marcel martin e a linguagem cinematográfica

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Marcel Martin e a Linguagem Cinematográfica O Encouraçado Potemkim, Serguei M. Eisenstein, 1925 No mercado editorial brasileiro existem vários livros, livretos e cartilhas de introdução à estética do cinema. No entanto, enquanto uns são por demais simplificados – como Estética de Cinema, de Gerald Breton –, outros são muito complicados – caso de A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Algumas obras são mais equilibradas, mas, mesmo assim, eu não as recomendaria para uma exata primeira aproximação ao universo da sétima arte: O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência, de Ismail Xavier, é um bom exemplo de obra acadêmica acessível, mas ainda assim acadêmica. A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin, é a melhor obra de introdução ao cinema que eu já pude encontrar. É a mais completa no que traz e explica de modo não esquemático, mas crítico e sobretudo apaixonadotodos os elementos da gramática do filme. Marcel Martin não possui aquela sanha “cientificizante” dos semióticos fílmicos, como os do grupo de Jacques Aumont; a sua principal obra não é uma dissecação

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Observações sobre a Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin

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Marcel Martin e a Linguagem CinematogrficaO Encouraado Potemkim, Serguei M. Eisenstein, 1925No mercado editorial brasileiro existem vrios livros, livretos e cartilhas de introduo esttica do cinema. No entanto, enquanto uns so por demais simplificados comoEsttica de Cinema, de Gerald Breton , outros so muito complicados caso deA Esttica do Filme, organizado por Jacques Aumont. Algumas obras so mais equilibradas, mas, mesmo assim, eu no as recomendaria para uma exata primeira aproximao ao universo da stima arte:O Discurso Cinematogrfico: a Opacidade e a Transparncia, de Ismail Xavier, um bom exemplo de obra acadmica acessvel, mas ainda assim acadmica.

A Linguagem Cinematogrfica, de Marcel Martin, a melhor obra de introduo ao cinema que eu j pude encontrar. a mais completa no que traz e explica de modo no esquemtico, mas crtico e sobretudoapaixonadotodos os elementos da gramtica do filme. Marcel Martin no possui aquela sanha cientificizante dos semiticos flmicos, como os do grupo de Jacques Aumont; a sua principal obra no uma dissecao rida e esterilizante da arte cinematogrfica, ela carregada de um interesse vivo que desperta em quem l uma paixo entusiasmada pelo universo do cinema e uma ansiedade por buscar e conhecer os grandes filmes clssicos que Martin sempre usa como exemplos de toda e qualquer explicao que queira dar.

Aqui vai um ndice dos captulos de A Linguagem Cinematogrfica, que as edies mais antigas no trazem:

IntroduoI Os caracteres gerais da imagemII O papel criador da cmeraIII A iluminaoIV Os costumes (figurino) e osdcorsV As ElipsesVI As transiesVII Metforas e smbolosVIII Os fenmenos sonorosIX A montagemX A profundidade de campoXI Os dilogosXII Processos secundrios de narraoXIII O tempoXIV O espaoConcluso

Repito: a dissertao de Marcel Martin no to esquemtica, resumida e ingnua quanto a enumerao acima pode sugerir. O autor discute pormenorizadamente os temas e tcnicas que prope sempre exemplificando com cenas muito bem descritas de grandes filmes; apresenta os mais variados elementos da estilstica do cinema sob os seus vrios aspectos, lembrando-se sempre dos diversos pontos de vista estticos e tericos que h sobre eles: a obra profusa de citaes de e comentrios sobre os diferentes tericos do filme e suas respectivas idias, estabelecendo relaes e analogias, embora perceba-se que Martin apia com especial carinho as posies de Andr Bazin e da fenomenologia cinematogrfica, em particular o seu conterrneo francs Henri Agel.

O nico ponto a lamentar que a edio original de A Linguagem Cinematogrfica seja de 1955, ou seja, o ltimo meio sculo de conquistas lingsticas do cinema fica de fora. Mas nessa defasagem reside algo de interessante e peculiar: a obra de Marcel Martin o melhor veculo de apresentao aos clssicos mais clssicos e mais absolutos da stima arte.

Aqui vai um trecho extrado daConcluso:

O cinema no se encontra mais no estgio em que a tcnica parecia uma coisa to maravilhosa e surpreendente que os diretores no podiam deixar de pr em relevo as novas aquisies: as inovaes estrepitosas foram lentamente substitudas pela sobriedade de expresso. Todavia, no obstante, em numerosos filmes os efeitos da tcnica ou da montagem procuram distrair o espectador para desviar melhor seu juzo crtico e impedi-lo de compreender a vacuidade do argumento; a admirao por estes efeitos faz tambm com que o espectador ache lentos ou aborrecidos os filmes em que a tcnica est submetida ao drama e em que a narrao manifesta sua maestria por sua clareza e adequao ao desenvolvimento psicolgico. Na realidade, o drama principal a falta total de interesse humano na maioria dos filmes e, alm disso, a necessidade vital de encontrar a adequao, j citada anteriormente, do contedo e da forma; tudo isto faz com que os realizadores sintam-se tentados a substituir as idias pela tcnica, que ento aparece vazia.

Consideremos oEncouraado Potemkimpara ilustrar este problema. Por que este filme considerado como um dos melhores do mundo, enquanto a maioria dos seus contemporneos, quaisquer que sejam suas qualidades, envelheceram mais ou menos? devido, em primeiro lugar, a que seu contedo humano perfeitamente vlido hoje em dia, porm especialmente ao estilo de narrao empregado por Eisenstein. Este estilo caracteriza-se por uma tcnica magistral, porm notavelmente assimilada e dominada. Sua clareza, sua flexibilidade, sua simplicidade, perfeitamente adequadas mensagem otimista do drama, valeram ao filme seu triunfo excepcional e o prestgio inigualvel que conserva trinta anos depois (lembremos que o texto de Marcel Martin de 1955).

fato notrio que a maioria das grandes obras, de qualquer forma de arte e de qualquer tempo, sabem aliar o contedo humano perfeitamente vlido tcnica magistral. natural que os padres tcnicos e temticos e o gosto por eles podem variar bastante, mas a grande obra sempre encontra um ponto razovel de equilbrio entre a forma e o contedo. Tambm fato notvel que muitas obras de arte que pendem demais para a tcnica ou demais para o contedo fazem sucesso tremendo em suas prprias pocas, de acordo com as modas estticas ou ideolgicas. Mas o fato que mais se deve notar e que dificilmente se nota que tais obras no costumam sobreviver ao seu prprio espetculo: elas passam juntamente com os modismos aos quais tanto se apegam.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, conforme dizia Cames. A arte que sobrevive a tais mudanas aquela arte quetranscende, a arte que empreende um mergulho profundo e equilibrado rumo aoUniversal. O Encouraado Potemkim uma obra-prima porque seu contedo vai muito alm da propaganda ideolgica de um regime poltico empreendida por um Estado que j no existe mais; o filme tambm vai alm dos cacoetes estilsticos de uma determinada escola cinematogrfica (por mais que gostemos pessoalmente de tais cacoetes). Para melhor apreciarmos Potemkim, devemos abord-lo com a inteligncia e a sensibilidade desarmadas: s assim ser possvel que o filme nos preencha com a sua grandezahumana; e assim tambm melhor entenderemos a sua esttica.

Infelizmente, tamanho desarme no muito bem visto pelas inteligncias contemporneas. Palavras como Universal, Transcendncia e Arte (com A maisculo) provocam comiches que irritam muitas pessoas esclarecidas de nosso tempo. uma pena. Mas no d pra dizer nada. S o futuro poder falar melhor sobre a nossa era e sobre a quantidade e qualidade de obras-primas artsticas que ela produzir. Por enquanto, leiamos Marcel Martin.