, Darya Lang, da Quarta Aliana.

  • 28 Humana?

    Acho que sim. Diz que est interessada em ver artefatos dos Construtores.

    Pensei que houvesse apenas um no sistema de Dobelle.

    s o que h. O Cordo Umbilical. Darya Lang quer conhec-lo.

    No precisa ir at Tremor para isso.

    Ela diz que quer saber como o Cordo Umbilical est preso do lado de Tremor. E sua curiosidade justificada. Ningum jamais compreendeu como os Construtores conseguiram fazer com que elefosse recolhido para o espao durante a Mar de Vero. A histria dela plausvel.

    Acredite se quiser.

    O tom de voz de Perry deixou claro que ele no acreditava. Ocorreu a Rebka que pelo menos umacoisa os dois tinham em comum: o ceticis-mo. Depois vem Louis Nenda prosseguiu Perry. Da Comunidade dos Zardalus. Quando foi a ltima vez que ouviu falar deles!

    Quando tiveram a ltima escaramua com a Aliana. Que que ele quer fazer em Tremor?

    No se d ao trabalho de explicar com detalhes, mas tem algo a ver com o estudo de novas forasnaturais. Ele quer investigar as mars terrestres em Tremor durante a Mar de Vero. H tambmuma nota de p de pgina falando da teoria da estabilidade das biosferas e da forma como pode seraplicada a Tremor e Opala. Oh, e Nenda pretende trazer um himenopt com ele, como animal deestimao. Isso mais uma novidade. Os nicos himenopts que existem em Opala so os espcimesempalhados do Museu de Histria Natural. Juntando isso tudo, capito, o que que ns temos?

    Rebka no respondeu. A menos que todos os registros a respeito de Perry fossem falsos, havia umainteligncia sutil escondida atrs daqueles olhos tristes e sem vida. Rebka no acreditou por ummomento sequer que Perry estivesse pedindo sua opinio porque precisasse dela.

    O que estava fazendo era tentar avaliar sua intuio e senso de equilbrio.

    Quando pretendem chegar?

    De acordo com o que est escrito aqui, Darya Lang passou pelo ltimo N de Bose h trs dias.Isso significa que est percorrendo o ltimo trecho subluminal. A qualquer momento pode pedirpermisso para pousar. Os outros devem estar a alguns dias de distncia.

    Que acha que devemos fazer?

    Vou lhe dizer o que acho que no devemos fazer. Pela primei-29

  • ra vez, uma emoo apareceu no rosto magro de Max Perry. Podemos deix-los visitar Opala,embora isso no v ser brincadeira durante esta Mar de Vero, mas no devemos, em circunstnciaalguma, permitir que ponham os ps em Tremor.

    O que significa, pensou Rebka, que meu instinto, quando eu estava no lado das estrelas, acertou emcheio. Para descobrir o que prende Max Perry a Dobelle, provavelmente terei que fazer exatamenteisso: visitar Tremor durante a Mar de Vero. Afinal, no pode ser mais perigoso que a expedio aoParadoxo. Mas vamos testar as coisas mais um pouquinho antes de irmos mais longe.

    Seus argumentos no me convenceram replicou, e viu um lampejo de preocupao nos olhos dePerry. As pessoas esto vindo de longe para ver Tremor. Estaro dispostas a pagar uma boa somaa Dobelle pelo privilgio, e este sistema precisa desesperadamente de todo o dinheiro que puderconseguir. Antes de respondermos que no, quero ter uma conversa pelo menos com Darya Lang. Eacho que gostaria de ir pessoalmente superfcie de Tremor perto da Mar de Vero.

    Tremor perto da Mar de Vero. Quando ele disse essas palavras, uma nova expresso apareceu norosto de Max Perry. Tristeza. Culpa. Ou seria saudade? Poderia ser qualquer uma delas. Rebkagostaria de conhecer melhor o outro homem. A fisionomia de Perry certamente continha as respostaspara uma centena de perguntas... para algum que soubesse interpret-la.

  • 30Captulo 3

    Mar de Vero menos trinta e trs.

    Hans Rebka tinha chegado a Dobelle desorientado e aborrecido.

    J em Darya Lang, que seguira o mesmo caminho subluminal apenas trs dias depois em seu trajetodo ltimo Ponto de Transio de Bose at o espaoporto de Opala, no havia lugar paraaborrecimento.

    Ela estava nervosa. Mais do que nervosa; estava assustada.

    Passara mais de metade da vida trabalhando como cientista, uma arqueloga que se sentia mais vontade quando estava pensando no passado remoto. Realizara o levantamento mais completo dosartefatos dos Construtores, localizando, compilando, comparando e catalogando todos os objetosdescobertos at o momento em territrio da Quarta Aliana e anotando as datas precisas de qualquermudana de aparncia ou funcionamento. Entretanto, fizera aquilo tudo passivamente, natranquilidade do seu escritrio no Portal da Sentinela. Podia saber de cor as coordenadas dos milduzentos e poucos artefatos espalhados por todo o brao da espiral, e era capaz de recitar semhesitao tudo que se sabia a respeito de cada um deles. Mas fora da Sentinela, cuja estruturavolumosa podia ser observada da superfcie do seu planeta natal, jamais havia visto qualquer umdeles.

  • 31Agora, porm, estava se aproximando de Dobelle... contrariando os conselhos de todos.

    Por que no deveria ir? perguntou, quando a Comisso da Quarta Aliana em Miranda mandouuma representante falar com ela.

    Estava trmula de tenso e contrariedade. Se a anomalia pertence a algum, a mim que pertence.Fui eu que a descobri.

    verdade. A legada Pereira era uma mulher pequena e paciente, de pele castanha e olhosdourados. No tinha um aspecto intimi-dador, mas mesmo assim Darya Lang achava difcil encar-la. E desde que a senhora observou o fenmeno, tivemos ocasio de confirm-lo em todos osartefatos. Ningum est tentando negar-lhe o crdito pela descoberta. E todos ns admitimos que anossa maior especialista nos Construtores, quem melhor conhece a sua tecnologia...

    Ningum conhece bem a tecnologia dos Construtores! Mesmo no estado de esprito em que seencontrava, Darya no podia deixar aquilo passar sem resposta.

    Melhor um termo comparativo. Ningum na Aliana conhece mais do que a senhora. Como,repito, a senhora quem melhor conhece a tecnologia dos Construtores, obviamente a pessoa maisqualificada para explicar o significado da anomalia. A voz da mulher ficou mais suave. Mas,ao mesmo tempo, professora Lang, deve admitir que sua experincia em viagens interestelares bastante limitada.

    Minha experincia nessa rea nula, e a senhora sabe disso.

    Mas todo mundo, da senhora at o tio Matra, meu senhorio, me diz que os riscos de uma viageminterestelar so desprezveis.

    A legada suspirou.

    Professora, no a viagem que estamos discutindo. Olhe em torno. O que a senhora v?

    Darya levantou a cabea e percorreu o jardim com os olhos. Flores, trepadeiras, rvores,passarinhos, os ltimos raios do sol da tarde se fil-trando pela trelia do caramancho... uma cenaperfeitamente normal. O

    que a outra esperava que ela visse?

    Tudo parece em ordem.

    Tudo est em ordem. A senhora passou toda a sua vida no Portal da Sentinela, e este mundo umjardim. Um dos planetas mais hospitaleiros, mais ricos, mais bonitos que conhecemos... muito maisagradvel que Miranda, onde moro. Mas a senhora pretende ir a Tremor. Ao fim dos mundos. Umplaneta sombrio, sujo, triste, perigoso, na esperana remota de que possa encontrar l novas

  • informaes a respeito dos Construtores.

  • 32Pode me dar alguma razo para pensar que encontrar algo de interessante em Tremor?

    A senhora sabe a resposta. A razo est na minha descoberta.

    Uma anomalia estatstica. Quer passar por momentos extremamente desconfortveis apenas porcausa de uma estatstica?

    Claro que no. Darya teve a impresso de que a mulher a estava tratando como uma criana, eisso era uma coisa que no podia tolerar. Ningum quer passar por momentos desconfortveis.Legada Pereira, a senhora admite que ningum na Quarta Aliana conhece melhor os Construtores doque eu. Suponha que eu no v, e que alguma outra pessoa o faa, e que a pessoa que for no meu lugarseja mal sucedida por falta de conhecimento. Acha que eu jamais me perdoaria?

    Em vez de responder, a outra foi at a janela e, com um gesto, convidou Darya Lang a ir tambm.Apontou para o cu, que comeava a escurecer. A Sentinela brilhava perto do horizonte, uma esferaestriada de um milho de quilmetros de dimetro, a duzentos milhes de quilmetros de distncia.

    Suponha que eu lhe dissesse que conheo um meio de atravessar a blindagem protetora daSentinela e explorar a Pirmide que existe no centro. A senhora estaria disposta a ir comigo?

    Naturalmente. Venho estudando a Sentinela desde criana. Na minha opinio, a Pirmide podeconter uma biblioteca das cincias dos Construtores... talvez da histria deles, tambm. Mas ningumconsegue atravessar a blindagem. Estamos tentando h mil anos.

    Mas suponha que eu conhecesse um meio.

    Ento eu faria questo de tambm ir.

    Mesmo que isso envolvesse perigo e desconforto?

    Mesmo assim.

    A legada concordou com a cabea e ficou em silncio por alguns segundos, enquanto a escurido seacentuava.

    Muito bem falou, afinal. Professora Lang, dizem que a senhora uma pessoa lgica, e gostode pensar que eu tambm sou. Se est disposta a correr o risco de penetrar na Sentinela, o que seriaum risco desconhecido, ento tem o direito de enfrentar o risco menor de visitar Tremor. Quanto aviajar at o sistema de Dobelle, ns, humanos, construmos o Sistema Bose e sabemos exatamentecomo funciona. Sabemos operar a Rede Bose. A experincia um pouco desagradvel a princpio,mas os riscos so mnimos. E talvez, se puder usar a Rede para explorar a anomalia estatstica que asenhora mesma descobriu, isso nos fornea fi-33

    nalmente as informaes de que necessitamos para desvendar o segredo da Sentinela. No posso

  • negar essa cadeia de raciocnio. A senhora tem o direito de fazer a viagem. Vou aprovar o seurequerimento.

    Obrigada, legada Pereira. Com a vitria, Darya sentiu um arrepio que no era causado pelofrio da noite. Estava passando de uma fantasia agradvel para a realidade.

    Mas h uma outra coisa. A voz da legada se tornou mais tensa. Acredito que no tenhacontado a ningum fora da Aliana a respeito da descoberta da anomalia...

    No. No contei a ningum. Enviei a informao apenas atravs dos canais regulares. No havianingum mais que estivesse interessado, e eu queria...

    timo. Que continue assim. Para sua informao, a anomalia de agora em diante ser consideradacomo um segredo oficial da Quarta Aliana. Segredo? Mas qualquer um poderia realizar a anliseque eu fiz!

    Por que... Lang interrompeu o que estava dizendo. Se insistisse em que qualquer um chegaria mesma concluso, poderia colocar em risco seu direito de descobridora da anomalia... e sua viagema Tremor.

    A legada olhou para ela, muito sria, e finalmente assentiu.

    Lembre-se de que vai partir em uma viagem de mais de setecentos anos-luz, para alm dasfronteiras da Aliana. De certa forma, eu a invejo. Jamais fiz uma viagem to longa. No tenho maisnada a dizer, exceto que lhe desejo boa viagem e sucesso em sua misso.

    Darya mal podia acreditar que houvesse vencido, depois de semanas de burocracia e evasivas porparte das autoridades da Quarta Aliana.

    E os perigos do Sistema Bose realmente tinham parecido muito menores depois de iniciada a viagem.A primeira Transio foi desconcertante, no pelo que sentiu, mas pelo que no sentiu. A Transiofoi instantnea e imperceptvel, e isso no parecia certo. O crebro humano precisava de algumaindicao de que ele e a nave que o transportava tinham acabado de transpor cem anos-luz ou mais.Talvez um pequeno choque, pensou Darya; uma leve nusea, ou uma sensao de desorientao.

    Na segunda e terceira Transies, todo o receio desapareceu, como a legada Pereira havia previsto.O Sistema Bose no tinha mais mistrios para Darya.

    O que no diminuiu, porm, foi a sua apreenso. Ela no sabia mentir; sempre fora assim. O sistemade Dobelle continha apenas uma estrutura do tempo dos Construtores: o Cordo Umbilical. E setratava de 34

    um artefato de importncia secundria, cujas operaes eram evidentes, embora os controles que ogovernavam permanecessem misteriosos. Ela jamais faria uma viagem to longa apenas para ver deperto o Cordo Umbilical. Ningum faria. No entanto, era o motivo oficial apresentado pela Alianapara a sua visita.

  • Algum acabaria por lhe perguntar a razo pela qual procedera de forma to estranha; tinha certezadisso. E nada, em sua carreira de pes-quisadora, a preparara para ser dissimulada. Sua expressocertamente a trairia.A viso de Dobelle serviu para tranquiliz-la um pouco. Em um universo que, doseu ponto de vista, achava-se coalhado de milagres dos Construtores, ali estava uma maravilhanatural que nada lhes ficava a dever. Quarenta ou cinquenta milhes de anos atrs, os planetasTremor e Opala haviam girado em torno de Mandel em uma rbita quase circular. A rbitapermanecera estvel durante bilhes de anos, resistindo s atraes gravitacionais do companheiromenor de Mandel no sistema binrio, Amaranth, e dos dois gigantes gasosos que giravam em torno deAmaranth em suas rbitas excntricas, a quinhentos e setecentos milhes de quilmetros de distncia.O ambiente fora tranquilo para os dois membros do par planetrio de Dobelle at que umaaproximao maior entre os dois gigantes gasosos fizera com que um deles fosse arremessado nadireo de Mandel. Esse planeta sem nome passara raspando pela estrela e assumira uma novatrajetria que o levava para fora do sistema estelar.

    Esse teria sido o final da histria... exceto pelo fato de que Dobelle estava bem no caminho doplaneta desgarrado. O gigante gasoso executara uma dana complexa nas proximidades da dupla deplanetas, fazendo com que Tremor e Opala se aproximassem e ao mesmo tempo aumentando aexcentricidade da rbita dos dois planetas, com um perias-tro muito mais prximo de Mandel do queantes. Em seguida, o planeta desgarrado desapareceu para sempre. Ficaram apenas Dobelle e o outrogigante gasoso, chamado Gargntua; os parmetros orbitais do sistema, que ainda estavam mudando,permitiam uma reconstituio precisa do que ocorrera.

    Faltavam apenas algumas semanas para a Mar de Vero, o ponto em que Dobelle estaria maisprximo de Mandel. Se a anlise de Darya Lang estivesse correta, seria uma ocasio de grandeimportncia para o brao espiral da galxia. E tambm para sua prpria vida. Afinal, poderiaverificar que suas teorias eram verdadeiras.

    Ou falsas.

  • 35Darya foi at a escotilha e ficou olhando enquanto a nave se aproximava de Dobelle. Opala e Tremorgiravam um em torno do outro em uma dana frentica, completando trs voltas em um nico dia-padro.

    Ela podia ver os planetas se moverem. Entretanto, a velocidade era toda relativa. O encontro da navecom o campo de pouso, no lado estrelado de Opala, podia parecer difcil, mas era um problematrivial para os computadores de navegao que fariam os clculos necessrios.

    O problema no estava no pouso, mas nos humanos que a esperavam l embaixo. O tom da mensagemque autorizara seu desembarque em Opala no era nada animador. Fornea uma identificaocompleta do seu financiador. Informe o tempo que pretende ficar. Faa uma descri-

    o pormenorizada do que pretende encontrar. Explique por que a visita tem que ser feita nestapoca. Diga por que deseja visitar Tremor. A taxa de permanncia deve ser paga com antecedncia eno ser devolvida em hiptese alguma. Assinado, Maxwell Perry, Comandante. Ser que osfuncionrios da imigrao de Opala tratavam todos os visitantes de forma to hostil? Ou sua paraniano seria na verdade nenhuma parania, e sim uma preocupao legtima?

    Ainda estava de p em frente escotilha quando a nave comeou a aproximao final. Estavamchegando da direo de Mandel e ela teve uma boa viso da dupla de planetas. Sabia que Opala eraapenas ligeiramente maior que Tremor (tinha um raio mdio de 5.600 quilmetros, enquanto o raiomdio de Tremor era de 5.100), mas seus olhos insistiam em fornecer uma informao bem diferente.A bola iridescente de Opala, envolvida por nuvens, com uma forma levemente oval e o eixo maiscomprido apontando permanentemente na direo do seu planeta irmo, parecia bem maior que oovide sombrio de Tremor. Opala tinha uma superfcie uniforme, mas a de Tremor era marcada porgrandes manchas roxas e verdes. Darya tentou localizar o Cordo Umbilical, mas ele era invisvelquela distncia.

    No havia opes para entrar no sistema de Dobelle. O nico espa-

    oporto ficava quase no centro do hemisfrio de Opala, do lado das estrelas. Tremor no tinhanenhum espaoporto. De acordo com o que lera nos livros, o nico acesso seguro a Tremor eraatravs de Opala.

    Acesso seguro a Tremor?

    Uma idia agradvel, mas Darya lembrou-se do que lera a respeito de Tremor e da Mar de Vero.Talvez os livros devessem ter usado uma palavra diferente... pelo menos naquela poca do ano.

  • 36Os arquivos da Quarta Aliana tinham ainda menos coisas boas para dizer do que a legada Pereira arespeito dos mundos controlados pelo Crculo de Phemus. Provincianos... pobres... atrasados...quase desertos... brbaros.

    As estrelas do Crculo ficavam em uma regio que fazia fronteira com os trs grandes impriosdaquele brao da espiral. Entretanto, nem a Quarta Aliana, nem a Comunidade dos Zardalus, nem aFederao de Cecrpia se haviam interessado pelo Crculo de Phemus. No havia nada ali quevalesse a pena comprar ou roubar... nada, pelo menos, que justificasse uma visita.

    A menos que a pessoa estivesse atrs de problemas. Era fcil encontrar problemas nos mundoscontrolados pelo Crculo.

    Darya Lang saltou da nave no cho esponjoso do espaoporto de Opala e olhou em torno, apreensiva.As construes eram baixas e aca-chapadas, feitas, ao que parecia, de barro e bambu. Ningum aesperava.

    Opala era descrito como um planeta com poucos metais, pouca madeira, poucos habitantes. O quemais tinha era gua.

    Quando o sapato afundou um centmetro ou dois na superfcie macia, sentiu-se ainda menos vontade. Nunca havia estado num mundo aqutico, e sabia que em lugar de pedras duras e solocompacto debaixo dos ps, tinha apenas a crosta fraca e pouco substancial da Funda. Abaixo dessacrosta, no existia seno gua salgada, at uma profundidade de alguns quilmetros. Havia uma boarazo para os prdios serem baixos e largos. Se fossem altos e pesados, a Funda no resistiria.

    Um pensamento irrelevante lhe ocorreu: nem ao menos sabia na-dar. A tripulao da nave que atrouxera ainda estava ocupada com os ltimos detalhes da rotina de pouso. Darya comeou acaminhar em dire-

    o construo mais prxima, de onde dois homens estavam finalmente saindo para receb-la.

    No era uma viso animadora. Os dois eram baixos e magros; Darya Lang devia ser pelo menos dezcentmetros mais alta que ambos. Estavam usando uniformes idnticos, sujos e remendados, e distncia podiam ser tomados como irmos, um aproximadamente dez anos mais velho que o outro.S quando se aproximaram foi que as diferenas comearam a aparecer.

    O homem mais velho tinha um ar amistoso e uma maneira confiante de caminhar. A divisa surrada decapito no ombro revelava que, alm de mais velho, ocupava um posto superior ao do outro.

  • 37 Darya Lang? perguntou, assim que a distncia diminuiu o suficiente para que no tivesse quegritar. Sorriu e estendeu a mo, mas no para apertar a mo da moa. Pode me entregar oformulrio. Sou o capito Rebka.

    melhor acrescentar rudes s palavras usadas para descrever os habitantes do Crculo de Phemus,pensou Darya. E tambm acrescentar

    sujo e maltratado descrio de Rebka. O rosto do homem tinha uma dzia de cicatrizes; amaior ia da tmpora esquerda at a ponta do queixo.

    Entretanto, o efeito global no era desagradvel... pelo contrrio. Para sua surpresa, Darya sentiu oformigamento indefinido da atrao mtua.

    Ela entregou os papis ao capito e desculpou-o mentalmente pelas cicatrizes e pelo uniforme emmau estado. A sujeira era apenas superficial, e talvez Rebka tivesse sofrido um grave desastre.

    S que o homem mais moo parecia igualmente sujo e tambm exibia suas cicatrizes. Era evidenteque o pescoo e um lado do rosto tinham sofrido srias queimaduras, e aquele arremedo de cirurgiarepara-dora jamais teria sido aceito no Portal da Sentinela.

    Talvez as cicatrizes das queimaduras tambm lhe tivessem tirado a flexibilidade da pele do rosto.Pelo menos, sua expresso era muito diferente da de Rebka. Enquanto o capito tinha uma certaleveza e revelava uma atitude simptica, apesar da sujeira e da falta de tato, o outro parecia distantee reservado. Seu rosto era duro e sem expresso, e ele mal parecia se dar conta da presena deDarya, embora a moa estivesse a menos de dois metros de distncia. E enquanto Rebka se mostravavisivelmente em boa forma fsica, o outro tinha uma aparncia doentia, o ar de quem no fazrefeies regulares nem se importa com a prpria sade.

    Os olhos dele no combinavam com o rosto jovem. Tristes e desinteressados, eram os olhos dealgum que se retirara do universo. Era pouco provvel que viesse a causar qualquer problema aDarya.

    No momento em que a moa chegou a essa concluso confortadora, o rosto diante dela voltou vidae o homem disse:

    Meu nome Perry. Comandante Maxwell Perry. Por que deseja visitar Tremor?

    A pergunta a fez perder totalmente a compostura. Formulada sem as cortesias preliminares etradicionais das apresentaes da Aliana, convenceu Darya Lang de que essas pessoas sabiam...sabiam a respeito da anomalia, sabiam do seu papel na descoberta da anomalia, sabiam o que vieraprocurar em Dobelle. Sentiu-se enrubescer.

    O... o Cordo Umbilical. Teve que lutar para encontrar as pa-38

  • lavras certas. Eu... eu fiz um estudo especial dos artefatos dos Construtores; tem sido o trabalhoda minha vida. Ela parou para pigarrear. Li tudo que j foi escrito sobre o Cordo Umbilical,mas preciso v-lo de perto e verificar como est preso a Opala e a Tremor. E descobrir como aEstao de Meio Caminho controla o Cordo Umbilical durante a Mar de Vero. Ela perdeu oflego.

    Perry continuou impassvel, mas o capito Rebka estava com um leve sorriso no rosto. A moa tevecerteza de que ele havia enxergado por trs de cada palavra que ela dissera.

    Professora Lang. Ele estava lendo o formulrio. No desen-corajamos visitas. Dobelleprecisa do dinheiro dos turistas. Entretanto, esta uma poca perigosa do ano, tanto em Opala quantoem Tremor.

    Eu sei. Li a respeito das mars ocenicas de Opala e das mars terrestres de Tremor. A moapigarreou novamente. No gosto de correr riscos desnecessrios. Pelo menos aquilo eraverdade, pensou.

    Prometo que serei cautelosa e tomarei todas as precaues que forem necessrias.

    Ento a senhora leu a respeito da Mar de Vero. Perry voltou-se para Rebka, e Darya Langdetectou uma tenso entre os dois homens. Como o senhor, capito Rebka. Entretanto, ler eexperimentar algo so coisas diferentes. E nenhum de vocs dois parece se dar conta de que estaMar de Vero vai ser diferente das anteriores.

    Deve ser diferente todas as vezes replicou Rebka calmamente.

    Estava sorrindo, mas Darya Lang podia sentir o conflito. Rebka era mais velho e ocupava umaposio superior, mas na questo da Mar de Vero o comandante Perry no aceitava a autoridade dooutro.

    Estamos falando de um acontecimento excepcional insistiu Perry. Vamos tomar precauesextraordinrias, mesmo aqui em Opala. Quanto ao que pode acontecer em Tremor, no consigo nemimaginar.

    Mesmo depois de ter passado por meia dzia de Mars de Ve-ro? Rebka tinha parado de sorrir.Os dois homens se encararam em si-lncio, enquanto Darya os observava. Ela pressentiu que a sortede sua misso dependia da discusso em curso.

    A Grande Conjuno declarou Perry, depois de alguns segundos. Afinal, Darya ouvia algo quefazia sentido para ela como cientista.

    A moa estudara em detalhes a geometria orbital do sistema de Mandel enquanto preparava o seucatlogo de artefatos. Sabia que Amaranth, a companheira an de Mandel, normalmente estava tolonge da 39

    primria que, vista de Dobelle, parecia uma estrela como as outras. Entretanto, uma vez a cadapoucos milhares de anos, chegava muito mais perto, a menos de um bilho de quilmetros de Mandel.

  • Gargntua, o gigante gasoso que ficara no sistema, movia-se no mesmo plano orbital e tambm ele deraro em raro passava muito perto de Mandel.

    A Mar de Vero de Dobelle ocorria geralmente em uma ocasio em que Gargntua e Amaranth seencontravam bem afastados de Mandel. Entretanto, as trs rbitas estavam em ressonncia. Em rarasocasies, Amaranth e Gargntua se aproximavam juntos de Mandel, em um momento que coincidiacom a Mar de Vero para Opala e Tremor. En-to... A Grande Conjuno repetiu Perry. Quando todos os astros se alinham e as mars em Opala e Tremor so as maiores possveis. De quetamanho, no sabemos. A Grande Conjuno ocorre apenas uma vez a cada trezentos e cinquenta milanos. A ltima foi muito antes de os humanos colonizarem Dobelle. Mas a prxima vai ser daqui aapenas trinta e trs dias... menos de duas semanas-padro. Ningum sabe o que a Mar de Vero vaifazer a Opala e Tremor nesse dia, mas eu sei que as foras que desencadear sero devastadoras.

    Darya olhou para o solo macio debaixo dos seus ps. Estava com a sensao terrvel de que a frgiljangada de plantas vivas e mortas j estava se desfazendo sob o assalto de monstruosas mars. Pormaiores que fossem os perigos em Tremor, certamente seria prefervel enfrent-los a permanecer emOpala.

    Nesse caso, vocs todos no estariam mais seguros em Tremor?

    perguntou.

    Perry fez que no com a cabea.

    Opala tem uma populao permanente de mais de um milho de pessoas. Isso pode no parecernada para algum como a senhora, que vem de um mundo da Aliana, mas muito para um planeta doCrculo. Meu planeta natal tinha menos de um quarto desse nmero.

    E o meu, menos de um oitavo interveio Rebka. Ningum ficava em Teufel se pudesse ir paraoutro lugar.

    Mas vocs sabem qual a populao permanente de Tremor?

    Perry ficou olhando para os dois, enquanto Darya se perguntava como pudera ter a impresso deque ele era calmo e desapaixonado. A populao permanente de Tremor zero declarou,depois de uma pausa.

    Zero! Que que isso lhes diz a respeito da vida em Tremor?

    Mas existe vida em Tremor observou a moa. Ela havia estu-40

    dado o catlogo planetrio. Vida permanente.

    verdade. Mas no vida humana, nem poderia ser. vida nativa. Nenhum ser humanoconseguiria sobreviver em Tremor durante uma Mar de Vero... mesmo uma Mar de Vero normal.

    Perry estava ficando cada vez mais veemente. Darya perdeu a esperana de conseguir uma permisso

  • para visitar Tremor. Ele certamente negaria o seu pedido. No momento em que chegava a essaconcluso, o socorro veio de uma direo inesperada.

    Rebka voltou-se para Max Perry e apontou com um dedo magro para o cu nublado de Opala.

    Provavelmente tem razo, comandante Perry. Suponha, porm, que as pessoas estejam vindo paraDobelle por causa da Grande Conjun-

    o. No consideramos essa possibilidade quando estvamos analisando os pedidos. Olhou paraDarya Lang. esta sua verdadeira razo para estar aqui?

    No. Decididamente, no. A moa estava aliviada por poder dar uma resposta franca. Eunem sabia a respeito da Conjuno at o comandante Perry mencionar o assunto.

    Acredito na senhora. Rebka sorriu, e a moa teve a impresso de que ele estava sendo sincero.Lembrou-se, porm, das palavras da legada Pereira: No confie em ningum do Crculo de Phemus.Eles praticam tcnicas de sobrevivncia que ns da Aliana nunca fomos forados a aprender. Na verdade, no faz muita diferena que razes essas pessoas encontraram para nos visitar Elas notornam Tremor um planeta mais seguro.

    Voltou-se para Perry.

    E tenho certeza de que no est exagerando quanto aos perigos em Tremor durante a Mar deVero. Por outro lado, tenho a responsabilidade de maximizar a receita de Dobelle com o turismo. o meu trabalho. No nossa responsabilidade proteger os visitantes, embora seja nosso deverpreveni-los. Se preferem correr os riscos, o direito deles.

    No so crianas.

    Eles no fazem idia de como Tremor durante a Mar de Ve-ro. O rosto de Perry estavamalhado de branco e vermelho Parecia a ponto de explodir. O senhor no faz idia.

    Ainda no. Mas pretendo saber como . A atitude de Rebka mudou de novo. Ele se tornou umchefe dando ordens a um subordinado.

    Concordo com o que diz, comandante. Seria uma irresponsabilidade deixarmos a professora Langvisitar Tremor... at conhecermos os riscos.

  • 41Por outro lado, se os perigos forem analisados e considerados aceitveis, no devemos sersuperprotetores. De modo que ns dois vamos a Tremor, enquanto a professora Lang permanece aquiem Opala. Voltou-se para Darya:

    Quando voltarmos... e s ento, professora Lang, tomarei uma deciso

  • 42

    ARTEFATO: SENTINELA

    N de srie: 863

    Coordenadas galcticas: 27.712,863/16.311,031/761,157

    Nome: Sentinela

    Conjunto estrela/planeta: Ryders-M/Portal da Sentinela N de Bose mais prximo: G-232

    Idade estimada: 5,64 0,07 megaanos

    Histria da explorao: A Sentinela foi descoberta no ano 2649 da Expanso por colonizadoreshumanos na regio transorinica. Primeira tentativa de entrada em 2674 E., por Bernardo Gullemas ea tripulao da nave de explorao D-33, da classe Ciclope. No houve sobreviventes. Novastentativas de entrada em 2682 E., 2695 E., 2755 E., 2803 E., 2991 E. No houve sobreviventes.

    Transmissor de sinais de advertncia instalado em 2739 E.; base de observao construda noplaneta mais prximo (Portal da Sentinela) em 2762

    E.

    Descrio: A Sentinela uma regio inacessvel de forma quase esfrica, com pouco menos de ummilho de quilmetros de dimetro. Embora no possua nenhuma fonte interna visvel de energia, aSentinela brilha fracamente com luz prpria (magnitude absoluta +25) e visvel de qualquer pontodo sistema de Ryders-M. A superfcie da Sentinela permite a passagem de luz e radiao de qualquercomprimento de onda, mas reflete todos os objetos materiais, incluindo partculas atmicas esubatmicas. O fluxo proveniente do interior constitudo exclusivamente por ftons. O interior podeser iluminado com um laser, o que revela uma variedade de estruturas no centro da esfera, das quaisa mais notvel a Pirmide, uma estrutura tetradrica regular que absorve toda a luz que a atinge.Se as distncias no interior da Sentinela tm o mesmo significado que no exterior (existem indciosde que isso no verdade; veja mais adiante), a Pirmide mede aproximadamente noventaquilmetros de lado da base. Nenhum aumento na temperatura da Pirmide observado, mesmoquando a estrutura est absorvendo uma po-tncia da ordem dos gigawatts

    Medidas do percurso de raios luminosos, usando lasers, mostram que o interior da Sentinela no topologicamente simples; o tempo mnimo que a luz leva para atravessar a esfera de 4,221 minutos,maior portanto que o tempo geodsico de 3,274 segundos para uma distncia equivalente no espa-

    o vazio, longe de qualquer massa. No caso de um raio de luz perpendicular ao equador daSentinela, o tempo de percurso infinito, ou pelo menos 43

    maior do que mil anos. O deslocamento para o vermelho e os resultados de medidas com raios laser

  • de baixo ngulo indicam que no existe nenhuma massa no interior da Sentinela, um resultadoincompatvel com a observao de uma estrutura interna.

    A Sentinela se mantm a uma distncia precisa de 22,34 u.a. da estrela primria do sistema Ryders-M, mas no est em rbita em torno da estrela.

    As foras gravitacionais e as foras da presso de radiao so compensadas exatamente por algummecanismo desconhecido ou simplesmente no agem sobre a estrutura.

    Estrutura: De acordo com Wollaskii e Drews, a Sentinela foi construda sobre uma anomalianatural do espao-tempo e est acoplada apenas fracamente ao resto do universo. Nesse caso, este um dos nicos trinta e dois artefatos dos Construtores que foram criados com o uso de substnciasnaturais.A topologia da Sentinela parece ser a de um n de Ricci-Cartan-Penro-se no espao de setedimenses.

    Finalidade: Desconhecida. Entretanto, supe-se (por analogia com outros artefatos dos Construtores,veja os nos 311, 465 e 1.223) que a Pirmide possua uma capacidade quase infinita de armazenarinformaes. Assim, foi sugerido (Lang, 4130 E.) que a Pirmide, e possivelmente toda a Sentinela,seja uma biblioteca dos Construtores.

    Do Catlogo Lang Universal de Artefatos, Quarta Edio

  • 44Captulo 4

    Mar de Vero menos trinta e um.

    A primeira parte da viagem at Tremor foi executada em silncio total. Depois que se tornou claroque Hans Rebka insistia em conhecer o planeta e no podia ser demovido da idia, toda a energia dePerry havia desaparecido. Ele mergulhou em uma estranha letargia, sentado ao lado de Rebka nocarro areo, olhando fixamente para a frente. Levantou-se quando chegaram base do CordoUmbilical, mas apenas por tempo suficiente para mostrar o caminho at uma cpsula de passageiros einiciar a sequncia de comandos para a subida.

    Visto do nvel do mar, o Cordo Umbilical impressionava, mas no chegava a deslumbrar. ParaRebka, parecia uma torre alta e fina, de largura uniforme, com talvez uns quarenta metros dedimetro, estendendo-se da superfcie do oceano de Opala at a base da camada de nuvens. A linhaprincipal da estrutura era um trilho prateado, ao longo do qual passageiros e carga podiam sertransportados em grandes carros. O sistema de propulso e sustentao era eletromagntico,alimentado por motores lineares sncronos. Os detalhes do projeto podiam ser diferentes, mas Rebkatinha visto o mesmo princpio ser usado em uma dzia de planetas, transportando pessoas e materiaispara o alto de edifcios de muitos qui-45

    lmetros de altura ou colocando-os em rbita. O fato de que havia mais de dois quilmetros doCordo Umbilical abaixo do nvel do mar, chegando at o ponto de fixao no fundo do oceano,podia ser surpreendente, mas no era difcil de aceitar.

    O mais difcil de ser aceito (pelo menos para Rebka) era o fato de que havia mais doze milquilmetros do Cordo Umbilical acima das nuvens, estendendo-se at a superfcie crestada eturbulenta de Tremor. O

    observador que embarcava em uma cpsula estava vendo menos de um dcimo milsimo de toda aestrutura. Como a velocidade mxima dos carros era de mil quilmetros por hora, o sol nasceria duasvezes em Tremor antes que a viagem terminasse.

    E agora estavam a caminho.

    A cpsula era da altura e largura das maiores construes de Opala.

    Do jeito que os Construtores a haviam deixado, o interior era um grande espao vazio. Os humanostinham acrescentado divises internas, desde um depsito de carga na parte de baixo at uma cmarade controle e observao na extremidade superior.

    Os motores do carro eram silenciosos. Tudo que se podia ouvir quando comearam a subirsuavemente, atravessando a camada de nuvens, era o assobio do ar e o murmrio da turbulnciaatmosfrica. Mais cinco segundos e Hans Rebka teve sua primeira viso de Tremor. Ouviu Max

  • Perry resmungar a seu lado.

    Talvez Rebka tambm tivesse resmungado. Porque de repente a camada permanente de nuvens quecobria Opala parecia uma bno dos cus. Ainda bem que o outro planeta no era visvel dasuperfcie de Opala, pensou.

    Tremor ocupava uma boa parte do cu, uma bola malhada, iluminada pelo sol, que parecia prontapara esmagar Rebka. O instinto lhe dizia que nenhuma fora do universo poderia suportar um pesoto grande, que jamais se acostumaria com uma viso como aquela. Ao mesmo tempo, a razo fez umclculo rpido das velocidades orbitais e do equilbrio entre as foras centrfuga e gravitacional eassegurou-lhe que tudo estava em perfeito equilbrio dinmico. As pessoas poderiam se sentir pouco vontade com a imagem ameaadora de Tremor no cu por um dia ou dois, mas depois passariam aignor-la.

    Daquela distncia, no era possvel ver detalhes, mas era evidente que estava olhando para ummundo sem grandes mares ou oceanos. Rebka pensou imediatamente em terraformao; no deTremor ou Opala isoladamente, mas dos dois em conjunto. Era a combinao perfeita. Tre-46

    mor tinha os metais e minerais, Opala tinha a gua. Seria um trabalho di-fcil, mas j enfrentaradesafios maiores. Pelo menos, j havia um sistema de transporte ligando os dois planetas.

    Olhou para o Cordo Umbilical sua frente. Conseguiu acompanhar a linha por uns cem quilmetrosantes de perd-la de vista. A Esta-

    o de Meio Caminho, a quatro mil quilmetros de distncia, no centro de massa do sistema Opala-Tremor, aparecia como uma pequena conta dourada em uma linha invisvel. Levaria metade do diapara chegar l.

    Tinha muito tempo para pensar.

    E muitas coisas em que pensar.

    Rebka fechou os olhos e passou em revista as coisas que o preocupavam.Comeando com Max Perry.Tinham bastado alguns dias de convivncia com o homem para convenc-lo de que havia na verdadedois Max Perry. Um era um burocrata tmido e desinteressado, do tipo que Rebka esperaria encontrarem um emprego sem futuro em um planeta de terceira do Crculo de Phemus. Mas por baixo dessapersonalidade havia uma outra, a de uma pessoa inteligente e cheia de vida, com idias pr-

    prias. Esse segundo Max Perry parecia despertar apenas em raras ocasies, sem razo aparente.

    No, no era bem assim. O segundo Max acordava quando Tremor era mencionado, e apenas quandoisso acontecia. E Max II devia ser o homem arguto e determinado que Perry havia sido o tempo todosete anos antes... quando fora nomeado para aquele cargo em Dobelle.

    Rebka recostou-se no assento, fisicamente relaxado mas mentalmente ativo. Est bem. Aceite o fatode que existe um mistrio em Max Perry. Mas pergunte se esse mistrio justifica tirar um homemexperiente e produtivo como Hans Rebka de um projeto importante envolvendo a explorao do

  • Paradoxo para transform-lo em psiclogo amador no remoto planeta Opala.

    No fazia sentido. Se os homens e mulheres que administravam o Crculo de Phemus eram bons emalguma coisa, era na conservao de recursos; e os recursos humanos constituam-se nos maispreciosos de todos.Precisava procurar outro motivo, outra razo para ter sido mandado para ali.

    Rebka no era ingnuo a ponto de pensar que os superiores lhe contariam tudo a respeito das missespara as quais era destacado. Podia ser que eles nem conhecessem a histria completa. Descobriraaquilo da 47

    maneira mais difcil, em Pelicano. Um enviado especial devia ser capaz de cumprir bem sua missocom um mnimo de informaes, e Rebka funcionava melhor quando era forado a descobrir ascoisas sozinho.

    A terraformao de Tremor e Opala?

    Os superiores deviam saber que a idia lhe ocorreria assim que visse a dupla de planetas. Seria esseo verdadeiro motivo pelo qual fora requisitado? Para iniciar um projeto de terraformao?

    No, no parecia provvel.

    Nesse caso, tinha que considerar outras variveis. Quatro grupos estavam interessados em visitarTremor durante a Mar de Vero. Um deles poderia ser uma coincidncia genuna (o Conselho daAliana no era dado a prticas tortuosas), mas quatro de uma vez era demais.

    E a Mar de Vero que estava para acontecer seria a maior de todos os tempos. Talvez fosse isso.Achavam-se ali para aquela Mar de Vero especial.

    Mais uma vez, a explicao no lhe pareceu satisfatria. Darya Lang lhe dissera que no sabia queseria uma Mar de Vero especial at Perry comentar a respeito.

    Rebka acreditava nela. Mas isso tambm era suspeito. Deixara uma companheira na estao emrbita em torno do Paradoxo. Independente do que o crebro lhe dissesse, suas glndulas estavamprovavelmente procurando uma substituta. Nos primeiros dois minutos que passara com Darya,percebera que havia uma atrao mtua. Devia ser muito cauteloso ao lidar com a moa, porquequeria acreditar nela.

    Darya no sabia da existncia de uma Mar de Vero gigante programada para breve. timo. Masmesmo que Rebka acreditasse nisso, no queria dizer que a moa fosse quem alegava ser; Daryapoderia ter um papel diferente, mais complexo, a desempenhar na trama.

    Seria ela quem alegava ser? Isso podia ser verificado. Antes de deixar o lado das estrelas, Rebkaenviara uma mensagem cifrada pela rede de comunicaes de Bose, pedindo que o servio deinformaes do Crculo confirmasse que Darya Lang era uma especialista em artefatos dosConstrutores. A resposta estaria sua espera quando voltasse de Tremor.

    At ento, era melhor pr de lado as perguntas relativas a Lang.

  • Mas restavam muitas outras a serem respondidas. Hans Rebka foi interrompido por um leve toque nobrao. Abriu os olhos.

    Max Perry estava apontando para cima, na direo do Cordo Umbilical. Tremor estava l, uma veze meia maior que no incio da viagem.

    No momento, porm, refletia apenas a soturna luz vermelha de Amaran-48

    th. Mandel estava escondido atrs do planeta, e, com a proximidade da Mar de Vero, seucompanheiro menor estava chegando cada vez mais perto. Em pouco tempo no haveria mais noite,nem em Tremor, nem em Opala.Perry apontou de novo, e Rebka percebeu que no era Tremor que elemostrava. Estavam quase chegando Estao de Meio Caminho, e, surpreendentemente, o CordoUmbilical parecia terminar ali. Rebka podia ver uma interrupo, uma regio em que a estruturacilndrica terminava em um ponto azul brilhante. Estavam se movendo rapidamente em direo a esseponto; pouco depois, o prprio Tremor comeou a ser ocultado pela esfera dourada da Estao deMeio Caminho.

    Que est acontecendo? perguntou Rebka. Pensei que o Cordo Umbilical continuasse atTremor. Ele devia estar um pouco nervoso, porque do lado de fora do carro s havia o vcuo doespao; mas Perry tinha um sorriso no rosto, e certamente no parecia beira do desastre.

    E continua respondeu. Estamos nos aproximando do Guincho. Vamos ter que fazer umdesvio e tornar a nos ligar ao Cordo Umbilical do outro lado da Estao de Meio Caminho. Osviajantes podem entrar na estao, se quiserem. Ela bem equipada. Comida, acomodaes etc.

    Mas acho melhor seguirmos em frente. Se quiser, podemos visitar a Esta-

    o de Meio Caminho na volta.

    Enquanto Perry falava, o carro em que estavam viajando se desligou do cabo principal e passou poruma srie de portes e trilhos. Tremor desaparecera de vista. A Estao de Meio Caminho estava direita. Rebka podia ver uma fila de aberturas, todas suficientemente grandes para receber a cpsula.Olhou para trs, para o lugar onde o cabo principal do Cordo Umbilical desaparecia em umaluminosidade azul, apenas para reaparecer alguns quilmetros adiante.

    No estou vendo nenhum guincho.

    Nem vai ver. O segundo Max Perry estava de volta, alerta e entusiasmado. apenas umnome. Acontece que Opala e Tremor esto em uma rbita mtua quase circular, mas a distncia entreeles varia continuamente, desde um valor muito pequeno at cerca de quatrocentos quilmetros. Seriaimpossvel instalar um Cordo Umbilical permanente se no houvesse um dispositivo para aumentare diminuir o tamanho do cabo, de acordo com as necessidades do momento. isso que o Guinchofaz. Aquele buraco no espao?

  • 49 Certo. Funciona muito bem, e, durante a Mar de Vero, puxa ainda mais o cabo, de modo que elese desprende da superfcie de Tremor. E suficientemente esperto para deixar intacta a ligaocom Opala. Mas tudo tecnologia dos Construtores. No fazemos idia de para onde vai o cabo, oude como sabe o que fazer. Os humanos no se importam, contanto que possam levantar ou baixar oCordo Umbilical usando as sequncias especiais de controle.

    A relutncia de Perry em visitar Tremor havia desaparecido assim que deixaram Opala. Estavaolhando para a frente no momento em que contornaram a Estao de Meio Caminho, tornando a verTremor no cu.

    A cpsula manobrou para engatar no segundo trecho do Cordo Umbilical e eles comearam a ganharvelocidade. Logo depois, passaram pelo centro de massa do sistema de Dobelle e houve uma clarasensa-

    o de queda em direo a Tremor, com a fora centrfuga se somando gravidade de Tremor. Oplaneta escuro crescia visivelmente no cu, de minuto a minuto. Comearam a ver os detalhes dasuperfcie.

    E Rebka observou outra mudana em Perry. Sua respirao se ace-lerou. Olhava fixamente para asuperfcie de Tremor. Rebka podia apostar que o corao tambm estava batendo mais depressa.

    Que haveria l embaixo? Rebka daria muita coisa para ver Tremor atravs dos olhos de Max Perry.

    Tremor no tinha mares nem oceanos, mas possua muitos rios e pequenos lagos. Era em voltadeles que crescia a vegetao caracterstica, verde-escura e cor de ferrugem. As plantas eram emsua maioria duras e espinhentas, mas em certos lugares o solo estava coberto por exuberantessamambaias, macias e flexveis. Uma dessas reas era a margem do maior dos lagos, no longe dabase do Cordo Umbilical um lugar natural para uma pessoa se deitar e descansar. Ou paraduas pessoas encontrarem outros prazeres.

    Amy estava falando no ouvido dele, com sua voz melodiosa.

    Voc a maior autoridade neste planeta, no ?

    No exagere. Ele estava se sentin