marcuse_tecnologia e liberdade no mundo administrado _jõao_lino

14
Síntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 237 SÍNTESE - REV. DE F ILOSOFIA V. 29 N. 94 (2002): 237-250 MARCUSE: TECNOLOGIA E LIBERDADE NO MUNDO ADMINISTRADO João Carlos Lino Gomes PUC-MG, CES, ISTA Resumo: Este artigo analisa a tecnologia como um fato político na modernidade. Isto Este artigo analisa a tecnologia como um fato político na modernidade. Isto Este artigo analisa a tecnologia como um fato político na modernidade. Isto Este artigo analisa a tecnologia como um fato político na modernidade. Isto Este artigo analisa a tecnologia como um fato político na modernidade. Isto significa que houve um tempo no ocidente em que a técnica, depois de ter se significa que houve um tempo no ocidente em que a técnica, depois de ter se significa que houve um tempo no ocidente em que a técnica, depois de ter se significa que houve um tempo no ocidente em que a técnica, depois de ter se significa que houve um tempo no ocidente em que a técnica, depois de ter se transformado num instrumento fundamental para o domínio da realidade, passou, transformado num instrumento fundamental para o domínio da realidade, passou, transformado num instrumento fundamental para o domínio da realidade, passou, transformado num instrumento fundamental para o domínio da realidade, passou, transformado num instrumento fundamental para o domínio da realidade, passou, com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no próprio fim da vida com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no próprio fim da vida com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no próprio fim da vida com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no próprio fim da vida com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no próprio fim da vida humana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologia humana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologia humana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologia humana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologia humana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologia e, neste sentido, perdeu a verdadeira experiência da liberdade tanto individual e, neste sentido, perdeu a verdadeira experiência da liberdade tanto individual e, neste sentido, perdeu a verdadeira experiência da liberdade tanto individual e, neste sentido, perdeu a verdadeira experiência da liberdade tanto individual e, neste sentido, perdeu a verdadeira experiência da liberdade tanto individual quanto política. quanto política. quanto política. quanto política. quanto política. Palavras-chave: Tecnologia, Política, Liberdade, Modernidade. Tecnologia, Política, Liberdade, Modernidade. Tecnologia, Política, Liberdade, Modernidade. Tecnologia, Política, Liberdade, Modernidade. Tecnologia, Política, Liberdade, Modernidade. Abstract: This article analyses technology as a political fact in our modern society. This article analyses technology as a political fact in our modern society. This article analyses technology as a political fact in our modern society. This article analyses technology as a political fact in our modern society. This article analyses technology as a political fact in our modern society. There was a time in the western hemisphere when the technology was used as a There was a time in the western hemisphere when the technology was used as a There was a time in the western hemisphere when the technology was used as a There was a time in the western hemisphere when the technology was used as a There was a time in the western hemisphere when the technology was used as a fundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrial fundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrial fundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrial fundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrial fundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrial societies, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living in societies, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living in societies, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living in societies, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living in societies, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living in this technological world, human beings have lost the full significance of individual this technological world, human beings have lost the full significance of individual this technological world, human beings have lost the full significance of individual this technological world, human beings have lost the full significance of individual this technological world, human beings have lost the full significance of individual as well as political freedom. as well as political freedom. as well as political freedom. as well as political freedom. as well as political freedom. Key words: Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity.

Upload: vania-rodrigues

Post on 17-Dec-2015

4 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Marcuse tecnologia e liberdade

TRANSCRIPT

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 237

    SNTESE - REV. DE FILOSOFIA

    V. 29 N. 94 (2002): 237-250

    MARCUSE:

    TECNOLOGIA E LIBERDADENO MUNDO ADMINISTRADO

    Joo Carlos Lino GomesPUC-MG, CES, ISTA

    Resumo: Este artigo analisa a tecnologia como um fato poltico na modernidade. IstoEste artigo analisa a tecnologia como um fato poltico na modernidade. IstoEste artigo analisa a tecnologia como um fato poltico na modernidade. IstoEste artigo analisa a tecnologia como um fato poltico na modernidade. IstoEste artigo analisa a tecnologia como um fato poltico na modernidade. Istosignifica que houve um tempo no ocidente em que a tcnica, depois de ter sesignifica que houve um tempo no ocidente em que a tcnica, depois de ter sesignifica que houve um tempo no ocidente em que a tcnica, depois de ter sesignifica que houve um tempo no ocidente em que a tcnica, depois de ter sesignifica que houve um tempo no ocidente em que a tcnica, depois de ter setransformado num instrumento fundamental para o domnio da realidade, passou,transformado num instrumento fundamental para o domnio da realidade, passou,transformado num instrumento fundamental para o domnio da realidade, passou,transformado num instrumento fundamental para o domnio da realidade, passou,transformado num instrumento fundamental para o domnio da realidade, passou,com o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no prprio fim da vidacom o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no prprio fim da vidacom o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no prprio fim da vidacom o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no prprio fim da vidacom o surgimento das sociedades industriais, a se constituir no prprio fim da vidahumana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologiahumana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologiahumana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologiahumana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologiahumana. Desta forma, o ser humano vive hoje num mundo produzido pela tecnologiae, neste sentido, perdeu a verdadeira experincia da liberdade tanto individuale, neste sentido, perdeu a verdadeira experincia da liberdade tanto individuale, neste sentido, perdeu a verdadeira experincia da liberdade tanto individuale, neste sentido, perdeu a verdadeira experincia da liberdade tanto individuale, neste sentido, perdeu a verdadeira experincia da liberdade tanto individualquanto poltica.quanto poltica.quanto poltica.quanto poltica.quanto poltica.Palavras-chave: Tecnologia, Poltica, Liberdade, Modernidade.Tecnologia, Poltica, Liberdade, Modernidade.Tecnologia, Poltica, Liberdade, Modernidade.Tecnologia, Poltica, Liberdade, Modernidade.Tecnologia, Poltica, Liberdade, Modernidade.

    Abstract: This article analyses technology as a political fact in our modern society.This article analyses technology as a political fact in our modern society.This article analyses technology as a political fact in our modern society.This article analyses technology as a political fact in our modern society.This article analyses technology as a political fact in our modern society.There was a time in the western hemisphere when the technology was used as aThere was a time in the western hemisphere when the technology was used as aThere was a time in the western hemisphere when the technology was used as aThere was a time in the western hemisphere when the technology was used as aThere was a time in the western hemisphere when the technology was used as afundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrialfundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrialfundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrialfundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrialfundamental method to control reality. However, with the forthcoming industrialsocieties, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living insocieties, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living insocieties, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living insocieties, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living insocieties, it has become the self-objective of human being lives. Therefore, living inthis technological world, human beings have lost the full significance of individualthis technological world, human beings have lost the full significance of individualthis technological world, human beings have lost the full significance of individualthis technological world, human beings have lost the full significance of individualthis technological world, human beings have lost the full significance of individualas well as political freedom.as well as political freedom.as well as political freedom.as well as political freedom.as well as political freedom.Key words: Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity. Technology, Politics, Freedom, Modernity.

  • 238 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    Neste texto analisaremos a questo da liberdade na sociedademovida pela racionalidade instrumental. Para tanto, mostraremos como a liberdade era concebida pela filosofia grega, ecomo as concepes gregas sobre o tema perderam a fora com ocolapso da sociedade que as sustentava. Veremos que a liberdade que para os gregos significava algo que s se realizava no espao pblico torna-se, com o fim do Imprio Romano, uma experincia interior aosujeito. Em seguida mostraremos que a burguesia, na medida em queascende no ocidente, ter necessidade de exteriorizar essa liberdade emfuno do fato de se colocar como uma classe empreendedora e produ-tora do seu prprio mundo. A partir deste momento do nosso texto,apoiando-nos nas anlises de Herbert Marcuse, mostraremos que, ao setornar a classe dominante e criar um sistema que reduz tudo ao instru-mental, a burguesia estabelece uma sociedade onde ser livre significaadequar-se ao sistema vigente. Concluiremos mostrando que tanto oconceito grego de liberdade poltica quanto o moderno de liberdadeindividual ficam comprometidos na sociedade contempornea.

    IIIII

    No sculo XVIII os ideais liberais constituram uma espcie de farolpara orientar o homem ocidental, pois na Idade Mdia os homensacreditavam que viviam em um mundo hierarquizado, e esta viso eratransposta para a organizao social na conhecida diviso da socieda-de em trs ordens (o clero, a nobreza e os servos da terra). Amodernidade, que se anunciou na Renascena, comeou a quebrarcom muitas destas convices e a abrir espao para um novo horizontede valores mais afeitos viso burguesa de mundo que ento estavase formando. A Renascena, como perodo de transio, teve um papelfundamental neste processo. Para ficarmos em apenas algumas con-quistas, nesta poca podemos observar os seguintes eventos:

    1) Coprnico desenvolveu o sistema heliocntrico, mostrando que aterra no o centro do universo. Isto tem conseqncias antropolgi-cas, pois, se a morada do homem no est no centro de tudo, no setem mais a garantia de que o ser humano seja o eixo em torno do quala realidade gira. Se o homem quer ser um centro, tem de se constituircomo tal a partir de sua ao e liberdade.

    2)As grandes navegaes tambm tiveram um grande impacto sobrea cultura europia. Elas possibilitaram a ampliao do mundo conhe-

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 239

    cido, exigiram a produo de novos instrumentos para a navegao ederam aos europeus, ao encontrarem povos que no tinham o seumodelo de civilizao, o sentimento de que o mundo lhes pertencia, ea dominao de outros povos era sua tarefa histrica.

    3)J a reforma protestante operou uma ciso no seio da cristandadeocidental, ao defender uma religiosidade onde o indivduo no tem dese submeter simplesmente autoridade humana de um superior reli-gioso, mas, ao contrrio, a relao do crente com Deus passa primeiropor sua conscincia, e esta ilumina a prpria interpretao das Escri-turas. Sendo assim, cada crente pode interpret-las livremente a partirde uma relao pessoal com Deus.

    4)Tambm a inveno da imprensa outro elemento que no pode seresquecido ao falarmos sobre as conquistas da Renascena. Ela permi-tiu que as idias (muitas delas geradas a partir dos fatos descritosacima) pudessem circular com mais rapidez e mais livremente, permi-tindo um maior acesso a elas por parte de um nmero maior de pes-soas. bom lembrar que o saber medieval era em grande medidaprotegido pelos muros dos mosteiros ou, a partir do sculo XIII, dasuniversidades.

    Mas estes quatro eventos guardam alguma coisa de comum entre si.A partir deles os homens se sentem livres para se deslocar no espaoe no tempo, para orientar por si mesmos sua f e buscar novos conhe-cimentos. Esta liberdade individual, que se tornou uma das caracters-ticas mais marcantes do homem moderno, passa a ser sua mola pro-pulsora no mundo. Isto no significa que a experincia da liberdade jno tinha sido vivida como algo importante no horizonte do homemocidental. Segundo Hannah Arendt, os gregos tambm atribuam umgrande valor liberdade. S que para eles a liberdade era eminente-mente liberdade poltica, ou seja, os homens s eram livres na medidaem que podiam deixar o espao privado da casa, onde ficavam presos satisfao de suas necessidades imediatas, e alcanar o espao pbli-co da poltica, onde, atravs da palavra e da ao, eram plenamentehumanos1. Conforme a pensadora, a idia de dominao nos gregos spodia ser pensada no interior da casa, que representava a vida priva-da, onde o senhor(despots) dominava os outros membros da famlia.Esta era um centro de produo, e os que viviam presos a ela (comoos escravos e as mulheres) no eram considerados livres. Sendo assim,segundo Hannah Arendt, a liberdade no era um problema filosficopara os gregos. Esta problematizao s vai acontecer quando, com adecadncia do ideal de liberdade nos momentos finais do Imprio

    1 Ver H. ARENDT, Entre o passado e o futuro, (trad. de Mauro W. Barbosa deAlmeida), So Paulo, Perspectiva, 1979, p. 194.

  • 240 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    Romano, os homens no mais iro se sentir seguros neste mundo. Anica liberdade que vai lhes restar a fundada na vontade, no querer,na interioridade do homem2. Neste momento, a liberdade tornou-seum problema filosfico porque tornou-se problemtica. Criou-se umespao de tenso entre o querer livre do homem e um mundo que ooprime e condiciona seus atos.

    Nesse sentido, quando o mundo burgus comea sua ascenso (scu-los depois do fim do mundo grego), a burguesia vai se encontrar emuma situao complexa. Quando esta classe torna o comrcio o eixo davida do ocidente, ela tira a satisfao das necessidades do espaoprivado da casa e faz o mercado passar a exercer esta funo. Noocidente a casa vai se tornar cada vez mais um espao ntimo, escon-dido, feito nossa imagem e semelhana. O espao pblico, destaforma, invadido pela produo e pelo consumo, e o trabalho, comofonte produtora de riquezas (na Grcia e na Idade Mdia o trabalhono era tido como uma atividade nobre) passa a ser visto como aprpria essncia do homem3. A poltica, que na Grcia ocupava o espaopblico, expulsa cada vez mais deste em funo do crescimento domercado e do interesse das pessoas em cuidar mais da vida privada.Desta forma, se a poltica no se realiza mais no espao pblico, serefugia no espao estatal que, encarnado nos Estados Nacionais, tam-bm se torna uma das marcas da modernidade.

    Surge, ento, uma inovao levada a efeito pela burguesia no que dizrespeito relao dos ocidentais com a liberdade: o burgus quemtrabalha, ele quem produz (diferentemente dos nobres). Sob esteponto de vista, para um grego antigo, os modernos estavam criandouma organizao humana onde as pessoas no seriam livres, poisdeixaram o espao pblico ser invadido pela satisfao das necessida-des imediatas. J a sociedade moderna, com sua viso de mundoburguesa, v exatamente neste ponto sua vantagem com relao aosgregos. O homem moderno mostra sua fora com relao aos antigosna medida em que constri uma sociedade que consegue fazer commais eficcia coisas que j eram importantes tanto para os gregos quantopara os medievais, tais como a produo de alimentos, a administra-o das cidades, a poltica de guerras etc. Em funo disto, este ho-mem no tem tempo de se dedicar aos negcios polticos, que nostempos modernos, como vimos, se tornam negcios de Estado. Nestecontexto, fez-se necessrio o abandono do modelo grego de democra-cia (democracia direta) e a constituio da idia de democracia repre-

    2 Ibidem, pp. 192-193.3 Sobre a ascenso da economia nos tempos modernos, ver: H. ARENDT, A condiohumana, (trad. de Roberto Raposo), Rio de Janeiro, Forense Universitria/Salamandra; So Paulo: EDUSP, pp. 31-88.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 241

    sentativa (se no se tem tempo para lidar com os negcios do Estado,elegem-se pessoas para exercerem esta funo).

    Assim, vemos que, se a modernidade abre mo da liberdade polticados gregos, no podemos dizer que ela faz uma opo pela liberdadepuramente interior. A liberdade do burgus, com certeza, est funda-da em sua vontade, mas em uma vontade que se exterioriza no mundoatravs de sua ao, que medida por uma forma de racionalidadepautada to somente por critrios de eficcia. Lembrando Erich Fromm(embora discordemos de algumas concluses do autor quando analisao problema da liberdade moderna), o burgus no lutou somente paraconseguir a liberdade de... (das correntes que o prendiam naturezae prpria sociedade) mas tambm para conquistar a liberdade para...(para construir um mundo sua imagem e semelhana)4. Acreditamosque, para esta segunda forma de liberdade, foi fundamental a consti-tuio da tecnologia moderna, que permitiu ao homem no s a satis-fao de suas necessidades, mas at mesmo a criao do suprfluocomo produo necessria.

    Desta forma, a burguesia se viu diante de um mundo que cada vezmenos iria domin-la sendo que esta amplia cada vez mais o seupoder sobre ele. Galileu, quando funda a cincia moderna, reflete decerta forma esta experincia do homem burgus, no plano do pensa-mento, quando afirma que o livro da natureza est escrito em caracteresmatemticos e que, desta forma, de posse da matemtica, o homemsaberia fazer as perguntas corretas e obrigaria o mundo natural a seencaixar no modelo terico estabelecido por ele prprio. Embora ostcnicos, os artesos, que produziram muito da maquinaria moderna,no fossem efetivamente cientistas, sua funo foi a de fazer a natu-reza trabalhar a favor do homem. Onde o arado trao animal temsuas limitaes ligadas exatamente aos aspectos naturais dos animais,o arado mecnico busca superar esta deficincia. Se o tear manual limitado pela capacidade humana natural, o tear mecnico supera estalimitao. Assim, o papel da tecnologia na modernidade no est res-trito a fazer somente uma leitura diferente da realidade mas, maisradicalmente, os aparatos tecnolgicos modernos permitem, em umaescala nunca vista, a prpria produo da realidade na qual o homemvive. O cho que pisamos nas grandes cidades produzido pelamoderna tecnologia, a realidade qual temos acesso pela televiso produzida pelo aparato televisivo (a cena de um crime, a passarela dodesfile de modas etc, so construes levadas a efeito pela linguagemdos meios de comunicao). Nunca antes o homem teve tanto poder,

    4 Ver E. FROMM, O medo liberdade, (trad. de Octvio Alves Velho), Rio de Janeiro,Guanabara, 1986, pp. 90-113.

  • 242 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    tanta capacidade para construir um mundo onde ele se exteriorizassecom tanta radicalidade.

    Este poder para construir a realidade foi traduzido, com a ascenso daburguesia, na idia de progresso, na qual est inscrita a concepo deque o mundo (leia-se: o mundo burgus) caminha sempre para frentee para melhor. A sociedade que se produz a partir de tal convicono precisa de justificativas externas para sua existncia, pois ela mesmaestabeleceu o padro supostamente definitivo para julgar as socieda-des humanas, e este o da eficcia das aes. Construir a realidade deforma competente passa a ser o objetivo fundamental deste homemburgus que no depende de um nobre para trabalhar, que no pre-cisa de um superior para orientar sua apreenso das escrituras, queno cr na finitude do mundo e procura espalhar suas idias, pois temcerteza da pertinncia delas. A sociedade fundada nestas concepes,passa a reger sua vida pelos cnones de uma racionalidade que sepreocupa to somente com a necessidade de ligar meios a fins, ou seja,a racionalidade instrumental.

    Mas a ascenso desta racionalidade tem sua histria no ocidente e estase inicia quando, na idade moderna, a matemtica passa a ser consi-derada por muitos pensadores (como j vimos no exemplo de Galileu)o mtodo por excelncia para abordar a realidade. Esta matemtica deorigem rabe estava despida de elementos mgico-religiosos, conheciao nmero zero e trabalhava com os algarismos arbicos que facilita-vam enormemente o clculo. Galileu utiliza esta matemtica em suaFsica e Descartes a toma como modelo para o seu pensamento.

    Enfim, a partir do sculo XVII, a matemtica torna-se o modelo deconhecimento rigoroso, pois possibilita a simplificao da realidade apartir de sua traduo em frmulas e nmeros. Esta realidadesimplificada tambm mais fcil de ser operacionalizada e dominada.Assim, temos, de um lado, um mundo burgus que amplia seus limi-tes, que rompe com antigos valores exigindo uma nova postura dohomem diante de si e das coisas e, de outro, uma cincia que vai cadavez mais colocando o homem como um sujeito que conhece paradominar. Sem entrar na discusso sobre se so certos momentos his-tricos que geram certas mudanas cientficas ou se a cincia queproduz mudanas histricas, cremos que esta conjuno de fatoresque permitiu que a racionalidade instrumental deixasse de ser ummero instrumento para a sobrevivncia do ser humano e passasse a seconstituir no prprio modo de ser do homem moderno.

    At este ponto no h maiores problemas. Com efeito, se a culturaburguesa moderna elegeu a eficcia da racionalidade instrumental comopadro para medir o desenvolvimento de uma sociedade, pelo menosquando se aplica este padro ao desenvolvimento da Europa nos l-

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 243

    timos sculos, a melhoria da qualidade de vida, o conjunto de inven-es que facilitaram a sobrevivncia das pessoas, os avanos da medi-cina etc., so bastante eloqentes para demonstrar a fora destaracionalidade. Os problemas comeam quando percebemos que a ex-perincia do ser humano no mundo no est restrita satisfao desuas necessidades materiais. O ser humano tambm coloca questesacerca do seu destino no mundo, interroga-se sobre o sentido de suaexistncia e sobre seus reais objetivos na vida. Alm de viver nummundo de fatos, o ser humano produz valores e estes, por sua vez,permitem infinitas leituras dos prprios fatos (alm, claro, da pr-pria construo de outros). Estes valores produzidos pela humanidadeso traduzidos no apenas na trajetria do saber cientfico mas tam-bm na Arte, na Religio e na Filosofia. Faz to pouco sentido seperguntar pela utilidade de um pensamento filosfico quanto pelautilidade da fruio esttica diante de um quadro de Picasso ou daorao feita por um indivduo religioso. Estas experincias no podemser reduzidas ao aqui e agora que marca a nossa luta pela sobrevivn-cia, pois representam exatamente esta capacidade de transcender esteaqui e agora tornando-o problemtico5.

    Mas e quando este aqui e agora colocado como no problematizvel?E quando um certo modelo de sociedade busca sua legitimao a partirdos prprios fatos postos por ela? Nesse momento, toda transcendnciapassa a ser um mero universo vazio, e a nica justificativa para anossa existncia se encontra na necessidade de se reproduzir estemodelo de sociedade que reduz toda a vida do ser humano eficazligao de meios a fins. Desta forma, se algumas pessoas sofrem, porque no esto integradas corretamente ao sistema, se a economiafalha, necessrio fazer ajustes, e se existem pases onde a fome, aviolncia e a misria se fazem presentes, isto significa necessariamenteque eles no esto sendo competentes no uso da racionalidade instru-mental, que em si mesma vlida e, do ponto de vista moral, neutra.

    IIIIIIIIII

    na tentativa de compreender e criticar esta sociedade que HerbertMarcuse escreve seu livro A ideologia da sociedade industrial, queseguiremos de perto a partir de agora. Nossa questo bsica, ao nosvoltarmos para livro, remete-nos problemtica que colocamos no

    5 Ver H. MARCUSE, A ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional,(trad. de Giasone Rebu), Rio de Janeiro, Zahar, 1982, pp. 13-20.

  • 244 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    incio do nosso texto, qual seja, a da tentativa da burguesia de, aonegar o conceito de liberdade poltica dos gregos e o de uma liberdadepuramente interior do perodo helenstico da Filosofia, por exemplo,construir um modelo de liberdade individual que se manifeste concre-tamente no mundo. Marcuse, cujas anlises no livro em questo centramseu foco na sociedade moderna, nos mostra que a chamada liberdadeburguesa acaba se mostrando uma falcia para o prprio universoburgus.

    Para fazer suas reflexes, Marcuse trabalha com o conceito deunidimensional. Este, aplicado civilizao industrial, define umasociedade, um homem e uma forma de pensamento nos quais todatranscendncia foi absorvida pelo aparato tcnico-industrial movidopela racionalidade instrumental. Marcuse faz suas anlises a partir dateoria crtica da sociedade que, diferentemente da teoria tradicional,no se define apenas pelo irrestrito respeito s leis da lgica ou reduo do mundo pura formalidade dos conceitos. Em Marcuse ateoria crtica tem de ser negativa, ou seja, tem de negar o status quodominante e compreender que a experincia do homem no mundoimplica em uma constante abertura para novas realidades.

    Herbert Marcuse afirma que a teoria crtica deve se perguntar sobre adignidade da vida humana e sobre como viabilizar a satisfao dasnecessidades humanas com o mnimo de sofrimento6. Desta forma, ateoria crtica no toma o mundo que nos dado como se ele, mesmonas sociedades com alto grau de desenvolvimento, garantisse a plenarealizao do homem. Mas o pensador sabe que esta luta difcil, eisto se deve ao fato da racionalidade instrumental ter suplantado seucarter de mero instrumento e ter ganho uma conformao radical-mente poltica, vindo a controlar no s o sistema de produo, maso prprio cotidiano das pessoas na sociedade industrial. Marcuse es-creve:

    Nessa sociedade, o aparato produtivo tende a tornar-se totalitrio noquanto determina no apenas as oscilaes, habilidades e atitudessocialmente necessrias, mas tambm as necessidades e aspiraesindividuais. Oblitera, assim, a oposio entre existncia privada epblica, entre necessidades individuais e sociais. A tecnologia servepara instituir formas novas, mais eficazes e mais agradveis de contro-le e coeso social 7.

    A sociedade tecnolgica (que, como mostramos, foi se formando aolongo da Idade Moderna) e a racionalidade, que lhe inerente, ten-dem a reduzir o universo de possveis, que prprio do mundo hu-

    6 Ibidem, p. 14.7 Ibidem, p. 18.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 245

    mano, s possibilidades estabelecidas no interior do prprio sistemaconstitudo por elas. A racionalidade instrumental torna-se poltica, namedida em que se coloca como o modo de vida por excelncia.

    Mas aqui reside o maior dos problemas apresentados pela sociedadeindustrial. Quando a analisamos, a pergunta que mais nos perturba a que diz respeito ao lugar que a liberdade humana tem num mundoregido em todas as suas esferas pela racionalidade instrumental. Nos-sa questo se justifica porque a aposta num mundo livre, nos direitosdo indivduo, na igualdade e na fraternidade foram bandeiras que aburguesia levantou e que foram fundamentais em sua luta contra anobreza e na constituio de sua viso de mundo. Como, ento, asociedade tecnolgica relaciona os grilhes existentes em um mundoadministrado com a promessa burguesa de liberdade, sendo que, comoj dissemos neste texto, a prpria burguesia acaba sendo vtima destaadministrao?

    Na verdade, a estratgia simples. Para Marcuse o momento funda-mental da ascenso da racionalidade instrumental est no nascimentoda cincia moderna e da racionalidade a ela ligada. Esta racionalidade,utilizando-se da matemtica como mtodo privilegiado de conheci-mento, como j mostramos neste texto, estabelece que s real aquiloque pode ser mensurado. O mundo, desta forma, pode ser reduzido aum conjunto de frmulas, nmeros e medidas. A gua que bebemos,que atinge nossos sentidos, no tem o verdadeiro estatuto de realida-de, pois este se encontra na frmula H

    2O, que traduz a estrutura qu-

    mico-matemtica da gua. Marcuse escreve:

    A quantificao da natureza, que levou sua explicao em termosde estruturas matemticas, separou a realidade de todos os fins ineren-tes e, consequentemente, separou o verdadeiro do bem, a cincia datica. Independentemente de como a cincia possa agora definir aobjetividade da natureza e as inter-relaes entre as suas partes, elano pode conceb-la cientificamente em termos de causas finais. Eindependentemente do quo constitutivo possa ser o papel do objetocomo ponto de observao, medio e clculo, esse objeto no podedesempenhar o seu papel cientfico como agente tico, esttico oupoltico 8.

    A eficcia deste modelo de racionalidade na operacionalizao danatureza por demais conhecida. Todo o desenvolvimento da cinciamoderna est baseado nele. O problema que, segundo Marcuse,quando o aplicamos aos valores humanos, percebemos que estes noso mensurveis. Ora se se definiu como real somente aquilo que podeser medido, e os valores no se encaixam neste parmetro, o que eles

    8 Ibidem, p. 144.

  • 246 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    so? Marcuse nos diz que, diante da racionalidade instrumental, someros ideais que se constituem no plano da nossa subjetividade. Po-dem servir para garantir o convvio social, mas no tm nenhumafuno prtica9. A contradio que possa existir entre estes valores ea vida cotidiana dos homens no algo que venha a perturbar a or-dem da sociedade tecnolgica.

    Ora, neste quadro, a liberdade como um valor vai deixar de ter umimpacto na experincia cotidiana dos seres humanos. A liberdadedefendida pela civilizao tecnolgica implica, na verdade, na perdada autonomia do homem. Isto porque aquilo que esta civilizao pro-mete, tal como a liberdade de empreendimento, liberdade para o con-sumo etc., so elementos que, quanto mais perseguimos, mais contri-bumos para a reproduo do sistema10. Este no s promete satisfazeras nossas necessidades como tem a capacidade de produzir necessida-des de segunda mo, que ns tomamos por necessidades primrias11.Quando isto acontece, ficamos to presos ao sistema que pensamosserem nossos os ideais que nos foram impostos. Por exemplo: quere-mos possuir um carro, ter um bom emprego, adquirir moradia pr-pria. Acreditamos que, na medida em que possuirmos estas coisas,teremos mais liberdade diante do mundo. Mas a reside o nosso enga-no. O carro tem de ser pago dentro dos parmetros estabelecidos pelosistema, o emprego exige de ns um comportamento consonante comcertas regras socialmente estabelecidas, e o apartamento nos registrano sistema como proprietrios devedores de impostos (sem contarcom o carto de crdito, que nos garante o nosso sagrado direito denos endividarmos). A posse destes elementos, longe de nos dar maisautonomia diante da sociedade, nos obriga a ter posturas e a respon-der a expectativas que na verdade nos impedem de agir livremente enos situam como reprodutores do prprio sistema (isto se entendemosliberdade como autonomia da ao fundada numa razo crtica).

    Mas o pior que as pessoas buscam isto. Deseja-se o carro, a casa e oemprego, pois as pessoas se julgam derrotadas se no possurem estascoisas. Isto porque aceita-se que a verdadeira realizao da vida estno possuir e toma-se isto como um absoluto. por este motivo queMarcuse afirma que a tecnologia garante a racionalizao da no-li-berdade do homem12. Isto significa que a perda da liberdade do escra-vo, por exemplo, era vista por este como algo que no devia ter acon-

    9 Ibidem, p. 145.10 Ver as interessantes anlises de MARCUSE sobre como o Estado do Bem-EstarSocial impede a liberdade na medida em que estabelece um modelo de administra-o total. Ibidem, pp. 62-68.11 Ibidem, p. 26.12 Ibidem, p. 154.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 247

    tecido, como algo contra o qual ele devia lutar, na medida do possvel.Ele no via na escravido (tal como a conhecemos no ocidente) nenhu-ma possibilidade de realizao pessoal ou de felicidade. J na civiliza-o tecnolgica, como mostramos, a perda da liberdade, longe de seralgo do qual tentamos nos afastar, tornou-se nosso projeto de vida, ens tomamos este fato como alguma coisa absolutamente racional.No vemos a irracionalidade de uma sociedade que promete umaliberdade que nos negada no momento mesmo em que aderimos aoseu sistema. Podemos exemplificar o que estamos analisando no sao pensar o plano das nossas vidas pessoais. Tambm em instituiesque supostamente poderiam se constituir como lugares de contestaoda racionalidade instrumental observamos este fenmeno. Por exem-plo: qualquer religio que pretenda se impor ou sobreviver no mundoadministrado tem de se constituir acima de tudo como uma grandeempresa, sendo capaz de captar recursos e administr-los com os cri-trios de competncia ditados pelo sistema, ou seja, sua base de sus-tentao no est mais na pura f de seus membros, mas na eficciada administrao de seus comandantes.

    Pode-se tentar questionar o exemplo acima mostrando que na IdadeMdia o poderio da Igreja catlica no se estendia apenas f, mas eratambm econmico e poltico. Isto para ns no algo a ser contesta-do. O que queremos mostrar, seguindo o raciocnio de Jacques le Goff, que o que sustentava o poder poltico e econmico da igreja medi-eval estava fortemente ligado ordem do simblico. Le Goff nos mostraisto com o exemplo da crtica feita pela igreja pessoa que emprestavaa juros, o usurrio. Este era considerado um ladro de Deus, porqueseu lucro advinha do tempo entre o momento do emprstimo de umacerta quantia de dinheiro e o dia em que esta foi paga com juros. Estacondenao usura levou a Igreja a prometer toda sorte de penasinfernais aos que viviam dela. Mas era prometido tambm que se umusurrio, na hora da morte, devolvesse parte do que ganhou ilicita-mente aos legtimos representantes de Deus na terra, ele seria perdo-ado. Le Goff acredita que um grande nmero de usurrios devolviamo dinheiro, mostrando a enorme fora simblica que a religio tinhanos tempos medievais13.

    Ora, na sociedade moderna assistimos a uma inverso: a esfera simb-lica da sociedade foi reduzida esfera do fatual, ao universo da pro-duo (unidimensionalidade). Cada vez mais as religies usam a mdiae outros elementos do mundo administrado para sobreviverem e cres-

    13 Ver J. LE GOFF, A bolsa e a vida a usura na Idade Mdia, (trad. de RogrioSilveira Muoio), So Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 33-45. No momento em queescreveu este livro, Le goff afirma no ter muitas informaes sobre o nmero realde devolues de dinheiro por parte dos usurrios na hora da morte.

  • 248 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    cerem enquanto instituies. A conhecida dessacralizao da cultura,operada na modernidade, no significou a instaurao de uma culturaanti-religiosa, mas sim de um universo cultural onde a religio deixoude ser o eixo da vida das pessoas e se tornou mais uma das vriasesferas da sociedade. Antes, por mais que o espao sagrado se contra-pusesse ao profano e pudesse levar o homem a alienao do mundo,ele estava em oposio ao mundo do aqui e agora porque trazia aesperana do fim das injustias, da desigualdade e da infelicidade domundo dos fatos (pelo menos quando pensamos na religio catlicamedieval). Apesar do afastamento do mundo ao qual esta convicopodia levar os homens, havia nela um elemento que apontava o car-ter perverso do mundo fatual. Quando este mundo consegue subme-ter a religio a si, produz o que Marcuse chama de dessublimaorepressiva14. O indivduo religioso deve se inserir no mundo do aquie agora porque este, como tal, um ideal a ser buscado. Isto porquea sociedade tecnolgica pretende ter uma funo teraputica, ou seja,ela parte do princpio de que o indivduo que no se adapta a ela estnecessariamente com problemas, e a cura para estes vem da aplicaode uma srie de procedimentos que visam a adaptao das pessoas aostatus quo dominante.

    Mas outras esferas do mundo social tambm servem para demonstraresta adaptao do homem ao universo do mundo administrado. Ossindicatos, por exemplo, em muitos pases acabaram se tornando merosrgos de assistncia aos trabalhadores, e exercem este papel commais eficincia na medida em que se tornam grandes empresas. Emnossos dias podemos perceber este fenmeno nas chamadas organiza-es no-governamentais, que se tornam mais eficazes na medida emque funcionam com eficcia na arregimentao e administrao derecursos que so condio de possibilidade de suas intervenes nasociedade (isto, claro, no nos faz deixar de lado a importncia demuitas destas organizaes).

    ConclusoConclusoConclusoConclusoConcluso

    Este contexto que analisamos justifica nossas preocupaes com oproblema da liberdade numa sociedade movida pela racionalidadeinstrumental. Se aceitamos as reflexes de Hannah Arendt no que dizrespeito liberdade para os gregos (liberdade entendida como liber-

    14 Marcuse no trabalha especificamente a problemtica da religio. Ns fizemosesta opo. Sobre o conceito de dessublimao repressiva, ver H. MARCUSE, op. cit.,pp. 69-91.

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002 249

    dade poltica a ser efetivada no espao pblico da palavra e da ao),e se percebemos que este modelo negado pelos modernos (ondeliberdade liberdade individual, privada), percebemos que a socieda-de tecnolgica nega as duas formas de liberdade. Ou seja, ela se afastatanto da liberdade poltica dos gregos quanto da liberdade dapoltica15 dos liberais dos sculos XVII e XVIII. Quando a tecnologia setornou um modo de vida, passou a no precisar mais fazer um apeloa estas duas formas de liberdade, porque ela mesma se tornou poltica.Assim, ter liberdade poltica significa a insero dos indivduos numsistema que promete satisfazer todas as suas necessidades na esferapblica do mercado, e ter liberdade da poltica significa novamente ainsero num mundo que no nos permite um afastamento dos fatospara que possamos problematiz-los, pois o mundo como deveria ser tomado pelo mundo tal como ele 16.

    15 Sobre o projeto burgus de liberdade, Benjamin Constant escreve (algum tempodepois da revoluo francesa): O objetivo dos antigos era a partilha do poder socialentre todos os cidados de uma mesma ptria. Era isso que eles denominavamliberdade. O objetivo dos modernos a segurana dos privilgios privadosa segurana dos privilgios privadosa segurana dos privilgios privadosa segurana dos privilgios privadosa segurana dos privilgios privados [grifonosso]; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituies a essesprivilgios Ver B. CONSTANT, Da liberdade dos antigos comparada dos modernos,Filosofia poltica 2 (1985) 9-25.16 H. MARCUSE, op. cit., p. 134.

  • 250 Sntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002

    Bibliografia:Bibliografia:Bibliografia:Bibliografia:Bibliografia:

    ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. Trad. TelmaCosta. Porto, Afrontamento ,1984.

    ARENDT, Hannah. A condio humana. Trad. Roberto Raposo. Rio deJaneiro, Forense Universitria/Salamandra; So Paulo, EDUSP, 198l.

    ________, Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa deAlmeida. So Paulo, Perspectiva, 1979.

    CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada dosmodernos, Filosofia Poltica 2 (1985) 9-25.

    FREITAG, Brbara. A teoria crtica: ontem e hoje. So Paulo, Brasiliense,1986.

    KOYR, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Trad.Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro, Forense Universitria; SoPaulo, EDUSP, 1979.

    LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida a usura na Idade Mdia. Trad.Rogrio Silveira Muoio. So Paulo, Brasiliense, 1989.

    MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial o homemunidimensional. Trad. Giasone Rebu. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

    Endereo do Autor:Rua Doadora Eliane Stancioli, 77 / 20130.575.790 Belo Horizonte MG