máquina do mundo - lusíadas

Upload: catia-pinto

Post on 22-Feb-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 Mquina Do Mundo - Lusadas

    1/5

    MQUINA DO MUNDO NOS LUSA-DAS(A). A expresso mquina do Mundo, quesurge duas vezes nOs Lusadas (VI.76 e X.80) e

    na elegia O poeta Simnides falando, remonta,pelo menos, pica latina de Lucano (Farslia, I:80). Em espanhol quatrocentista e quinhentistaanterior a Cames encontram-se as expressesmundana mquina (Juan de Mena, Laberinto deFortuna, copla 32) e mundial mquina (GregrioHernndez de Velasco, traduzindo do latimmoles, na descrio do universo da Eneida, VI:727). Em portugus, mquina do Mundo surgeantes dOs Lusadas em 1537, no Tratado daSphera do matemtico Pedro Nunes (ao traduzirdo manual medieval de astronomia de John of

    Hollywood, ou Joo de Sacrobosco como eraento conhecido) e, por duas vezes, na epopeia doSucesso do Segundo Cerco de Diu (Cantos VI eIX) de Jernimo Corte-Real. Nos casos referidos,a expresso e suas congneres denotam, quer umarepresentao fsica do universo (Mena, Her-nndez de Velasco, Nunes-Sacrobosco) quer ummeio de amplificao retrica de outra descrioou efeito (Lucano, Corte-Real). Duas das trsvezes em que Cames utiliza a expresso, f-lopara engrandecer o poder destrutivo de tempesta-des martimas. Na sua terceira utilizao do sinta-gma, no Canto X dOs Lusadas, Cames forneceao Gama e ao leitor uma representao potica doUniverso. sobre esta ltima que o presente arti-go incide.

    O globo que Ttis e o Gama veem pairandono ar (Os Lusadas, X.77.5) constitui uma repre-sentao tridimensional in parvum do universointeiro, desde as esferas exteriores at Terra.A mquina do Mundo um transunto, reduzido // Em pequeno volume (Os Lusadas, X.79.5-6),isto , uma cpia em ponto pequeno de todo osistema cosmolgico. Neste sentido, a mquinado Mundo o objeto de descrio literria, ou

    ecphrasis,por excelncia, porque representa tudoo que existe e porque o faz atravs dos procedi-mentos clssicos da descrio de uma obra dearte. Com efeito, este um ponto fundamentalmas frequentemente esquecido: as oitavas do dis-curso de Ttis (da 79 143) no descrevem omundo, mas descrevem um objeto que representao mundo. Trata-se de uma representao desegundo grau, feita, diz-se, por divina arte(Os Lusadas, X.78). Como a generalidade das

    ecphraseis desde Homero, esta descrio autor-representativa, quer dizer, o poeta descreve oobjeto escolhido e, simultaneamente, comenta aqualidade da descrio. Tal facto no escapou argcia de Faria e Sousa: Alfin (dize el Poeta)por arte , i saber divino, se via claramente serordenada aquella fabrica. I aviendola el pintadocon esta admirable, inimitable, i divina estancia,i las que se siguen, parece nos quiso dezir, queassi como essa fabrica fue de arte divina, assi dedivino arte son los versos en que la describe [...]que realmente admira la elegcia con que portodo este canto dixo tantas cosas incapazes della[por serem de matria cientfica e rida]. I no ayduda que las eligio de proposito, para mostrar atodos adonde llegava su ingenio, i su facundia,i su felicidad (SOUSA 1639, IV, col. 451).A dimenso insupervel do objeto segundo da

    ecphrasis (o universo), bem como a luminosida-de e visibilidade totais do globo o lume // Clarssimo por ele penetrava, / De modo que oseu centro est evidente, / Como a sua superfcie,claramente (Os Lusadas, X.77) designamefetivamente uma ambio potica mxima ques cede, como veremos, perante a descrio doprprio Deus.

    No surpreende, por isso, que as estrofessobre a mquina do Mundo possam ser conside-

    MQUINA DO MUNDO NOS LUSADAS

    555

    Sistema planetrio sugerido por Cames nOs Lusadas,mquina do tempo, segundo o qual a Terra o centro

    do Universo. Gravura extrada deLusadas comentadas,por Manuel de Faria e Sousa, 1639

    Letra M_531a630_Layout 1 9/8/11 9:56 AM Page 555

  • 7/24/2019 Mquina Do Mundo - Lusadas

    2/5

    radas um dos cumes da literatura universal(SARAIVA 1999, p. 32). De influncia imediata epoderosa, desde a segunda parte da Araucana de

    Alonso de Ercilla (1578) at Claro Enigma deCarlos Drummond de Andrade (1951) eMquinade Fogo de Antnio Gedeo (1961), o globo deCames, todavia, consiste na revelao em versoduma cincia astronmico-astrolgica comum ebem conhecida nos manuais de ento. A estruturado modelo mecnico do universo que Ttis ofere-ce a Vasco da Gama corresponde teoria geocn-trica de Ptolomeu, sem qualquer influxo doantigo heliocentrismo grego (Heraclido do Pontoe Aristarco de Samos), nem do seu famoso suces-sor da primeira metade de Quinhentos, Nicolau

    Coprnico. Quis-se ver aqui algum atraso na cul-tura cientfica de Cames. Sem razo, pois asteses de Ptolomeu prestavam-se admiravelmenteaos clculos astronmicos da poca e estavam deacordo com os resultados das observaes.Depois de Galileu e de Kepler, ainda Milton con-cedia, noParaso Perdido, espao igual, sem pre-ferncias, aos sistemas tericos de Ptolomeu eCoprnico. E se, do ponto de vista cosmolgico,no havia razes vlidas para Cames ter optadopor outra verso descritiva do Universo, tambmse verifica que a astronomia ptolomaica nodependeu de uma preferncia literria. O rigorcientfico, como em outros lugares dOs Lusadase na generalidade da boa poesia da poca, erauma exigncia que a mquina do Mundo pro-curou cumprir.

    A obra apontada por Ttis entendida comosujeita viso corprea de algo que, sem essemodelo, s pode ser alcanado por esforo inte-lectual. No se trata, pois, de apelar imaginaoe ao esprito ao occhio della mente, como sedizia na poca mas sim de cos olhos corpo-rais / Veres, como escreve Cames (Os Lusadas,X.76. 2-3). uma viso do Universo deliberada-

    mente materialista, plstica e mecnica. Objetofeito de pura forma, como mquina que , abs-tm-se de especulao metafsica. Deus no temprincpio e meta limitada, e incognoscvel: oque Deus, ningum o entende, / Que a tanto oengenho humano no se estende (Os Lusadas,X.80). Deus est para alm de tudo, est em todaa parte e em parte nenhuma. Ele superior atodos os cus (como j S. Toms de Aquino es-crevera). Assim, Deus ali apenas um nome

    designativo duma realidade exterior mquina e,portanto, excluda desta.

    Quanto ao que o globo propriamente repre-

    senta, divide-se em duas partes principais (OsLusadas, X.80.2): a parte etrea, onde esto asesferas ou orbes celestes, e a parte elemental,constituda pelos quatro elementos de Emp-docles: terra, gua, ar e fogo (Os Lusadas,X.90.5-8). Da em diante, a descrio segue umaordem rigorosa, nomeando as onze esferas, desdea periferia at ao centro do globo, comeandopelo orbe que, primeiro, vai cercando / os outrosmais pequenos que em si tem (Os Lusadas,X.81), a saber, o Empreo, cu imvel onde habi-tam os anjos e as almas bem-aventuradas.

    Cames procede nesse ponto a uma explica-o dos deuses greco-romanos no poema, afir-mando que eles constituem nomes alternativos,mitolgicos, fingidos e poticos, para os espri-tos habitantes do Empreo, que so causas segun-das no modelo teolgico aristotlico-tomista, isto, foras da divina Providncia que tudo manda(Os Lusadas, X.82 a 85). Assim definidos, osdeuses agentes dOs Lusadas so alegorias teol-gicas. Como o texto no deixa de notar, a opocamoniana no caprichosa, pois a mesma Bbliadesigna os anjos pela palavra deuses em algunsversculos (Deuteronmio 10: 17; 1 Corntios, 8:5-6, etc.): os Anjos de celeste companhia // Deuses o sacro verso est chamando (OsLusadas, X.84.5-6). Assim, o modelo reduzidoda Mquina do Mundo serve tambm para ex-pli cit ar o significado da insero dos deusesmitolgicos nOs Lusadas e a orientao provi-dencialista da ao (com que presses censrias, outra questo).

    Uma dificuldade deve ser esclarecida. A par-tir do momento (Os Lusadas, X.83) em queCames designa o deus Jpiter como alegoria daProvidncia (a Santa Providncia / Que em

    Jpiter aqui se representa), temos de entenderque esta e Deus so distintos na conceo dopoeta, pois embora a Providncia constitua aordenao suprema da Criao, ao situar-se noEmpreo, ela no pode partilhar o espao ilimita-do de Deus. Jpiter representa, assim, o estatutoduplo da Providncia, na medida em que esta ,ao mesmo tempo, suprema (ele o rei dos deusesmitolgicos) e veculo primeiro da vontade oupensamento de Deus, colocando-se, por esta lti-

    MQUINA DO MUNDO NOS LUSADAS

    556

    Letra M_531a630_Layout 1 9/8/11 9:56 AM Page 556

  • 7/24/2019 Mquina Do Mundo - Lusadas

    3/5

    ma razo, dentro da mquina do Mundo. Na orto-doxia tomista, Deus deseja primeiro lograr certofim e, uma vez isto suposto, determina por meio

    da sua Providncia os instrumentos mais apro-priados para o conseguir. Jpiter, enquanto alego-ria da Providncia, no Deus Ele Mesmo, masum atributo de Deus. Como intermediria da von-tade de Deus, a Providncia exercita diretamenteo governo universal e tem, assim, lugar entro-nizado, com os outros deuses ou segundas-causas,na mquina cuja esfera mais elevada o Empreo.

    Segue-se, na ecphrasis de Cames, a maisnobre das esferas mveis (porque mais prxima doEmpreo), o Primum Mobile, o motor dos outroscus que circulam em torno da Terra. Cames no

    dispensa sequer um termo estritamente astron-mico rapto para designar o movimento dearrasto do Primeiro Mvel que origina o percur-so, diurno e noturno, do Sol e dos outros corposcelestes (Os Lusadas, X.86.1-4). Abaixo desteorbe encontra-se o Cristalino (outro lento, OsLusadas, X.86.5), cu cujo movimento o poeta,uma vez mais, define em termos bastante precisospara a astronomia da poca: enquanto Febo [...]Duzentos cursos faz, d ele um passo (OsLusadas , X.86.7-8), quer dizer, por cada 200voltas do Sol, o Cristalino move-se aproximada-mente um grau. Os trs orbes at aqui indicadoss podem ser contemplados pelo Gama porquesurgem fisicamente representados na obra de arteque o globo, uma vez que, na realidade fsica,eles so inacessveis ao olho humano.

    V-se depois o Firmamento, a oitava esfera,onde se engasta uma mirade de estrelas e conste-laes, obrigadas a breve e seleta enumerao

    (Os Lusadas, X.87-88). Debaixo deste grandeFirmamento, surgem os cus dos sete planetasconhecidos, a saber, Saturno, Jpiter, Marte, Sol,Vnus, Mercrio e finalmente a Lua, que o pri-meiro cu (Os Lusadas, X.89). O facto de os pla-netas terem todos designaes mitolgicas (o Soltambm era Febo ou Apolo; a Lua, Diana ouCntia), muitas vezes equivalentes aos seres men-cionados por Cames a respeito do Empreo, per-mite alguma confuso. Num caso, Vnus (porexemplo) alegoriza um anjo, esprito ou segundacausa teolgica; no outro, designa, em sentido

    literal, o respetivo orbe ou planeta. E Cames nodeixa de lembrar tambm que se trata de umadeusa com funo especfica: Vnus, que osamores traz consigo (Os Lusadas, X.89.6).Apesar do termo ou nome sempre igual a simesmo, a distino mantm-se, lograda na geo-metria do modelo. Mas porque o nome se repeteem partes e nveis diferentes do globo, a misturade significados quase uma inevitabilidade. Esta(dis)juno de sentido lingustico em modelo fsi-co aparentemente to claro constitui um dos pro-blemas importantes da hermenutica da mquinado Mundo dOs Lusadas.

    O efeito potico mais profundo conseguidocom a descrio astronmica do Universo resultado paralelismo entre o modelo reduzido / empequeno volume e a forma geral do poema.

    MQUINA DO MUNDO NOS LUSADAS

    557

    Ilha dos Amores, Jos de Almada Negreiros, 1961, inciso, trio do edifcio da Faculdade de Letras de Lisboa; reporta ao Canto X,estrofes 74-91 dOs Lusadas. Representa Vasco da Gama, acompanhado da deusa Ttis, que lhe apresenta a mquina do Mundo,

    figurada na Cosmografia de Ptolomeu

    Letra M_531a630_Layout 1 9/8/11 9:56 AM Page 557

  • 7/24/2019 Mquina Do Mundo - Lusadas

    4/5

    Efetivamente, Os Lusadas so construdos comoum sistema de esferas concntricas, de tal modoque a representao da mquina do Mundo, situa-

    da no cume da ilha de Vnus, uma sindoque,uma figurao en abyme, do poema inteiro. Estaafirmao, preparada por Faria e Sousa no sculoXVII ao concluir que a ilha amorosa, no seuconjunto, alegoria do monte Parnaso onde miti-camente habitam os poetas e tornada meritoria-mente explcita por Antnio Jos Saraiva (SARAIVA1992, pp. 20-21 e 66), suportada, no s pelasobredita tendncia autorrepresentativa da ecphra-sis, mas tambm por toda uma tradio compositi-va e hermenutica do gnero pico, oriunda dosprimeiros esclios homricos.

    Nessa tradio, com efeito, os trechos cen-trais de especulao filosfica e cientfica dasepopeias apareciam como chaves para decifraremas suas mensagens globais mais profundas.Virglio, cujo conhecimento de Homero e dealguns dos seus comentadores antigos geralmen-te aceite, deve ter composto aEneidaj sobre taispressupostos, tornando-se o Livro VI, aquele emque Eneias desce ao Hades e guiado nosCampos Elsios pela alma do pai, no representantemximo desta tendncia. Na Idade Mdia, oscomentadores daEneida encontraram no Livro VIas fontes do mistrio da composio do poema,muito em particular na passagem onde Anquisesexplica ao filho os segredos do Universo, damorte e da regenerao das almas. Com o Re-nascimento, consolidou-se a aula de Anquisescomo representativa da inteno e da forma glo-bais da Eneida, em comentadores como ColuccioSalutati, Francesco Filelfo e Cristoforo Landino.Estes e outros autores pesquisaram a maneiracomo a filosofia transcendental do pai de Eneiassupostamente explicitava e resumia aquilo que defacto acontecia, alegrica e narrativamente, nopoema. A conceo institucionalizou-se, ao repe-

    tir-se em poetas e hermeneutas europeus dos s-culos XV e XVI.

    Naturalmente, a imitao de Homero e Vir-glio, implcita em qualquer projeto pico classi-cista, levava inveno de aulas de filosofiasituadas no culminar de um trajeto narrativo, maneira de Anquises no final do Livro VI. Cor-retos estiveram, pois, os comentadores seis-centistas Severim de Faria e Faria e Sousa, aoapontarem a imitao desse trecho virgiliano por

    Cames na mquina do Mundo, uma imitao daEneida em parte feita diretamente, em parte pro-vavelmente atravs de outros imitadores de Vir-

    glio, poetas como Mena, Sannazaro, Ariosto, eos portugueses Montemor e Corte-Real. Tambmpor imitar a ascese de Eneias no Elsio, Camestransformou a descrio da mquina do Mundonuma reproduo em ponto pequeno da macroes-trutura do seu poema e, por conseguinte, numapassagem de importncia crucial para o entendi-mento global dOs Lusadas.

    Neste sentido, a mquina tem um significadoideolgico que no pode ser menosprezado. Elasintetiza o mundo ideal proposto por Cames, ummundo que, por isso mesmo, ela legitima, inte-

    grando, como pertencente ao curso natural dascoisas, a histria e a expanso portuguesas, adilatao da f e do imprio que Ttis to porme-norizadamente aponta e descreve. Como trechorepresentativo in parvum do poema inteiro, oglobo alegoriza a unio exttica dos portuguesescom o princpio providencial que orienta e orga-niza o seu mundo; por outras palavras, fundamen-ta o domnio fsico do mar e das novas terras defrica, da sia e da Amrica como domnio teo-lgico-poltico da monarquia catlica sobreregies e religies gentias e infiis, divinizando aHistria de Portugal (HANSEN 2005, p. 187). OsLusadas, ao erguerem o modelo providencial daperfeio divina, naturalizam as aes lusitanascomo justas e certas no agora e no porvir.

    No entanto, a mquina do Mundo no resu-me, de facto, todo o poema, pois no d conta deoutro fenmeno basilar que ocorre nOs Lu-sadas: a temporalidade. Ao subsumir as faanhasportuguesas num Universo eterno e imutvel,mediante um olhar quase exclusivamente espacial(ecfrstico) sobre o mundo, Cames deixa delibe-radamente de fora o outro princpio organizadordo seu poema, o narrativo. A falha ou fenda na

    mquina do Mundo aparece onde comea a apos-ta dOs Lusadas numa narrao em que persona-gens como o Gama e o Adamastor, Baco, Ttis eLeonardo, para no falar do prprio eu potico,evoluem e mudam, sobretudo devido integraonarrativa da doutrina evemerista e do regime bio-grfico e autobiogrfico, ambos intrinsecamentesujeitos passagem do tempo. Tanto o relato deexperincias de vida como o evemerismo impli-cam progresso ou regresso, estipulam a mudan-

    MQUINA DO MUNDO NOS LUSADAS

    558

    Letra M_531a630_Layout 1 9/8/11 9:56 AM Page 558

  • 7/24/2019 Mquina Do Mundo - Lusadas

    5/5

    a, isto , introduzem concees impensveisnum poema onde, em teoria, coubesse to-s acosmografia eterna e perfeita da mquina do

    Mundo. Acontece que a epopeia de Cames con-tm, efectivamente, o eterno da divindade e ascontingncias humanas. E portanto, a mquina doMundo, que no deixa de ser figura esplendorosade todo um programa de representao potica,tem outro significado tambm, e no de somenos:o facto de no conseguir figurar por si s, comotrasunto / em reduzido volume, o poema quesupostamente representa.

    BIBL.: HANSEN, Joo Adolfo, A mquina do mundo,in NOVAES, Adauto (org.), Poetas Que Pensaram o Mundo,So Paulo, Companhia das Letras, 2005, pp. 157-197;

    MOURO, Ronaldo Rogrio de Freitas, A Ast ronomia emCames, Rio de Janeiro, Lacerda, 1998; SARAIVA, AntnioJos, Estudos sobre a Arte dOs Lusadas, Lisboa, Gradiva,1992; id., Introduo, Os Lusadas, 2. ed., Porto,Figueirinhas, 1999, pp. 9-52; SOUSA, Manuel de Faria e,

    Lusadas de Luis de Cames. Comentadas por Manuel deFaria e Sousa, edio fac-similada, Lisboa, IN-CM, 1972, 4tomos em 2 vols.

    Hlio J. S. Alves

    MARAVILHOSO NOS LUSADAS (O).O assunto mais controverso da epopeia de Ca-mes ser aqui abordado em quatro vertentesprincipais e gerais: em primeiro lugar, retraandoa histria da sua compreenso; depois, conside-rando brevemente o maravilhoso enquanto con-ceito da potica (ou de certa potica); terceiro,descrevendo o conceito e suas variantes no textode Cames; e, por ltimo, apontando alguns cami-nhos interpretativos possveis.

    1. O maravilhoso a matria relativamente qual o poema pico de Cames historicamentemais desmereceu. Alm dos problemas religiososque suscitava, para os quais o censor dominicano

    dOs Lusadas alertou desde logo no parecer queexarou na primeira edio de 1572, o maravilhosogreco-latino destacou-se e manteve-se aos olhosdos leitores como incongruente na sua estruturainterna e na sua relao com os propsitos hist-ricos e religiosos enunciados no poema. Se vis-vel o incmodo que os falsos deuses causaramao primeiro comentadorstricto sensu da epopeia,Manoel Correia, e se a questo esteve presentenos debates anteriores Restaurao de 1640 em

    torno do poema, o esforo exegtico de Manuelde Faria e Sousa conclua que, se no se aceitassea sua laboriosa alegorizao do maravilhoso

    mitolgico dOs Lusadas, Cames huvieracometido un absurdo desatinado. Embora ainterpretao dos deuses camonianos por Faria eSousa fosse contestada logo no seu tempo (Ma-nuel Pires de Almeida chegou a chamar-lhe amaldita Alegoria), o facto no redundou neces-sariamente em abono da obra de Cames. No se-guimento de uma tradio crtica comum a obrase pocas to dspares como as de Plato e deGregrio Nazianzeno, autores que consideravaminjustificveis as representaes dos deuses nospoemas de Homero e de Hesodo, o maravilhoso

    mitolgico dOs Lusadas foi repudiado ou,quando muito, desculpado, ao longo dos sculosde receo do poema.

    Sabemos que desconsideraes do maravi-lhoso camoniano surgiram entre alguns leitoresportugueses, pelo menos desde incios do sculoXVII. Mais veemente alm-fronteiras, a condena-o dos deuses nOs Lusadas manifestou-se emobras de enorme repercusso europeia comoforam, poca, o Grand dictionnaire historiquede Louis Moreri (1674), oEnsaio sobre a Poesiapica de Voltaire (1. edio inglesa de 1727, 1.edio francesa reformulada, 1733) e as Lectureson Rhetoric and Belles Lettres de Hugh Blair(1783). Estas e outras obras, embora muitasvezes influenciadas direta ou indiretamente pelaalegorizao de Faria e Sousa, consideravamexplicitamente absurdo, monstruoso e at rid-culo o maravilhoso mitolgico dOs Lusadas.Em Portugal, a censura tambm se fez ouvirmais alto durante o sculo XVIII, geralmente porinfluncia francesa: Valadares e Sousa (sob opseudnimo de Diogo de Novais Pacheco) acha-va que o poema era por esta causa notado dosestrangeiros por boas razes (Exame Critico de

    hua Sylva Poetica..., 1739), e Francisco de Pinae Melo corroborava a crtica de Voltaire ao usoda mitologia nOs Lusadas (JOAQUIM 2005,p. 68).

    Mas com o advento do Romantismo, a situa-o no mudou. Almeida Garrett iniciou o sextocaptulo das Viagens na Minha Terra (1846),declarando que o mais indesculpvel defeito queat aqui esgravataram crticos e zoilos na Iladados povos modernos, os imortaisLusadas, sem

    MARAVILHOSO NOS LUSADAS

    559

    Letra M_531a630_Layout 1 9/8/11 9:56 AM Page 559