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Marcelo Lima Calixto O discurso único no livro didático de língua portuguesa. Passo Fundo, maio de 2006. UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: [email protected]

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Marcelo Lima Calixto

O discurso único no livro didático de língua portuguesa.

Passo Fundo, maio de 2006.

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS

Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: [email protected]

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Marcelo Lima Calixto

O discurso único no livro didático de língua portuguesa.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas da Universidade de Passo Fundo, como requisito

para obtenção do grau de mestre em Letras, sob a orientação

da Profª. Drª. Florence Carboni.

Passo Fundo

2006

__________________________________________________________________

C154d Calixto, Marcelo Lima

O discurso único no livro didático de língua portuguesa / Marcelo Lima Calixto. – 2006.

114 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de Passo Fundo,

2006.

Orientação: Profa. Dra. Florence Carboni.

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino. 2. Livros didáticos.

3. Análise do discurso. I. Carboni, Florence, orientadora. II. Título.

CDU: 806.90

__________________________________________________________________ Catalogação: bibliotecário Alexandre Chow – CRB 10/1681

2

DEDICATÓRIA

Aos meus pais Vilson Gonçalves Calixto

(póstuma) e Neusa Marli Lima Calixto, iniciadores

de tudo, que sempre acreditaram e continuam

acreditando em mim. E a minha companheira de

vida, Izandra Alves, grande responsável pelo início,

pelo meio e pelo final dessa caminhada.

3

AGRADECIMENTOS

À Profª. Drª. Telissa Furlanetto Graeff, que me

abriu as portas da UPF e à Profª. Drª. Florence

Carboni, pela paciência, pelo respeito e pelo

incentivo.

4

Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra. (...)"

Carlos Drummond de Andrade

5

ABSTRACT

Le discours unique dans les livres scolaires de portuguais langue maternelle

Le point de départ de ce travail est une certaine préoccupation par rapport au

silenciement de beaucoup d’élèves de portugais lorsqu’on leur demande d’interpréter

certains textes. Dès les premières années d’étude, lors des premiers contacts avec la langue

écrite, beaucoup de ces sujets voient leur histoire et leur langue ignorées par certains

professeurs. Les discours qui prédominent en classe sont presque toujours ceux du

professeur et du livre scolaire, qui, pour sa part, tend à reproduire ceux des classes

dominantes. Ces discours sont prédominants non seulement dans l’activité dénommée

‘interprétation de texte’, mais aussi dans d’autres activités liées au cours de portugais.

Progressivement, un “discours unique” occupe l’espace de la classe, de l’école, de la

famille et de la société.

Comme les divers savoirs, les différentes histoires, la polissémie du discours

sont constamment ignorés dans la classe de portugais, par doses homéopathiques, les futurs

citoyens sont amenés à se taire, à n’entendre que le discours et le savoir des autres, à obéir,

à ne pas percevoir l’intradiscours et l’interdiscours, à accepter le non-dit. Consciemment ou

non, certains professeurs de portugais finissent ainsi par rendre service à l’ordre établi.

L’objectif de ce travail est celui d’explorer ces idées, dans une perspective

empruntée à l’Analyse de Discours, montrant combien certains professeurs de portugais,

s’appuyant sur le livre scolaire, réalimentent les divers non-dits.

Mots-clés: discours, livre scolaire, silenciement.

6

RESUMO

O discurso único nos livros didáticos de português

O ponto de partida desse trabalho é uma nossa preocupação em relação ao

silenciamento de muitos alunos, quando, nas aulas de português, são solicitados a

interpretarem certos textos. Desde os primeiros anos de estudo, na ocasião dos primeiros

contatos com a língua escrita, muitos desses alunos vêem sua história e sua língua

ignoradas por alguns professores. Os discursos predominantes nas salas de aula são quase

sempre os do professor e do livro didático que, por sua vez, tende a reproduzir os das

classes dominantes. Esses discursos são predominantes não apenas na atividade

denominada ‘interpretação de texto’, mas também em outras atividades ligadas à disciplina

de português. Progressivamente, um “discurso único” passa a ocupar o espaço da sala de

aula, da escola, da família e da sociedade.

Como os diversos saberes, as diferentes histórias, a polissemia do discurso

são constantemente ignorados na aula de português, em doses homeopáticas, os futuros

cidadãos são levados a ouvir apenas o discurso e o saber dos outros, a obedecer, a não

perceber o intradiscursos e o interdiscurso, a aceitar o não-dito. Consciente ou

inconscientemente, alguns professores de português acabam assim prestando um serviço à

ordem estabelecida.

O objetivo desse trabalho é de explorar essas idéias, na perspectiva da

Análise de Discurso, mostrando o quanto os professores de português, ao se apoiarem no

livro didático, realimentam os diversos não-ditos.

Palavras-chave: discurso, livro didático, silenciamento.

7

CONSIDERAÇÕES INICIAIS _____________________________________________ 8

1. A EDUCAÇÃO FORMAL A SERVIÇO DOS INTERESSES DO ESTADO ___ 10

1.1 Breve retrospectiva da educação no Brasil.____________________________________ 10 1.1.1. A educação jesuítica __________________________________________________________ 11 1.1.2. A educação no período pombalino________________________________________________ 13 1.1.3. A educação no império. ________________________________________________________ 14 1.1.4. A educação no século XX ______________________________________________________ 16

1.2. O livro didático __________________________________________________________ 26 1.2.1. A função do livro didático ______________________________________________________ 26 1.2.2. Breve histórico do livro didático no Brasil _________________________________________ 28

1.3. O ensino de português ____________________________________________________ 31 1.3.1. Os PCN e o ensino de português _________________________________________________ 31 1.3.1. A estrutura dos PCN __________________________________________________________ 32 1.3.2. Os PCN e as críticas ao ensino de língua portuguesa__________________________________ 34 1.3.3 Como os PCN tratam o texto ____________________________________________________ 36 1.3.4. Os PCN e uma breve reflexão sobre a linguagem verbal_______________________________ 40 1.3.5. O profissional enquanto intermediário da educação __________________________________ 41 1.3.6. Considerações finais sobre os PCN _______________________________________________ 47

2. A LINGUAGEM VERBAL: FENÔMENO MULTIFACETADO _______________ 48

2.1. A "língua" de Saussure ___________________________________________________ 48

2.2. O caminho para o estudo da língua em uso ___________________________________ 52 2.2.1. Caminhando com a teoria da enunciação___________________________________________ 54

2.3. A sedução pelo formalismo ________________________________________________ 57

2.4. A sedução pela variação ___________________________________________________ 58

2.5. Quando o objeto é o discurso _______________________________________________ 63 2.5.1. O sujeito e o assujeitamento_____________________________________________________ 65 2.5.2. A formação discursiva e a influência de Althusser ___________________________________ 66 2.5.3. O interdiscurso e o intradiscurso _________________________________________________ 67

2.6. A visão marxista do círculo de Bakhtin ______________________________________ 70

3. O DISCURSO ÚNICO NA ESCOLA ______________________________________ 76

3.1. Escola, língua e discurso dominantes ________________________________________ 77

3.2. A compreensão de texto. Considerações teórico-metodológicas___________________ 81 3.2.1. Texto, sentido e discurso _______________________________________________________ 82 3.2.2. O(s) sujeito(s) do discurso escolar ________________________________________________ 84 3.2.3. Procedimentos metodológicos ___________________________________________________ 86

3.3. Análise das propostas dos livros didáticos ____________________________________ 86 3.3.1. LD: Português: Dialogando com textos ___________________________________________ 86 3.3.2. LD: Linguagem: criação e interação ______________________________________________ 97 3.3.3. LD: Português: idéias & linguagens _____________________________________________ 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________________ 114

BIBLIOGRAFIA _______________________________________________________ 118

8

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Quando começamos a exercer nossas atividades como docente de língua

portuguesa junto aos alunos da 8ª série do ensino fundamental de escolas públicas e

particulares, fomos surpreendidos pelo silenciamento dos discentes frente às diferentes

propostas de interpretação de texto presentes nos livros didáticos.

Independentemente do assunto que o texto trate, o silenciamento parece ser a

resposta mais concreta, mais “certa” e ao mesmo tempo mais cômoda, pois os alunos já

estão habituados a, em seguida, receberem a “resposta” pronta da tarefa solicitada. Muitas

foram às vezes em que nossos alunos disseram: “professor, leia no livro, a resposta está aí”,

“Porque perdermos tempo com estas coisas, a minha resposta nunca está certa mesmo”, etc.

Preocupados com esta situação em que a “preguiça” mental toma conta de

nossos alunos, partimos em busca das razões que levam a esse comportamento. Muitas

foram as conversas informais com nossos colegas e muito decepcionantes foram as

justificativas que eles apresentaram para esse comportamento: “Não se preocupe, a timidez

é própria da adolescência”, “São um bando de preguiçosos, não querem nada com nada”,

“Este mundo está perdido, ninguém quer pensar mais”, etc.

Ao decidirmos seguir uma profissão dentro da área da educação,

principalmente na atividade de docente, entendíamos que as habilidades de observação, de

formulação, de raciocínio e de testagem de hipóteses, ou seja, a independência de

pensamento, são elementos necessários para a formação de um cidadão crítico, mas ao

começarmos a desenvolver nossas atividades profissionais, observamos, para nossa

surpresa, que é justamente na formação desse cidadão crítico que nosso sistema

educacional tem se mostrado particularmente falho.

O estudante brasileiro, e porque não dizer o professor brasileiro, tende a ser

submisso à autoridade acadêmica. Tende a acreditar que a verdade se encontra pronta e

acabada no livro e no pensamento daqueles que detêm esta autoridade. Talvez venha desta

visão a idéia de que educação é uma transmissão de conhecimento, é a passagem de uma

9

idéia pronta e acabada, ignorando que a beleza da educação está no desenvolvimento das

habilidades e na procura do conhecimento.

O presente trabalho está dividido em três partes. Na primeira, fizemos uma

incursão rápida pela história da educação no Brasil, começando pelos jesuítas, visto que

temos dificuldades em encontrar documentos e até mesmo livros que nos falem da

educação entre as comunidades nativas antes da chegada dos portugueses. Num segundo

momento, nossa incursão foi pela linguagem verbal como objeto multifacetado dos estudos

lingüísticos, onde apresentamos o que consideramos ser as principais teorias lingüísticas e

suas implicações no modo de abordar as aulas de português. Na terceira parte de nosso

trabalho, sobretudo norteados pelos conceitos teórico-metodológicos da Análise do discurso

(AD), analisamos a proposta e as atividades de alguns compêndios escolares,

principalmente na atividade denominada “interpretação de texto”, visto que são

precisamente as falhas na realização desta atividade que nos levaram a investir nossas

energias neste trabalho.

10

1. A EDUCAÇÃO FORMAL A SERVIÇO DOS INTERESSES

DO ESTADO

1.1 Breve retrospectiva da educação no Brasil.

O homem se distingue fundamentalmente dos demais animais pelo trabalho.

O trabalho é ação transformadora, dirigida de forma consciente e a partir da qual o homem

produz sua própria existência, baseado em suas necessidades. Essa ação transformadora é

social, nunca solitária. É importante não confundir o trabalho do ser humano com a

atividade de animais como formigas, abelhas, castores, etc., pois este tipo de ação é

determinado pelo instinto e é idêntico na espécie. Tampouco se deve confundir com a ação

de outros animais, como por exemplo, o macaco, que pode encontrar diferentes soluções

para alcançar uma banana que está longe do seu alcance.

O homem é um ser histórico, suas ações e pensamentos mudam no tempo, a

partir das diferentes dificuldades a serem vencidas. Isto ocorre não só na vida coletiva,

como também na vida pessoal. O trabalho transforma o modo de pensar, de sentir e de agir

do ser humano, de modo que nunca permanece o mesmo ao final de uma atividade. Desse

modo, pode-se dizer que, pelo trabalho, o homem se produz, ao mesmo tempo em que

produz sua própria cultura. O homem é o resultado desse processo em movimento da

construção da cultura e de si próprio. É impossível pensar em uma natureza humana com

características eternas e universais. Também não há um modelo de ser humano a que cada

um deveria se adequar.

A partir das relações que os homens estabelecem entre si, criam-se modelos

de comportamentos, de instituições e de saberes. O aperfeiçoamento desses modelos só é

possível pela transmissão de conhecimentos adquiridos através das gerações e da

assimilação de comportamentos valorizados em uma determinada cultura, em um

determinado povo, em uma determinada época. Nas sociedades atuais, essa transmissão de

conhecimentos se dá através da educação formal.

11

Com o objetivo de relacionar a educação formal ou escolar, no Brasil, com a

transmissão do modo de vida, de pensar e de agir próprio das classes dominantes, o

presente capítulo limitar-se-á a apresentar um quadro geral da educação no Brasil, a partir

do momento que os portugueses chegaram a este território, mais especificamente com a

chegada dos primeiros jesuítas, em 1549.

1.1.1. A educação jesuítica Foi somente a partir de 1549, com a chegada do governador-geral Tomé de

Souza, acompanhado por diversos jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega, que teve

início o processo de criação de escolas elementares, secundárias, seminários e missões, que

se espalharam pelo Brasil até o ano de 1759, quando os jesuítas foram expulsos da então

colônia portuguesa pelo Marquês de Pombal.

Nestes 210 anos, eles promoverão uma ação maciça na catequese de índios,

educação dos filhos dos colonos portugueses, formação de novos sacerdotes e da elite

intelectual, além do controle da fé e da moral dos habitantes da nova terra, conforme nos

relata Vanilda Paiva: “aqui chegados, começaram os jesuítas a organizar classes de ‘ler e

escrever’ destinadas às crianças, as quais limitavam-se à catequese e alfabetização,

servindo a alfabetização aos objetivos de introdução da língua portuguesa e ensino de

catequese” (Paiva, 2003: 66).

Neste período a educação começa, de certa forma, a ser destinada à “elite”.

Com o objetivo de preparar novas gerações de aliados, os padres jesuítas, por não terem

condições de “alfabetizar e catequizar” todos os meninos nativos desta terra, optam pelos

filhos dos caciques, pois “com tal medida não somente a influência dos meninos sobre os

adultos se fazia diretamente sobre os detentores do poder tribal, como também ficavam

protegidos os núcleos de colonização portuguesa dos ataques dos indígenas” (Ibid.: 66).

Em 1553 chega ao Brasil José de Anchieta, que aprende a língua tupi-

guarani e, no ano de 1595, organiza a primeira gramática da nova colônia portuguesa

denominada A arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Segundo

Carboni e Maestri, “no século XVI, os jesuítas sintetizaram alguns falares tupis do litoral,

dando origem à chamada ‘língua geral’” (Carboni & Maestri, 2003: 17).

12

No início, as primeiras escolas reúnem os filhos dos colonos e dos índios,

mas a tendência da educação jesuítica é a separação entre os “catequizados” e os

“instruídos”. A ação sobre os índios se resume na cristianização e na pacificação, tornando-

os dóceis para o trabalho. Com os filhos dos colonos portugueses, porém, a ação tende a ser

mais efetiva, exercendo-a além das habilidades elementares de ler e escrever.

As influências mais marcantes da educação jesuítica são: a tradição religiosa

do ensino e a formação da burguesia e das classes dirigentes. A base do ensino é

predominantemente clássica, valoriza-se a literatura e a retórica, desprezando o estudo das

ciências e a atividade manual. A atividade humana é totalmente desprezada, já que a

estrutura econômica da colônia permitia essa visão, uma vez que esta estrutura econômica

era totalmente agrícola e a mão-de-obra era escravizada, pois “o regime de escravidão e as

condições sociais do conjunto da sociedade não propiciavam um interesse especial pelo

ensino” (Paiva, 2003: 68).

A formação da elite colonial, predominantemente intelectual e universalista,

esteve afastada das principais conquistas científicas da Idade Moderna1. Além disso,

durante esse largo período de tempo entre a chegada dos jesuítas (1549) e sua expulsão por

Pombal (1759), aumentou a distância entre os “letrados” e a maioria da população

analfabeta. No entanto, ao analisar o modo como se produziram e se institucionalizaram, na

história do Brasil, o sentido e os referentes da palavra analfabeto, Mariza Vieira da Silva

(1996: 152) mostra que enquanto durou a ordem escravocrata, a instrução e sua

exteriorização não eram critérios de seleção, classificação e identificação social. Isso só

aconteceria mais tarde, após a independência e, sobretudo, com o fim da escravidão e a

chegada da República, quando surgiu a possibilidade de extensão de ensino não apenas aos

filhos da classe dominante.

Havia outros motivos para o não-desenvolvimento educacional da colônia.

Em meados do século XVIII, as idéias iluministas circulavam pela Europa e,

conseqüentemente, chegavam a Portugal. Existia um grande temor de que estas idéias

liberais européias chegassem ao Brasil, uma vez que estavam alcançando outros territórios

americanos e promovendo movimentos de emancipação, como a própria independência das

terras de São Domingos, atual República do Haiti, em 1804. Para Paiva “a intenção de

1 Segundo os Historiadores a Idade Moderna começa em 1453, com o fim do império bizantino.

13

manter a colônia culturalmente isolada aparece, aí, como um fato que atingia tanto a

educação popular quanto a educação das elites” (Ibid.: 69).

1.1.2. A educação no período pombalino Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, que tiveram seus bens confiscados,

muitos livros e manuscritos importantes foram destruídos, mas nada foi reposto. O Marquês

de Pombal só reiniciou a reconstrução do ensino uma década depois.

Somente em 1772 é que as primeiras providências mais efetivas são levadas

a efeito: a coroa se encarrega de organizar a educação, começando a implantação do ensino

público oficial, nomeando professores e estabelecendo planos de estudo e inspeção.

Enquanto os jesuítas preocupavam-se com o proselitismo e o noviciado, Pombal pensava

em reerguer Portugal da decadência em que se encontrava frente às demais potências

européias. Enquanto a educação jesuítica tinha por objetivo servir aos interesses da fé,

Pombal pensava em organizar uma escola para servir aos interesses do Estado.

Pombal criou as “aulas régias”, ou seja, aulas autônomas e isoladas, com

professor único e uma não se articulando com as outras. Os professores eram mal

preparados para a função, visto que, na sua maioria, eram improvisados e mal pagos. Suas

nomeações eram por indicação e sob concordância de bispos e estes mesmos professores,

tornavam-se “proprietários” vitalícios de suas aulas régias. Mas a influência jesuítica não

terminou com a saída dos jesuítas: muitos mestres formados pela Companhia continuaram

uma ação pedagógica muito semelhante à dos jesuítas. Neste período, apareceram também

escolas de carmelitas, beneditos e franciscanos, tentando preencher o vazio deixado pelos

jesuítas.

Porém essa época não se caracterizou somente por ações negativas. Em

1776, no Rio de Janeiro, foi criado um curso de estudos literários e teológicos, e em 1798,

foi criado o Seminário Olinda, pelo governador interino e bispo de Pernambuco, Dom

Azeredo Coutinho. O Seminário de Olinda "tinha uma estrutura escolar propriamente dita,

em que as matérias apresentavam uma seqüência lógica, os cursos tinham uma duração

determinada e os estudantes eram reunidos em classe e trabalhavam de acordo com um

plano de ensino previamente estabelecido" (Piletti, 1996: 37).

14

A conseqüência da decisão de Pombal em desmantelar o sistema jesuítico

foi que no início do século XIX a educação brasileira estava reduzida a praticamente nada e

essa situação só iria mudar com a chegada da família Real, em 1808.

1.1.3. A educação no império. Como acabamos de ver, o Brasil principiou o século XIX com um sistema

educacional quase inexistente, pois todas as mudanças realizadas sempre tenderam a

resolver problemas imediatos, nunca encarando a educação como um todo e foi somente

com a chegada da família real portuguesa que ocorreram modificações no panorama

educacional brasileiro, pois “tornou-se necessária a organização de um sistema de ensino

para atender à demanda educacional da aristocracia portuguesa e preparar quadros para as

novas ocupações técnico-burocráticas” (Paiva, 2003: 70).

Mesmo assim, durante todo esse século, a educação arrastou-se de forma

desorganizada e desagregada. Entre o ensino primário e o secundário não havia pontes ou

articulações, eram dois mundos que se orientavam, cada um na sua direção. Eram as

exigências do ensino superior que determinavam a escolha das disciplinas do ensino

secundário, já que não havia currículo e a escolha das disciplinas era aleatória.

Com a declaração da independência do país, em 1822, foi outorgada pela

primeira vez uma constituição brasileira. Essa constituição, inspirada pela constituição

francesa, de cunho liberal, previa, em seu artigo 179, a “instrução primária e gratuita para

todos os cidadãos”. É importante registrar que, antes desta data, um projeto elaborado pelo

General Francisco de Borja Stockler, a pedido do Conde de Barca, ministro de D. João VI,

fora rejeitado pela coroa. Tal projeto “recomendava também a transmissão de

conhecimentos indispensáveis aos agricultores, operários e comerciantes através do ensino

nos ‘Institutos’, colocando-se assim como a primeira sugestão oficial de organização de um

sistema de ensino popular no Brasil (...)” (Ibid.: 70).

Como já sugerido, a independência trouxe à tona a necessidade de maior

atenção à instrução elementar, pois a participação de brasileiros nas atividades do império

fazia-se necessária e “tornara-se uma tarefa importante preparar quadros para a burocracia

do novo Estado independente; surgem os cursos jurídicos e, em seguida, impulsiona-se o

ensino secundário com a criação do Colégio Pedro II” (Ibid, 70).

15

Na tentativa de superar a falta de professores, um ano após a independência,

foi instituído o “Método Lancaster”, que consistia em um aluno treinado (decurião)

ensinando um grupo de dez alunos (decúria). Em 1826 um decreto institui igualmente

quatro graus de instrução: pedagogias (escolas primárias), liceus, ginásios e academias, mas

“as primeiras determinações legais no império pouco afetaram, de imediato, o ensino

elementar (...). No Parlamento pedia-se uma estatística da instrução e propunha-se a

autorização para o governo criar escolas” (Ibid.: 71). No ano de 1834, o ato adicional à

constituição dispunha que as províncias passassem a serem responsáveis pela administração

do ensino primário e secundário e essas províncias “carentes de recursos pouco puderam

realizar em favor da instrução popular, que se desenvolveu precariamente durante todo o

Império e grande parte do período republicano” (Ibid.: 71–72).

Se a intenção era facilitar o acesso de diferentes contingentes populacionais

à educação, tal feito não foi atingido e mais uma vez a educação brasileira se perdeu,

obtendo resultados pífios. A educação elementar se expandiu de forma irregular e limitada

e “as elites adotaram como prática o estudo individual com preceptor em suas próprias

casas; a educação do povo não era sentida como uma necessidade social e econômica muito

forte” (Ibid.: 73).

O ensino secundário era predominantemente ministrado por professores

particulares, em aulas avulsas, sem unidade ou fiscalização. Com o tempo, formaram-se os

liceus provinciais que nada mais eram do que o resultado da reunião de aulas avulsas no

mesmo prédio. Eram muitas as críticas à baixa qualidade do ensino, com professores

improvisados, incompetentes e, devido aos baixos salários, obrigados a exercerem outras

atividades ao mesmo tempo.

No final do século XIX, a iniciativa privada organizou-se e foram fundados

importantes colégios, sobretudo católicos (inclusive de jesuítas, que retornavam oitenta

anos após a sua expulsão) e alguns protestantes, mostrando uma tendência diferente do

resto do mundo, onde a educação se laicizava cada vez mais.

Em 1889, com o fim do Império e o surgimento da República, a então

predominante ideologia católica começava a enfrentar a oposição do positivismo e da

ideologia liberal leiga. No campo educacional, o positivismo aumentou a luta pela escola

pública, leiga e gratuita. Os principais seguidores de Comte eram Benjamin Constant, Luís

16

Pereira Barreto, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Mesmo assim, as esperanças de

mudanças no quadro educacional não ocorreram e a situação continuou precária,

considerando, sobretudo, o fato de que o ideário positivista não tinha como prioridade a

superação das desigualdades sociais e culturais, via ascensão da classe proletária.

1.1.4. A educação no século XX Do espólio do Império restaram um conjunto de instituições públicas para a

formação das elites e uma série de debates promovidos pelos republicanos liberais sobre a

estruturação de uma educação nacional, com a esperança da criação de um sistema em que

a educação popular fosse considerada um requisito fundamental, vista como sinônimo de

liberdade e riqueza, antônimo de pobreza e despotismo. Os constantes e acalorados debates

sobre a educação popular tiveram como resposta apenas a “proclamação” de sua

importância e a aprovação do projeto de criação de universidades, sem que seja seriamente

questionada a “necessidade ou finalidade de Universidades em um país destituído de

educação elementar... o que veio apenas legalizar uma situação de fato — a omissão do

poder central em relação à educação popular”. (Xavier, 1980: 61-63).

Neste período de transição, onde parte da elite intelectual aderia aos ideais

do liberalismo burguês, foi atribuída à educação a tarefa heróica de promover a

reconstrução da sociedade. As propostas educacionais do século anterior intensificavam-se

neste século com a implantação das escolas públicas, que visavam unicamente sanar as

necessidades do mercado de trabalho, já que a indústria e o comércio começavam a

desenvolver-se aceleradamente. O desenvolvimento da escola esbarrou em dificuldades de

toda ordem, de modo que, ao lado de escolas pioneiras, conviviam escolas tradicionais e

antiquadas.

Com a expansão da indústria e do comércio houve uma ampliação de

profissões técnicas e dos quadros burocráticos necessários à administração e organização

dos negócios.

1.1.4.1. A educação na primeira república (1889- 1929) Assim que a República foi proclamada, adotou-se o sistema federativo de

governo e, conseqüentemente, a descentralização do ensino. A primeira Constituição da

17

República, em 1891, reservou à União o direito de criar instituições de ensino superior e

secundário nos estados e prover a instrução secundária no Distrito Federal. Aos estados

competia atender e legislar sobre a educação primária, além do ensino profissional (na

época correspondia às escolas de nível médio para moças e às escolas técnicas para

rapazes). O sistema dual (uma escola para o rico e outra para o pobre), herança do regime

anterior, estava consagrado. A distância entre a educação da classe dominante (escolas

secundárias, acadêmicas e superiores) e a educação do povo (escola primária e escola

profissional) era cada vez maior.

Com a emergência de novas classes sociais: a massa formada pelos

agregados rurais, pelos pequenos artesões e pelos comerciantes da zona urbana começou a

ser substituída por uma camada de militares, os quais detinham um grande prestígio; por

uma camada média de intelectuais; por uma camada, pequena ainda, de burguesia

industrial, pelos ex-escravos apenas libertados do cativeiro e por todo um contingente de

imigrantes, que se ocupavam da lavoura ou das profissões liberais urbanas. Desta forma

“todo esse complexo organismo social já não podia comportar-se em instituições de caráter

simplista” (Romanelli, 1999: 42) e a pressão não tardou a provocar uma ruptura e a

instituição da escola, alicerçada no princípio da dualidade social, foi aos poucos tendo sua

base comprometida pelo crescimento e desenvolvimento de complexas e diferentes

camadas sociais.

Surgia assim, em 1891, a reforma Benjamin Constant, que tinha como

princípios norteadores a liberdade e a laicidade, além da gratuidade do ensino. As

influências das idéias positivistas de Auguste Comte no currículo escolar foram grandes e

esse ensino passou a ser também formador de alunos para o ensino superior, mas não

abandonava a característica de “preparador ao superior”. Possuía também a intenção de

substituir a predominância literária, presente até então nos currículos escolares, por uma

abordagem mais científica. Esta reforma foi muito criticada pelos positivistas da época,

pois mesmo que Benjamin Constant fosse um positivista, esses entendiam que esta reforma

não respeitava os princípios pedagógicos de Comte – uma escola que privilegiasse a busca

do que é prático, útil, objetivo, direto e claro, uma escola que favorecesse a ascensão das

ciências exatas - e o que ocorreu foi o acréscimo de matérias científicas às tradicionais,

tornando o ensino enciclopédico.

18

A falta de uma estrutura institucional e do apoio político de parte da elite,

que entendia que as reformas propostas por Constant eram uma ameaça à formação da

juventude, impediu a sua execução. Mas este insucesso foi apenas uma amostra dos limites

e das frustrações de uma República que começava a nascer. Por mais que desanimasse os

republicanos, “a nova cara política era mais parecida com a cara real do país e era por ela

que se tinha que dar início à nova jornada. Uma das fraquezas das elites vitoriosas é a sua

incapacidade de reproduzir novas elites adequadas para novas tarefas. Elas são as primeiras

vítimas de seu próprio êxito” (Carvalho, 1980: 183).

No ano de 1900, o percentual de analfabetos no Brasil chegava a oitenta por

cento, distribuídos principalmente entre as classes populares, sobretudo formadas de ex-

cativos. Mas, até o final do Império, o analfabeto não era considerado “inútil”, visto que

esta era a situação da maioria da população brasileira e a instrução não era condição para

que o indivíduo participasse da classe dominante e das principais atividades do país. Como

já ressaltamos, é “somente quando a instrução se converte em instrumento de identificação

das classes dominantes (que a ela têm acesso) e quando se torna preciso justificar a medida

de seleção é que o analfabetismo passa a ser associado à incompetência” (Paiva, 2003: 93)

o que vai perdurar, infelizmente, até os dias de hoje.

As ingerências governamentais seguintes representaram passos e

contrapassos no crescimento da estrutura educacional. A Lei orgânica Rivadávia Corrêa, no

governo do marechal Hermes da Fonseca, em 1911, retomou a orientação positivista,

pregando a liberdade de ensino e possibilitando a oferta de ensino por escolas não oficiais.

Logo a seguir, em 1915, com a reforma de Carlos Maximiliano, o ensino no Brasil voltou a

ser de competência do governo central. O Colégio Pedro II foi reformado e foi

regulamentado o ingresso nas escolas superiores. Em 1925, no governo de Arthur

Bernardes, ocorreu a reforma Rocha Vaz, cujo mérito maior foi buscar estabelecer, pela

primeira vez, um acordo entre a União e os estados para a promoção da educação primária.

É importante salientar que estas reformas, além de fracassadas, representavam posições

isoladas das administrações políticas e, em nenhum momento, foram orientadas por uma

política nacional de educação, por uma política que visasse atingir a todos os segmentos da

sociedade nos diferentes lugares habitados do país, limitando-se na maioria das vezes ao

19

Distrito Federal, o que acabou contribuindo para a perpetuação do modelo educacional

herdado do período colonial.

Na década de 1920, “os avanços da psicologia no início do século, com suas

conseqüências sobre a pedagogia, começam a ecoar entre nós através das idéias da Escola

Nova” (Ibid.: 113), que propunha um modelo escolar onde as escolas deixariam de ser

meros locais de transmissão de conhecimentos e tornar-se-iam pequenas comunidades e

que tinham como principais características: a educação integral (intelectual, moral, física);

a educação ativa e a educação prática. Estas escolas eram uma tentativa de superação da

escola tradicional excessivamente rígida, magistrocêntrica e preocupada com a

memorização dos conteúdos. No entanto, somente a demanda para a ampliação da oferta de

ensino de elite (o médio e o superior) às classes médias em ascensão foi atendida pela

União. Difundiu-se assim a ideologia da ascensão social pela escolarização e “verificamos,

portanto, que em termos de realizações concretas pouco se fez pelo ensino elementar nas

primeiras décadas republicanas, embora em outras áreas – como no ensino secundário e

superior, e sobretudo no ensino pedagógico, técnico e profissional – tenha se observado um

ligeiro desenvolvimento” (Ibid.: 95).

1.1.4.2. A educação no Estado Novo Após a Primeira Grande Guerra (1914 – 1918) se prenunciavam novos

tempos para o país: com a crescente industrialização e urbanização – esta última devida, em

grande parte, à substituição das importações, em razão da guerra –, formava-se uma nova

burguesia que exigia o acesso à educação, mas retomando os valores da oligarquia,

aspirando a uma educação acadêmica e elitista e não técnica. O operariado começava a

fazer pressões para um mínimo de escolarização. A situação era grave, já que na década de

20 o índice de analfabetismo atingia 80%.

Em 1931, Francisco Campos, assumiu a direção do recém-criado Ministério

da Educação e Saúde e promoveu a reforma do ensino secundário e universitário. Tendo

empreendido, na década de 20, as reformas da escolanovista em Minas Gerais, ele imprimiu

essa tendência renovadora no país. Pela primeira vez, ocorria uma ação planejada visando

uma organização em nível nacional.

Com a Constituição de 1937, que refletia as tendências fascistas do governo,

o impacto de algumas conquistas foi atenuado, sobretudo quanto ao dever do Estado como

20

educador, sendo a ênfase deslocada para a sugestão da liberdade da iniciativa privada.

Neste período ditatorial, o movimento renovador entrou em recesso.

Durante a ditadura Vargas, o então ministro Gustavo Capanema empreendeu

a reestruturação do ensino secundário e o ensino profissional sofreu alterações

consideráveis. O país passava por grande desenvolvimento industrial e, devido à guerra, a

importação de técnicos estrangeiros encontrava-se comprometida. A solução nacional foi a

criação de dois tipos de ensino profissional: um mantido pelo sistema oficial e outro,

paralelo, mantido pelas empresas privadas. Esta reforma foi elitista e conservadora.

O curso secundário foi novamente reestruturado, passando a ser formado

pelo ginásio de quatro anos e pelo colegial de três anos, dividindo-se esse último em curso

clássico e científico. Já no ensino profissional, houve alterações consideráveis. Em 1942,

foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI – e, em 1946, o Serviço

de Aprendizagem do Comércio – SENAC. A população de baixa renda, ansiosa por se

profissionalizar, encontrou nesses cursos a condição ideal, mesmo porque os alunos eram

pagos para estudar. Daí o êxito dessa iniciativa particular.

As transformações que ocorreram na vida política do país também atingiram

a educação. Este período apresentou fases bastante diferenciadas. Num primeiro momento,

ao assumir o governo provisório, Vargas abrangia em seu programa de “reconstrução

nacional” a difusão intensiva do ensino público, principalmente o ensino técnico-

profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de incentivos e uma colaboração direta

com os Estados, pois “o governo toma a iniciativa da construção dos Liceus Industriais nos

Estados, reforma o ensino comercial e industrial” (Paiva, 2003: 123-124).

Já a reforma do ensino primário só foi regulamentada por lei após o Estado

Novo, em 1946. Trazia diversas novidades: criou o ensino supletivo de dois anos, o que

colaborou para a diminuição do analfabetismo, pois atendeu aos adolescentes e adultos que

não receberam escolarização; estipulou a necessidade do planejamento escolar; previu

recursos para a implantação da reforma; foi dada atenção à necessidade de estruturação da

carreira docente, bem como à remuneração condigna do professor. Apesar do otimismo

trazido pela nova lei, a realidade mostrava-se diferente. As dificuldades enfrentadas eram

muitas e o número de professores leigos aumentava ano a ano.

21

O regime “fascista” de Vargas via a educação como um dos meios de

propagar suas idéias entre a juventude do país. As reformas propostas só foram promovidas

a partir de 1947, quando Vargas já não estava mais no poder. Mais uma vez, a educação foi

relegada a um segundo plano pelo estado brasileiro, visto que “a falta de pressa com a qual

o governo procedeu demonstra que, apesar de sua intenção de utilizar a educação como

veiculo de difusão ideológica, a ação pedagógica através do sistema formal de ensino não

era vista pelo governo central como um instrumento de ação política muito importante”

(Ibid.: 150-151).

1.1.4.3. A educação na Nova República O período entre 1945 e 1964 caracterizou-se pelo populismo – sobretudo

depois da volta de Vargas ao poder em 1951 – e foi marcado pelo otimismo resultante da

esperança de um desenvolvimento acelerado. Nesse período, houve uma nova mudança do

modelo econômico porque o desenvolvimentismo, que até então era marcado pelo

nacionalismo, começou a entrar em contradição com o início da internacionalização da

economia, resultante da invasão das multinacionais, a partir do governo de Juscelino

Kubitschek (1956-1961).

Baseando-se nos ideais emanados pela Carta Magna de 1946, o Ministro da

pasta da Educação e Saúde Pública do governo Dutra�� Clemente Mariani, criou uma

comissão com o objetivo de elaborar um anteprojeto de reforma geral da educação

nacional. Esta comissão, presidida pelo educador Lourenço Filho, conhecido sobretudo por

sua participação no movimento dos pioneiros da Escola Nova e por ter colaborado com o

Estado Novo de Getúlio Vargas, era organizada em três subcomissões: uma para o Ensino

Primário, uma para o Ensino Médio e outra para o Ensino Superior.

Em novembro de 1948 este anteprojeto foi encaminhado à Câmara Federal,

dando início a uma luta ideológica em torno das propostas apresentadas. Num primeiro

momento as discussões estavam voltadas às interpretações contraditórias das propostas

constitucionais. A seguir, após a apresentação de um substitutivo do Deputado Carlos

Lacerda, as discussões mais marcantes relacionaram-se à questão da responsabilidade do

Estado quanto à educação, inspirados nos educadores da velha geração de 30, e a

participação das instituições privadas de ensino.

22

Nessa época, a maioria das escolas particulares de nível secundário ainda

pertenciam tradicionalmente às congregações religiosas, que possuíam um ensino

ministrado de forma a favorecer a classe privilegiada. Então, os religiosos católicos

passaram a assumir o debate, argumentando que a escola leiga apenas instrui, não educa,

opondo-se a um pretenso monopólio do Estado. Os religiosos defendiam a liberdade das

famílias na escolha da melhor educação para seus filhos. Posicionados do outro lado,

estavam os antigos “pioneiros” da educação, que recebiam o apoio de intelectuais, líderes

sindicais e dos estudantes, sendo iniciada a Campanha em Defesa da Escola Pública.

Os debates tinham como pano de fundo o anteprojeto da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional – LDB, que levaria treze anos para se transformar em lei.

Quando foi publicada, em 1961, como Lei nº 4.024/61, já estava ultrapassada. Essa lei não

apresentava mais a eficácia do anteprojeto original, prevalecendo as reivindicações da

Igreja Católica e dos donos de estabelecimentos particulares de ensino no confronto com os

que defendiam o monopólio estatal para a oferta da educação aos brasileiros. Esta foi a

primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e, de certa forma, alterou a

estrutura de ensino, permitindo a equivalência dos cursos e, portanto, a adaptação na

passagem de um para outro.

Nesta mesma época, foram criados o Conselho Federal de Educação – CFE

e os Conselhos Estaduais de Educação – CEE, permitindo a representação das escolas

particulares. Isto tornou inevitável a pressão e o jogo de influências no sentido de obtenção

de recursos.

Na década de 60, aparecem os primeiros movimentos de educação popular.

A composição ideológica variava de grupo para grupo, havendo influência tanto marxista

quanto cristã. Entre os principais grupos, é pertinente destacar o CPC (Centro Popular de

Cultura), que surgiu por iniciativa da UNE (União Nacional dos Estudantes); o MCP

(Movimento de Cultura Popular), que surgiu por iniciativa da prefeitura de Recife; e o

MEB (Movimento de Educação de Base), criado em 1961 pela CNBB (Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil).

O golpe militar de 1964 teria reflexos imediatos sobre a educação. Já no

início a ditadura colocara fora da lei as organizações consideradas subversivas, como a

UNE. Em seu lugar, foram permitidos apenas o DA (Diretório Acadêmico), restrito a cada

23

curso, e o DCE (Diretório Central dos Estudantes), para cada universidade. Foi eliminada a

representação de âmbito nacional e proibida qualquer ação política; nas escolas de nível

médio, os grêmios foram transformados em centros cívicos, sob a direta orientação do

professor de Educação Moral e Cívica, cargo que deveria ser ocupado por pessoa “de

confiança” da direção da escola.

1.1.4.4 A educação no e após o regime militar No ano de 1968, marcado mundialmente pela revolta estudantil iniciada em

Paris, a ex-UNE, que continuava agindo na clandestinidade, realizou, em outubro, um

congresso no interior do estado de São Paulo (Ibiúna). Cerca de novecentos estudantes de

todo o Brasil foram presos e interrogados.

A reação da ditadura foi violenta: em novembro desse mesmo ano foi

apresentada a lei da reforma do ensino superior; em dezembro foram promulgados o AI-5

(Ato Institucional nº 5) e, em fevereiro de 1969, o Decreto-Lei nº 477, que proibia a

professores, alunos e funcionários das escolas toda e qualquer manifestação de caráter

político.

As reformas da educação impostas pela ditadura não revogaram a LDB/61,

mas realizaram atualizações e alterações diversas. Enquanto a Lei nº 4.24/61 tinha sido

elaborada a partir de um amplo debate com a participação da sociedade civil, as Leis nºs

5.540/68 e 5.692/71 foram impostas autoritariamente por militares e tecnocratas,

imprimindo à educação uma tendência tecnicista. Estas reformas foram fruto de um acordo

entre o MEC (Ministério da Educação e Cultura) e a USAID (United States Agency for

International Development), passando o Brasil a receber dos Estados Unidos assistência

técnica e cooperação financeira para a implantação da reforma.

Desenvolveu-se, assim, uma reforma autoritária, vertical e domesticadora,

que atrelava o sistema educacional ao modelo de desenvolvimento econômico dependente,

imposto pela política econômica estadunidense para a América Latina.

Esta reforma almejava a formação de mão-de-obra barata, de meros

executores, não de pesquisadores, o que mantinha nossa dependência em relação aos países

desenvolvidos. A introdução de disciplinas sobre civismo significava a imposição da

ideologia da ditadura, adubada pela extinção da filosofia e diminuição da carga horária de

história e geografia. A relação escola-comunidade reduzia-se à interferência do setor

24

empresarial nas escolas, visando à captação de mão-de-obra, assim como à influência na

estrutura escolar, burocratizando e hierarquizando as relações dentro da escola.

Entre as inovações que a Lei nº 5.692/71 trouxe para o ensino básico estava

a ampliação da obrigatoriedade escolar de quatro para oito anos, o que se tornava letra

morta, uma vez que não existiam recursos materiais e humanos para atender à demanda. A

tão desejada profissionalização não ocorreu, já que os professores eram mal formados, as

escolas não ofereciam infra-estrutura adequada para as exigências dos cursos, sobretudo nas

áreas de agricultura e indústria. Não havendo profissionalização, foi lançado no mercado

um “exército” de mão-de-obra barata.

Já as escolas particulares, principalmente aquelas destinadas à formação da

elite, não se submeteram à lei, mas organizaram um “programa oficial” que atendia apenas

formalmente às exigências legais. Na verdade, o trabalho efetivo em sala de aula achava-se

voltado para a preparação para o vestibular, o que reforçava o seu caráter propedêutico.

Sendo assim, o dualismo foi reforçado. Agora, de forma mais grave, pois a elite estava mais

bem preparada e passou a ocupar as vagas das melhores universidades públicas do país.

Por volta de 1980, o amplo fracasso da implantação da reforma já estava

largamente reconhecido e a Lei nº 7.044/82 dispensava as escolas da obrigatoriedade da

profissionalização, voltando a ênfase para a formação geral. Já estava em curso o lento

processo de “democratização” e começavam a serem “reconquistados” os espaços que a

sociedade civil perdera com a ditadura.

Em 1985, os militares deixaram o poder e foi nomeado o primeiro presidente

civil, embora muitos remanescentes da ditadura se mantivessem no poder até os dias de

hoje. No decorrer dos trabalhos da Constituinte de 1987/88, a questão referente à escola

pública foi um dos focos de acirradas discussões. Muitos foram os confrontos e pressões,

inclusive das escolas particulares, desejosas de manter o acesso às verbas públicas que a

Constituição anterior lhes garantia.

Os principais pontos da nova Constituição em relação à educação eram:

gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; ensino fundamental obrigatório

e gratuito; extensão do ensino obrigatório e gratuito, progressivamente, ao ensino médio;

atendimento em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos; o acesso ao ensino

obrigatório e gratuito enquanto direito público subjetivo e, conseqüentemente,

25

responsabilidade da autoridade competente em caso de não-oferecimento ou de oferta

irregular do ensino obrigatório pelo poder público; valorização dos profissionais do ensino,

com planos de carreira para o magistério público; autonomia universitária; aplicação anual

pela união de ao menos 18%, e pelos estados, Distrito federal e municípios de no mínimo

25% da receita resultante de impostos na instrução pública. A Constituição previa também

que a distribuição dos recursos públicos assegurasse prioridade ao atendimento das

necessidades do ensino obrigatório nos termos do plano nacional de educação; que os

recursos públicos fossem destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas

comunitárias confessionais ou filantrópicas desde que comprovassem finalidade não

lucrativa; que a lei estabelecesse o plano nacional de educação visando à articulação e ao

desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do poder

público que conduzam à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento

escolar, à melhoria da qualidade do ensino, à formação para o trabalho, à promoção

humanística, científica e tecnológica do país.

Esta Constituição é que deu as diretrizes para a nova LDB (Lei de Diretrizes

e Bases da Educação), que entrou em vigor em 20 de dezembro de 1996, promulgada pelo

então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Aqueles que trabalham com educação sabem o quanto estamos longe de

atingir a tão desejada educação popular; o quanto foi e é difícil para que a regulamentação

da carreira do magistério seja efetivada, para que os professores possam exercer a profissão

com dignidade; e o quanto as escolas públicas tem que recorrer a expedientes como

quermesses e Associações de Pais e Mestres a fim de arrecadar dinheiro para reformas ou

atendimento de outras necessidades.

Em 1998, com o auxílio de importantes intelectuais brasileiros, foram

elaborados pelo então Ministro da Educação e do Desporto, Paulo Renato Souza, os

Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. Estes parâmetros, segundo o próprio ministro,

têm como objetivo “servir de apoio às discussões e ao desenvolvimento do projeto

educativo de sua escola, à reflexão sobre a prática pedagógica, ao planejamento de suas

aulas, à análise e seleção de materiais didáticos e de recursos tecnológicos e, em especial,

que possam contribuir para a formação e atualização profissional”. (PCN, 1998: carta

dirigida ao professor).

26

1.2. O livro didático

1.2.1. A função do livro didático O livro didático só pode ser avaliado corretamente dentro do contexto do

sistema educacional brasileiro. Isto pode parecer óbvio, mas existem correntes críticas que

assumem uma postura de franca exasperação diante do livro didático, criticando-o de forma

isolada, como se este fosse o responsável por quase todos os males da educação no Brasil.

Ora, o livro é tão-somente um instrumento de trabalho do professor e é útil ou inútil à

medida que o professor sabe escolher melhor o livro que vai utilizar e que sabe utilizá-lo

bem.

No processo ensino-aprendizagem, o livro didático é, ao lado de outros

veículos, um meio de comunicação através do qual o aluno recebe a mensagem escolar.

Todo processo de comunicação implica em um emissor, um receptor, uma mensagem e um

veículo de comunicação. O emissor, no caso da sala de aula, é o professor, mas no caso do

livro didático, é o autor daquele material; o receptor é o educando; a mensagem é o

conteúdo transmitido; e o veículo, neste caso, é o próprio livro didático.

O emissor principal no ensino escolar é o professor, pois ele é o responsável

pela transmissão de um determinado conteúdo a uma determinada turma de alunos.

Obviamente ele faz uso do livro didático para auxiliá-lo nesse processo de comunicação.

Na maioria das vezes, chega a fazer do conteúdo dos livros didáticos o seu próprio

conteúdo, já que concorda com o que está escrito nele e orienta os educandos para que se

apropriem daqueles conteúdos. Existem professores que nem dão aulas, orientam os alunos

para que estudem exatamente o que está no livro, admitindo que o que está ali exposto é

tudo o que querem transmitir, fazendo da mensagem do livro a sua própria mensagem e

assumindo como posição e entendimento próprios os que estão nas páginas do livro.

Sendo assim, o autor do livro assume o papel de emissor principal do

conteúdo escolar e o professor, por tabela, assume aquela mensagem como sua. Não

obstante, existem professores que, corretamente, tomam o livro didático como um material

exclusivamente auxiliar do seu processo de ensino, assumindo uma posição crítica frente

27

aos conteúdos ali expostos, despertando nos seus alunos o senso crítico necessário para se

ler qualquer coisa. Nesse caso, o livro é o veículo de comunicação do autor, o auxiliar do

professor no processo de ensino e o auxiliar do aluno no processo de aprendizagem. Em

ambos os casos, o livro didático é uma peça importante no processo de comunicação do

ensino escolar.

Nos livros didáticos há conteúdos ideológicos: em relação à mulher, ao

negro, ao índio, etc. É preciso aprender a identificá-los para assumir um posicionamento

crítico em relação aos mesmos. O professor deve estar atento aos textos didáticos e utilizá-

los de forma crítica para que não faça seus alunos se apropriarem de conteúdos e de

perspectivas ideológicas. Tem que lembrar que uma mensagem nem sempre é verdadeira

apenas por ela estar escrita e publicada.

Como existe um problema grave tanto de estrutura do sistema educacional

quanto de formação dos professores, como vimos no ponto anterior, o livro didático acaba

transformando-se em muleta. É o caso, por exemplo, dos livros do professor com as

propostas de interpretação de texto. As editoras são empresas que fabricam produtos que

têm um mercado definido, com expectativas e demandas definidas. E a maior demanda

isolada provém fundamentalmente do governo, principalmente do Ministério da Educação,

que adquire, através do FNLD, o material didático para as escolas de ensino fundamental.

Na condição de maior consumidor de livros didáticos, o governo federal

teria amplas condições de induzir a melhoria do produto que compra, seguindo as mais

elementares regras de mercado. No entanto, não o faz. O PNLD, até hoje, tem-se

caracterizado como um grande comprador de serviços gráficos, e não como um agente de

desenvolvimento do material didático. O grande esforço do PNLD é voltado para a compra

do maior número de exemplares pelo preço mais barato, pois isso é o que importa para a

distribuição demagógica, a granel, dos livros para as escolas.

Esse sistema tem uma virtude básica, que é a da escolha pelo professor. Mas

essa virtude está também na raiz dos principais problemas. Professores despreparados

escolhem livros ruins; professores mal-pagos abandonam a carreira e seus sucessores, em

inúmeros casos, não querem trabalhar com o livro escolhido pelo antecessor e jogam fora o

material recebido; estruturas educacionais completamente viciadas, sem currículos

corretamente estruturados e adaptados às circunstâncias locais, induzem à escolha de livros

28

também inadequados. Essa é uma realidade amplamente conhecida e que exige mudanças

profundas e radicais.

A qualidade do livro didático no Brasil está ligada à qualidade do ensino que

se proporciona à população, com tudo o que isso implica desde a estruturação de currículos

adequados até a política de formação de professores e de sua remuneração e condições de

trabalho.

1.2.2. Breve histórico do livro didático no Brasil2 Em 1929, o Estado criou um órgão específico para legislar sobre políticas do

livro didático, o Instituto Nacional do Livro (INL), o que contribuiu para dar maior

legitimação ao livro didático nacional e, conseqüentemente, auxiliou o aumento de sua

produção. Em 1938, durante o chamado Estado Novo, por meio do Decreto-Lei nº

1.006/38, de 30/12/38, o Estado instituiu a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD),

mostrando sua primeira política de legislação e controle de produção e circulação do livro

didático no País.

Com o fim da ditadura varguista, em 1945, o Decreto-Lei nº 8.460/45, de

26/12/45 consolidou a legislação sobre as condições de produção, importação e utilização

do livro didático, restringindo ao professor a escolha do livro a ser utilizado pelos alunos.

Em 1966, um acordo entre o Ministério da Educação (MEC) e a Agência Norte-Americana

para o Desenvolvimento Internacional (USAID) permitiu a criação da Comissão do Livro

Técnico e Livro Didático (COLTED), com o objetivo de coordenar as ações referentes à

produção, edição e distribuição dos livros didáticos. O acordo assegurou ao MEC recursos

suficientes para a distribuição gratuita de 51 milhões de livros no período de três anos.

Assim, garantindo o financiamento do governo a partir de verbas públicas, o programa

revestiu-se de um caráter de continuidade.

Em 1970, por meio da Portaria nº 35/70, de 11/3/1970, o Ministério da

Educação implementou o sistema de co-edição de livros com as editoras nacionais, com

recursos do Instituto Nacional do Livro (INL). Em 1971, o Instituto Nacional do Livro

(INL) passou a desenvolver o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental

2 As informações contidas nesse subcapítulo foram retiradas do seguinte endereço eletrônico: http://www.fnde.gov.br/home/index.jsp?arquivo=/livro_didatico/livro_didatico.html#historico

29

(PLIDEF), assumindo as atribuições administrativas e de gerenciamento dos recursos

financeiros até então a cargo da COLTED. A contrapartida das Unidades da Federação

tornava-se necessária com o término do convênio MEC/USAID, efetivando-se com a

implantação do sistema de contribuição financeira das unidades federadas para o Fundo do

Livro Didático.

Em 1976, pelo Decreto nº 77.107/76, de 4/2/76, o governo assumia a compra

de boa parte dos livros para distribuí-los a parte das escolas e das unidades federadas. Com

a extinção do INL, a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) passava a ser

responsável pela execução do programa do livro didático. Os recursos provinham do Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e das contribuições das contrapartidas

mínimas estabelecidas para participação das Unidades da Federação. Devido à insuficiência

de recursos para atender aos alunos do ensino fundamental das escolas públicas, boa parte

das escolas municipais foi excluída do programa.

Em 1983, em substituição à FENAME, foi criada a Fundação de Assistência

ao Estudante (FAE), que incorporava o PLIDEF. Na ocasião, o grupo de trabalho

encarregado do exame dos problemas relativos aos livros didáticos propunha a participação

dos professores na escolha dos livros e a ampliação do programa, com a inclusão das

demais séries do ensino fundamental.

Em 1985, no fim do regime militar, com a edição do Decreto nº 91.542, de

19/8/85, o PLIDEF deu lugar ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que trazia

diversas mudanças, como a indicação do livro didático pelos professores e a reutilização do

livro, implicando a abolição do livro descartável e o aperfeiçoamento das especificações

técnicas para sua produção, visando maior durabilidade e possibilitando a implantação de

bancos de livros didáticos. Também se estendeu a oferta aos alunos de 1ª e 2ª séries das

escolas públicas e comunitárias e ficou excluída a participação financeira dos Estados,

passando o controle do processo decisório para a FAE e garantindo o critério de escolha do

livro pelos professores.

Em 1992, durante o governo do presidente Fernando Collor, a distribuição

dos livros ficou comprometida pelas limitações orçamentárias e houve um recuo na

abrangência da distribuição, restringindo-se o atendimento até a 4ª série do ensino

fundamental. Em julho de 1993, a Resolução FNDE nº 6/93 vinculava recursos para a

30

aquisição dos livros didáticos destinados aos alunos das redes públicas de ensino,

estabelecendo-se, assim, um fluxo regular de verbas para a aquisição e distribuição do livro

didático.

Em 1995, de forma gradativa, voltou a universalização da distribuição do

livro didático no ensino fundamental. Neste mesmo ano, foi estipulado que os livros

didáticos contemplassem as disciplinas de matemática e língua portuguesa; em 1996, a de

ciências e, por último, em 1997, as de geografia e história. Em 1996, iniciou-se o processo

de avaliação pedagógica dos livros inscritos no PNLD/1997, quando passaram a serem

classificados em quatro grandes categorias: a) excluídos: os que apresentam erros

conceituais, indução a erros, desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo;

não-recomendados: aqueles nos quais a dimensão conceitual se apresenta com

insuficiência, trazendo impropriedades que comprometem significativamente sua eficácia

didático-pedagógica; recomendados com ressalvas: livros que possuem qualidades mínimas

que justifiquem sua recomendação e que, mesmo apresentando problemas, podem, sendo

esses problemas levados em conta pelo professor, não comprometer sua eficácia; e

recomendados: livros que cumprem corretamente sua função, atendendo satisfatoriamente

não só a todos os princípios comuns e específicos, como também aos critérios mais

relevantes da área.

Em fevereiro de 1997, com a extinção da Fundação de Assistência ao

Estudante (FAE), a responsabilidade pela política de execução do PNLD foi transferida

integralmente para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O

programa foi ampliado e o Ministério da Educação passou a adquirir, de forma continuada,

livros didáticos de alfabetização, língua portuguesa, matemática, ciências, estudos sociais,

história e geografia para todos os alunos de 1ª a 8ª séries do ensino fundamental. Em 2000,

foi inserida no PNLD a distribuição de dicionários da língua portuguesa para uso dos

alunos de 1ª a 4ª séries. Em 2001, pela primeira vez na história do programa, os livros

didáticos passaram a ser entregues no ano anterior ao ano letivo de sua utilização. Os livros

para 2001 foram entregues até 31 de dezembro de 2000.

Em 2001, o PNLD ampliou o atendimento de forma gradativa aos alunos

portadores de deficiência visual que estão nas salas de aula do ensino regular das escolas

públicas, com livro didático em Braille. Em 2002, com o intuito de atingir, em 2004, a meta

31

de que todos os alunos matriculados no ensino fundamental possuam um dicionário de

língua portuguesa para uso por toda sua vida escolar, o PNLD deu continuidade à

distribuição de dicionários para os ingressantes na 1ª série e atende aos estudantes das 5ª e

6ª séries. Em 2003, o PNLD distribui dicionários de língua portuguesa aos ingressantes na

1ª série e atendeu aos alunos das 7ª e 8ª séries, alcançando o objetivo de contemplar todos

os estudantes de 1ª a 8ª séries do ensino fundamental com um material pedagógico que os

acompanharia continuamente em todas suas atividades escolares.

Em 2004, a Resolução FNDE nº 38/03, de 23/10/2003, criou o Programa

Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM), com o objetivo de distribuir livros

didáticos das disciplinas de matemática e língua portuguesa em 2005. Inicialmente, o

programa era experimental (projeto-piloto) e atendia aos alunos da 1ª série do ensino médio

matriculados em escolas públicas das regiões Norte e Nordeste. Como podemos notar, hoje,

já existe a definição de uma política para o livro didático no Brasil, o que implica

tratamento do setor mais diretamente vinculado ao processo educativo.

1.3. O ensino de português

1.3.1. Os PCN e o ensino de português Os Parâmetros Curriculares Nacionais – terceiro e quarto ciclos do ensino

fundamental, quanto à definição dos critérios para a avaliação da aprendizagem da língua

materna, estabelece, entre outros, o seguinte: o aluno deverá “atribuir sentido a textos orais

e escritos, posicionando-se criticamente diante deles (espera-se que o aluno, a partir da

identificação do ponto de vista que determina o tratamento dado ao conteúdo, possa

confrontar o texto lido com outros textos e opiniões, posicionando-se criticamente diante

dele.).” (PCN, 1998: 95).

É do conhecimento de todos, educadores ou não, que os alunos que

concluem o ensino fundamental e ingressam no ensino médio não possuem estas

habilidades. Pelo menos é que apresenta o Inep no seu relatório denominado Qualidade da

Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 8ª série do Ensino

Fundamental - 2003 quando diz que “no período de 1995 a 1997, a média da proficiência

em Língua Portuguesa caiu em torno de seis pontos; de 1997 a 1999, a queda foi ainda mais

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significativa – quase 20 pontos – e, em 2001, sobe 2,3 pontos. Ou seja, o leve aumento na

proficiência média ocorrido em 2001 não pode ser caracterizado como uma melhoria

efetiva na qualidade do ensino, isto porque os alunos cujo desempenho médio varia de 200

a 299 não adquiriram habilidades de leitura compatíveis com a 8ª série” (os grifos são

nossos).

Uma das questões que mais preocupam os professores de língua portuguesa,

nos dias atuais, é a falta de capacidade que determinados grupos de alunos apresentam

quando solicitados a interpretarem um texto. São comuns, em todas as áreas do

conhecimento, as queixas em relação à dificuldade que os alunos encontram para responder

determinados questionamentos. Na maioria das vezes, a dificuldade já está no fato de não

entenderem a própria pergunta.

Estas dificuldades seriam conseqüência das propostas dos PCN? Ou será que

os professores não estão preparados para trabalharem essas propostas? Ou será que o livro

didático, o suporte da grande maioria dos profissionais em educação, não fornece os

elementos necessários para desenvolver estas habilidades? Ou será que a escola não é

atraente o suficiente para que a intermediação do aprendizado se realize? São

questionamentos que exigem uma reflexão por parte de todos aqueles que estão ligados à

educação.

1.3.1. A estrutura dos PCN Os PCN para o ensino da língua portuguesa estão divididos em duas partes.

Na primeira, é apresentada a área de língua portuguesa e são discutidas questões sobre a

natureza da linguagem, o ensino dessa disciplina (objetivos e conteúdo) e a relação entre

texto oral-escrito e gramática. Na segunda parte, os PCN abordam a questão do ensino da

língua portuguesa nos terceiro e quarto ciclos, com os objetivos e conteúdos específicos

dessa fase, divididos em prática de escuta de textos orais, leitura de textos escritos, prática

de produção de textos orais e escritos e prática de análise lingüística.

Do ponto de vista didático-pedagógico, os programas curriculares nacionais

apresentam uma proposta de trabalho que valoriza e incentiva a participação crítica do

aluno diante da sua língua, buscando trazer à sala de aula as variedades de uso comuns a

qualquer linguagem. Eles propõem a produção e a escuta de textos pertencentes à

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linguagem oral; a leitura e a produção de textos escritos e a análise lingüística dos

diferentes gêneros em que se organizam esses diversos textos. A grande novidade nos

parece ser a inclusão dos textos orais no ensino de língua, já que não é comum

encontrarmos tais textos nos livros didáticos, e muito menos professores que façam uso

deles. Outro aspecto fundamental dos PCN é a importância dada aos textos produzidos

pelos próprios alunos. Estes, uma vez analisados em sala de aula, mostram aos próprios

alunos que eles também são produtores de textos e que a gramática não é algo tão abstrato,

permitindo que eles façam uma reflexão sobre língua e linguagem, comparando textos orais

e escritos dos mais variados gêneros, o que facilita o domínio da linguagem nas diferentes

situações de uso.

A prática de escuta de textos orais / leitura de textos escritos, de produção de

textos orais e escritos e de análise lingüística formariam um tripé em cima do qual sustenta-

se o ensino de língua portuguesa, funcionando como um bloco na formação dos alunos.

Nesse trabalho, interessam-nos particularmente as sugestões referentes à segunda parte,

mais especificamente a leitura de textos escritos. Mesmo assim faremos uma pequena

incursão nas demais sugestões, que consideramos de relevância, dentro do objetivo que

temos de explorar os PCN e ver o quanto suas idéias ou ideais influenciam na “construção”

do livro didático de língua portuguesa e o quanto contribuem para a edificação do “discurso

único” da classe dominante dentre as demais classes sociais.

O texto dos PCN começa pela apresentação da área de língua portuguesa,

destacando que a discussão acerca da necessidade de reorganização do ensino fundamental

no Brasil é antiga. O eixo desta discussão no ensino fundamental centra-se, principalmente,

no domínio da leitura e da escrita pelos alunos, responsável pelo fracasso escolar que se

expressa com clareza nos dois funis em que se concentra a maior parte da repetência: na

primeira série (ou nas duas primeiras) e na quinta série. No primeiro, pela dificuldade de

alfabetizar, no segundo, por não se conseguir levar os alunos ao uso apropriado de padrões

da linguagem escrita, condição primordial para que continuem a progredir.

(...) O ensino de Língua Portuguesa orientado pela perspectiva

gramatical ainda parecia adequado, dado que os alunos que freqüentavam a escola falavam uma variedade bastante próxima da chamada variedade padrão e traziam representações de mundo e de língua semelhantes às que ofereciam livros e textos didáticos.(p. 17).

34

É exposta de forma rápida a dificuldade enfrentada pelos alunos, quanto ao

componente curricular língua portuguesa, onde, segundo o texto, tradicionalmente, o ensino

da mesma baseava-se tão somente no ensino da chamada gramática padrão, ignorando as

diferentes variações lingüísticas dos diferentes grupos sociais que freqüentavam a escola.

Nunca é demais lembrar que esses grupos eram formados na sua grande maioria pela classe

média e pela classe alta, já que, como vimos, em boa parte da história do Brasil, as classes

“baixas” tinham pouco acesso à escola.

1.3.2. Os PCN e as críticas ao ensino de língua portuguesa Os PCN mostram que foi somente na década de 80 que o ensino de língua

portuguesa sofreu críticas mais consistentes. As pesquisas produzidas por uma lingüística

emancipada da tradição normativa e filológica e o avanço dos estudos introduzidos pela

variação lingüística e psicolingüística permitiram avanços nas áreas de educação e

psicologia da aprendizagem.

Entre as críticas mais freqüentes que se faziam ao ensino

tradicional destacavam-se: - a desconsideração da realidade e dos interesses dos alunos; - a excessiva escolarização das atividades de leitura e de produção de texto; - o uso do texto como expediente para ensinar valores morais e como pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais; - a excessiva valorização da gramática normativa e a insistência nas regras de exceção, com o conseqüente preconceito contra as formas de oralidade e as variedades não-padrão; - o ensino descontextualizado da metalinguagem, normalmente associado a exercícios mecânicos de identificação de fragmentos lingüísticos em frases soltas. - a apresentação de uma teoria gramatical inconsciente – uma espécie de gramática tradicional mitigada e facilitada. (p. 18)

Embora o texto insista em usar os verbos no pretérito, fortes são as razões

para acreditarmos que este ensino continua o mesmo, já que a maioria dos professores de

língua portuguesa traz como “referência” um ensino dito “tradicional” (quando

freqüentaram o ensino fundamental e o ensino médio, mantiveram contato com este

componente curricular através do “método tradicional”) e a grande maioria nem manteve

contato com a lingüística. Todos nós sabemos o quanto é caótica a situação financeira da

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maioria dos professores, obrigados a terem uma carga horária exagerada, inviabilizando

qualquer possibilidade de atualização. É certo que os “novos” professores, os que

adquiriram a habilitação para ministrarem esta disciplina trazem estes novos

conhecimentos, mas muitos ainda barram na resistência dos mais antigos. Visto que a

comodidade é mais fácil.

O texto dá continuidade à crítica do ensino de português: Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas devem

partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades lingüísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões da escrita, sempre considerando que: - a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio; - a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem objetos de correção; - as situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensar sobre a linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la apropriadamente às situações e aos propósitos definidos.(pgs. 18 e 19).

Onde será que existe esse consenso? Na escola brasileira? Acredito que não.

As razões dessa nossa perplexidade já foram expostas anteriormente. Não estamos

criticando a proposta do texto e, muito menos, a ação dos professores. Nossa perplexidade

diz respeito à realidade de “consenso” que é trazida pelo texto, talvez com o objetivo de

“induzir” os professores a mudarem o seu modo de agir em sala de aula. Mas todos nós

sabemos que o problema vai muito além do simples consenso.

Os PCN também tratam do que chamam de “Ensino e natureza da

linguagem”

(...) Considerando os diferentes níveis de conhecimento prévio, cabe à

escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações. (p. 19)

Este realmente é o sonho de todo o profissional da educação, que os alunos,

se não todos, pelo menos a grande maioria, adquiram esta capacidade de interpretar os

diferentes textos que circulam em seu mundo. Mais do que interpretar, que eles possam

identificar os diferentes discursos “escondidos” nestes textos; que sejam capazes de

perceber que a maioria dos textos trabalhada pelos livros didáticos brasileiros nada mais é

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do que o discurso único que domina o pensamento ocidental nos dias de hoje. Essa

discussão será o objeto específico do último capítulo deste trabalho.

Continuam os PCN sobre o “Ensino e natureza da linguagem”

Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história. (p. 20)

O conceito de linguagem, aqui, é bem abrangente. E a pergunta é: como

explorar as práticas sociais através de práticas lingüísticas, tomando os textos e as práticas

de ensino dos livros didáticos sem promover exclusões, visto que o grupo de alunos é bem

heterogêneo e as diferenças culturais são muitas e, conseqüentemente, prevalecem a

linguagem, a ideologia e os valores da classe dominante, os quais são reforçados todos os

dias, seja pela mídia, seja pela escola. Dentro deste item, há mais duas colocações: uma

sobre uma síntese do que seja linguagem e outra sobre um conceito de língua que

entendemos ser importante destacar. Estes “conceitos” falam por si só:

Em síntese, pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e

intenções, se estabelecem relações interpessoais anteriormente inexistentes e se influencia o outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o rumo de suas (re) ações. (p. 20)

(...), língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (p. 20)

1.3.3 Como os PCN tratam o texto Nos PCN, o conceito de texto é o seguinte: “um texto só é um texto quando

pode ser compreendido como unidade significativa global. Caso contrário, não passa de um

amontoado aleatório de enunciados” (p. 21). Se levarmos em consideração a realidade da

grande maioria dos brasileiros, ou melhor, dos brasileiros que freqüentam a escola no

último ciclo do ensino fundamental, perceberemos que texto, como conceituado acima, não

existe. Os próprios dados apresentados pelo Inep no seu relatório denominado Qualidade

da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 8ª série do Ensino

Fundamental - 2003 confirmam essa deficiência: “no período de 1995 a 1997, a média da

proficiência em Língua Portuguesa caiu em torno de seis pontos; de 1997 a 1999, a queda

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foi ainda mais significativa – quase 20 pontos – e, em 2001, subiu 2,3 pontos. Ou seja, o

leve aumento na proficiência média ocorrido em 2001 não pode ser caracterizado como

uma melhoria efetiva na qualidade do ensino, isto porque os alunos cujo desempenho

médio varia de 200 a 299 não adquiriram habilidades de leitura compatíveis com a 8ª

série” (os grifos são nossos).

Observemos o que diz o texto dos PCN sobre “Aprender a ensinar língua

portuguesa na escola”:

O primeiro elemento dessa tríade – o aluno – é o sujeito da ação de

aprender, aquele que age com e sobre o objeto de conhecimento. O segundo elemento – o objeto de conhecimento – são os conhecimentos discursivo-textuais e lingüísticos aplicados nas práticas sociais de linguagem. O terceiro elemento da tríade é a prática educacional do professor e de escola que organiza a mediação entre sujeito e objeto do conhecimento.

(...) saber que a escola é um espaço de interação social onde práticas sociais de linguagem acontecem e se circunstanciam, assumindo características bastante específicas em função de sua finalidade de ensino. (p. 22)

Os parâmetros colocam o aluno como o primeiro elemento da tríade, com o

que concordamos plenamente, pois sem aluno não há escola e muito menos necessidade de

aprendizagem. O segundo elemento seria o objeto de conhecimento, no nosso caso a língua.

Aí, talvez, encontre-se uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo professor. Na grande

maioria dos casos a distância entre a “língua” do professor e a “língua” do aluno é grande.

Nem que seja porque muitas das palavras que o professor usa não fazem parte do

quotidiano do aluno e vice-versa, dificultando a aprendizagem da língua. Isso ocorre

principalmente quando o professor provém de uma classe social distante da do aluno. O que

acaba sendo o elemento mediador entre essas “diferentes linguagens” deveria ser o livro

didático. No entanto, em geral, este está mais próximo da linguagem do professor do que da

do aluno, o que acaba desestimulando este último.

A escola, principalmente a escola das periferias, não consegue, ou melhor,

não conseguiu até hoje ser este elemento de mediação. Muitas vezes, ela está fechada para

os anseios e as necessidades da comunidade que a cerca, visto que, a maioria de seus

professores é de outras comunidades e o interesse pelas necessidades “lingüísticas” das

comunidades em que estão inseridas deixam muito a desejar, pelo fato dos profissionais em

educação não conhecerem essas variedades lingüísticas e pela sua incapacidade em aceitá-

las.

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Baseados nestas dificuldades, os PCN sugerem o que denominam de:

“Condições para o tratamento do objeto de ensino: o texto como unidade e a diversidade de gêneros

Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa

criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva. (competência discursiva refere-se a um “sistema de contratos semânticos” responsável por uma espécie de “filtragem” que opera os conteúdos em dois domínios interligados que caracterizam o dizível: o universo intertextual e os dispositivos estilísticos acessíveis à enunciação dos diversos discursos.

(...) Sobre o desenvolvimento da competência discursiva, deve a escola

organizar as atividades curriculares relativas ao ensino-aprendizagem da língua e da linguagem.

Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza

temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (p. 23)

A proposta é excelente. Todo profissional da educação deveria ter este

objetivo: o exercício da cidadania. É do consenso de todos que o exercício da cidadania

passa pelo conhecimento da língua. Primeiramente pelo conhecimento da sua própria

língua, ou melhor, de suas próprias variações, depois e, somente depois, pelo conhecimento

da variedade padrão. A língua é, foi e sempre será instrumento de dominação. É necessário

que o “futuro cidadão” domine a variedade padrão, mas sem discriminar nem abandonar

sua própria variedade, da de sua família, de sua região. É com este conhecimento que ele

terá competência comunicativa para buscar os seus direitos como elemento ativo na

sociedade.

1.3.3.1. A seleção de textos Este capítulo dos PCN dá um destaque especial aos diferentes gêneros

textuais. Vejamos:

(...), é preciso priorizar os gêneros que merecerão abordagem mais

aprofundada. (...) é preciso que as situações escolares de ensino de Língua

Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e

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abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada. (p. 24)

Aqui já começa a haver uma certa confusão. Num primeiro momento, os

PCN falam em buscar os textos comuns às comunidades de onde provêm os alunos, de

preferência utilizando os gêneros comuns a estas comunidades. A seguir, propõem que se

trabalhe com “textos que caracterizam o uso público da linguagem”, isto é os artigos de

jornais e revistas de grande circulação no país, que na sua grande maioria são inacessíveis a

grande parte dos alunos, além de trazerem o “discurso único” comum a grande parte da

mídia hegemônica nacional.

Um pouco mais à frente, os PCN reconhecem esta realidade:

Textos escritos (...) Para boa parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único

espaço que pode proporcionar acesso a textos escritos, textos estes que se converterão, inevitavelmente, em modelos para a produção. Se é de esperar que o escritor iniciante redija seus textos usando como referência estratégias de organização típicas da oralidade, a possibilidade de que venha a construir uma representação do que seja a escrita só estará colocada se as atividades escolares lhe oferecerem uma rica convivência com a diversidade de textos que caracterizam as práticas sociais. É mínima a possibilidade de que o aluno venha a compreender as especificidades que a modalidade escrita assume nos diversos gêneros, a partir de textos banalizados, que falseiem sua complexidade.

(...), a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que

aparecem com mais freqüência na realidade social e no universo escolar, tais como notícias, editorias, cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, romances, entre outros. (p. 25-26)

Agora perguntamos: por que estes textos devem ser selecionados entre os

diferentes meios de circulação nacional? Por que não podem ser selecionados dentro da

realidade das diferentes comunidades? Por que o padrão de escrita (notícias, editorias,

cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos,

romances, entre outros) têm que ser o da classe dominante? Por que não podem ser textos,

dentro dos diferentes gêneros propostos acima, produzidos pela própria comunidade em que

os alunos estão inseridos? Por que não usar o texto do jornal do bairro, do poeta do bairro,

da opinião do bairro?

40

Nossa opinião é que, somente respeitando estas diferenças, estaremos

despertando no aluno o interesse pela sua língua e, aí sim, poderemos introduzi-lo na

variedade padrão, na literatura reconhecida como tal pelas classes dominantes. A grande

dificuldade está na falta de tempo da grande maioria dos professores, já que, para

conseguirem sobreviver, precisam trabalhar em diferentes escolas e em múltiplos horários.

Nessas condições, o aluno mantém contato com a variedade dita padrão, que é a preferência

dos livros didáticos brasileiros distribuídos pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).

Agindo assim, estamos contribuindo para que o “discurso único”, presente na grande

maioria dos textos, alastre-se pelas diferentes comunidades de nosso país, como veremos no

último capítulo.

Os PCN sugerem outra forma de “trabalhar” os textos literários na escola:

É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar

presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aqueles que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (p. 27)

Qual professor está preparado para trabalhar esta “profundidade” dos textos

literários? Qual escola oferece condições para que este trabalho seja desenvolvido? A

proposta é boa, mas muito distante da realidade da escola brasileira. E também longe da

realidade das universidades brasileiras, que preparam os futuros professores.

1.3.4. Os PCN e uma breve reflexão sobre a linguagem verbal Dentre as implicações da questão do desenvolvimento da competência

comunicativa dos alunos, o texto defende que: “a aula deve ser o espaço privilegiado de

desenvolvimento da capacidade intelectual e lingüística dos alunos, oferecendo-lhes

condições de desenvolvimento de sua competência discursiva”(p. 30). Que competência

discursiva seria essa? Qual discurso queremos do aluno? O seu ou o nosso? O discurso da

sua comunidade lingüística ou o discurso da classe dominante?

A resposta a estas questões parece estar na incapacidade da escola de formar

leitores, embora este não seja o seu objetivo maior, e na incapacidade de formar usuários

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competentes da escrita padrão, mesmo sendo este o objetivo maior. Para isto basta vermos

os índices já expostos neste mesmo trabalho.

Analisemos alguns dos objetivos gerais da disciplina de língua portuguesa

para o ensino fundamental:

Analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o próprio,

desenvolvendo a capacidade de avaliação dos textos. (p. 33) (...) significa compreender que tanto o ponto de partida como a

finalidade do ensino da língua é a produção/recepção de discursos. (p. 34)

No próximo capítulo deste trabalho mostraremos qual discurso a escola

analisa, com que olhos ela o faz e, conseqüentemente, que discurso ela possibilita ou exige

que o aluno produza.

1.3.5. O profissional enquanto intermediário da educação Quanto aos critérios para seqüenciação dos conteúdos, vejamos o que dizem

os PCN:

A seleção e priorização deve considerar, pois, dois critérios

fundamentais: as necessidades dos alunos e suas possibilidades de aprendizagem. Estes, articulados ao projeto educativo da escola – que se diferencia em função das características e expectativas especificas de cada comunidade escolar, de cada região do país -, devem ser as referências fundamentais para o estabelecimento da seqüenciação dos conteúdos. (p. 37)

(...) Compreender um texto é buscar as marcas do enunciador projetadas nesse texto, é reconhecer a maneira singular de como se constrói uma representação a respeito do mundo e da história, é relacionar o texto a outros textos que traduzem outras vozes, outros lugares. (p. 40)

Como priorizar as necessidades fundamentais do aluno se o livro didático

trabalha com textos que muitas vezes trazem “problemas” fora da realidade das

comunidades em que a escola está inserida? Como trazer textos que vivenciam a realidade

do aluno se, muitas vezes, a escola, o professor e o aluno não possuem condições

financeiras para reproduzirem estes textos? Continuamos presos aos textos do livro didático

e ao discurso da classe dominante. Com a proposta dos conteúdos a serem desenvolvidos

pelas comunidades escolares, conclui-se a primeira parte dos PCN.

42

A segunda parte começa apresentando “o aluno adolescente e o trabalho

com a linguagem”. Destacamos alguns excertos que achamos interessantes para o objetivo

do nosso trabalho: “Trata-se de um período da vida em que o desenvolvimento do sujeito é

marcado pelo processo de (re)constituição da identidade, para o qual concorrem

transformações corporais, afetivo-emocionais, cognitivas e socioculturais” (p. 45). O texto

parte do princípio de que os alunos que freqüentam este ciclo estão dentro da faixa etária

desejável, ou seja, entre 13 e 15 anos. Para “colaborar” na (re) constituição dessa

identidade, usamos entre outros meios, a leitura e a interpretação, que entendemos como

“certa”, sugerida pelos textos dos livros didáticos. Não pretendemos afirmar que toda

interpretação deve ser aceita, mas que existem várias leituras possíveis e que elas devem ser

realizadas pelos alunos e, principalmente, incentivadas pelo professor.

Continua o texto sobre o mesmo assunto:

Para significativa parcela da sociedade brasileira, já na adolescência

impõe-se a necessidade de trabalhar, seja para assumir objetivamente compromissos e responsabilidades do mundo adulto, seja para experimentar a possibilidade de dispor de bens de consumo para os quais há grande apelo social, por meio da mídia e da divulgação do modus vivendi da classe média.

(...) é preciso considerar o fato de que os adolescentes desenvolvem um

tipo de comportamento e um conjunto de valores que atuam como forma de identidade, tanto no que diz respeito ao lugar que ocupam na sociedade e nas relações que estabelecem com o mundo adulto quanto no que se refere a sua inclusão no interior de grupos específicos de convivência. Esse processo, naturalmente, tem repercussão no tipo de linguagem por eles usada, com a incorporação e criação de modismos, vocabulário específico, formas de expressão etc. São exemplos típicos as falas das “tribos” – grupos de adolescentes formados em função de uma atividade (surfistas, skatistas, funkeiros etc.). p. (46)

Os autores do texto esqueceram de lembrar que a escola, através do

professor e do livro didático, principalmente por intermédio de seus “textos únicos”,

também colaboram para incentivar este consumo, enquadrando todos os jovens como um

único grupo, ignorando suas diferenças econômicas, sócias, culturais e lingüísticas.

Portanto, se estes jovens possuem um “espaço” para atuarem na sociedade, os únicos

espaços “lembrados” pelo texto são os espaços comuns à classe média e à classe alta

brasileiras. Se a mídia explora estas “linguagens do adolescente” para incentivar o consumo

e até mesmo certos comportamentos, por que os professores e a escola não podem utilizar

estas “linguagens próprias das comunidades” para incentivarem a cultura própria de cada

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bairro e de cada região do país? Por que precisamos trabalhar em cima de uma cultura

única, de uma idéia única, de um discurso único? Voltamos a insistir no fato de que, para

que isso se realize, é necessário que os governos invistam mais nos professores, que

ofereçam uma remuneração digna para que estes profissionais possam se enquadrar dentro

das exigências e necessidades das comunidades nas quais atuam.

Mais adiante o texto reconhece a importância do profissional em educação

como mediador no processo de aprendizagem:

Nas situações de ensino de língua, a mediação do professor é fundamental: cabe a ele mostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução, a consideração real da palavra do outro assume, concorde-se com ela ou não. Por um lado, porque as opiniões do outro apresentam possibilidades de análise e reflexão sobre as suas próprias; por outro lado, porque, ao ter considerações pelo dizer do outro, o que o aluno demonstra é consideração pelo outro. (p. 47)

Aqui são trazidas colocações importantes, que acreditamos todos os

profissionais em educação conhecem, mas que nunca é demais lembrar.

Continua o texto:

Nesse processo, ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é

necessário que se possa dispor tanto de uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado, dado que a intervenção precisa ser orientada por esses aspectos discretizados. A discretização de conteúdos, ainda que possa provocar maior distanciamento entre o aspecto tematizado e a totalidade do texto, possibilita a ampliação e apropriação dos recursos expressivos e dos procedimentos de compreensão, interpretação e produção de textos, bem como de instrumentos de análise lingüística. (p. 48)

Notemos o quão importante é esta proposta, o quanto ela traz de “inovador”

dentro das propostas até então apresentadas. Contudo, como tudo tem um “mas”,

perguntamos mais uma vez: nossas universidades preparam os futuros professores para que

possam trabalhar esta realidade dentro da sala de aula? A escola e a comunidade escolar

estão prontas para aceitarem esta “forma de trabalhar”? Como um profissional em

educação, que trabalha de 40 a 60 horas por semana e que possui classes com a média de 40

alunos, poderá realizar este trabalho?

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Observemos o que os PCN propõem como objetivos do ensino de língua

portuguesa:

No processo de leitura de textos escritos, espera-se que o aluno: (...)

- desenvolvendo sua capacidade de construir um conjunto de expectativas (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da função do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero, suporte e universo temático, bem como sobre saliências textuais – recursos gráficos, imagens, dados da própria obra (índice, prefácio, etc); - confirmando antecipações e inferências realizadas antes e durante a leitura; - articulando o maior número possível de índices textuais e contextuais na construção do sentido do texto, de modo a:

a) Utilizar inferências pragmáticas para dar sentido a expressões que não pertençam a seu repertório lingüístico ou estejam empregadas de forma não usual em sua linguagem;

b) Extrair informações não explicitadas, apoiando-se em deduções; c) Estabelecer a progressão temática; d) Integrar e sintetizar informações, expressando-se em linguagem

própria, oralmente ou por escrito; e) Interpretar recursos figurativos tais como: metáforas, metonímias,

eufemismos, hipérboles etc.; - delimitando um problema levantado durante a leitura e localizando as fontes de informação pertinentes para resolvê-lo; + seja receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, por meio de leituras desafiadoras para sua condição atual, apoiando-se em marcas formais do próprio texto ou em orientações oferecidas pelo professor: + troque impressões com outros leitores a respeito dos textos lidos, posicionando-se diante da crítica, tanto a partir do próprio texto como de sua prática enquanto leitor; + compreenda a leitura em suas diferentes dimensões – o dever de ler, a necessidade de ler e o prazer de ler; + seja capaz de aderir ou recusar as posições ideológicas que reconheça no texto que lê. (p. 49-51)

Os objetivos são excelentes, mas a escola pública no Brasil está muito longe

de atingi-los. Sabemos muito bem que muitos alunos concluem o ensino fundamental sem

serem capazes de interpretar um texto por mais simples que seja. Sabemos também que, na

maioria das vezes, os profissionais em educação são obrigados por seus “superiores”

(diretores, supervisores, que também são professores) a literalmente “empurrarem” estes

alunos para as séries seguintes, mesmo que o processo de aprendizagem não tenha se

completado, visto que um dos objetivos da educação pública no Brasil têm sido os

números. O número de alunos que concluem o ensino fundamental tem que ser alto para

que os índices de qualidade de vida no Brasil sejam elevados. Mais uma vez a questão

política-econômica está se sobrepondo à questão social-pedagógica.

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Vejamos as propostas para o que o texto chama de processo de analise

lingüística:

No processo de analise lingüística, espera-se que o aluno:

- constitua um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento da linguagem e sobre o sistema lingüístico relevantes para as praticas de escuta, leitura e produção de textos; - aproprie-se dos instrumentos de natureza procedimental e conceitual necessários para a análise e reflexão lingüística (delimitação e identificação de unidades, compreensão das relações estabelecidas entre as unidades e das funções discursivas associadas a elas no contexto); - seja capaz de verificar as regularidades das diferentes variedades do Português, reconhecendo os valores sociais nelas implicados e, conseqüentemente, o preconceito contra as formas populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos. (p. 52)

As propostas finais são excelentes. Elas são o “sonho” de todo profissional

em educação, cuja “missão” é trocar informações sobre a língua com os seus alunos. Mas,

mais uma vez, os PCN expõem o objetivo final e não apresentam os meios para atingi-lo.

Ignoram a realidade da educação brasileira, pelo menos a realidade da sala de aula da

escola brasileira.

Mais adiante o texto apresenta a proposta para o trabalho com textos orais e

com textos escritos. Como a proposta deste trabalho é direcionada para o texto escrito,

destacamos apenas o que consideramos importante dentro de nosso objetivo. O texto traz o

que chama de “conceitos e procedimentos subjacentes às práticas de linguagem”:

Antes (...) e de leitura de textos escritos (...), são sugeridos alguns

gêneros como referência básica a partir da qual o trabalho com os textos – unidade básica do ensino – precisará se organizar, projetando a seleção de conteúdos para a prática de análise lingüística.

(...). Nesse documento foram priorizados aqueles cujo domínio é

fundamental à efetiva participação social, encontrando-se agrupados, em função de sua conciliação social, em gêneros literários, de imprensa, publicitários, de divulgação científica, comumente presentes no universo escolar.

(...), em função do projeto da escola, do trabalho em desenvolvimento e

das necessidades específicas do grupo de alunos, outras escolhas poderão ser feitas. (p. 53)

Pelo que podemos observar, existem gêneros textuais que os PCN

consideram fundamentais para a efetiva participação social. O texto só não especifica

porque estes gêneros são tão fundamentais. Nem específica quem e quais critérios foram

46

utilizados para determinar estes gêneros como “fundamentais”. Aliás, falta fundamentação

teórica dentro dos próprios PCN do que seja gênero textual; não fica claro se os

pressupostos são os bakhtinianos ou os da lingüística do texto. Essa indefinição autoriza a

suspeitar que o critério possa ser o discurso da classe dominante presente nestes gêneros.

Vale a pena lembrar que outras escolhas “poderão ser feitas”, mas os

gêneros eleitos pela classe dominante como fundamentais devem permanecer. Não estamos

aqui dizendo que estes gêneros não devam ser conhecidos pelos alunos, mas sim lembrando

que a escola deveria partir dos gêneros comuns à comunidade onde está inserida para

chegar, a seguir, aos demais gêneros. Só assim teremos um aluno interessado em adquirir o

domínio da língua padrão, só assim poderemos formar um cidadão consciente. A partir do

momento em que colocamos outros gêneros como fundamentais, outros textos como mais

importantes, estamos ignorando e discriminando a realidade de muitos alunos. Estamos

contribuindo para a evasão escolar, pois aqueles que não se “submetem” estão fora dos

padrões estabelecidos pela classe dominante e, portanto, resta-lhes juntarem-se a multidão

de excluídos.

Observemos agora a visão que os PCN trazem sobre a leitura de textos

escritos:

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de

compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas. (p. 69)

A idéia que o texto nos passa sobre a leitura de textos escritos é aceitável. Os

conhecimentos do assunto, do autor, da linguagem do texto são importantes, mas insistimos

neste ponto: para a maioria dos alunos a realidade apresentada pelo livro didático, que é o

grande suporte do professor de língua portuguesa, está muito distante da sua realidade.

Continuam os parâmetros sobre o mesmo assunto:

(.),o professor deve preocupar-se com a diversidade das práticas de

recepção dos textos: não se lê uma notícia da mesma forma que se consulta um dicionário; não se lê um romance da mesma forma que se estuda. Boa parte dos

47

materiais didáticos disponíveis no mercado, ainda que venham incluindo textos de diversos gêneros, ignoram a diversidade e submetem todos os textos a um tratamento uniforme. (p. 70)

A observação sobre a diversidade das práticas de recepção é oportuna. É

fácil perceber que muitos textos são tratados do mesmo modo, independentemente dos

gêneros a que pertencem. Mas como tratar estes gêneros de forma diferente? Mais uma vez,

esbarramos nos problemas já levantados anteriormente: excesso de carga horária, excesso

de alunos, lacunas na preparação pelas universidades, etc. Como já assinalamos, os livros

didáticos passam por uma “comissão de triagem”, responsável por sua indicação. É lícito se

perguntar quais interesses defende este “seleto grupo”?

1.3.6. Considerações finais sobre os PCN Como podemos observar até aqui, a idéia dos PCN, num todo, não é ruim.

Mas duas críticas parecem inquestionáveis:

1. A linguagem e a estrutura do texto em si atrapalham a leitura e

compreensão dos temas abordados. A linguagem nem sempre é clara, sobretudo para um

público leitor constituído de professores que, como vimos, não tem sempre a necessária

preparação. Quanto à estrutura, ela não é uniforme: como exemplo, poderíamos citar os

objetivos das práticas de análise lingüística, que são muito simples e em número reduzido.

2. Os conceitos lingüísticos pertencem a linhas teóricas diferentes, mesmo

que haja um evidente predomínio de teorias ligadas ao texto (análise do discurso e

lingüísticas textual) e à sociolingüística. O problema não está nestas teorias, mas na

confusão que muitas profissionais da educação fazem, por desconhecerem os pressupostos

teóricos que norteiam estas linhas. É comum, entre professores de língua portuguesa

desatualizados, a convicção de que valorizar a variação lingüística significa aceitar tudo o

que o aluno produz, considerar tudo o que o aluno diz como certo, não oferecendo

condições de crescimento para o mesmo. Muitos professores também consideram que na

interpretação de texto, aceita-se qualquer coisa que o aluno escreva. Por mais absurdas que

pareçam, estas interpretações existem e dificultam bastante a discussão sobre as idéias

contidas nos PCN.

48

Independentemente das diferentes opiniões e interpretações, a verdade é que

os PCN abriram e abrem um novo espaço para a discussão sobre o ensino de língua

portuguesa. Seu principal mérito é alertarem o professor da sua importância em auxiliar o

aluno no desenvolvimento da sua competência comunicativa.

2. A LINGUAGEM VERBAL: FENÔMENO MULTIFACETADO

A complexidade da linguagem verbal determinou que o olhar científico

sobre ela tendesse a ser sempre um pouco parcial. Por exemplo, a “lingüística” inaugurada

por Saussure, teve falhas em relação ao tratamento teórico do uso da língua e à construção

de um instrumento científico capaz de dar conta do “discurso”.

As teorias lingüísticas, isto é, o "discurso sobre a língua", tanto em relação à

perspectiva escolhida para estudar o objeto língua, tanto quanto em relação à(s) escolha(s)

metodológica(s), devem ser compreendidas sócio-historicamente e em relação ao ambiente

epistemológico dominante, sobretudo no que diz respeito ao olhar dos lingüistas sobre as

relações entre linguagem verbal, sociedade e ideologia.

Estas teorias lingüísticas, influenciadas socialmente e ideologicamente, têm

também implicações sociais importantes. Elas têm um papel social e são utilizadas pela

ideologia no poder. Como veremos a seguir com as teorias de Saussure, que, de alguma

forma, legitimaram o uso da língua padrão e deram sustentação ao trabalho infértil, na

escola, sobre a língua como algo morto.

2.1. A "língua" de Saussure

Os grandes conceitos que Ferdinand de Saussure desenvolveu a respeito da

linguagem verbal servirão como elementos fomentadores de nossa discussão. Isso porque

Saussure teve uma importância fundamental em nossa formação acadêmica. Mesmo que

nossos professores não tivessem consciência disso, foi dentro de uma visão estruturalista e

de uma tradição gramatical que fomos alfabetizados durante os onze anos de educação

49

básica, já que as diferentes disciplinas foram trabalhadas e desenvolvidas, principalmente a

disciplina de Língua Portuguesa, dentro desta abordagem. Estudávamos a língua portuguesa

somente em seu aspecto formal, como “algo morto”, imóvel, separado do texto e da

contextualização verbal, sobretudo separado das necessidades reais de comunicação.

No Curso de Lingüística Geral, doravante CLG, por necessidades

metodológicas, Saussure estabelece algumas dicotomias. A primeira, entre língua e fala,

baseia-se numa outra, a de sincronia/diacronia. A sincronia é o estudo do funcionamento

da língua enquanto sistema, num determinado momento, que pode ser tanto do presente

quanto do passado. Na diacronia, o objeto de estudo é a relação entre um determinado fato

e outros anteriores ou posteriores. Saussure especifica que a relação entre os elementos da

língua só é estrutural, sistêmica, na sincronia. Na diacronia, essa relação deixa de ser

sistêmica para tornar-se histórica, nos limites do que a diacronia possibilita, já que a

diacronia somente permite observar os fatos da língua em eixos como o da linearidade e da

sucessividade.

Saussure deixa claro que a prioridade deve ser no estudo sincrônico. Ele

entende que o falante nativo não tem consciência da sucessão dos fatos da língua no tempo.

Para a consciência de quem utiliza a língua como instrumento de comunicação e interação

na sociedade, essa sucessão não existiria. A única realidade palpável que se apresenta de

forma imediata seria a do estado sincrônico da língua. Também, segundo Saussure, a

relação entre o significante e o significado é despótica e estará constantemente sendo

atingida pelo tempo, daí a necessidade de o estudo da língua ser necessariamente

sincrônico.

Mas prioridade não quer dizer exclusividade, pelo menos é o que o lingüista

suíço nos deixa transparecer quando diz: “A cada instante, a linguagem implica ao mesmo

tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual

e um produto passado” (Saussure, 2003: 16). Portanto, a língua sempre será sincronia e

diacronia em qualquer momento de sua existência.

Uma outra oposição essencial do funcionamento sincrônico das línguas

evidenciado por Saussure é a que existe entre os dois eixos paradigmático e sintagmático.

As relações sintagmáticas entre as unidades lingüísticas têm como base o “caráter linear da

língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo”. (Ibid.:

50

142). Quando colocado dentro da cadeia sintagmática, um termo passa a ter valor em

virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, ou a ambos,

visto que um termo não pode aparecer ao mesmo tempo em que outro, já que seu caráter é

linear.

Por outro lado, fora do plano sintagmático “as palavras que oferecem algo

de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam

relações muito diversas” (Ibid.: 143). São elementos que se encontram na nossa memória

de falante. O paradigma é uma espécie de “banco de dados” da língua, um conjunto de

elementos suscetíveis de aparecer num mesmo contexto lingüístico. Sendo assim, as

unidades do paradigma se opõem, se uma está presente, as outras estão ausentes.

A língua, na visão saussuriana, funciona sincronicamente e com base em

relações opositivas (paradigmáticas) no sistema e contrastivas (sintagmáticas) no discurso.

Saussure preocupou-se somente em saber o modo como as línguas funcionam

despreocupando-se com o modo como elas se modificam, ou seja, deu preferência ao

estudo sincrônico, que serviu como ponto de partida para a Lingüística Geral e para o

chamado método estruturalista de análise da língua.

Mas mesmo no sincrônico, Saussure não levou em conta a variação, inerente

às línguas, deixando o fenômeno da variação por conta da fala. No CLG, afirma-se que: “a

linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o

outro” (Ibid.: 16). A linguagem seria, portanto, a capacidade natural de usar uma língua e,

essa, por sua vez, “constitui algo adquirido e convencional” (Ibid.: 17). Como se pode

observar, para Saussure, o que é fato da língua (langue) está no campo social; o que é ato

da fala ou parole (discurso)3 situa-se na esfera do individual.

Como acervo de unidades significativas, a língua seria “o conjunto dos

hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender”

(Ibid.: 92). Ou seja, ao mesmo tempo em que vê a língua como o instrumento utilizado

pelos seres humanos para comunicarem-se, Saussure ignora as circunstâncias em que esta

comunicação ocorre, pois o Curso também afirma que a língua é “uma soma de sinais

3 Saussure nunca falou em "discurso", que, mais do que na esfera do individual, situar-se-ia na esfera do conteúdo a ser transmitido e que tradicionalmente ficou fora da lingüística.

51

depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos

idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos” (Ibid.: 27).

Como veremos a seguir, quando abordaremos as teorias lingüísticas de

Bakhtin/Volochinov, Pêcheux, Austin, Benveniste e outros teóricos, que nem todas as

palavras “são depositadas” no cérebro de cada indivíduo. As mesmas palavras podem ter

diferentes significados, ou, pelo menos, diferentes referentes, em diferentes situações de

uso.

Se, para Saussure, a língua constitui-se de “um produto social”, um todo

organizado, um conjunto de convenções, de elementos organizados entre si, mesmo que ela

não esteja completamente no cérebro de ninguém, mas sim no conjunto de todos os

cérebros da sociedade, pois “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si

só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de

contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (Ibid.: 22), a fala constitui-se de

atos individuais, o que a torna múltipla, imprevisível, irredutível a um sistema. Todo ato

lingüístico individual é ilimitado, incapaz de ser organizado em um sistema.

Por conseguinte “o estudo da linguagem comporta duas partes: uma,

essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do

indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte

individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psicofísica” (Ibid.: 27).

Aqui fica clara a posição do CLG, para quem a língua deve ser estudada fora de seu

contexto social e fora de seu contexto de uso. Isso acaba invalidando o estudo da língua, já

que não permite compreender sua verdadeira origem enquanto produto social, nem as

variações e transformações que seu uso determina. Saussure, ao estabelecer uma diferença

entre o individual e o social, ignora totalmente que, como será mostrado a seguir por

Bakhtin/Volochinov, a relação entre estes dois elementos, social e individual, se dá de

forma recíproca, ou seja, o individual só existe na sua interação com o social e o social só

existe com as diferentes interações entre os diferentes indivíduos.

Para Ferdinand de Saussure, a língua, tomada sincronicamente, seria algo

estável e imutável, algo submetido a uma norma introjetada na consciência individual

enquanto que os atos da fala nada mais seriam do que simples deformações dessas formas

normatizadas - mesmo que Saussure nunca utiliza essa última palavra. Mesmo se, ao

52

estabelecer a dicotomia língua-fala e ao caracterizar a "língua" como algo sincronicamente

imutável e homogêneo, o objetivo de Saussure fosse apenas metodológico, o CLG acabou

tratando a "língua" como algo “morto”. Como conseqüência disso, a lingüística

estruturalista acabou ignorando as variantes lingüísticas não padrão, classificadas como

fenômenos de "fala", não dignos de serem estudados, e, portanto, acabou ignorando os

saberes lingüísticos de inteiros grupos sociais que praticavam essas variantes. Em razão da

já assinada influência que essas teorias lingüísticas tiveram no decorrer do século 20, ao

menos em parte do chamado Ocidente, o estruturalismo em Lingüística tendeu a incentivar

a escola a ignorar os diferentes saberes lingüísticos dos seus freqüentadores. A língua

“morta” passou a ser a única variedade lingüística aceita. Ao ignorar as diferentes

produções discursivas, nos diferentes ambientes, a sociedade em geral, a escola em

particular acabou contribuindo para o afastamento da grande maioria dos indivíduos da

escola e, conseqüentemente, para que estes indivíduos tenham uma aversão muito grande a

tudo o que diz respeito ao estudo da língua.

Do mesmo modo, nas interpretações mais comuns do CLG, estes mesmos

atos de fala individuais explicariam as mudanças da língua, na medida em que, em razão da

opção de separar o estudo sincrônico do estudo diacrônico, no momento em que muda uma

só unidade da língua, todo o sistema da língua mudaria, já que todas as unidades da língua

são solidárias uma da outra, formando uma estrutura.

Alguns anos após a publicação póstuma do CLG (1916), no livro Marxismo

e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochinov apresentou uma crítica do modelo teórico de

Saussure, mostrando que sua principal fraqueza foi de não compreender que as línguas

funcionam (até mesmo na percepção dos falantes) não como sistemas imutáveis, nem como

sistemas fechados e autônomos, mas, ao contrário, como sistemas flexíveis, em constante

mutação.

2.2. O caminho para o estudo da língua em uso

Em 1955, numa série de 12 palestras proferidas na Universidade de Harvard,

o filósofo inglês John Langshaw Austin formulou a teoria dos “atos da fala”. Esta teoria

53

teve como ponto de partida uma crítica ao positivismo lógico, então dominante na escola de

Oxford, onde Austin atuava, segundo o qual o sentido de um enunciado é função de suas

condições de verdade.

Austin mostra que, se fosse assim, não haveria sentido nos enunciados nos

quais não se possa averiguar se aquilo que é dito é verdadeiro ou falso. Pondo em causa

esta pretensão, Austin observa que muitos dos enunciados que proferimos não podem ser

submetidos à prova da veracidade, uma vez “que ao se emitir o proferimento está se

realizando uma ação, não sendo, conseqüentemente, considerado um mero equivalente a

dizer algo” (Austin, 1990: 25). Continua sua exposição afirmando que, apesar disso, este

tipo de enunciado não deixa de ter sentido.

Surge assim, segundo Austin, a distinção indiscutível entre enunciados

“constativos”, que podem ser submetidos à prova da sua veracidade, por se referirem a algo

que existe independentemente da ocorrência da sua enunciação, e enunciados

“performativos”, que não podem ser submetidos à prova da veracidade, uma vez que aquilo

a que se referem depende justamente do fato de serem enunciados. Para o filósofo escocês,

“o proferimento exteriorizado é a descrição verdadeira ou falsa da ocorrência de um ato

interno”. (Ibid.: 27).

Na continuidade desta distinção, Austin procura esclarecer as regras que dão

sentido aos enunciados performativos. Afirma que “quanto mais consideramos uma

declaração, não como uma sentença ou proposição, mas como um ato de fala (a partir do

qual os demais são construções lógicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda

como um ato”. (Ibid.: 35). Após demonstrar que a natureza performativa de um enunciado

não depende de sua forma gramatical nem do valor semântico dos verbos utilizados, Austin

acaba por formular regras às quais um enunciado deve obedecer para adquirir valor

performativo.

Numa nova fase, quando reelabora sua teoria, Austin afirma que quando

falamos, realizamos três modalidades de atos: atos locutórios, atos ilocutórios e atos

perlocutórios. Ato locutório é o próprio fato de falar, de realizar uma fonação, um

acontecimento sempre novo que fazemos existir cada vez que produzimos um conjunto de

sons, em conformidade com determinadas regras gramaticais, com um determinado sentido;

atos ilocutórios são os que realizamos ao efetuarmos um ato locutório, ao dizermos

54

qualquer coisa, e atos perlocutórios são os que realizamos pelo fato de dizermos qualquer

coisa. Assim, por exemplo, Está chovendo é um ato locutório, a realização de determinados

sons organizados de acordo com as regras da língua portuguesa, que tem como valor

ilocutório produzir uma afirmação e que, proferida em determinadas circunstâncias pode

ter, entre outros possíveis, o efeito perlocutório de dar a entender que o locutor pretende

levar o alocutário a abrir o guarda-chuva e realizar indiretamente um pedido para o fazer.

Os trabalhos de John Austin foram o ponto de partida para a Pragmática, que

estuda a relação entre a estrutura da linguagem e seu uso. Segundo Fiorin: “O estudo do uso

é absolutamente necessário, pois há palavras e frases cuja interpretação só pode ocorrer na

situação concreta de fala”. (Fiorin, 2003: 166). A Pragmática preocupa-se com o uso da

linguagem em geral, sendo o seu objeto a produção e a interpretação completa dos

enunciados, em situações verdadeiras de uso. Busca solucionar como as interpretações

levam em consideração não somente a língua, mas também o contexto. Ou seja, a

Pragmática preocupa-se em explicar o uso real da língua.

Segundo Fiorin (2002: 52) “A finalidade última de todo ato de comunicação

não é informar, mas é persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado”, ou seja, em

todo momento em que há uma comunicação está explicito ou implícito o fato do enunciador

tentar persuadir o enunciatário, já que todo ato de comunicação é um complexo jogo de

manipulação.

Em âmbito escolar, essa abordagem não é levada em conta. Ao trabalhar

com determinado texto presente no livro didático, o professor, consciente ou

inconscientemente, tende a ver nesse texto uma simples informação, sem buscar os

elementos não explícitos e sem ver nele os aspectos ilocutórios e perlocutórios.

2.2.1. Caminhando com a teoria da enunciação A teoria da enunciação obtém impulso na França com a obra do lingüista

Émile Benveniste, o qual propunha um estudo sobre a subjetividade na língua, tratando-a

como ato produtor do enunciado e vinculando-a à noção de enunciação. Benveniste

55

descreveu a língua como o fundamento das relações intersubjetivas que ocorrem no

discurso4.

Com a Lingüística da Enunciação, intensificou-se o interesse pelo discurso,

uma vez que, colocando a língua em funcionamento, esta mesma língua fica livre do

fechamento e da imobilidade da estrutura. Nas teorias da enunciação, a linguagem não é um

instrumento externo de comunicação e transmissão de informação, mas uma forma de

movimento entre os agentes do discurso.

No capítulo denominado “Da subjetividade na linguagem”, no primeiro

volume de Princípios de lingüística geral, Benveniste questiona o conceito de linguagem

descrita como instrumento de comunicação. Segundo ele, falar de instrumento, referindo-se

à linguagem, é opor o homem a sua própria natureza. As características da linguagem, sua

natureza imaterial, seu conteúdo, seu funcionamento simbólico impedem que ela seja

comparada a um instrumento, pois se assim fosse, poder-se-ia dissociar o homem da

própria linguagem. Para Benveniste a “linguagem está na natureza do homem que não a

fabricou” (Benveniste, 1995: 285), “é na linguagem e pela linguagem que o homem se

constitui como sujeito” (Ibid.).

Segundo Benveniste, a subjetividade é “a capacidade do locutor se propor

como ‘sujeito’, definindo-se como a unidade psíquica que transcende a totalidade das

experiências vividas que reúne e que assegura a permanência da consciência” (Ibid.: 286).

A subjetividade é analisada por Benveniste em estudo sobre a categoria da pessoa, em que

foram descritos os pronomes EU/TU como indicadores que marcam a presença do sujeito

na língua: “os pronomes pessoais não remetem a um conceito nem a um indivíduo; diferem,

assim, do status de outros signos da linguagem. A realidade a que remetem é a realidade do

discurso” (Ibid.: 288). A terceira pessoa ocupa uma outra posição na teoria de Benveniste:

refere-se a um objeto fora da alocução; existe e se caracteriza em oposição à pessoa “EU”

do locutor que, ao enunciá-la, situa-a como não-pessoa. Portanto, faz parte de um discurso

enunciado por EU.

Para a Lingüística da Enunciação, o sujeito é o ponto de referência e os

pronomes pessoais, além de marcarem a subjetividade na linguagem, também representam

4 O termo ‘discurso’ não tem aqui o mesmo sentido que terá em outras correntes da lingüística, como, por exemplo, na Análise de Discurso, inaugurada por Pêcheux.

56

o eixo principal do qual dependem outras palavras com o mesmo status, palavras estas

indicadoras do fenômeno da dêixis e que organizam as relações temporais e espaciais em

torno desse mesmo sujeito. Embora o TU seja complementar e indispensável, na relação, é

o EU que tem ascendência sobre o TU.

Benveniste entende que a enunciação manifesta a linguagem como um modo

de ação, é uma relação do locutor com a língua, apropriando-se dela e colocando-a em

funcionamento. Para concretizar essa ação, o locutor “está equipado” de um aparelho de

funções para influenciar de alguma maneira o comportamento do alocutário. Tal

“equipamento” comporta mecanismos como: asserção, intimidação, interrogação e

modalidade. Ao utilizar o mecanismo denominado modalidade, o enunciador mostra como

ele considera seu próprio enunciado, ou seja, ao utilizar modalizadores como os advérbios

“talvez”, “provavelmente”, “porventura”, “acaso”, o enunciador deixa transparecer que o

seu enunciado não está inteiramente assumido, que a proposição está limitada a uma certa

relação entre o enunciador e seu discurso. Nessa condição, o locutor, ao perceber que o

conteúdo de sua enunciação pode ser validado, mas não é ele quem valida, faz uso da

modalidade. Ele não assume a posição entre certo ou errado, deixando ao alocutário a

decisão de ser, ou não, validada a enunciação. Sendo assim, vemos que este mecanismo

possui um valor intersubjetivo.

Portanto a subjetividade descrita por Benveniste implica intersubjetividade,

pois há correlação no par EU/TU, já que no processo de enunciação, ao delimitarmos um

EU, delimitamos também um TU. A condição do diálogo é então característica da pessoa e

é a intersubjetividade que enseja o uso da língua, ou seja, a subjetividade é a capacidade

que o locutor tem de se propor como sujeito em uma relação de convertibilidade entre o EU

e o TU.

Se para a Lingüística da Enunciação, a enunciação é o ato individual de

colocar a língua em funcionamento, ou de transformá-la em discurso, ela fica, na

perspectiva de Benveniste, circunscrita ao espaço do subjetivo e do individual. Esta

dimensão individual e subjetiva atribuída ao discurso vai ser, como veremos a seguir,

contestada pela Análise do Discurso (AD) que tem como objeto o discurso, considerado

como uma instância integralmente histórica e social.

57

2.3. A sedução pelo formalismo

No final da década de 50, paralelamente às idéias de Austin, novos rumos

para a Lingüística são dados por Noam Chomsky através de sua gramática gerativa.

Chomsky desloca a atenção dos estudiosos do objeto pronto, da língua como atividade

realizada, para o processo de produção. Elege como objeto de estudo a geração de frases e

não a sua descrição.

Segundo Carlos Mioto, “o que permite ao falante decidir, então, se uma

sentença é gramatical ou não, é o conhecimento que ele tem e que tem o nome técnico de

competência. Quando o falante põe em uso a competência para produzir as sentenças que

ele fala, o resultado é o que chamamos tecnicamente de performance (ou desempenho). O

papel da nossa teoria, tal qual a concebemos, é descrever e explicar a competência

lingüística do falante, explicitando os mecanismos gramaticais que subjazem a ela”. (Mioto,

1999: 22 e 23).

Essa teoria entende a gramática como um modelo de competência do falante

ideal num contexto ideal, na qual as regras gramaticais definem a homogeneidade do meio

lingüístico. Sugere que a capacidade para produzir e estruturar frases é inata ao ser humano.

Para Chomsky e os gerativistas, não temos consciência desses princípios estruturais assim

como não temos consciência da maioria das nossas outras propriedades biológicas e

cognitivas.

Noam Chomsky acredita que a linguagem é predisposta no cérebro dos

indivíduos, que as regras que comandam a linguagem são inatas, biologicamente universais

e que ela distingue os homens dos demais animais. Detém-se ao mentalismo, não se

detendo a função comunicativa da linguagem, o que deixa claro que o lingüista

estadunidense preocupou-se primeiramente com o conceito de gramática. Segundo ele

“A linguagem humana está baseada numa propriedade elementar que parece também ela ser biologicamente isolada: a propriedade da infinitude discreta, que em sua forma mais pura é exibida pelos números naturais 1, 2, 3, (...). As crianças não apreendem esta propriedade; se a mente não possuísse já de antemão os princípios básicos, não haveria quantidade de evidência capaz de provê-los. Do mesmo modo, nenhuma criança precisa aprender que existem frases com três palavras e frases com quatro palavras mas não com três palavras e meia, e que esse número pode ir aumentando sem ter fim.” (Chomsky, 1997: 50).

58

Para Chomsky, segundo Leandro Ferreira: “gramática seria o estado estável

da faculdade de linguagem representada na mente / cérebro; e língua, o conjunto finito de

sentenças que essa gramática pode gerar” (Leandro Ferreira, 1999: 131), portanto, conhecer

uma língua seria ter na mente a representação dessa língua.

Podemos observar a parcialidade da teoria chomskiana nos diferentes níveis

em que ele dividiu a língua: um considerado primário (sintático) e o segundo nível

fonológico. No nível sintático, estariam as combinações das palavras (unidades

significativas) e no nível fonológico, os sons, que por si só não possuem nenhuma

significação.

Tanto Saussure como Chomsky reduziram a linguagem a um nível sensório

mensurável, priorizando o objeto de forma empírica em detrimento do sujeito falante

histórico-social, abstendo-se de explicar os fenômenos extralingüísticos. Ambos aderiram à

fixação de um sistema lingüístico homogêneo, dedicando-se ao estudo de regras abstratas:

língua em Saussure e competência em Chomsky.

Estes conceitos, quando adotados pela escola, geram relações pedagógicas

hierárquicas e verticalizadas, pois instrumentalizam a relação professor-aluno e reificam o

sujeito, excluindo este mesmo sujeito de participar das construções do sentido, no nosso

caso, o sentido do estudo da língua.

2.4. A sedução pela variação

Enquanto Estruturalismo e Gerativismo consideravam a variação como

produto livre e individual, várias pesquisas de campo, realizadas em países e regiões

plurilíngües, demonstravam quanto o estudo da variação lingüística fosse essencial.

Em 1966, numa reunião ocorrida na UCLA (Universidade de Los Angeles),

vinte e seis lingüistas, entre eles Labov, reuniram-se com a idéia de apresentar uma

alternativa à Lingüística formal, de tipo chomskiana, cada vez menos humana e menos

social. A maioria destes estudiosos não tinha como objetivo maior uma revisão radical da

Lingüística estruturalista, tinham tão somente o objetivo de reivindicar o acréscimo de uma

59

dimensão social a estes estudos. Dentro deste contexto formal surge a Sociolingüística.

Uma das maiores expressões da denominada Sociolingüística é William Labov, que

pesquisou as variações lingüísticas a partir de um ponto de vista social e elege a

heterogeneidade da língua como a questão primeira da Lingüística.

Para Labov, algumas variações lingüísticas são resultantes da fala de

subgrupos e possuem regras implícitas. Esta fala caracteriza as relações sociais

estabelecidas entre os membros desse subgrupo, sendo o que o diferencia das demais

classes sociais e de outros subgrupos. Já outras variações lingüísticas – estilísticas – se

caracterizam pela adequação do falante ao contexto em que se estabelece a expressão

lingüística. As investigações de Labov propuseram-se, sobretudo, a investigar a relação

entre linguagem e estrutura social, com a finalidade de captar o valor social que é atribuído

à linguagem.

Ao mostrar que o dialeto não-padrão é tão completo quanto o padrão, a

Sociolingüística desmistificou o preconceito social em relação a dialetos não-padrões e

propôs um olhar mais amplo e mais dinâmico sobre a linguagem. Labov critica a noção de

variação livre e individual, compreendida na lingüística formal como mecanismo eventual.

Para ele, a variação se dá como expressão da posição que o falante ocupa no meio social,

demonstrando que, na prática, a homogeneidade da língua inexiste.

Uma das contribuições mais essenciais de Labov foi ter mostrado que a

variação é determinada pelas regras construídas pelo coletivo e incorporadas

inconscientemente pelos falantes. Por ser resultante da cultura de um determinado grupo, a

variedade lingüística também identifica o falante. Como já assinalado, em termos de

estrutura, complexidade e logicidade, os dialetos não-padrões e o dialeto padrão apresentam

os mesmos valores.

O objeto da Sociolingüística é o estudo da língua em seu contexto social,

isto é, em situações reais de uso. O ponto de partida é o conjunto de pessoas que interagem

verbalmente e que compartilham a mesma língua. Os indivíduos relacionam-se por meio de

redes expansivas diversas e que determinam seu comportamento verbal por um mesmo

grupo de regras. Estas redes expansivas são os diferentes contatos que o indivíduo mantém

com os diferentes grupos sociais nas diferentes situações de uso da língua.

60

Segundo Faraco, Labov estabelece “como um ponto essencial da

investigação histórica localizar o fenômeno sob mudança tanto no contexto estrutural

(interno) quanto no contexto social (externo)” (Faraco, 1991:39), ou seja, a língua deve

também ser analisada e estudada dentro de uma determinada estrutura, considerando-se as

diferentes influências e transformações que esta mesma língua sofre dentro dessa mesma

estrutura.

A Sociolingüística – européia, sobretudo – também se interessa pela

"variação diamésica", isto é, em relação ao meio empregado para a comunicação – entre

outras, a distinção entre falado e escrito – e suas possíveis implicações didáticas no

chamado fracasso escolar. O novo “cidadão” em fase de alfabetização sofre o preconceito

daqueles que teriam a obrigação de apresentar-lhe as diferentes formas de falar, de

escrever, de comunicar-se, mostrando que nenhuma se sobrepõe a outra. Privilegiar a

linguagem falada, sobretudo no ensino fundamental permite entrar em questões geralmente

evitadas no estudo da língua materna, tais como as variações e mudanças, dois pontos de

extrema relevância. Noções como “norma”, “padrão”, “dialeto”, “variante”, “sotaque”,

“registro”, “estilo”, “gíria” podem tornar-se centrais no ensino de língua e ajudar a formar a

consciência de que a língua não é homogênea nem monolítica. (Santipolo 2002: 107 et

passim)

A linguagem falada é muito mais usada do que a escrita. No dia-a-dia da

maioria das pessoas, a fala ocorre com muito mais freqüência que a escrita: é assim no

trabalho, em casa, na rua. No entanto, as instituições escolares tendem a privilegiar a escrita

e ignorar a fala. O mais grave é que isto não representa uma contradição. Ao contrário,

trata-se de uma postura consciente, da escola, dos professores e dos pais dos alunos,

ideologicamente determinada.

Segundo Marcuschi:

“a fala (enquanto manifestação da prática oral) é adquirida naturalmente em

contextos informais do dia-a-dia e nas relações sociais e dialógicas que se instauram

desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê. Mais do que a

decorrência de uma disposição biogenética, o aprendizado e o uso de uma língua

natural é uma forma de inserção cultural e de socialização” (Marcuschi, 2003: 18).

61

Portanto, apesar do contato com a linguagem oral ser muito anterior ao

contato com a escrita, esta última é a forma ensinada e prestigiada em nossas escolas.

Nessas condições, é natural que, ao descobrir a escrita, o aluno encontre dificuldades de

manifestar-se.

A linguagem verbal – oral e escrita – é um dos sistemas simbólicos que mais

separa os que dominam dos que são dominados. Em muitos casos, ela é utilizada como

elemento de distinção, determinando a “posição” dentro da pirâmide social, sendo que as

práticas que fogem aos “padrões” estabelecidos pela classe dominante não são aceitas e

muito menos contextualizadas dentro dos diferentes bancos escolares. Essa “violência

pedagógica” da qual falavam Bourdieu e Passeron acaba afastando, total ou parcialmente,

grande parte dos alunos, o que termina reforçando o caráter de distinção social da

linguagem.

O livro didático de língua portuguesa dá preferência aos textos escritos no

chamado “português padrão” e ignora totalmente a linguagem oral. Estes dois fatores por si

só contribuem para o afastamento da grande massa de excluídos dos bancos escolares.

O que temos na nossa cultura lingüística é uma divisão bem nítida. De um

lado a norma-padrão, um ideal que se baseia em formas do português escrito nos jornais,

livros, revistas e ensinado nas escolas, tido como “referência”. Do outro lado, o conjunto

das diferentes variedades lingüísticas do português falado pelo povo brasileiro nas

diferentes regiões do país e nas diferentes classes sociais, realizações concretas que

constituem o nosso vernáculo.

A distância é muito grande entre a “língua vernácula” e o que é considerado

como modelo da “língua portuguesa”. A maioria do povo brasileiro fala um “português”

muito distante daquele que é ensinado pelas escolas e as escolas, através de seus

professores e dos livros didáticos, insistem em “ensinar” uma língua que não é falada no

país, o que cria uma grande aversão das pessoas a tudo que diz respeito à língua materna.

Nesse contexto, tudo leva a crer que a escola trata a passagem da oralidade

para a escrita como a passagem do caos para a ordem, quando na realidade é a passagem de

um tipo de ordem para outro. A visão dicotômica da relação entre fala e escrita não mais se

sustenta. O certo é que a escrita não representa a fala, seja qual for o ângulo sob o qual a

62

observemos. Justamente pelo fato de fala e escrita não se recobrirem é que podemos

relacioná-las, mas não em termos de superioridade ou inferioridade. Fala e escrita são

diferentes, mas as diferenças não são polares e sim graduais e contínuas. São duas

alternativas de atualização da língua nas atividades sócio-interativas diárias.

Já que fala e escrita são diferentes, como a escola pode sustentar-se e, ao

mesmo tempo ser atraente, trabalhando a escrita “padrão” como a única forma aceita e

ignorando totalmente os diferentes dialetos e variações de seus alunos nas diferentes

regiões de nosso país, que possui dimensões continentais?

Só teremos uma escola atraente a partir do momento em que estas diferenças

forem respeitadas e trabalhadas dentro da própria escola. No dia em que os textos

produzidos e analisados não forem somente os impostos pela classe dominante (que utiliza

e produz a “variedade padrão”) através do livro didático e do professor, que é mais um

instrumento inconsciente a serviço do sistema dominante.

O mito do “bom falar” persiste até os dias de hoje, marginalizando seres

humanos com piadas preconceituosas, mostrando uma total ignorância quanto às variações

lingüísticas, intrínsecas a todas as línguas. Ao trazer em si a manifestação de uma

identidade social e cultural, a oralidade, de certa maneira, assusta. O mais paradoxal é que

a norma culta encontra legitimação até mesmo na consciência desses grupos sociais

subalternizados e marginalizados, que, ao não encontrar respaldo do que aprendem na

escola, acabam por acreditar que sua língua é uma “língua de pobre”, uma “língua de

marginal”, uma “língua de preto”.

É necessário que o professor explique, com base em teorias lingüísticas

consistentes, a origem e o funcionamento das variantes lingüísticas estigmatizadas, que

mostre as diferentes normas gramaticais que regem cada uma delas. Isso deixará claro que

as formas alternativas não são erradas, não são confusas, não são marginais, não são

incoerentes, isto é, que também são formas com as quais é possível expressar-se de modo

claro, bonito, condizente com as diversas situações e as diversas funções da interação

verbal. Só assim conseguiremos formar cidadãos conscientes, cidadãos que se aceitem com

suas diferenças lingüísticas, que se respeitem e que tratem num mesmo patamar de

igualdade as diferentes variações.

63

Muitas são as contribuições que a Sociolingüística trouxe pra o crescimento

e evolução da Lingüística, mas, infelizmente, estas inovações pouco chegaram ou ainda não

chegaram à maioria das salas de aula de nosso país. O descaso e o desrespeito com as

diferentes variações, que não são poucas em nosso país, onde a maioria dos professores de

língua portuguesa prioriza a variante dita padrão, em detrimento das variantes dos

diferentes grupos sociais que freqüentam as diferentes escolas de nosso país tem

contribuído muito para o afastamento (seja temporário ou permanente) de nossos alunos da

sala de aula e, conseqüentemente, aumentado de forma alarmante o analfabetismo funcional

em nosso país.

2.5. Quando o objeto é o discurso

No final da década de 1960, na França, surge uma posição teórica que busca

pensar a relação entre o lingüístico e o chamado extralingüístico, como uma relação

histórica e constitutiva do processo lingüístico e que entende o discurso como um efeito de

sentido entre interlocutores, como algo carente de uma origem, marcado pelos já-ditos, mas

ligado a um sujeito.

O maior representante desta linha de pensamento é Michel Pêcheux, que

sempre deixou clara sua relação com a lingüística estruturalista de Ferdinand de Saussure e

com o materialismo histórico, representado principalmente pelo pensamento de Louis

Althusser. A influência do materialismo histórico no domínio da lingüística consistiria em

colocar uma série de questionamentos sobre os próprios objetos desta ciência e de suas

relações com outros domínios científicos.

Daí, para Pêcheux (1997), surgem noções elementares e opostas. A primeira

seria a noção de alicerce lingüístico, enquanto conjunto de estruturas morfológicas,

fonológicas e sintáticas. Aparelhado de uma relativa autonomia, o sistema lingüístico seria

regido por leis internas, como as de concordância, que determinariam o sistema de

produção do discurso nos sistemas sociais. A segunda noção seria a de processo

discursivo/ideológico, que se desenvolve sobre os alicerces dessas leis internas, pois

64

“Dizemos que esses dois elementos (a um só tempo, fenômenos lingüísticos e lugares de questões filosóficas) pertencem à região de articulação da Lingüística com a teoria histórica dos processos ideológicos e científicos, que, por sua vez, é parte da ciência das formações sociais: [...] o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispões do conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum dos processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que, como mostramos mais acima, os processos ideológicos simulam os processos científicos”. (PÊCHEUX, 1997, p. 91).

A preocupação basilar de Pêcheux é inscrever o processo discursivo em uma

relação ideológica de classes e jogos de poder.

A AD constitui um modo de se pensar o político e o histórico como próprios

do processo de significação do dizer, constitutivo do sujeito. Para a AD, o discurso

constitui um objeto integralmente lingüístico e integralmente histórico, ou seja, a

exterioridade não se apresenta como um exterior a que a linguagem deve ser

correlacionada: ela faz parte do que é próprio da linguagem e de seu funcionamento.

Reconhecendo a origem da ciência da linguagem em Saussure, de quem era

um leitor muito atento, Pêcheux apóia-se criticamente no ponto de origem da ciência

lingüística para construir a noção de discurso. Como já vimos anteriormente5, Saussure

construíra um novo objeto, que ele denominara língua, que ele definira como um sistema e

como único objeto possível dos estudos lingüísticos, excluindo a fala desse campo. Ou seja,

para ele, a língua, sendo sistêmica e objetiva, ela se oporia à fala, que é concreta e variável

de acordo com cada falante e, conseqüentemente, subjetiva.

Já para Pêcheux, se a língua for pensada como um sistema, ela “deixa de ser

compreendida como tendo a função de exprimir sentido, ela torna-se um objeto do qual

uma ciência pode descrever o funcionamento” (Pêcheux, 1997b: 62), verificando que a

oposição língua/fala não poderia se responsabilizar pela problemática do discurso. No

entanto, para solucionar o problema, ele não procura extinguir esta oposição, e sim refletir

sobre a fala, ponto da oposição menos desenvolvido por Saussure. Coloca o discurso “entre

a linguagem (vista a partir da lingüística, do conceito saussuriano de langue) e a ideologia”.

(Henry, 1997: 35).

5 Cfr. Ponto 2.1

65

Na visão de Pêcheux, a constituição do discurso ficou assim deslocada para

o entrecruzamento da estrutura da língua com o acontecimento, como conseqüência da

mudança de ângulo da estrutura para o acontecimento. Isso permitiu a percepção de lugares

enunciativos plurais no fio do discurso, dentro da perspectiva de que a heterogeneidade

enunciativa é constitutiva do discurso.

2.5.1. O sujeito e o assujeitamento

O primeiro momento do percurso teórico de Pêcheux, na obra publicada em

1969, denominada “Análise automática do discurso”, também denominada AAD69, possui

como característica a exploração metodológica da noção de maquinaria discursiva

estrutural, concebendo o procedimento de produção discursiva como “uma máquina

autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina

os sujeitos como produtores de seus discursos” (Pêcheux, 1997a: 311). O sujeito acredita-se

agente de seu discurso, mas é apenas assujeitado, apoio para a produção desse discurso.

Na concepção de Pêcheux, existe um sujeito-falante que é o resultado de um

processo histórico-social e que sofre influências ideológicas, as quais transformam e

marcam seu discurso. Os analistas franceses defendem a idéia de que, ao passar de um

ambiente para outro, o sujeito assume os discursos institucionais possíveis conforme o seu

trânsito. Esse processo de adaptação discursiva recebe o nome de assujeitamento.

Esse sujeito assujeitado é então aquele que se apropria de um discurso

preexistente e faz uso dele a partir de regras também preexistentes, o que nos faz supor que

não existem textos individuais ou discursos originais. Nessa perspectiva, o sujeito sofre um

reducionismo, enquanto integrante de uma situação de comunicação, pois, por um lado,

sofre o processo de assujeitamento, assumindo os temas e as estruturas próprias de uma

instituição, assim como as próprias estratégias comunicativas inerentes a esta estrutura; por

outro lado, seu texto também assume idéias, vocabulários e estruturas preexistentes, ou

seja, se moro em um bairro onde predominam a miséria e o analfabetismo no meu

cotidiano, passo a assumir o discurso dos explorados mesmo que eu estude, porque me

identifico com os moradores do bairro, com os marginalizados, com os excluídos. Portanto,

66

ser assujeitado em Pêcheux é passar da condição de indivíduo a sujeito, a partir de uma

inscrição em lugares sociais e falar desde estes lugares.

A partir do momento em que o sujeito deixa de ser sujeito e passa a ser

assujeitado e o texto deixa de ser texto e passa a ser intertexto, o que resta são estruturas já

definidas, mais ou menos imutáveis e não criativas. Isso determina que não se possa

analisar o discurso fora das instituições porque é nelas que ele é mais fortemente marcado.

Desde o primeiro momento, a AD evita “qualquer metalíngua universal

supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e toda suposição de um sujeito

intencional como origem enunciadora de seu dizer” (Id.Ib.: 311). Contudo, foi só a partir do

refinamento e, conseqüentemente, da postulação do primado da alteridade, que o sujeito do

discurso passou a ser compreendido como um sujeito atravessado pelo inconsciente.

2.5.2. A formação discursiva e a influência de Althusser A teoria marxista da ideologia, de Althusser, teve uma influência muito

grande nos trabalhos de Pêcheux. Nessa teoria, Althusser destaca a autonomia relativa da

ideologia de uma base econômica e a sua significativa contribuição para a reprodução ou

transformação das relações econômicas. Ele afirma que a ideologia ocorre em formas

materiais, ou seja, não é no campo das idéias que as ideologias existem, mas no campo das

instituições, das relações de produção. Esta mesma ideologia atua através da constituição

das pessoas como sujeitos sociais, fixando-os em posições-sujeito e dando-lhes, ao mesmo

tempo, a ilusão de serem agentes livres. Esses processos ocorrem em várias instituições

como a família, a justiça, a escola etc., que são, segundo o autor, elementos do ‘Aparelho

Ideológico do Estado’.

Para Pêcheux, formação discursiva (FD) é aquilo que, a partir de uma

determinada posição do sujeito, numa determinada conjuntura, resultante da luta de classes,

determina o que pode e deve ser dito. As FD estão posicionadas em complexos de formas

discursivas relacionadas, mencionadas como interdiscurso (a memória do dizer, o saber

discursivo) e os significados específicos de uma formação discursiva são determinados pela

relação entre o exterior e o interdiscurso, mas os sujeitos não estão conscientes desta

definição externa, reconhecendo-se como fonte dos significados de uma formação

discursiva, quando são, na verdade, seus efeitos.

67

Com a introdução do conceito de formação discursiva, Pêcheux coloca em

cheque a noção de máquina estrutural fechada, “na medida em que o dispositivo da

formação discursiva está em relação paradoxal com seu ‘exterior’: uma FD não é um

espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente ‘invadida’ por elementos que vêm de

outro lugar” (Id.Ib.: 314). Pêcheux define FD como:

“aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc).” (Pêcheux, 1997: 160).

As influências de Althusser – luta de classes e ideologia – ficam evidentes

nesse conceito de Pêcheux, principalmente no que se refere à interpelação do sujeito pela

ideologia. Para Pêcheux a FD é uma unidade dividida, heterogênea em sua forma

constitutiva. No interior de uma mesma FD coabitam vozes dissonantes que dialogam,

opõem-se, aproximam-se, divergem, pois uma FD é essencialmente freqüentada por seu

outro. Esse “outro” da formação discursiva é justamente o interdiscurso, aliado ao

intradiscurso. É pertinente reconhecer a heterogeneidade das FD e entender que no interior

de uma FD acontecem deslocamentos de sentidos.

2.5.3. O interdiscurso e o intradiscurso No segundo momento do percurso teórico de Pêcheux, com a agregação dos

conceitos de formação discursiva e interdiscurso, há um afastamento teórico em relação ao

momento anterior, passando a serem objeto de estudo as relações entre as máquinas

discursivas estruturais. O interdiscurso seria um conjunto de discursos de um mesmo

campo discursivo ou de campos distintos, em épocas diferentes.

É importante trazer à luz a noção de pré-construído proposta por Pêcheux

(1999: 163 – 164) como um dos elementos do interdiscurso, o que corresponde a enunciado

proveniente de discursos anteriores, outros, como se esse elemento já estivesse sempre-já-

aí, resultante da interpelação ideológica, segundo a qual a realidade oferece, determina e

impõe seu sentido sob a forma da universalidade. Outro elemento do interdiscurso

lembrado por Pêcheux corresponde às articulações justamente por possibilitar uma relação

68

do sentido pré-construído, com um sentido a ser elaborado. Para Pêcheux, o pré-construído

“remete simultaneamente àquilo que todo mundo sabe, isto é, aos conteúdos de pensamento

do sujeito universal suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em uma situação

dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do contexto situacional” (Id., 1997:

171).

Desta maneira entendemos que o pré-construído corresponde a uma

construção anterior, exterior, a um enunciado já-dito, produzido em outro lugar. Ao

participar do gesto interpretativo, o sujeito está preocupado com o sentido do discurso e o

pré-construído é um elemento que possibilita a edificação do sentido. É o interdiscurso que

determina o efeito de encadeamento do pré-construído. A noção de interdiscurso designa o

exterior de uma FD. É o lugar onde o sentido é edificado pelo sujeito através da recordação,

do esquecimento, do silêncio e da incompletude. É o puro-já-dito, o interdito do discurso. É

a partir do interdiscurso, de uma FD, que poderão ser analisadas as formas de

assujeitamento.

Juntamente com o interdiscurso há o intradiscurso que, segundo Pêcheux

(1999: 167), enquanto fio do discurso do sujeito, é um efeito de interdiscurso sobre si

mesmo. É ele que nos consenti buscar o discurso dos outros pela memória discursiva, pois

entendemos que tanto o intradiscurso quanto o interdiscurso fazem parte de uma cena

discursiva sócio-histórica-ideológica. É o intradiscurso e o interdiscurso que nos remeterão

à rede completa das FD as quais todo dizer está inserido e que nos darão o caminho para

entendermos a exterioridade discursiva. É na dimensão vertical (interdiscurso) que se

coloca o saber da FD e na dimensão horizontal (intradiscurso) que os elementos desse

saber linearizam-se. O intradiscurso está relacionado àquilo de que estamos falando naquele

momento real, em determinadas condições e, de certa forma, está ligado à materialidade

lingüística.

O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito

significa em uma determinada situação discursiva. Tudo o que já se disse sobre um assunto

e seus correspondentes estão, de algum modo, significando ali, interpelando os sujeitos.

Todas essas opiniões já ditas por alguém, em algum lugar, em outros momentos, mesmo

muito longínquos, têm um efeito sobre o que é dito em algum lugar e trazem diferentes

pressuposições. Dentro dessa perspectiva, os elementos do interdiscurso, que Pêcheux

69

(1999) denomina pré-construídos disfarçam o assujeitamento do sujeito-falante, embora ele

acredite, sob o aspecto de uma autonomia, ser a fonte de seu discurso. Contudo, o sujeito

nada mais é do que o suporte.

Partindo desse referente aprofundamos a questão relacionada à ilusão

subjetiva do sujeito que - segundo Pêcheux (1997: 168–169) - se concretiza por dois tipos

de esquecimento. No esquecimento de nº 1 – de natureza inconsciente e ideológica – o

sujeito se coloca como origem do seu dizer, o sujeito falante tem a ilusão de estar na fonte

de sentido e de que o seu discurso começa nele. Apesar disso, o seu dizer não tem origem

nele, uma vez que o sujeito se caracteriza pela dispersão de outros sujeitos e retoma

sentidos preexistentes. Nesse esquecimento, o sujeito rejeita, apaga, inconscientemente,

qualquer elemento que represente o exterior de sua FD, ou melhor, o que ele diz tem o

sentido que ele deseja, realçando assim a autoridade absoluta e autônoma do sujeito. Nesse

esquecimento é que se inscreve o assujeitamento do sujeito. Vejamos o que nos fala

Pêcheux sobre esse esquecimento:

“caracterizamos como esquecimento nº 1, inevitavelmente inerente à prática subjetiva ligada à linguagem. Mas, simultaneamente, e isto constitui uma outra forma deste mesmo esquecimento, o processo pelo qual uma seqüência discursiva concreta é produzida, ou reconhecida como sendo um sentido para um sujeito, se apaga, ele próprio, aos olhos do sujeito.” (Pêcheux & Fuchs, 1997: 168 – 169).

O esquecimento de nº 2 – que está inserido na ordem da enunciação – se

caracteriza por um funcionamento do tipo pré-consciente/consciente. O sujeito, na seleção

entre o falado e o não falado, não possui um controle total e deixa deslizar significados

indesejáveis. Por esse esquecimento, o sujeito confia que o que diz só pode significar

aquilo, só pode ser dito daquela forma, com aquelas palavras e não com outras, o que

denota a onipotência do sentido. Nesse deslumbramento, que é denominado ilusão de

transparência dos sentidos ou ilusão referencial, o sujeito estabelece uma relação entre

coisas e palavras, entre pensamento, linguagem e mundo. Endossamos tais afirmações com

as palavras de Pêcheux, para o qual o esquecimento é “a fonte da impressão de realidade do

pensamento para o sujeito (eu sei o que eu digo, eu sei do que eu falo)” (Pêcheux, 1998:

176).

70

Esse esquecimento, de natureza pré-consciente, pode ser retomado para

informar aquilo que se queria dizer. Quando o sujeito reformula o seu dizer, retoma-o para

explicar adequadamente o que disse. Faz isso de forma consciente, utilizando-se de

estratégias discursivas, por meio de famílias parafrásticas. Essa operação faz com que o

sujeito tenha a ilusão de que o discurso reflete o conhecimento objetivo da realidade.

Pêcheux afirma que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro,

diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente para derivar para um outro” (Pêcheux,

2002: 53), o que é significativo para a AD, pois o sentido não é compreendido como uma

unidade fixa, já que é histórico.

Na visão de Orlandi “as ilusões não são ‘defeitos’, são uma necessidade para

que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção dos sentidos” (Orlandi, 2001: 36).

Assim, é necessário olhar também para as várias posições que os sujeitos-professores

assumem nos seus dizeres sobre os textos propostos para interpretação dentro do livro

didático, o que aponta para a incompletude e a diversidade, que é condição da linguagem,

visto que tanto o discurso como o sujeito e o sentido não estão totalmente prontos, mas

estão em constante movimento, se (re) significando de muitas maneiras, o que nos permite

dizer que o sujeito pode ocupar várias posições enunciativas no decorrer de seu discurso.

Partindo desse ponto de vista, a noção de sujeito uno, todo poderoso, homogêneo,

cartesiano, dono de seu dizer e do seu agir, defendido por algumas teorias lingüísticas, é

posto em cheque.

2.6. A visão marxista do círculo de Bakhtin

Quatro ou cinco décadas antes de Pêcheux, o círculo de Bakhtin já criticava

a visão estruturalista da linguagem verbal como sistema de signos e afirmava que o signo

lingüístico seria a materialidade específica da ideologia. Bakhtin-Volochinov via a

linguagem como um produto social e o sujeito como um elemento participativo e atuante no

processo comunicativo, mas numa condição de constante interação com a linguagem e com

a sociedade.

71

Na introdução à versão francesa do livro Marxismo e filosofia da linguagem,

Marina Yaguello afirma que o círculo “valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma

sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da

comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais” (Bakhtin, 2004:

14).

Para o Círculo, o signo e a situação social estão ligados de forma

indissolúvel e a palavra é o signo ideológico por excelência. É ela que veicula de maneira

privilegiada a ideologia e o signo é, por excelência, vivo e móvel, com vários significados,

mas a classe dominante tem necessidade de torná-lo único, reificando-o e,

conseqüentemente, desvalorizando as suas variantes.

A palavra é a mediadora entre o social e o individual. Ao aprender a falar, o

ser humano também aprende a pensar, na medida em que cada palavra é a revelação das

experiências e valores de sua cultura. Desse ponto de vista, tem-se que o verbal influencia

nosso modo de percepção da realidade, cabendo a cada um assumir a palavra como

manutenção dos valores dados ou como intervenção no mundo.

Segundo as idéias do círculo, é através da palavra em uso que as idéias de

uma determinada classe social são absorvidas, internalizadas e repetidas pela outra classe

social, ou seja, a palavra é instrumento de domínio de uma classe sobre a outra, geralmente

das classes economicamente beneficiadas sobre as classes economicamente

desprivilegiadas. Bakhtin (Volochinov) continua ainda “A palavra não é somente o signo

mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro” (Ibid.: 36), ou seja, a palavra não é

somente um conjunto de sentidos, é também neutra em relação a qualquer função

ideológica determinada. Aceita qualquer carga ideológica. Em situação de uso, é um espaço

de produção de sentido. Dela afloram as significações que, conseqüentemente, se fazem no

espaço criado pelos interlocutores em um contexto sócio-histórico dado. Por esse espaço

gerador de sentido é controlada, selecionada por meio dos mecanismos sociais.

A palavra, em sua condição de signo, é adquirida no meio social. A seguir,

interiorizada pelo sujeito, retorna ao meio social por meio do processo de interação, numa

forma diferenciada, ou seja, ela é dialeticamente alterada devido às colaborações

ideológicas que marcam as condições de produção. Segundo Volochinov “As palavras são

tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações

72

sociais em todos os domínios” (Ibid.: 41). Portanto, como afirma o próprio Bakhtin

(Volochinov) “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (Ibid.: 46).

Em razão desses condicionamentos sociais e históricos que determinam

tanto os sujeitos quanto às palavras, somente o acontecimento enunciativo dará o

significado da palavra que, muitas vezes, será diferente do significado registrado no

vocabulário; o significado é construído no processo de contato social. Assim, a palavra é

constituinte tanto da consciência quanto do desenvolvimento humano, pois “está presente

em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (Ibid.: 38) e o “signo

ideológico exterior, qualquer que seja sua natureza, banha-se nos signos interiores, na

consciência. Ele nasce deste oceano de signos interiores e aí, continua a viver, pois a vida

do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão, de

emoção, de assimilação, isto é, por uma integração reiterada no contexto interior” (Ibid.:

57).

É a partir da palavra que o sujeito se compõe e é composto, porque “a

língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida”

(Ibid.: 96). É nas diferentes relações sócias que o ser humano vai formando o seu modo de

pensar e de agir. É através da palavra e de seus diferentes significados e significantes que a

evolução do pensamento vai acontecendo, já que “a palavra está sempre carregada de um

conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (Ibid.: 95).

O professor de língua materna, principalmente na questão da leitura e

interpretação de textos em sala de aula, ao reprisar a “interpretação” constante dos manuais

didáticos está, consciente ou inconscientemente, reproduzindo as idéias e o modo de agir e

pensar das classes dominantes. Toda e qualquer evolução do pensamento do aluno estará

condicionado a esses saberes implícitos.

Precisa-se abandonar a noção de codificação e decodificação que dá

oportunidade a uma assimilação de língua como sendo um código fechado. Para o círculo

“Todo o signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior” (Ibid.: 58).

Toda a palavra traz marcas culturais e sociais, aí está o seu valor polissêmico

e dialógico, já que “A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da

interação viva das forças sociais” (Ibid.: 66), e é através dessa mesma palavra que os

sujeitos vão ter o primeiro despertar de suas consciências.

73

Ao abrir mão da “leitura de mundo” de seus alunos em detrimento da

“leitura de mundo” do autor do livro didático, o professor está contribuindo para que os

saberes e as marcas culturais e sociais de seus alunos sejam apagadas e esta “interação viva

das forças sociais” tenha como discurso único e verdadeiro o discurso do livro didático, o

discurso que de alguma forma representa o pensamento hegemônico presente em nossa

sociedade.

A linguagem não é sistema fixo e abstrato, por isso permite ao sujeito falante

abrir brechas, construir outros pontos de vista, romper o cerco do sentido já dado. Daí o

processo de reflexão e refração. Essa “brecha” é importante, é ela que o professor deve

explorar, é esta “brecha” que fará um aluno participativo, um aluno que se sentirá

respeitado e valorizado, um aluno que não abandonará a escola, um cidadão que saberá

ouvir e fazer-se ouvir.

Todo enunciado concreto possui duas partes: uma aludida, percebida ou

expressa através das palavras e uma não aludida, que são os julgamentos de valor, as

emoções individuais, mas que são atos sociais regulares e essenciais. Sendo assim, por trás

do individual e do sujeito, há o coletivo, o social. Para Bakhtin, o eu só se realiza

verbalmente com base no coletivo. O que faz essa circulação social é a força valorativa

manifestada através do enunciado e de seu recurso entonativo. A entonação é elo mediador

entre o discurso verbal e o contexto extraverbal.

Segundo Volochinov “A entoação sempre está na fronteira do verbal com o

não verbal, do dito com o não dito. Na entoação, o discurso entra diretamente em contato

com vida. E é na entoação sobretudo com o falante entra em contato com o interlocutor ou

interlocutores: a entoação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as

vibrações da atmosfera social que envolve o falante.” (Volochinov: 1926). Portanto,

qualquer texto é expressão e resultado da interação social de três participantes: o falante

(autor), o interlocutor (leitor) e o tópico da fala (herói). Dessa forma, o discurso verbal é

social, não se enquadra dentro de uma lingüística abstrata e nem se origina

psicologicamente de uma consciência individual. É essa essência sociológica que dá ao

discurso verbal o significado artístico. Sua forma e sentido são determinados pela interação

social, onde o enunciado se estabelece dinamicamente entre seus participantes.

74

É no diálogo que o círculo de Bakhtin percebe o humano e o coloca como

orientação para a humanidade do outro, numa entrelaçada rede de relações sociais intensas

e permanentes, modelada por um arquétipo que opera com uma base dialética de pensar,

muito reverso aos modelos hegemônicos do mundo acadêmico que investiga as realidades

humanas.

Percebe-se que o termo dialógico é compreendido não apenas como um

instrumento formal ou no sentido de estratégia para resolução de conflitos. Para Bakhtin o

diálogo “... no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é

verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra

diálogo num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas

colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (Bakhtin,

2004: 109). Apresenta-se, portanto, como um grande encontro de vozes e entonações

diferentes: entre pessoas, entre textos, entre autores, entre disciplinas escolares, entre vida e

escola, enfim, em todas as instâncias da linguagem, inclusive no discurso interior que

também manifesta vozes de forma entrecruzada, complementada, em oposição, em

confronto, em contínuo movimento, sempre relacionado a uma atividade humana com juízo

de valor.

Vê-se, por esse argumento, que para o circulo de Bakhtin é impossível uma

formação humana sem alteridade, onde o outro não seja o delimitador e o construtor do

meu espaço de atuação no mundo, constituindo-me ideologicamente e me dando

acabamento.

O círculo de Bakhtin procurou dar uma ênfase à linguagem como atividade

social. Na visão do círculo, cada sujeito, como parte da sociedade a que pertence, teria

então o seu papel enquanto agente modificador na atividade social. Mesmo admitindo que

no discurso de um sujeito possam estar presentes outros discursos anteriores, a forma do

círculo de Bakhtin de analisar o processo de apropriação do discurso alheio pressupõe um

sujeito ativo e atuante, capaz de fazer escolhas e estabelecer estratégias.

Portanto, o círculo atribui ao sujeito responsabilidade pelo uso que este faz

da linguagem. O sujeito é um agente dentro do processo discursivo, capaz de interferir,

aprimorar ou até modificar o discurso social.

75

Estas idéias de Bakhtin (Volochinov) a respeito da linguagem verbal, se

estudadas e aprofundadas dentro das escolas formadoras de profissionais da educação, e

posteriormente aplicadas por estes mesmos profissionais quando no exercício da docência,

contribuirão muito para que o ensino de língua materna evolua, ou que pelo menos a

aversão à língua materna, com que a maioria dos alunos sai das escolas, seja atenuada.

76

3. O DISCURSO ÚNICO NA ESCOLA

A luta entre as classes sociais não se dá somente no campo econômico e

político. Ocorre também no campo lingüístico. E nesse campo, ela ocorre em dois níveis:

em nível da língua e em nível do discurso. Do ponto de vista das variações formais da

língua, Gnerre propõe que “uma variedade lingüística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os

seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações

econômicas e sociais” (Gnerre, 1998: 6–7). Na maioria das sociedades, a língua prestigiada

tende a ser a da classe dominante. A primazia de uma classe impõe-se também pela

primazia de sua variedade lingüística.

A escola recebe falantes das diversas variedades lingüísticas. Essas

diferentes variedades, na grande maioria das vezes, não são respeitadas e nem reconhecidas

pela escola. Essa reconhece tão somente a variedade lingüística dita padrão, que representa

o grupo social detentor do poder econômico.

É extremamente complexa a relação entre a sociedade e as línguas e

variedades de línguas que nela são faladas. Bakhtin (Bakhtin 2003: 118 et passim) lembra

que, na história da humanidade, a linguagem humana nasceu da organização social do

trabalho e da luta de classes, mas que também as línguas, em constante movimento,

continuam seguindo o desenvolvimento da vida social. As dinâmicas lingüísticas numa

sociedade dependem das relações que os seus membros estabelecem entre si, além de

contribuírem a produzir e viabilizar essas relações.

Além de diversas variedades lingüísticas, dentro de uma mesma língua

nacional também coexistem diversos discursos sociais. A escola é um dos locais em que as

diversas variedades lingüísticas e os diversos discursos sociais convivem. Infelizmente,

essa instituição, na maioria das vezes, tende a ignorar esta diversidade. A variedade

lingüística que é aceita pela escola é a variedade dita padrão, o que de certa maneira já inibe

a ação e até mesmo o conhecimento dos diversos discursos sociais, acabando por privilegiar

o discurso já estabelecido pela classe dominante e submetendo o olhar das crianças e dos

adolescentes a uma visão crítica pré-estabelecida pelos adultos.

77

Estas ações da escola não são questionadas pelos diferentes segmentos

sociais, pois como nos mostra Zandwais:

“Assim, à semelhança da massa da argila e das esculturas que se modelam para produzir determinados efeitos, o sujeito proletário aceita os ‘benefícios’ educacionais que lhe são ofertados, sem entender que o caráter de uniformidade nacional conferido à educação não coincide com um ideal de ação para a transformação da realidade já sedimentada, mas com o ideal de massificação e preservação das relações hegemônicas do estado frente aos interesses populares” (Zandwais, 2003: 36- 37).

O caráter essencialmente social das línguas deve igualmente ser visto no fato

que dinâmicas como comunicar e dominar são partes inerentes ao processo de

conhecimento, já que toda a produção de conhecimento sobre o mundo é mediada pela

linguagem verbal. Se considerarmos as línguas no contexto das práticas humanas, devemos

compreendê-las como instrumentos de comunicação, conhecimento e dominação. Partindo

deste raciocínio, a questão que se deve colocar na perspectiva da realização das práticas

educativas é: a serviço do quê e de quem o desenvolvimento da linguagem deve estar

colocado?

3.1. Escola, língua e discurso dominantes

Como vimos no capítulo 1, tradicionalmente, a escola tem representado os

interesses do Estado-nação e, conseqüentemente, da classe dominante. O Estado-nação

sempre tendeu a impor a variedade lingüística da classe dominante como a única correta e

aceita e as classes subalternizadas sempre tenderam a aceitar essa imposição. Para Gnerre

“Assim como o Estado e o poder são apresentados como entidades superiores e ‘neutras’,

também o código aceito ‘oficialmente’ pelo poder é apontado como neutro e superior, e

todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo nas relações com o poder” (Gnerre,

1998: 9).

Dentro da instituição escolar, a luta no campo lingüístico não tem parado aí.

Podemos também observar, ao longo da história, que, através de um discurso único, a

escola tendeu a apresentar, como sendo universal, a ideologia da classe dominante,

78

representada pelo Estado e legitimadora do Estado. Nossa hipótese é que, sobretudo por

intermédio do livro didático e de seus textos “devidamente” escolhidos, os modos de vida,

de comportamento, os valores éticos, as visões de mundo etc da classe que detém o poder

são impostos e ensinados como universais. Para Gnerre:

“Na variedade padrão, então, são introduzidos conteúdos ideológicos, relativamente simples de manipular, já que as formas às quais estão associados ficam imobilizadas favorecendo, assim, quase que uma comunicação entre grupos de iniciados que sabem qual é o referente conceitual de determinadas palavras, e assegurando que as grandes massas, apesar de familiarizadas com as formas das palavras, fiquem, na realidade, privadas do conteúdo associado” (Gnerre, 1998: 20).

Como já assinalado, quando chega na escola, a criança traz a variedade

lingüística do grupo social com o qual ela convive e a escola tende a lhe apresentar uma

variedade lingüística única e, em muitos casos, diferente da com a qual ela estabeleceu suas

relações sociais e construiu seu pensamento até então. Mas a criança também chega na

escola com as visões de mundo, os valores éticos, as aspirações, as práticas culturais etc.

dominantes no seu grupo social. Nossa experiência como professor tem nos mostrado que a

escola tende a ignorar esses saberes e a apresentar à criança valores, visões de mundo,

práticas culturais próprios da classe social dominante. Ou seja, ao chegar à escola, a criança

começa a manter contato com um “mundo” tendencialmente diferente do seu, um “mundo”

que irá impor suas idéias, seus valores, além de suas variantes lingüísticas. Com o passar do

tempo, a grande maioria das crianças oriundas de "mundos" subalternizados, distantes do

"mundo" representado pelo sistema educativo, irá abandonar a escola.

Ao agir dessa forma, a escola tem se mostrado incompetente para a

educação dos alunos pertencentes às camadas populares, acentuando e justificando

desigualdades sociais. Ao não compreender de forma suficiente o papel da variação

lingüística e dos diferentes discursos sociais no processo de ensino-aprendizagem, a

instituição escolar passa a ver como cidadão de segunda categoria o aluno que não utiliza a

variação padrão e que não reproduz o discurso oficial. Nesse sentido, a escola tem sido

intransigente com as diferenças dialetais e discursivas, trabalhando com a variedade padrão

79

e com o discurso social oficial, isto é, com o ela considera certo e errado, não abrindo

espaço para o diferente.

Tradicionalmente, a linguagem utilizada na escola tende a subestimar os

conflitos de classes, a silenciá-los, a fazer parecer que tudo está bem, gerando

discriminação e fracasso. Variantes lingüísticas e discursos socialmente estigmatizados,

usados por alunos provenientes de camadas populares, provocam preconceitos lingüísticos

e sociais, resultando em dificuldades de aprendizagem. O respeito à fala e à formação

discursiva6 do aluno implicaria em ensinar a variedade padrão como apenas uma das

possibilidades de uso da língua nacional, adequada a determinadas situações, sem reduzi-la

à única forma possível e aceitável, além de possibilitar ao aluno o contato com os diferentes

aparatos de conhecimentos sócios-políticos necessários para compreender e produzir

enunciados complexos, referentes a esferas políticas, culturais, estéticas etc. do mundo real.

Além da escola, a ideologia dominante conta com outros agentes de

propagação, entre eles, a mídia. Portanto, paradoxalmente, a criança que abandonou a

escola – e isso vai se dar em boa parte por ela ter abandonado a escola e não ter adquirido,

como assinalamos no parágrafo anterior, o mínimo de "instrução" necessária para tornar-se

um cidadão consciente, lingüisticamente e discursivamente competente – irá “adaptar-se”

ao modo de vida, de pensar e de agir das classes dominantes, inclusive na questão da

variação lingüística, “acreditando” que seu grupo, com seu modo de falar, é “inferior” e

que, portanto, tem que se manter subordinado e disciplinado dentro dos padrões

considerados normais. Gnerre enfatiza que “A começar do nível mais elementar de relações

com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso

ao poder, (...)” (Ibid.: 22).

Como já apontamos nos parágrafos introdutórios desse capítulo, para

abordar a linguagem verbal na perspectiva das práticas educativas, é preciso entendê-la

também enquanto prática que estrutura as relações e o agir humano, numa relação dialética.

A variedade lingüística e o discurso dominante refletem o modo de pensar dos grupos

sociais dominantes. Ao escolher trabalhar com essa variedade lingüística e com esse

discurso, a escola tende a transmitir para seus alunos, através do professor e do livro

didático, nada mais que esses modos de pensar e esses valores. Partindo dessa premissa, a

6 Cfr. capítulo 2.

80

escola está ignorando formas lingüísticas e formas de pensar o mundo próprias das

comunidades de seus alunos, saberes comuns a todos aqueles que vivem em determinadas

regiões e em determinados grupos sociais.

Quando a escola desqualifica a língua, o modo de agir e o modo de pensar

das diversas comunidades onde está inserida, ela acaba criando obstáculos ao acesso dos

alunos oriundos dessas comunidades ao poder político e ao poder econômico, também os

exclui do poder simbólico, isto é, do poder de falar e compreender plenamente a fala dos

outros, nas produções lingüísticas quotidianas e, sobretudo, nas esferas políticas e da

criação ideológica em geral que têm a língua como principal veículo. Desse modo, a escola

contribui para a manutenção do status quo de desigualdade que caracteriza a sociedade

atual.

No caso da sociedade brasileira, ao reproduzir um discurso único, a escola

contribui para a manutenção de diferenças sociais cada vez mais alarmantes, contribui de

forma decisiva para que a distância entre os que “possuem mais” e os que “possuem

menos” seja cada vez maior. Assim, “passar forçosamente as pessoas através do túnel da

educação formal significa fornecer a elas alguns parâmetros para reconhecer as posições

sociais e fornecer um mapa de estratificação social com alguns diacríticos relevantes para o

reconhecimento de quem é quem (...)” (Ibid.: 1998).

A heterogeneidade das escolas brasileiras, em termos de infra-estrutura

disponível, atua como um dos mecanismos que reforçam a desigualdade, principalmente no

que tange à distância entre a escola pública e a escola particular. Outro fator que contribui

negativamente no aproveitamento escolar é a distorção idade-série. Estimativas efetuadas

com base no censo de 2000 demonstraram que estão retidos no ensino fundamental cerca de

8,5 milhões de alunos com 15 anos ou mais de idade, os quais já deveriam estar cursando o

nível médio. É necessário lembrar que o fenômeno da distorção idade-série não deve ser

apontado como causa de um problema educacional, pois se trata mais da conjugação de

problemas intra e extra-escolares do que de um fator gerador de baixo aproveitamento.

Apesar do professor ser um dos principais mediadores desse processo de

imposição de saberes, temos consciência que é da combinação das diferentes FD’s à qual

ele pertence e dos diferentes já-ditos que ele assimilou desde a infância, que o professor

constrói o seu discurso, principalmente acerca da necessidade das classes subalternizadas se

81

adaptarem à língua e ao discurso dominantes para poderem ascender socialmente, de onde

ele pensa provir uma veracidade inquestionável que é repassada para seu método. Essas

experiências anteriores são caracterizadas pelos esquecimentos conceituados por Pêcheux

(1997), por experiências pessoais, acadêmicas e profissionais, que determinam o dizer e o

fazer do professor.

A Análise de Discurso de linha francesa, assim como as teorias elaboradas

pelos membros do Círculo de Bakhtin a respeito da relação entre a linguagem verbal e a

ideologia norteiam nossa convicção de que, no saber legitimado socialmente, através do

ensino, há o predomínio de uma ideologia que determina um padrão de professor, de

ensino, de conceitos e de metodologias a serem utilizados na escola. Este padrão contribui

para que a classe dominante permaneça no poder e tende a impedir que se formem cidadãos

conscientes e participativos.

O livro didático contribui parcialmente para a permanência desse saber

legitimado socialmente. É o que mostraremos a seguir com a análise de alguns textos

propostos para interpretação em três livros didáticos que se encontram entre os mais

distribuídos nas escolas gaúchas.

3.2. A compreensão de texto. Considerações teórico-metodológicas

Uma das grandes preocupações que nos levaram a realizar este trabalho é o

descaso, a despreocupação que os discentes tendem a demonstrar frente às atividades de

interpretação de textos propostas em sala de aula. Nossa experiência e o próprio formato

adotado pela maioria dos manuais de professores, com sugestões de respostas às perguntas

sobre interpretação de textos têm nos mostrado que, em sua grande maioria, os alunos,

sobretudo de escolas públicas, estão condicionados a não debaterem os assuntos propostos

pelos textos que introduzem os capítulos no livro didático. Na maioria das vezes, a escola

tende a ignorar a opinião e o saber desses alunos e, quando ela os escuta, suas visões de

mundo e suas opiniões, que nada mais são do que o reflexo do modo de pensar e agir de

seus grupos sociais, acabam direcionando a opinião sobre o texto proposto para a “sugestão

de resposta” que está presente no manual do professor.

82

Ao agir assim, a escola está contribuindo, de forma consciente ou

inconsciente, para que o discurso implícito no LD seja reproduzido e passe a ser único.

Como já assinalado, nossa hipótese é que esse discurso único é sempre o discurso da classe

economicamente dominante e é o que tentaremos demonstrar a seguir. Com essa hipótese,

partimos para a análise dos textos e das respectivas propostas de interpretação de textos de

diferentes livros didáticos. Os critérios que utilizamos para escolher esses livros foram:

1º) terem sido aprovados pelo MEC

2º) estarem entre os mais solicitados pelas escolas públicas do Rio Grande

do Sul.

3.2.1. Texto, sentido e discurso Segundo Orlandi: “Um texto é só uma peça de linguagem em um processo

discursivo bem mais abrangente e é assim que deve ser considerado. Ele é um exemplar do

discurso”. (Orlandi, 2001: 72). A AD não tem como objetivo o “atravessamento” do texto

para encontrar sentido do outro lado. Partindo do princípio de que a linguagem não é

transparente, o questionamento da AD é “como” os textos significam. A AD produz

conhecimento a partir do texto, porque esse tem materialidade simbólica e significativa,

tem espessura semântica. A incompletude é constitutiva do discurso e os sentidos se

constituem sempre na relação entre o lingüístico e o histórico. É apenas ilusoriamente que o

sujeito produtor de linguagem acredita poder chegar a um sentido único e verdadeiro, pois

segundo Orlandi: “o que existe, é um sentido dominante que se institucionaliza como

produto da história: o literal” (Orlandi, 1987: 144).

Pêcheux (1999) também enfatiza que, na compreensão de um texto, que

veicula determinado discurso, cada sujeito promove uma relação deste discurso em

formulação com o interdiscurso ou memória discursiva, ou seja, com todos os dizeres que

já foram, de fato, ditos. Pêcheux afirma que:

“A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos' (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível” (Pêcheux, 1999: 52).

83

Portanto o interdiscurso, produto de enunciações anteriores, é um rastro de

memória que constitui o sentido do discurso, o interdiscurso trabalha como aquilo que

acontece quando um elemento do passado é suscetível de se inscrever na leitura da

seqüência, vindo a restabelecer os implícitos de que a interpretação necessita para se

concretizar. Em princípio, o restabelecimento dos sentidos implícitos, pré-construídos

ocorre de forma natural, sem que o falante tenha consciência dessa operação discursiva.

Deste modo, em seu discurso, o sujeito fala uma voz sem nome, consideravelmente

atravessada e levada ao sabor da ideologia e do inconsciente. Esta competência de saber

restabelecer os sentidos implícitos ou pré-construídos, que não é ensinada, produz

significativos e importantes efeitos também nos discursos produzidos, o que vem sendo

ignorado sistematicamente nas aulas de língua portuguesa. Partindo dessa premissa, uma

leitura discursiva, que considera o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que

é dito de uma maneira e o que é dito de outra maneira, objetivando entender e escutar, na

materialidade do que foi dito, o que não foi dito, considerando essa ausência como algo

significativo, poderia contribuir para a formação de um sujeito atuante e participante não só

na sala de aula, mas também, e, sobretudo, na sociedade.

Mais especificamente, a memória discursiva permitirá - na infinita rede de

formulações presentes no intradiscurso7 de uma FD – o aparecimento, a rejeição ou a

transformação de enunciados que pertencem a FD’s posicionadas historicamente. Sendo

assim, o discurso significa por sua inscrição e significação a uma dada FD constituída de

acordo com a história e não pela intenção do enunciador, visto que, quando nascemos, o

discurso já está em processo, sendo nós que entramos e nos ajustamos nesse processo.

Portanto, a incompletude da qual falamos acima é condição e característica da linguagem.

Os sujeitos, os sentidos e os discursos nunca estão prontos, nem muito menos concluídos.

Já que um discurso é sustentado por outros - no caso, o discurso do professor

é sustentado pelo discurso do autor do LD, que por sua vez é sustentado pelo discurso de

outros autores, dos quais selecionou os textos - e aponta para o futuro, os sentidos são

produzidos a partir de posições. Nesse conjunto, a memória discursiva é conjeturada a

partir de um momento sócio-histórico, fazendo que o sujeito mude de uma situação

empírica para uma posição discursiva. É na relação discursiva que as palavras constituem

7 Cfr. capítulo 2.

84

as diferentes posições e assim fazem de fato, algum sentido. Vale observar que este sentido

não está nas palavras, mas antes delas e depois delas, meramente porque palavras remetem

a palavras.

Os sentidos estão permeados e atravessados pelas suas próprias relações com

uma FD característica e com uma memória discursiva. Conseqüentemente, não existe

sentido em si, ele nasce de colocações de caráter ideológico, fazendo com que as palavras

mudem de sentido de acordo com as posições em que são enunciadas, percebidas a partir do

exterior do discurso. Partindo desse princípio, entendemos que, enquanto participante de

uma situação de comunicação, o sujeito sofre um enorme reducionismo e,

conseqüentemente, o processo de assujeitamento se realiza, uma vez que o sujeito assume

não só o vocabulário e as estruturas próprias de uma instituição, mas também as estratégias

comunicativas essenciais a ela, e por outro viés, seu texto também assume vocabulário,

idéias e estruturas preexistentes.

3.2.2. O(s) sujeito(s) do discurso escolar Para a AD, o sujeito se constitui através da linguagem verbal e dos discursos

por ela veiculados, que carregam marcas do processo ideológico, do modo de pensar, de

agir e de se expressar de determinada classe social. Para Bakhtin8, o sujeito é visualizado

como elemento participativo e atuante do processo comunicativo, como um elemento que

está em constante interação com a sociedade e com a linguagem e, ainda dentro dessa linha

de pensamento, a linguagem – que é entendida como um produto social (e não

institucional) - e o sujeito são agentes do meio social, acabando, esse sujeito, por também

ser um fator de interação. Ao dar destaque à linguagem como atividade social, Bakhtin

entende que a significação é resultado de uma ação social, o que sugere que os signos são

mutáveis, já que a sua essência estaria ligada com um fazer social que não é permanente ou

inalterável, mas sim um procedimento continuado do qual toda a sociedade participa.

No discurso do professor e do autor do LD coabitam, no mínimo, duas FD’s:

uma primeira proveniente de sua formação pessoal, marcada sócio-ideologicamente, onde

estão presentes juízos de valor, convicções políticas, étnico-religiosas, sócio-culturais etc. e

uma outra proveniente de sua formação escolar e profissional, ou seja, a consciência de 8 Cfr. Capítulo 2.

85

autoridade e do imaginário do papel ideal do professor. Esse cruzamento de FD’s do

professor, na maioria das vezes, conduz a um silenciamento dos discentes, a uma total

subordinação ao discurso do professor, sem a possibilidade de interlocução, o que contribui

para que o entrecruzamento de saberes e conhecimentos acumulados socialmente não

ocorra.

Tal acontecimento anuncia uma situação que remete a um conceito já

conhecido pelo professor, portanto, um discurso socialmente aceito e legitimado, atribuindo

validade e confiança aos seus conhecimentos, palavras, decisões e ações e fazendo com que

seus alunos incorporem o valor persuasivo das verdades das suas palavras. Pela nossa

experiência, pensamos poder emitir uma segunda hipótese, de que, para o autor do LD e,

conseqüentemente, para a maioria dos professores, a opinião do aluno é pouco relevante,

excluindo qualquer possibilidade de participação desse aluno na interpretação e

compreensão dos textos propostos pelo LD, visto que a fala do professor está presente

quase todo o tempo, e o aluno também, de forma inconsciente, promove a idéia de

consenso, harmonia, homogeneidade, aceitando tudo o que procede da escola.

Nossas experiências em sala de aula, como aluno e como professor, levam-

nos a crer que o professor não percebe que o seu ensinar nada mais é do que a reprodução

de conhecimentos impostos ao longo de sua formação como aluno e como profissional da

educação, pois seu agir, quase sempre, segue basicamente uma abordagem não-reflexiva,

um ensino essencialmente mecânico e de reprodução de conteúdos. Ele instrui e interpreta a

partir de teorias que acredita dominar, um saber alicerçado em valores e crenças assentadas

em sua formação profissional, de vida e, por conseguinte, ideológicas e históricas,

determinantes de suas decisões, metodologias, atitudes e falas.

O LD, na condição de aparelho de auxílio no trabalho do professor, compõe

um conjunto de ferramentas, cumprindo um papel de difusor do conhecimento. A educação

enquanto pratica social faz uso deste aparelho. Contudo, com maior ou menor grau de

penetração, o livro didático, através de seus conteúdos, reflete a concepção de mundo de

quem o organizou, ou seja, vem “recheado” pelas FD’s, pelos “já-ditos” dos autores do LD,

que por sua vez selecionaram textos que trazem as FD’s e os “já-ditos” de seus autores, que

por sua vez... Desse modo, o LD não está isento dos aspectos político-ideológicos, que

atrelam idéias e valores e que, em relação ao real, podem não suprir as necessidades

86

específicas da comunidade educativa no qual é adotado, além de transmitir padrões

culturais que perpetuem a relação de dominação entre as classes sociais.

3.2.3. Procedimentos metodológicos A análise dos LD dar-se-á da seguinte forma:

1) A escolha dos textos, dentro dos diferentes livros didáticos escolhidos para este

trabalho, restringiu-se a temas que, de alguma forma, interessavam ao pesquisador.

2) Os textos serão examinados na ótica da AD, visto que entendemos que estes textos

juntamente com outros que não foram analisados, contribuem para que certos

discursos únicos sejam reforçados junto aos diferentes alunos que mantêm contato

com estes livros e, conseqüentemente, com seus textos.

3) Mostraremos que o modo como a compreensão de textos é conduzida por estes LD

nem explora realmente os discursos que estes livros produzem, e que esta

interpretação reduz-se a reproduzir o discurso único dominante.

3.3. Análise das propostas dos livros didáticos

3.3.1. LD: Português: Dialogando com textos O primeiro material analisado é Português: Dialogando com textos, 8ª série,

de autoria de Beatriz Marcondes, Lenira Buscato e Paula Parisi. Beatriz Marcondes é

licenciada em língua portuguesa e pós-graduada em lingüística pela FFLCH/USP. Atua

como professora de língua portuguesa e de orientação para os estudos da rede particular de

ensino de São Paulo. Licenciada em língua portuguesa e pós-graduada em didática pela

FE/USP, Lenira Buscato é professora de língua portuguesa na rede particular de ensino de

São Paulo. Paula Parisi, que está se doutorando nas áreas da Lingüística e da Educação pela

FE/USP, é assessora e capacitadora de professores de língua portuguesa na rede pública e

particular de São Paulo. Esse material foi publicado em 2003, pela editora Formato

Editorial Ltda.

Na apresentação do livro, as autoras falam da importância e da necessidade

do livro didático como elemento norteador da prática pedagógica em sala de aula e do que

87

elas denominam o “tripé”, que não pode não ser levado em conta no ensino de língua: o

desenvolvimento das competências comunicativa, gramatical e textual.

As autoras apresentam como princípios norteadores da escolha dos textos “o

desenvolvimento, nos alunos, de diferentes competências de leitura: ler para aprender uma

informação; ler para compreender; ler para interpretar; ler criticamente, sobretudo textos

que circulam pela mídia com alta carga de informações implícitas; ler pelo prazer de ler”.

(Marcondes, Manual do Professor, 2003: 10 e 11). Isto é, aparentemente, uma proposta

relativamente coerente com os princípios teóricos da AD, já que diferencia os processos de

interpretação e compreensão e enfatizam o fato que os textos da mídia caracterizam-se pelo

implícito. No entanto, a partir de nossas observações posteriores, parece-nos que as autoras

não respeitarão, pelo menos nas propostas de interpretação de textos, estes “princípios

norteadores”.

Mais adiante, ainda dentro das propostas norteadoras, as autoras “justificam”

a escolha dos diferentes textos: “é inevitável que a ênfase recaia sobre a literatura, pois é

papel do livro didático oferecer aos alunos textos que revelam um olhar diferenciado sobre

o mundo, filtrado pela exploração estética de recursos da língua” (Ibid.: 11). Através de

alguns recortes observaremos como esse olhar diferenciado sobre o mundo é explorado

pelas autoras. Não pretendemos fazer uma análise exaustiva dessas propostas de

interpretação, pois optamos por escolher alguns recortes de propostas de interpretação que,

sobre o nosso olhar, parecem de certa forma contribuírem para que o pensamento único seja

reforçado junto aos estudantes brasileiros e porque não dizer junto aos profissionais em

educação.

Texto 1 A república dos Argonautas

Anna Flora Eu morava em um bairro chamado Vila Madalena. Nos anos 70 algumas

ruas ainda eram de terra, todas com nomes bonitos: Girassol, Córrego das Corujas, Harmonia, Simpatia, Fidalga, Purpurina, Cardeal Arcoverde, Original. Nós andávamos no bairro à vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai sozinho.

Na esquina da rua Fradique Coutinho com Aspicuelta havia uma loja que vendia de tudo: revistas, jornais, álbuns de figurinhas, vassouras, gibis. Quando a turma ganhava mesada, ia direto para lá. Uma vez meu irmão comprou vinte e seis pára-quedistas de plástico.

Mais em frente, na rua Inácio Pereira da Rocha, tinha uma pinguela e um riozinho. A gente atravessava quando ia para a casa da dona Mábile, que era

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costureira e morava na rua Padre João Gonçalves. Esse passeio era muito legal, porque nos dias de chuva a rua virava uma lama só. Eu adorava o terreno baldio que ficava em frente, cheio de pés de amora.

Dona Mábile fazia roupas muito bem, mas eu sentia pena dela. Trabalhava feito doida para pagar os estudos do filho que morava em Paris. Ela aceitava qualquer serviço, desde roupa de bebê até vestido de noiva. Eu achava estranho uma costureira tão pobre ter um filho em Paris: por que ele não estudava aqui mesmo?

Na rua Mourato Coelho ficava uma loja de tecidos. O dono era seu Jorge. Ele era narigudo e de olhos verdes. O filho dele, o Jorginho, narigudo e de olhos azuis. O Jorginho, na Semana Santa, fazia papel de Cristo na procissão da igreja do Calvário. Eu adorava entrar na loja e sentir o cheiro dos tecidos novos. Muitas vezes ia lá só para cheirar. Anos depois, o armarinho foi transformado em um bar que ficou conhecido como Bar da Terra.

Outro lugar bárbaro era o armazém da dona Dirce, na rua Simão Álvares. A gente enfiava os braços nos sacos de arroz e feijão... Uma delícia! Mesmo quando eu já estava com treze anos ainda sentia vontade de afundar a mão nas lentilhas, mas me controlava um pouco porque todos diziam que eu já era mocinha.

No entanto, eu ainda gostava de muitas coisas de criança, como essa de brincar nos sacos da mercearia, colocar barquinho na enxurrada, jogar mamona ao alvo, organizar circo na rua... Ah! Tinha também o seu Manoel, que vendia banana no caminhão e anunciava: “Bananerô, bananerô”.

Na esquina da rua Mourato Coelho com Aspicuelta moravam o Chico e o Paulo, que desenhavam muito bem. Nós estudávamos no mesmo colégio, o Machado de Assis. Às vezes, saindo da escola eu via não sei se o Chico ou o Paulo, e logo depois, na pracinha, eu encontrava não sei se o Paulo ou o Chico. Eles eram gêmeos, e eu só comecei a distingui-los porque à medida que foram crescendo um foi ficando mais hippie do que o outro.

Na Aspicuelta ainda havia um barzão ou uma padaria, não me lembro mais, onde os velhinhos jogavam dominó. Eles tomavam conta do lugar como se fosse a casa deles. Até o dono muitas vezes deixava de atender freguês para jogar uma partida.

Na Vila moravam vários casais portugueses. Eles costumavam construir nos quintais uma outra casinha para os filhos. Mais tarde, essas casinhas passaram a ser alugadas para os novos moradores que foram chegando.

O bairro parecia cenário do interior. Nossos vizinhos da direita eram dona Natália e seu Antenor. Os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa, fosse o assunto que fosse, sempre falavam do filho eu estudava medicina..

No lado esquerdo morava Maria Amélia, que tinha uma sanfona, o rosto cheio de espinha e – coisa mais careta eu achava – esperava marido.

Em frente ficava a casa do seu Ângelo, que era barbeiro. Nas noites de Natal ele tocava sax para os moradores, saía distribuindo música de porta em porta. Seu filho estudava contabilidade e ele achava o máximo que o rapaz estivesse no Mackenzie, um colégio particular. Eu sentia uma coisa meio estranha quando o seu Ângelo elogiava a contabilidade como uma profissão segura, porque o elogio não combinava com o seu outro lado tocador de sax. Pena que música ele ó fazia uma vez por ano!

Eu não sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as ruas da vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um paralelepípedo... Às vezes essas impressões me pareciam besteira, coisa de criança. Só mais tarde, com Magro, é que percebi que minha intuição tinha razão de ser. Vejas só:

O Zé Luís, filho do seu Jarbas, estudava engenharia mas gostava de tocar guitarra. O seu Jarbas ficava preocupado, onde já se viu engenheiro guitarrista? Aí o Zé Luís só ensaiava na casa do Edu Bolão. E a rua inteira

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comentava quando a Marisete desfilava de minissaia, e eu achava lindo, porque ela era manicure, usava umas unhonas vermelhas, tinha as pernas bonitas e saía na escola de samba da rua Fidalga.

Os meninos e meninas da turma na maioria pareciam-se com os pais: Zé Renato queria seguir a profissão do avô, Maria Camila ia fazer escola normal, Paulinho ia escolher uma carreira que desse dinheiro.

Nada contra quem gosta da mesma profissão do avô ou quem prefira lecionar. E ser bem-sucedido todo mundo quer, não é? O lance é que eu sentia uma coisa dentro de mim que não combinava com eles. Eu não sabia bem o que desejava, mas não era aquela vidinha de tocar guitarra escondido do pai. Era bom fazer parte da turma, mas às vezes apertava...

Que nem daquela vez quando a Amelinha fez quinze anos e todas as meninas da rua acharam a festa ma-ra-vi-lho-sa. Assim que entrei no salão da ACM e vi minhas amigas vestidas de branco, cheias de rendinhas, e aqueles caras de fardinha e as flores cor-de-rosa, e o tule rosa-choque e as velas com florzinhas, e os meninos suando nos fraques e a maquiagem das meninas derretendo no calor, eu disse para mim: “Chiii... eu não vou me adaptar”.

Outra ocasião em que a “coisa esquisita” me bateu fundo foi esta: todas as meninas da turma usavam cabelão. Naquele tempo a moda era cabelo bem liso e comprido, de preferência loiro. O meu era castanho e crespo toda a vida. Então a gente puxava o cabelo da esquerda para a direita, punha bastante grampo. Enrolava na cabeça toda e essa tortura chamava-se touca. E dormia-se de touca, e na manhã seguinte soltava-se o cabelo e ele estava duro e liso feito palha. Tinha umas loucas que alisavam o cabelo com ferro de passar roupa para ir mais rápido, mas a esse ponto eu nunca cheguei.

Pois bem. Uma manhã eu tinha desentoucado a touca, estava bela e formosa na aula de geografia, quando o japonês que sentava atrás de mim colou chiclete na minha nuca e eu tive que cortar o cabelo bem curtinho. O que chorei na cama você nem queira saber. Todos passaram a me chamar de Joãozinho. Eu fingia que não ligava porque senão a turma ia pegar mais ainda do meu pé, mas por dentro me sentia horrorosa.

Um dia fui visitar minha prima Lena. Ela era mais velha do que eu, com um cabelão liso, e me disse uma coisa que me deixou de queixo caído:

- Antecipando a moda, hein? - Não é moda – eu disse fazendo bico. – foi o Yoshida. Eu acho

medonho - Imagina!... – ela comentou. – Cabelo curtinho e crespo vai ser a

próxima onda do verão, você não sabia? E me mostrou na revista a foto de uma moça que usava o cabelo muito

mais curto do que o meu e era linda. Em cima da foto estava escrita uma frase que eu não entendi nada, mas que tinha uma força...: A BELA ATRIZ DO ACOSSADO AMA O LÍDER DOS PANTERAS NEGRAS.

E a moça sentada numa moto abraçava um negrão bonito com cara brava e jaqueta de couro. O rosto dela era parecido com a Vênus do biscuit da cristaleira da vovó, mas só pelo olhar a gente logo via que ela também devia ser daquelas que não se encaixavam na turma.

Aí, por uns instantes, a coisa esquisita que volta e meia eu sentia não me pareceu tão esquisita assim... Então era isso... A beleza do avesso podia ser muito mais bela sem precisa dormir de touca nem usar madeixas duras de Rapunzel. Como vocês podem ver, cabelo também era uma questão de cabeça...

Junto com esse lance da Bela do Acossado foram me acontecendo outros. Dei para sonhar com uma lua que tentava atravessar o tronco oco de uma árvore. Aí vinha uma chuva e todos os objetos do meu quarto ficavam com cheiro de terra.

Naquele mês de julho acordei feliz da vida. Era início das férias, eu podia passear pelo bairro o dia inteiro e fazia um céu azul de papel crepom.

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Andando pelo quarteirão, tudo estava em seu devido lugar: as árvores, as casas, o sapateiro na sapataria, dona Dirce no armazém, seu Jorge no balcão.

Aos poucos, veio vindo uma brisa suave que foi aumentando, aumentando... fazendo os ipês forrarem as ruas de pétalas amarelas. Durante dois dias o ar ficou impregnado com perfume de jasmim. Seu Ângelo olhou vagarosamente o céu, as árvores e comentou: “Gozado, você está sentindo esse cheiro? Jasmim não dá no inverno...”

Na manhã seguinte, Magro chegou. Junto com ele vieram Pedro, Mário, Vicente, Zeca e Carlos. Alugaram a

casa grande da esquina da Fidalga, pintaram cada parede de uma cor, desenharam um arco-íris na porta, pregaram uma placa na entrada: REPÚBLICA DOS ARGONAUTAS.

Nunca mais a Vila Madalena nem eu seríamos as mesmas. A república dos argonautas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.

15-20. (Marcondes, 2003 unid. 1 – p. 14 - 19).

Recorte 1: 1. No 1º parágrafo do texto, a narradora começa contando das ruas do bairro em que morava. Depois de enumerar os nomes das ruas, ela faz uma comparação entre o presente e o passado.

a) Transcreva para o caderno o período que contém essa comparação. Nós andávamos no bairro à vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai sozinho9.

b) O que essa comparação sugere sobre os dias de hoje? Que hoje em dia há menos segurança nas ruas do que em 1970, naquele bairro de São Paulo.

c) A partir de seu cotidiano, você concorda com essa observação da narradora? Justifique sua opinião. Resposta Pessoal.

(...) 3. Ao comentar sobre dona Mábile, no 4º parágrafo, a narradora ressalta que achava estranho uma costureira tão pobre ter filho estudando em Paris.

a) Que hipóteses você faria diante da pergunta proposta no final do parágrafo? Resposta Pessoal. Professor: oriente os alunos para que apontem hipóteses para a pergunta feita pela narradora. A próxima pergunta fornecerá algumas pistas para eles.

b) Pensando que a história contada pela narradora se passa por volta de 1970, converse com os colegas e com o professor sobre a hipótese mais aceitável entre as levantadas por vocês. Evidentemente, pensando no contexto político brasileiro dos anos setenta, há respostas mais adequadas que outras. Referências posteriores ao capítulo em questão dão conta de que o rapaz teria ido para Paris a fim de fugir da repressão política, muito forte ainda naquele período. Ou seja, por ser um rapaz “cheio de idéias”, como afirma dona Mábile no capítulo 3 do livro, provavelmente ele não pôde permanecer no Brasil e teve de se exilar.

4. Depois de descrever os vizinhos de bairro – os velhinhos que jogavam dominó, os casais portugueses, dona Natália e seu Antenor, Maria Amélia, seu Ângelo -, a narradora faz uma observação curiosa sobre essas pessoas.

a) Que observação é essa? “Eu não sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as ruas da vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um paralelepípedo...”

b) O que você entende que a narradora quis dizer com a observação? Resposta pessoal. É desejável que o aluno perceba a estreiteza da visão de mundo dessas pessoas, ou seja, elas não enxergam muito além dos limites da família os das convenções sociais. Eram como as ruas do bairro: estreitas e limitadas. Pode-se pensar também que a marradora vê pontos de aproximação entre os desejos daquelas pessoas e os paralelepípedos (enquadrados, limitados, rígidos, parecidos).

(Ibid. p. 19 - 20).

9 Nessa parte de nosso trabalho, dentro dos diferentes recortes, iremos destacar em itálico as respostas propostas pelas autoras no manual do professor.

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O primeiro texto proposto para interpretação é A República dos Argonautas,

de Anna Flora. Segundo as próprias autoras, o gênero desse texto é o de “relato de cunho

memorialístico” (Ibid.: 17). A escolha desse texto tem como proposta introduzir o debate

sobre “as relações que o individuo constrói com o lugar onde vive: seu bairro, sua cidade”

(Ibid.: 17). A obra intitulada “República dos Argonautas” trabalha os anos conturbados da

ditadura militar e é uma narrativa das memórias ficcionais de uma garota que em 1979

tinha catorze anos e morava na Vila Madalena, em São Paulo. É um romance juvenil em

que um fragmento recente da história de nosso país ganha a palpitação feliz e desarmada de

uma encantadora adolescente.

No Brasil, as relações do indivíduo com o lugar onde vive: seu bairro, sua

cidade, principalmente para as crianças, estão cada vez mais distantes. As crianças que

vivem nos bairros pobres de cidades brasileiras praticamente desconhecem locais de lazer.

As pessoas que aí convivem não possuem parques, praças, cinemas, teatros, etc. Se os

possuem, a utilização desses meios de lazer fica comprometida pela inexistência de

segurança para os habitantes desses bairros. Aliás, freqüentar praças e parques é um

privilégio de poucos, somente daqueles que moram em cidades muito pequenas ou daqueles

que moram em bairros dotados de segurança particular.

Em particular, dentre as diferentes leituras que poderíamos fazer do texto de

Anna Flora, entendemos que ele traz o tema da violência. Contudo, as autoras do LD não

exploram ou tentam explorar as razões dessa violência. Por que, nos dias de hoje, essa

violência está cada vez maior. Não questionam as diferenças sociais, cada vez mais

alarmantes, entre os que possuem muito e os que não possuem nada. Não levam o aluno a

refletir sobre o porquê de tanta violência e o porquê de tanta distância entre as diferentes

camadas sociais.

No recorte 1, as perguntas propostas pelas autoras do LD enfatizam que, ao

não explorar e desconstruir determinados elementos do texto, a compreensão proposta

contribui para que as idéias implícitas e pré-construídas existentes no texto – mais

especificamente, as idéias de “violência” ou “segurança” – sejam reforçadas no

inconsciente do aluno. Ou seja, através das perguntas – e das respostas induzidas –, que

enfatizam apenas alguns aspectos do tema que o texto propõe explorar, o discurso de Anna

Flora, que agora se apresenta como o discurso das autoras do LD, passa a ser, dentro e fora

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da sala de aula, o discurso do aluno. Por exemplo, já no primeiro parágrafo do texto 1

reproduzido acima, que se propõe relatar as memórias do narrador que datam do início da

década de 70, a idéia da violência é trazida quando a narradora diz: “Nós andávamos no

bairro à vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai

sozinho”. As razões que permitiam que uma pessoa andasse sozinha pelas ruas do bairro

nos anos 70 e que não se possa mais fazer o mesmo hoje, não são levantadas em nenhum

momento pela proposta de interpretação de texto, levando o aluno a entender esse

comportamento como algo fazendo parte da ordem natural, como algo que não deve ser

questionado ou debatido, como algo que deve ser aceito como normal no comportamento

atual de nossa sociedade.

As autoras do LD não exploram, por exemplo, o conteúdo referencial da

palavra “violência”, que tende aqui a limitar-se aos referentes que se institucionalizaram, da

violência física - roubo, estupro etc. –, ficando fora a corrupção, o não-respeito dos direitos

humanos mínimos, etc. promovidos pelas classes no poder. Portanto, é reforçado o

interdiscurso de que a violência só é promovida por aquelas pessoas que fazem parte das

classes menos favorecidas economicamente. A violência que é praticada todos os dias com

a exploração do trabalho, com a prostituição, com a corrupção, com a falta de ética e tantas

outras que poderiam ser citadas não é mencionada, uma vez que essa violência, na grande

maioria das vezes é patrocinada pela classe social que detém o poder econômico.

Em outro momento desse mesmo texto, quando a narradora faz alusão aos

vizinhos de sua casa diz: “os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa, fosse o

assunto que fosse, sempre falavam do filho que estudava medicina”. O discurso de que o

curso de medicina de um filho é necessariamente motivo de orgulho para os pais e de que é

somente através do curso de medicina ou da profissão de médico que pessoas de classes

humildes podem almejar o sucesso econômico, é trazida de forma implícita para dentro do

texto. Outro discurso é também implicitamente destacado na narrativa: o da importância

social de se freqüentar certas escolas particulares: “seu filho estudava contabilidade e ele

achava o máximo que o rapaz estivesse no Mackenzie, um colégio particular”. Ou seja, o

motivo que fazia com que o pai se orgulhasse do filho, não era a possível profissão de

contador, mas o fato de ele freqüentar uma escola particular, passando a idéia de que a

escola pública não oferecia e não oferece um ensino de qualidade, de que o sucesso em

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determinadas profissões está relacionado à escola que freqüentamos e não à capacidade ou

aptidão que possuímos para certas atividades, o juízo de que só aprendemos na escola

particular.

Texto 2a: HOJE É DIA DO TRABALHO

Você curte o seu emprego? O folhateen acompanhou o dia-a-dia de cinco jovens que ganham a vida de maneiras diferentes.

Gabriel Gaiarsa Da Reportagem Local Nome: Andréa de Oliveira Idade: 19 Profissão: catadora de lixo Salário: R$150,00/ mês Frase: “Queria ser empregada doméstica, mas não encontro emprego”. Aterro sanitário de Carapicuíba. São onze horas da manhã, e a temperatura é de quase 30 graus. Cheiro insuportável, e moscas tão grandes que parecem ter saído de um filme de ficção científica. Entre os enormes caminhões que quase atropelam os menos atentos, correm crianças, jovens, adultos e velhos, à procura daquilo que foi considerado inútil, velho ou podre pelos moradores de uma das maiores metrópoles do mundo. O local é popularmente conhecido por Lixão de Carapicuíba. Em meio a esse caos, circula Andréa de Oliveira, 19 anos. Andréa nasceu na favela do Porto, vizinha do Lixão. Desde pequena, fez do local o seu “jardim”. Aos sete anos, começou a trabalhar catando lixo. Sua rotina é procurar papelão e plástico na imundície que os caminhões descarregam. Chega ao lixão às seis da manhã e não volta para casa antes das sete da noite. Andréa se posiciona perto da caçamba do caminhão que acaba de chegar, e disputa com os outros as embalagens e caixas. Depois, junto o papelão que conseguiu num monte e vende tudo no final do dia. Cada grupo tem seu próprio monte, e ninguém de outro grupo mexe. “Se outra pessoa roubar, dá problema”, diz ela. É a lei do Lixão. Com os R$150 que faz por mês, a garota sustenta o filho de três anos e ajuda a mãe, com quem mora. Aos domingos, sua única folga na semana, cuida da criança e sai para se divertir. “Meu filho nunca vai pisar aqui. Quero que ele estude e tenha tudo o que eu não tive”. Andréa diz que gostaria de ser empregada doméstica, mas que não consegue emprego. “Trabalhar aqui é muito sofrido, mas pelo menos é honesto. É melhor que sair por aí roubando os outros”. O filho passa o dia com uma vizinha, enquanto a mãe garante o sustento da casa. “O pai dele era um folgado, não queria saber de trabalhar. Um dia me cansei e botei o vagabundo pra correr”. Quando sobra um tempinho, ela desafia os garotos no fliperama, onde gasta cerca de R$20 por mês, e vai dançar nos bailes a região. Não freqüenta shopping centers e não se lembra da última vez em que foi ao cinema. Em casa, não tem TV, só um rádio, onde escuta seus grupos de rap e pagode favoritos. “Gosto do movimento hip-hop. Eles falam sobre coisas que nós vemos no nosso dia-a-dia”.Seu grupo preferido é o Faces da Morte.

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Andréa está namorando um rapaz que também trabalho no lixão, mas não quer nem ouvir falar em casamento. “Sou muito nova, e os homens são muito folgados. Só faltava arrumar mais um para sustentar”, brinca. Apesar da rotina dura, Andréa está sempre sorridente. “Queria fazer medicina para ajudar os outros. E meu sonho mesmo é conhecer Nova York”.

(Ibidem, unid. 3 – p. 88 e 89)

Texto 2b:

WEBMASTER DEDICAVA AS FÉRIAS AO TRABALHO

Augusto Pinheiro Da Reportagem Local Nome: Csongor Gyuricza Idade: 22 Profissão: webmaster Salário: “Já comprei um carro, pago o meu aluguel e minha faculdade”. Frase: “Nunca precisei procurar emprego, sempre fui convidado”. Aos 16 anos, quando estava no último ano do colégio, Csongor Gyuricza, mais conhecido como “Bart” (porque já teve o cabelo espetado como o personagem dos “Simpsons”), passava as férias trabalhando para um provedor da Internet. E não se importava de perder os dias de descanso. “Desde os 14 anos, sempre fui louco por computador, queria aprender tudo. Comecei com estagiário e acabei efetivado. Mesmo no período de aulas, eu acordava todos os dias às 6h e fazia uns trabalhos em casa”. Hoje, todo o esforço foi recompensado: o rapaz é um webmaster de um grande provedor. Ele cuida da parte técnica dos sites, criando e reformulando páginas e implementando novidades gráficas. Com o trabalho ele já comprou um carro, foi morar sozinho e banca a faculdade de ciência da computação na Unip. Csongor (o nome é húngaro) retornou o curso este ano: já havia começado na PUC-SP, mas resolveu largar para se dedicar apenas ao trabalho. “Não estava conseguindo conciliar”. “Bart” afirma que tudo o que sabe aprendeu na prática e que isso ajuda bastante na universidade. Mas nem por isso ele deixa de recomendar o curso superior: “Sem o diploma, o empregador sempre vai ter uma desculpa para pagar menos. Não é todo mundo que consegue ser bem-sucedido nessa área sem uma faculdade”. Antes de entrar no atual emprego, ele foi webmaster da Globo Cabo, empresa que oferecia acesso à Internet pelo sistema de TV a cabo. “Nunca procurei emprego. Sempre fui convidado”. A rotina é puxada, mas ele não dispensa as baladas. “Bart” acorda às 8h30, resolve assuntos particulares (limpeza do apê, compras, etc.) e chega ao trabalho às 9h30. Só larga o trampo às 19h. 30 e sempre chega atrasado às aulas, que começam às 19h. Às 23h, já em casa, senta em frente ao computador e navega por uma hora na Internet, para se atualizar. “Às vezes, dá para sair, gosto muito de tecno, então vou às boates U-Turn e Lov.e. Não sou frhak ou nerd, tenho vida social. Para completar, o webmaster, de 1,80m, tem uma “carreira paralela” de modelo. “Esporadicamente, quando dá tempo, faço editoriais de moda e desfiles, mas não é muito a minha cara.”

Folha de S. Paulo, São Paulo, 1º de maio de 2000. Folhateen. (Ibidem, unid. 3 – p. 89)

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Recorte 2: 2. Embora o texto não apresente especificamente todos os motivos que teriam levado Andréa a catar lixo, é possível tirar algumas conclusões.

a) O que você imagina que levou Andréa a exercer essa atividade? Andréa diz que gostaria de ser doméstica, mas não consegue emprego. Os alunos podem inferir, embora isso não esteja explícito, que a garota trabalha no Lixão por falta de oportunidade e por necessidade de sobrevivência.

(...) 8. Andréa e Bart trabalham muitas horas por dia.

a) Em vez de declarar seu salário à reportagem, como fez Andréa, o que faz Bart? Ele revela que, com o seu salário, já comprou um carro e consegue se manter sozinho, pagando o próprio aluguel e as mensalidades de sua faculdade.

b) O que essa declaração dá a entender sobre o salário de Bart em relação ao de Andréa? Provavelmente ele recebe muito mais por seu trabalho do que Andréa.

c) Ao observar as atividades exercidas por Andréa e Bart e a remuneração que recebem por elas, o que você conclui? Resposta pessoal. Parece importante a seguinte percepção: apesar de ambos os jovens serem muito dedicados ao trabalho, um deles – em virtude de sua formação e qualificação, das oportunidades que teve, entre outros fatores – recebe muito mais pelo que faz de que o outro, que teve outras circunstâncias de vida.

(Ibidem, unid. 3 – p. 90 e 91).

Outro texto proposto dentro da obra analisada é uma reportagem sobre

jovens trabalhadores, publicada na Folha de São Paulo. A primeira entrevista, de Gabriel

Galarsa, é com Andréa de Oliveira, catadora de lixo. A segunda, de Augusto Pinheiro, é

com Csongor Gyuricza, o ‘Bart’ cuja profissão é webmaster10.

As autoras do LD trazem para discussão o tema do trabalho, através do

trabalho de jovens. Com o gênero reportagem, elas mostram a realidade de dois jovens

representantes da sociedade do sudeste brasileiro, com o discurso implícito do

“malsucedido” e do “bem-sucedido”. Esse discurso acompanha-se de outro, de que só pode

ser “bem-sucedido” aquele que estuda. Aqueles que não estudam, que não freqüentam a

escola, estão “pré-destinados” a serem fracassados, a passarem dificuldades. Além disso,

nesse discurso está implícito o discurso de que em nossa sociedade só existe espaço para

aqueles que se esforçam desde cedo. As autoras entendem que esforço é freqüentar a

escola, é estudar, é trabalhar em profissões valorizadas.

Não há nem mesmo, por parte das autoras do LD, uma tentativa de

contextualizar essa convicção dentro da realidade brasileira atual, onde nem todos têm as

mesmas oportunidades de acesso à escola, onde muitos jovens são obrigados a abandonar a

escola – se é que chegam a freqüentá-la –, para ajudarem suas famílias, visto que muitas

10 Segundo o próprio texto, um webmaster cuida da parte técnica dos sites, criando e reformulando páginas e implementando novidades gráficas.

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vezes a necessidade obriga-os a trabalhar ou até mesmo a pedir esmolas. Não é questionada

nem mesmo a qualidade da escola pública que é oferecida a essas crianças.

Em nenhum momento, dentre os diferentes questionamentos que o texto

propõe, são levantadas as circunstâncias que levaram Andréa a ser catadora de lixo e Bart a

ser um webmaster. O porquê de tantas diferenças sociais. A questão racial também não é

levantada. Nem as razões que levam a sociedade a valorizar mais determinadas profissões

em detrimento de outras. Ou por que tem que haver tanta diferença entre a remuneração de

um webmaster e a de um catador de lixo?

Na primeira reportagem, através da reprodução de algumas falas da

entrevistada, o repórter reforça o objetivo de sua reportagem, o que será também explorado

pelas autoras do LD através da interpretação de texto proposta, ou seja, o discurso de que

somente a escola e o estudo podem trazer uma vida confortável e segura: “Meu filho nunca

vai pisar aqui. Quero que ele estude e tenha tudo o que eu não tive”. Em outro trecho da

reportagem, os temores da classe dominante, quanto ao comportamento das classes

subalternas é reforçado, no momento em que o autor da reportagem utiliza-se da memória

discursiva de Andréa: “Trabalhar aqui é muito sofrido, mas, pelo menos é honesto. É

melhor que sair por aí roubando os outros”. Ou seja, está reforçado o discurso da

necessidade de trabalhar, mesmo que não haja emprego; de encontrar sempre um modo

considerado honesto de sobreviver; de não questionar, não pensar sobre o que leva os

outros a terem oportunidades e você não; de não questionar o que é honestidade, o que é

justiça, de modo a garantir uma vida sacrificada, mas tranqüila.

Esta primeira reportagem é encerrada com uma fala da entrevistada que vale

a pena reproduzir: “Queria fazer medicina para ajudar os outros”. O discurso de que o curso

de medicina é aquele que permite “ajudar os outros” é mais do que intradiscurso, é um

saber cristalizado na memória discursiva e que acaba funcionando como senso comum. No

texto analisado anteriormente, já havíamos chamado a atenção para o fato de os pais

sentirem orgulho pelo filho freqüentar a universidade de medicina, o que de certa forma

provoca um silenciamento do que realmente acontece no contexto atual. As palavras

“medicina” e “médico” estão relacionadas interdiscursivamente ao bem e, junto às classes

subalternizadas, também encontramos o intradiscurso da riqueza, do respeito e do status

social. Este discurso está baseado em um “emissor” e um “receptor” determinados

97

ideologicamente, contribuindo para que a sociedade valorize demais a profissão de médico

em detrimento de outras profissões, que faça com que os profissionais da medicina recebam

uma remuneração muito superior à dos profissionais da educação, por exemplo.

A segunda reportagem começa com um título bem sugestivo: “Webmaster

dedicava as férias ao trabalho”, ou seja, trabalhe sempre, o sucesso só será atingido com

trabalho, não com lazer. O descanso da mente e do corpo é necessário somente para aqueles

que não querem crescer economicamente. Os direitos que os trabalhadores conquistaram

depois de muita luta é o que mais atrapalha o seu sucesso financeiro, portanto, trabalhe.

Mais adiante essa idéia é reforçada com um comentário do repórter: “Hoje, todo o esforço

foi recompensado: o rapaz é um webmaster de um grande provedor”. O interdiscurso da

relação mágica entre esforço e recompensa é forte. O aluno, ao manter contato com este

texto, passa a achar natural que um webmaster tenha uma recompensa maior do que um

catador de lixo, mas não é capaz de fazer a mesma relação entre a valorização de um

profissional da educação ou de outra profissão qualquer, menos valorizada do que as que

são relacionadas ao mundo da informática. Se você deseja ter sucesso na sociedade, esse

sucesso só virá através do trabalho. A sociedade só reconhece como verdadeiros cidadãos

àquelas pessoas que trabalham, pois “com o trabalho, ele já comprou um carro, foi morar

sozinho e banca a faculdade de ciência da computação na Unip”.

O discurso de que o sucesso financeiro só poderá vir através da escola é

reforçado através da memória interdiscursiva do próprio entrevistado: “sem o diploma, o

empregador sempre vai ter uma desculpa para pagar menos”. Se você não estudou, não

interessam as razões e muito menos a qualidade e a importância de seu trabalho, você está

predestinado a receber uma remuneração pequena, a não ser valorizado, a ser mais uma

figura descartável dentro do mercado de trabalho: há ali o interdiscurso da importância de

se ter um diploma superior, que faz com que tudo isto pareça natural.

3.3.2. LD: Linguagem: criação e interação O segundo LD a ser analisado é Linguagem: criação e interação: 8ª série,

de autoria de Cássia Leslie Garcia de Souza e de Márcia Paganini Cavéquia. Cássia Leslie

Garcia de Souza é professora graduada em Português e Literatura de Língua Portuguesa e

pós-graduada em Língua Portuguesa, ambas pela Universidade Estadual de Londrina e

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Márcia Paganini Cavéquia é professora graduada em Português e Literaturas de Língua

Portuguesa; Inglês e Literaturas de Língua Inglesa e pós-graduada em Metodologia da Ação

Docente, todas pela Universidade Estadual de Londrina. No manual do professor, no item

denominado “orientações ao professor”, uma das propostas é o que as autoras chamam de

“estudo do texto”. Segundo as autoras:

esta seção é composta de: exercícios de interpretação que, gradativamente, contribuem para a construção do sentido do texto, abrangendo questões de conteúdo, estrutura e análise do discurso (inferência, crítica, extrapolação, antecipação, transformação, situação-problema), análise de recursos expressivos e coesivos do texto, questões interativas e intertextuais.

(Souza & Cavéquia, 2005: 8). Continuando a leitura das orientações ao professor, o que também nos

chama a atenção são os conceitos que nos são apresentados sobre leitura. Para Souza &

Cavéquia “o verdadeiro ato de ler é um processo de atribuição de sentido ao texto, isto é, a

partir de conhecimentos que já possui, o leitor interage com o texto, construindo um

significado” (Ibidem, p. 16). As autoras, ainda na mesma página, afirmam que “formar

leitores proficientes deve ser um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa. A

capacidade de ler criticamente garante ao indivíduo condições de interferir no meio em que

está inserido, podendo, inclusive, transformar a realidade” (Ibidem).

Vejamos agora como estes conceitos são trabalhados dentro das propostas de

interpretação dos textos escolhidos.

Texto 3 MOMENTO DO TEXTO 1

A pequena e fictícia cidade de Sucupira não possuía um cemitério, de

modo que os habitantes precisavam enterrar seus mortos nas cidades vizinhas. Com a promessa de construir um cemitério na cidade, Odorico Paraguaçu foi eleito prefeito. Mas eis que surge um novo problema: mais de um ano após sua construção, o cemitério ainda não havia sido inaugurado, pois nenhuma morte ocorrera na cidade desde então. Pressionado pelos adversários políticos, que o acusavam de empregar indevidamente os recursos públicos, Odorico empenha-se em resolver o problema.

Leia a seguir um trecho da qual faz parte essa personagem. O BEM-AMADO Terceiro Quadro

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Odorico lê um exemplar de A Trombeta, o jornaleco local. Seu rosto revela profunda indignação.

Odorico (Resmunga, enquanto lê.) Patife!Canalha!(Amarrota o jornal violentamente e atira-o ao chão. Põe-se a andar nervosamente de um lado para o outro, e por fim senta-se à sua mesa, parecendo a ponto de ter um colapso.)

Dorotéa (Entra quase marcialmente.) Bom-dia, senhor prefeito. Odorico Bom-dia.(Levanta-se de um salto.) A senhora já leu a

gazeta? Dorotéa Ainda não. Odorico Esse patifento desse Neco Pedreira me chama de

demagogo esbanjador dos dinheiros públicos... me xinga de tudo quanto é nome.(Apanha o jornal.) Leia a senhora mesma, leia.

Dorotéa Que retrato é esse que ele botou na primeira página? Odorico È um retrato que tiraram de mim durante a construção

do cemitério. Tem um ano, já. Dorotéa (Lendo.)´´Odorico, o pastor de urubus.`` Odorico Que é que eu faço com um mau-caratista como

esse.Dona Dorotéa?Que é que eu faço? Já pensei em arranjar dois jagunços e mandar dar uma surra...

Dorotéa Isso me parece contraproducente; vai fazer dele um herói e aumentar a venda do pasquim. Além do mais, o senhor teria que mandar surrar muita gente. A oposição está ganhando terreno dia a dia. E o que Neco escreveu n A Trombeta é mais ou menos o que os nossos inimigos dizem por aí.

Odorico Eu sei. È um movimento subversivo procurando me intrigar com a opinião pública e criar problemas á minha administração.Sei, sim. È uma conspiração. Eles não queriam o cemitério. Desde o princípio foram contra. E agora que o cemitério está pronto caem em cima de mim, me chamam de demagogo, de tudo, somentemente, porque aconteceu o que não devia acontecer. Ou melhor: só porque não aconteceu o que devia acontecer. Como se estivesse culpa!

Dorotéa Seja como for, é uma situação horrível, que precisa ser resolvida.

Odorico Mas resolvida como? Dorotéa O senhor sabe que pode contar comigo para tudo.

Apesar...apesar de minha situação pessoal não ser também das melhores. Há seis meses que não recebo e o grupo está sem dinheiro até para comprar material escolar.

Odorico E todo mundo acha que a culpa é do cemitério.È verdade que a receita municipal baixou um pouco: não obstantemente, estamos agora livres da humilhação de enterrar nossos mortos no cemitério dos outros.

Dorotéa Acho que o senhor só tem uma saída: inaugurar o cemitério.

Odorico Inaugurar como? Se há um ano não morre ninguém nesta terra?!

Dorotéa Inaugurar sem defunto mesmo. Odorico Era uma desmoralização. Depois da gente ter anunciado

aos quatro ventos que a inauguração ia ser com o primeiro enterro,era passar o recibo de inutilidade do

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cemitério;era dar razão á oposição, que diz que é dinheiro jogado fora.Não, inaugurar campo-santo sem defunto é o mesmo que batizar navio em terra firme. Não tem graça.

Dorotéa Menos graça tem ainda o que a Câmara Municipal está preparando.

Odorico Que é? Dorotéa Soube hoje que vão pedir esse tal de impeachment. Odorico Já me disseram. Querem votar o meu impedimento.Mas

isso eles não vão conseguir. Não vão conseguir. Dorotéa Acho que só há um meio de evitar:arranjar um defunto

qualquer e inaugurar o cemitério. Não se podia comprar um?

Odorico Já pensei nisso.Mandar buscar em Salvador. Lá se vendem cadáveres para estudo na Faculdade de Medicina.

Dorotéa Pois então!È a solução! Odorico Mas muito perigosa. A oposição ia descobrir, com toda

a certeza. E nem é bom imaginar o que iam dizer de nós. Dorotéa Não há ninguém doente na cidade? Odorico Em estado de dar esperança, parece que ninguém. Em

todo caso, mandei o coveiro fazer uma verificação. Dorotéa Quase todo ano há sempre um veranista que morre

afogado. Odorico Este ano o mar está que é uma lagoa. Nunca vi tanto

azar. Dorotéa Então, que vamos fazer? Odorico Sei lá,Dona Dorotéa,sei lá. Passo dia e noite pensando

nisso e não encontro jeito. È uma situação deverasmente embaraçante.

(...) Dias Gomes. O Bem-Amado, Rio de Janeiro, Ediouro, s/d.

(Souza & Cavéquia, unid. 4, p. 84 - 86).

Sobre o fragmento escolhido “O Bem-Amado - Terceiro Quadro” de Dias

Gomes, acima reproduzido, retirado da unidade 4, que as autoras qualificam como texto

teatral, fizemos um recorte de quatro perguntas.

Recorte 1: 1) Em relação ao fragmento lido responda:

a) Qual é o fato desencadeador da história? Uma notícia de jornal sobre o prefeito Odorico e a indignação dele ao lê-la.

b) Qual teria sido o tempo de duração dessa cena? Menos de uma hora. 5) O texto é iniciado pela rubrica: “Odorico lê um exemplar de A Trombeta, o jornaleco local.”

a) O que se pretende com o uso do termo jornaleco? O uso do termo jornaleco dá pistas de que se trata de um jornal sem muita importância

b) O que o nome do jornal sugere? O nome “A Trombeta” sugere que o jornal divulga as notícias com alarde.

8) Quanto ao prefeito Odorico, o que se pode dizer dele como político e administrador público? Pode-se dizer que o prefeito não demonstra ser um bom político e administrador público, pois, para construir o cemitério (o que supostamente lhe renderia prestigio e votos), deixou de pagar o salário dos funcionários e de repassar a verba para que o grupo escolar pudesse ser abastecido com o material necessário. Além disso, os meios que Odorico utiliza para resolver os problemas não são muito éticos/lícitos.

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12) Para você, qual a intenção do autor ao escrever esse texto? Possível resposta: Criticar a falta de caráter de certos administradores do dinheiro público.

(Ibidem, p. 88).

Observando, através do recorte 1, alguns questionamentos levantados sobre

o texto, entendemos que as autoras do LD limitam-se a explorar o texto de forma

superficial. Essas perguntas limitam-se a explorar a intenção do autor ao trabalhar a sua

obra – na pergunta número 12 do recorte acima, isso fica bem claro – além de contribuírem

para o silenciamento sobre questões importantes que envolvem a vida na nossa sociedade.

Na questão número 5, quando as autoras “sugerem” a resposta, reforçam o intradiscurso de

que jornais que criticam os governantes e seus governos estão numa condição “inferior” aos

demais meios de comunicação; que a função para a qual foram criados, a de somente dar

notícias, sem dar opiniões, está sendo desrespeitada. A oportunidade que o texto oferece

para que as diversas administrações públicas de nossas cidades, de nossos estados e de

nosso país sejam avaliadas não é explorada. A discussão que poderia ser instigada sobre as

causas que levam uma pessoa como Odorico a eleger-se prefeito de uma cidade não são

exploradas na proposta de “estudo do texto”.

No nosso entendimento, “explorando” o texto dessa maneira, fica muito

difícil que o aluno torne-se um cidadão crítico e participativo e que tenha o seu “desejo”

pela leitura despertado, contrariando a proposta inicial apresentada pelas autoras no manual

do professor. Ao ignorarem o intradiscurso presente no termo jornaleco, que é justamente o

jornal que critica o governo municipal, desperdiçam a oportunidade de analisar o papel da

mídia na vida política. Ao fazer referência a jornaleco, todo o intradiscurso de jornal sem

importância, sem repercussão, mal redigido, de pequena circulação e, portanto, sem

importância é reforçado na memória discursiva: o discurso de que todos aqueles jornais ou

meios de comunicação que denunciam as falcatruas políticas não são órgãos merecedores

de crédito. Somente os jornais de grande tiragem, os jornais que defendem os interesses da

classe dominante, os jornais que justificam as ações “injustificáveis” de determinados

governos é que devem ser prestigiados.

Texto 4 MOMENTO DO TEXTO 1

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Maria Macária de Assis, a personagem da história a seguir, nasceu no

século XX na antiga Nossa Senhora do Livramento, Bahia. Já na velhice, ela relata lembranças de juventude, época em que era perita na arte da capoeira.

A dança da vida Bahia, 1889 Sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que

desejei, como aprender a escrever, em português e francês. No sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento, poucas são as mulheres letradas e, se forem negras como eu nem pensar. Creio que nasci abençoada por Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô.

Agora que minha vida está por terminar, alegro-me com minhas lembranças. Já tenho oitenta e seis anos.Sinto-me cansada ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis, minha vista é boa e passo os dias recordando e escrevendo. Quem sabe meus netos se interessem pelo que tenho a contar...

Quando eu era menina, as pessoas me diziam que era muito mimosa. Sinhá Quitéria, que todos chamavam de sinhá Viúva, ordenou que eu trabalhasse na casa-grande, Deixei a senzala e comecei a dormir no porão com as outras mucamas. Mas, na verdade, passava a maior parte das noites em claro, cuidando de meu sinhozinho.

Nunca esqueci a primeira vez em que o vi. A pele tão branca, os olhos fundos e delicados, os cabelos castanhos, encaracolados e longos. Ele sorriu para mim, gostou do meu jeito. Passava o dia acamado.Sofria do pulmão. O peito chiava e ele sentia muita fraqueza. Às vezes tossia a noite inteira.

Mas nos dias em que estava disposto, ele era muito divertido. Vendo como eu adorava os livros encadernados que viviam na sua mesinha-de-cabeceira, sinhozinho resolveu me ensinar a ler. Só para que eu lesse histórias para ele. Foi uma alegria. Aprendi tudo num instante.

Sinhá Quitéria sempre me dizia que não deixasse meu sinhozinho por um minuto sequer. Mas ela nem precisava dar essa ordem. Até hoje continuamos juntos. Só vamos nos separar quando a morte vier.

Mas, como estava dizendo, nas noites em que ele sofria, eu quase morria. Não suportava vê-lo assim. Foi por isso que, certa madrugada, eu o convenci a fugir do quarto. Abri as cortinas que viviam fechadas e saímos os dois pela janela. Foi assim que levei meu querido Pedro Manuel de Assis, meu amado sinhozinho, para meu avô examiná-lo.

Meu avô nascera em Angola; conhecia as ervas e os segredos da cura.Foi uma noite inesquecível. Quando nos aproximamos da senzala, vi que a roda de capoeira já havia começado. Lembro-me ainda hoje do berimbau e das cantigas cadenciadas.

Sinhozinho até parou de tossir. Não tirava os olhos da ginga, dos rabos-de-arraia, das rasteiras, daquela dança mágica da vida. A lua estava cheia,a noite clara e a luz da fogueira, os homens rodopiavam como se pertencessem a uma constelação de estrelas negras, cortantes e mortais.

De repente sinhozinho me disse: - Eu quero aprender capoeira, Maria Maçaria. Diga isso ao seu avô. Vocês podem imaginar como fiquei apavorada. E se alguma coisa desse

errado? E se alguém descobrisse? Mas quando meu avô fitou Pedro Manuel bem no fundo dos olhos

simplesmente respondeu: - Você é filho de Xangô. Se eu o ajudar, você nos fará justiça e

descobrirá sua própria coragem. Foi uma surpresa para mim. Nunca pensei que meu avô um dia aceitasse

ensinar capoeira a um branco. Sinhá Quitéria ficou desconfiada quando sinhozinho

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lhe disse que passaria as tardes em companhia do velho João. Mas,como detestava contrariar o filho, acabou permitindo.

E foi muito,muito divertido.Porque meu avô decidiu que aprenderíamos a ginga juntos. Mandava-nos engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros. Morríamos de rir dando rasteiras um no outro. Aos poucos fomos aprendendo a dança e a compreender cada som do berimbau.

A luz do sol e o toque da terra devolveram a saúde a sinhozinho.A chiadeira foi sumindo, o peito se desenvolvendo, as pernas firmando e finalmente ele conseguia dormir á noite. Sinhá Quitéria ficou muito satisfeita com o ´´tratamento`` de meu avô, e nós começamos a ter regalias. Mas contente mesmo ela ficou no dia da surra.

Nesse dia, sinhá Quitéria recebeu a visita de dona Raquel, uma mulher muito antipática.Tinha nascido na Europa e detestava a Bahia. Seu filho era seu orgulho: um moleque grandalhão que sempre gritava com as mucamas e adorava matar passarinho. Na tarde da confusão eu estava muito cansada e derrubei chá quente em sua roupa quando fui servi-lo. Ele me deu um tabefe tão forte no rosto que eu cai sentada no chão.

E antes que sinhá Quitéria pudesse dizer qualquer coisa, meu amado sinhozinho já se levantara e segurava o menino pelo colarinho.

Dona Raquel deu uma risadinha maldosa. - Seu filho já está bem de saúde? – perguntou para sinhá Quitéria. –

Será que agüenta uma surra? Mas a frase ficou perdida no ar, porque rapidamente sinhozinho levou o

menino para o meio do quintal. O grandalhão estava contente com a situação. Louco para bater em alguém. Levantou os punhos como se fosse dar socos.

E sinhozinho começou a gingar. Ele se movimentava sem parar, observando o adversário de soslaio. Depois sorriu levemente, cheio de esperteza e mandinga.

Quando o grandalhão levou a primeira rasteira, dona Raquel levantou-se indignada. Mas depois nem teve mais tempo de reclamar. Sinhozinho esquivou-se dos socos e o atacou com o arrastão, depois aplicou-lhe a meia-lua, e assim o grandalhão foi levando um tombo atrás do outro. A essas alturas alguém já tocava o berimbau e uma roda havia sido formada em torno dos dois meninos. A cada vitória de sinhozinho todos aplaudiam e davam risadas. Ele tomava cuidado para não ferir o grandalhão de verdade. Queria só quebrar aquele orgulho. Mas isso quem fez foi a própria sinhá Quitéria. Pois quando a briga acabou e dona Raquel foi buscar o filho caído no meio do quintal, ela perdeu a compostura e gritou:

- Muito bem, Quitéria, você tem um filho valente. Ele luta como um negro.

Sinhá Quitéria abraçou Pedro, que ria abraçado ao meu avô e respondeu com toda a calma:

- É, Raquel, meu filho luta como um homem! Nunca mais dona Raquel voltou à fazenda e muitas coisas mudaram

depois desse dia. Para mm e sinhozinho essa foi a primeira vitória. Passamos a vida envolvidos em muitas lutas. A luta contra o preconceito, contra a pobreza, contra a ignorância. E hoje, quando vejo nossos netos correndo por aí, acredito que conseguimos várias vitórias. Mas essas são histórias muito longas e ainda levarei dias para escrevê-las. E mesmo sendo uma velha guerreira, há momentos em que preciso descansar e, quem sabe, sonhar. Até mais tarde.

Heloisa Prieto. Heróis e guerreiras. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1995.

Coleção Quase tudo o que você queria saber. (Ibidem, p. 132 - 134).

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A segunda proposta de interpretação de texto é de um conto de autoria de

Heloísa Prieto, cujo título é “A dança da Vida”. Heloisa Prieto é editora, professora,

roteirista e escritora premiada. Publicou vários livros e suas histórias trazem contos

folclóricos do mundo inteiro, especialmente do Brasil. Esse conto faz parte da obra

denominada “Heróis e guerreiras”, que apresenta uma seqüência cronológica de obras

exemplares do heroísmo, como, por exemplo, trechos do lendário livro de Myamoto

Musashi (herói das artes marciais do Japão medieval), lutas de capa e espada na França do

século XVII, a força da capoeira na Bahia do século XIX, o primeiro contato de um garoto

inglês com o surfe no Havaí na época de Jack London. Essas histórias são intercaladas com

muitas perguntas que dizem respeito à história do heroísmo e, em outro plano, também à

vivência dos leitores.

O discurso de Heloísa Prieto, no LD, passa a ser o discurso das autoras. Já

no primeiro parágrafo do texto, a narradora faz a seguinte asserção: “(...), poucas são as

mulheres letradas e, se forem negras como eu, nem pensar. Creio que nasci abençoada por

Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô”. A idéia de que a

educação letrada só é possível para as pessoas de cor branca e nunca para as pessoas de cor

negra e de que, se as últimas conseguirem atingir esse objetivo, será por graça e ajuda de

algum santo, jamais por sua capacidade, infelizmente, esta idéia está incutida no

inconsciente coletivo de nossa população e, nesse exemplo, o texto em questão ajuda a

reforçar este espectro. Também o discurso de que as mulheres pobres não têm direito ao

estudo, de que a responsabilidade para que elas adquiram esse direito é quase divina,

isentando da responsabilidade os governantes, é reforçada por este intradiscurso.

Recorte 2: 2) Em que espaços ocorrem os fatos dessa narrativa? Por que ele é significativo para a história? A história se passa no sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento. O espaço é significativo para a história pelo conjunto de condições culturais que ele apresenta, que envolvem as personagens na atmosfera da narrativa; 8) Caracterize o narrador e o foco narrativo do conto lido. Comprove sua resposta com trechos do texto. O foco narrativo está em 1ª pessoa, ou seja, o narrador é também personagem da história. Os seguintes trechos comprovam essa afirmação: “sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que desejei (...)” e “Sinto-me cansada ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis(...)”. 10) Qual é o conflito do conto “A dança da vida”? o conflito desse conto é o atrito ocorrido entre o filho de dona Quitéria e o filho de dona Raquel. 11) Qual é o clímax, ou seja, o momento de maior tensão desse conto? O clímax da narrativa é o momento em que sinhozinho briga com o filho de dona Raquel.

105

17) “A dança da vida” é uma narrativa fictícia cujos fatos são verossímeis, isto é, poderiam ter ocorrido na realidade. Sendo assim, qual a intenção da autora a criar essa história? A intenção da autora pode ter sido retratar a época a que a história remete ou, ainda, valorizar a luta dos negros pela liberdade, além de instigar a imaginação do leitor com uma interessante história.

(Ibidem, p. 137).

Como podemos observar nos questionamentos acima, as perguntas relativas

ao texto detêm-se a explorar os elementos do conto: espaço, foco narrativo, conflito,

clímax, verossimilhança. Tal atitude provoca um silenciamento sobre os discursos

materializados pelo texto, como, por exemplo, a situação dos negros no Brasil: como eram

tratados antes da abolição da escravatura e como são tratados hoje, o que realmente foi a

luta dos negros pela abolição e a permanência dessa luta até os dias de hoje.

Ao agir assim, ignorando estas questões e explorando somente os aspectos

formais do texto enquanto gênero literário, as autoras contribuem para que o silenciamento

sobre as questões raciais no Brasil seja reforçado. É alentado o intradiscurso de que o

racismo e o preconceito social não existem em nosso país e é desperdiçada a oportunidade

de fazer um comparativo entre as antigas senzalas e as atuais favelas, de questionar o

porquê de tanta discriminação social para com este ser humano que foi e ainda é

escravizado. As autoras do LD referem-se às condições culturais, sem especificar o

conteúdo referencial dessa expressão ou da palavra cultura, reduzindo a questão social ao

cultural. Na questão número 8, a segunda de nosso recorte, as autoras do LD fazem

referência ao narrador no masculino, quando de fato ele é uma mulher. Como em todas as

propostas de interpretação desta obra, as autoras limitam-se a explorar as características dos

diferentes gêneros textuais. As propostas detêm-se a ser mais uma preparação para o estudo

da literatura como disciplina escolar do que uma proposta de estudo dos diferentes

significados construídos através do texto.

3.3.3. LD: Português: idéias & linguagens A terceira obra que nos propomos a analisar é Português: Idéias &

Linguagens, 8ª série, de Dileta Delmanto e Maria da Conceição Castro. Dileta Delmanto é

licenciada em Letras – Português e Inglês –, mestre em língua portuguesa pela PUC-SP e

professora das redes estadual e particular de São Paulo. Maria da Conceição Castro é

licenciada em Letras pela Unesp e professora das redes municipal e estadual de São Paulo.

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Um dos aspectos que nos chama a atenção no manual do professor, no item

denominado “a proposta” é quando as autoras dizem:

Considerando que ser usuário competente da língua é uma das condições para a efetiva participação social, achamos que a finalidade do ensino de Língua Portuguesa deve visar, posteriormente, ao desenvolvimento da capacidade de produzir e interpretar textos orais ou escritos, à medida que estes auxiliem o educando a ler o mundo em que vive, a analisar o que dele se diz e se pensa e a expressar uma visão fundamentada e coerente dessa leitura e dessa interpretação.

(Delmanto, 2005: 3).

Perguntamos: por que o ensino de língua portuguesa deve visar,

posteriormente, ao desenvolvimento da capacidade de produzir e interpretar textos orais ou

escritos? O aluno ao chegar na escola não possui esta capacidade, ao menos no que diz

respeito a textos orais? Ele, aluno, seria incapaz de entender e de ler de diferentes formas os

textos orais e escritos? É somente na escola que ele adquire esta capacidade? Ou seria na

escola que ele adquiriria a capacidade de ler estes textos como as classes dominantes

economicamente desejam? O que seria essa visão fundamentada e coerente de leitura de

mundo? Seria a leitura do professor? A leitura do autor do LD? Ou seria a leitura dele

aluno, baseada na fundamentação do professor ou do autor do LD? Qual leitura de mundo

queremos?

Ao agirem assim, as autoras do LD geram uma série de questionamentos

como os que fizemos acima e tantos outros que não foram explorados. Ao tratarem o aluno

como um sujeito pronto a ser “manipulado”, elas ignoram sua memória discursiva,

acreditam ou tentam acreditar que o aluno está pronto para entrar “no mundo da leitura”, já

que quem possui o letramento são os professores e, conseqüentemente, a escola; são os

elementos capacitados a “auxiliarem” esse aluno na leitura fundamentada e coerente do

mundo.

Mais adiante, no item denominado “construindo e reconstruindo os sentidos

do texto”, as autoras propõem que “o sentido do texto depende também da habilidade do

leitor de interpretar as indicações do texto. Essa habilidade depende de uma série de

elementos como conhecimento de mundo, domínio de língua, crenças e opiniões,

conhecimento a respeito dos diferentes gêneros e tipos de texto utilizados”. (Ibid.: 6). Ao

afirmarem que a compreensão do sentido de um texto depende da habilidade do leitor de

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interpretar “as indicações” do texto – indicação é ato ou efeito de indicar e indicar, mostrar

com o dedo, assinalar, designar, esclarecer, informar alguém sobre algo, instruir, orientar

etc. têm quase uma denotação intencional. Portanto, com essa palavra, consciente ou

inconscientemente, as autoras reproduzem a visão tradicional de um sujeito-escritor

consciente e não de um sujeito-escritor assujeitado ideologicamente.

Texto 5

Texto 1 O texto a seguir faz parte de um livro que reúne histórias

envolvendo personagens sem nome, que vivem insólitos destinos, em reinos e aldeias distantes. Todas essas histórias parecem remeter a um mundo fabuloso, existente apenas em nossa imaginação. Mas será mesmo?

Sem asas, porém Dura aldeia era aquela, em que às mulheres não era permitido

comer carne de aves – não fossem as asas subir-lhes ao pensamento. Dura aldeia era aquela em que, apesar da proibição, voltando da caça ao final da tarde e sem nada mais ter conseguido abater, o marido entregou à mulher uma ave, para que a depenasse e a cozesse e fosse alimento de ambos.

E assim a mulher fez, metendo os dedos por entre as penas ainda brilhantes, arrancando-as aos punhados, e entregando à água e ao fogo aquele corpo agora morto, que a fogo e água nunca havia pertencido, mas sim ao ar e à terra.

Tivesse olhado para o alto por um minuto, tivesse detido por um instante sua tarefa e levantado o olhar, e teria visto pela janela bandos daquelas mesmas aves migrando rumo ao Sul. Mas a mulher só olhava para as coisas quando precisava olhá-las. E não precisando olhar o céu, não ergueu a cabeça.

Cozida a carne da ave, regalou-se, engolindo os bocados sem quase mastigar, firmou os dentes nos ossos, sugou o tutano. O marido não. Repugnou-lhe a carne tão escura. Limitou-se a molhar o pão no caldo, na cozinha que era quase toda a casa.

Mas uma inquietação nova começou a tomá-la. Interrompia seus afazeres de repente, como nunca havia feito. Paradas breves, quase nada. Um suspender do queixo, um vibrar de pestanas. Um alerta. Resposta do corpo a algum chamado que ela sequer ouvia. A agulha ficava parada no ar, a colher suspensa sobre a panela, as mãos metidas na tina. E a cabeça, cabeça que agora se movia com delicadeza que só um pescoço mais longo poderia lhe dar, espetava o ar.

A mulher olhava então para quilo de que não precisava. E olhava como se precisasse.

Só por instantes, a princípio. Em seguida, um pouco mais. Demorando-se, olhou primeiro adiante. Adiante de si. E adiante

daquilo que tinha diante de si. Por uns tempos pousando o olhar nos móveis, nos poucos móveis daquela casa e nos objetos em cima deles. Depois varando-os, varando as paredes, olhou para a distância em linha reta. O que via, não dizia. Olhava, sacudia num gesto suave a cabeça. E tornava a abaixá-la. A agulha descia, a colher mergulhava na panela, as mãos afundavam na tina.

Talvez levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou a olhar para os lados. Olhava para o lado esquerdo, demorava-se, imóvel. E, súbita, voltava-se para o lado direito.

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Ninguém lhe perguntava o que estava olhando. O único olhar que nela parecia importar para os outros ainda era o antigo, de quando só olhava o que era necessário.

E assim um dia aquela mulher para a qual ninguém olhava olhou o céu. Sem que tivesse chovido ou fosse chover. Sem que houvesse relâmpagos. Sem que sequer houvesse nuvens ou o tempo fosse mudar, ela olhou o céu.

Delicado fazia-se seu pescoço agora que o movimentava ligeiro conduzindo a cabeça em suas perscrutações. Era um pescoço pálido, protegido na luz por tantos anos de cabeça baixa. E sobre esse pescoço a cabeça como que se estendia olhando para cima, com a mesma reta intensidade com que havia começado varando paredes.

Olhava pois para o alto, quando um bando das aves passou sobre a casa rumo ao Sul.

Há muito as folhas haviam-se banhado de cobre, o solo começava a fazer-se duro no frio. E as aves de carne escura seguiam no céu em direção ao sol.

De pé a mulher olhava. E continuou olhando até que as aves empalideceram na distância.

O vento batia os longos panos da sua saia, estalava as asas franjadas do seu xale. Não, ela não voou. E como poderia? Saiu andando, apenas. Escura como a tarde, acompanhando seu próprio olhar, saiu andando para frente, sempre, sempre para a frente, rumo ao Sul.

(Marina Colassanti. Longe como o meu querer. São Paulo, Ática, 1997. p. 57-59.) (Delmanto, 2005: 108 e 109).

Vejamos como funcionam estas perspectivas dentro das sugestões de

interpretação dos diferentes textos no decorrer da obra. O primeiro recorte que faremos

pertence à proposta da interpretação do texto “Sem asas, porém” de Marina Colasanti.

Maria Colasanti é jornalista, escritora e artista plástica. Nasceu na Etiópia, África. Veio

para o Brasil com a Segunda Guerra Mundial, aos onze anos. É formada pela Escola

Nacional de Belas Artes e dedicou-se por algum tempo à gravura, depois ingressou no

jornalismo, trabalhando como editora e jornalista. O texto “Sem asas, porém” faz parte da

obra intitulada “Longe como o meu querer”. Este livro reúne histórias envolvendo

personagens sem nome, que vivem insólitos destinos, em reinos e aldeias distantes.

A idéia de que as mulheres não devem olhar à sua volta com objetivos que

ultrapassem as funções que a sociedade machista estabelece para elas é reforçada, pois a

mulher, no texto, só vai “adquirir” a capacidade de criar asas e voar a partir do momento

em que o homem permite que ela coma a carne de galinha, ou seja, o homem é o elemento,

é o elo que permite que essa mulher seja livre, tenha sonhos e ideais. Embora o texto queira

mostrar que a personagem em questão parte para o sul em busca de alguma coisa, ele

também passa a idéia de que aquelas mulheres que se atrevem a enfrentar os obstáculos

estabelecidos pela sociedade são mulheres sem rumo, sem destino, que têm um futuro

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incerto, que não sabem o que estão fazendo, conforme o próprio texto: “Escura como a

tarde, acompanhando seu próprio olhar, saiu andando para a frente, sempre para a frente,

rumo ao sul” (Ibidem: 109).

Recorte 1: 1) “Dura aldeia era aquela”. Assim começa o texto. a) Qual a característica singular da aldeia em que se passa a história? Nela não se permitia às mulheres comer carne de aves. b) Como se explicava essa proibição? Como você a entende? Não deveriam comer para que “as asas não lhe subissem à cabeça” / (resposta pessoal. Sugestão: obedecendo, elas não teriam vontade de “voar com suas próprias asas”). c) O que aconteceu, certo dia, para que essa proibição fosse desrespeitada? Como o marido não conseguira oura caça, entregou à mulher uma ave para ser preparada e servir de alimento a ambos. 2) Muita coisa se modificou a partir daí. a) O que começou a acontecer à mulher a partir desse dia? Uma inquietação nova começou a dominá-la e ela começou a olhar para tudo o que a cercava. b) “Talvez levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou a olhar para os lados.” Que diferença havia entre esse novo olhar e a maneira anterior de olhar o que a cercava? Antes, a mulher olhava só para o que era necessário. Agora, olhava para tudo o que a cercava, inclusive para “aquilo de que não precisava”. c) Como você interpreta essa “mudança de olhar”? (Resposta pessoal). Espera-se que o aluno perceba que a mulher começou a tomar consciência do que a cercava, a perceber como era sua vida ali. 3) Como você entende os trechos abaixo? a) “A mulher olhava então para aquilo de que não precisava. E olhava como se precisasse”. A mulher apenas cumpria suas obrigações, sem pausas, sem reflexões, sem momentos prazerosos. b) “(...) na cozinha, que era quase toda a casa.” A vida da mulher era a cozinha, o dever, a obrigação.

(Ibidem: 110).

Observando as questões propostas para a interpretação do texto, vemos que

as autoras do LD limitaram-se a explorar questões superficiais, como as características da

aldeia; a proibição a que as mulheres estavam destinadas nessa aldeia e as modificações

pelas quais a mulher passou a partir do dia em que a proibição foi desrespeitada. Ao

apresentarem questionamentos, cujas respostas seriam de cunho pessoal, a oportunidade de

fomentar uma discussão sobre as diferentes “visões de mundo” que os alunos possuem

sobre as mulheres é desperdiçada, pois essas perguntas também são feitas de forma

superficial. Infelizmente, não parece haver interesse em fomentar o debate sobre as

dificuldades da mulher na sociedade de antigamente e muito menos na sociedade atual.

Dentro de nossas perspectivas, o texto seria ideal para fomentar o debate sobre as

desigualdades sociais, principalmente nas relacionadas com as diferenças sexuais. Com

certeza, muitos dos alunos teriam exemplos práticos de discriminação contra as mulheres

em suas casas e em suas comunidades. Seria o momento ideal para debater a origem dessas

110

diferenças de tratamento, o porquê do desrespeito para com as mulheres, principalmente

nas questões salariais e sexuais.

Texto 6 Um milhão de meninas-mãe

“A gravidez na adolescência é um desastre na vida de qualquer menina. A vinda do filho inesperado significa, quase sempre, o abandono dos estudos e o ingresso antecipado na vida adulta. Todo mundo conhece a história de uma moça cuja juventude foi virada de cabeça para baixo pela maternidade imprevista. Menos visíveis são os efeitos igualmente devastadores da paternidade precoce – pelo menos para aquela minoria de rapazes que assumem o filho.” (Revista Veja, 20 jan 1999.)

Um milhão de adolescentes viram mães todos os anos no Brasil.

Sessenta por cento das meninas que engravidam, depois de um ano e meio voltam a engravidar. As estimativas são do coordenador da Área Técnica de Atenção à Saúde do Adolescente e do Jovem do Ministério da Saúde, José Domingues Júnior. Ele esteve em Fortaleza, na semana passada, participando do curso sobre Saúde do Adolescente para preparação de turmas do Programa da Saúde da Família. O POVO - Qual o principal problema associado à adolescência hoje? José Domingues – O principal problema hoje (...) é a questão da gravidez. Em 1999 foram feitos no Brasil quase 34 mil partos em meninas de 10 a 14 anos só na rede SUS (dados do Ministério da Saúde). E, aproximadamente, 700 mil partos em meninas de 15 a 19 anos. Computando a rede privada e convênios, nós estimamos que um milhão de adolescentes de 10 a 19 anos dão à luz todo ano no Brasil. OP – Qual o perfil da adolescente grávida? JD – É óbvio que a gravidez hoje na adolescência está muito relacionada a uma questão socioeconômica. Nas regiões mais pobres do país, nas periferias dos grandes centros, nos bairros mais pobres, esta incidência é muito maior que nos bairros de classe média. É óbvio que estas meninas também estão tendo as relações mais cedo. A maioria destas meninas já está fora da escola ou tem defasagem muito grande entre a idade cronológica e a idade escolar. Geralmente elas têm uma expectativa de vida, um projeto de vida não muito audacioso. Com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, com pouca escolaridade, muitas delas acabam optando por serem mães. A gente está preocupado porque cada vez mais aumenta a taxa de gravidez em meninas cada vez mais novas. (...) OP – O senhor acha que a adolescência brasileira está se erotizando precocemente e isso pode estar contribuindo para o aumento do número de adolescentes grávidas? JD – A nossa sociedade, o Brasil é muito erotizado. A gente tem uma televisão – eu não gosto de culpar a mídia, que pode ser boa e tem o seu papel – mas infelizmente a gente tem alguns veículos que ajudam a determinar padrões de erotização. Um outro que vem influenciando, que é biológico, é que a cada ano a primeira menstruação da menina, a menarca, está vindo mais cedo. OP – A falta de educação também é um fator que influencia na educação sexual precoce? JD – Sim. Nós somos um dos poucos países do mundo que não têm estruturada uma educação sexual – nem sei se este seria o nome - , mas orientações básicas dentro da escola. Hoje você vê em alguns centros algumas escolas que têm introduzido essa questão. Discutir gravidez, discutir sexualidade, discutir métodos anticonceptivos são ações importantes hoje que é preciso ter. OP – Existe relação entre a jovem da escola e a jovem mãe?

111

JD – Existe um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), de 1998, que diz que na menina que tem de três a cinco anos de escolaridade, a taxa de gravidez é dez vezes maior do que na que tem 11 anos de escolaridade. OP – Dentro desse contexto de violência e da iniciação sexual, o senhor acredita que a adolescente viúva possa vir a se tornar um personagem comum na sociedade? JD – O grande problema hoje é a gravidez. O segundo problema, sem dúvida nenhuma, é a violência. Para você ter uma idéia, em algumas regiões do país, a Grande São Paulo, o Grande Rio de Janeiro e mesmo em torno de Brasília, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem mostrado a expectativa de vida do jovem e do adolescente desempregado, de baixa escolaridade e que habita estas regiões é pelo menos quatro anos mais baixa que a do outro adolescente qualquer. E o problema é que a questão da violência, mesmo a gravidez, elas não são questões específicas da saúde. Sobre a questão da viúva, o que a gente vê nos dados é que (...) já tem adolescentes viúvas. Mas muitas dessas adolescentes viúvas. Mas muitas dessas adolescentes já são normalmente sozinhas... O que a gente não quer é que esta menina passe a engravidar muito cedo. O que a gente tem é meninas (...) com 18 a 19 anos, com dois a três filhos. E aí sim, numa situação de abandono gera-se um problema muito sério. A gente tem trabalhado para que possa aumentar o número de pessoas, através do programa de saúde da família, que trabalhem a questão da adolescência. No que concerne à gravidez, o papel deles seria instrumentalizar, orientar para que, se a adolescente tiver relação, use algum tipo de método [anticoncepcional]. Se por acaso estiver grávida, para que esta gravidez transcorra bem e que ela retome um projeto de vida depois que este nenê nascer. Aí passe a usar um método [anticoncepcional] e espace mais o número de filhos. O que está acontecendo no Brasil é que a menina engravida, passa um tempinho e engravida de novo. Então a média é que 60% das meninas que engravidam no Brasil, dezoito meses depois (...) engravidam de novo.

(Jornal O Povo. Fortaleza, 21 maio 1999.) (Ibidem, 134 a 135.)

Essa outra proposta de texto refere-se à questão da gravidez na adolescência.

O texto é uma entrevista publicada no dia 21 de maio de 1999, no jornal O Povo, de

Fortaleza, intitulada “Um milhão de meninas-mãe”

Recorte 2: 4) Além do fator socioeconômico, o que contribui para o aumento do número de adolescentes grávidas? A erotização precoce, a deficiência de educação sexual, a falta de informação. 5) Comente a relação entre a jovem fora da escola e a jovem mãe. (Resposta pessoal). Espera-se que o aluno aponte em seu comentário que, quanto mais baixo o grau de instrução, maior a incidência de casos de gravidez precoce. 6) A violência tem contribuído para o aparecimento de uma nova personagem na sociedade brasileira. que personagem é essa? Fale sobre isso. São as adolescentes viúvas – jovens, geralmente pertencentes à população de baixa renda, que engravidam cedo e logo são surpreendidas pela morte dos companheiros, muitas vezes envolvidos com drogas.

(Ibidem, 137).

O recorte proposto acima mostra como a questão da gravidez na

adolescência é explorada pelas autoras do LD. Assim como o texto, elas também, em seus

112

questionamentos, em suas propostas de interpretação, contribuem para que não seja

explorado o silenciamento sobre a questão do alto índice de adolescentes grávidas,

principalmente entre as meninas pobres. A verdadeira razão que leva a que estas meninas

engravidem enquanto seu corpo ainda está em desenvolvimento é tratada como uma coisa

natural, como algo comum aos pobres, o que contribui para reforçar o intradiscurso de que

pobre só sabe fazer filho. Os padrões de erotização promovidos por alguns veículos de

comunicação de nosso país não são questionados, e sendo assim, eles são isentados dessa

responsabilidade. Afinal, quem assiste à televisão, quem ouve determinadas músicas no

rádio, tem que saber diferenciar a realidade da fantasia, o que é possível do que não é

possível. Ao agir assim, as autoras do LD, o professor de língua portuguesa e,

conseqüentemente, a escola estão contribuindo para que o silenciamento sobre estas

questões tão pertinentes da realidade brasileira não sejam debatidas, sejam silenciadas e

aceitas como naturais, como normais, que sejam inseridas no intradiscurso de toda a

sociedade.

O fator socioeconômico só é citado, mas o que gera a diferença de renda

entre esses adolescentes em nenhum momento é trazido para a interpretação, o que

contribui para que o silenciamento sobre as questões da enorme diferença na distribuição de

renda em nosso país seja reforçado, fazendo com que estas questões pareçam naturais,

normais. Todas as perguntas limitam-se a tratar a questão da sexualidade superficialmente,

produzindo mais uma vez um silenciamento sobre a questão da erotização precoce em

nosso país. Portanto, a principal característica dessa interpretação é o “não-dito” – isto é, as

autoras também poderiam explorar o texto nesse sentido – o silenciamento da mídia sobre

determinadas questões sociais, já que a reportagem em nenhum momento levanta este

problema.

No discurso do jornal “O Povo”, que no LD passa também a ser o discurso

das autoras do LD, ao asseverar que “A gente está preocupado porque cada vez mais

aumenta a taxa de gravidez em meninas cada vez mais novas”, a responsabilidade da

gravidez precoce é transferida para as adolescentes, visto que a preocupação é do

entrevistado, é “da gente”, já que as meninas, em nenhum momento da entrevista com o

“especialista” parecem estar preocupadas com essa questão, colocando “a gente” numa

parte da sociedade e “as meninas-mãe” numa outra, contribuindo para que o silenciamento

113

sobre essa questão seja reforçado. Mais adiante, ainda na mesma entrevista, afirma-se que

existe “um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), de 1998, que

diz que na menina que tem de três a cinco anos de escolaridade, a taxa de gravidez é 10

vezes maior do que na que tem 11 anos de escolaridade”, ou seja, essas meninas ficam

grávidas precocemente porque não freqüentam a escola regularmente. Se assim fizessem,

este problema não existiria. As idéias contidas no texto servem para reforçar a opinião da

maioria da sociedade brasileira de que a culpa dos fatos relatados é das próprias

adolescentes, pois as escolas existem e elas não freqüentam porque não querem.

Os textos propostos para interpretação nos diferentes LD trazem a visão

daqueles que fazem parte da classe economicamente dominante. Ao selecionarem

determinados textos e ao tomarem determinados rumos nas atividades de compreensão dos

textos, como podemos observar na análise acima, os autores desses LD estão contribuindo

para que os não-ditos sejam reforçados junto a alunos e professores. Ao “incentivarem” os

silenciamentos, ao “reforçarem” os não-ditos: razões da violência, diferenças sociais,

circunstâncias que levam determinados grupos jovens da sociedade subalternizada a

submeterem-se as condições de sub-trabalho, os índices de erotização presente nos meios

de comunicação, o papel da mídia na vida política do país e da importância e a necessidade

da mulher na sociedade. Agindo dessa forma os LD acabam transformando-se num grande

“plano de aula nacional” para a manutenção dos ideais e dos valores das classes

economicamente superiores, não contribuindo em nada para o debate, para o crescimento e

para a formação de uma sociedade mais democrática e mais humana.

114

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa experiência de cinco anos no magistério nos mostrou que, dentro de

nossa sociedade, principalmente na estrutura escolar, cristalizou-se a idéia de que o LD

funciona como um discurso de verdade. Em muitos LD, verifica-se, sobretudo nas

propostas de compreensão de textos, um número excessivo de perguntas de “interpretação”,

que, de algum modo, demonstra a preocupação do autor em abarcar tudo o que considera

essencial a ser compreendido e, conseqüentemente, guiar a leitura do aluno, restringindo

desta forma outras leituras possíveis. Essa “condução” da “compreensão” do texto tem o

poder de naturalizar os sentidos, de apresentar a “leitura” do autor do LD como certa e

verdadeira e única possível. Para a maioria dos professores de língua portuguesa o texto

tem um sentido e o aluno deve apreender esse sentido.

Lembramos que, para as teorias lingüísticas que enfatizam a língua enquanto

discurso, a leitura não é unicamente decodificação, o texto não é apenas produto. Essas

teorias entendem que o leitor não apenas apreende o sentido que supostamente estaria no

texto, mas atribui sentidos a ele, compreende o texto. A leitura deveria ser um momento

crítico de construção de um texto, um momento privilegiado do procedimento de interação

verbal, visto que é no texto que se desprende o processo de significação. No caso da escola,

esse processo passa basicamente pelo livro didático, que apresenta uma leitura já pronta

para o aluno e para o professor.

O aluno deve refletir, mas o LD delimita a forma e a seqüência em que essa

reflexão deve ser orientada, preferencialmente obedecendo a uma suposta linearidade do

texto. Isso, com certeza, contribui para chegarmos à ordenação e unificação do sujeito, para

formarmos um sujeito respeitador das normas e convenções estabelecidas pela sociedade,

normas e convenções que representam os interesses da classe economicamente e

politicamente dominante, e que contribuem para reforçar a idéia de que o aluno e,

conseqüentemente, o futuro cidadão, é visto como o sujeito que deve ser guiado, a cada

passo, por um único caminho, criando a ilusão de que os sentidos podem ser domesticados.

Essa estrutura se repete a cada unidade e a atribuição de uma determinada ordem para a

“compreensão” dos textos é apresentada como natural, é o que podemos observar através

dos três livros que analisamos.

115

Durante todo o percurso de nossa análise observamos que nenhum dos LD

analisados traz como proposta de trabalho a leitura plena dos textos, isto é, uma leitura em

que o leitor chegaria à interpretação dos aspectos ideológicos do texto, das concepções que

muitas vezes estão embutidas sutilmente nele; uma leitura em que o leitor conseguisse

perceber que nenhum texto é neutro, que por trás das afirmações mais simples, das palavras

mais triviais, existe uma visão de mundo; que qualquer texto reforça idéias já sedimentadas,

que nenhum é neutro, no sentido de não tomar partido em relação a uma determinada

concepção das coisas. Instigado pelo professor, o aluno deveria perceber que a linguagem é

uma das formas de influenciar e de intervir no comportamento de outrem, que os outros

atuam sobre nós fazendo uso dela e que da mesma forma nós podemos atuar sobre os

outros.

Agindo dessa forma a escola contribui para que a educação democrática

fique cada vez mais distante de nossa realidade. Ao ignorar que cada um (no caso da aula

de português: professor e aluno) tem sua capacidade, seu potencial, mas que também é um

produto sócio-histórico e que, sua presença no grupo é fundamental para a formação de

cidadãos conscientes e políticos, estamos contribuindo para a formação de uma sociedade

cada vez mais injusta, cada vez mais repetidora dos discursos já produzidos, cada vez mais

alienada e fazemos nossas as palavras de Zandwais:

“os compêndios escolares acabam por esfacelar toda e qualquer possibilidade de trabalho com a língua, enquanto uma materialidade empírica dotada de sentidos e, portanto, capaz de refletir representações identitárias heterogêneas de sujeitos reais, e não forjados, oriundos de contextos sociais distintos, e, por isso, investidos tanto de interesses quanto de gestos de interpretação contraditórios, em face das histórias/memórias que os significam e do modo como utilizam a língua para simbolizá-las” (Zandwais, 2003: 35).

Para finalizar, gostaríamos de lembrar que esta pesquisa teve como foco

principal a análise e compreensão do discurso presente na aula de interpretação de textos de

língua portuguesa. Investigar os movimentos discursivos, que envolvem a atividade de

interpretação de texto pode ser fundamental para compreender as idéias e pensamentos

únicos que dominam os dias de hoje. A análise realizada também esteve limitada pela nossa

FD, sendo que outros pesquisadores poderiam destacar conflitos distintos dos apontados

116

nesta dissertação e desmistificar os movimentos discursivos sob outros prismas.

Eventualmente, poderemos, em estudos posteriores, realizar novas leituras e interpretações

dos dados analisados.

Observamos ao longo do percurso aqui traçado que, desde os primórdios de

nossa história, a escola foi criada e mantida para um pequeno grupo de privilegiados. Até

mesmo agora, neste século, quando o país atinge quase cem por cento de matrículas com

alunos na faixa etária de sete anos, nossa educação esbarra na qualidade que é ofertada a

esta população menos favorecida. Infelizmente, hoje, há uma preocupação em matricular

alunos, sem que exista a mesma preocupação em oferecer uma escola pública de qualidade.

Através da política do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) o governo

federal faz chegar aos diferentes cantos de nosso país o livro didático (LD). Este livro

torna-se, para a grande maioria dos professores, o único suporte utilizado em sala de aula e

como já vimos anteriormente, esse livro nada mais é do que o elemento reprodutor do modo

de ver, de agir e de pensar da classe dominante, ou seja, dedica-se a reproduzir a estrutura

da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares

sociais pré-determinados.

A lingüística evoluiu e continua evoluindo, mas infelizmente esta evolução

não chega à sala de aula. Ao contrário de outras disciplinas como a biologia, a química e a

física, que rapidamente têm as novas descobertas incorporadas ao currículo escolar, os

novos conhecimentos desenvolvidos pela lingüística não recebem a atenção que merecem

da maioria dos profissionais que trabalham com o ensino de língua.

Como podemos observar, os diferentes conceitos lingüísticos são

apresentados pelos autores do LD, dentro do que eles denominam manual do professor.

Mas ao analisarmos as propostas de trabalho dentro desse mesmo LD, notamos que estes

conceitos não foram aplicados no desenvolvimento das diferentes propostas. Estas “novas

propostas” de ensino da língua, independentemente da preferência por este ou por aquele

conceito, contribuiriam e contribuem muito para a formação de um cidadão livre,

independente e crítico.

Permanecendo dentro desta política educacional de ensino de língua

portuguesa, a educação assume formas e conteúdos, cuja correlação espaço-temporal é

muito representativa no modo de vida e de ensinar da instituição escola. Trata-se de

117

relações e de interações sociais quase sempre presididas e orientadas por bases desiguais e

hierárquicas, onde predomina, por um ângulo, a dominação e a exploração do homem pelo

homem e, por outro, a mutilação da liberdade, da espontaneidade, da responsabilidade e da

criatividade dos indivíduos.

Uma relação e uma interação social estruturada entre os que sabem e os que

não sabem; entre os que decidem e os que acatam as decisões sobre as questões

educacionais e pedagógicas; entre os que detêm o poder de emitir ordens, controlar e punir

e os que obedecem; entre os que orientam e institucionalizam valores, ideais, ideologias e

crenças e os que são compelidos a assumi-los; enfim, entre os grupos sociais dominantes

que detêm o poder, o prestígio e a riqueza e os grupos sociais dominados.

118

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