marco morel - o período das regências (1831-1840) (coleção descobrindo o brasil)

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N.Cham 981.04 M839p 2003 . Autor: MoreI, Marco, 1960- Título: O período das regências (1831-18 11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 191840707 Ac.399501

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Page 1: Marco Morel - O Período das Regências (1831-1840) (Coleção Descobrindo o Brasil)

N.Cham 981.04 M839p 2003. Autor: MoreI, Marco, 1960-

Título: O período das regências (1831-18

11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111191840707 Ac.399501

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Marco Morei 981 ,OJ-.J

fV\ 8:38r2003

o Período das Regências(1 831-1 840)

St. 399501U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

11111111\11111\\111""'1""'111\ li'191840707NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Page 3: Marco Morel - O Período das Regências (1831-1840) (Coleção Descobrindo o Brasil)

BIBLIOTECA UN~~TAF?IArf2I--{}/:1-I--__ 7-

1918407"'07

Copyright © 2003, Marco Morel

Copyright © 2003 desta edição:Jorge Zahar Editor Lrda.rua México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-0226/ fax: (21) 2262-5123

e-rnail: [email protected]: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Composição eletrônica: Top'Iexros Edições Gráficas Lrda.Impressão: Geográfica Editora

Capa: Sérgio CampanteIlustração da capa: Guerrilhas, de Rugendas

Vinheta da coleção: ilustração de Debrer

CfP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, R).

Morei, Marco, 1960-M84p O período das Regências, (1831-1840) / Marco MoreI.

- Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003il.; - (Descobrindo o Brasil)

Inclui bibliografiaISBN 85-7110-746-7

I. Brasil - História - Regências, 1831-1840. I. Título.lI. Série,

03-1839COD 981.042COU 94(81)"J83111840"

Sumário

Introdução 7

A queda do primeiro imperador 10

o "carro da revolução" 20

A sociedade multifacetada 31

Rebelar e revelar 51

Autocrítica de um revolucionário 66

Cronologia 70

Referências e fontes 73

Sugestões de leitura 75

Sobre o autor 78

Ilustrações (entre pAO-41)

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Créditos das ilustrações Introdução

1. Litografia de EA. Serrano, s/d.

2. Folha de rosto do primeiro número de O República, publi-cado em 2.10.1830.

3. A liberdade guiando opovo. Óleo s/rela de Eugene Delacroix,1830.

4. Estampa atribuída a Rafael Mendes de Carvalho, 1840.Litografia de Frederico Guilherme Briggs.

5. Caricatura de Manoel Araújo Porto Alegre, 1837. Litografiade Victor Larée.

6. Caricatura de Manoel Araújo Porto Alegre, 1836.

7. Estampa anônima de 1839. Litografia de Frederico -Gui-lherme Briggs.

8. Negra ao violão, padre dançando. Aquarela, guache e tintaferrográfica, anônimo, c.1829.

9. Rua Direita, Rio de Janeiro. Gravura de Rugendas, s/d,Litografia de Engelmann.

o período das Regências (1831-1840) foi consideradocomo "o mais interessante, dramático e instrutivo daHistória do Brasil" por João Manuel Pereira da Silva,um de seus primeiros historiadores. Entretanto, não éexagero afirmar tratar-se também de um dos momen-tos históricos menos conhecidos, talvez justamentepela complexidade e variedade de sinais que nos trans-mite. Além de parecerem labirinto, as Regências en-contram-se enquadradas em determinadas abordagensque dificultam ainda mais a compreensão.

Em primeiro lugar, o período em questão foi tacha-do de caótico, desordenado, anárquico, turbulento eoutros adjetivos conexos. Este era o discurso de partedos grupos dirigentes da época, envolvidos nos emba-tes de construção do Estado nacional brasileiro e bus-cando formas de legitimar o exercício de poder e decoerção. Tal postura fixou-se na pena dos historiadoresmonarquistas do século XIX, perpetuou-se em ramosda historiografia e ainda hoje pode ser lida e ouvidacom certa freqüência.

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Num campo oposto, optou-se por enfocar as rebe-liões do período (que não foram poucas) como formade trazer à tona aspectos de conflito, resistência eopressão da sociedade brasileira. Essa perspectiva, em-bora mais promissora, ainda deixa alguns problemas.Um deles é o risco do anacronismo, quando a preocu-

pação em denunciar situações do presente pode levaros que escrevem ou contam história a "adequá-Ia" àsquestões imediatas do tempo atual, prejudicando assim

a compreensão mais ampla e específica daquelas lutas.A soma de variáveis e paradoxos pode desanimar

pesquisadores, sobretudo os que se apegam à fórmulaexplicativa prévia, bem assentada e imune a dissonân-cias, em geral visando a uma narrativa onde tudo se

encaixa às mil maravilhas ... Sem esquecer o risco desimplificação didática que encobre qualquer matéria:uma explicação mais cômoda e esquemática (ainda querepleta de boas intenções) tende a cristalizar temas quepoderiam ser problematizados e renovados; estimula a"decorebà' de nomes, datas e episódios esvaziados desentido; enfim, espanta qualquer curiosidade. Quem

ainda lembra os nomes dos sete regentes provisórios,trinos e unos?

Vistas como espécie de parênteses ou hiato entre osreinados de dois Pedros (um interregno!), as Regênciasnão raro são varridas para baixo do tapete, ficandoapenas uma ponta à mostra.

Apesar de tantos fatores, o interesse pelo períodoregencial vem crescendo, sobretudo em teses e pesqui-sas acadêmicas que ainda não tiveram repercussão jun-to a um público mais amplo e que este trabalho pro-cura, em parte, incorporar.

Meu enfoque sobre as Regências tende a concordarcom a avaliação daquele antigo historiador, mas apon-tando para caminhos diversos. Penso que o períodoregencial pode ser visto como um grande laboratóriode formulações e de práticas políticas e sociais, comoocorreu em poucos momentos na história do Brasil.Nele foram colocados em discussão (ou pelo menostrazidos à tona): monarquia constitucional, absolutis-mo, republicanismo, separatismo, federalismo, libera-lismos em várias vertentes, democracia, militarismo,catolicismo, islamismo, messianismo, xenofobia, afir-mação de nacionalidade, diferentes fórmulas de orga-nização de Estado (centralização, descentralização, po-sições intermediárias), conflitos étnicos multifaceta-dos, expressões de identidades regionais antagônicas,~ rrnas de associação até então inexistentes, vigorosasretóricas impressas ou faladas, táticas de lutas as mais

usadas ... A lista seria interminável.Essa movimentação envolveu setores ampliados,

d de escravos, índios, grupos urbanos, rurais, intelec-('U, is, camadas pobres, nobres, grandes e pequenosI I' prietários, cujos comportamentos políticos podiam11fio corresponder de maneira simétrica ao que se espera

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MARCO MOREL O PERíODO DAS REGÊNCIAS

das respectivas posições na hierarquia da sociedade. Operíodo regencial representou momento de explosãoda palavra pública em suas múltiplas (e nem sempretranqüilizadoras) possibilidades, momento de plurali-dade que, se não foi puramente "desordeiro", tambémnão significou somente expressão de posições monolí-ticas e definidas.

A importância do período regencial coloca-se por-que, dilacerante, ele foi momento-chave para a cons-trução da nação brasileira, quando, ao custo de muitasvidas e despesas, garantiu-se a independência e o cami-nho de uma ordem nacional, com determinadas carac-terísticas. A estrutura política - que se pretendiaconsolidar como Estado nacional - abalava-se pelaausência de poder centralizado na figura do monarca epela emergência de atores históricos variados com suasdemandas sociais. O Brasil recém-independente pare-cia prestes a se despedaçar, mas acabou tomando umrumo. O período regencial foi, portanto, tempo deesperanças, inseguranças e exaltações, tempo de rebel-dia e de repressão, gerando definições, cujos traçosessenciais permanecem na sociedade.

(um dos criadores do moderno liberalismo) com algu-mas sugestões, ou conselhos, sobre o destino pessoal domonarca luso-brasileiro diante de encruzilhada: a crisedinástica portuguesa e a situação brasileira, que vislum-brava momentos preocupantes.

Como se sabe, d. João VI faleceu sem esclarecer suasucessão e, legalmente, d. Pedro torna-se ao mesmotempo imperador do Brasil e herdeiro do trono dePortugal. D. Pedro, então, assume por algum tempo asduas coroas (ou seja, reunificando Brasil e Portugal sobuma mesma direção, pouco mais de três anos após aindependência) e outorga uma Constituição para oreino de Portugal nos moldes da Carta liberal e tambémoutorgada do Brasil. Em seguida, renuncia ao tronolusitano em nome de sua filha, Maria da Glória. Talmedida é contestada pelos setores tradicionalistas eidentificados com o ainda vivo Antigo Regime portu-guês: o irmão de d. Pedro, d. Miguel, arroga para si otrono, sendo então considerado usurpador por d. Pe-dro e seus partidários.

No Brasil, a monarquia recém-confirmada após aindependência enfrenta e cria hostilidade diante dasrepúblicas vizinhas, da qual a Guerra Cisplatina, en-volvendo Brasil e Argentina numa disputa pelo terri-tório do atual Uruguai, é a parte mais aguda. Aomesmo tempo, em 1826 aAssembléia Geral Legislativad Império do Brasil (Câmara dos Deputados) e o

nado começam a funcionar pela primeira vez, pro-

A queda do primeiro imperador

Nos idos de 1827 chega às mãos de d. Pedro Iuma cartado escritor e político suíço-francês Benjamin Constant

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piciando, assim, canais de expressão e. participaçãopolítica, que se estendem pela imprensa. O poderLegislativo torna-se interlocutor de peso para o mo-narca, que concentra os poderes Executivo e Mode-rador. Começa, pois, a despontar uma tensão, que seagravana.

Na carta manuscrita em francês, em cuidadosa cali-grafia, Benjamin Constant dizia sem meias palavras: d.Pedro deveria abdicar ao trono do Brasil, em nome dopríncipe herdeiro, e deixar uma Regência sábia e mo-derada governando durante sua menoridade. Dessaforma - continuava - estariam garantidos a ordem,a monarquia e o status quo, enquanto d. Pedro, queseria sempre visto como representante da tirania noBrasil (devido à comparação com as repúblicas ameri-canas), passaria a ser saudado como paladino das liber-dades na Europa.

As crises cruzavam-se na sociedade brasileira. Nocampo político, acentuava-se a queda de braço entre oLegislativo (deputados) e o poder do imperador, apro-fundada com a segunda legislatura de 1830, quandomedidas governamentais eram duramente criticadas.Pesava também a interferência de d. Pedro Ina situaçãoibérica, valendo-lhe o estigma de "português", semfalar das levas de soldados e civis portugueses que,fugidos de d. Miguel, desembarcavam no Brasil eeram acolhidos pelo monarca e mantidos pelos cofrespúblicos.

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O PERíODO DAS REGÊNCIAS

O campo econômico não era mais fácil. A inflaçãoaumentava, a carestia atingia amplos setores. O gover-no monárquico brasileiro estava cerceado em uma desuas principais fontes de renda, os impostos sobre osprodutos importados. A renovação em 1827 do Trata-do de Aliança e Amizade com a Inglaterra (nos mesmostermos de 1810) mantinha tarifa preferencial de 15%,isto é, mais baixa, para os produtos ingleses. Inconfor-mados com a desigualdade de tratamento, os demaispaíses, que tinham que pagar taxas de 24%, pressiona-ram. E acabaram obtendo vantajosa nivelação porbaixo, com a tarifa prererencial estendida a todos em1828 - o que resultava em menos arrecadação para oscofres brasileiros. A Câmara dos Deputados barravaaumentos de impostos internos. A emissão de dinheiro(e a circulação impressionante de moedas falsas decobre), além de aumentar a inflação', atingia de pertoo bolso das camadas menos privilegiadas. Acirrava-se atensão entre comerciantes (a maioria portugueses) eboa parte da população, acentuando as cores do anti-lusitanismo, inclusive nós meios populares. Havia fortetemor, referendado por tantos indícios, de reunificação

ntre Brasil e Portugal, isto é, da recolonização.Outra fonte de recursos foi a dívida externa, inau-

rurada em 1824 com empréstimos ingleses que ser .petiam rapidamente, cujo pagamento só fazia agravarus condições financeiras do país recém-independente.1\ ! ressão inglesa pelo fim do tráfico de escravos gerava

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descontentamentos entre grandes proprietários e tra-ficantes, deixando o governo espremido entre duasforças.

Além de tudo, o Brasil saíra derrotado da guerracontinental, perdendo a província Cisplatina de seuterritório e agravando o panorama: gastos bélicos, des-gaste político e moral. E as repressões internas -mortes, prisões e exílios de adversários - acumulavamrancores.

Em setembro de 1830 um episódio que poderia serbanal tornou-se centro das atenções na capital brasilei-ra, exacerbando ânimos. Nada de muito grandioso,para quem olha mais de século e meio depois, mas háeventos que se tornam descartáveis ou esquecidos apósterem monopolizado atenções e parecido importantes,pelo menos para quem os vivenciou. Marinheiros donavio militar francês Ia Caroline, ancorado na PraiaGrande (atual Niterói), desceram em terra para caçare adentraram nos terrenos do fazendeiro Manuel Fran-ça, apelidado de Cavalão. Este, que não gostava deintrusos em sua propriedade e fazendo jus ao apelido,juntou seus escravos e botou os franceses para correrdebaixo de bastonadas. Os ofendidos não deixaram pormenos, retornaram em bando armado, amarraram oproprietário brasileiro num tronco e chicotearam-no,acrescentando insultos como "brasileiro de merdà' e"mulato tem que abaixar a cabeça para os franceses",entre outras afirmações do gênero.

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O fazendeiro participava de círculos influentes e erairmão do deputado Sousa França (futuro ministro daJustiça). A agressão tornou-se escândalo, ocupando >osjornais, as conversas de rua e das casas, beirando oincidente diplomático, mobilizando ministros brasilei-ros e os representantes franceses. Num contexto deafirmação da nacionalidade, que sempre sucede asproclamações de independência, as ofensas foram con-ideradas dirigi das ao povo brasileiro como um todo.

Jornais de oposição como Aurora Fluminense, Astréa eNova Luz Brasileira tomavam o caso em mãos, exigiam'indenização e retratação pública das autoridades fran-

as. A França passou a ser vista como exemplo debrutalidade, de dominação colonial (a tomada de Algeracabara de ocorrer), de política carcomida do VelhoMundo ... Até mesmo Evaristo da Veiga parafraseouV rsos de sua autoria no Hino da Independência, reafir-111, ndo a identidade americana do Brasil e repudiandons instituições européias.

No auge dessa polêmica chegam outros navios fran-o .scs aos portos brasileiros, arvorando não mais oestandarte branco com a flor-de-lis (símbolo da mo-uur luia restaurada) e sim a bandeira azul, branca ev -nnelha da Revolução Francesa. O que ocorrera, per-1',llntavam-se as pessoas perplexas aglomerando-se no

,lis? Uma. insurreição que começara em Paris em finsti· julho de 1830, (conhecida como Três Jornadas de[ulh ), com direito a barricadas e conflitos armados,

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MARCO MOREl O PERíODO DAS REGÊ~CIAS

destronara o rei Carlos x, identificado ao despotismoe às permanências do absolutismo. O último dos Bour-bons era varrido de cena, reacendendo a flamade 1789.Em rápida manobra política, tirando o poder das"ruas", foi coroado o duque Luís Felipe de Orléans,chamado de "rei cidadão".

A mudança de referências no Brasil foi instantânea.A França passou a ser designada pela mesma oposiçãoliberal como pátria das Luzes, da civilização, e exemplode liberdade para o mundo. A assimilação Carlos X·Pedro I foi imediata. Nas cidades brasileiras ocorreramfestejos pela queda do monarca ... francês, com alusõespouco sutis ao imperador do Brasil. A oposição subiade tom.

Aliás, uma comparação com a imprensa francesa nosmeses que antecederam as Três Jornadas de Julho (jçr-nais como o moderado Le National e o neojacobino LaTribune des Departementsi deixa evidente que esta eramais prudente e contida do que viria a ser a imprensaoposicionista brasileira antes da saída de d. Pedro r.Constatação que põe em xeque análises, repetidas, deque o liberalismo da França seria mais "avançado" queo do Brasil, de que as idéias e fatos franceses teriam"influenciado" os rumos políticos do Brasil, como opróprio fim do Primeiro Reinado. Porém, o que sepercebe é que a linguagem e as proposições da imprensabrasileira nesse momento foram mais contundentes earrojadas, inclusive no que se referia à soberania do

monarca e ao direito de resistência dos povos. Ou seja,os "influenciados" acabam escolhendo, por seus pró-prios critérios e interesses, que tipo de "influência"valorizar.

Havia outros exemplos usados pelos protagonistas,dentro do quadro ibero-americano, tal como a compa-ração de Pedro I ao despotismo de Fernando VII, naEspanha. E mesmo a deposição e morte de SimonBolívar, naqueles dias, serviriam para comparaçõessugestivas: Bolívar era visto pelos liberais brasileiroscomo Libertador que se tornara déspota e traidor,enquanto os partidários do governo imperial brasileiroelogiariam a saga bolivariana por suas tentativas de

. centralizar e unificar ... as Américas. Assim, além damáscara de Carlos X, d. Pedro I foi também associadode maneira negativa a Bolívar e Fernando VII, nocontexto que resultaria em seu afastamento definitivodo Brasil.

O. imperador reúne o Conselho de Estado paraavaliar o quadro. Entre os pareceres de dez conselhei-ros, sete temiam ameaças da ordem e mesmo umarevolução no Brasil, seis atribuíram o enfraquecimentodo prestígio do monarca à imprensa de oposição ecinco jogavam a responsabilidade pelo clima políticonas Três Jornadas parisienses. Seis dos conselheirospropuseram o adiamento da próxima sessão legislativa,m tentativa de serenar os ânimos, e apenas o ministro

da Guerra, general Tomás Joaquim Pereira Valente,

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conde do Rio Pardo, defendeu o fechamento da Câ-mara dos Deputados pelo imperador, sem previsãopara reabertura.

O campo estava minado. As conspirações se acen-tuaram. Tensões, insatisfações e ressentimentos aflora-vamo Boa parte dos políticos brasileiros que emergianaqueles anos começou a conspirar contra d. Pedro I,que, por sua vez, isolava-se num círculo palacianoestreito e conservador, identificado ao campo políticochamado de "português". Entre os dias 11 e 14 demarço de 1831 eclodiram no Rio de Janeiro violentosconflitos de rua envolvendo portugueses e brasileiros,episódio conhecido como Noite das Garrafadas, doqual foi estopim, entre outros, Antonio Borges daFonseca, redator de O RepúbLico.Em Salvador, a cidadefoi tomada por embates do mesmo gênero, e até maisviolentos: as cenas dos Mata Marotos, quando comer-ciantes portugueses foram linchados nas ruas e muitascasas saqueadas, em 13 de abril (a notícia da abdicaçãoainda não chegara à Bahia), evento no qual se envolveuCipriano Barata, redator do periódico Sentinela daLiberdade que passara quase todo Primeiro Reinadocomo preso político.

D. Pedro I ainda tenta salvar a situação e convoca a19 de março, pressionado pelas manifestações, umnovo ministério, no qual predominam políticos brasi-leiros da nova geração. Mas, sentindo-se acuado, a 5 de

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O PERíODO DAS REGÊNCIAS

abril o monarca monta outro gabinete ministerial,integrado por cinco marqueses e um visconde, à ma-neira do Antigo Regime.

O campo minado era o Campo de Santana, no Riode Janeiro, sede das principais unidades militares, ondecomeçou um ajuntamento de tropas e de civis. NicolauVergueiro, senador, dirigente maçom, abandonou asreuniões secretas e foi um dos que ganhou as ruas dacidade imperial, que se enchiam de gente ávida decidadania, gente da "boa sociedade", mas muitos anô-nimos também. O general Francisco de Lima e Silva,principal nome do esquema militar do imperador,,aderiu à manifestação com seus subordinados ~liados."Tropa" e "povo", segundo as palavras da époea, julga-ram-se soberanos e empurraram o governante supremocontra a parede. Embora não fosse de todo imprevista,a situação precipitou-se. Isolado no palácio, d. Pedro I

busca a'fórmula da abdicação em nome do príncipeherdeiro, prevendo em seu lugar uma Regência quedeveria ser, retomando as palavras de Constant, sábiae moderada em defesa da ordem, da monarquia e dadinastia. O calendário marcava 7 de abril de 1831. O

ampo de Santana foi rebatizado de Campo da Honra,enquanto o agora ex-imperador desvencilhava-se daencruzilhada e zarpava com parte de sua família devolta à Europa. Começava uma inusitada - e irnpre-visível - fase da história do Brasil.

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o "carro da revolução"

Fechar o abismo da revolução e parar o carro revolu-cionário. Essas duas frases de Bernardo Pereira deVasconcelos, um dos políticos mais influentes duranteas Regências, sintetizam uma preocupação que se re-petia em discursos e clamores.

Não foi à toa que "revolução" se constituiu empalavra-chave de uma era, à qual pertence o períodoregencial brasileiro. Quando se falava em revolução emmeados do século XIX, não se tratava apenas de jogo depalavras com intuito de iludir ou reprimir, nem de umaespécie de premonição do marxismo, e, por outro lado,já não se sustentava mais o tradicional registro astro-nômico empregado para a palavra, de retorno a umponto antigo. Esse termo, polissêmico, não se limitariaà Revolução Francesa (ainda que incluindo-se nela operíodo napoleônico até 1815) e nem estaria restritoao binômio revolucionários e contra-revolucionários,sobretudo no século XIX, durante o qual as heranças ereleituras da Revolução Francesa foram múltiplas ecomplexas.

A revolução não era apenas quartelada ou transfor-mação violenta e ilegal (embora esse sentido fosseutilizado), mas aparecia como inevitável divisor deáguas na cena pública, como se tivesse vida e movimen-tos próprios. O "carro da revolução", nesse sentido,associava-se à idéia de progresso e relacionava-se, de

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O PERíODO DAS REGÊNCIAS

maneira conflituosa e complementar, com a perspecti-va de evolução. O que fazer com a revolução? Haviabasicamente três respostas: negar (os absolutistas ouultramonarquistas), completar e encerrar (vertenteconservadora do liberalismo) e continuar (vertenterevolucionária do liberalismo). Impossível era ignorá-Ia. Estavam em jogo o rumo da sociedade e suastransformações.

Nessa linha situava-se o debate em torno dessapalavra com a saída de d. Pedro I do trono. Não selimitava a uma discussão semântica.

Inspirados pelas "idéias do século", os moderadosbrasileiros viviam um paradoxo: pretendiam justificar

, 'encerrar a revolução sem jamais terem participado deuma. Em outras' palavras: aspiravam ao fim de umprocesso revolucionário que jamais deveria existir, ape-rar dos esboços de uma memória de ruptura revolucio-nária que eles tentaram criar para o Brasil em algunsmomentos, como 1831. Até o 7 de abril, o jornalAt-trora FLuminense, redigido por Evaristo da Veiga, seab tinha de pregar uma revolução. Mas, com a desti-iuição do imperador, em suas páginas começou a seentrever a revolução, não sem surpresa, aliás. A com-pnração com o exemplo francês (as Três Jornadas de[ulho de 1830) era o mote: ''A nossa revolução gloriosa,em nada teve que invejar os três dias de Paris. Os atos11 desinteresse e de generosidade, tão admirados na11,\ nça, foram reproduzidos aqui, e se encontrarão atéurre as pessoas da mais infeliz posição socia!."

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Interessante assinalar que uma revolução glorificadae celebrada pertence ao passado. Graças a sua caracte-rística nacional, o movimento tinha, para alívio doredator, encoberto os conflitos sociais. E não é poracaso a comparação com a revolução parisiense do anoanterior: servia para acentuar o caráter nacional, osinteresses mais amplos e soberanos da nação, masdeixava entrever a presença das camadas pobres na cenapública.

A revolução, ainda que inesperada, estava feita. Erapreciso encerrá-Ia o mais rápido possível. E para issonada melhor que celebrar, pois as celebrações se repor-tam ao passado ... A idéia de conclusão, de ponto finaldo processo revolucionário, transparece na insistênciadestas linhas de Evaristo da Veiga, vinte e dois dias apósa abdicação de d. Pedro I: ''A nossa revolução foicomeçada e concluída com tanta glória, e querem agoralançar-lhe nódoa?"

Qualificando a abdicação do imperador de revolu-ção, os moderados ensaiavam não enganar, mas aplicarengenhosa operação política com duas dimensões: le-gitimar a construção de uma nação nos feitios de seusinteresses e frear a possível corrida do processo revolu-cionário.

Uma quinzena antes do afastamento de d. Pedro Ido poder, Borges da Fonseca, liberal exaltado, escreviacom todas as letras: quando o governo é opressor einjusto, a resistência à opressão é direito natural. A idéia

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O PERioDO DAS REGÊNCIAS

de revolução toma, nesse caso, significado de mudançapolítica violenta praticada como direito natural pelo"povo" e tendo como causa a opressão dos governosdespóticos. Mas uma questão concreta colocava-se:havia uma revolução em curso no Brasil?

A posição de Borges da Fonseca no início das Re-gências era clara em meio às suas exclamações no jornalO República: "Porem com que Gloria, Brazileiros, fize-mos a nossa Revolução? Como com tanta facilidadenos rejeneramos? ... Mas, Considadãos, inda muito nosresta, resta a conclusão da grande obra incetada. Creioqe d'alguma sorte iei merecido o vosso conceito; é

, tempo de moderassão."Relendo tal texto, de cunosa escrita ortofônica,

destacamos três aspectos. Primeiro, a revolução aparececomo regeneração, tema bastante tradicional, seja me-táfora (a cura de um corpo doente), seja um movimen-to para restaurar antigos direitos usurpados. Ao mesmotempo, as proposições de Borges da Fonseca não sãomonolíticas, mas híbridas, pois ele enuncia também aperspectiva eminentemente moderna de que a revolu-ção não acabou. Ao contrário, ela seria um processopor começar, convicção que balizaria nos anos seguin-tes a atividade desse personagem, envolvido em rebe-liões. E o apelo à moderação parece traduzir mais asalianças daquele momento de 1831 do que exatamenteuma definição de princípios. Assim QS discu sos dos

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exaltados (e suas práticas) constituem-se num hibridis-mo entre referências tradicionais e modernas.

Cipriano Barata, que não participou diretamente dacomposição política que desaguou no 7 de abril, iriamais longe e criticaria, no Sentinela da Liberdade, osque estavam "empenhados em fazer revolução segundoa Lei - o que é absurdo - e deixaram tudo quase nomesmo estado". Para Cipriano, portanto, não haviarevolução alguma. E esta não era apenas uma questãode vocabulário.

Em pólo contrário, o jornal O Caramuru, porta-vozdos restauradores, definiu sua linha: defesa da Consti-tuição sem reformas; recusa da idéia de revolução (maisprecisamente quanto à abdicação) e fidelidade ao im-perador - sem explicar se se tratava de Pedro I jádeposto ou de Pedro II ainda não en~ronizado.

Compreender a abdicação de d. Pedro Icomo merasubstituição de governante controlada "pelas elites"seria empobrecer a dimensão desse período e de suasconseqüências, bem como a diversidade de atores his-tóricos que emergiam e se envolviam, buscando inter-vir. A saída do monarca representou enfraquecimentodo poder centralizado r exercido com peso de séculos,possibilitando explosão da palavra pública como nuncaocorrera no território (que se pretendia) brasileiro.

Já no dia 7 de abril diversos setores da sociedadesentiam essa espécie de vertigem, comportas abertas epossibilidades amplas. Evaristo, Borges da Fonseca, as

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lideranças políticas unanimemente pediam calma, poistodos estavam imersos no mesmo caldeirão e perce-biam que o estopim aceso iria longe.

Regência Trina Provisória. Para evitar o vazio de-poder,reuniram-se no Rio de Janeiro os deputados e senado-res que ali se encontravam (era recesso legislativo) comos ministros nomeados dois dias antes por d. Pedro I.

Do encontro saiu uma Regência Trina Provisória, com-posta pelo general Francisco de Lima e Silva (chefemilitar, representava "a tropa"), o senador NicolauVergueiro (atuante na sedição contra d. Pedro, encar-nava "o povo") e José Joaquim Carneiro de Campos

'(marquês de Caravelas, tradicional membro da Cortedo Primeiro Reinado). O triunvirato expressava impro-visada tentativa de arranjo político e_governou p-oucomais de 60 dias. Foi preciso dar um pequeno drible naConstituição, que previa composição diferente para aRegência em caso de ausência do monarca e menori-dade do herdeiro.

Esse governo provisório tomou algumas medidas.Decretou anistia para todos os presos, condenados ousentenciados por crimes políticos até aquela data. Ine-gável a generosidade do gesto, mas hoje podemos suporque a intenção talvez fosse esvaziar as prisões ... parapoder ocupá-Ias de novo. Pois, no final do ano, haveriacerca de 500 presos, a maioria por motivos políticos,somente na capital do Império. Foram proibidos ajun-

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tamentos públicos na capital (o medo do vulcão). Eaprovou-se lei que determinava atribuições e limites aopoder dos regentes, com nítida supremacia do Legisla-tivo: cabia a este aprovar (ou reprovar) os ministros.Quanto aos chefes do Executivo, exerceriam um poderModerador esvaziado de suas principais atribuições:nada de declarar guerra ou estado de sítio, nern denomear conselheiros ou dissolver a Assembléia. Atémesmo a distribuição de títulos de nobreza e condeco-rações foi suspensa, para desespero dos cortesãos (easpirantes). A monarquia aparentava fraqueza.

Pode-se caracterizar a prisão de Cipriano Barata emSalvador por "desordens", em 28 de abril, e sua trans-ferência para o Rio de Janeiro como o primeiro fatopolítico importante ocorrido no Brasil após a abdica-ção de d. Pedro I, com repercussão na imprensa, nosgrupos envolvidos em debates políticos nas principaiscidades (incluindo as camadas pobres), entre· os diri-gentes da Corte e até no meio dos agentes diplomáticosestrangeiros, que relataram a seus países a detenção.Tal encarceramento soava como primeiro sinal da,divisão das forças que haviam se unido no combate aoex-irnperador e apontava para divergências que se am-pliariam.

Acompanhando as mudanças no epicentro do Im-pério, pelas províncias ocorreram abalos em diferentesgraus. Na Bahia, tensão e violência social eram grandes,levando à renúncia do presidente da provín ia, Luís

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Paulo de Araújo Bastos, e do comandante das Armas,brigadeiro João Crisóstorno Calado. Também no Paráo· presidente da província, barão de Itapicurumirim,chegou a ser destituído por um motim, encabeçadopelo cônego Batista Campos, mas conseguiu voltar aocargo. Nessas duas províncias era forte a presença dosexaltados, com influência entre as camadas pobres dapopulação. A exclusão dos exaltados do poder centrale a hegemonia que seria imposta pelos moderados (emnome do combate simultâneo ao antigo "absolutismo"e à "soberania popular") acarretariam outros conflitos.

Regência Trina Permanente. Após um período de reu-niões regulares, os deputados e senadores elegeram, a17 de junho, a Regência Trina Permanente, ~ompostapelo mesmo general Lima e Silva e pelos deputados Joséda Costa Carvalho (marquês de Monte Alegre) e JoséBráulio Muniz. Na verdade, durante o período dasRegências Trinas, que duraria quatro anos e cincogabinetes ministeriais, a figura principal entre os regen-tes foi Francisco de Lima e Silva. Coloca-se, dessemodo, a existência de uma rnilitarização do poderpolítico no período monárquico, efetivada tambémpela presença de um Comandante das Armas em cadaprovíncia, nomeado pela administração central e compoder de intervenção sobre as autoridades locais - viésainda pouco explorado pelos estudos históricos. Fran-cisco de Lima e Silva (pai do futuro duque de Caxias)

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era o principal membro de influente família de chefesmilitares: ficara marcado por ter pessoalmente ordena-do o Iuzilamenro de frei Caneca e de diversos envolvi-dos na Confederação do Equador, através de comissões _militares sumárias.

Mas o ano de 1831 ainda não acabara e seria intenso:marcava o ímpeto inicial. No plano dos embates insti-tucionajs e parlamentares, o clima político de liberdadelevou a Câmara dos Deputados a aprovar uma série dereformas na Constituição que, se implementadas, se-riam as mais ousadas de todo o período monárquico,no âmbito das mudanças políticas. Os principais pon-tos previam que:

• o Império se tornaria uma monarquia federativa• o poder Moderador seria extinto• o senadores seriam eletivos e temporários• as eleições parlamentares seriam bienais• o Conselho de Estado seria extintoO federalismo, como se sabe, aparecia como contra-

ponto a uma organização centralizadora que, herdadado Estado português, permanecia e se rearciculava após

, a independência. O poder Moderador (chave-mestrada ordem política, segundo a Constituição, e da opres-são, segundo os exaltados), exercido pelo monarca,funcionava, na prática, como extensão do Executivo.O Senado vitalício e os conselheiros, por sua vez, eramuma áas bases políticas do exercício do poder imperial.E o Senado brecou essas reformas, gerando impasse.

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O PERíODO DAS REGÊNCIAS

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O personagem que se destacaria no poder Executivodurante as Regências Trinas foi o ministro da Justiça,padre Diogo Feijó, que assumiu a pasta com superpo-deres, equivalentes aos de um primeiro-ministro. De-pois seria eleito .0 primeiro regente uno em 1835(derrotando Holanda Cavalcanti de Albuquerque),num processo de eleição direta, em que todos os elei-tores aptos escolheram o governante máximo da naçãopara uma gestão de quatro anos - semelhança formalque levou alguns historiadores a qualificarem as Regên-cias de experiência republicana. Feijó, em sua persona-lidade e atuação, encarnava uma espécie de jansenismotardio, levando o governo brasileiro a confrontos coma Santa Sé, por questões como o celibato clerical (Feijóera contra, mas ao que parece obedecia-o), o podertemporal da Igreja e a relação desta com a Coroa, jáque ambas integraram o Estado brasileiro durante todoo período monárquico. O grupo do regente tentouseparar a Igreja do Vaticano.

Entre as principais transformações do período noqual Feijó foi o principal dirigente do país tivemos acriação da Guarda Nacional, uma "milícia cidadã"voltada para o fortalecimento dos proprietários e se-nhores locais e do poder central. Os motins e sediçõesespalhavam-se em proporção crescente por todo o país,em grande parte integrados por soldados das forçasregulares, nas quais o governo não confiava rnàis parareprimir as contestações.

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o Código de Processo Criminal, aprovado em1832, instituiu algumas mudanças que, teoricamente, 'tinham caráter democrático, como o papel dos juízesde paz que, escolhidos pelo eleitorado, possuíam con-siderável poder de jurisdição, Instituiu também o ha-beas-corpus e o júri popular, além de alterar a organiza-ção jurídica do país.

A primeira reforma na Constituição de 1824 reali-zou-se dez ano-sdepois de sua promulgação através doAto Adicional, que atendia a algumas demandas des-centralizadoras, como a criação de assembléias legisla-tivas com maior grau de autonomia e deliberação,contemplando, assim, poderes regionais. Entretanto,avançou pouco no plano da reforma tributária: a cen-tralização dos recursos permaneceu nas mãos do gover-no imperial graças à Lei de Responsabilidade Fiscal, de1832, que classificava as rendas em provinciais e gerais,cabendo à administração central a partilha dos recur-sos. Dessa maneira, como assinalou a historiadoraMaria de Lourdes Viana Lyra, os possíveis avançosdescentralizadores contidos no Ato Adicional ficavamesvaziados, na medida em que continuavam faltandoàs províncias os necessários recursos.

Imprensado por crises políticas, disputas entre osgrupos dirigentes e rebeliões que se alastravam, o padreFeijó renuncia à Regência, sendo sucedido em 1837pelo pernambucano (e partidário do centralismo) Pe-

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dro de Araújo Lima, futuro marquês de Olinda, Co-meça o chamado Regresso: a mão-de-ferro do Estadocentralizador e autoritário vai retendo o controle dasituação abalada, o poder político dos grandes proprie-tários de terras e escravos se acentua. Os aspectosconsiderados mais democráticos ou descentralizadoresdo Código de Processo Criminal e do Ato Adicionalseriam reinterpretados (eufemismo para sua anulação)por leis mais conservadoras.

Com a morte do ex-irnperador Pedro I como duquede Bragança em Portugal, em 1834, os restauradoresperderam sua principal bandeira. Ao mesmo tempo, otemor do "abismo da revolução" conduzia a uma apro-ximação destes com os moderados, isolando os exalta-dos. Um dos primeiros gestos do regente Araújo Limafoi beijar a mão do jovem Pedro II, restaurando assimo secular beija-mão, que andava fora de moda. Ascomendas honoríficas foram restabeleci das. O Regres-so resultaria na restauração plena (e antecipada) daautoridade monárquica constitucional em 1840: o car-ro da revolução freava.

A sociedade multifacetada

Como compreender a sociedade, alguns de seus agen-tes históricos e suas formas de participação política deum período tão curto e intenso como as Regências?

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Facetas políticas. Do ponto de vista das tendências eagrupamentos, é sabido que não havia (inclusive naEuropa ocidental) entre 1830 e 1840 partidos políticosno sentido que' se tornou corrente em fins do séculoXIX: o tipo ideal de partido-máquina, organiz~do apartir de determinados critérios que tomaram corposobretudo no século XX, não existia no período histó-rico tratado aqui. Ao mesmo tempo, '!J~~!lidaH.z-ayã.aP9~suía carga p-eJQrati:v.a,sobretudo num.momenre-deafirmação da modernidade e da. unidade na-Gio-D.aLospartidários eram-associado às-facções, ou.sejac.eram.1nlmigos- da pát:r-i-a.A ação de formar um partido eravista como divisionista, ataque à integridade da ordemnacional - ainda mais num momento de consolida-ção da independência.

Entretanto, tais características não precisam condu-zir a uma visão negativista, como se não houvessequalquer forma de organização política. O que sedenominava partido político, na primeira metade doséculo XIX diferencia-se da compreensão atual: era maisdo que "tomar um partido" e constituía-se em formas

'de agrupamento em torno de um líder, ou através depalavras de ordem e da imprensa, em .determinadosespaços associativos ou de sociabilidade e a partir deinteresses ou motivações específicas, além de se delimi-tarem por lealdades ou afinidades (intelectuais, econô-micas, culturais etc.) entre seus participantes. Tais gru-

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pos eram identificados por rótulos ou nomeações,pejorativos ou não.

Nessa perspectiva, as lógicas que estruturam as divi-sões políticas fundamentais se expressam na tripartiçãode soberanias corrente em princípios do século XIX: asoberania do rei, a soberania do povo e a soberania danação. Não se trata de uma visão estanque e rígida entretrês realidades distintas, mas da compreensão do con-ceito de soberania além do "poder de decisão", ou seja,como relações de poder, onde as decisões são resultadode uma tensão entre o governo e as forçàs políticas esociais. No período regencial brasileiro emergiram trêspartidos, cuja gestação já vinha ocorrendo: Exaltado,Moderado e Restaurador, com fronteiras políticas de-marcadas, embora mutáveis. Surgem, então, as primei-ras associações públicas de caráter explicitamente polí-tico no Brasil, como se verá a seguir.

Entre os exaltados havia proprietários rurais (não emmaioria), profissionais liberais, militares, padres, fun-cionários públicos, médicos ... Os lugares de formaçãoescolar não parecem também ser muito distintos dosdemais liberais brasileiros da época. Identificavam-seatravés de jornais espalhados em diversas províncias,como a Sentinela da Liberdade, de Cipriano Barata,Nova Luz Brasileira, de EzequieI Correa dos Santos, ORepúblico, de Borges da Fonseca e dezenas de outrostítulos. Agrupavam-se em associações mais ou menosrestritas, como as Sociedades Federais, a Grande Loja

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Brasileira e outras. Esses exaltados não participaram dopoder central- pelo menos no momento em q~e cadaum identificava-se com tal tendência. Seu ideário -de valorização da soberania popular - foi apropriadoe incorporado por camadas pobres da população, tantono meio urbano (motins dos anos 1831-1833 emvárias capitais brasileiras) como no meio rural (Caba-nagem no Pará, entre outras).

Os líderes exaltados faziam apelo à participação dascamadas pobres da população na vida pública e acena-vam contra a opressão econômica, social e étnica.Valorizavam também o federalismo e a descentraliza-ção administrativa, englobando assim algumas oligar-quias regionais. Fizeram uso de luta armada e identifi-cavam-se por determinadas palavras de ordem veicula-das pela imprensa, como "Fora os corcundas" (os dés-potas e seus aliados), "Alerta!", valorização da "Gentede cor" (mulatos, caboclos e negros livres), "Federaçãojá", "Morre aos Marotos" (ou "Portugueses malva-dos"), ''Aristrocratas patifes", "Liberdade dos povos",entre outras expressões. Apresentaram boa dose dedivergência entre seus integrantes e condenavam aescravidão em diferentes graus, variando a forma e oritmo com que propunham sua extinção, em geral deforma gradual.

Os exaltados, por fim, nem sempre assumiam essadenominação, sendo também chamados por outrosapelidos, como jurujubas e farroupilhas.

Equilíbrio, ponderação e razão pareciam compor olema dos moderados, vistos como expressão políticados interesses econômicos dos plantadores de café oude comerciantes brasileiros das províncias do Rio deJaneiro, São Paulo e Minas Gerais. É verdade que asforças políticas que predominavam nessas três provín-cias (mas não apenas nelas) identificavam-se aos mo-derados, sobretudo durante as Regências, constituindoum núcleo de poder geograficamente situado em tornoda Corte. Eram defensores de um Estado forte e cen-tralizador e, deste modo, tiveram ramificações portodas as províncias, onde seus apelidos variavam, sendoo de chimangos um dos mais espalhados pelos adver-sários.

Um aseecto peculiar na noção de moderação: ela éfreqüentemente apresentada (pelos protagonistas)como mais um comportamento do que uma posiçãopolítica demarcada. Moderação seria assim uma espé-cie de visão de mundo que permitiria posicionar-sesobre qualq .ier assunto, um critério para distinguir oque é sábio e civilizado, em harmonia com os costumese o bom senso. Como se não estivessem em jogo ganhospolíticos bem precisos. A moderação, enfim, era apre-sentada como sinônimo de razão. E uma vez que oliberalismo pode ser explicado como expressão da "so-berania da razão", ele só poderia ser... moderado. Ou-tras palavras-chave associam-se à moderação: juste mi-lieu (justo equilíbrio), liberdade limitada, monarquia

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constitucional, soberania nacional, além da recusa doabsolutismo e do despotismo e ambigüidade diante daidéia de revolução.

Foram os moderados que deram o tom do poderpolítico durante as Regências. Agruparam-se em tornoda Sociedade Defensora da Liberdade e IndependênciaNacional, que espalhou-se pelas províncias, chegandoa mais de 90 instituições. Expressavam-se em jornaiscomo Aurora Fluminense, Astréa, O Sete de Abril, OCensor Brasileiro e dezenas de outros. Entre seus inte-grantes havia ferrenhos defensores do tráfico de escra-vos, como Bernardo Pereira de Vasconcelos. Nesseperíodo não fizeram uso da luta armada, nem costu-mavam apelar para as camadas pobres da população seincorporarem ao jogo político, ainda que fosse sob abandeira da moderação.

Os restauradores compunham uma tendência cons-titucional com forte matiz antiliberal (embora semnegar totalmente o liberalismo) no Brasil das décadasde 1820 e 1830, colocando em destaque a soberaniamonárquica diante das noções de soberania nacionalou popular. O restauracionismo demandava fortaleci-

, mento de um Estado centralizador nos moldes damodernidade absolutista ou, então, ~pontava para oreforço do poder de antigos corpos sociais, como se-nhores locais, oligarquias, clero e suas clientelas. Ouseja, convocavam e incorporavam as camadas pobresnas lutas políticas. Faziam apelo à luta armada, como

na Cabanada, em Pernambuco e Alagoas, na revolta dePinto Madeira, no Ceará, e nos motins cariocas de1832-1833.

Restauração aparecia como negação da inde-pendência brasileira em 1822, quando no Rio de Ja-neiro se aludia à filiz revolução de 1640, ou seja, aopatriotismo português. Após 1831 o restauracionismopassa a ser associado ao retorno de d. Pedro Iao trono,embora nem sempre essa posição fosse explícita. E talproposta articulava-se à recuperação da monarquia emsua plenitude (enfraquecida durante as Regências) em1840.

Alguns termos do vocabulário político eram associa-dos a esse grupo, como corcundas (por metáfora, os .que se curvavam ao despotismo em geral), ou os ape-lidos aplicados aos portugueses identificados ao "abso-lutismo": marotos, pés-de-chumbo, caveiras e papele-tas. Ficou conhecido um personagem fictício, criadopor Cipriano Barata, chamado Marcos Mandinga,médico inventor de uma máquina de endireitar "cor-cundas".

Havia um traço distintivo do restauracionismo noBrasil, ao longo de diferentes conjunturas: a valoriza-ção da supremacia monárquica e da aproximação como tradicionalismo português. Essas permanências doAntigo Regime (incluindo o absolutismo ilustrado)ainda não foram devidamente dimensionadas no Brasilpós-independência. O chamado Antigo Regime era

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ainda memória viva e palpável no cotidiano de amplossetores da população, compunha identidades, determi-nava as formas de relação do alto à base da-hierarquiada sociedade, tanto urbana quanto rural. É oportunorelembrar que um dos nomes mais conhecidos dessesrestauradores era caramurus. Agrupavam-se na Socie-dade Conservadora, posteriormente transformada emSociedade Militar, e tinham jornais como O Caramuru,Diário do Rio de Janeiro e Carijó, entre outros. Desta-cavam-se entre os integrantes dessa tendência os irmãosAndrada Qosé Bonifãcio, Antonio Carlos e MartimFrancisco) .

Esses partidos não tinham conteúdo nítido de "clas-se" (na perspectiva marxista), mas seria restrito, poroutro lado, considerá-los unicamente elitistas. A pre-sença das camadas pobres nas lutas políticas era resul-tado de um jogo de mútuas tentativas demanipulaçãoe apropriação: constantemente a atividade política es-capava ao controle dos grupos privilegiados. Todospertenciam à mesma sociedade, dividida, injusta edesigual, com atritos e pontos de contato, confrontose negociações.

Como foi visto, as atividades da imprensa, das asso-ciações, dos parlamentos, das mobilizações nas ruas,nos pampas, florestas e sertões, da~ lutas armadas e dasalianças, compunham o mosaico das formas de parti-cipação política, que se incrementaram durante o pe-ríodo regencial.

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O PERíODO DAS REGÊNCIAS.

A cidade do Rio de Janeiro costuma ter espaçoprivilegiado nas narrativas sobre as Regências. Descon-tadas possíveis visões centralizadoras que se reprodu-zêrn entre historiadores, é possível explicar essa prepon-derância pela própria ordem nacional que se estrutu-rava. Cada província possuía uma capital e distritos.Estes se dividiam em cidades (os centros mais impor-tantes) e vilas. Cidades e vilas subdividiam-se interna-mente em cantões e paróquias (também chamadasfreguesias), que compunham a base das unidades ad-ministrativas, inclusive eleitorais. No topo dessa hie-rarquia estava a cidade imperial.

O Rio de Janeiro tinha a honra de ser sede da Corte,mas esse privilégio significava também limitações.Com suas trepidações e conflitos, a cidade entrelaçava-se à Corte, topo da hierarquia do poder. Além do mais,era porto comercial, centro importante do comércio demercadorias e tráfico de escravos. O Rio de Janeiro era,assim, uma cidade imperial nos trópicos em plenoséculo XIX e, portanto, palco de decisões e disputas quediziam respeito ao território nacional como um todo.

Facetas étnicas. Questões importantes do período re-gencial ainda estão por ser mais bem conhecidas. Aspopulações indígenas, por exemplo, ocupavam consi-deráveis parcelas do Brasil, apesar da pouca visibilidadeem registros históricos. Concentravam-se em gruposnumerosos na região amazônica, no Mato Grosso e no

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Sul do país (no entorno das antigas Missões), masexistiam em todas as províncias, inclusive no Rio deJaneiro. Na maior parte das províncias brasileiras ocor-reram combates envolvendo índios, quase sempre porquestões de terras, e as mortes eram freqüentes deambos os lados.

Para citar exemplos envolvendo contingentes indí-genas nas proximidades da Corte, vemos que nos pri-meiros tempos da Regência foi revogada a guerra ofen-siva (decretada em 1808 por d. João vi) contra osBotocudos da região do rio Doce (Espírito Santo eMinas Gerais) e contra os "bugres" de São Paulo. Cabeperguntar: por que tal gesto de abolir a guerra of~hsivatantos anos depois?

O decreto regencial, de 27 de outubro de 1831,eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroae também a escravidão - mas mantinha a militariza-ção de áreas indígenas, principal ponto das CartasRégias. Assim, pelo menos juridicamente, o Estadobrasileiro se eximia da responsabilidade de guerrearcontra os índios e também proibia a condição servildestes, embora os mantivesse sob tutela oficial e militar,Mas, se não havia guerra oficialmente decretada, au-mentava a violência das frentes de expansão e autori-dades locais sobre as terras dos índios, sem que fossemdevidamente c~ibidas. A mesma lei regencial afirmavaque os índios em estado de servidão seriam "desonera-dos" dela e, ainda, estendia aos índios do Brasil a

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1. O ex-imperador Pedro I,

envelhecido após a abdicação:contraste com a imagem vigorosa

habitualmente divulgada.2. Jornal O Republico, expressãodos liberais Exaltados.

3. As Três Jornadas de Julho de Paris em 1830 foram estopim para.a saída de d. Pedra I do poder.

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4 e 5. As disputas políticas e o clima de confronto durante asRegências eram temas freqüentes nas sátiras das caricaturas.Abaixo, a primeira caricatura impressa no Brasil, em 1837.

6. O padre Feijó abandona a Regência e deixa um rastro. Antesde ser eleito o primeiro regente uno, em 1835, Diogo Feijó foiministro da Justiça.

7. Bernardo Pereira de Vasconcelos, líder Moderado associadoao despotismo napoleônico, é acusado de enterrar as liberdadesconquistadas com a abdicação de d. Pedro I, em 7 de abril de 1831.

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condição jurídica dos órfãos, que deveriam ser ampa-rados pelo Estado até que aprendessem ofícios.

Em rápidas pinceladas, a Regência traçou sua posi-ção: o decreto apontava para o aprendizado de ofícioscomo forma de integração dos índios à sociedade na-cional. Ora, a preocupação em abolir a escravidão(ainda que apenas formalmente) e ao mesmo tempoconstituir mão-de-obra livre especializada atendia aque interesses? Para quem o terreno estaria sendo pre-parado?

Não tardou para que fosse apresentado. à Regênciaum plano para organização da Companhia Brasileirado Rio Doce, definida como "uma Sociedade pelaunião de Capitalistas Brazileiros e Inglezes" (a grafia deambos era com "z"), cujo objetivo era estabelecer anavegação entre o Rio de Janeiro e a foz do rio Doce eem todo o curso deste, além de promover agricultura,colonização nas terras das margens fluviais, mineração,extração de sal à beira-mar, abrir caminhos terrestresetc. O responsável pelo projeto chamava-se João DiogoSterz Stoclcexchange (o sobrenome comporta curiosaassociação de palavras). E, para evitar reações protecio-nistas em defesa do mercado interno, apareciam incor-porados como sócios da empreitada os nomes maisexpressivos da política brasileira, a fina flor dos dirigen-tes das Regências e dos liberais moderados: Evaristo daVeiga, Hermeto Carneiro Leão, Chichorro da Gama,Limpo de Abreu, Antonio Ferreira França, Miguel

8. O celibato clerical foi um dos temas em debate durante as Regências,causando atritos com o Vaticano.

k':~i!>'.~.. .-.:5..., -A cidade im erial do Rio de Janeiro, centro de uma so~iedade escr.avista

~. multifaceta:a. Os interesses e aspectos diversos da socI~dade brasileiraforam a principal causa do clima instável durante as Regenclas. ·41 .

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Calmon Du Pin e Almeida, Francisco Gê AcaiabaMontezuma, além do conde de Valença, do marquêsde Inhambupe e de outras figuras da monarquia. Re-velava-se assim um grau de articulação entre os novosdirigentes do Império e os donos do dinheiro.

Também os capitalistas ingleses se faziam presentesatravés da mineração nos arredores de Caeté, Mariana,Ouro Preto e São João d'EI Rey - áreas que, anosantes, ainda eram em parte ocupadas pelos Botocudos.A Brazilian Company (1832-1844) e a National Bra-zilian Mining Association (1833-1851) funcionavamnesses locais. Ainda que tardiamente (em relação aoapogeu da extração), a mineração era feita nas áreasonde a presença indígena até então a impedira oudificultara.

Assim, da mesma maneira que as pesquisas históri-cas destacam a influência britânica na escravidão afri-cana no Brasil, é importante também considerar comoos interesses ingleses afetaram a vida das populaçõesindígenas - deixando às autoridades ou aos proprie-tários nacionais o ônus de "limparem o terreno" e nemse dando ao trabalho, nesse caso, de elaborar grandesargumentos humanitários para a exploração das terrase da mão-de-obra indígena.

Durante as Regências cresceu ainda mais a presençado capitalismo britânico no Brasil em diversas faces:comercial, no consumo crescente de produtos manu-faturados ingleses, como também 'através do controle

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do transporte das mercadorias (exportadas e importa-das) em navios britânicos; diplomática, na pressãocontra o tráfico de escravos. Mesmo que os emprésti-mos externos tenham praticamente cessado no perío-do, a presença de empresas e dos interesses britânicosse manteve e continuou a fincar raízes.

Os anos 1830 e 1840 foram marcados por escravi-zação e tráfico de índios, por exemplo em MinasGerais. Se no caso dos escravos africanos a passagempara o trabalho livre, ainda que apenas teoricamente,pudesse ter uma conotação humanitária, no caso dosíndios a passagem da vida tribal para a inserção nomercado de trabalho representava uma violência maisevidente, dadas as resistências que muitos opunham.Nesses casos o interesse poderia ser de eliminá-Ias, jáque não se enquadravam como mão-de-ob{a. A popu-lação indígena coloca-se como protagonista históricono século XIX brasileiro: através de rebeliões (como aCabanagem paraense) e guerras, integrada a atividadese ofícios diversos nos meios urbano e rural, resistindocom energia à tomada de suas terras ou integrando-seà sociedade, sendo por ela marcada e deixando suasmarcas também. Sabe-se que atualmente a populaçãobrasileira é constituída, segundo estudos de genéticadas populações, de pelo menos um terço com origensindígenas.

Os índios também eram enquadrados como inte-grantes do "mundo natural" e, nessa condição, torna-

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ram-se objeto de pesquisas científicas em larga escala,mas apenas por estrangeiros, os viajantes naturalistas.

Era a época do primeiro graI;de inventário do "mundonatural" em escala planetária e, no Brasil das primeirasdécadas dos oitocentos, fervilharam esses repre-sentantes do mundo científico e tecnológico ocidental.

Alheio a sedições, um jovem britânico encantou-secom a natureza brasileira durante sua estada no Rio deJaneiro entre abril e julho de 1832. A bordo do navioBeagle, o futuro naturalista Charles Darwin começavaa colher dados e fazer reflexões que o levariam à suateoria da evolução das espécies. Instalado numa cháca-ra em Botafogo, quando não colhia insetos e observavapássaros, passava horas contemplando a formaçãõ·denuvens para os lados do Corcovado e, à noite, deslum-brava-se com os enxames de vaga-lumes enfeitando a

escuridão.Numa viagem para os lados de Cabo Frio, Darwin

vivenciou rápido episódio que o impressionou. Estavanuma canoa conduzida por um negro escravo alto ecorpulento quando, numa tentativa de comunicar-secom o cativo, começou a gesticular e falar com ênfase.

Foi o basta~te para que o canoeiro se encolhesse apa-vorado, supondo que seria espancado pelo viajante.Darwin ficou chocado com a postura de submissão deuma pessoa muito mais forte que ele e desabafou emseu diário: "Esse homem havia sido treinado para

suportar uma degradação mais abjeta do que a escravi-dão do animal mais indefeso."

No período regencial ocorreu verdadeira africaniza-ção do Brasil: calcula-se, por estimativa, que, dos cincomilhões de africanos trazidos para cá ao longo dequatro séculos, um milhão e meio entrou na primeirametade do século XIX. Verdade que uma das primeirasleis da Regência, exatos sete meses após a saída de d.Pedro I, determinou a abolição do tráfico de escravos,medida que visava a atender à 'pressão forte britânica,e também correspondia à consciência de parte dosdirigentes liberais brasileiros. Entretanto, apesar dosesforços da diplomacia inglesa e de parcela das lideran--ças políticas brasileiras, o tráfico ainda continuaria porduas décadas, mostrando o poder,dos grandes proprie-tários, traficantes e seus representantes.

Porém os ingleses, as elites políticas, os grandesproprietários e comerciantes não eram os únicos agen-tes históricos envolvidos na questão. Havia os própriosescravos. Sua presença na vida pública se dava dediversas maneiras, embora não fossem qualificadas, naépoca, como políticas. De forma mais visível, apareceem episódios como a Balaiada, no Maranhão e noPiauí, e na Revolta dos Malês, por exemplo, como severá adian te.

Os cativos desenvolveram inúmeras formas de resis-tência, individuais ou coletivas, como fugas, ataques,roubos ou assassinatos contra senhores e feitores, sui-

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cídios, pequenos e grandes quilombos, envolvimentoem lutas políticas não detlagradas por escravos, entreoutras. Um exemplo: 25 cativos foram legalmentecondenados e mortos em praça pública no ano de 1838por terem assassinado senhores ou feitores, sem contaros que sofriam punições fora do alcance da legislação,os que eram mortos durante perseguição e aqueles quenunca foram alcançados.

Os quilombos proliferavam em todas as'provínciasbrasileiras ao longo do século XIX e, se fossem somados,possivelmente dariam número de participantes tãoexpressivo quanto o famoso Quilombo dos Palmares.E nem sempre a relação era de hostilidade: haviaquilombplas que vendiam com certa regularidade suaprodução para mercados vizinhos. Outros assaltavame saqueavam passantes ou propriedades. Pode-se dizer,com o historiador Stuart Schwartz, que as múltiplas (eaparentemente fragmentadas) resistências escravasocorridas na primeira metade dos oitocentos, ao custode muitas vidas e sofrimentos, ainda que debeladas,constituíram forma de pressão e resultariam nas polí-,ticas emancipacionistas dos anos seguintes ou seja, nãoforam em vão.

Facetas socioculturais. Reduzir a sociedade brasileira dosanos 1830 a um binômio composto de uma minoriadominadora de senhores brancos diante de uma massade escravos é visão empobrecedora que se encontra

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superada - o que não significa, evidentemente, negaro peso decisivo do racismo e da escravidão comorelação social. Em estudo específico sobre a Bahia doinício do século XIX, a historiadora Kátia Mattosopropõe a divisão da hierarquia social em quatro grupos,por critério econômico, de prestígio social e de poder.No topo estavam altos funcionários da administraçãomonárquica (governador, ouvidores gerais, desernbar-gadores, secretários de estado e intendentes), oficiais depatente elevada, alto clero regular, grandes negociantese grandes proprietários de terra, no ramo dos engenhose da pecuária.

O segundo grupo dessa classificação incluía funcio-nários de nível médio (juízes de primeira instância,procuradores, escrivães, tabeliães, diretores de órgãospúblicos etc.), oficiais militares de nível médio, mem-bros do baixo clero, alguns proprietários rurais (sobre-tudo os do setor de subsistência), lojistas, mestres-ar-tesãos de ofícios considerados nobres (ourives, entalha-dores, entre outros), profissionais liberais diplomados(médicos e advogados que não provinham das famíliasmais ricas) e as pessoas que viviam de rendas. Essasúltimas representavam 21 % do total e majoritariamen-te se mantinham do trabalho escravo.

Faziam parte do terceiro grupo funcionários públi-cos e militares de baixo escalão, integrantes de profis-sões liberais secundárias (barbeiros, pilotos de barco,

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sangradores etc.}, artesãos, pescadores, marinheiros eos que comerciavam alimentos nas ruas (com freqüên-cia libertos). No último e quarto grupo vinham os•escravos (que compunham um terço da população),mendigos e desocupados. I

A complexidade da hierarquia social indicava estra-tégias de sobrevivência de escravos e seus descendentesque passavam pela negociação, convivência e incorpo-ração à sociedade, como as irmandades católicas denegros, os escravos de ganho do meio urbano e oaprendizado de ofícios mais complexos. Eram diversi-ficados os caminhos da alforria. Calcula-se que já emprincípios do século XIX um terço da população brasi-leira era classificada como de "pardos livres", quantida-

de que aumentaria progressivamente. Isto se refletiuinclusive na imprensa, quando apareceram jornais quediscutiam abertamente a questão racial, como O Criou-linho, O Homem de cor ou O Mulato e BrasileiroPardo,entre outros - todos, aliás, surgidos durante a Regên-cia Trina Permanente.

Uns cinco meses depois da saída de d. Pedro I do,poder, surge pela imprensa um plano de reforma agrá-

ria, lançado por Ezequiel Correia dos Santos no seujornal Nova Luz Brazileira. Chamado de Grande Fa-teusim Nacional. propunha a distribuição, pela Coroa,de terras para todas as pessoas interessadas, com prefe-rência para as camadas pobres da população, além da

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retirada das terras excessivas dos grandes proprietários,qualificados na proposta de "malvados aristocratas li-berais". Tal proposição foi duramente combatida e nãochegou sequer a ser encaminhada como proposta noParlamento. Porém a discussão pública de temas comoracismo e redistribuição de terras no cem e de umasociedade escravista mostra como se ampliavam aspossibilidades de expressão durante o período aquitratado. Não se tratava exatamente de uma "democra-cia coroada", pois a liberdade não era concessão dosgovernos, que nem sempre conseguiam seu controle,mesmo usando diferentes formas de coerção.

Portanto, o ambiente cultural transformou-se coma abdicação de d. Pedro I, representando ampliação ediversificação na esfera pública cultural e literária. Veja-se o caso do livreiro e editor francês Pierre Plancher:não vacilou diante da queda de seu protetor e, mos-trando maleabilidade, mudou o nome de seu negóciopara Tipografia Constitucional de Seignot-Plancher,abandonando em boa hora o título de Tipografia Im-perial que recebera. Passa então a acompanhar as ten-dências do momento, transformando-as em linhas edi-toriais. Publica uma série de obras relativas às novas

formas de sociabilidade, como Constituição do povomaçônico (1832) e os Annaes maçônicos jluminenses(1832), e imprime também os Estatutos da Sociedadede Educação Liberal (1833).

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~ltaAe...estud6s sistemáticos~o-nável que nesse Q1QJllentO-o~oHe-am-Fhaçã:o-do-ptlblicoieitor -~ daq.lliilltldad@---ae-impreSsOs (livros, jornais,manifestos, relatórios, poemas etc.), jlem-G~eacen tuam ake!=si4-aàe-Ele-aebates--pehí-à-ee e-a-disse-minação da palavra-rimada. Movimento que não seráestranho ao aparecimento do romantismo - a publi-cação considerada pioneira desse estilo, a revista Nich-teroy, foi lançada em Paris por um grupo de brasileirosem 1836, marcados pelo clima das Regências. Dessemodo, existe ligação entre as transformações culturaise políticas do período com o florescimento do roman-tismo.

Outro livreiro e editor que se firmou nesse contextofoi Francisco de Paula Brito, mulato (ou-seja, classifi-cado entre os pardos livres) e de origens pobres queviria a ter papel destacado na esfera pública cultural dacidade imperial, sempre envolvido em empreitadaspolíticas, associativas e literárias. Seria ele, aliás, oprimeiro e principal incentivado r da vida literária deoutro jovem pardo e pobre, Machado de Assis. Paula

.Brito sabia que a sociedade brasileira não era marcadaapenas por confrontos e crises. Em parceria com Fran-cisco Manuel da Silva (autor da pomposa música doHino Nacional), Paula Brito compôs o lundu A Mar-requinha, cuja melodia sincopada e expressões de duplosentido faziam rir, dançar e divertir ao som da viola dearame:

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Os olhos namoradoresDa engraçada iaiazinhaLogo me fazem lembrarSua doce marrequinha

Iaiã me deixeVer a marrecaSe não eu morroLeva-me à breca.

Em outras palavras: mesmo durante o período re-gencial, as pessoas não eram de mármore, nem de ferro!

Rebelar e revelar

Não por acaso, rebelar e revelar já foram uma sópalavra, As rebeliões são momentos nos quais determi-nadas práticas, propostas e agentes históricos ganhammaior visibilidade, marcam os rumos dos aconteci-mentos e imprimem presença nos registros históricos,ainda que de forma fugaz ou explosiva.

A ênfase nas rebeliões apresenta limitações, além dasjá indicadas na introdução deste livro. A maioria dessesepisódios durante as Regências ainda não foi estudadade maneira mais profunda, restando prisioneira seja davisão conservadora que enxerga apenas "desordens",seja de um certo ufanismo pela "luta popular", ou

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ainda por uma, historiografia comprometida com avalorização da nação, que aplaina, oculta ou estigma-tiza as contradições, na tentativa de compor imagemunitária e harmoniosa da sociedade nacional.

Acrescente-se a esse conjunto de questões em tornodas rebeliões regenciais outros pontos: se, por um lado,abrem portas para o conhecimento de realidades forado eixo central de poder do país, por outro correm orisco de resvalar para um prisma regionalista, com suasmanipulações e "escolhas" ligadas à elaboração de me-mórias regionais. O estudo desses movimentos contes-tatórios (embora ainda por se fazer a contento, e repletode possibilidades) pode deixar de lado o cotidiano e oritmo mais denso das relações humanas, que compõemas vidas daquela e de todas as épocas. Todavia, não sepode conhecer as Regências sem levar em conta suasrebeliões, que nos colocam no âmago de situações-li-mite da sociedade.

A separação entre rebelar e revelar foi extrema nocampo da memória histórica e da iconografia. Não nosficaram imagens da maioria dos rebeldes do período

,regencial, não só os anônimos ou pouco conhecidos,mas até mesmo os líderes. Não sabemos como eram osrostos do escravo Cosme Bento das Chagas ou dovaqueiro Raimundo Gomes, que se destacaram naBalaiada (Maranhão e Piauí) à frente de milhares dehomens em armas; dos irmãos Francisco e AntonioVinagre, da Cabanagem (Pará), que controlaram largas

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faixas territoriais e destituíram governos locais; dasdezenas de chefes de bandos armados que integraramesses dois movimentos e tantos outros como a Caba-nada (Pernambuco e Alagoas) e a Farroupilha (RioGrande do Sul e Santa Catarina); do médico FranciscoSabino Vieira, da Sabinada; de Pacífico Licutan, Ma-noel Calafate e Elesbão do Carmo, do levante dosMalês; do escravo, tropeiro e considerado "rei africano"Ventura da Mina, da Revolta das Carrancas (MinasGerais), entre muitos outros.

Como somos levados a visualizar, gravar em nossasmemórias, as rebeliões das Regências? É sugestivo notarque o registro iconográfico desses episódios, com fre-qüência, se circunscreve a dois tipos: autoridades e pai-sagens. Ordem naturalizada. As figuras de autoridadesmilitares ou civis, encarregadas da repressão ou de res-taurar o controle governamental, imprimem caracterís-tica de memória e identidade com recorte social. Taisrostos e bustos en alanado ou encasacados parecemrelegar ao purgatório as faces desconhecidas dos rebela-dos que eles capturaram ou eliminaram. As paisagens,em geral plácidas, invocam as localidades onde se de-senrolaram os acontecimentos: são como cenários semtensões, sem sociedade, onde a plasticidade ou belezaestética das vistas, árvores, águas ou imóveis é permeadacom vultos humanos em harmonia com o panorama.

Em alguns casos, para ilustrar, acrescentam-se figu-ras de época representando índios, escravos ou sertane-

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jos, por exemplo, mesmo que não envolvidos noseventos, o que pode ser uma forma de esvaziar aidentidade dos agentes históricos, atribuindo-Ihes ca-ráter geral, indistinto ou anônimo.

Além disso, existem imagens póstumas que recriamalgumas das rebeliões ou personagens, em outros con-textos e com objetivos estéticos e políticos diversos:pinturas, painéis, alegorias, esculturas ou até mesmotextos que, na verdade, são monumentos permeadospor memória regional ou nacional, ou por projetospolíticos externos à época dos movimentos, gerandoum conhecimento fortemente mediatizado em tornodestes.

Não é por acaso, também, que em meio ao espocarde motins, sedições e revoltas o caráter brasileiro foibastante discutido durante o período regencial. Ouseja, debatia-se se existiria uma propensão para docili-dade e cordialidade do povo brasileiro. De maneiramais precisa, buscava-se afirmar ou construir umaidentidade que desse conta de complexos desafios, taiscomo formar um povo e uma nação portadores de,identidade própria e, ao mesmo tempo, garantir aestabilidade da ordem social e direcionar o "carro darevolução" .

O redator da Nova Luz Brazileira, Ezequiel Correiados Santos, acenava com "revoluções terríveis e inevi-táveis, desde que a paciência de um Povo pacífico seacaba antes que se acabe a ma fé dos Governos". Isto

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é, mesmo para aqueles comprometidos com a perspec-tiva de continuar uma revolução, colocava-se esse subs-trato cultural, como se houvesse uma tradição de C?S-

rumes que caracterizasse uma índole pacífica coletiva.O todo-poderoso ministro da Justiça, Diogo Feijó,

diante dos primeiros motins que eclodiram na capitalda monarquia brasileira após a abdicação, diagnostica-va: "Esses acontecimentos, aliás funestos em suas con-seqüências, tiveram a vantagem de desenganar aospoucos facciosos e anarquistas que ainda nos incomo-dam, que o brasileiro não foi feito para a desordem,que o seu natural é o da tranqüilidade." A afirmaçãodo padre Feijó sobre tais aptidões naturais (tranqüili-dade e ordem) é instigante. Mais do que desqualificaras contestações em curso, exprime interpretação do queseria uma identidade brasileira, que se traduziria numaespécie de tradição histórica dos comportamentos co-letivos: ausência de conflitos, de guerras, e aversão arupturas.

Escrevendo do interior das prisões regenciais admi-nistradas por Feijó, Cipriano Barata levaria adiante odebate, indagando: "Que coisa seja Docilidade Brasi-leira?" E ele mesmo responderia com seu estilo mordaz:

Docilidade é a boa disposição do homem para se deixarinstruir. Gênio ou natureza dócil é aquele que abraça asdoutrinas e ensino que se lhe dá; porém, este termodocilidade aplicado hoje aos Brasileiros tem outro senti-

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do: dócil quer dizer estólido, ou tolo; homem que secontenta com tudo, que deixa ir as coisas por água abaixo... ; em uma palavra, dócil deixa dizer Brasileiro ovelhamansa, que trabalha como burro para pagar tributosdesnecessários em benefício dos satélites do governo.

A discussão, travada entre Feijó e Barata vai além dasdesavenças entre aliados que se tornaram adversárioscom a chegada de um ao poder e do outro às masmor-ras. Estava em jogo a definição de determinada identi-dade brasileira, nesse período do pós-independência,gerando questões em torno da interpretação do Brasilnos primeiros anos de construção do Estado nacional.

Já esboçada durante a independência, a concepçãoda "índole-pacífica-do-povo-brasileiro" foi afirmadacom mais ênfase durante as Regências, espraiou-se peloSegundo Reinado e se tornaria verdadeiro lugar-co-mum durante a República. Mas o certo é que oshabitantes do território que se pretendia brasileiro nãoforam todos "ovelhas mansas" durante o período re-gencial.

Três revoltas escravas. Três revoltas escravas causaramimpacto: a das Carrancas (Minas Gerais, 1833), dosMalês (Bahia, 1835) e de Manuel Congo (Rio deJaneiro, 1838). Não abalaram o escravismo, mas cau-saram inegável pânico à população não-escrava e im-primiram novos rumos à legislação repressiva, à pers-

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I,

li!

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pectiva de imigração de estrangeiros e ao debate sobremedidas para a gradual extinção do tráfico e do traba-lho escravo .

A Revolta das Carrancas aconteceu justamentequando ocorria "briga de brancos": a Revolta da Fu-maça, uma sedição civil-militar que destituiu o presi-dente da província e prendeu várias autoridades pro-vinciais partidárias do liberalismo moderado, inclusiveo vice-presidente, Bernardo Pereira de Vasconcelos.Durante dois meses (março a maio) os revoltosos ocu-param o poder na capital da província, Ouro Preto. Ossediciosos, acusados de restauradores, apontavam ossituacionistas como republicanos. Quando a situaçãoestava sob controle com o envio de tropas do Rio deJaneiro eclode um levante de dezenas de escravos dafazenda de um deputado também ligado aos modera-dos, em São Tomé das Letras: matam os familiares(inclusive crianças) e empregados da família e passama atacar fazendas vizinhas. Esse levante, liderado peloescravo tropeiro Ventura Mina, acabou sufocado edezessete cativos terminaram condenados à morte eexecutados, fora os que morreram em combate, comoo líder. Esses escravos rebelados teriam sido insufladospor outro fazendeiro da região, acusado de restaurador,mas de qualquer modo aproveitaram a brecha causadapela forte dissensão existente entre os grupos dirigentesda província mineira naquele momento.

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A Revolta dos Malês, uma das mais conhecidas,durou menos de 24 horas e é considerada como a maisimportante sublevação de escravos urbanos já ocorrida.Entre 24 e 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 cativosde origem africana tomam de assalto Salvador. Perten-ciam a várias etnias e vinham de locais diversos, mas olevante foi articulado por escravos islamizados, quesabiam ler e escrever em árabe. Não saquearam residên-cias nem atacaram famílias de proprietários e acabaramderrotados após duros embates com as forças militares.Entre as motivações dos líderes e de parte dos rebela-dos, havia o pano de fundo do jihad (guerra santa), eum dos cativos chegou a admitir, em depoimentodepois de preso, que visavam a eliminar todos osbrancos e pardos e manter escravos de outras etniascomo seus cativos. Cerca de 70 revoltosos morreramem combates pelas ruas e praias da capital baiana e pelomenos 500 foram punidos com açoites, degredos, pri-sões ou morte.

Esses dois episódios, pois, situam a lei de junho de1835, que previa pena de morte para os líderes deinsurreições escravas, caracterizando estas como oajuntamento de mais de 20 cativos que tentassem selibertar pela força.

Apesar disso, no impulso inicial da expansão cafeeirano Vale do Paraíba, 200 escravos de várias fazendas, soba liderança de Manuel Congo, rebelaram-se em 1838em Pati do Alferes (Vassouras, província do Rio de

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Janeiro). Durante cinco dias percorreram as florestasda localidade, até que foram derrotados por tropas daGuarda Nacional e do Exército comandadas por LuísAlves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias.

Cabanas, forroupilhas, balaios... O conjunto de inicia-tivas em geral associadas aos restauradores abalou oBrasil nos dois primeiros anos da Regência. Charles-Édouard Ponrois, ministro plenipotenciário da Françana capital do Império brasileiro, escreveu em outubrode 1831 ao ministro das Relações Exteriores de seupaís, conde Sebastiani, detalhada narrativa de 19 pági-nas manuscritas sobre ampla conspiração em curso noBrasil. Ele fora procurado por Francisco de HolandaCavalcanti Albuquerque (visconde de Albuquerque echefe de poderosas oligarquias), que propunha separaras províncias do Norte, como se dizia, do restante doBrasil. A França, na proposta, ficaria com uma partedo território, estendendo a fronteira da Guiana Fran-cesa até a margem esquerda do rio Amazonas. E o novoImpério, que se chamaria "do Amazonas" ou "do Equa-dor", iria da margem direita do mesmo rio passandopelas províncias do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Gran-de do Norte, Paraíba, Pernambuco eAlagoas. O gover-no francês preferiu não participar da empreitada, masos brasileiros levaram-na adiante.

Desse modo, pode-se compreender a simultaneida-de do começ,o da impressão do jornal O Caramuru no

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Rio de Janeiro, dos motins caramurus na capital doImpério em 1832, da Cabanada e da chamada revoltade Pinto Madeira no Ceará: nesses dois últimos casos,tivemos a presença ostensiva de caudilhos militaresligados aos restauradores à frente da população amoti-nada. Em primeiro lugar, verifica-se que o propaladoconsenso entre as diferentes elites quanto à unidadenacional possuía brechas e poderia ser repensado aindanos anos 1830 no Brasil. Em conseqüência, é possívelafirmar que o separatismo não era atributo exclusivodos liberais exaltados ou de tendências republicanas,como em geral a historiografia aponta. O separatismopartiu também de restauradores. É importante, aliás,discernir separatismo, federalismo e republicanismo,que não estavam necessariamente associados.

Entretanto, seria equívoco limitar a compreensão daCabanada (1832-1835, Pernambuco e Alagoas) a umamultidão de pobres fanatizados e manipulados. Semanipulação havia, poderia ser de mão dupla - etodos estavam imersos num mesmo universo de códi-gos e relações sociais. A Cabanada foi movimentobasicamente rural inicialmente capitaneado por pes-'soas ligadas aos Caramurus e que pertenciam a insti-tuições de contato estreito com as camadas pobres dapopulação: chefes militares e padres, além de certoapoio de comerciantes lusos. As primeiras colunasforam crescendo, englobando milhares de pessoas, Ín-dios e caboclos, trabalhadores pobres e também escra-

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vos que, ao final, formaram a principal base do movi-mento. As bandeiras, os discursos e os objetivos decla-rados eram ultramontanos, católicos tradicionais, ar-caicos, conservadores e absolutistas. Em seu rnessianis-mo tinham como principal alvo a reintrodução de d.Pedro Ino trono e pretendiam dizimar maçons, liberaise republicanos. Os gestos e as práticas desses contin-gentes revelavam, ao mesmo tempo, revolta contra amiséria, ataques às propriedades, luta contra escravidãoe injustiças sociais. Estabeleciam-se em arraiais, mora-vam em cabanas (daí o nome do movimento) e atua-vam em forma de guerrilha, comandados por chefes debandos armados, na mesma região onde, dois séculosantes, existiram os quilombos de PaImares.

Calcula-se que ao final de três anos de lutas naCabanada 15 mil pessoas morreram (a maioria cabanospobres) em combates, por prisão, execução e por epi-demias que devastaram os dois lados do conflito.Quanto aos rebeldes cabanos, quando escapavam daexecução imediata ou da fome que também matava,eram enviados às prisões ou alistamentos militaresforçados.

A Cabanagem (Pará, 1835-1836) envolveu, igual-mente, camadas pobres da população: pequenos lavra-dores, militares e grande quantidade de Índios e cabo-clos, além de escravos. Mas, apesar de certa semelhançana composição social com o movimento anterior, osdiscursos e ay bandeiras das lideranças que se pronun-

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ciaram no meio urbano eram marcados por críticas àcentralização do governo imperial e pela defesa docombate aos privilégios dos grupos locais. Ou seja, aliderança, nesse caso, era dos exaltados.

Em janeiro de 1835'milhares de rebeldes lideradospelo ex-rnilitar Felix Antonio Malcher, pelo redator dejornais Eduardo Angelim e pelo lavrador FranciscoVinagre ocup.aram Belém e mataram o presidente daprovíncia e o comandante das Armas, cujos corposforam arrastados pelas ruas da cidade. Desafiando eimpondo derrotas ao governo das Regências, os caba-nos ficaram no poder por mais de um ano. Declara-ram-se separados do Rio de Janeiro, mas acabaramdebelados, após cenas sangrentas de massacres. A Ca-banagem foi vista por contemporâneos, como Cipria-no Barata, como o despontar terrível e catastrófico datempestade da revolução, quando o povo, usando odireito de resistência à tirania, destruía as autoridadese as leis.

A presença dos exaltados também estampava-se naSabinada (Bahia, 1837). Desenhava-se uma linhagem

, de conspirações, motins e sedições de caráter contes-tatório na província desde fins do século XVIII, duranteas guerras de independência e no início das Regências,às vezes com os mesmos personagens. Federalismo,liberalismo radical, republicanisrno, conflitos de raça ede nacionalidade mesclavam-se em diferentes contex-tos. O movimento conhecido por Sabinada foi a última

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- e maior - expressão dessa série de lutas baianas.Durante quatro meses, a partir de 7 de novembro, osrebeldes tomaram conta de Salvador e proclamaram aBahia como Estado independente, com tendências(nem sempre explicitadas) à República. A revolta eraintegrada, inicialmente, por profissionais liberais e mi-litares que protestavam contra a centralização do poderimperial e reagiam contra a política regressista, acen-tuada com a eleição de Araújo Lima para regente uno,mas admitiam continuar integrando a unidade brasi-leira. Libertaram os escravos nascidos no Brasil queaderiram ao novo governo e exaltaram o exemplo"americano" (com destaque para o modelo político dosEstados Unidos).

Essa rebelião espalhou-se por amplos setores dasociedade, inclusive entre os pobres urbanos, e a repres-são foi desmedida, violenta: ao final, calculava-se emcinco mil o número de mortos em combates (nos doislados) e por execuções. As prisões ficaram lotadas, emcondições desumanas, e a província viveu sob interven-ção militar durante cinco anos. A Sabinada teve liga-ções com outro movimento republicano no extremodo continente, a Revolta Farroupilha ou RepúblicaRiograndense(l835-1845).

Durante dez anos o Sul do Brasil se insurgiu e aRepública, embora não aparecesse como objetivo pré-vio, foi proclamada no Rio Grande do Sul (e, maisefêmera, em Santa Catarina, a República juliana).

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Esrancieiros, caudilhos e liberais exaltados estiveram àfrente do movimento, que chegou a convocar umaAssembléia Constituinte e elaborar leis próprias. AFarroupilha, movimento rural com algumas ramifica-ções urbanas, originou-se do protesto contra a injustacarga tributária que o governo monárquico brasileiroimpunha aos produtores de charque e teve lances épi-cos e românticos, incluindo a presença do revolucio-nário italiano Giuseppe Garibaldi.

O caso mais evidente de transbordamento da ativi-dade política dos grupos urbanos e letrados para ascamadas pobres da_população, que se apropriaram dosembates políticos e sociais, levando-os adiante, foi o daBalaiada (Maranhão e Piauí, 1838-1842). Para se teruma idéia de sua extensão, calcula-se que 15 mil rebel-des foram mortos durante o episódio, sem contar osmilhares de presos - cifra que equivale a um genocídioda população das duas províncias. "Queiram, senhores,sangrar três homens em um só vaso, um branco, umcabra e um caboclo, e depois nos queiram mostrar osangue dividido de um e de outro", afirmava um dosmanifestos balaios, que assim criticava diretamente asteorias raciais em voga que serviam como forma dedominação social.

Toda a região ficou conflagrada e, apesar das tenta-tivas, as alianças entre os rebelados foram precárias:liberais exaltados como Lívio Castelo Branco, três milquilornbolas chefiados por Cosme Bento, índios, ca-

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boclos, vaqueiros, lavradores, camponeses - emboragrande parte do contingente fosse de pequenos bandosarmados, sem maior organicidade. Os rebeldes chega-ram a tomar a 'cidade de Caxias (a segunda maior doMaranhão) e foi graças a sua retomada que o chefe dastropas legalistas, o jovem coronel Luís Alves de Lima eSilva, recebeu o título de barão, chegando mais tarde aduque. Lima e Silva foi o responsável pela pacificaçãopolítica e pela repressão militar do episódio.

Nenhum momento da história do Brasil concentroutanta violência num tempo tão curto e em extensõesde terra tão largas quanto essa fase da monarquia.Violência social e política. Grupos étnicos variados,ligados pela comunidade da língua e da religião, mar-cados pelas condições de regiões diversas, tendo pelasriquezas da terra um grande entusiasmo, demonstran-do aversão ao português, mas desprezando uns aosoutros - eis a obra de três séculos de colonização, nasíntese do historiador Capistrano de Abreu. Referia- eàs vésperas da independência e poderia perfeitamentetratar do período regencial - quando tal diagnósticoencontra sua melhor expressão e, também, começa aperder sentido. A engrenagem nacional centralizadora,modernizante e defensora da ordem social, urdida poragentes históricos, incorpora e homogeneíza os multi-facetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas

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digerindo-os e assimilando os pedaços partidos, nabusca de uma nação próspera e desigual. .

Autocrítica de um revolucionário

Antonio Borges da Fonseca lamentou ter defendido atranqüilidade, ordem e moderação nos idos de abril de1831. Personagem central naqueles episódios, mergu-lhara de ponta-cabeça na Noite das Garrafadas. Foratambém o idealizador da Sociedade Defensora da In-dependência Nacional, da qual acabaria alijado. Aocontrário de outros exaltados, Borges apoiara a aliançacom os moderados, antes e depois do afastamento ded. Pedro L Arrependera-se: não fora para isso que fizeraa revolução. Daí já se pode prever o futuro participanteda Revolta Praieira de 1848 e o ferrenho oposicionistados anos 1860.

Com o despontar do Regresso e a eleição de AraújoLima para Regente, em 1837, as últimas ilusões dissi-param-se. Nessa época o jovem poeta Manoel AraújoPort~ Alegre ainda fizera uns versinhos que, musicados,

'ecoavam pelas ruas imperiais: "Viva o amor! Fora oRegresso!"

Borges da Fonseca mantinha viva a lembrança daprimeira proclamação da Regência Provisória que ce-lebrava "nossa tão necessária quanto gloriosa revolu-ção", mas ao mesmo tempo prometia "nobre conduta

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e moderação". Ele assinara embaixo. Mas seis anosdepois retratava-se publicamente da "promessa terrí-vel", quando se pretendia "dar o devido curso à revo-lução". A proclamação da Regência afirmara que arevolução de 7 de abril deveria "servir de modelo atodos os povos do mundo". Movimento que fora,como se viu, inspirado nas Três Jornadas de Julhoparisienses. Borges da Fonseca rebatia, em tom dedesabafo:

São passados seis anos depois dessa promessa terrível, eque é do desempenho a ela? O que se fez para aproveitara revolução? Míseros macacos somos nós que só.vivemospara imitar os outros, para copiarmos a Europa, como sea Europa nos aproveitasse. Assim mesmo os doutrináriosde Luís Felipe aproveitaram os três dias de julho parareformar a Carta; para condenar os ministros traidores.

Os liberais doutrinários franceses formaram umaescola política que defendia a manutenção da ordematravés de um liberalismo implementado por um Es-tado forte e centralizado r. Serviam de paradigma paramuitos dirigentes brasileiros, sobretudo os moderados.Mas Borges da Fonseca apontava para a especificidadede que, pelo menos na França, ocorrera uma revoluçãoanterior e que, mesmo em 1830, os ministros dogoverno deposto foram presos. No Brasil, nem ISSO,

lastimava.

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Três anos após essa desenganada avaliação, a anteci-pação da maioridade de Pedro II foi implementada semter sido votada pelo Legislativo (mais um drible naConstituição), no que ficou conhecido como Golpe daMaioridade. Foi uma solução ansiada por grupos diri-gentes que, assim, buscavam retomar a coesão perdida.O início do segundo Reinado equivalia à restauraçãoda plenitude monárquica, cujo prestígio estivera aba-lado durante os últimos nove anos.

A sagração e coroação de d. Pedro II foi espetáculoimpressionante na cidade imperial brasileira. Até osdiplomatas europeus - que em geral menosprezavamas festas da Corte tropical - ficaram impressionadoscom o aparato, luxo e resplendor daquele 18 de julhode 1841. Carruagens, cortejos, coches, girândolas,bandeiras, estandartes, arqueiros, todos vestidos comrequinte e ostentação num cerimonial grandioso esimetricamente executado. Ao entrar na Capela Impe-rial, a poucos metros do mar azul que resplandecia sobum céu de anil, parecendo ter sido feito por encomen-da, o jovem monarca foi seguido de perto por alguns

, objetos de forte teor simbólico. Os gentis-homens,orgulhosos, carregavam o manto de d. Pedro I, suaespada e um exemplar da Constituição do Império emsofisticada letra manuscrita.

O mesmo Manoel de Araújo Porto Alegre, futurobarão de Santo Ângelo, fora contratado para fazer ocenário e, na escada pela qual passou o pequeno impe-

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radar, havia dois leões esculpidos - representandoforça e poder.

Seguido de perto pela espada, pelo manto e pelas leisoutorgadas por seu pai, Pedro IIostentava seus própriossímbolos: outra espada (enriqueci da de brilhantes ecom seu nome gravado); cetro de ouro maciço de doismetros e meio de altura, cravejado com dois brilhantes;coroa também de ouro, ornada com pérolas e brilhan-tes; manto de veludo verde salpicado de estrelas deouro, dragões e esferas. Não apenas os cortesãos exta-siavarn-se. Do lado de fora, ocupando as praças do Riode Janeiro, uma multidão aplaudia e delirava. Umdetalhe do cerimonial: o novo monarca teve suas mãoslavadas e purificadas.

Ao mesmo tempo, a cerca de três mil quilômetrosdali, o coronel Luís Alves de Lima e Silva erguia aespada do Império contra os rebeldes da Balaiada, emsua maioria escravos, índios e pobres livres. Os cami-nhos da nação ainda seriam árduos.

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Cronologia

182212 out Aclamação de d. Pedro imperador do Brasil

1823 Fechamento da Assembléia Constituinte

1824 É outorgada a Constituição

1825 Nascimento do príncipe Pedro, herdeiro da Coroabrasileira

1826 Morte de d. João VI em PortugalComeçam a funcionar a Assembléia Geral (depu-

tados) e o Senado

1830 Três Jornadas de Julho em Paris

183112 a '4 mar Noite das Garrafadas, no Rio de Janeiro'9 mar O imperador nomeia novo ministério5 abr O imperador nomeia o ministério dos marqueses7 abr Abdicação de d. Pedro I e escolha da Regência

Trina Provisória13 abr Revolta do Mata Marotos, em Salvador5 jul Diogo Feijó é nomeado ministro da Justiça, 2 jul Sedição dos exaltados no Rio de Janeiro

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, 7 jul Escolha da Regência Trina PermanenteMotins no Rio de Janeiro, Pernambuco e outras localidades

1832 Motins no RecifeTem início em Pernambuco e nas Alagoas a Caba-

nada, que durará até 1836Câmara dos Deputados aprova reforma consritu-

cional

1833 Conflitos de rua no Rio de Janeiro contra a voltade d. Pedro I

José Bonifácio perde o cargo de tutor de d. Pedro IISedição federalista na BahiaRevoltas da Fumaça e da Carranca, ambas em

Minas Gerais

1834

ago Ato Adicional à Constituiçãoset Morte de d. Pedro I, em Portugal

1835 Tem início no Pará a Cabanagem, movimento quedurará até 1836

Feijó é eleito Regente UnoTem início no Rio Grande do Sul a Revolta Far-

roupilha, que durará até 1845Revolta dos Malês, em Salvador

1837 Feijó renuncia à Regência e é substituído por Pedrode Araújo Lima

Início do "Regresso"Tem início na Bahia a Sabinada, movimento que

durará até 1838

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1838 Tem início no Maranhão e no Piauí a Balaiada, quedurará até 1842

Revolta de Manoel Congo, no Rio de Janeiro

1839 República Juliana, em Santa Cararina

1840 Lei de Interpretação do Ato AdicionalAntecipação da maioridade de d. Pedro II/ início

do Segundo Reinado

1841 Revisão do Código de Processo Criminal

1842 Revoltas Liberais em Minas Gerais e São Paulo

1848 Revolta Praieira, em Pernambuco

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Referências e fontes

P: 7: O livro de João Manuel Pereira da Silva (1817-1894) é História do Brazil durante a menoridade deD. Pedra II (1831 a 1840), Rio de Janeiro, B.L.Garnier, 1878, z- ed., p.VII.

p. 16-18: Para comparação entre a França e o Brasil ver.Marco Morei, "Le roi, le peuple et Ia nation: rnéta-morphoses du libéralisme politique en France et auBrésil (1830-1831)", Cahiers du Brésil Contempo-rain n.23, Paris, EHESS, p. 59-75.

p. 31-39: As análises sobre os partidos foram retiradasde Marco Morei, Ia formation de l'espace publicmoderne à Rio de Janeiro (1820-1840): Opinion,acteurs et sociabilités, tese de doutorado, Paris, UFRd'Histoire, Université de Paris I, 1995, parte r.

p. 44: Charles Darwin, O Beagle na América do Sul,Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

p. 46: Stuart B. Schwartz, Segredosinternos: Engenhos eescravos na sociedade colonial, São Paulo, Compa-nhias das Letras, 1995, parte IV.

p. 47: Kátia de Q. Mattoso, Bahia século XIX. Umaprovíncia no Império, Rio de Janeiro, Nova Frontei-ra, 1992, cap.30.

p. 48: Sobre o Grande Fateusim Nacional, ver MarcelloBasile, Ezequiel Corrêa dos Santos: Um jacobino na

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Corte imperial, Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2001,p.59-61.

p. 50-51: O lundu A Marrequinha consta do CDViagem pelo Brasil: Música brasileira indicada porviajantes da primeira metade do século XIX, de AnnaMaria Kieffer, Gisela Nogueira e Edelton Gloeden,São Paulo, Akron / Ministério da Cultura, 1990.

p. 52-53: Importante esforço de levantamento icono-gráfico e de biografias de rebeldes do período regen-cial encontra-se na coleção Rebeldes Brasileiros, 24fascículos em 2.vols., São Paulo, Casa Amarela,2002.

p. 55-56: A discussão entre Feijó e Barata encontra-seem Marco Morel, Cipriano Barata na Sentinela daLiberdade, Salvador, Academia de Letras da Bahia /Assembléia Legislativa do Estado, 2001, parte III.

p. 59:Despacho de Charles-Édouard Pontois, Archivesdu Ministere des Affaires Etrangeres, Paris, vo1.13,28.9.1831.

P: 66-67: A citação de Borges da Fonseca está em ORepública, n.l, de 19 jan 1837. Os jornais do perío-do regencial citados ao longo do trabalho encon-tram-se microfilmados na Fundação Biblioteca Na-cional, Rio de Janeiro.

p. 68: As informações sobre a sagração de d. Pedro Ilforam retiradas de Lilia M. Schwarcz, As barbasdo imperador: D. Pedra JJ, um monarca nos trópicos,São Paulo, Companhia das Letras, 1999, 2a ed.,p.71-84.

Sugestões de leitura

Este livro traz análises e destaca aspectos referentes aoperíodo regencial que o autor considera importantes,sem pretensão, portanto, de fazer um inventário dosprincipais acontecimentos, interpretações ou produ-ção historiográfica. A intenção é sobretudo indicarpistas e estimular a curiosidade. A maior parte doslivros publicados sobre o período só pode ser encon-trada em bibliotecas ou sebos.

A bibliografia recente sobre as Regências em geral sedivide em dois ramos: livros didáticos ou paradidáticosque, de algum modo, contemplam o estudo dessa fasee pesquisas sobre temas específicos. Inexiste obra maisrecente e de fôlego tratando do período como um todo.

No primeiro caso, destacamos, pela qualidade, ori-ginalidade ou poder de síntese: Maria de LourdesViana Lyra, O Império em construção: Primeiro Reinadoe Regências (São Paulo, Atual, col. Discutindo a Histó-ria do Brasil, 2000); Augustin Wernet, Operíodo regen-cial (São Paulo, Global, col. História Popular, 1997, 6a

ed.): Arnaldo Fazoli Filho, O período regencial (SãoPaulo, Ática, série Princípios, 1994, 2a ed.). É impor-tante consultar os diversos verbetes (com respectiva

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bibliografia) referentes ao período em Ronaldo Vainfas(dir.), Diciondrio do Brasil imperial: 1822-1889 (Riode Janeiro, Objetiva, 2002).

Alguns dos trabalhos sobre as principais rebeliõesdas Regências: Pasquale Di Paolo, Cabanagem: A revo-lução popular na Amazônia (Belérn, Cejup, 1990, 3a

. ed.), Manuel Correia de Andrade, A Guerra dos Caba-nos (Rio de Janeiro, Conquista, 1965); Paulo CésarSouza, A Sabinada, a revolta separatista da Bahia (I 831)(São Paulo, Brasiliense, 1987); João José Reis, Rebeliãoescrava no Brasil: A história do levante dos malês (1835),(São Paulo, Brasiliense, 1987, 2a ed.), Maria JanuáriaVilela dos Santos, A Balaiada e a insurreição de escravosno Maranhão (São Paulo, Ática, 1987); Mathias Rõh-ring Assunção, "Histórias do Balaio: historiografia,memória oral e as origens da Balaiada", Revista daAssociação Brasileira de História Oral, n.l (São Paulo,1998, p.67 -89); Sandra Pesavento et alii, A RevoluçãoParroupilha: História e interpretação (Porto Alegre,Mercado Aberto, 1985); Jeanne Berrance de Castro,Milícia cidadã: A Guarda Nacional de 1831 a 1850,

, (São Paulo, Nacional, cal. Brasiliana vo1.359, 1979, 2a

ed).Dois ensaios biográficos instiganres ajudam a com-

preender o contexto e os dilemas das Regências: Mar-cello Otavio Basile, Ezequiel Corrêa dos Santos: Umjacobino da Corte imperial, mencionado na seção ante-rior; e Magda Ricci, Assombrações de um padre regente:

Diogo Antonio Feijó (1184-1843) (Campinas, Uni-camp, 2001).

Sobre o ritual de coroação de d. Pedro Ir, ver o livrode Lilia Moritz Schwarcz nesta coleção, O império emprocissão (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001).

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Sobre o autor

Marco Morel é mestre em história do Brasil pela Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, (UFRJ), doutor emhistória pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sor-bonne) e jornalista profissional. Professor do Departa-mento de História da Universidade do Estado do Riode Janeiro (Uerj), é autor, entre outros trabalhos, deFrei Caneca: Entre Marília e a Pátria (Rio de Janeiro,Ed. da FGV, 2000); Cipriano Barata na Sentinela daLiberdade (Salvador, Academia de Letras da Bahia /Assembléia Legislativa do Estado, 2001); Palavra, ima-gem epoder: O suryimento da imprensa no Brasil do séculoXIX (Rio de Janeiro, DP&A, 2003); e As transformaçõesdos espaços públicos: Imprensa, atores políticos e sociabili-dades na cidade imperial (1820-1840) (São Paulo, Hu-citec, no prelo).

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Coleção Descobrindo o Brasildireção: Celso Castro

ALGUNS VOLUMES JÁ PUBLICADOS:

Sambaqui: Arqueologia dolitoral brasileiro

Madu GasparA arte rupestre no Brasil

Madu GasparOs indios antes do Brasil

Carlos FaustoO Brasil no Império português

Janaína Amado e Luiz Carios FigueiredoO nascimento da imprensa brasileira

Isabel LustosaO período das Regências (1831-1840)

Marco MoreiO Império em procissão

Lilia Moritz SchwarczEscravidão e cidadania noBrasil monárquico

Hebe Maria MattasA fotografia no Império

Pedro Karp VasquezA Proclamação da República

Celso CastroCódigo Civil e cidadania

Keila GrinbergProcesso penal e cidadania

Paula Bajer, O Brasil dos imigrantes

Lucia Lippi OliveiraO movimento operário naPrimeira República

Claudio BatalhaA invenção do Exército brasileiro

Celso Castro

O pensamento nacionalista autoritárioBoris Fausto

Modernismo e música brasileiraElizabeth Travassos

Os intelectuais da educaçãoHelena Bomeny

Cidadania e direitos do trabalhoAngela de Castro Gomes

O Estado NovoMaria Celina D'Araujo

O sindicalismo brasileiroapós 1930

Marcelo Badaró Mattos

Partidos políticos no Brasil (1945-2000)Rogério Schmitt

A Era do RádioLia Calabre

Da Bossa Nova à TropicáliaSantuza Cambraia Naves

Ditadura militar, esquerdas e sociedadeDaniel Aarão Reis

O mundo psi no BrasilJane Russo

A modernização da imprensa(1970-2000)

Alzira Alves de AbreuPolítica externa e meio ambiente

Lílian C.s. Duarte

História do voto no BrasilJairo Nicolau

Como falam os brasileirosYonne Leite e Dinah Callou

As formas do espaço brasileiroPedro Geiger