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[ Principal ][ Biografias ][ Releituras ][ Novos escritores ] © Projeto Releituras Arnaldo Nogueira Jr 26/05/2013 - 10:40:32 Márcia Denser Menu da Autora Hell's angels Márcia Denser Os olhos têm aquela expressão vazada de maldade inocente, de suprema condescendência, como dos ídolos talhados em ouro e prata à luz das tochas, indiferentes às cerimônias e ao borbulhar das paixões e sacrifícios humanos; a macia pele do rosto de dezenove anos incompletos transparece e crepita, mas não se deixa tocar e, se o faz, o seu tato é de borracha ou vinil, porque os jovens de dezenove anos incompletos são pequenas monstruosidades portadoras do aleijão psíquico, faltando pedaços como um ombro para se chorar, um olhar atento, o gesto brusco no vácuo do antebraço consolador; os lábios congelados na frase de Peter Pan "eu sou a juventude eterna!”, a mão perpetuamente brandindo a estocada final na passagem do tempo. Um adolescente é sempre monstruoso porque desumano, assim como um deus, assim como um anjo, assim como você, Robi. Eu o conheci precisamente no dia que completava trinta anos, dirigindo amargurada meu automóvel para o analista. Pensava: o Superman também tem trinta anos — mas o fato é que ele não existe, eu sim, e muito passageiramente, pelo visto. Fisgava-me freqüentemente refletindo sobre a minha transitoriedade e a imutabilidade da natureza. Esse mesmo céu, esse mesmo crepúsculo, essa mesma intensidade de tons avermelhados e laranja que contemplei aos quinze anos, estão agora testemunhando meus trinta, inalterados, imperturbáveis, tão odiosamente imutáveis, mas, se ter consciência disso é o preço da mortalidade, eu prefiro pagá-lo a permanecer nesse estado bestialício de eternidade inanimada como as areias, os corvos, o crepúsculo, as montanhas e o mais. O que não deixa de ser putamente injusto, prosseguia pensando, quando o ronco de uma motocicleta ao lado do automóvel sobrepujou a música em FM como também os pensamentos acima descritos, além de todo o resto, o que acabou por irritar-me. Havia esquecido que deixara o vestido levantar exibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninos pingando sangue. Por segundos, foi como se estivesse me vendo lá fora, do outro lado da juventude, há dez, doze anos atrás, o sorriso entre tímido e malicioso, olhos irrequietos, inseguros, lábios naturalmente úmidos, cabelos emaranhados e elétricos como filamentos de cobre molhado e, Deus meu, que beleza! Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar os olhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor para baixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão do rapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade, espiando, sem mais nem menos, para dentro do carro, com a mesma sem cerimônia que um bebê, escondido debaixo da mesa, espiaria as calcinhas das senhoras. Devo acrescentar que, dentro de um automóvel, sinto-me tão absolutamente só e segura como no ventre materno e, além do mais, não havia notado as coxas. A bem da verdade, fiz tudo para livrar-me dele, mas o destino conspirou: Destino I: Motoca seguiu-me até vaga da zona azul e, após observar divertido cerca de dezoito manobras humilhantes e mal sucedidas, Márcia Denser - Hell's angel http://www.releituras.com/mdenser_hellsangel.asp 1 de 6 26/5/2013 10:40

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[ Principal ][ Biografias ][ Releituras ][ Novos escritores ]© Projeto ReleiturasArnaldo Nogueira Jr

26/05/2013 - 10:40:32

Márcia Denser

Menu da Autora

Hell's angels

Márcia Denser

Os olhos têm aquela expressão vazada de maldade inocente, de supremacondescendência, como dos ídolos talhados em ouro e prata à luz das tochas,indiferentes às cerimônias e ao borbulhar das paixões e sacrifícios humanos;a macia pele do rosto de dezenove anos incompletos transparece e crepita,mas não se deixa tocar e, se o faz, o seu tato é de borracha ou vinil, porqueos jovens de dezenove anos incompletos são pequenas monstruosidadesportadoras do aleijão psíquico, faltando pedaços como um ombro para sechorar, um olhar atento, o gesto brusco no vácuo do antebraço consolador;os lábios congelados na frase de Peter Pan "eu sou a juventude eterna!”, amão perpetuamente brandindo a estocada final na passagem do tempo. Umadolescente é sempre monstruoso porque desumano, assim como um deus,assim como um anjo, assim como você, Robi.

Eu o conheci precisamente no dia que completava trinta anos, dirigindoamargurada meu automóvel para o analista. Pensava: o Superman tambémtem trinta anos — mas o fato é que ele não existe, eu sim, e muitopassageiramente, pelo visto. Fisgava-me freqüentemente refletindo sobre aminha transitoriedade e a imutabilidade da natureza. Esse mesmo céu, essemesmo crepúsculo, essa mesma intensidade de tons avermelhados e laranjaque contemplei aos quinze anos, estão agora testemunhando meus trinta,inalterados, imperturbáveis, tão odiosamente imutáveis, mas, se terconsciência disso é o preço da mortalidade, eu prefiro pagá-lo a permanecernesse estado bestialício de eternidade inanimada como as areias, os corvos,o crepúsculo, as montanhas e o mais.

O que não deixa de ser putamente injusto, prosseguia pensando, quando oronco de uma motocicleta ao lado do automóvel sobrepujou a música em FMcomo também os pensamentos acima descritos, além de todo o resto, o queacabou por irritar-me. Havia esquecido que deixara o vestido levantarexibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninospingando sangue.

Por segundos, foi como se estivesse me vendo lá fora, do outro lado dajuventude, há dez, doze anos atrás, o sorriso entre tímido e malicioso, olhosirrequietos, inseguros, lábios naturalmente úmidos, cabelos emaranhados eelétricos como filamentos de cobre molhado e, Deus meu, que beleza!

Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar osolhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor parabaixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão dorapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minhamaturidade, espiando, sem mais nem menos, para dentro do carro, com amesma sem cerimônia que um bebê, escondido debaixo da mesa, espiaria ascalcinhas das senhoras.

Devo acrescentar que, dentro de um automóvel, sinto-me tão absolutamentesó e segura como no ventre materno e, além do mais, não havia notado ascoxas. A bem da verdade, fiz tudo para livrar-me dele, mas o destinoconspirou:

Destino I: Motoca seguiu-me até vaga da zona azul e, após observardivertido cerca de dezoito manobras humilhantes e mal sucedidas,

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ofereceu-se para estacionar o automóvel de madame:

Destino II: Acertou na primeira (não que fosse muito bom, ruim sou eu,especialmente se observada por crianças. Elas me põem nervosa).

Destino III: Obrigada / Você tem telefone? / Não me importa nem um poucodeixar que os homens fa . . . / Estou sem lápis / Mas quantos anos você tem?/ Oitenta e cinco. Tem caneta? / Não saberia exatamente o que fazer comvocê / (Risinho pilantra, procura pedaço de papel na carteira) / 62-3145.Tchau, tenho hora no médico / Médico? / Analista / Pra quê o psiquiatra,garota? / Analista / É. Analista / Demora pra explicar / Eu telefono / Entãotelefona / Meu nome é Robi / Wood? / O quê? / O meu é Diana. Tchau.

O tempo fluiu (como sempre) . Passaram-se duas semanas. Não paro emcasa, mas o garoto tinha um faro diabólico. Sempre me pegava nosintervalos da muda de roupa, banho, jantar e outra escapada. Enquanto issoeu: a) estava sendo perseguida por um cineasta maldito; b) batia cartascomerciais; c) fazia um tratamento dentário intensivo; d) chateava-me comos amigos no bar; e) ou seja, merdava.

Certa tarde, final de expediente no escritório, eis Robi que surge ao lado daminha escrivaninha: vamos sair? Caninos pingando sangue. Sem sabercomo, ele vencera as estruturas de aço da burocracia e, munido de crachás,credenciais de apoio e um sorriso tentador, me apanhara sobre uma IBM,dois diretores afoitos e quarenta e cinco atentos funcionários entrincheiradosna vastidão do expediente. Como se eu não tivesse coisa melhor a fazer nomundo que sair com ele. E não mesmo. Para mim a situação se afigurariaesmagadora, mas Robi era um caçador nato. De toda uma vasta multidão deadmiradores, ele se destacara surpreendendo-me na minha própria cidadela.Ele, Robi, o motoqueiro. Era incrível.

— Sente-se, sorri divertida, já termino essa carta. Mas meus dedos tremiam.Cruzar ou não as pernas? Dirigir-me como agora ao meu ? e se ele dirigir-seà mim? Teria forças psicológicas para proceder aos processos e pareceres?Então era assim que eu sobrevivia? Aquele garoto de jeans, blusão de couroe botas de montaria, sentado displicente numa das poltronas da sala deespera, transformara-se no meu inquisidor, meu juiz de alçada, meu anjovermelho, Lúcifer, o decaído, piscando de sua torre flamejante, reduzindo acinzas e ao ridículo aquele santuário simétrico da burocracia. E não tinhaconsciência disso. Tanto melhor. Consciência tenho eu, por isso as coisas dãono que dão. Ficam mal paradas. A evidente oposição do garoto ao ambienteproduzia-se como um fenômeno natural. Bastaria que ele (ou nós)acordássemos para que o encanto fosse desfeito. E as oposições são tãotentadoras , tão novela das oito, que eu já andava ansiando por uma paixãolamacenta. Na verdade, estava me atirando dentro dela. Com maiô executivoe tudo.

Saímos. No meu carro porque a moto estava quebrada. A princípio eu ofitava como se estivesse observando um formigueiro: com .curiosidadecientifica, ócio e nenhuma emoção. Puro divertimento. Dentes um tantoamarelados (feitos de doce de leite, desses com vaquinha no rótulo); olhosque jamais se fixavam no interlocutor, uma aflição mal disfarçada peloparadeiro que dar às mãos, o crânio ligeiramente achatado, mas ao contráriodo achatamento produzido pelo fórceps, bebê Robi parecia ter sido retiradoda mamãe com uma forminha de tostex, Deus me perdoe, mas era só umdefeitinho à toa; um belo nariz e um bom corte de cabelo, em camadas.Como James Dean, comparei mentalmente. Mas só mentalmente, nãoverbalizaria a comparação. Talvez ele não conhecesse James Dean. Talvezme achasse velha demais ao compará-lo a alguém antigo como James Dean.Imagino o que pensaria se exumasse coisas como George Raft ou JohnnyWeismüller, tango, Tarzã, bolero e Gilda!

Mudando um pouco de assunto, estávamos num bar. Eu bebia vodca comsuco de laranja, ele coca-cola. O problema não era propriamente a bebida,mas sim a falta de grana, explicou. A gente acostuma a não beber e também

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não fumar, vive-se de hamburgers e chiclete, é isso. Classe média altapaulistana, Robi estudava bastante, o colégio era um bocado puxado, tinhapapai, mamãe, uma governanta romena (babá, neném) e só pensava emduas coisas: garotas e moto. E isso quer dizer que não pensava. Devaneava.Flutuava. Flanava. Fluía. Ele simplesmente existia! A frase de NelsonRodrigues "toda mulher devia amar um menino de 17 anos" furou-me oventre e atingiu em cheio o, digamos, coração. Depois havia lido numarevista feminina que o homem atinge sua potência máxima dos 13 aos 22anos. Robi, com 19, estava na faixa. Ótimo. O problema nessa idade é que sepensa tanto em sexo que na hora de fazer quedamo-nos psicologicamenteimpotentes, em pânico. A realidade é tão besta comparada à fantasia, àqueleser esplendido que julgamos ser. Dos 13 aos 22 anos fazemos portanto muitaginástica. Física e mental. Mas nunca em sincronia, eis a questão. Nuncaestamos onde devíamos estar, nunca estamos em parte alguma. A eternadicotomia corpo e alma. E falando em dicotomia, a razão dos meusdevaneios, no momento, fazia observações, aliás muito interessantes, sobrea sua (dele) conceituação de bem e mal. Para ele não existia. Porque, veja,garota, o que é legal pra mim pode não ser pra você, tudo é relativo, aquelemendigo fodido ali na esquina pode estar muito mais numa boa que nós aquibebendo, meu pai se acha muito certo quando dá esmolas ou vai à porcariaduma missa, mas o mendigo pega à grana e vai comprar cachaça e o padrevai gastar o dinheiro nas corridas de cavalo e todo mundo então fica muitofeliz pensando estar certo, era só não pensar ,porra nenhuma ou atécometer um crime que ia ter um sujeito feliz, sei lá, vai que o cadávertivesse inimigos ou você própria morresse de tesão por sangue, tudo é umjogo, garota, o cara dança se não souber jogar; quer dizer, dança como meupai, puta babaca, ou o padre viciado ou o mendigo da esquina... Menos você,Robi, pensei, julgando-os todos. Arquivando-os, classificando-os para podercontrolá-los, dominá-los senão você se perde na floresta e começa a chorarde medo, neném. Fazendo voltar o filme do tempo, vi-me a mim própriadizendo aquelas s coisas. Com aquele mesmo ar de rarefeito desprezo: Mas,o coração é um. caçador solitário, sentenciei emocionada, Carson MacCullerstinha razão, e Flanery 0'Connor e todas essas irlandesas e irlandesespassionais, e até Faulkner, Scott Fitzgerald, inclusive você Robi, que nadasabe de nada, também com seu tacape envenenado.

Estávamos na época do Natal. Natal de 1976, amaldiçoado Natal fodido, maisprecisamente no dia 22 de dezembro, sexta-feira, e Robi ,tinha umproblema: a irmãzinha de quatro anos, faltava comprar o presente dela. Eledescobrira que Gugui (Maria Augusta) lhe daria umas luvas bacanérrimas demoto, tinham custado uma grana, garotinha genial a Gugui, ele precisavaretribuir, saca? Não sabia com quê.

Uma boneca, sugeri irrefletidamente. Ele fez cara de "não dá pra inventarum presente mais criativo?" Fosse então por isso, comecei a defenderveementemente a idéia: porque uma boneca voltou a ser um presentecriativo, porque é o sonho de toda garotinha, porque hoje em dia tembonecas geniais, porque era um presente que a Gugui não esqueceria,porque eu ajudaria a escolher e porque e porque. E perguntei quanto eletinha porque, além de tudo, uma boneca custa uma nota preta. Robi espiou acarteira: uma quina e dois duques. Setecentos, somei e traduzimentalmente, deve dar.

Mas a tal boneca custou. duas quinas que eu tive de ajudar a pagar.Enquanto ele pegava o dinheiro, meio sem jeito, eu argumentava:

- Fica como um presente meu para a Gugui. Sem ela saber, claro. Papai Noelé invisível. E depois, até que eu gostaria de ter uma irmãzinha só para darum presente como esse...

Ele me olhou como quem diz "não faz média. Paga e pronto". O.K. Robi;neném, vou ser clara. Para falar a verdade não ligo a mínima pra dinheiro,mas esta noite eu acho que tenho de suborná-lo. A você e à sua juventude.Pensava tudo isso enquanto ele guiava sem destino (a boneca no banco detrás), perdidos no trânsito pesado daquela cidade cheia de luzes, vozes

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arranhando alto-falantes, sinos transistorizados de Belém, reflexos dourados,homens sanduíche, lixo, gritos de crianças ensandecidas pela Noite Feliz.

E agora? O olhar dele desceu agudo, filhote de falcão da campina, sobreminhas pernas cruzadas. Senti-me desconfortável. Sugeri comermos. Eledisse está bem e eu olhei bem firme para frente. Não queria ver aquelesolhos, não queria ver aquele rosto, não queria ver aquela expressãoespecialmente perversa, infantilmente perversa, não queria me sentir velhademais, o outro lado do espelho desse rosto cuja expressão também já foraminha, e sabia, que ele pressentia haver algo errado comigo, essa minhapretensa segurança, pretensa maturidade, um vago movimento demendicância, e que, por exemplo, nem ao menos eu gostava de mim, senãonão prosseguiria por tempos imemoriais caçando aves implumes na orla dopântano. Se não estivesse ferida, estaria voando.

Fomos a uma cantina italiana. Ou melhor, eu o levei a uma cantina italiana.Garçons amigos, contas penduradas, etc. A luz avermelhada das velasincidindo sobre o xadrez vermelhinho das toalhas e lambendo-lhe o rosto,Robi ficava com uma expressão solene, de coroinha. Mas não era bem assim,principezinho do ritual de iniciação. Ajeitei-me na cadeira, pedi mais vinho,segurei sua mão debaixo da mesa (ele não admitia demonstrações empúblico), apalpei suas pernas musculosas debaixo do grosso índigo blue,pedi-lhe para afastar as coxas, mergulhei a mão com segurança, fechei osolhos e pensei: Meu Deus. Retirei a mão, voltei ao vinho. Robi continuavasério, olhando além da janela, além dos queijos, dos salames, dos presuntosque oscilavam sobre sua cabeça. Como quem acompanha o vôo de umamosca, foi descendo a vista e perguntou o que está olhando? Eu disse nada /me deixa encabulado / porque? / fica me olhando assim / assim como? —mordi os lábios, não confessar nunca! Nada. Não quer mais vinho? Estendeuo copo, enchi, sorrimos. Não gostaria de ir para outro lugar? Os olhos negrosbaixos no prato foram levantando lentamente, emergindo da sombra commacia ironia, mas o foco não subiu além dos meus lábios. bem. Apague avela, neném.

Sensivelmente alterada, informei-lhe que guiaria o automóvel. Não dissenada. Sentou ao meu lado num silêncio noturno de animal confiante. As ruasque percorremos estão na minha lembrança como um longo corredorrecheado de espessa nebulosa cinza-chumbo varrida por vento escuro. Deesquina em esquina, clarões e colares de luzes assaltavam a menteenevoada, mas, nem por isso, desviei-me do trajeto impresso em meucérebro como uma fita gravada, alheia ao álcool, aos impulsos, à minha dor.

Bati a porta do carro. Robi, do outro lado, hesitava, olhando o pacote,retângulo negro de estrelinhas prateadas sobre o banco traseiro. É só umaboneca, ninguém vai roubar, ela tem destinatário. Encarou-me magoado —"é só uma boneca" — mas eu já não estava pensando nisso.

0 quarto tinha um espelho redondo sobre a cama, e foi nele que eu e Robinos vimos pela primeira vez. Aparentemente não havia nenhuma diferença:uma mulher de estatura média, cabelos castanhos sobre os ombros, rostooval e pálido. Um homem, também de estatura mediana , cabelos, etc. Nada.Nenhum indício do buraco negro, o corte no tempo. Robi respirou fundo eagarrou-me por trás, grudando-se ao longo do corpo. Eu disse calma e eleme jogou no colchão como uma bola de pingue pongue. Oscilei umas duasvezes, o colchão gemeu dolorosamente. Deitou sobre mim, tentandodesabotoar-me. Está perdendo tempo, eu disse levantando e me despindo.Cabeça pousada nas mãos, Robi sorria, preparando-se para assistir. Muitoesperto. Despi-me rapidamente e fiquei olhando bem na cara dele. Pronto,eu disse, agora você. Desviou o rosto, sem graça. Com a mão esquerda foitirando o blusão, a direita apagou a luz do teto, permanecendo apenas o focoavermelhado do abajur. Estava deitada, fumando, quando sua massa rijadesabou sobre mim. Procurei seus lábios mas ele disse não, estou resfriado.Então. esperei. Você gosta assim? perguntou ajeitando-me de bruços.Abraçava-me com palmas e dedos gelados, comprimindo minhas costelas,machucando-as, em vez de acariciá-las. A coisa funciona só da cintura para

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baixo, como um vibrador elétrico, mas é bom, pensei, deixando-me penetrarrijamente pelas costas, usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo,como se o resto estivesse paralisado, ou morto, como se aqui ninguémsuportasse um dramático relacionamento frontal, com beijos, orifícios,acidentes e cicatrizes, com um rosto, um nome, uma biografia. 0 prazer ébom, pensei, costuma ser forte, mesmo assim... Espiei Robi e seudesempenho: cabelos grudados na testa molhada, uma das sobrancelhasarqueadas de perversidade, lábios entreabertos para respirar, braçosesticados, mantendo-me firmemente afastada de seu corpo para ver melhor.0 que me chateia é esse distanciamento crítico, parece estar consertando amoto — essa máquina de prazer — está olhando a coisa funcionar, como seupróprio coração a bater fora do corpo, as engrenagens da máquina molhadasde suor e gosma orgânica, mais lento, mais acelerado, mais lento, agorarápido, acelere, mais rápido, mais rápido. Pronto. Terminou. Ouvi Robiofegar. Continuei de costas. Estendi o braço e peguei um cigarro. Arespiração agora era regular, pesada. Virei-me para olhá-lo: havia algo decomovedor — sempre há algo de comovedor — num jovem adormecido.Ficam tão desamparados. Braços estirados de sonâmbulo (os mesmos que meempurravam, potentes, há quinze minutos), mãos como dois pássarosgêmeos, aninhados, desvalidos, o sexo recolhido no meio das pernas, envoltoem espumas de marés mortas, os músculos faciais desabados, descompostos,oferecendo-se e negando-se ao mesmo tempo, supremamente, a qualquercontato humano, fosse um soco ou um beijo, esse rosto inumano dascrianças e dos deuses, esse destruidor florido por sobre quem paira agoraessa atmosfera verde de piscina lunar salgada, esse vapor ardente e mortal,bafo primordial de mundos e canteiros de estrelas, de sentimentos emestado gasoso, sóis e planetas.

Bem, pensei, é tarde. Vesti-me rapidamente, em silêncio. Fechei a porta semruído. Desci. O saguão deserto. Ao entrar no automóvel ,vi o pacote nobanco de trás. Essa agora, pensei. Carreguei essa boneca tempo demais, asjuntas dos dedos me doem, o barbante áspero imprimiu marcas profundas,roxas, em cruz, nas palmas feridas, o seu peso é insuportável. Reunindominhas últimas forças, consegui tirá-la do carro e levá-la até a portaria dohotel. Um empregado sonolento atendeu-me:

— É para o rapaz do 35. Acorde-o às seis e quarenta e entregue o presente.Com votos de Feliz Natal, pensei. Virei as costas e saí.

Guiando de volta para casa, eu me intrigava porque havia mandado o sujeitoacordá-lo às seis a quarenta, porque especificamente seis e quarenta? Anotomentalmente: perguntar ao analista.

Márcia Denser nasceu em São Paulo e publicou seu primeiro livro, TangoFantasma, aos 23 anos. Aos 24 anos iniciou seus trabalhos jornalísticos narevista "Nova", da Editora Abril, onde, por dois anos, assinou a coluna "NovaLê Livros". Formou-se em Comunicações e Artes pelo Mackenzie. Jornalista,publicitária e editora, trabalhou na Salles, Folha, Interview, Around, Vogue,A-Z, onde foi redatora de criação, repórter especial, cronista e colunista delivros.

Coordenadora de Oficinas Literárias desde 1990, tem obras publicadas naAlemanha, Suíça, Holanda, Estados Unidos e Rússia. Participou doLateinamerikas'90, programa de intercâmbio cultural Brasil/Alemanha, aolado de Marcos Rey, Oswaldo França Jr., Nelson Pereira dos Santos e SuzanaAmaral, dando conferências em oito cidades da Europa. Ficou conhecida comoa escritora favorita de Paulo Francis que dela disse: "Há no Brasil umaescritora que sabe escrever. Seu nome é Márcia Denser. Tem uma linguagemlímpida, sem retoques, bem diversa desse pseudo-romantismo retórico quecaracteriza boa parte da nossa ficção. Denser situa-se entre os raroscriadores de linguagem, aqueles que têm algo de muito novo a dizer. Quantoaos outros, resta-lhes a rabeira da História.”

Muitos a intitulam de musa dark da literatura brasileira.

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Bibliografia:

— No Brasil:

- Tango Fantasma (contos), 1977.

- O Animal dos Motéis (novela em episódios), 1981.

- Muito Prazer (contos eróticos femininos), antologia, 1982.

- O Prazer é Todo Meu (contos eróticos), antologia, 1984.

- Exercícios para o Pecado (novelas e contos), 1984.

- Diana Caçadora (contos), 1986.

- A Ponte das Estrelas (aventura), 1994.

- Diana Caçadora & Outras Histórias (antologia pessoal, no prelo).

— No Exterior:

- Tigerin und Leopard, Amman, Zurique, 1988, e Rowoholt Verlag, Suíça,1992.

- Het Lekkerste in he Leven, Novib, Utrecht, Holanda, 1992.

- On Hundred Years After Tomorrow (brazilian women's in the 20th century),Indiana Press, Indiana, USA, 1994.

- Urban Voices, Contemporary Short Stories from Brazil, University Press ofAmerica, Maryland, USA, 1999.

Texto foi extraído do livro "Animal dos Motéis", Civilização Brasileira- MassaoOno / Editores — Rio de Janeiro, 1981, pág. 31.

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satírico ou irônico. Aguardamos dos amigos leitores críticas, comentários e sugestões.A todos, muito obrigado. Arnaldo Nogueira Júnior. ® @njo

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