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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Departamento de Língua e Literatura Curso de Letras - Licenciatura em Língua Portuguesa
Marcel Franco da Silva
O Precipício:
um tecido de muitas vozes
Belém 2010
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Marcel Franco da Silva
O Precipício: um tecido de muitas vozes
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade do Estado do Pará como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Língua Portuguesa, orientado pela Prof.ª MS. Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos.
Belém 2010
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Dados Internacionais de catalogação na publicação
Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA
Silva, Marcel Franco da
O precipício: um tecido de muitas vozes / Marcel Franco da Silva; Orientador,
Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos. Belém, 2010. 73 f.
Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura Plena em Letras – Língua
Portuguesa) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2010.
1. Literatura paraense 2. Análise do discurso narrativo 3. Ficção paraense 3.
Monteiro, Benedicto Wilfred I. Título.
CDD: 21 ed. 869.918115
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Marcel Franco da Silva
O Precipício: um tecido de muitas vozes
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade do Estado do Pará para a obtenção do grau de Licenciado em Língua Portuguesa, orientado pela Prof.ª MS. Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos.
Data da Defesa: 02/02/2010
Banca Examinadora ______________________________________________ - Orientadora Prof.ª MS. Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos Universidade do Estado do Pará ______________________________________________ Prof. MS. Marco Antônio da Costa Camelo Universidade do Estado do Pará ______________________________________________ Prof.ª MS. Vasti da Silva Araújo Universidade do Estado do Pará
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AGRADECIMENTOS
Manifesto minha profunda gratidão...
...ao Mestre Sérgio Sapucahy (in memoriam), pelos ensinamentos e por ter
feito de mim um homem apaixonado pelo exercício da palavra. ―Foi na visão do teu
olhar, no meu olhar, que eu enxerguei a vida‖;
...às doutoras Valéria Augusti e Socorro Simões, do curso de Mestrado em
Letras da UFPA, pelo grande conhecimento que recebi delas. Sinto-me honrado por
ter sido aluno dessas mulheres magníficas;
...à minha ―estrela do Oriente‖, Renilda Bastos, pela orientação deste trabalho
e por conduzi-lo, com muita sapiência, carinho e paciência. Sempre serei seu
discípulo na escola da vida;
...ao escritor Benedicto Monteiro (in memoriam), por ter deixado o legado de
sua literatura, ―que fala à alma da gente e atiça a curiosidade de saber mais, mais‖.
Bendito seja Benedicto!;
...a todos que contribuíram e/ou incentivaram para o desenvolvimento deste
estudo, e aos que foram supracitados, muito obrigado!
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Longe se vai Sonhando demais Mas onde se chega assim Vou descobrir O que me faz sentir Eu, caçador de mim
Luís Carlos Sá e Sérgio Magrão
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RESUMO
SILVA, Marcel Franco da. O Precipício: um tecido de muitas vozes. 2010. 73 f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Língua Portuguesa) - Universidade do Estado do Pará. Belém, 2010.
Esta monografia tem como objetivo apresentar as contribuições da polifonia do conto O Precipício, de Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008), para a análise dos discursos, ou melhor, das vozes sociais dessa narrativa, em diversas áreas do conhecimento (história, linguística, psicologia, sociologia). A pesquisa propõe um estudo das vozes dos sujeitos interativos do conto O Precipício (autor, narrador, leitor). Para tanto, lançou-se mão, principalmente, dos conceitos sobre dialogia e polifonia, vigentes na Estética da Criação Verbal, de Mikhail Bakhtin (2006). As vozes d‘O Precipício ampliaram esta pesquisa não só para a observação das estruturas da narrativa, mas também para a investigação sobre a importância da figura paterna, a presença da mitologia clássica, o hibridismo do gênero textual (primário e secundário), As Formas de Silêncio (ORLANDI, 2007), a memória coletiva do protagonista Miguel, o diálogo e as semelhanças com outras obras (neste caso, estabeleceu-se intertextualidade com A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa). Cabe salientar que todos os aspectos apresentados aqui contribuem para um estudo mais acurado sobre a narrativa. Por conseguinte, Benedicto no seu fantástico conto O Precipício reinventa a língua, assim como Guimarães Rosa, compondo o cenário de uma narrativa lírica e épica, uma lição de luta e valorização do multiculturalismo e dos saberes do caboclo amazônico.
Palavras-chave: O Precipício; dialogia; polifonia; vozes sociais; Benedicto Monteiro; Mikhail Bakhtin.
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RESUMEN
SILVA, Marcel Franco da. O Precipício: um tecido de muitas vozes. 2010. 73 f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Língua Portuguesa) - Universidade do Estado do Pará. Belém, 2010.
Esta monografía tiene por objeto presentar las contribuciones de la polifonía del cuento O Precipício, de Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008), para el análisis de los discursos, es decir, de las voces sociales de esta narrativa, en diversas áreas del conocimiento (historia, lingüística, psicología, sociología). La investigación propone un estudio de las voces de los sujetos interactivos del cuento O Precipício (autor, narrador, lector). Para esto, consignó, principalmente, de los conceptos de dialogismo y polifonía, presentes en la Estética da Criação Verbal, de Mijail Bajtín (2006). Las voces d‘O Precipício ampliado esta investigación no sólo para observar las estructuras de la narrativa, pero también para la investigación sobre la importancia de la figura del padre, la presencia de la mitología clásica, la hibridez textual del género (primario y secundario), As Formas de Silêncio (Orlandi, 2007), la memoria colectiva del protagonista, Miguel, el diálogo y las similitudes con otras obras (en este caso, se estableció la intertextualidad con A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa). Cabe señalar que todos los aspectos aquí presentados contribuyen a un estudio más detallado sobre la narrativa. Por todo, Benedicto en su fantástico cuento O Precipício reinventa la lengua, así como Guimarães Rosa, componiendo el escenario de una narración épica y lírica, una lección de lucha y valorización del multiculturalismo y de los conocimientos del hombre amazónico.
Palabras-clave: O Precipício; dialogismo; polifonia; las voces sociales; Benedicto Monteiro; Mijail Bajtín.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Benedicto Monteiro................................................................................ 17 Ilustração 2: Tirésias cego por Hera e feito vidente por Zeus (séc. XIX)................... 26 Ilustração 03: Pégaso (1821)..................................................................................... 26 Ilustração 04: Pai de Miguel....................................................................................... 33
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SUMÁRIO
ANUNCIANDO AS VOZES........................................................................................ 12
1. UMA VOZ CHAMA OUTRAS
1.1. A polifonia em O Precipício........................................................................... 14
1.2. Benedicto Monteiro e O Precipício............................................................... 17
2. AS VOZES E SEUS ECOS
2.1. O personagem-narrador................................................................................20
2.2. A recriação do mito....................................................................................... 25
2.3. O espaço e o tempo...................................................................................... 29
2.4. A valorização da figura paterna.................................................................... 33
2.5. O silêncio...................................................................................................... 37
2.6. As vozes sociais............................................................................................39
2.7. O gênero discursivo...................................................................................... 42
2.8. A linguagem.................................................................................................. 44
2.9. Culturas e saberes na Amazônia.................................................................. 46
VOZES INCONCLUSAS............................................................................................ 49
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 53
ANEXOS
O Precipício (Benedicto Monteiro)......................................................................... 59
A Terceira Margem do Rio (Guimarães Rosa)...................................................... 69
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ANUNCIANDO AS VOZES
a fala que nele fala outras vozes arrasta em alarido. (estamos todos nós cheios de vozes que o mais das vezes mal cabem em nossa voz (...) é um tumulto, um alarido: basta apurar o ouvido. (GULLAR, 2000: 453-454)
A leitura de um conto leva o leitor ao encontro e ao vivenciamento do outro (e
dos outros!), estabelecendo, assim, uma relação entre o personagem e o expectante
de uma obra. Esta relação, sobretudo, dialógica, mostra que a ficção é importante
para a vida real, ou melhor, que a ficção é o significado da realidade. A interação
entre ser fictício e leitor é uma atitude reflexiva de avaliação da nossa própria vida,
dos nossos próprios valores, pois, a partir da vida dos outros, ―avaliamos [nossa
vida] não para nós mesmos mas para os outros e através dos outros‖. (BAKHTIN,
2006: 31).
Assim, é seguro afirmar que o processo de contemplação de uma obra
literária norteia a nossa vida. Esse espelhamento, observável no conto O Precipício,
de Benedicto Monteiro, serve de fio-condutor para este trabalho de conclusão curso
intitulado O Precipício: um tecido de muitas vozes. No decorrer desta pesquisa se
verá que em O Precipício uma voz evidencia outras, fazendo com que o leitor
mergulhe profundamente no interior do enredo e participe interativamente da trama
discursiva, desse dialogismo jamais concluso. (BAKHTIN apud BRAIT, 2005).
No capítulo 1, Uma voz chama outra, faz-se uma descrição teórico-prática da
natureza polifônica d‘O Precipício, visando apontar os discursos dos sujeitos
explícitos e implicados na narrativa (autor, personagem, leitor), os possíveis diálogos
com outros textos (neste caso com A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães
Rosa) e a relação do autor com o seu tecido textual — um itinerário que parte da
biografia até a composição da obra —.
Toda voz tem ecos e estes direcionam a análise das vozes de um texto em
outros campos cognoscíveis. Diante disso, no capítulo 2, As vozes e seus ecos,
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verifica-se que os discursos de O Precipício retomam a historicidade, a memória
coletiva do protagonista Miguel, o que é importante não só para a constituição dos
outros seres fictícios do conto (como o Pai de Miguel, o cavalo Precipício), mas
também para a observância das características da estética clássica pertinentes na
obra (os mitos de Tirésias e de Pégaso, ad exemplum).
Plus ultra, nota-se que os ecos d‘O Precipício abrem diante dos olhos-leitor
espaços e tempos indivisíveis, que são compreendidos na dimensão literária,
histórica, social, cultural e, principalmente, memorial. Indubitavelmente, a voz da
memória é amplamente analisada no conto em questão, pois, por meio dela, são
feitas análises psicológicas sobre a figura do pai — presente tanto n‘O Precipício
quanto n‘A Terceira Margem do Rio —. Graças ao registro mnemônico do
protagonista Miguel, podem-se identificar As formas de silêncio (ORLANDI, 2007),
ou melhor, as categorias de silêncio fundador e de silenciamento (a retórica do
opressor e a do oprimido).
As vozes d‘O Precipício são definidas dentro de uma tríade discursiva assaz
importante para a teia dialógica (autor ↔ narrador ↔ leitor). Tal perspectiva conduz,
com demais relevância, para o enfoque bakhtiniano sobre os gêneros discursivos
(primários e secundários). Ver-se-á como se processa a hibridização dos gêneros
textuais na narrativa monteiriana em destaque.
Além disso, tange-se a questão da própria estética da composição de O
Precipício enquanto linguagem, culturas e saberes regionais, reforçando todo o
contexto sócio-cultural em que se inscreve a narrativa. Extrai-se das vozes desse
texto o compromisso do autor com os problemas sociais (littérature engagée),
retomando, assim, a ideia de que toda literatura de ficção produz sentidos para a
nossa realidade.
Espera-se, portanto, favorecer, por intermédio deste trabalho de conclusão
de curso, o autovivenciamento do leitor com fantástica saga do jovem Miguel dos
Santos Prazeres no conto O Precipício, bem como reavivar o imagético amazônico
que traduz a nossa vida e sedimenta a nossa identidade. Vamos ouvir as vozes!...
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1. UMA VOZ CHAMA OUTRA
1.1. A POLIFONIA EM O PRECIPÍCIO
Eu nunca estou livre para impor minha intenção desimpedida, mas devo sempre mediá-la através das intenções dos outros, a começar pela outridade da linguagem em que estou falando. Tenho que entrar em diálogo com outrem. Isto não significa que não posso fazer com que meu próprio ponto de vista seja entendido, mas implica simplesmente que o meu ponto de vista há de emergir somente através da interação de minhas palavras e as de um outro à medida que elas contendem umas com as outras em situações particulares. (CLARK & HOLQUIST, 1998: 264).
Para chegar à multiplicidade de vozes de um texto, é necessário ressaltar o
processo dialógico que ocorreu antes e acarretou nisso. Por definição, o dialogismo
é o princípio constitutivo da linguagem, o ―produto da interação do locutor e do
ouvinte, (...) o território comum do locutor e do interlocutor.‖ (BAKHTIN, 1981: 113).
Ou seja, a relação/interação ativa entre duas vozes (uma locutiva e outra
interlocutiva) revela outras vozes além destas. Assim, o dialogismo se deixa ver ou
entrever por meio da polifonia.
N‘O Precipício, de Benedicto Monteiro, o processo dialógico se dá quando o
locutor-narrador conclama o leitor para participar ativamente da trama discursiva,
requerendo deste uma atitude responsiva:
Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai, pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente. (MONTEIRO, 1980: 59). [grifos meus].
Sob nenhuma hipótese, a voz do narrador desse conto tende a dominar
outras vozes (monofonia), pois a intenção do autor desse texto concorre para a
interação entre narrador e leitor. Conduzido ou encurralado, o leitor de O Precipício
encontra-se invariavelmente inscrito no texto (CHARTIER, 1995: 215). Diante disso,
observa-se que,
o objeto das intenções do autor não é, de maneira alguma, esse conjunto de ideias em si como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto das intenções é precisamente a realização do tema em muitas e diferentes vozes, a multiplicidade essencial e, por assim dizer, inalienável de vozes e a sua diversidade. (BAKHTIN, 2006: 199)
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Em relação às intencionalidades do autor de O Precipício, é seguro afirmar
que a presente narrativa é um tecido de muitas e diversas vozes polêmicas e que se
caracteriza, então, como polifônica:
— Grita, Miguel! — talvez meu pai gostasse de ouvir gritar. Vaquejada sem destino — o senhor pensa — para o campo, para o gado, pra ele mesmo e para o céu. O gado ―das Ciganas‖ que era o mais certo de rodeio, me ouvia e punha logo a cara de fora. Mas eu continuava a cantar. Isto eu acho que meu pai apreciava. (MONTEIRO, 1980: 52). [grifos meus]
No fragmento acima, o sujeito falante, ou melhor, o personagem-narrador
Miguel, em seu discurso reflete várias vozes sociais (a do pai, a dele e a do leitor),
revelando, assim, que
a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. (BAKHTIN, 2006: 313).
Em cada palavra do personagem-narrador do conto O Precipício ―há vozes,
vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas,
inapreensíveis e vozes próximas que soam simultaneamente‖ (IDEM: 353):
Já não consigo lembrar das coisas que falei. Só sei que não consenti que levassem o corpo do velho pra cidade. Finquei o pé, gritei, e não levaram. Se levassem — o senhor pensa — seria numa rede pindurada numa vara. Depois aquele balanço penoso até o cemitério. As caras das pessoas saindo pelas portas; as conversas dos vizinhos nas janelas. — Coitado, morreu de impaludismo... Era por demais odioso pensar num enterro desses para o velho. (MONTEIRO, 1980: 56). [grifos meus]
É claro que a polifonia da narrativa monteiriana em destaque abre campo
para um diálogo com outros textos (intertextualidade). Desse modo, pode-se dizer
que O Precipício faz referência a outras obras literárias, como, por exemplo, ao
conto A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa:
Me alembro como se fosse hoje. Meu pai montava o Precipício e caminhava poucos metros à minha frente rumo ao Juquiri. Era um cavalo fogoso — o senhor pensa — garanhão cioso, preto, retinto, pelo lustroso, pescoço fino e pajurebas crinas que tinham a mesma dança da canarana batida pelo vento. Assim ele ia... (IDEM: 51).
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Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. (ROSA, 1998).
Nota-se que há correspondências entre os dois textos. O Precipício, assim
como A Terceira Margem do Rio, ressalta a figura paterna, por meio de uma
linguagem regionalista. Além disso, cabe salientar que, em ambos os contos, o
narrador é um descendente direto do personagem Pai: o filho.
Dizer que um texto origina-se a partir de outro, é investigar nos escritos do
autor as leituras que ele fez para compor a sua obra, porque
o acto de escrever [é] entendido como um acto de paciência em que o elaborar do texto é apenas a parte visível do processo de escrita, que começa pela leitura de outros textos, pela reflexão sobre o tema de escrita e obviamente pelo tempo necessário à criação de uma visão própria do autor sobre o assunto. (GOUVEIA, 1996).
Considerando o exposto, afirma-se que Benedicto Monteiro, antes de compor
o conto O Precipício, buscou inspiração na leitura de várias obras literárias, dentre
as quais ressalta-se A Terceira Margem do Rio. Para consolidar tal afirmação, o
próprio Benedicto revela que leu os textos de Guimarães:
Eu leio tudo, todos os bons escritores brasileiros, como, por exemplo: Machado de Assis, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Suassuna,Graça Aranha e Guimarães Rosa, os escritores modernistas, quer dizer, todos os escritores que eu acho que merecem ser lidos. Eu tenho quase todos, evidentemente que atualmente não leio tudo porque muita gente escreve. Mas, quando eu vejo que há alguma coisa que eu deva ler, eu leio. Os clássicos brasileiros li todos, tudo que se escreveu no Brasil em literatura dita clássica eu tenho tudo, toda a coleção como, por exemplo, Machado de Assis, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, etc. Eu tenho todos os livros deles, a coleção completa. Hoje em dia, não há tantos bons livros assim. (MOTEIRO apud NASCIMENTO, 2004: 114-115). [grifo meu].
As inúmeras vozes que ―falam‖ na obra revelam o autor, seu grande
conhecimento de mundo e a riqueza dos recursos da língua. Mais adiante,
encontram-se dados sobre Benedicto e sobre o seu fantástico conto O Precipício:
um convite para ver, ―ouvir e (...) entender estrelas‖. (BILAC, 2002: 25).
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1.2. BENEDICTO MONTEIRO E O PRECIPÍCIO
Ilustração 01: Benedicto Monteiro (Foto: Wanda Monteiro)
Benedicto Wilfred Monteiro nasceu na cidade de Alenquer/PA, em 1º de
março de 1924 e faleceu em Belém/PA, no dia 15 de Junho de 2008. Além de
escritor, Benedicto foi advogado, sociólogo, jornalista, professor universitário,
compositor e uma das personalidades amazônidas que mais lutou pela democracia
deste País, sendo perseguido, preso e torturado pelo regime militar de 1964.
Para reiterar a biografia do autor e para subsidiar a esta pesquisa, segue
alguns trechos do seu autorretrato:
Nasci em Alequer em 1º/03/24, Estado do Pará, Brasil. A cidade fica na beira de um igarapé afluente do Rio Amazonas, e situa-se a meio caminho entre Belém e Manaus. Está a cerca de 800 quilômetros distante das duas capitais. Fica, portanto, no coração da Amazônia, na margem esquerda do Rio-Mar. Só se pode chegar lá por navio ou avião. Passei nela, e nas várzeas do município, toda minha infância. O ambiente é o mesmo que tanto descrevo em meus romances, dos quais ela é sempre uma grande personagem. Comecei a ler e escrever no internato do Colégio Nossa Senhora de Nazaré, dos Irmãos Maristas, em Belém. Meu primeiro livro publicado é um livro de poesia — Bandeira branca —, editado no Rio de Janeiro quando era ainda capital do Brasil. Publiquei-o
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aos dezoito anos e só fui continuar a escrever literatura a partir dos quarenta anos. Todos os meus livros de ficção surgiram a partir da linguagem. Antes de 1964, estava pesquisando a linguagem da Amazônia, e estava projetando escrever uma tese de Linguística, para fazer o Mestrado na Universidade. Durante muitos anos, pesquisei e colecionei centenas de conversas no interior do Pará. Gravei dezenas de fitas e fiz centenas de fichas contendo esse material. Com o golpe de Estado, em 64, minha casa foi invadida e minha biblioteca saqueada pelos militares e pela polícia. Entre livros, documentos e escritos, os militares levaram todo o material pesquisado. Como não pude recuperar esse acervo, acabei utilizando o que me restava na memória, pois para recriar uma linguagem típica da nossa região amazônica, os meus romances, os meus contos e os seus personagens, são criados e recriados a partir dessa linguagem. Eu tinha uma relação muito intensa com a palavra... A palavra é a minha matéria-prima. (RICCIARDI: 1992: 19-20)
De acordo com autorretrato do autor, seu primeiro livro, Bandeira Branca, fora
prefaciado pelo escritor Dalcídio Jurandir e publicado em 1945, mas foi com o livro
de contos Carro dos Milagres, lançado em 1975, que Benedicto Monteiro conquistou
o prêmio da Academia Paraense de Letras. Releva-se a obra Carro dos Milagres,
mais especificamente o conto O Precipício, para observar as questões inerentes a
este estudo.
O Precipício trata, pois, do cotidiano de dois vaqueiros, que, corriqueiramente,
pastam pelos campos para ordenhar o gado. O conflito da história começa a partir a
morte do pai do personagem-narrador, Miguel dos Santos Prazeres, e a trama fica
mais tensa no momento em que Miguel ira-se contra o assassino do seu genitor, o
cavalo Precipício, com desejo de vingança.
Na ânsia de reunir o gado antes da noite, o pai de Miguel cavalga em busca
de uma vaca que se distanciava do bando e é nesse momento em que o cavalo
Precipício acelera assustadoramente em direção a vaca, derruba e arrasta o pai de
Miguel que estava amarrado com uma corda de couro num dos pés. Miguel tenta
salvar o pai, galopa para cortar a corda, mas sem sucesso. Precipício corre para
dentro da mata levando consigo o corpo morto do pai do personagem. Daí, então,
Miguel começa a tramar a morte do Precipício: açoita cavalo assassino com
chicotadas até a um campo que estava em chamas para ―fazer aquele puto daquele
cavalo assassino pedir perdão de joelhos no campo incendiado‖. (MONTEIRO,
1980: 60).
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O filósofo Benedito Nunes, ao analisar o conjunto dos sete contos do livro
Carro dos Milagres, aponta o caráter intertextual da linguagem de Benedicto
Monteiro, que mantém o relato oral dentro da narrativa escrita, que banhado
com a seiva de termos e expressões regionais, consegue preservar, em seu ritmo descontraído, a maneira vital, gratificante, do velho contador de histórias das sociedades pré-industriais, ligado à terra e não dominado pela vivência do tempo utilitário. (NUNES, 1980: 15).
Destarte, o conto O Precipício revela a memória individual do personagem,
sempre atrelada à memória coletiva, onde são conservadas as lembranças da
infância e o ponto de vista do adulto, porque no espírito da criança estavam
presentes a família, principalmente a imagem do pai, que mesmo com o termo da
vida fisiológica, ela prevalece sobre todas as outras, em evolução e mais conforme a
realidade. (HALBWACHS, 2008: 92-95):
Me alembro como se fosse hoje. Meu pai montava o Precipício e caminhava poucos metros à minha frente rumo ao Juquiri. Era um cavalo fogoso — o senhor pensa — garanhão cioso, preto, retinto, pelo lustroso, pescoço fino e pajurebas crinas que tinham a mesma dança da canarana batida pelo vento. Assim ele ia... (MONTEIRO, 1908: 51).
Benedicto transforma a oralidade em escrita para elucidar cenas e situações
típicas do universo amazônico visualizadas num ―espaço percebido pela
imaginação‖ (BACHELARD, 19: 1993), assinalando, portanto, a importância do
registro da história oral para a transformação da poética ritual em monumento
literário (CHARTIER, 2002: 20), levando em consideração que ―ninguém sonharia
em negar a importância do papel que desempenharam na história da humanidade as
tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se
mantêm, graças a elas‖ (ZUMTHOR, 1997: 10).
Inegavelmente, o conto O Precipício deriva ―da fala em que está latente a
possibilidade de proliferação ilimitada da narrativa, do personagem arquetípico,
aquele que conta histórias.‖ (VIDAL, 2008: 101). Por meio da voz do contador da
história (Miguel) percebe-se que ―as vozes ecoam e revelam seus lugares de fala.‖
(SEARA, 2006).
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2. AS VOZES E SEUS ECOS
2.1. O PERSONAGEM-NARRADOR
... o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma com na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam ... (BAKHTIN, 2006: 3).
Miguel dos Santos Prazeres é o personagem principal evidenciado na maioria
das obras de Benedicto Monteiro. O autor conseguiu em suas obras retratar o
cotidiano do caboclo amazônico e, consequentemente, autorretratar-se na figura de
Miguel, que serve de fio condutor de situações e paisagens amazônidas ao longo da
obra do escritor. Em outras palavras,
o autor se apossa da personagem, introduz-lhe no interior elementos concludentes, a relação do autor com a personagem se torna parcialmente uma relação da personagem consigo mesma. A personagem começa a definir a si mesma, o reflexo do autor se deposita na alma ou nos lábios da personagem. (IDEM: 17-18).
O personagem, autovivenciado pelo autor, foi denominado Miguel por causa
do Senhor dos Arcanjos, Santos em homenagem a São Francisco e Santo Antão, e
Prazeres, por causa do sobrenome do avô de Benedicto Monteiro. Mas o
personagem Miguel é uma figura representativa daqueles que nasceram na região
de Alenquer/PA (MEGALE, 2008). Com isso, ―o autor convida o leitor a deter o raio
de intenção na imagem‖ [da personagem], ―sem buscar correspondências exatas
com qualquer pessoa real deste mesmo nome‖, e é exatamente aí que reside ―a
consciência do caráter ficcional‖ (ROSENFELD, 2000: 20) do conto O Precipício.
A primeira referência sobre a personagem Miguel é notada em Verde
Vagomundo:
De lancha, vocês vão até certo ponto. Mas se queres conhecer todas as tuas terras, te prepara pra fazer uma longa viagem. E um caboclo como Miguel é que serve: é pau-pra-toda-obra. Não cheguei ouvir uma só palavra de Miguel. Sua rústica figura firmou-se para mim na cara lavrada de quem espreita alguma coisa indefinida no escuro. Seu porte infundiu-me logo profunda confiança. Tomei a sua reserva como o silêncio costumeiro do caboclo que não fala. Ao retirar-se, ele apenas apertou a minha mão e disse: ―seu Major, e fez um gesto que era tudo, menos reverência. (MONTEIRO, 1991:38).
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Nas obras de Benedicto, como o Verde Vagomundo, Miguel aparece com um
perfil adulto constituído, como um ―homem-rio‖. Mas como observar a gênese do
personagem e os motivos que o fez um ―homem-rio‖? Foi graças a edição de O
Precipício que se teve acesso as origens do personagem que, diferentemente das
outras publicações de Benedicto, aparece com o pai, figura importante e
determinante para o destino do personagem-narrador. Hipoteticamente, verifica-se
no conto a figura de um jovem buscando a maturação e a formação individual a
partir das ações e determinações do seu genitor:
— Grita, Miguel! — talvez meu pai gostasse de ouvir gritar. Vaquejada sem destino — o senhor pensa — para o campo, para o gado, pra ele mesmo e para o céu. O gado ―das Ciganas‖ que era o mais certo de rodeio, me ouvia e punha logo a cara de fora. Mas eu continuava a cantar. Isto eu acho que meu pai apreciava. (IDEM, 1980: 52).
O protagonista de O Precipício é um vaqueiro, que em outras obras de
Benedicto, aparece como um ―homem-rio‖. Miguel reconstitui a memória do pai que
―tinha deixado de ser pescador pra ser vaqueiro‖ (IDEM: 58) e deixa evidente o
destino que irá tomar e acaba imitando o pai que, quando moço, era pescador e
―tinha consumido toda a sua mocidade no molhado‖ (IDEM: 57). Ou seja, ―o passado
longínquo pode então se tornar a promessa do futuro e, às vezes, desafio lançado à
ordem estabelecida‖ (POLLAK, 1989: 11).
A história do pai sustém o processo de enquadramento da memória de
Miguel, com pontos de referência de ordem sensorial (percepção dos hábitos e
opiniões paternas: aversão a água parada; austeridade; silenciamento). Assim,
com os instrumentos da história oral, partes das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais. (IDEM: 12)
Então, o personagem narrador, de acordo com seu registro memorial,
apresenta a história, assume a fala e pensamento dos personagens secundários,
além de traçar os estereótipos deles: o pai era um homem velho, ex-pescador,
conservador, autoritário, comedido em palavras; o cavalo é personificado pelo
narrador, é um animal velho, com ―maranhas de jogador‖, ―fogoso‖, ―garanhão‖,
―preto‖, ―retinto‖, ―pelo lustroso‖, ―pescoço fino‖, ―pajurebas crinas‖, (MONTEIRO,
22
1980: 51) comparado com a figura do Diabo e demonstrava ter vontade própria
muito além do seu instinto.
Ainda no que tange ao personagem-narrador e as personagens por ele
apresentadas é seguro afirmar que se trata de ―personagens esféricas‖, devido ―a
capacidade de nos surpreender de maneira convincente‖ (FORSTER apud
CANDIDO, 2000: 63). Segundo Sousa,
as personagens redondas, conhecidas como psicológicas, são consideradas complexas. São desenvolvidas em obras, com o intuito de focalizar a personagem dentro de si, naquele momento. Descreve-se o seu individual, relacionando-se ao consciente e inconsciente. (2008: 148)
Assim, observa-se a imprevisibilidade e a complexidade nas três personagens
do conto O Precipício, o que assinala a caracterização do homo fictus tipicamente
redondo: Miguel tem o processo de maturação acelerado em decorrência da morte
do seu pai, tendo, inclusive, que assumir o lugar de varão da família. A morte do
genitor causa um transtorno psíquico em Miguel, de modo que este traduz a dor da
perda no desejo de vingança do assassino de seu pai:
Minha mãe, coitada, precisava naquela hora, mais de mim do que a pátria. E isso me deu um arranco pra brigar. Brigar com a terra: mais com a terra do que com água e a mata. Precisava era dar uma lição naquele assassino de animal. Não, não haverá de ter silêncio. (MONTEIRO, 1980: 59).
Por outro lado e por meio da memória coletiva, reconstitui-se a ações do Pai
de Miguel, ou seja, verifica-se no relato memorial de Miguel, que o Pai era um
homem silencioso, ríspido, avesso a água parada, estreito no diálogo,
... ele tinha deixado de ser pescador pra ser vaqueiro, só por causa da forma de morrer. Ele possuía um verdadeiro pavor de morrer como afogado. As raras vezes que falava, era pra pedir a Deus que não deixasse ele morrer por dentro dágua. Não queria aparecer inchado, de bubuia, roído de piranha, com as entranhas devoradas pelos peixes, ao sabor da maré. (IDEM: 58)
As psicoses descritas conferem ao pai de Miguel o status de personagem
esférico. Além disso, é importante ressaltar o último elemento da tríade de
personagens redondos do conto em questão: o cavalo Precipício. Este animal,
estranhamente, muda as suas ações instintivas, é personificado e possuído pelo
Diabo:
23
O Precipício vinha correndo: meu pai teso na sela, deixava que o cavalo mordendo o freio, comesse a distância. De longe notei logo que estava zangado. — Cavalo velho estava com o Diabo. Jeito dele quando o lote fica preso. Só sossega quando chega no meio das águas. Papai precisava acabar com essa maranha do Precipício. (IDEM: 53).
Há um detalhe importante sobre essa passagem do conto O Precipício que
remete ao evento bíblico no qual Jesus manda os demônios aos porcos, cabendo,
portanto, uma possível equivalência de sentido entre os porcos no Novo Testamento
e o cavalo Precipício:
Tendo ele chegado ao outro lado, à terra dos gadarenos, saíram-lhe ao encontro dois endemoninhados, vindos dos sepulcros; tão ferozes eram que ninguém podia passar por aquele caminho. E eis que gritaram, dizendo: Que temos nós contigo, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo? Ora, a alguma distância deles, andava pastando uma grande manada de porcos. E os demônios rogavam-lhe, dizendo: Se nos expulsas, manda-nos entrar naquela manada de porcos. Disse-lhes Jesus: Ide. Então saíram, e entraram nos porcos; e eis que toda a manada se precipitou pelo despenhadeiro no mar, perecendo nas águas. Os pastores fugiram e, chegando à cidade, divulgaram todas estas coisas, e o que acontecera aos endemoninhados. (MATEUS, 8: 28-33)
Para Barthes (2001: 139), ―o sentido (...) postula um saber, um passado, uma
memória, uma ordem comparativa de fatos, de ideias, de decisões‖. Desse modo,
confirma-se a proximidade entre os conceitos dos signos apresentados (os porcos e
o cavalo Precipício), de acordo com o valor conotativo que eles apresentam nos
textos que aqui são mencionados (―endemoninhados‖ e ―estava com o Diabo‖).
Retomando sobre a figura de Miguel e a sua memória coletiva sobre as outras
personagens descritas, chega-se a um esquema gráfico de composição das ações e
caracterizações dos seres fictícios do conto O Precipício, tomando por base as
lembranças do protagonista, que, sem dúvida alguma, constitui o eixo central da
obra:
Registro mnemônico de Miguel
Constituição das personagens
Pai de Miguel
Cavalo ―Precipício‖
Miguel
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Ainda sobre Miguel, é indispensável salientar o seu papel de heroi, justiceiro,
mas não salvador:
Mas nem lhe conto: só consegui vibrar dois golpes que atingiram em cheio o animal. Houve então a tal da desgraça porfia: às vezes eu me aproximava, mas às vezes eu me distanciava muito mais. Faltava apenas cortar uma volta e talvez eu pudesse salvar a vida do meu pai. (...) Precisava era dar uma lição naquele assassino de animal. Não, não haverá de ter silêncio. (MONTEIRO, 1980: 54-59). [grifos meus]
Nota-se que o termo ―silêncio‖, em destaque acima, conota injustiça,
impunidade, de modo tal, o discurso de Miguel revela uma nova concepção de herói,
um tipo
de herói da contemporaneidade, (...) que Umberto Eco chama de ―herói justiceiro‖ — aquele disposto a restaurar ordem, a corrigir o erro que iniciou a sua jornada fazendo justiça com as próprias mãos. Esse novo herói criado pela imaginação humana caiu no gosto da sociedade de massa, tendo suas intermináveis aventuras contadas sob diferentes olhares no mundo todo. (ALVES, 2009: 1)
Em correlação a esse enfoque, O Precipício pode ser enquadrado numa das
quatro tendências de observação do romance brasileiro moderno, de acordo com o
nível crescente de tensão entre o herói justiceiro e o seu mundo, ou seja, o conto
detém características dos romances de tensão transfigurada, nos quais
o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos, as experiências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O conflito, assim ―resolvido‖, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia. (BOSI, 2006: 392).
Se o herói justiceiro, Miguel, consegue ir além do conflito por meio da
―metafísica da realidade‖, cabe, portanto, salientar o universo mitológico que pulula
no imaginário do personagem, pois é por meio da imaginação, ou melhor, da
recriação mítica, que o herói de O Precipício descreve a sua saga.
25
2.2. A RECRIAÇÃO DO MITO
Novos mitos nascem constantemente, ―influenciados‖ pelos antigos e com sua carga de originalidade. Daí a grande dificuldade em se agrupar os mitos segundo seu tipo, eles podem ser universais ou regionais, naturais ou construídos com uma proposta ideológica. As classificações mais comuns e fáceis de se constatar para os mitos contemporâneos são três: os literários, os político-heróicos e os cinematográficos. (HÖRNER, 2000).
Sabe-se que, após a conquista da Grécia em 146 a.C., os romanos
assimilaram muitos elementos culturais daquela nação, dentre os quais se enfoca,
acentuadamente, a mitologia grega. Apesar de Roma ter reelaborado os mitos
helênicos à formação de sua própria cultura, não se pode negar que nela
permaneceu a estrutura mítica do politeísmo grego.
A mitologia grega tem atribuído uma significante influência na cultura, nas artes e na literatura da civilização ocidental e ainda continua a fazer parte da herança e da linguagem do Ocidente. Poetas e artistas — como também intelectuais, estudiosos e outros envolvidos com humanas — das épocas mais remotas até as mais presentes têm se adquirido das inspirações que a mitologia da Grécia antiga possuíam como método de descoberta das inúmeras relevâncias e significados que os temas mitológicos clássicos possuem com o seu contemporâneo. (WIKIPÉDIA, 2009)
Nota-se, pois, que o mito helênico na literatura moderna apresenta
a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. (JUNG apud BRANDÃO, 1994: 37).
Então o inconsciente coletivo é o legado dos antepassados e o arquétipo, segundo
Jung, é o conteúdo do inconsciente coletivo. Assim, no mito, esses conteúdos, ou
seja, esses arquétipos,
remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas experiências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas primitivas ainda existentes. (IDEM).
Na literatura de expressão amazônica
o mito é efetivamente uma representação coletiva que chegou até nós através das várias gerações, podemos dizer que ─ no momento em que os
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Ilustração 02: Tirésias cego por Hera e feito vidente por Zeus (séc. XIX)
(Arte: Antonio Zanchi)
Ilustração 03: Pégaso (1821) (Arte: Jan Boeckhorst)
recriamos através de uma narrativa (...), ou mesmo através de outras formas de representação artística ─ estamos recriando os seus arquétipos. Ou, dito de outro modo: estamos recriando os conteúdos do inconsciente coletivo de gerações anteriores, que chegaram até nós de forma consciente no momento de tal recriação. (MIRANDA, 2008:1-2)
Diante disso, recria-se na narrativa de Benedicto Monteiro, ou melhor, no
conto O Precipício, o mito de Tirésias e de Pégaso. No inconsciente coletivo do
autor da obra aparecem estes arquétipos (o do adivinho e o do ser maravilhoso) os
quais se originaram na Antiguidade Clássica.
De acordo com Barbosa,
Tirésias, (...) é um cego cuja presença é constante em muitas obras gregas, é depositário da confiança do povo em tudo aquilo que diz. Como é privado da vista a ele é dada uma outra visão, interior, atemporal, que abrange tanto o passado quanto o futuro e, portanto, dá conta do caminho que aquele grupo irá percorrer. Nas sociedades arcaicas como a Grécia, mas também em comunidades indígenas e mesmo em comunidades rurais, é notória a presença de adivinhos, ou de pessoas dotadas de dons especiais, às quais é dada a credibilidade para narrar as histórias ou realizar eventos que marcarão a história de seu grupo social. (2008).
Assim, o personagem Miguel assimila o mito do célebre adivinho de Tebas
que foi castigado com a cegueira, por ter visto, acidentalmente, Atenas (Minerva) se
banhando na fonte Hipocrene. Depois desse evento, a deusa apaziguou-se e
concedeu a Tirésias o dom de prever acontecimentos futuros. Ou seja, nota-se em O
Precipício que ―depois da tempestade veio a bonança‖, ou melhor, depois da morte e
do desaparecimento do corpo do pai de Miguel, o jovem vaqueiro conseguiu achar,
27
tateando no escuro, os restos mortais do seu genitor. Isso foi para Miguel um raio de
luz — ―Vieram os pirilampos habitar meus pensamentos‖ —. O achamento do corpo
foi depreendido pelo órfão como um clareamento para as suas ações futuras
(vingança):
Continuei apalpando no escuro por muito tempo: em linha reta, em linha curva, em círculo, em busca alucinada. Como cego, tintiando no negro mais negro, senti alguma coisa mole embaixo dos meus pés. Tentei então reconhecer com as mãos o que pisava: afundei meus braços na lama do igapó. Mas pensei que fosse sangue. Não sei porque eu pensei que fosse sangue. A escuridão que me cercava, fechava o mundo até para os meus pensamentos. Um escuro assim no mato e dentro da gente, é pior que um rio sem margem, pior que um poço sem fundo. Faz a gente descer em negras profundidades. Uns baques surdos, no chão de barro, estremeceram o silêncio na escuridão. Foi aí que eu ouvi o relincho do Precipício no fundo daquela noite. O relinchar daquele cavalo naquela mata escura — tomara o senhor escutasse — soava como uma voz assassina de animal. Caminhei no rumo e tropecei logo na volta de uma corda. Tateando, tateando, encontrei o corpo de meu pai. Tinha esperança que ele ainda estivesse vivo. Mas as minhas mãos encontraram o sangue coalhado e a frieza de seu corpo dividido em pedaços. Mesmo no escuro baixei o ouvido no rumo do coração: acho que há muito tempo que ele devia ter estourado. Foi então que a noite ficou tão dura e tão pesada, que esperei o desabamento do mundo sobre mim. Depois esperei o sepultamento da floresta. Depois esperei uma lágrima para meus olhos. Depois esperei um eco de tudo aquilo reboando na escuridão. Vieram os pirilampos povoar meus pensamentos. Foram as primeiras brechas naquele desconforme escuro. Depois, paresque de dentro da terra, os grilos, os sapos, as corujas quebraram também o silêncio daquela morte. Só aí eu senti o vento soprar de leve esfriando o suor e o sangue da minha testa. Havia sangue coalhado em minhas mãos. Procurei mais uma vez o terçado na bainha. Tinha largado quem sabe por onde o meu 128. (MONTEIRO, 1980: 54-55). [grifos meus]
Outro aspecto mítico da narrativa é analogia do cavalo Precipício com o mito
de Pégaso. A saber, a figura de Pégaso é originária da mitologia helênica e
representa o arquétipo da imortalidade. Conforme o registro enciclopédico, o cavalo
alado
nasceu do tronco da Medusa, quando Perseu a decapitou. Domesticado por Minerva no Olimpo, foi, segundo uma das versões míticas, doado por ela a Belerofonte, a fim de que combatesse a Quimera. Conta-se, ainda, que Belerofonte, montado no Pégaso, desejou aproximar-se demais do céu. Júpiter (Zeus) atiçou o Pégaso, e este, corcoveando, jogou por terra o cavaleiro, que morreu. Está Pégaso ligado ao mito de Eos (a Aurora), pois, se em algumas versões esta deusa possui dois cavalos (Lampos e Faetonte), noutras seu cavalo é o próprio Pégaso. E é sobre este ultimo que ela é representada, com uma coroa de flores, tendo em uma das mãos um archote e, na outra, uma chuva de rosas. Pégaso convivia com as Medusas, e no Parnaso, no Hélicon, no
28
Pindo e no Piero, locais frequentados pela filhas de Júpiter e de Mnemósine, onde o cavalo alado costumava pastar. Foi Pégaso que fez nascer com um coice a fonte de Hipocrene, considerada a fonte de inspiração dos poetas. Os antigos constantemente a confundiram com a fonte de Aganipe, perto de Hélicon, na Beócia, cuja águas se atribuíam a mesma virtude. Há, na literatura clássica, numerosas alusões a essas fontes de inspiração. (BARSA, 1989: 181).
Observando as descrições mitológicas de Pégaso, percebe-se que em muitos
aspectos elas concorrem com o enredo da história. Assim com ―Belerofonte,
montado no Pégaso,‖ tinha ânsia de ir além do céu, o Pai de Miguel, com mesmo
sentimento de ambição, cavalgava em Precipício para ajuntar o gado e conduzi-lo ao
curral antes do anoitecer. Esses dois eventos têm em comum um desfecho trágico:
ambos cavaleiros são lançados por terra e morrem:
Só vi o salto que o Precipício deu atrás da desgraçada. Fiquei meio parado olhando a corrida do pai-dégua. Mas a bicha cada vez mais se distanciava. Senti de longe que meu pai não estava dominando a rédea do cavalo: ele paresque até cerrado e já se aproximava da mata do Jaburu. Larguei o bezerro e corri pra prestar um adjutório. Meu pai estava lutando mais com o Precipício que com a novilha, que queria-porque-queria escapulir. Não tive tempo nem de chegar na capoeira quando vi meu pai arrastado pelo chão. Toda a descarga de um raio percorreu meu corpo num segundo. Espanquei o meu cavalo, que correndo o mais possível, parecia amarrado no capim. Queria que o pobre corresse o impossível, contanto que eu pudesse chegar ao menos perto para socorrer. Propositadamente o sol tinha se escondido. Incendiava o âmago da mata e borrifava de sangue todo o campo-verde-meio-cinza. Cada galho ou pedaço de barro que saltava do caminho, eu tinha a impressão que era um pedaço do corpo de meu pai. (MONTEIRO, 1980: 53-54). [grifos meus]
Além disso, reparam-se, no relato de Miguel, as descrições fantásticas que
ele faz sobre a corrida do cavalo Precipício. O narrador afirma que ―o desgraçado
saltava relinchando e jogando as patas dianteiras querendo até trepar no ar‖ (IDEM)
e culmina atribuindo ao cavalo velho a característica elementar do mito de Pégaso:
Ouvi se distanciando um galope de galhos quebrados: era o Precipício. Solto no campo devia correr no rumo das suas éguas. Precipício voltava. Precipício voava. (...) Não se podia saber naquela hora porque o Precipício não parava. Meus braços e pés não paravam. As esporas na barriga já sangravam e o Precipício voava. (IDEM: 56-59). [grifos meus]
Sem dúvida, a mitologia está imbricada na tessitura do conto O Precipício,
esta, por sua vez, define e explora os fatos como um valor de equivalência
(BARTHES, 2001: 133). Ter o mesmo valor não é a mesma coisa que ser igual, logo
29
a mitologia monteiriana jamais será idêntica a da Grécia Antiga, mas algo
semelhante, inovado, com identidade própria, atemporal e representante do
inconsciente coletivo. Assim, pensar sobre equivalência mitológica é refletir nas
semelhanças, que se deu por meio de empréstimos de outras culturas. Por
conseguinte,
a assimilação mítica só se torna possível com a criação de novos mitos. É uma "invenção" invariavelmente cíclica que se deixa eternamente interpretar; com isso temos que ver o mito com um olho na sociedade que o produziu e outro olho nos demais mitos que permeiam o contexto social, porque é dessa ambigüidade que ele se nutre. (QUEIROZ, 2009).
Todavia,
o mito foi criado num tempo e espaço determinados e em condições específicas. Do mito inicial nasceram outros; e destes mais outros que foram reproduzidos, reformados, modificados, completados e alterados. Estes foram apresentados diferentes ou novos, adaptados às condições de tempo e espaço. (ZACHARAKIS, 1995: 41).
Diante disso, faz necessário compreender a dimensão espácio-temporal em que se
situa o mito, as personagens e o conflito de O Precipício. No sub-capítulo a seguir
observa-se, particularmente, dois elementos dessa narrativa coligados um ao outro:
espaço e tempo.
2.3. O ESPAÇO E O TEMPO
Segundo Reis (2003: 343), a narrativa se estabelece a partir de um ―conjunto
de textos literários‖. Entretanto, para analisar essa coletânea, é preciso depreender
os elementos, ou melhor, as categorias que estruturam o texto narrativo, como
personagem, espaço, ação, tempo, perspectiva narrativa, narrador. Entretanto,
observar-se-á neste capítulo duas categorias específicas relacionadas entre si
dentro da narrativa de O Precipício: o espaço e o tempo. Para isso, primeiramente, é
fundamental lançar mão das apropriações linguísticas para verificar a estrutura
dessas categorias, uma vez que, segundo Valery, ―a Literatura é, e não pode ser
outra coisa, senão uma espécie de extensão e de aplicação da Linguagem‖
(TODOROV, 2006: 53).
30
O filósofo búlgaro Todorov propôs ―uma gramática das atividades simbólicas‖
(IDEM: 136) para a descrição das narrativas, na qual se verificam, as características
espácio-temporal de uma obra — obviamente por meio dos dêiticos que ela possui
— que são observáveis no seguinte exemplo:
Se digo ‗o menino‘, essa palavra serve para descrever um objeto, enumerar-lhe as características (idade, tamanho etc.); mas ao mesmo tempo permite-me identificar uma unidade espaço-temporal, dar-lhe um nome (em particular, aqui, pelo artigo). (IDEM).
Diante do modelo acima, há de se ressaltar que o referente linguístico que
indica o personagem é um elemento capaz de indicia o espaço e tempo de uma
narrativa. Por exemplo, no conto O Precipício, cujos personagens principais são dois
vaqueiros, abstrai-se informações sobre a categoria espacial no eixo semântico
dessa palavra: vaqueiro sugere um espaço (uma propriedade rural, geralmente uma
fazenda, destinada à criação de gado):
Morrer, meu pai havia morrido conforme o seu desejo: completamente fora dágua: salvo do molhado. É verdade, que arrastado pelo campo, o corpo ficou dividido em pedaços. Porque, é como eu lhe conto; ele tinha deixado de ser pescador pra ser vaqueiro, só por causa da forma de morrer. (MONTEIRO, 1980: 58). [grifo meu]
Entretanto, o texto possui marcadores linguísticos que remetem ao espaço e
ao tempo explícitos. Quando o narrador, nas primeiras linhas, diz ―me alembro como
se fosse hoje‖ (IDEM: 51), verifica-se a presença de um tempo psicológico, remoto
da personagem, que revisita suas reminiscências, para ―recordar sua existência
anterior‖ (PLATÃO, 2000: 84) e relatar um fato que marcou a sua vida: a morte do
pai:
Tateando, tateando, encontrei o corpo de meu pai. Tinha esperança que ele ainda estivesse vivo. Mas as minhas mãos encontraram o sangue coalhado e a frieza de seu corpo dividido em pedaços. Mesmo no escuro baixei o ouvido no rumo do coração: acho que há muito tempo que ele devia ter estourado. Foi então que a noite ficou tão dura e tão pesada, que esperei o desabamento do mundo sobre mim. Depois esperei o sepultamento da floresta. Depois esperei uma lágrima para meus olhos. Depois esperei um eco de tudo aquilo reboando na escuridão. (MONTEIRO, 1980: 55).
O personagem evoca o tempo-espaço de sua infância, com vistas, é claro, à
exaltação da figura paterna:
31
Quando eu só podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos pensamentos, havia só a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando bruscamente a entrada dum igapó. (MONTEIRO, 1980: 51).
Os campos de ―Juquiri‖, ―Jaburu‖ (= ―jaburuzinho‖) e ―Catauri‖, indiciam a
localização espacial da trama de O Precipício, muito embora, sabe-se que para a
deslocação das personagens demanda uma certa circunstância temporal. Assim,
percebe-se que a saga de Miguel dos Santos Prazeres se dá num período
cronológico de dois dias consecutivos — provavelmente no tempo de estiagem
amazônica (verão):
Tomara que o senhor visse a tarde de verão! (...) A tarde nessa hora, já tinha uma revolta triste que se entranhava nas cores do entardecer. (...) Eu precisava reunir o gado antes do anoitecer. (...) Propositadamente o sol tinha se escondido. (...) Por cima de nós, a negra noite da mata feita só de galhos. (...). (IIDEM: 51-54)
Após observar o primeiro dia do enredo, o dia da morte do Pai de Miguel, ver-
se-á no segundo, a cena do velório, da última vaquejada e as ações de vingança do
jovem contra o cavalo Precipício, que se estende da tarde até a noite:
Naquela tarde, diz‘que era apenas um passeio de despedida... última olhadela no campo, derradeira carreira no gado e última vaquejada. (...) Quando dei fé, meu pensamento não andava: tinha parado na palavra resistir. Aí eu vi que a noite era negra mesmo cada vez mais. A lamparina da cozinha estava acesa. E tinha uma vela alumiando o corpo e o quadro de São Sebastião. Dei um salto do tronco do apuizeiro: o curral do gado estava aberto. (...) Era noite e eu corria. (IDEM: 58-60).
Para Taufer (2008: 12), ―na narrativa, o indivíduo delimita um espaço local e
temporal habitável para si e para sua comunidade‖. Essas delimitações são
reveladas ao leitor pelos marcadores espaço-temporal pertinentes numa narrativa,
como se vê em O Precipício. Assim, então, compreender-se-á a narrativa se se
souber que a personagem é um nome e a ação, um verbo, mas compreender-se-á
melhor o nome e o verbo pensando no papel que eles representam na narrativa.
(TODOROV, 2006: 146).
Segundo Viana (2009: 64), ―o mito se faz presente no tempo contemporâneo
contribuindo para a percepção do espaço e do tempo, do self humano, pois o âmago
das pessoas é construído com aspectos mitológicos dinâmicos‖. Assim, é justo
registrar a presença de um tempo e espaço mítico no conto ―ilustrado na viagem
32
épica que Miguel faz‖ pela ―floresta amazônica, (...) para contar as proezas que
alimentam sua saga viril‖ (PEREIRA, 2001: 3) de vingar o assassino de seu Pai.
―Nesse universo, a memória é construída dentro de um processo de recuperação da
cultura (...), povoada de traços míticos e uma alusão profunda à paisagem e à
história.‖ (IDEM).
A linguagem monteiriana deve ser compreendida na sua dimensão literária,
(TODOROV, 2006: 146) histórica, social e cultural, porque, por meio desse processo
interativo de análise das expressões linguísticas, torna-se possível à visualização do
espaço e do tempo da narrativa literária escrita, ainda que o narrador e o leitor-
implicado estejam distantes entre si. (NUNES, 1988: 14).
O espaço do conto O Precipício é, sem dúvida alguma,
percebido pela imaginação [e] não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e á reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. No reino das imagens, o jogo entre o exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado. (BACHELARD, 1993: 19).
Trata-se, pois, de um espaço vivenciado, experimentado, muito além dos limites da
realidade, que ―só habita com intensidade aquele que soube se encolher‖ (IDEM:
21). Segundo Bachelard, ―no teatro do passado que é a memória, o cenário mantém
os personagens em seu papel dominante‖, assim, então ocorre no conto de
Benedicto, de tal maneira que, ―o espaço retém o tempo comprimido‖. (IDEM: 28):
Campo varja, no verão, só tem mesmo uma sendinha estreita deixada pelos próprios animais. O resto é capim alto, capim fechado, canarana braba e puro murizal. Assim mesmo havia pedaços que até a sendinha desaparecia de vez: ficava só mesmo o espaço entre nós. Nessas horas o silêncio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. (MONTEIRO, 1980: 51).
N‘O Precipício ―o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a memória‖
(IDEM). Pensar na dimensão espacial desta narrativa é distanciar-se de uma
―história para uso externo, para ser contada aos outros (...) para o conhecimento da
intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade‖. (BACHELARD, 1993:
29). Destarte, a espacialidade do conto assegura o processo dialógico entre leitor e
obra, de modo que o leitor se insere no contexto fictício e passa a vivenciá-lo. Com
isso, a imaginação do leitor aumenta os valores da realidade dele (IDEM: 23):
33
Geralmente a única palavra que meu pai me dirigia era uma ordem: grita, Miguel! Aí então, meu pensamento voava. Punha o dedo no ouvido e começava a vaquejada. Conto misturado: grito-meio-toada, querendo por-força ser canção. Eu sabia que o gado todo escutava dentro da mata o som da minha voz. Tomara que o senhor visse a tarde de verão! (MONTEIRO, 1980: 51-52). [grifo meu].
Outra tangente, verificável no texto monteiriano, é a presença do espaço da
solidão construído pela memória de Miguel, a qual retoma as lembranças do Pai, do
―ser que domina o recanto de suas lembranças mais valorizadas‖. Esse espaço da
solidão traduz-se em ―espaço reconfortante‖, porque ―a lembrança das solidões
estreitas, simples, compridas, são para nós experiências do espaço reconfortante,
de um espaço que não deseja estender-se, mas que gostaria, sobretudo, de ser
possuído mais uma vez.‖ (BACHELARD, 1993: 29-33).
A compreensão do espaço memorial de Miguel, dominado pela presença do
seu Pai, revela, certamente, a importância da figura paterna para a constituição das
ações e determinações do jovem vaqueiro.
2.4. A VALORIZAÇÃO DA FIGURA PATERNA
Ilustração 04: Pai de Miguel (Arte: Juarez Odilon)
34
(...) é impossível descrever o homem sem tanger aspectos relativos à virilidade, nem falar do pai sem tocar na questão da paternidade, por serem temas que ajudam a compor tanto a imagem de pai, como o perfil do novo
homem, ou da nova maneira de percebê-lo. (GOMES & RESENDE, 2004:
121).
É notória a valorização, a admiração, o respeito e a contemplação da figura
paterna, como um exemplo a ser imitado, nos contos O Precipício e A Terceira
Margem do Rio:
(...) meu pai era quase inimigo de falar. Às vezes, levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrás. Eu achava que não havia melhor momento pra nossa conversa. Mas só pensava: falar, quem disse? Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava no caminho, toda a minha força de pensamento. Aí o silêncio criava aqueles tantos mundos entre dois homens de parelhas juntas. (MONTEIRO, 1980: 51).
―Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. (ROSA, 1998).
No início das obras expostas os autores descrevem a personalidade do pai,
que se pode identificar como significante, possuidor de características que vão se
definir como as funções acumuladas da figura do pai simbólico e que, certamente,
influenciou no comportamento de Miguel dos Santos Prazeres e do personagem-
narrador da 3ª Margem do Rio.
Tanto n‘O Precipício quanto n‘A Terceira Margem do Rio, o pai apresenta
aspectos da natureza do tabu que, segundo Freud,
é uma proibição primeva forçamente imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato da violação de um tabu poder ser expiada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha na base da obediência do tabu. (1974: 55).
De fato, o tabu tem um sentido muito amplo, entretanto é devido concebê-lo
como uma coisa proibida para observar como ele se processa no conto de
Benedicto e de Guimarães.
35
Nos contos O Precipício e A Terceira Margem do Rio o tabu é o silenciamento
imposto pelo Pai dos personagens. Miguel e o personagem-narrador d‘A Terceira
Margem do Rio tinham o ―desejo de violar‖ esse interdito, mas não o faziam: ―Mas só
pensava: falar, quem disse?‖ (MONTEIRO, 1980: 51); ―Fiz que vim mas ainda virei,
na grota do mato, para saber‖ (ROSA, 1998). Neste último exemplo, a vontade de
desobedecer ao tabu está implicada no termo ―saber‖. Assim, o silêncio paterno
proporcionava aos protagonistas uma mundividência, uma maturação, uma
determinação comportamental e cultural. Observar as formas de silêncio do pai n‘O
Precipício e n‘A Terceira Margem do Rio é, sem dúvida, acumular experiências para
a constituição do indivíduo social.
A figura paterna nas obras em questão tem um valor mítico para o filho-
personagem e que permite a entrada deste sujeito no mundo simbólico. ―Por ser
simbólica, é possível operar a função comum uma metáfora‖ (RAMIREZ, 2004: 89).
N‘O Precipício e n‘A Terceira Margem do Rio verifica-se a metáfora paterna, que
(...) por intermédio da significação da ideia de pai, realidade sagrada em si
mesma, espiritual, cuja função, presença e dominância não pode ser explicada pela simples realidade do vivido, a não ser pela via mítica, do a-histórico, da inscrição do homem na origem da sua história. Nessa medida, a teoria psicanalítica utiliza a perspectiva do mito para dar conta do substrato psicológico comum a todos os homens (...). Utilizar o mito como metáfora incide na sua estrutura como algo que modifica seu sentido — mesmo que seja interpretado, permanece no tempo (...). (IDEM: 90).
Zilles, citando Malinowski, afirma que
o mito cumpre uma função nas sociedades humanas, também nas consideradas progressistas. Nessas o mito pode ser constituído, não somente por narrativas fabulosas, históricas ou pseudo-históricas, mas em torno de figuras humanas "divinizadas" (o herói, o chefe, o ator, o esportista), ou por conceitos e noções abstratas (a nação, a pátria, a raça, a liberdade, o proletariado). (2009)
Destarte, o mito metafórico constituído nos contos é o do pai glorificado, de
um deus, de um ser sagrado, que rege a vida do personagem-narrador. Para que
isso fosse estabelecido, o pai de Miguel e do personagem d‘A Terceira Margem do
Rio teve que vir a falecer, uma vez que a morte representa a elevação do pai à
condição de um deus (FREUD, 1974: 177):
Morrer, meu pai havia morrido conforme o seu desejo: completamente fora dágua: salvo do molhado. É verdade, que arrastado pelo campo, o corpo
36
ficou dividido em pedaços. Porque, é como eu lhe conto; ele tinha deixado de ser pescador pra ser vaqueiro, só por causa da forma de morrer. Ele possuía um verdadeiro pavor de morrer como afogado. As raras vezes que falava, era pra pedir a Deus que não deixasse ele morrer por dentro dágua. Não queria aparecer inchado, de bubuia, roído de piranha, com as entranhas devoradas pelos peixes, ao sabor da maré. (MONTEIRO, 1980, 58).
Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos. (ROSA, 1998).
Depois da morte, ―do enterro, depois do monumento tumular vem a memória.
(...) e aí começa a construção estetizante de sua personalidade, sua consolidação e
seu acabamento numa imagem esteticamente significativa.‖ (BAKHTIN, 2006: 98). É
extremamente importante
reiterar que aqui não se trata de presença de todo material da vida (o conjunto dos acontecimentos e do enredo de dado indivíduo). A memória sobre o outro e sua vida difere radicalmente da contemplação e da lembrança de minha própria vida: a memória vê a vida e seu conteúdo de modo diferente, e só ela é esteticamente produtiva (o elemento de conteúdo pode, evidentemente, proporcionar a observação e a lembrança de minha própria vida mas não o ativismo que lhe dá forma e acabamento). A memória da vida finda do outro (também é possível a antecipação do fim) possui a chave de ouro do acabamento estético do indivíduo. (IDEM)
Então, é imprescindível dizer que o mito do pai (divinização) está
fundamentado na memória dos personagens-narradores dos contos analisados
nesta pesquisa, que a ela dá conta do acabamento axiológico do ―novo homem‖
(aquele que assume o posto simbólico de pai, após a morte deste) e garante ―a
persistência de uma saudade não apaziguada do pai‖ (FREUD, 1974: 178).
Entretanto, é justo e necessário retomar e aprofundar a questão do
silenciamento imposto pelo Pai de Miguel, exatamente porque o conto O Precipício
dá um grande relevo ao silêncio e, por isso, é importante abalançar-se sobre ―o não-
dito visto do interior da linguagem‖ que ―tem significância própria‖ (ORLANDI, 2007:
23). Veja, a seguir, as formas de silêncio e suas respectivas implicações no conto O
Precipício.
37
2.5. O SILÊNCIO
Não existiria som Se não houvesse o silêncio (...) Tudo o que cala fala Mais alto ao coração. (...) Nós somos medo e desejo, Somos feitos de silêncio e som, Tem certas coisas que eu não sei dizer. (SANTOS; MOTTA, 1984)
Certamente, não haveria O Precipício ―se não houvesse o silêncio‖, este
discurso que garante a movimentação dos sentidos. O silêncio nesse conto é
fundante, porque ―atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o
sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é mais importante nunca se
diz‖ (ORLANDI, 2007: 14) [grifo meu]:
Nessas horas o silêncio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. Às vezes, levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrás. Eu achava que não havia melhor momento pra nossa conversa. Mas só pensava: falar, quem disse? Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava no caminho, toda a minha força de pensamento. Aí o silêncio criava aqueles tantos mundos entre dois homens de parelhas juntas. Entre dois homens emparelhados no campo, sempre o silêncio aumenta por demais. O espaço vago, nem me atrevia a quebrar tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crença. Trato sem escrita e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu só podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos pensamentos, havia só a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando bruscamente a entrada dum igapó. Mas o campo sempre continuava. Depois da mata, depois duma baixa, depois dum igarapé, o campo sempre continuava. (MONTEIRO, 1980: 51).
Antes de aprofundar o silêncio em O Precipício, deve-se pontuar o ―não-dito‖
com dupla forma: há um silêncio denominado fundador, e outro, o das diversas
formas de silenciamento, que se chama de política do silêncio.
O silêncio fundador indica que ―todo processo de significação traz uma
relação necessária ao silêncio‖ (ORLANDI, 1997: 55). O silêncio da política do
silenciamento divide-se em dois: constitutivo e local. O constitutivo revela que, para
dizer, é preciso não-dizer, pois uma palavra elidi necessariamente as outras. Já o
local refere-se à censura, ao proibido de se dizer em determinada conjuntura.
(IDEM: 24).
38
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a política do silêncio, ou melhor, o
silenciamento constitutivo e o local, estão intimamente relacionados ao Pai de
Miguel, porque o constitutivo é uma característica dessa personagem e o local
institui a retórica dela:
(...) meu pai era quase inimigo do falar. (...). Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava o caminho, toda a minha força de pensamento. (...). O espaço vago, nem me atrevia a quebrar tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crença. Trato sem escrita e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu só podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. (...). Geralmente a única palavra que meu pai me dirigia era uma ordem: grita, Miguel! Aí então, meu pensamento voava. (...). Meu pai silencioso ia na frente e eu atrás. (...). Na falta de conversa eu sempre dizia coisas para o gado. Como não me atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. (...). (MONTEIRO, 1980: 51-52).
Na figura do genitor de Miguel verifica-se ―toda a questão do ‗tomar‘ a palavra,
‗tirar‘ a palavra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar‖ (IDEM: 29), o que configura a
retórica da dominação, do opressor (Pai) em contrapartida a retórica da resistência,
do oprimido (Miguel):
Foi aí que eu senti mesmo a falta do velho, mesmo com aquele silêncio que tanto me aborrecia e que eu tanto condenava; mesmo com aquela moleza de corpo fugindo da água e cambaleando e escorregando no molhado. (...) Quando a noite caiu devagarinho, e vi o corpo arrastado pelo cavalo negro, dei mais valor praquele silêncio. Suas unhas, com certeza, ficaram cravadas na terra; pedaços do corpo espalhados no chão; sangue misturado com a lama; dedos crispados arranhando a terra como gadanhos. E o silêncio. Tomara o senhor escutasse, o silêncio colossal. (...) Precisava era dar uma lição naquele assassino de animal. Não, não haverá de ter silêncio. (MONTEIRO, 1980, 58-59). [grifos meus].
O silêncio do Pai é entendido por Miguel e este consegue fazer o silêncio
daquele falar no pensamento, pois o silêncio paterno ―não é transparente e ele atua
na passagem (des-vão) entre pensamento-palavra-e-coisa‖. (IDEM: 34-37). Diante
disso, o ―discurso-real autoprotetor‖ do pai leva a refletir ―o que todo mundo sabe,
permite calar o que cada um entende sem confessar‖ (PÊCHEAUX, 1982 apud
ORLANDI, 1997: 37).
N‘O Precipício o silêncio proporciona um espaço de acontecimentos, planos,
―onde a linguagem aparece como ‗figura‘ e o silêncio como ‗fundo‘‖ (ORLANDI,
39
2007: 31). Dessa maneira, diz-se que há um espaço para o silêncio e que este é
fundante na narrativa em questão:
Uns baques surdos, no chão de barro, estremeceram o silêncio na escuridão. Foi aí que eu ouvi o relincho do Precipício no fundo daquela noite. (...) Vieram os pirilampos povoar meus pensamentos. Foram as primeiras brechas naquele desconforme escuro. Depois, paresque de dentro da terra, os grilos, os sapos, as corujas quebraram também o silêncio daquela morte. (...). (...) O campo estava escuro e silencioso. (...). O silêncio era como um breu. (...) Quando a noite caiu devagarinho, e vi o corpo arrastado pelo cavalo negro, dei mais valor praquele silêncio. (...). (MONTEIRO, 1980: 55-59).
Pensar nas formas de silêncio em O Precipício ―é colocar questões a
propósito dos limites da dialogia. Pensar o silêncio nos limites da dialogia é pensar a
relação com o Outro como uma relação contraditória‖ (ORLANDI, 2007: 48), porque
―o silêncio que permanece, mesmo para o leitor, como uma ausência que ele não
pode preencher ou como uma interrogação a qual, baseado no texto, ele não pode
tentar responder‖ (AMORIM, 2002: 14). O silêncio de O Precipício ―não fala, ele
significa‖ (ORLANDI, 2007: 42) e deve ser compreendido como um espaço
vivenciado pelo autor, personagens e leitor da obra.
O silêncio de O Precipício ―aceita a reduplicação e o deslocamento que nos
deixa ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade
significativa‖ (IDEM: 24). Assim, notar-se-á, no texto seguinte, a polifonia do discurso
de Miguel, que, de acordo com as análises anteriores, está cheia de silêncio.
2.6. AS VOZES SOCIAIS
Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai, pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente. (MONTEIRO, 1980: 59)
Segundo Soares,
Bakhtin atribuiu o nome dialogismo a toda modalidade da linguagem ao verificar as relações dialógicas das personagens no romance. Assim, norteou seus estudos para o discurso no romance devido ao caráter dialógico e polifônico do romance e por encontrar nesse gênero vozes sociais diversas. (2008: 3).
40
Desse modo, em O Precipício verificam-se vozes sociais diversas que contribuem
para constituição da obra. Observa-se nesse conto que o autor se valeu do discurso
indireto livre e estabeleceu uma tríade discursiva de suma importância para a
análise dialógica: autor narrador leitor. Em dados momentos da obra, o
narrador (Miguel) assume a consciência de seus personagens secundários (do pai e
do cavalo Precipício) e chama o leitor para dentro do texto:
Foi aí que eu ouvi o relincho do Precipício no fundo daquela noite. O relinchar daquele cavalo naquela mata escura — tomara o senhor escutasse — soava como uma voz assassina de animal. (...) Meu pai sempre dizia, quando queria se referir às coisas tristes da vida, impossíveis de resolver e difíceis de se arranjar: é mesmo que chover no molhado. (MONTEIRO, 1980: 55-57). [grifos meus]
―Tomara o senhor visse‖, ―o senhor pensa‖, são expressões frequentes no
conto, direcionadas a um leitor implicado, as quais o engajam na trama em que se
processam os fatos, conforme afirma Schinaiderman,
a voz do narrador se dirige com frequência a um interlocutor desconhecido e aparece uma expectativa tensa em relação a esse receptor enigmático. (...) Essa voz do narrador adquire múltiplos tons, passando a oscilar entre o lírico e o crítico, entre poesia e prosa, entre o sublime e o ignóbil. (2005: 18).
A consciência tanto do autor quanto das personagens são infinitas e inconclusas,
pois, segundo Bakhtin (apud BRAIT, 2005), ―a essências delas reside precisamente
nesta inconclusibilidade‖.
A bem na verdade,
o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2006: 3).
Tal tarefa, no entanto, ocorre quando o autor se projeta no outro em relação a
si mesmo e, assim, consegue,
olhar para si mesmo com os olhos do outro.(...) [pois] avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa
41
imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ele venha causar no outro. (IDEM: 13-14).
Assim, o processo dialógico e intertextual evidente no conto O Precipício
assegura a noção de que toda obra na realidade está dialogando com outras obras
— neste caso, com o conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa:
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. (ROSA, 1998). [grifo meu].
No parágrafo acima se vê o diálogo dentro diálogo, uma proposta de inserção
do leitor para dentro da trama, num ato responsivo (―não tinha afeto?‖), tal
dialogismo se atesta em O Precipício:
Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai, pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente. (MONTEIRO, 1980: 59). [grifo meu].
Este ―processo contínuo de diálogo dentro do diálogo, de uma voz que
repercute em outra voz, tal como Bakhtin nos mostrou em relação aos romances de
Dostoiévski‖ (SCHINAIDERMAN, 2005: 18), é uma forte característica de
composicional dos dois textos.
Contudo, é sumamente importante retomar a análise de Bakhtin acerca do
Diálogo em Dostoiévski, uma vez que ela é pertinente à obra monteiriana em uso.
Trata-se, pois, em verificar que nesse conto ―há certa intercessão, consonância ou
intermitência de réplicas do diálogo aberto com réplicas do diálogo interior das
personagens‖ (BAKHTIN, 2006: 199).
Abaixo, segue um fragmento do conto como uma mostra do processo
dialógico descrito:
42
Na falta de conversa eu sempre dizia coisas pra o gado. Como não me atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. — Essa malhada grande ta redonda, com-pouco vai parir. — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. — Não vai deixar o teu filho na mata, bicha danada. — Meu pai também jogava sal para os animais. — Pai, ta faltando o lote do Jaburuzinho. — Na certa a filha da Mimosa já pariu. — O senhor quer que eu vá dar uma busca? (MONTEIRO, 1980: 52).
Nesse fragmento observar-se que o discurso do Pai de Miguel está implicado
no do personagem-narrador, é uma voz que se revela dentro de outra: ―— Pai, ta
faltando o lote do Jaburuzinho. — Na certa a filha da Mimosa já pariu. — O senhor
quer que eu vá dar uma busca?‖. (IDEM)
Mas há também uma ―voz silenciosa‖, um ―diálogo interior‖, que retoma o
ponto de partida, o consciente, num movimento circunférico:
Como não me atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. — Essa malhada grande ta redonda, com-pouco vai parir. — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. (IDEM).
Pode-se afirmar que esse discurso autorreflexivo é digressivo, porque nele
ocorre ―desvio em relação ao assunto que está a ser desenvolvido: a narrativa é
interrompida e o narrador formula comentários, observações ou opiniões que se
afastam temporariamente dos eventos relatados.‖ (COSTA; BORGES; CORREIA,
2000).
Obviamente, as vozes que se entrecruzam numa narrativa evidenciam o tipo
de gênero no qual se inscreve determinada obra literária. Desse modo, no próximo
subcapítulo, enquadra-se O Precipício nos conceitos bakhtiniano sobre o gênero
discursivo.
2.7. O GÊNERO DISCURSIVO
Se com Aristóteles os gêneros textuais se distribuíam em três categorias e se depois passaram a dizer respeito a categorias literárias bastantes sólidas que foram se ampliando e subdividindo até entrarem em crise com a critica do romantismo à estética clássica, hoje a noção de gênero ampliou-se para toda a produção textual. Essa laicização progressiva da categoria levou a que se diluísse a noção de gênero a ponto de podermos indagar que categoria é essa a que chamamos de gênero textual. Mesmo assim, é inegável que a reflexão sobre gênero textual é hoje tão relevante quanto necessária, tendo em vista ser ele tão antigo como a linguagem, já que vem essencialmente envolto em linguagem. (MARCUSCHI, 2006: 23)
43
As vozes discursivas d‘O Precipício orientam para a análise dessa narrativa
sob a ótica dos gêneros discursivos. Para tanto, fundamenta-se a ideia de que os
enunciados desse conto estão inseridos em um gênero textual. Todavia, é justo e
necessário elucidar as características dos gêneros primários e secundários, para
que, a posteriori, identifique-se qual destes é pertinente na obra em questão:
Os gêneros primários são aqueles que fazem parte do contexto cotidiano da linguagem e que podem ser desenvolvidos no campo discursivo. Alguns exemplos são: bilhetes, cartas, diálogos... Os gêneros secundários são textos caracterizados pela escrita mais elaborada. São eles: o romance, o teatro, o texto jornalístico, o discurso científico e todos aqueles que não possuem traços do gênero primário (BAKHTIN, 2003 apud RODRIGUES, 2007: 145).
A definição proposta por Bakhtin (2006) não se encerra nesses dois
exemplos, ela abre campo para a ocorrência de outros tipos de gêneros. Muito
embora, cabe aqui considerar os tipos apresentados e ressaltar que ―certos
exemplos de gênero primário podem se incorporar ao gênero secundário e assim se
transformar neste‖ (BAKHTIN, 2003 apud RODRIGUES, 2007: 145).
Perante o exposto, define-se o conto O Precipício como sendo do gênero
secundário, por mais que nele se encontrem monólogos, diálogos, situações da
comunicação oral cotidiana:
Quando chegamos na malhada, quase todo o gado estava lá. Meu pai, silencioso, examinava as rezes. Precipício, irrequieto, não parava um só instante. Era até um despropósito: me dava até uma cuira ver o cavalo fogoso. Se fosse eu, já tinha dado uma sova de muxinga naquele cavalo maranhento. Na falta de conversa eu sempre dizia coisas pra o gado. Como não me atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. — Essa malhada grande ta redonda, com-pouco vai parir. — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. — Não vai deixar o teu filho na mata, bicha danada. — Meu pai também jogava sal para os animais. — Pai, ta faltando o lote do Jaburuzinho. — Na certa a filha da Mimosa já pariu. — O senhor quer que eu vá dar uma busca? (MONTEIRO, 1980: 52).
O que assegura o caráter de secundário a narrativa é que seus enunciados,
advindos da oralidade, estão formatados e desenvolvidos de forma adequada à
linguagem escrita:
[Os gêneros discursivos secundários] No processo de sua formação (...) incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se
44
formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vinculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios: por exemplo, a réplica do diálogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a sua forma e o significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram a realidade concreta apenas através do conjunto do romance, ou seja, com acontecimento artístico-literário e não da vida cotidiana. No seu conjunto o romance é um enunciado, como a réplica do dialogo cotidiano ou uma carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas), mas à diferença deles é um enunciado secundário (complexo). (BAKHTIN, 2006: 263-264).
Os enunciados de O Precipício, tão semelhantes às réplicas ―do diálogo
cotidiano‖, sem dúvida, proporcionam uma análise da linguagem, mesmo porque a
linguagem se concretiza por meio dos enunciados e interage com outras, em outros
textos, conforme veremos a seguir.
2.8. A LINGUAGEM
Um léxico, enquanto componente de um dialeto, revela o modo como uma comunidade linguística categoria o mundo, a realidade. Contem traços que caracterizam aqueles que o utilizam: econômico, social, etário, grau de escolaridade, etc. (FERREIRA, 2007: 42)
A linguagem intertextual é quem responde, até agora, pela unidade da obra
de Benedicto Monteiro. Graças a ela, o relato oral se mantém imbricado na narrativa
escrita. E como se sabe, precisamente, onde se explicita essa oralidade? Ora,
quase em todas as unidades de sentido (parágrafos) d‘O Precipício há expressões
lexicais que demonstram isso, ad exemplum:
Me alembro como se fosse hoje. Essa malhada ta redonda, com-pouco vai parir. (...). — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. (...) ele paresque até cerrado e já se aproximava da mata do Jaburu. E meu pai era apenasmente um vulto que às vezes se confundia com o cerrado mais baixo (...) seria numa rede pindurada numa vara. Meu pai imbirrava mesmo contra o molhado. Naquela tarde diz‘que era apenas um passeio de despedida (...) dei mais valor praquele silêncio. Me diga, me diga, se eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Incendiavam o campo pra achar ovos, pra pegar bandos de marrecas e às vezes só mesmo por malvadeza de incendiar. (MONTEIRO, 1980: 51-60). [grifos meus]
45
O conto apresenta uma linguagem simples, coloquial, utilizada no cotidiano do
caboclo amazônico, que não exige a observação total da gramática e que, de certa
forma, revela os traços distintivos da variedade fonético-fonológica da região norte
do Brasil (―pindurada‖; ―imbirrava‖; ―alembro‖; ―paresque‖). Entretanto, leia-se a
linguagem de O Precipício com algo que
passa do caráter normativo para o expressivo. (...) Uma linguagem, portanto, carregada de significação. Para compreendê-la intelectualmente, Roland Barthes caracteriza a linguagem poética com um desvio sistemático da norma linguística. (LOUREIRO, 2007).
A presença de uma oralidade impressa na narrativa em questão revela,
então, a linguagem poética. Entretanto, não se pode olvidar que essa poeticidade
decorre do uso de metáforas (―O Precipício era uma visão dos Diabos‖), anáforas
(―Depois da mata, depois duma baixa, depois dum igarapé, o campo sempre
continuava‖) e composições por justaposição (―grito-meio-toada‖; ―por-força‖; ―pai-
dégua‖; ―virar-mundo‖; etc.). Esses elementos
revelam o poder criativo daquele que deseja ‗ver com outros olhos‘ o código no qual relações inusitadas entre as palavras postas em jogo podem ‗produzir uma emoção que outras não produzem‘ (VALERY apud COSTA, 2008: 6).
É importante reiterar que a linguagem d‘O Precipício, indubitavelmente,
dialoga com a d‘A Terceira Margem do Rio. Tanto Benedicto quanto Guimarães
subvertem os padrões linguísticos (retratam a oralidade do caboclo, sertanejo),
revigoram e reinventam a linguagem regionalista. As composições por justaposição
e são recursos poéticos plurissignificativos frequentes na tessitura desses dois
escritores:
De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. (ROSA, 1998). [grifos meus] Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar; entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai, pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente. (MONTEIRO, 1980). [grifos meus]
46
―A literatura como arte reflete as representações da cultura de um povo. E a
língua, obviamente, é uma das formas de manifestar a cultura‖ (BRITO, 2004).
Sendo assim, reitera-se a linguagem do conto O Precipício enquanto manifestação
da cultura de um povo, ou melhor, enquanto representação da
cultura do mundo rural de predominância ribeirinha [que] constitui-se na expressão aceita como a mais representativa da cultura amazônica, seja quanto aos seus traços de originalidade, seja como produto da acumulação de experiências sociais e da criatividade dos seus habitantes. Aquela em que podem ser percebidas, mais fortemente, as raízes indígenas e caboclas tipificadores de sua originalidade, florescentes ainda em nossos dias. (LOUREIRO, 2001: 65).
2.9. CULTURAS E SABERES NA AMAZÔNIA
Viver a cultura amazônica é confrontar-se com a diversidade, com diferentes condições de vida locais, de saberes, de valores, de práticas sociais e educativas, bem como de uma variedade de sujeitos: camponeses (ribeirinhos, pescadores, índios, remanescentes de quilombos, assentados, atingidos por barragens, entre outros) e citadinos (populações urbanas e periféricas das cidades da Amazônia) de diferentes matrizes étnicas e religiosas, com diversos valores e modos de vida, em interação com a biodiversidade dos ecossistemas aquáticos e terrestres da Amazônia. (OLIVEIRA; SANTOS, 2009: 2).
No ato de contemplação do discurso narrativo de O Precipício ocorre o
vivenciamento das experiências dos personagens (BAKHTIN, 2006), ou melhor, o
vivenciamento das culturas e saberes dos outros, porque, na interação dialógica do
eu com o outro, ―avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do
outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à
nossa própria consciência‖. (IDEM: 13).
Pela memória do personagem Miguel, chega-se ao conhecimento de mundo
do caboclo amazônico. Quando se lembra do pai, o jovem vaqueiro reflete os
ensinamentos do velho: ―Meu pai só montava aquele cavalo pra evitar que ficasse
folgado demais. Sempre ele dizia: cavalo folgado, cria maranha de jogador.‖
(MONTEIRO, 1980: 51). Neste exemplo, o pai de Miguel orienta que o animal deve
ser adestrado para que ele não fique apotrado, ou seja, para que o cavalo na crie
manhas de potro, não fique arisco, desconfiado. Isso acontece quando o equino fica
muito tempo solto e sem ser encilhado. (OLIVEIRA, 2005: 29).
Ainda sobre os saberes paternos, o personagem-narrador afirma que seu pai
tinha uma tremenda aversão ao molhado, à água parada:
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Meu pai passou a vida toda reclamando só contra o molhado. Não, não era contra a água, a chuva, a correnteza, o lago, o rio e o longe mar. Não, não podia ser contra o mar que era de outras redondezas. Não senhor, era apenas contra o molhado. (...) Meu pai sempre dizia, quando queria se referir às coisas tristes da vida, impossíveis de resolver e difíceis de se arranjar: é mesmo que chover no molhado. Odiava o molhado. (...) Ele se queixava que a pescaria tinha consumido toda a sua mocidade no molhado. Por isso ele dizia: água que não corre, mata. Não gostava de água parada mesmo que fosse pendente da pétala de uma flor. Isso, porque o orvalho também molhava. Molhava o rosto, quando entrava de manhã cedo na mata; molhava as calças, no campo batendo de leve no capim. Reumatismo e impaludismo, vinham das águas que molhavam. Não senhor, não vinha das águas que corriam, nem das águas que nasciam; vinham das águas que molhavam. (MONTEIRO, 1980: 56-57). [grifos meus].
As metáforas do pai de Miguel revelam a visão negativista que o genitor tinha
sobre as ―águas que molhavam‖: ―às coisas tristes da vida, impossíveis de resolver e
difíceis de se arranjar: é mesmo que chover no molhado‖; ―água que não corre,
mata‖. Essa ojeriza a água parada é justificável por meio da própria experiência do
caboclo que apresenta os danos que ela pode causa a vida humana. Os argumentos
contrários ao ―molhado‖ do velho vaqueiro revelam os seguintes subentendidos: a
água parada torna-se criadouro de larvas de mosquitos transmissores de doenças,
como dengue, malária, febre amarela; a água parada, em condições de baixa
temperatura (como a dos igarapés, dos rios, dos climas úmidos), ―para as pessoas
com doenças reumáticas como dores na coluna, problemas como artrite, artrose,
gota, tendinites, bursites, osteoporose, fenômeno de Reynaud e fibromialgia
costumam ter as dores agravadas‖. (O SERRANO, 2008).
Os danos causados ao meio ambiente e a fauna amazônica lê-se nas
entrelinhas de O Precipício:
Alguém tinha ateado fogo na restinga do Catauari. Na certa algum vaqueiro descuidado ou algum procurador de ovos de tracajá. Incendiavam o campo pra achar ovos, pra pegar bandos de marrecas e às vezes só mesmo por malvadeza de incendiar. Com uma ponta de cigarro num capim seco e numa noite quente, o fogo se alastra. As labaredas nasciam do barro por puro encante. (MONTEIRO, 1980: 60).
Trata-se, pois, de uma prática cultural baseada em um modelo econômico
que negligencia a assistência rural e a preservação: o incêndio da floresta
amazônica e a caça ilegal de animais selvagens. Diante disso, é possível
subentender que as vozes d‘O Precipício recolocam o homem na natureza, para que
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este adote uma postura de preservação do meio ambiente em que vive. Assim como
Benchimol (1999: 450), Benedicto alerta para
as influências, pressões e constrangimentos ecológicos e ambientais que, partindo de dentro ou fora do país, podem frear ou inviabilizar o desenvolvimento, transformando a Amazônia num santuário ecológico para desfrute da vida selvagem, para vender paisagem para o ecoturismo exótico e de aventura.
Indubitavelmente, O Precipício é uma literatura comprometida (littérature
engagée) com os problemas sociais ligados à saúde e ao meio ambiente, revelando,
sobretudo, que ―a defesa de determinados valores morais, políticos e sociais nasce
de uma decisão livre do escritor‖ (SILVA, 1976: 209).
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VOZES INCONCLUSAS
Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzam os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. (NETO, 1982: 85)
O ineditismo de desenvolver este trabalho sobre o conto O Precipício, da
antologia Carro dos Milagres, de Benedicto Monteiro, é relevante para a valorização
da ―literatura de autores [(des) conhecidos] marginais‖ (ALVES, 2007: 239), para o
reconhecimento da
produção dos autores que estariam à margem do corredor oficial de divulgações de obras literárias (...), [dos] textos com um tipo de escrita que recusaria a linguagem institucionalizada ou os valores literários de uma época (...), [do] projeto intelectual do escritor [de] reler o contexto de grupos oprimidos, buscando retratá-los nos textos. (NASCIMENTO, 2006: 11).
A ―Literatura Marginal‖ surgiu no Brasil durante o período da Ditadura Militar.
Os escritores, nessa época, vivenciaram o auge da repressão do governo militar e
sofreram as duras penas do Ato Inconstitucional nº 5, instaurado pelo Presidente
Arthur da Costa e Silva (em 13/12/1968), e mantido pelos seus sucessores
Garrastazu Médici e Ernesto Geisel:
O termo ―Literatura Marginal‖ surgiu na década de 70 num cenário político bastante conturbado em nosso país. Vivíamos um período de ditadura militar e, como forma de subversão à ordem, um grupo de intelectuais escreviam poemas em folhas mimeografadas e distribuíam por lugares de convívio comuns, como bares, cinemas entre outros. Os textos produzidos nesta época eram ―marcados pela ironia, pelo uso da linguagem coloquial e do palavrão e versavam sobre sexo, tóxico e principalmente do cotidiano das classes dominantes‖. Tais escritores eram de classes média alta e estudantes universitários, sobretudo, esse movimento se concentrava basicamente na cidade do Rio de Janeiro. (OLIVEIRA; ESPINDULA; SANTANA, 2008).
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Mas o quê que essas discussões sobre ―Literatura marginal‖ e Ditadura Militar
têm a ver com esta pesquisa? Tudo, pois o livro Carro dos Milagres foi publicado em
1975, durante os ―Anos de chumbo‖, de censura à cultura escrita e, obviamente,
insere-se no contexto sócio-político da época. Tomando por base o conto O
Precipício desta antologia, Benedicto Monteiro revela a política de silenciamento
exercida pelo personagem Pai de Miguel, deixando subentendido uma analogia da
figura paterna com os presidentes ditadores. A censura política presente na narrativa
monteiriana pode ser explicitada na exímia canção de Chico Buarque e Gilberto Gil,
Cálice (1973):
Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue... Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor engolir a labuta Mesmo calada a boca resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta... Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada prá qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa... De muito gorda a porca já não anda (Cálice!) De muito usada a faca já não corta Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!) Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito resta a cuca Dos bêbados, do centro da cidade... Talvez o mundo não seja pequeno (Cálice!) Nem seja a vida em fato consumado (Cálice!) Quero inventar o meu próprio pecado (Cálice!) Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cálice!) Quero perder de vez tua cabeça (Cálice!) Minha cabeça perder teu juízo (Cálice!) Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cálice!) Me embriagar até que alguém me esqueça (Cálice!)
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Nessa música o Cristo-homem comum chama o Pai e, ao mesmo tempo, este
pede silêncio (cale-se!) e ―faz com que o silêncio fique comprometido com o sentido
da ‗ditadura‘‖ (ORLANDI, 2007: 130). Tal análise nos remete à narrativa monteiriana:
Nessas horas o silêncio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. Às vezes, levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrás. Eu achava que não havia melhor momento pra nossa conversa. Mas só pensava: falar, quem disse? Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava no caminho, toda a minha força de pensamento. Aí o silêncio criava aqueles tantos mundos entre dois homens de parelhas juntas. Entre dois homens emparelhados no campo, sempre o silêncio aumenta por demais. O espaço vago, nem me atrevia a quebrar tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crença. Trato sem escrita e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu só podia andar em garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos pensamentos, havia só a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando bruscamente a entrada dum igapó. Mas o campo sempre continuava. Depois da mata, depois duma baixa, depois dum igarapé, o campo sempre continuava. (MONTEIRO, 1980: 51).
A política do silenciamento agora assume outra dimensão, ―a historicidade
inscrita no tecido textual que pode ‗devolvê-lo‘, torná-lo apreensível, compreensível.‖
(ORLANDI, 2007: 58). Desse modo, o trabalho com o silêncio em O Precipício
implica a consideração de vozes históricas que emergem do tempo vivenciado pelo
autor da obra.
O Precipício proporciona um encontro com o personagem Miguel inscrito em
várias histórias: na sua própria história, na história do seu pai, na história do regime
militar, na história do leitor, porque este autovivencia o protagonista, porque
avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ele venha causar no outro. (BAKHTIN, 2006: 13-14).
Além disso, o conto de Benedicto permite que leitor visite a era remota do
personagem Miguel dos Santos Prazeres, o período da sua adolescência, as
lembranças do Pai e do convívio com ele. O Precipício, obra que mostra Miguel
enquanto vaqueiro e não Homem Rio (2008), é um marco inicial para a
compreensão da saga de Miguel na tetratologia amazônica (Verde Vagomundo, O
Minossauro, A Terceira Margem e Aquele Um), por exemplo.
O Precipício, além de reinventar a língua, descrever cenas da vida na
Amazônia e mostrar uma lição de luta e valorização da diversidade cultural, é um
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texto de diversas vozes que dialogam entre si e com outras, contribuindo, assim,
para a ampliação da crítica literária das obras de expressão amazônica.
53
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O PRECIPÍCIO
Benedicto Monteiro
Me alembro como se fosse hoje. Meu pai montava o Precipício e caminhava
poucos metros à minha frente rumo ao Juquiri. Era um cavalo fogoso — o senhor
pensa — garanhão cioso, preto, retinto, pelo lustroso, pescoço fino e pajurebas
crinas que tinham a mesma dança da canarana batida pelo vento. Assim ele ia...
Meu pai só montava aquele cavalo pra evitar que ficasse folgado demais.
Sempre ele dizia: cavalo folgado, cria maranha de jogador. Mas o Precipício como
pai-dégua, era só mesmo pra reproduzir. Tinha que dar conta daquele enorme lote
de éguas e poltras que ele sozinho guiava pelos campos. Campo varja, no verão, só
tem mesmo uma sendinha estreita deixada pelos próprios animais. O resto é capim
alto, capim fechado, canarana braba e puro murizal. Assim mesmo havia pedaços
que até a sendinha desaparecia de vez: ficava só mesmo o espaço entre nós.
Nessas horas o silencio alargava: meu pai era quase inimigo de falar. Às vezes,
levava horas e horas, essas caminhadas ele na frente e eu atrás. Eu achava que
não havia melhor momento pra nossa conversa. Mas só pensava: falar, quem disse?
Bastava olhar a figura esticada na sela, que o silêncio dele, atalhava no caminho,
toda a minha força de pensamento. Aí o silêncio criava aqueles tantos mundos entre
dois homens de parelhas juntas. Entre dois homens emparelhados no campo,
sempre o silêncio aumenta por demais. O espaço vago, nem me atrevia a quebrar
tamanha majestade. Isto era um trato antigo de sangue e crença. Trato sem escrita
e sem palavras vindo dos tempos de curumim. Quando eu só podia andar em
garupa de cavalo, assim mesmo, sem falar e sem chorar. Fora dos nossos
pensamentos, havia só a mata ao longe, formando a linha do horizonte ou cortando
bruscamente a entrada dum igapó. Mas o campo sempre continuava. Depois da
mata, depois duma baixa, depois dum igarapé, o campo sempre continuava.
Geralmente a única palavra que meu pai me dirigia era uma ordem: grita,
Miguel! Aí então, meu pensamento voava. Punha o dedo no ouvido e começava a
vaquejada. Conto misturado: grito-meio-toada, querendo por-força ser canção. Eu
sabia que o gado todo escutava dentro da mata o som da minha voz. Tomara que o
senhor visse a tarde de verão! Meu pai silencioso ia na frente e eu atrás. Eu cantava
mas então sem destino. O gado ouvia mas porque o vento levava a vaquejada.
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Com-pouco, ao longe, eu vi o gado sair. Os magotes tomavam o rumo do rodeio que
começava a aparecer. A tarde nessa hora, já tinha uma revolta triste que se
entranhava nas cores do entardecer. O ar também asfixiava a gente com tanta
calmaria. Só o céu com umas poucas nuvens esgarçadas, estava limpo, claro e azul.
— Grita, Miguel! — talvez meu pai gostasse de ouvir gritar. Vaquejada sem destino
— o senhor pensa — para o campo, para o gado, pra ele mesmo e para o céu. O
gado ―das Ciganas‖ que era o mais certo de rodeio, me ouvia e punha logo a cara de
fora. Mas eu continuava a cantar. Isto eu acho que meu pai apreciava.
Quando chegamos na malhada, quase todo o gado estava lá. Meu pai,
silencioso, examinava as rezes. Precipício, irrequieto, não parava um só instante.
Era até um despropósito: me dava até uma cuira ver o cavalo fogoso. Se fosse eu, já
tinha dado uma sova de muxinga naquele cavalo maranhento.
Na falta de conversa eu sempre dizia coisas pra o gado. Como não me
atrevia a quebrar o silêncio do velho, falava comigo mesmo. — Essa malhada
grande ta redonda, com-pouco vai parir. — Tirava sal da garupa do cavalo e jogava
no barro pro gado que se amontoava em torno de mim. — Não vai deixar o teu filho
na mata, bicha danada. — Meu pai também jogava sal para os animais.
— Pai, ta faltando o lote do Jaburuzinho.
— Na certa a filha da Mimosa já pariu.
— O senhor quer que eu vá dar uma busca?
Joguei o resto do sal que trazia na garupa e soltei o cavalo no rumo de
Jaburu. O sol estava quase mordendo a ponta da mata. Eu precisava reunir o gado
antes do anoitecer. Parei o galope e comecei novamente a vaquejada, esperando
que o gado botasse a cara fora do igapó. Cantei mais uma arrancada e depois meti
o cavalo na mata. Fui dar com o magote amoitado em baixo dum catauari. Quando
bisparam a minha presença, foi como se tivesse visto o Diabo: saltaram todos de
uma só vez. Só percebi o barulho dos ramos e cipós quebrados. Dei fé também que
era inútil tentar sozinho aquela empreitada. Antes que eu me virasse, ouvi ainda
longe, o resfolegar do Precipício: meu pai sabia que eu estava precisando de ajuda.
Será que o Precipício ia deixar a gente ao menos combinar as coisas? Tínhamos
que acertar tudo antes de meter o cavalo no gado. Me alembro como se fosse hoje:
era bem na frente da mata do Jaburuzinho. O campo que restava pra carreira era
todo cheio de troncos e buracos. O Precipício vinha correndo: meu pai teso na sela,
deixava que o cavalo mordendo o freio, comesse a distância. De longe notei logo
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que estava zangado. — Cavalo velho estava com o Diabo. Jeito dele quando o lote
fica preso. Só sossega quando chega no meio das águas. Papai precisava acabar
com essa maranha do Precipício. Cavalo folgado é sempre nisso que dá. Ainda gritei
pro velho:
— Castigue esse merda com a espora. Temos que tirar o gado antes da
noite.
— A novilha arisca está no meio do magote?
— Pois se é ela a testeira dos velhacos.
— Então vamos arrancar essa canalha.
Dizendo isto, meu pai correu pra cercar o lote na cabeceira do lago. Em
pouco tempo topamos as rezes escabriadas e em dois arrancos conseguimos tirar o
lote pra fora do igapó. Em campo limpo — tomara o senhor visse — ficaram
desnorteadas. A novilha com cria nova, essa fazia maior força pra voltar. Por várias
vezes ela escapava do magote e o bezerrinho novo ainda atrapalhava mais a
vaquejada.
— Pega o bezerrinho e vê se ela te acompanha.
Executei a ordem e esperei a negaça da velhaca. Mas ela estava mesmo
arisca. Não se importava nem com o filho nem com nada. Imitei a boca do bezerro
pra ver se ela parava. Mas ela, com a orelha impinada e o chifre em pé, cada vez
mais se distanciava.
Só vi o salto que o Precipício deu atrás da desgraçada. Fiquei meio parado
olhando a corrida do pai-dégua. Mas a bicha cada vez mais se distanciava. Senti de
longe que meu pai não estava dominando a rédea do cavalo: ele paresque até
cerrado e já se aproximava da mata do Jaburu. Larguei o bezerro e corri pra prestar
um adjutório. Meu pai estava lutando mais com o Precipício que com a novilha, que
queria-porque-queria escapulir.
Não tive tempo nem de chegar na capoeira quando vi meu pai arrastado pelo
chão. Toda a descarga de um raio percorreu meu corpo num segundo. Espanquei o
meu cavalo, que correndo o mais possível, parecia amarrado no capim. Queria que
o pobre corresse o impossível, contanto que eu pudesse chegar ao menos perto
para socorrer. Propositadamente o sol tinha se escondido. Incendiava o âmago da
mata e borrifava de sangue todo o campo-verde-meio-cinza. Cada galho ou pedaço
de barro que saltava do caminho, eu tinha a impressão que era um pedaço do corpo
de meu pai.
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O Precipício era uma visão dos Diabos: mais negro, mais possante, mais
suado, mais lustroso, que até o suor brilhava. Corria desembestado farejando o
vento. E meu pai era apenasmente um vulto que às vezes se confundia com o
cerrado mais baixo. Só aparecia que ainda estava vivo, quando o cavalo maldito
parava de farejar o rumo. Rumo? Que rumo? O desgraçado saltava relinchando e
jogando as patas dianteiras querendo até trepar no ar.
Em pouco tempo alcancei o Precipício. Meu pai estava preso mas ainda vivo.
Vivia com uma corda de couro entaniçada num dos pés. Me alembrei logo do meu
terçado 128 e tive que me aproximar com jeito naquela corrida louca. Queria ao
menos cortar a corda sem ferir meu pai. Mas nem lhe conto: só consegui vibrar dois
golpes que atingiram em cheio o animal. Houve então a tal da desgraçada porfia: às
vezes eu me aproximava, mas às vezes eu me distanciava muito mais. Faltava
apenas cortar uma volta e talvez pudesse salvar a vida do meu pai.
Quando dei por mim, já estava com a mata no meu rosto: Precipício tinha
entrado no igapó. Fiquei por muito tempo estirado no chão. Acho que quase morto.
Depois, pouco a pouco voltei aos meus sentidos. Já era noite. No escuro, só senti a
presença do meu cavalo. Ele estava firme do meu lado. Acho que um baque na testa
tinha me arrancado da sela. Por cima de nós, a negra noite da mata feita só de
galhos. Agarrei logo o cabresto do Castanho e fiquei tateando a redondeza. Queria
ao menos encontrar o corpo do velho. Às vezes eu me abraçava com um tajá no
escuro; às vezes metia meu braço num monte de folhas secas; me enganava com
raízes; apalpava troncos e galhos, em busca do corpo de meu pai. Os cipós que
roçavam minhas mãos, pareciam pedaços de corda, corda de couro. Não existia
mais o gado; não existiam os sapos, as cobras, os pirilampos. A noite inteira
escondia em silêncio o corpo de meu pai.
Continuei apalpando no escuro por muito tempo: em linha reta, em linha
curva, em círculo, em busca alucinada. Como cego, tintiando no negro mais negro,
senti alguma coisa mole embaixo dos meus pés. Tentei então reconhecer com as
mãos o que pisava: afundei meus braços na lama do igapó. Mas pensei que fosse
sangue. Não sei porque eu pensei que fosse sangue. A escuridão que me cercava,
fechava o mundo até para os meus pensamentos. Um escuro assim no mato e
dentro da gente, é pior que um rio sem margem, pior que um poço sem fundo. Faz a
gente descer em negras profundidades.
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Uns baques surdos, no chão de barro, estremeceram o silêncio na escuridão.
Foi aí que eu ouvi o relincho do Precipício no fundo daquela noite. O relinchar
daquele cavalo naquela mata escura — tomara o senhor escutasse — soava como
uma voz assassina de animal. Caminhei no rumo e tropecei logo na volta de uma
corda. Tateando, tateando, encontrei o corpo de meu pai. Tinha esperança que ele
ainda estivesse vivo. Mas as minhas mãos encontraram o sangue coalhado e a
frieza de seu corpo dividido em pedaços. Mesmo no escuro baixei o ouvido no rumo
do coração: acho que há muito tempo que ele devia ter estourado. Foi então que a
noite ficou tão dura e tão pesada, que esperei o desabamento do mundo sobre mim.
Depois esperei o sepultamento da floresta. Depois esperei uma lágrima para meus
olhos. Depois esperei um eco de tudo aquilo reboando na escuridão.
Vieram os pirilampos povoar meus pensamentos. Foram as primeiras brechas
naquele desconforme escuro. Depois, paresque de dentro da terra, os grilos, os
sapos, as corujas quebraram também o silêncio daquela morte. Só aí eu senti o
vento soprar de leve esfriando o suor e o sangue da minha testa. Havia sangue
coalhado em minhas mãos. Procurei mais uma vez o terçado na bainha. Tinha
largado quem sabe por onde o meu 128.
Precipício dava patadas no tronco de uma árvore. E relinchava abrindo uma
brecha naquele negrume. Queria cavar buraco maior naquele silêncio. Lágrima
nenhuma tinha chegado para meus olhos. Meu terçado devia ter ficado enterrado na
lama. Será que o meu 128 tinha se perdido no campo? Na Mata? A noite pesava. A
noite pesava tanto que os carapanãs caiam como farinha sobre meu rosto. Mas eu
precisava arrancar dali o corpo de meu pai. A corda paresque estava toda
entaniçada. Devia ter alguma volta até rasgado o corpo desconjuntado. As dobras
retezadas nas árvores estavam duras como aço. Só um cavalo, só um cavalo
assassino podia arrebentar. Procurei o galho mais perto e comecei a lambar o
Precipício. Queria que ele mesmo arrebentasse a maldita corda. Queira que ele
mesmo arrebentasse. Mas também o que eu queria era maltratar o criminoso. O
cavalo negro na noite negra dava saltos. Estremecia toda a mata. Cavava a terra e
relinchava. Relinchava e cavava a terra. Redobrei a força das lambadas mas senti
logo a falta do meu terçado 128. Uma vergastada zuniu: foi uma lambada que me
golpeou aqui pela altura do meu peito. Fedeu relho queimado em madeira verde-
negra. Caí por cima de galho e raízes. Ouvi se distanciando um galope de galhos
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quebrados: era o Precipício. Solto no campo devia correr no rumo das suas éguas.
Precipício voltava. Precipício voava.
Levei muito tempo pra arrancar o corpo de meu pai daquele entaniçado de
cordas. A noite misturava corda, galhos e cipós. Foi com grande sacrifício — o
senhor pensa — que coloquei na sela o monte de cadáver. Mas o mais difícil foi na
hora de montar. Puxei o meu Castanho fora da mata, montei na garupa segurando o
corpo e comecei a andar vagarosamente. Va-ga-ro-sa-men-te. O campo estava
escuro e silencioso. O murizal batia na altura do meu peito. Desconjuntado sobre a
sela o corpo balançava. Foi a viagem mais longa no negrume mais triste. O silêncio
era como um breu.
Levei sem falar horas e horas. Nenhuma lágrima veio aliviar a secura dos
meus olhos. Apenas uma raiva surda e muda sufocava a minha garganta. Até as
coisas menos importantes tinham ficado minhas inimigas.
Me alembro como se fosse hoje da minha chegada na porteira com o corpo
do velho nos braços. A lamparina paresque nem queria alumiar o rosto todo
deformado, tanto que o vento não deixava a chama parar um só instante.
Já não consigo lembrar das coisas que falei. Só sei que não consenti que
levassem o corpo do velho pra cidade. Finquei o pé, gritei, e não levaram. Se
levassem — o senhor pensa — seria numa rede pindurada numa vara. Depois
aquele balanço penoso até o cemitério. As caras das pessoas saindo pelas portas;
as conversas dos vizinhos nas janelas. — Coitado, morreu de impaludismo... Era por
demais odioso pensar num enterro desses para o velho.
Meu pai passou a vida toda reclamando só contra o molhado. Não, não era
contra a água, a chuva, a correnteza, o lago, o rio e o longe mar. Não, não podia ser
contra o mar que era de outras redondezas. Não senhor, era apenas contra o
molhado. Eu sei, eu sei que ele amava a chuva, porque eu via nos seus olhos a
alegria de ver a água escorrendo, banhando as árvores, caindo sobre a mata,
crivando o rio de pingos e respingos, descendo as ribanceiras. Ele gostava da
chuva, porque ele entendia o barulho de conversa que ela fazia nas barracas de
palha. A chuva tem uma cantiga antiga de enganar o sol; de misturar o dia com a
noite; e de ensinar o pobre adormecer com fome. A chuva tem uma conversa-fiada-
tecida-na-palha que até é doce de se escutar...
Meu pai sempre dizia, quando queria se referir às coisas tristes da vida,
impossíveis de resolver e difíceis de se arranjar: é mesmo que chover no molhado.
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Odiava o molhado. Não, não era contra a água — tanto que ela descesse do céu
como borbulhasse da terra — contanto que não escorresse dos alagados. Até
gostava de ficar horas e horas na canoa esperando o peixe boiar. Gostava de
presenciar o dia nascendo do fundo, boiando das dobras da maresia que o ventinho
da manhã fazia no igarapé. Acompanhava o caminho do sol só pela cor das águas.
As nuvens do seu céu, andavam sempre misturadas com as borbulhas dos peixes,
com as flores das plantas ou com as sombras dos capins. Pra ele não tinha céu azul
nem nuvem branca: o céu era cor das águas e as nuvens tomavam a forma das
ondas do rio. Nuvens verdes, ele só enxergava nuvens verdes. Meu pai imbirrava
mesmo contra o molhado. Não suportava levantar de manhã e pisar no barro
molhado, tanto a água fosse de orvalho como de chuva torrencial.
Ele se queixava que a pescaria tinha consumido toda a sua mocidade no
molhado. Por isso ele dizia: água que não corre, mata. Não gostava de água parada
mesmo que fosse pendente da pétala de uma flor. Isso, porque o orvalho também
molhava. Molhava o rosto, quando entrava de manhã cedo na mata; molhava as
calças, no campo batendo de leve no capim. Reumatismo e impaludismo, vinham
das águas que molhavam. Não senhor, não vinha das águas que corriam, nem das
águas que nasciam; vinham das águas que molhavam. Como enterrar meu pai na
restinga de Catauari? Naquela hora que o corpo estava seco e desconjuntado em
cima do jirau? Como? Como depositar o pobre numa terra úmida que a maré com
certeza ia molhar? Eu bem que sabia o tempo que levava pra chegar na terra-firme.
Depois que tinha que procurar o lugar-próprio que desse pr‘uma sepultura seca,
digna do meu pai. Por léguas e léguas as águas se espalhavam; por léguas e léguas
os rios dividiam aquelas terras. Mais por perto — o senhor pensa — só existia
mesmo o cemitério da cidade. Mas pra enterrar na cidade, ia balançar na rede,
despachar no cartório por tintas e papéis. Mas como provar que meu pai estava
morto, se nem nascido ele era dentro da lei? Na cidade também havia o empecilho
dos documentos. Documentos de vida, documentos de morte e documentos do
enterro de pobre do interior. Assim tinha que ser. Queiram logo saber do atestado de
óbito. Óbito, sim senhor: sem esse papel meu pai não podia ser enterrado no
cemitério da cidade. Além da desconforme distância, ainda havia essa exigência dos
papéis. Só restava mesmo a restinga do Catauari. Mas ali na varja, era mesmo que
entregar o corpo de meu pai ao inferno do molhado. As águas quando chegavam,
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invadiam tudo, cobriam tudo, molhavam tudo. Só mesmo se arranjasse uma
sepultura num galho de pau.
Morrer, meu pai havia morrido conforme o seu desejo: completamente fora
dágua: salvo do molhado. É verdade, que arrastado pelo campo, o corpo ficou
dividido em pedaços. Porque, é como eu lhe conto; ele tinha deixado de ser
pescador pra ser vaqueiro, só por causa da forma de morrer. Ele possuía um
verdadeiro pavor de morrer como afogado. As raras vezes que falava, era pra pedir
a Deus que não deixasse ele morrer por dentro dágua. Não queria aparecer inchado,
de bubuia, roído de piranha, com as entranhas devoradas pelos peixes, ao sabor da
maré.
Naquela hora, o enterro não dependia mais dele. Lutar ele tinha lutado, eu era
testemunha, a única testemunha. Agora era enterrar com ele também a minha
viagem. Enterrar naquela restinga os desejos de virar-mundo, correr-terra, sentar-
praça e tudo mais. Já que ia ficar, e pra não morrer atolado no barro, nem morrer
arrastado e despedaçado como meu pai, devia de virar cabra-da-peste e afilhado do
Diabo.
Naquela tarde, diz‘que era apenas um passeio de despedida... última
olhadela no campo, derradeira carreira no gado e última vaquejada. Depois era
capaz o apito de lancha; mais tarde o apito de fábrica, o barulho de trem, buzina de
automóvel, corneta de quartel. Mas ali, mesmo com a morte de meu pai, tinha se
enterrado também a estória de sentar-praça, descer-rio, subir-a-serra, encontrar-o-
mar e voltar um dia feito cidadão. Foi aí que eu senti mesmo a falta do velho, mesmo
com aquele silêncio que tanto me aborrecia e que eu tanto condenava; mesmo com
aquela moleza de corpo fugindo da água e cambaleando e escorregando no
molhado. É que eu vi meu pai morrer lutando com a terra e se misturando com as
paragens. Quando a noite caiu devagarinho, e vi o corpo arrastado pelo cavalo
negro, dei mais valor praquele silêncio. Suas unhas, com certeza, ficaram cravadas
na terra; pedaços do corpo espalhados no chão; sangue misturado com a lama;
dedos crispados arranhando a terra como gadanhos. E o silêncio. Tomara o senhor
escutasse, o silêncio colossal.
Me diga, me diga, seu eu podia ficar a esperar de lancha: entre-o-ir-e-ficar;
entre ser filho da pátria ou filho da puta? Corre terra — o senhor sabe — mãe-e-pai,
pai-e-mãe, andar-ao-Deus-dará. Vida-e-morte, morte-e-vida, vai-não-vai, essas
coisas de horas difíceis e encantes de terras distantes zonzeando a minha mente.
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Naquela hora, fiquei com a cabeça meio tonteada. Mas os meus pés se cravaram
mais no barro como raízes. Minha mãe, coitada, precisava naquela hora, mais de
mim do que a pátria. E isso me deu um arranco pra brigar. Brigar com a terra: mais
com a terra do que com água e a mata. Precisava era dar uma lição naquele
assassino de animal. Não, não haverá de ter silêncio. Senti então uma vontade
louca de gritar. Gritar pro-outro-lado. O senhor sabe o que é gritar pro-outro-lado? É
gritar na beira de um rio largo; no meio de um campo vasto e deserto; na frente de
uma grande mata virgem. Acho que é muito mais triste que chorar. Não, não
importava que escutassem... não importava que o grito chegasse. A indecisão
também pode ser a hora de resistir. Quando dei fé, meu pensamento não andava:
tinha parado na palavra resistir. Aí eu vi que a noite era negra negra mesmo cada
vez mais.
A lamparina da cozinha estava acesa. E tinha uma vela alumiando o corpo e
o quadro de São Sebastião. Dei um salto do tronco do apuizeiro: o curral do gado
estava aberto. Precipício tinha pulado a trincheira e estava solto entre as éguas.
Paresque o diabo tomou conta do meu corpo. Peguei a minha corda no cabide, pra
laçar aquele — com perdão da palavra — aquele filho duma égua. Não sei em que
tempo lacei, encabrestei e estava montado em pelo no pai-dégua. Quando dei fé de
mim, estava no campo aberto pronto pra correr. Era noite e eu corria. O escuro
emaranhava tudo: toiças, baixas, atalhos, caminhos. Não havia estradas. O
Precipício voava. Corre, cavalo do Diabo. Me jogava no chão, cavalo filho da puta.
Eu lambava e ele pulava. Corria e pulava. Eu e ele sem destino. Eu lambava e ele
corria. O campo era sem limites. Só a linhazinha mais escura da mata é que dividia
ao longe a imensidade. Dentro da mata, mais negro devia ser o igapó. Mas o campo
continuava. Baixas, tesos, lagos, restingas, caminhos, atalhos, eram uma noite só.
Alguém tinha ateado fogo na restinga do Catauari. Na certa algum vaqueiro
descuidado ou algum procurador de ovos de tracajá. Incendiavam o campo pra
achar ovos, pra pegar bandos de marrecas e às vezes só mesmo por malvadeza de
incendiar. Com uma ponta de cigarro num capim seco e numa noite quente, o fogo
se alastra. As labaredas nasciam do barro por puro encante. Pensei até que
estavam queimando a terra pra sepultura do meu pai. Mas quem ia queimar a terra,
que ia queimar a terra? Não se podia saber naquela hora porque o Precipício não
parava. Meus braços e pés também não paravam. As esporas na barriga já
sangravam e o Precipício voava. Eu lambava o Precipício e as labaredas
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aumentavam. Com-pouco estávamos num cerco de fogo que vinha não sei de que
lugar. O campo clareava. O campo clareava mais e mais. Corre, cavalo filho da puta.
Não tinha jogado na terra o corpo do meu pai? Queimar a cara até as crinas, será
que bastava? Precisava entrar no inferno com as quatro patas incendiadas.
Precisava fazer aquelas crinas negras virarem labaredas. Precisava atear fogo no
pelo; pelo em fogo feito tocha viva. Em tocha viva voltar pra suas éguas. Em tocha
viva incendiar todo o curral. Mas enquanto não queimava, eu lambava o cavalo filha
da puta e corria pelo campo com medo que meu coração também estourasse. E que
fosse arrastado nas patas como bagaço, como sombra, como cinza. As patas
incendiadas devorando o campo, a tocha viva devorando a noite. Mas lhe juro que
naquela hora fiquei com medo que o fogo murchasse; que o fogo apagasse engulido
pelo barro, que a noite negra invadisse todo o espaço; que o triste negro tomasse
conta do mundo. Fiquei com medo que meu coração estourasse. Mas tive que fazer
aquele puto daquele cavalo assassino ajoelhar. Podia ser que meu coração
espalhado em estilhaços, virasse estrelas-pirilampos. Podia ser que ele virasse em
línguas de fogo, douradas borboletas, flor em chama, asas de sangue ou chuva de
vagalumes. Podia ser que ele até ficasse dividido, esmigalhado, feito barro, feito
terra, feito fogo em flor, feito lama... mas eu tive que fazer aquele puto daquele
cavalo assassino pedir perdão de joelho no campo incendiado.
(MONTEIRO, Benedicto. O carro dos milagres. 5. ed. Rio de Janeiro: PLG-Comunicação, 1980.)
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A TERCEIRA MARGEM DO RIO
Guimarães Rosa
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais
estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa
mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão
e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena,
mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser
toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água
por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele,
que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso
pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de
nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre.
Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em
que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus
para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a
alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas
persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique,
você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me
acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci,
de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: —
"Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e
me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda
virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo
remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida
longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu
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para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes,
vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns
achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso
pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra,
se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes
das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras,
até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a
tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no
rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos,
assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele,
ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais
correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal
nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no
alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com
rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma
hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da
canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o
de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco
de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais
tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não
saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa
mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de
desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois
soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou
diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo
quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e
tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra
71
banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só
ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e
no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus
pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como
ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas
friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça,
por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não
pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais
em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse
amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um
foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O
que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no
entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia
pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento
na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no
lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos
mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais
palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se
pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a
gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a
memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no
desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido
nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele
agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol
e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das
peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de
respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que
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não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o
rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha
irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos,
todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido
o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para
defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu.
Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e
se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava
envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu
permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na
vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis
mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai,
alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a
canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse
recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião,
no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam,
todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem
Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu
pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por
quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar
do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada
do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira,
brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha
tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.
Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
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Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno
ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá,
o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas
vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o
senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O
senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o
seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o
braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos
decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de
lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de
além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao
menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio
a fora, rio a dentro — o rio.
(ROSA, Guimarães. Primeiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.)