mArCEL mAuSS: DA DDiVA QuESTo DA rECiProCiDADE*Eric Sabourin

introduoDepois dos inmeros e qualificados escritos e comentrios produzidos a propsito do Ensaio sobre a ddiva, e da produo cada vez mais importante das cincias sociais brasileiras sobre o tema,1 o que agregar sem ser repetitivo ou pretensioso? neste texto abordarei apenas a questo da relao entre as noes de ddiva, troca2 e reciprocidade3 no Ensaio de Marcel Mauss, apoiando-me em algumas publicaes recentes e sem pretender ser exaustivo. Desenvolverei uma reflexo em torno de um duplo paradoxo do Ensaio sobre a ddi* Uma verso preliminar desse texto foi apresentada na Sesso especial Marcel Mauss e as Cincias Sociais do XXX encontro Anual da Anpocs, Caxambu Mg.

Artigo recebido em janeiro/2007 Aprovado em dezembro/2007

va (que passou a fazer parte do livro Sociologia e antropologia, 1950). De um lado, Mauss evidencia que a ddiva o oposto da troca mercantil e, paradoxalmente, procura nela a origem da troca (ou do intercmbio). De outro lado, mostra a essncia da reciprocidade com o carter universal da trplice obrigao de dar, receber e retribuir, mas no chega a teorizar sobre tal reciprocidade4, trabalho que deixou para seus seguidores, em particular Lvi-Strauss (1967 [1947], 1997 [1950]) e, mais recentemente, temple e Chabal (1995), temple (1998, 2003), godbout (2000, 2007), entre outros. Mas no h consenso entre os seguidores e estudiosos do Ensaio sobre a ddiva. Sigaud (1999) mostra, assim, uma descontinuidade da herana de Mauss e, sobretudo, as diversas interpretaes, s vezes contraditrias, que foram feitas do Ensaio. A autora analisa como Lvi-Strauss (1997 [1950]) utilizou partes do Ensaio... para justificar sua teoRBCS Vol. 23 n. 66 fevereiro/2008

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ReViStA BRASiLeiRA De CinCiAS SOCiAiS - VOL. 23 n. 66relativas s formas e s razes do que erroneamente chamado de troca, o escambo, a permutatio das coisas teis (Idem, p. 302). Mauss identifica nas prestaes totais das sociedades antigas ou primitivas uma forma de relao que ele chama de ddiva-troca e que se diferencia da troca mercantil, na medida em que associa uma moral, um valor tico, transao econmica. ele usa, precisamente, a expresso de moral da ddiva-troca:O sistema que propomos chamar o sistema de prestaes totais, de cl a cl aquele no qual indivduos e grupos trocam tudo entre si constitui o mais antigo sistema de economia e de direito que podemos constatar e conceber. ele forma o fundo sobre o qual se destacou a moral da ddiva-troca (Idem, p. 299).

ria da troca generalizada e da troca simblica. Devemos a temple e Chabal (1995 e 2003) uma explicao renovada das contribuies respectivas de Mauss e de Lvi-Strauss para a teoria da reciprocidade. esse duplo paradoxo no Ensaio... leva, portanto, s duas partes da minha reflexo. A primeira trata da ddiva como algo contrrio troca e no como sua origem. A segunda aborda alguns elementos de leitura emprica do princpio de reciprocidade no Ensaio... proponho um breve esboo de sntese desses ensinamentos e das perspectivas que se abrem na terceira parte deste texto.

A ddiva como contrrio da trocapara Mauss, as prestaes primitivas revestem a forma de ddivas, de presentes, reguladas por trs obrigaes interligadas: dar, receber, retribuir (Mauss, 2003, pp. 200 e 243). Dar uma obrigao, sob a pena de provocar uma guerra (Idem, p 201). Cada uma dessas obrigaes cria um lao de energia espiritual entre os atores da ddiva. A retribuio da ddiva seria explicada pela existncia dessa fora, dentro da coisa dada: um vnculo de almas, associado de maneira inalienvel ao nome do doador, ou seja, ao seu prestgio. A essa fora ou ser espiritual ou sua expresso simblica ligada a uma ao ou transao, Mauss dar o nome polinsio de mana. em primeiro lugar, Mauss mal resolve qualificar de troca as relaes que est analisando. De um lado, ele encontra nas sociedades indgenas formas de troca que no correspondem a nossa, no sistema ocidental.Descreveremos os fenmenos de troca e de contrato nessas sociedades que so, no privadas de mercados econmicos como se afirmou pois o mercado um fenmeno humano que, a nosso ver, no alheio a nenhuma sociedade conhecida , mas cujo regime de troca diferente do nosso (idem, p.188).

Mauss diferencia essas ddivas de presentes, bens e smbolos da troca utilitarista. para o autor, no so os indivduos e sim as coletividades que mantm obrigaes de prestaes recprocas, mediante os grupos familiares, comunitrios ou mediante seus chefes no caso do potlach: em primeiro lugar, no so indivduos, so coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam [...] (Idem, p. 190). nessas prestaes existem misturas entre almas e coisas, entre riquezas materiais e espirituais, ao passo que nas sociedades modernas, direitos reais e direitos pessoais, material e espiritual, so muito bem separados. Assim ele descreve as oferendas mtuas:Ademais, o que eles trocam no so exclusivamente bens, riquezas, bens moveis e imveis, coisas teis economicamente. So, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, servios militares, mulheres, crianas, danas, festas [...].(Idem, ibidem). trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas (idem, p. 212).

De outro lado, algumas dessas prestaes representam, precisamente, o contrrio da troca, inclusive para as prestaes de coisas teis: esses fatos respondem tambm a uma srie de questes

Com efeito, se material e espiritual se misturam, pode-se conceber que a coisa dada leva algo do ser do doador. Dessa forma Mauss faz uma distino, em particular em sua anlise do potlach e da ddiva agonstica, entre a troca mercantil, motivada pelo interesse, e o sistema de d-

MARCeL MAUSS: DA DDiVA qUeStO DA ReCipROCiDADediva, no qual reina a nobreza e a honra e no qual o doador ganha prestgio. para temple e Chabal (1995, p. 19), se o autor interpreta a ddiva como um intercmbio arcaico, no no sentido utilitarista, em que o doador deveria recuperar seu bem, mas porque o donatrio quer resguardar seu mana, seu prestgio, isto , sua integridade espiritual:Se coisas so dadas e retribudas, porque se do e se retribuem respeitos podemos dizer igualmente, cortesias. Mas tambm porque as pessoas se do ao dar, e, se as pessoas se do, porque se devem elas e seus bens aos outros (Mauss, 2003, p. 263).

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[...] a materialidade e a espiritualidade no esto mais ligadas a um estatuto comum de objeto, so opostas mediante dois estatutos, conjugados por uma relao de contradio: o espiritual aparece adquirido pelo doador, enquanto o material adquirido pelo donatrio. O uso da noo de troca no mais necessrio (1995, p. 26, traduo do autor).

Vale lembrar que Mauss foi criticado por ter dado demasiada importncia ao mana, Mas temple e Chabal (1995) consideram, ao contrrio, que Mauss percebera justamente que a matriz do lao entre as almas, do mana, se encontrava na obrigao de retribuir, na obrigao de reciprocidade. Contudo, de fato, a pesquisa de Mauss limitou-se apenas reciprocidade das ddivas (isto , a reciprocidade positiva, segundo a proposta de temple e Chabal) e, por isso, no conduziu a uma teoria da reciprocidade. O mana expressaria o sentido dado ao homem ou criado pelo homem quando entra numa relao recproca:O mana o valor da reciprocidade, um terceiro entre os homens, que no est ainda aqui, mas para nascer, um fruto, um filho, o Verbo que circula (a palavra), que d a cada um seu nome de ser humano, e a sua razo ao universo (Idem, p. 15, traduo do autor).

De fato, para Mauss, nas ddivas, no existe nem troca, nem compra. A ddiva e a contraddiva, redescobertas por Mauss, pertencem a uma dialtica social e econmica polarizada pelo prestgio e pela honra. essa polaridade por si s probe reduzir o sistema ddiva/contraddiva a uma troca e reduzir o efeito de redobramento da ddiva ao interesse do primeiro doador.

A questo da reciprocidade: o papel do terceiroO Ensaio sobre a ddiva introduzido por um verdadeiro programa de pesquisa em torno de duas perguntas complementares: por que as ddivas de presentes devem ser obrigatoriamente devolvidas? e por que existe essa universalidade da retribuio? nas palavras de Mauss: qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido seja obrigatoriamente retribudo [...]. que fora existe na coisa dada que faz que o donatrio a retribua? (2003, p. 188). Segundo o autor, as ddivas voltam, so recprocas e necessariamente devolvidas ou retribudas. Mas a obrigao de retribuir parece desmentir a gratuidade das ddivas. ela seria apenas aparente, ocultando uma troca interessada. portanto, no incio da explicao, ele mantm a tese da troca universal, situando a ddiva-troca como um ponto de passagem entre as prestaes totais das sociedades arcaicas e os intercmbios modernos. Assim, a histria mostraria a evoluo da troca a partir de prestaes primitivas em que a comunicao entre os homens seria ao mesmo tempo material e simblica troca de bens e comunho entre os seres isto , at a separao entre as comunicaes espirituais, afetivas e materiais dos tempos modernos. nas origens,

portanto, a anlise de Mauss deve ser retomada e aprofundada numa direo diversa que aquela escolhida pelos tericos da troca, a qual examinarei na segunda parte deste artigo. em sntese, pode-se concluir que as observaes descritas no Ensaio... mostram que a ddiva equivale, para Mauss, a um crescimento da conscincia de ser, a um incremento de autoridade e de fama para o doador. Dar no mais oferecer algo de si, mas adquirir esse si. O prestgio nasce da ddiva e relaciona-se quele que toma a iniciativa: ao doador, para constituir seu prprio nome, sua fama, o valor de renome (Mauss, 2003, p. 258). para temple e Chabal, nesse sentido,

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ReViStA BRASiLeiRA De CinCiAS SOCiAiS - VOL. 23 n. 66Mauss acredita que os Maori querem explicar a reciprocidade das ddivas dando uma expresso ao mana. portanto, esse terceiro parceiro seria necessrio para visualizar um valor moral.6 O autor levado assim a introduzir entre os parceiros um terceiro de natureza ontolgico, o mana ou o hau, isto , o nome do doador. porm a tese de Mauss, segundo temple e Chabal, pode estar apenas incompleta, porque ele prope tambm outra soluo: o hau e o mana no constituem um valor j institudo como prprio do doador, mas, ao contrrio, um valor produzido pela reciprocidade das ddivas, pelo movimento dos bens materiais ou simblicos. nesse embate da reciprocidade, tal valor tico compartilhado pelos protagonistas como um todo indiviso, invisvel, um terceiro includo.7 para evidenciar esse terceiro possvel recorrer a uma estrutura que no seja um artifcio, como imagina Mauss, mas uma estrutura de reciprocidade bem concreta, ternria em vez de binria: precisamente a estrutura de reciprocidade simtrica. para temple e Chabal essa interpretao tem o mrito de esclarecer como Ranaipiri o sbio Maori explica o funcionamento do hau para o etnlogo Rupert e. Best: esse texto [..] por momentos surpreendentemente claro oferece apenas uma obscuridade: a interveno de uma terceira pessoa (Mauss, 2003, p. 198). Um fato importante no Ensaio sobre a ddiva precisamente que para o essencial do que descobre e que no corresponde lgica da troca moderna Mauss deixa falar os indgenas. quando introduz a expresso manifestar respeitos recprocos (Idem, p 237) est traduzindo uma expresso dos ndios tlingit. para qualificar o valor espiritual associado ao movimento das ddivas, ou para dar conta da necessidade do terceiro, usa o mana ou a cara do mana. para falar da figura desse terceiro que assegura o lao espiritual, ele usa a expresso Kanak: nossas festas [a reciprocidade das ddivas] so o movimento da agulha que serve para ligar as partes do telhado de palha, para que haja um nico teto, uma nica palavra (Idem, p. 213). Mauss percebeu a preeminncia da obrigao de retribuir (devolver), mas no tirou dessa observao o princpio de reciprocidade. para temple e Chabal (1995, p. 64), sua insistncia em declarar essa obrigao irredutvel aos dois ter-

segundo Mauss, interessa no somente as coisas, mas os seres, o ser:Mas, por ora, ntido que, em direito Maori, o vnculo de direito, vnculo pelas coisas, um vnculo de almas, pois a prpria coisa tem uma alma, alma. Donde resulta que apresentar alguma coisa a algum apresentar algo de si (Idem, p. 200).

no entanto, essa coerncia aparente da sua teoria deixa o prprio Mauss insatisfeito. ele evoca vrias vezes o vocabulrio da troca e do interesse como palavras tipicamente europias que se aplicariam to mal ao que pretendia dizer. Com efeito, lembram-nos temple e Chabal (1995, p. 15), Mauss vai procurar uma palavra indgena para explicar que os indgenas5 fazem referncia a um motor das prestaes econmicas diferente do interesse. Motor ao qual Mauss d um nome polinsio: o mana. O autor reconhece no poder reduzir o mana noo de interesse econmico. prope, ento, compar-lo a um capital imaginrio, ao ser do doador. Mas, explicam temple e Chabal, como a supremacia da sociedade ocidental sugere fortemente que a troca seja a forma mais evoluda das prestaes humanas, a soluo mais fcil para ligar troca e ddiva seria interpretar a reciprocidade das ddivas como uma troca arcaica. precisaria, ento, reduzir o mana, que segundo as referncias indgenas comanda a reciprocidade, a um valor que pudesse ser trocado. Mauss atribui o mana ao doador, como uma propriedade espiritual; assim, dando algo, d-se algo de si mesmo. A noo de ddiva de si leva idia de que a ddiva cria uma dependncia para com o outro, porque o mana, o ser do doador, seria inalienvel. portanto, aquele que receberia esse smbolo seria obrigado a restitu-lo ou a ficar sob a sua dependncia. A interpretao que Mauss faz do hau Maori parece corroborar essa tese. O hau seria esse mana, a fora de ser do doador que acompanha o bem dado e que, onde quer que esse v, ter que voltar. para temple e Chabal, a questo do prestgio fica no corao de uma reflexo inacabada de Mauss. O hau maori e o mana polinsio seriam, segundo esses povos, a razo da circulao dos bens. Ora, Mauss observa que para dar conta dessa circulao os Maoris falam de um ciclo ternrio: A d a B que d a C o qual devolve a B que d de novo a A.

MARCeL MAUSS: DA DDiVA qUeStO DA ReCipROCiDADemos permite, no entanto, invocar uma estrutura mais fundamental que enlaa entre elas todo tipo de atividades (matrimnios, assassinatos,8 ddivas etc.), precisamente a estrutura de reciprocidade. nas prestaes totais, tudo simblico, diz Mauss, e tudo recproco.

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Sntese e ensinamentosMauss chega a uma concluso mestra: as ddivas vo e voltam sempre. pouco importa seu valor, pouco importa sua natureza; podem ser idnticas ou no; o importante que recorram caminhos inversos ou simtricos, que elas se reproduzam como num espelho; e esta reflexo o motor oculto dos seus movimentos, inclusive quando so aparentemente livres e gratuitas (temple e Chabal, 1995, p. 73, traduo do autor). A devoluo da ddiva explicada pela fora presente na coisa dada, pelo lao espiritual ao qual, na falta de um termo equivalente nos pases ocidentais, Mauss d o nome de mana ou que reconhece tambm no hau dos Maori. O prestgio no corresponde ao ego do doador, mas ao ser ao qual ele aspira, que no lhe preexiste e que deve ser produzido mediante a relao de reciprocidade (temple e Chabal, 1995). pois bem, a reciprocidade supe uma preocupao pelo outro. no se pode estar inquieto do outro sem se preocupar com suas condies de existncia. tal preocupao torna-se, portanto, hospitalidade, ddiva de alimentos e vveres, proteo, ou seja, motivos ou obrigaes para produzir. A partir das observaes de Mauss sobre as ddivas, temple (2003, tomo 1, pp. 81-93) prope uma regra de base da economia primitiva: se para ser preciso dar, para dar, necessrio produzir. A produo de riquezas materiais , assim, uma conseqncia da produo de energia espiritual, de mana. Mauss identificou a reciprocidade das ddivas, mas no o motor de uma economia de reciprocidade, porque no contexto em que vivia no existia outra possibilidade de evoluo econmica, exceto a troca.

de fato, satisfaz o interesse de cada parceiro. nesse caso, em que difere da reciprocidade? precisamente porque a reciprocidade implica na preocupao pelo outro para estabelecer o mana, para produzir valores afetivos ou ticos como a paz, a confiana, a amizade e a compreenso mtua. A troca utiliza esses primeiros valores humanos para se poupar da violncia. trata-se de uma relao de interesses, mas que supe uma reciprocidade mnima. A razo aconselha estabelecer a competio de interesses forjada na confiana, na paz e na compreenso mtua produzidas pelas relaes de reciprocidade. Dessa forma possvel entender que se possa muito facilmente confundir a troca com uma forma de reciprocidade simtrica. Mas, em realidade, ela inverte o movimento da reciprocidade, porque em vez de se preocupar com o outro, procura em primeiro lugar a satisfao do prprio interesse. Segundo temple e Chabal, Mauss reuniu as principais peas de uma teoria da reciprocidade: a ddiva, a obrigao de retribuir, o prestgio e a presena do terceiro, esse elemento que era a nica obscuridade da teoria indgena. Mauss convence-se da idia de que o ciclo das ddivas leva obrigao de retribuir. no entanto, essa obrigao supe uma estrutura fundamental de simetria entre as ddivas ou necessita que se recorra a um terceiro elemento, seja ele uma pessoa ou um smbolo. pois o ele um vinculo de almas, sendo a reciprocidade sua matriz, o princpio da sua gnese. no final de sua obra, Mauss percebe a origem natural da estrutura de reciprocidade nas condies do parentesco (exogamia e filiao):[...] a separao por sexo, por geraes, por cls, leva a fazer de um grupo A o associado de um grupo B, mas esses dois grupos, A e B, quer dizer as linhagens, so precisamente divididas por sexos e geraes: as oposies cruzam as coeses (Mauss, 1968-1969 [1931a], p. 141, traduo do autor).

Diferena entre troca e reciprocidade Como Lvi-Strauss (1997 [1950]) mostrou, a troca , s vezes, chamada de recproca porque,

Como escreve Laval (2006), para Mauss, a reciprocidade no se limita ddiva entre pares, ela rege o princpio das relaes entre grupos de idade e estatutos. Mauss diferencia assim a reciprocidade direta (prestaes materiais ou simblicas devolvidas entre dois indivduos ou dois grupos) da reciprocidade indireta, quando os bens sim-

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ReViStA BRASiLeiRA De CinCiAS SOCiAiS - VOL. 23 n. 66sentimentos de homens de carne, osso e esprito que agem o tempo todo e agiram em toda parte (Mauss, 2003, p. 299).

blicos recebidos no so devolvidos a quem os deu, mas a outro grupo que, por sua vez, ter que devolv-los a um outro grupo. O modelo dessa reciprocidade indireta precisamente aquele da circulao dos bens entre as geraes. aquilo que seu pai fez para voc que voc pode devolver ao seu filho (Mauss, 1968-1969 [1931b]). O que recebido em termos de educao tambm deve ser devolvido (Laval, 2006). essa estrutura de reciprocidade ternria, segundo temple (1998), aquela que reproduz tambm o sentimento e o valor tico de responsabilidade entre geraes. Aplicado aos recursos naturais, essa mesma responsabilidade que levou as geraes passadas a preservar florestas, rios, lagos e mares. no fim da vida, Mauss pressentiu a universalidade desse princpio de reciprocidade quando discutiu a teoria educativa de piaget:[ele] faz da noo de reciprocidade um privilgio do indivduo sado da infncia ou da sociedade j civilizada. Mas os fijianos, australianos [...] das grandes civilizaes neolticas j possuam a noo de reciprocidade; no entanto a reciprocidade no quer dizer sempre igualdade. Da gerao 1 gerao 2, como da gerao 2 3, h reciprocidade, mas no igualdade; da mesma maneira entre homem e mulher (Mauss, 1968-1969 [1931a], p. 301, traduo do autor).

isso quer dizer que o objetivo tico e poltico no apenas assegurar as condies materiais de vida decentes para todos os seres humanos para elas em si , nem de garantir por si s a liberdade dos indivduos psquicos e coletivos, mas de assegurar a maximizao da sua individualizao no sentido de exprimir a sua singularidade, como garantia do seu pertencimento diferenciado a coletivos ou totalidade humana.

Consideraes finaisA intuio genial de Mauss foi a sua capacidade de vislumbrar a continuidade dessas categorias da ddiva do intercmbio e da reciprocidade nas sociedades modernas:Veremos a moral e a economia que regem essas transaes. e, como constataremos que essa moral e essa economia funcionam ainda em nossas sociedades de forma constante e, por assim dizer, subjacente, como acreditamos ter aqui encontrado uma das rochas humanas sobre as quais so construdas as nossas sociedades, podemos deduzir disso algumas concluses morais sobre alguns problemas colocados pela crise do nosso direito e da nossa economia [....] (Idem, p. 188).

Como reconhece Laval, podemos considerar que a transmisso cultural estruturada segundo o princpio de reciprocidade indireta do qual Mauss foi o grande descobridor (2006, p. 109). Mas, de fato, j na concluso do Ensaio..., o autor explica essa moral da reciprocidade como matriz da humanidade:Convm que o cidado no seja nem demasiado bom e subjetivo demais, nem demasiado insensvel e realista demais. preciso que ele tenha um senso agudo de si mesmo, dos outros e da realidade social (e haver, nesses fatos de moral uma outra realidade?). ele deve agir levando em conta a si, os subgrupos e a sociedade. essa moral eterna; comum s sociedades mais evoludas, s do futuro prximo, e s sociedades menos educadas que possamos imaginar! tocamos a pedra fundamental. nem mesmo falamos mais em termos de direito, falamos de homens e de grupos de homens, porque so eles, a sociedade, so os

Mauss via, tambm, na antiguidade e na universalidade de uma pluralidade de formas de mercados a estrutura da reciprocidade generalizada, antecipando as propostas mais recentes da economia solidria:nesses fenmenos sociais totais [...] exprimemse de uma s vez as mais diversas instituies: religiosas, jurdicas e morais, polticas e familiares [...] e econmicas estas supondo formas especficas da produo e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuio [...] (Idem, p. 187).

O autor j reconhecia os valores e a dialtica da ddiva, subjacente estrutura econmica de redistribuio (ou de compartilhamento), das polticas de seguro social hoje to ameaadas:toda a nossa legislao de previdncia social [...]

MARCeL MAUSS: DA DDiVA qUeStO DA ReCipROCiDADeinspira-se no seguinte princpio: o trabalhador deu sua vida e o seu trabalho coletividade de um lado, a seus patres, de outro e, se ele deve colaborar na obra de previdncia, os que se beneficiaram de seus servios no esto quites em relao a ele com o pagamento do salrio. O prprio estado, que representa a comunidade, devendolhe, com a contribuio dos patres, uma certa seguridade em vida, contra o desemprego, a doena, a velhice e a morte (Idem, p. 296). 2

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A troca, no sentido antropolgico geral, definida como um termo aplicado a todo movimento de inteno recproca entre duas partes (Encyclopedia universalis, 1984, p. 897). na economia, a troca corresponde a diferentes modos de transferncia de bens e de servios realizados mediante contrapartida ou equivalncia entre uns e outros (Idem, p. 897). na antropologia, a reciprocidade foi muitas vezes limitada ao sistema ddiva/contraddiva. Depois da contribuio de Mauss, ela foi associada ao conjunto de relaes dar, receber e retribuir, que corresponde reciprocidade das ddivas (ou reciprocidade positiva). De fato, o princpio de reciprocidade mais global e contempla tambm a reciprocidade negativa (a de vingana) e a reciprocidade simtrica. neste sentido mais geral, tal conceito pode ser definido como uma relao mtua reversvel entre dois sujeitos. no conjunto dos textos do Ensaio sobre a ddiva, o termo reciprocidade aparece uma nica vez, o adjetivo recproco, quatro vezes, e a palavra troca (intercmbio), mais de noventa vezes. De fato, Mauss designa por troca fatos bem diversos (desde a compensao material ate no sentido amplo de comunicao: o intercmbio tece o lao social, est na base de todas as sociedades...), mas sem nunca definir esse conceito. Os indgenas seriam os inventores da reciprocidade, como reconhece Lvi-Strauss na introduo Sociologia e antropologia (2003). essa interpretao foi criticada por Lvi-Strauss (1997 [1950]). Segundo ele, os Maori, no sabendo reconhecer a troca como motor oculto da reciprocidade das ddivas, invocam um deus ex machina, o mana. O terceiro includo seria o que , por si s, contraditrio da filosofia de Stphane Lupasco (1987 [1951]). A reciprocidade negativa, de acordo a temple e Chabal (1995, pp. 81ss).

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temple e Chabal (1995) lembram na introduo do seu livro que uma objeo tese de Mauss tambm poderia residir no fato de que, se as sociedades fundadas sobre a troca mercantil emergiram historicamente das sociedades organizadas pela reciprocidade, isto no significa necessariamente que a troca provenha da ddiva. troca e ddiva podem ter coexistido e ter se afrontado desde as origens, e a troca triunfou, por exemplo, na sociedade ocidental. precisamente, nas concluses do Ensaio..., Mauss escreve a propsito da sociedade moderna:Uma parte considervel de nossa moral e de nossa prpria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que ddiva, obrigao e liberdade se misturam. Felizmente, nem tudo ainda classificado exclusivamente em termos de compra e de venda. As coisas possuem ainda um valor sentimental alm de seu valor venal, se que h valores que sejam apenas desse gnero (Idem, p. 294).

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Uma releitura do Ensaio sobre a ddiva, como do conjunto da obra de Mauss, ou por que no dizer de qualquer outro autor, deve, por suposto, ser situada no seu tempo. Assim, considero uma contribuio primordial de Mauss no apenas a qualificao da ddiva como forma de relao social e de transao econmica, mas, sobretudo, a universalidade da trplice obrigao dar, receber e retribuir que permite hoje entender o princpio de reciprocidade como essa rocha, matriz das relaes e das civilizaes humanas.

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Notas1 Refiro-me aos trabalhos recentes de Caill (1998), Sigaud (1999), Lanna (2000), p. H. Martins (2001, 2002) e L. R. C. Oliveira (2004).

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ReViStA BRASiLeiRA De CinCiAS SOCiAiS - VOL. 23 n. 66mArCEL mAuSS: From THE GiFT To THE iSSuE oF rECiProCiTY Eric Sabourin Keywords: gift; exchange; Reciprocity; Marcel Mauss. Why from the gift to reciprocity? Because, precisely, along the Essay on the gift, Marcel Mauss describes relations and reciprocity provisions. in order to explain the human origins of exchanging, the author uncovers fundamental principles of the organization and economic and social logics in societies of reciprocity. Both the gift and the counter-gift belong to a social and economical dialectics polarized by prestige and honor. Such polarity, alone, not only forbids the simplification of the system gift/counter-gift to an exchange, but also the explanation of the principle of the gift redoubling on the interest of the first donor. Recognition renders prestige and political authority. However, in order to give, it is necessary to produce: such production is subordinated to the donation, which generates an economy with principles anatropous to those of the exchange-based occidental economy. mArCEL mAuSS : Du DoN LA QuESTioN DE LA rCiProCiT Eric Sabourin mots-cls: Don; change; Rciprocit; Marcel Mauss. pourquoi le don de la rciprocit? Car, spcifiquement, au long de lEssai sur le don, Marcel Mauss dcrit les liens et les prestations de rciprocit. Cherchant expliquer les origines humaines de lchange, lauteur dcouvre des principes fondamentaux de lorganisation et de la logique conomique et sociale des socits de rciprocit. Le don et le contre-don appartiennent une dialectique sociale et conomique polarise par le prestige et par lhonneur. Cette polarit interdit, elle seule, non seulement de rduire le systme don/contre-don un change, mais interdit aussi dexpliquer le principe de redoublement du don cause de lintrt du premier donneur. La reconnaissance se traduit en prestige et en autorit politique. Mais, pour pouvoir donner, il faut produire: la production est subordonne la donation, ce qui gre une conomie de principes inverses ceux de lconomie dchange occidentale.

mArCEL mAuSS: DA DDiVA QuESTo DA rECiProCiDADE Eric Sabourin Palavras chave: Ddiva; troca; Reciprocidade; Marcel Mauss. por que da ddiva reciprocidade? porque, precisamente, ao longo do Ensaio sobre a ddiva, Marcel Mauss descreve relaes e prestaes de reciprocidade. procurando explicar as origens humanas da troca, o autor descobre princpios fundamentais da organizao e da lgica econmica e social das sociedades de reciprocidade. A ddiva e a contraddiva pertencem a uma dialtica social e econmica polarizada pelo prestgio e pela honra. essa polaridade, por si s, probe no s reduzir o sistema ddiva/contraddiva a uma troca (intercmbio), mas tambm probe explicar o princpio de redobramento da ddiva pelo interesse do primeiro doador. O reconhecimento traduz-se em prestgio e em autoridade poltica. Mas, para poder dar, preciso produzir: a produo est subordinada doao, o que gera uma economia com princpios inversos queles da economia de troca ocidental.