mapeamento de residências artísticas no brasil

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mapeamento de residências artísticas no brasil

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  • 3MapeaMento de Residncias aRtsticas no BRasil

  • 4Presidenta da rePblicaDilma Rousseff

    Ministra da culturaMarta Suplicy

    Fundao nacional de artes Funarte

    PresidenteGuti Fraga

    diretor executivoReinaldo da Silva Verissimo

    diretora do centro de PrograMas integradosMaria Ester Lopes Moreira

    gerente de ediesFilomena Chiaradia

  • 5MapeaMento de Residncias aRtsticas no BRasil

    Organizao Ana Vasconcelos e Andr Bezerra

  • 62014, Copyright Fundao Nacional de Artes FunarteRua da Imprensa, 16 Centro Rio de Janeiro RJ CEP 20030-120tel (21) [email protected] | funarte.gov.br

    permitida a reproduo total ou parcial desta publicao, desde que citada a fonte.

    Novembro 2014Distribuio gratuitaTiragem: 1.000 exemplares

    PreParao e revisoAndrea Nestrea

    design grFicoPaula Nogueira

    Produo grFicaJlio Fado

    caPa

    Paula Nogueira

    Arte sobre foto de Rita Aquino/ Interaes Estticas 2009/ Divulgao

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)FUNARTE / Coordenao de Documentao e Informao

    M297Mapeamento de residncias artsticas no Brasil /Ana Vasconcelos, Andr Bezerra (Org.). Rio de Janeiro : FUNARTE, 2014. 133 p. : il., color. ; 21cm

    ISBN 978-85-7507-165-6

    1. Artistas e comunidades Brasil Pesquisa. 2. Brasil Poltica cultural. 3. Centros de arte. I. Vasconcelos, Ana. II.Bezerra, Andr.

    CDD 709.8107

  • 7O que so residncias artsticas? Onde esto? O que fazem e para que servem? Quem so as pessoas que l residem?

    A Fundao Nacional de Artes considera os processos

    artsticos desenvolvidos nas experincias e programas de

    Residncias fundamentais para a qualificao de nossa

    arte e cultura.

    Para conhecer e compartilhar com a sociedade esse

    campo to novo e vasto, a Fundao Nacional de Artes pu-

    blica o Mapeamento das Residncias Artsticas no Brasil,

    resultado de um ano de pesquisa e articulaes realizadas

    pelo Centro de Programas Integrados.

    Convidamos toda a sociedade a conferir e dialogar com

    esse estudo para que possamos juntos, sociedade civil e po-

    der pblico, construir uma poltica eficiente e inovadora de

    apoio s residncias que valorize, cada vez mais, as trocas e

    experincias estticas de nossos artistas.

    Boa leitura!

    Guti FragaPresidente da Funarte

  • 8Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes - RJ, primeira residncia artstica do Brasil, foi inaugurada por Paschoal Carlos Magno, em 1965. O local abrigou jovens artistas e as mais variadas formas de criao e expresso artstica. Acervo CEDOC/ Funarte

  • 9Sobre esta publicao

    O Mapeamento de Residncias Artsticas no Brasil, editado

    pelo Centro de Programas Integrados, tem como objetivo

    divulgar os resultados da pesquisa nacional realizada pela

    Fundao Nacional de Artes sobre este setor.

    Esta publicao dividida em quatro partes. A primei-

    ra traz textos escritos especialmente para esse volume, a

    fim de trazer subsdios para a discusso sobre o tema das

    residncias. Os autores so artistas, curadores, pesquisado-

    res e gestores de programas de residncias artsticas.

    A segunda parte o relatrio completo da pesquisa, in-

    cluindo uma delimitao conceitual introdutria, objetivos,

    metodologia, justificativa e resultados.

    A terceira parte composta por trs entrevistas com

    responsveis de algumas experincias de residncias em di-

    versas linguagens, como as artes visuais, o circo, a dana e

    aes interdisciplinares e hbridas.

    Na ltima parte segue a listagem de todas as residn-

    cias que participaram da pesquisa e tambm o questionrio

    completo utilizado para a consulta.

    Os autores e instituies convidados tem reconhecida

    atuao tanto em territrio nacional como internacional e

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    dividem conosco sua experincia profissional e acadmi-

    ca, mostrando sua viso sobre o assunto, reflexes e ques-

    tionamentos, mtodos de trabalho, demandas e desafios a

    serem enfrentados na perspectiva de ampliar e estabelecer

    essa modalidade de produo cultural no pas.

    Por fim, por se tratar de uma iniciativa institucional

    de uma autarquia pblica voltada para as artes, cabe trazer

    apontamentos relevantes para o estabelecimento de uma po-

    ltica nacional para as residncias e artistas brasileiros, como

    contribuio ao setor pblico e aos gestores culturais.

    Os organizadores

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    Agradecimentos

    Agradecemos a todos que de alguma forma contriburam

    para a realizao deste trabalho, especialmente aos ser-

    vidores e colaboradores da Funarte que dispensaram sua

    ateno para discutir o tema ou participaram em algum

    momento de sua preparao. Tambm agradecemos a to-

    das as pessoas que se dedicaram a participar do mape-

    amento, compartilhando informaes contribuindo para

    esta grande tarefa.

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    Sumrio

    Apontamentos para a construo de um

    programa Funarte de residncias artsticas

    Ana Vasconcelos

    Resilincias artsticas | Amilcar Packer

    Residncia Artstica: especificidades da

    pesquisa/produo | Marcos Moraes

    Mapeamento das Residncias Artsticas no

    Brasil

    ENTREVISTAS

    Sacatar

    Crescer e viver

    Lote

    ANEXOS

    Lista de residncias

    Questionrio

    12

    20

    36

    46

    905590

    101106

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    Apontamentos para a construo de um programa Funarte de residncias artsticas

    Ana Vasconcelos1

    ...nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidas em termos de um nico fio, ou

    mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede s com-preensvel em termos da maneira como eles se ligam... essa ligao origina um sistema de tenses para o qual cada fio isolado concorre,

    cada um de uma maneira diferente, conforme seu lugar e funo na totalidade da rede. A forma do fio individual se modifica quando se

    alteram a tenso e a estrutura da rede inteira. No entanto, essa rede nada alm de uma ligao de fios individuais; e, no interior do todo,

    cada fio continua a constituir uma unidade em si, tem uma posio e

    uma forma singulares dentro dele.2

    Primeiro passo: nossas experincias

    Desde 2008, a Fundao Nacional de Artes Funarte desenvolve aes volta-das especificamente para o campo das residncias artsticas no Brasil e no exte-rior. Inicialmente, atravs de uma parceria com a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministrio da Cultura, a Funarte lanou naquele ano o Edital Prmio Interaes Estticas Residncias Artsticas em Pontos de Cul-tura cujo objetivo era oferecer a artistas de diversos segmentos a possibilidade de desenvolver projetos de residncia artstica integrados a aes de pontos de cultura de todo o pas. Este edital foi reproduzido nos anos de 2008, 2009, 2010 e 2012. Ao longo deste percurso, foram contemplados 407 artistas que realizaram residncias em mais de 350 pontos de cultura.

    A segunda ao foi o Edital Bolsa Funarte de Residncias Artsticas em Artes Cnicas, lanado em 2010, que tinha como objetivo o apoio, parcial ou integral, para o desenvolvimento de projetos de residncia artstica nas reas de Circo,

    1 Ana Vasconcelos mestre em histria e especialista em gesto pblica. Desde 2011, chefe de diviso do Centro de Programas Integrados Cepin/Funarte.2 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivduos. Organizado por Michael Schroter; traduo Vera Ribeiro; reviso tc-nica e notas, Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

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    Dana e Teatro. Este processo se daria atravs de projetos de residncia que pro-movessem o intercmbio entre artistas, ou a especializao de artistas ou tcnicos de artes cnicas, no Brasil ou no exterior, por um perodo de 6 a 8 meses. Foram selecionados 43 artistas. Apesar dos timos resultados alcanados, este edital no foi reproduzido em outros anos.

    A terceira ao no campo das residncias o projeto Outras Danas, reali-zado atravs da modalidade de convnio com o Governo do Rio Grande do Sul e do Cear em 2011 e 2013, respectivamente. Nas duas ocasies, foram convidados bailarinos de notrio conhecimento no segmento da dana e aberta chamada pblica para artistas de todo o pas que quisessem realizar residncia com eles. O objetivo geral do projeto era o encontro entre criadores do Brasil e de outros pases da Amrica Latina para, juntos, estreitarem o convvio dentro e fora da dana, a partir do processo criativo.

    Todas estas experincias nos levaram a refletir sobre a importncia das resi-dncias para a formao, criao e difuso artstica em todo o pas. Ao mesmo tempo, percebeu-se que apesar dos bons resultados alcanados, a Funarte pos-sua aes dispersas neste campo e no um programa estruturado com objetivos e estratgias claras para o campo das residncias. Em outras palavras, no havia poltica, somente editais e convnios, meros instrumentos de qualquer poltica pblica. Tal situao inadequada a qualquer campo das artes, uma vez que as aes se tornam extremamente sensveis s mudanas de gesto e de alocao de recursos oramentrios, o que resulta em instabilidade e descontinuidade das aes empreendidas pela instituio ao longo dos anos.

    O mapeamento das residncias artsticas partiu, portanto, da necessidade de se ter um diagnstico, um grande mapa do campo das residncias no Brasil. Para construirmos qualquer poltica com seriedade, era fundamental identificarmos nossos interlocutores, a partir de quais territrios se daria nosso dilogo, e, so-bretudo, qual seria a natureza desse dilogo.

    Segundo passo: mapear para compreender

    O mapeamento das residncias artsticas se estruturou em 4 partes de forma que pudssemos contemplar uma viso ampliada do cenrio deste campo em todo o Brasil, tendo em vista as peculiaridades das instituies, de seus progra-mas, dos artistas residentes e dos projetos realizados.

    Assim, a primeira parte foi destinada ao conhecimento do perfil da instituio que realiza programas de residncia artstica. Era, portanto, fundamental, termos

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    aqui um quadro que nos fornecesse informaes sobre a localizao geogrfica, sua natureza jurdica, sua fonte de recursos (patrocnio, doaes, transferncias internacionais, fundos governamentais, oramento prprio), estrutura, nmero de funcionrios, proprietria de sede prpria e/ou com fins lucrativos. Esta parte do mapa nos permitiria compreender a identidade de nossos interlocutores ins-titucionais e sua localizao, elementos cruciais para iniciarmos nosso dilogo.

    A segunda parte tem como objetivo conhecer efetivamente os programas de residncia destas instituies. Neste caso, importante frisar que um programa de residncias artsticas consiste num conjunto de aes voltadas para o incenti-vo experimentao, inovao, pesquisa e criao no campo das artes. Isto se d, em geral, atravs do apoio financeiro ou no, concedido a artistas que, na maior parte das vezes, saem de seu lugar de origem para realizar residncias em outras localidades. A instituio pode realizar o programa de residncias artsticas por meio de recursos oriundos de outros editais pblicos e privados, por meio de seus prprios editais/recursos, ou qualquer outra forma de financiamento direto ou indireto. Os programas podem ainda conceder ou no apoio financeiro ao artista, sendo a instituio a responsvel por arcar com parte dos custos ou com a totalidade deles. Os locais de realizao das residncias variam conforme o pro-grama, podendo abranger desde um municpio at os mais diferentes pases. Os programas podem ter como foco uma ou mais linguagens artsticas (circo, dana, teatro, artes visuais, msica, arte digital, literatura, cinema). No que se refere periodicidade, podem ser realizados em perodos pr-estabelecidos, anualmente, semestralmente, etc. Este quadro nos aponta para uma multiplicidade de perfis de programas de residncia artstica.

    Na terceira parte, nosso foco conhecer os artistas apoiados pelos progra-mas de residncia: nmero de artistas apoiados, possibilidades de intercmbio nacional e internacional, durao mdia das residncias e a nacionalidade dos residentes so dados que podem nos dar pistas importantes sobre o pblico alvo das residncias.

    J a quarta e ltima parte do mapeamento tem como objeto de investigao os resultados e produtos gerados pelas residncias. Cabe destacar que os artistas residentes podem desenvolver diversas aes em quaisquer linguagens. Estas po-dem ser realizadas em inmeros locais como praas, teatros, museus, etc. Indire-tamente, as aes em residncia podem envolver diversos pblicos: outros artis-tas, cidados locais, pesquisadores, etc. Ao trmino da residncia, o artista pode ter elaborado uma srie de produtos: filmes, pinturas, publicaes, livros, expo-sies, artigos, etc. Este cenrio nos permite pensar em que medida a residncia artstica tem impacto sobre outros aspectos da produo artstica e cultural.

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    Sabemos que algumas das informaes solicitadas dos programas de resi-dncia so difceis de serem mensuradas ou sistematizadas pelas instituies responsveis. Mas visamos um conjunto de informaes, que aliadas expe-rincia da Funarte neste campo e aos parceiros com os quais temos mantido constante dilogo, possa servir de subsdio para a construo de um Programa Funarte de Residncias Artsticas.

    Terceiro passo: tecendo um programa, uma rede

    A criao e o fortalecimento de diferentes espaos voltados para a realizao de residncias artsticas espalhadas pelo mundo nos mostra o importante papel que este tipo de experincia tem ocupado no atual cenrio da produ-o das artes contemporneas.

    No Brasil, os resultados ora apresentados nesta publicao a partir do mapeamento deste campo, podem nos mostrar o quo diverso, mltiplo e capilar o universo das residncias.

    Cabe aqui destacar alguns pontos fundamentais para a compreenso des-te cenrio. O primeiro deles se refere ao territrio das residncias. Se por um lado, temos um conjunto de programas de residncia artstica fixados em nossas capitais, por outro, h uma variedade de programas sendo desenvol-vidos no interior, em reas rurais inclusive. E isso no leva a refletir sobre a prpria natureza destes programas, o tipo de artista que se desloca e, sobre-tudo, talvez o mais difcil de mensurar, o impacto dos projetos de residncia nas comunidades onde se realizam. importante ressaltar que uma parcela considervel dos programas de residncia mapeados priorizam as popula-es locais como pblico alvo dos projetos realizados.

    Ainda sobre a questo do territrio, percebe-se a intensa concentrao de programas de residncia nos Estados da regio Sudeste, sobretudo So Paulo e Rio de Janeiro. Tal situao reflete a prpria lgica da produo artstica brasileira, concentrada historicamente nestes eixos, por motivos que no cabem aqui debater. Porm, esta concentrao no quer dizer que os demais espaos estejam estagnados ou tenham uma pequena produo.

    fundamental pensar, portanto, que a construo de um Programa Fu-narte de Residncias Artsticas dever ter na questo do territrio um de seus pontos-chave para a elaborao da poltica pblica. Em outras palavras, importante buscar mensurar o impacto dos projetos no territrio onde so desenvolvidos e urgente que a ao do Estado busque uma melhor distri-

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    buio das residncias no territrio nacional, respeitando as demandas e as especificidades locais, sem deixar de lado as potencialidades j existentes.

    O segundo ponto de destaque o financiamento. Hoje, podemos afirmar que programas de residncia se sustentam a partir de um leque de fontes de financiamento que envolve desde autofinanciamento, recursos pblicos, patrocnio, doaes e transferncias internacionais. Nesse conjunto, o pa-pel desempenhado pelo investimento pblico (editais de fomento, leis de incentivo, transferncias governamentais) considervel. Cabe aqui frisar a questo da continuidade e regularidade de realizao dos programas de residncia. Entre os programas mapeados, a maior parcela afirmou que estes foram realizados mais de uma vez, porm sem periodicidade definida. Isso nos mostra que, combinado com aes bem estruturadas no territrio, h ainda um grande espao a ser explorado pela ao do Estado no sentido de promover o surgimento de novas residncias e, ao mesmo tempo, dar supor-te para as j existentes de acordo com suas caractersticas prprias.

    Outro ponto que merece ateno o intercmbio, a troca e a experimen-tao produzida por uma residncia. Estes so justamente o ponto focal de qualquer programa de residncia. Os nmeros produzidos pelo mapeamen-to nos mostram que uma parcela considervel dos programas promove re-sidncias tanto no Brasil quanto no exterior, e entre aqueles que tm abran-gncia nacional, ou seja, podem ocorrer em mais de uma regio do pas, a regio Norte foi a mais indicada na pesquisa. Podemos concluir que embora no haja instituies responsveis por programas de residncia em nmero considervel na regio Norte, este um territrio de interesse dos artistas. Somado a isto, o mapeamento tambm apontou para a enorme possibilidade de intercmbio existente nos programas de residncia e especialmente, in-dicou a predisposio dos programas em realizar uma ao de intercmbio entre artistas brasileiros e estrangeiros.

    Sendo assim, isto nos remete ideia inicial: o intercmbio, a troca e a experimentao. A construo de um programa em mbito nacional, com-preendido como poltica pblica federal deve ter como premissa que a resi-dncia artstica um movimento de se deslocar no tempo e no espao para encontrar o outro, entendido no sentido literal, o outro-outro a partir da troca, mas tambm o seu eu-outro, aquele que voc s encontraria a partir da experimentao, da pesquisa e da reflexo. Ao mesmo tempo, podemos perceber que h ainda espao para a ampliao desses intercmbios, trocas e experimentaes, cabendo, portanto ao Estado, tecer redes que propiciem e multipliquem essas conexes.

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    Aqui, cabe uma pausa reflexiva, pois devemos primeiramente reconhecer o desafio de construir um programa federal voltado especificamente para o campo das residncias artsticas no Brasil. Estamos certos que alguns im-portantes passos j foram dados neste sentido. Hoje, j sabemos, atravs do mapeamento realizado, quem so, onde se localizam e como se constituem nossos interlocutores.

    importante tambm compreender que a construo de um programa desta natureza s possvel com ampla participao de representantes de programas de residncia artstica, de artistas das mais diversas linguagens, de gestores e produtores culturais. Em outras palavras, o dilogo e a troca devem ser elementos - chave no somente do programa em si, mas, sobre-tudo, de seu prprio processo de construo. O grande chamamento para o preenchimento deste mapeamento e a adeso das instituies ao preenche-rem o cadastro so provas disso.

    Estamos certos que este apenas o primeiro mapeamento, com seus limites e incapacidades, prprios de todo questionrio que tem por objetivo foto-grafar uma dada realidade. Procuramos, ao olhar para o cadastro, sermos os mais abertos e flexveis para um cenrio que queremos conhecer. Procuramos permitir ao mximo que cada programa de residncia mostrasse sua face, antes que ns dissssemos: isso uma residncia ou isso no uma residncia.

    Sendo assim, pensar um programa de residncia artstica significa refle-tir sobre a constituio de uma grande rede. E nela que queremos chegar. O desafio maior pensar coletivamente sobre o papel do Estado nesta rede orgnica, dinmica e fluida. Produzir dados, organiz-los e disponibiliz-los; promover encontros entre diferentes agentes do campo das residncias (agncias de fomento nacionais e internacionais, programas de residncia, artistas, gestores e pesquisadores); fomentar as residncias como espao de experimentao, troca e trabalho no atual cenrio da arte; criar mecanis-mos de difuso da produo artstica gerada pelas residncias; preservar a memria da arte em suas diferentes linguagens: esses so apenas alguns dos possveis papis do Estado nesta empreitada.

    Estamos cientes dos desafios administrativos, estruturais e polticos de construo de um programa de residncias artsticas, mas, sobretudo, estamos certos de sua importncia estratgica para o campo da arte contempornea e que este o papel da Fundao Nacional de Artes no desempenho de sua mis-so institucional. Como apontou Botelho (2000), deve-se pensar a rea cultural como passvel de uma efetiva poltica pblica, na qual a presena do Estado no somente estimula a produo artstica como a valoriza.

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    Referncias

    BOTELHO, Isaura. Romance de formao: Funarte e poltica cultural, 1976-1990. Rio de Janeiro: Edies Casa de Rui Barbosa, 2000.

    VASCONCELOS, Ana. Residncias artsticas como poltica pblica no mbito da Funarte. Seminrio Internacional de Polticas Culturais. Fundao Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro/ 2012.

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    Resilincias artsticasAmilcar Packer 3

    A memria me falha. Esqueo quem me narrou esta curta histria e muito menos recordo quem eram os seus protagonistas. Mas me lem-bro de tratar-se de um grupo em viagem da Amrica do Sul Europa ao qual integrava uma liderana indgena. Ao chegarem em outro con-tinente e desembarcar do avio, este personagem amerndio foi rapi-damente sentar-se em um dos bancos do aeroporto. Surpresos e sem entender tal inesperado gesto, os outros membros do grupo ao ver que o dito no se levantava para prosseguir viagem, lhe indagaram sobre a razo do que fazia. Este ento disse: estou esperando meu esprito; o corpo viajou mais rpido. E Deleuze nos dizia evitar viajar para no espantar os devires.

    preciso alimentar o hbito de deslocar questes que se desenvolvem em m-bitos especficos para perspectiv-las em relao a outros sistemas, disciplinas e contextos. A complexidade de tal empreendimento exige lanar mo dos inme-ros recursos disponveis para o pensamento crtico, seguindo caminhos e estra-tgias j conhecidos, assim como buscando inventar outras maneiras de faz-lo. Genealogia de termos e prticas, desnaturalizao dos territrios conceituais e das ferramentas de anlise que sero trabalhados, mudanas nas escalas espacial e temporal, exame das condies de possibilidade, implicaes ticas, multipli-cao, crtica e confronto das narrativas histricas etc. tambm prerrogativa do pensar, a convocao do humor, da coragem e da imaginao. Tais procedimen-tos so fundamentais para desenraizar discursos historicamente institudos e se-dimentados em norma, contribuindo para compreender alguns violentos e astu-tos mecanismos de poder, opresso e submisso e suas formas de manuteno e reproduo -, para com isso qui criar condies favorveis para a desinstalao destes programas que esto recalcados e interiorizados nas e pelas sociedades ocidentais, ocidentalizadas e ocidentalizantes.

    O mundo da arte ao qual hoje to facilmente nos referimos - at mesmo em sua heterogeneidade -, extremamente endogmico e viciado, e como muitas co-

    3 Amilcar Packer artista e curador, nascido no Chile e radicado no Brasil. co-diretor do programa internacional

    de residncias artsticas de pesquisa Capacete, no Rio de Janeiro, e professor convidado do Programa de Arte, Pesquisa e

    Prtica da Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris, Frana, alm de outras instituies de pesquisa no Brasil.

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    munidades que se fecham em suas hermenuticas e dinmicas particulares, frequentemente incapaz de perceber e pensar os seus limites, articulaes e fetichizaes fora dos seus restritos registros e domnios. s prticas artsticas vm sendo atribudo o lugar privilegiado da diferenciao, mas como sabemos, via de regra, estas vm funcionando por meio da imposio de padres de gosto e reserva de mercado, professando assim, em seus va-riados tons sarcsticos, um papel central nos processos de normalizao e segregao do sensvel. A fluidez que lhes caracterstica tm provavelmen-te facilitado sua captura e arregimentao pelas instituies globais de fi-nanceirizao do capital especulativo. Sobre isso, me restrinjo a fazer mera referncia ao elucidativo texto L1% cest moi no qual a artista estaduniden-se Andrea Fraser constri uma anlise minuciosa das ntimas e constantes relaes entre o mercado financeiro, seus agentes e instituies, e o mercado da arte, seus funcionrios e suas instituies4 . Vale tambm lembrar que o mercado da arte um dos mercados mundiais no regulados internacional-mente, se avizinhando com isso ao trfico de drogas, de armas, de rgos e de pessoas.

    Mas voltando noo de residncia artstica, foco deste texto e publica-o, considero extremamente necessrio fazer uma operao de contraste para no imprimir uma viso ingnua, assim como para tentar evitar entrar-mos em demasia em contradies performativas ao intencionarmos condu-zir prticas engajadas na produo crtica de sentido.

    Quem fala em residncia artstica fala em deslocamento. Os programas de residncia artstica, em sua gnese, propem a mobilidade dos profissionais das artes como meio de criar condies propcias para a pesquisa em con-textos estrangeiros, promovendo literalmente a desterritorializao como condio bsica da criao. Isso se daria proporcionando temporalidades distintas das exigidas pelo vigente sistema de acelerao da produtividade, atualmente to disseminado, at mesmo em centros de pesquisa e formao, como as universidades, que deveriam resguardar e ampliar as condies m-nimas para o pensamento, dentre elas o tempo e a sua no instrumentaliza-o. Tais caractersticas serviriam a um funcionamento mais crtico e coleti-vo, por assim dizer, para prticas artsticas que privilegiam a cooperao e a troca em um envolvimento mais direto e estrutural com a sociedade, e seus diversos agentes e comunidades, frente letargia de prticas cnicas e instru-

    4 L1% cest moi, Andrea Fraser. Disponvel no original em ingls em: http://whitney.org/file_columns/0002/9848/andreafraser_1_2012whitneybiennial.pdfE, traduzido ao portugus em : http://www.capacete.net/files/andrea-1fraser2011.pdf

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    mentalizadas e burocracia oficial que frequentemente no faz mais do que garantir interesses particulares das instituies de legitimao da arte, como museus pblicos e privados e centros culturais em seus diversos formatos e nomes, de casas de leilo, de galerias e dos colecionadores.

    O deslocamento tem sido frequentemente enaltecido como ferramenta necessria para os profissionais da arte, e isto se deve provavelmente po-tncia de mudana que o deslocamento contextual carrega. Sabemos tambm que para a financeirizao dos capitais transnacionais e para os mercados especulativos, e para a injusta e segregatrio organizao social do trabalho, fluxo e flexibilidade so a alma do negcio.

    Residncia e deslocamento

    De modo geral, acredito ser imprescindvel entendermos que a mobilida-de no pode estar restrita ao mero deslocamento de corpos e objetos de um ponto para outro, pois lida e constitui prticas e fenmenos dos mais variados, respondendo a disposies locais e mundiais, polticas, culturais, sociais, histricas, econmicas, e porque no tambm lembrar, religiosas, produzindo subjetividades e constituindo comunidades. A mobilidade pode se dar basicamente de duas formas: por livre e espontnea vontade, ou por migrao forada. A Forced Migration Online 5 ligada ao Refugee Studies Center da Universidade de Oxford, na Inglaterra, estabelece que a migrao forada pode ser induzida por conflitos, pelo desenvolvimento ou pela sua contrapartida, o subdesenvolvimento, e ou por desastres, naturais ou causa-dos pelo homem. Esta organizao tambm estabelece que dentre os tipos de migrantes forados podemos distinguir os refugiados, aqueles em busca de asilo, os internamente deslocadas obrigados a migrar foradamente por guerras civis, conflitos armados e constante violao dos direitos humanos, os deslocados pelos desastres, os migrantes contrabandeados, e os migrantes traficados.

    Estima-se que entre os sculos XVI e XVIII, o Brasil viu desembarcarem pelo menos quatro milhes de indivduos negros escravizados e trafica-dos do continente africano. Catorze milhes o nmero estimado para o conjunto das Amricas.

    5 http://www.forcedmigration.org/

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    Em 2014, o nmero estimado de refugiados srios desde o comeo da guerra civil ultrapassa dois milhes de pessoas e aproximadamente sete milhes fo-ram foradas a deslocar-se dentro do pas6.Em 2012, a United Nations Refugee Agency estimou um nmero aproximado de quinze milhes de refugiados espalhados pelo mundo, e o nmero de des-locamentos internos forados por guerras civis e intervenes internacionais, catstrofes naturais e provocadas pelo homem, perseguies polticas e reli-giosas, violao contnua dos direitos dos cidados, ainda mais elevado.O nmero de migrantes forados no Japo aps o desastre de Fukushima ul-trapassa cento e cinquenta mil pessoas.Estima-se que a cidade de Altamira, no norte do Amazonas, dobrar o seu nmero de habitantes devido construo da hidroeltrica de Belo Monte. Ainda no foi avaliado o nmero de indgenas, quilombolas e populaes ri-beirinhas que sero obrigados a migrar em razo da construo de mais de 130 hidroeltricas previstas at 2020, na bacia Amaznica. Segundo a Organizao Mundial da Sade, no ano de 2010, mais de um mi-lho e duzentas mil pessoas morreram em acidentes de carro, sendo uma das 10 maiores causas de bito no mundo.O nmero mdio de pessoas voando ao mesmo tempo varia entre um e trs milhes de pessoas7. No dia 2 de Julho de 2013, o presidente boliviano Evo Morales, democrati-camente eleito, teve que desviar o curso do seu avio que viajava de Moscou a Lima, pois pases como Frana, Itlia, Espanha e Portugal, lhe recusaram permisso de sobrevoar seus territrios, obrigando-o a pousar em Viena, na ustria onde seria retido por inmeras horas, e o avio revistado. Especula-se que a motivao para tal ato seria a suposta presena de Edward Snowden no voo.Em junho de 2013, tornou-se pblico o esquema de espionagem interna-cional perpetrado pelo governo dos EUA, por meio do at hoje considerado maior vazamento de informaes do Pentgono, operado pelo analista de sistemas e ex-funcionrio da CIA, o estadunidense Edward Snowden. Apesar do repdio e protesto de inmeros governos espionados, dentre os quais o brasileiro, o pedido de asilo, isto , de residncia, feito por Snowden, foi e

    6 http://syrianrefugees.eu/http://www.humancaresyria.org/news/item/syria-the-crisis-in-numbers?gclid=Cj0KEQjwhLCgBRCf0fPH043IlJwBEiQAf8P8Ux5GuZl1J3xbI4KKTwY2gd2ifAtpAn_WuL9DskZ2aDwaAjj_8P8HAQ7 Chegamos a estes nmeros por meio de uma matemtica rpida, seguindo os dados veiculados pela International Air Transport Association. http://www.iata.org/

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    continua sendo constantemente negado por alguns destes mesmos pases. Snowden, cujo passaporte estadunidense foi cancelado, permanece at o dia de hoje exilado na Rssia.No dia 18 de agosto de 2013, o brasileiro David Miranda foi detido no aero-porto de Heathrow, Inglaterra, sem qualquer motivo ou explicao. Miranda companheiro do jornalista ingls Glenn Greenwald, que escreve para o jornal britnico The Guardian e foi um dos responsveis pela publicao das infor-maes divulgadas por Snowden. H alguns anos, o artista angolano Kiluanji Kia Henda me contava de um projeto seu que consistiria em fazer presso nos governos do mundo para que considerassem dar vistos de residncia tendo como razo o amor.Vale relembrar, ainda que rapidamente, que o surpreendente levante de par-te da populao brasileira em manifestaes que se espalharam por todo o territrio nacional em junho de 2013, teve como estopim a mobilidade ur-bana, notadamente, por meio do trabalho promovido por movimentos como o MPL, Movimento Passe Livre, que entre outras reivindicaes, fazem da gratuidade do transporte pblico de qualidade o seu principal objetivo. Uma das premissas que suporta essas reivindicaes parte do direito cidade, e do direito ao acesso cidade pelo transporte urbano. Se a cidade hoje um dos principais meios de produo, notadamente dos fenmenos sociais e cul-turais, a restrio econmica aos meios de transporte significa no somente uma segregao livre circulao pelas urbes, mas tambm a manuteno de situaes de sujeio por meio da contnua destituio de uma grande parcela da sociedade, dos meios de produo e representao, sobretudo quando en-tendidos no sentido poltico.Para a perspectiva ambientalista, o deslocamento humano por meio de ve-culos com motores a combusto, motos, barcos, carros, caminhes, nibus, veculos agrcolas e avies, um contnuo e insustentvel desastre ecolgico, tendo em vista a poluio produzida pela queima de combustveis fsseis, as-sim como o uso dos biocombustveis, ditos verdes e ecolgicos, produzidos por meio da extensiva monocultura intensiva da soja, da cana-de-acar e do milho, geralmente transgnicos, e que vm devastando o planeta, transfor-mando radicalmente a paisagem e destruindo culturas e modos de vida.

    Apesar de parciais e tendenciosos, dados e informaes falam. A tendncia aqui assumida serve para mostrar como podemos pensar a mobilidade nas artes por meio de uma perspectiva histrica e geopoltica mais complexa e com isso reposi-cionar a questo das residncias artsticas. Nossa parcialidade se deve, sobretudo,

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    ao fato de no analisar devidamente os fenmenos acima mencionados e apenas empreg-los para relativizar o contexto artstico, plano com o qual a seguir re-enquadraremos a discusso, movendo a conversa para os profissionais da arte que se deslocam, na grande maioria dos casos, por livre e espontnea vontade, desejo e necessidade artstica, por assim dizer, com funo de residncia temporria.

    Artista, turista

    Odeio as viagens e os exploradores.Tristes Trpicos, Claude Lvi-Strauss

    A livre circulao no planeta Terra talvez se aplique ao dinheiro e s merca-dorias, mas certamente no se aplica aos humanos, e se todo Estado-nao carrega em si uma histria de violncia, esta provavelmente comea pela demarcao e imposio de fronteiras fortemente vigiadas e defendidas , assim como pela implantao da propriedade privada e do direito particular sobre o territrio, sobre tudo aquilo e sobre todos aqueles que nele esto. As possibilidades de deslocamento profissional pelo mundo esto calcadas na desigualdade social e econmica, assim como nos conflitos e rivalidades polticos, culturais e religiosos entre pases e blocos. No existe uma poltica internacional especfica para a mobilidade dos profissionais das artes pelo mundo. Raros so os programas de residncia artstica com escopo interna-cional que se ocupam de conseguir visto para os seus participantes e quase inexistentes so aqueles que conseguem visto de trabalho para os seus resi-dentes. Tal situao restringe a possibilidade da participao de agentes de contextos e pases que no possuem acordos diplomticos, dificultando e em alguns casos, impossibilitando a emisso de certos vistos, estes que per-mitem cruzar fronteiras, e simultaneamente faz daqueles privilegiados que conseguem vistos para participar destes programas, aos olhos dos governos e alfndegas, meros turistas.

    Em termos de uma geopoltica da mobilidade nas artes, preciso operar para alm dos eixos tradicionais do deslocamento profissional, este que mais do que frequentemente reproduz os fluxos e as narrativas coloniais. preci-so modificar os sentidos demasiado unidirecionais destes fluxos, pois no se trata apenas de multiplicar os destinos, como fazem muito bem as agncias de turismo, mas sim de desenvolver relaes de reciprocidade, que permitam que todo lugar possa operar como centro, lugar de chegada, acolhimento e

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    partida; re-territorializao. E no apenas ponto de partida para viagens, mas sobretudo ponto de partida como perspectiva de aquisio de suficiente autonomia para se estabelecer como possibilidade de construo e coautoria de narrativas prprias, sem precisar continuamente reverenciar e se subsu-mir s narrativas historiogrficas hegemnicas dominantes.

    Saudosa maloca

    Peguemos todas nossas coisasE fumos pro meio da rua

    Aprecia a demolioQue tristeza que nis sentia

    Cada tuba que caaDua no corao

    Saudosa Maloca, Adoniran Barbosa

    residir: do latim residere. Verbo regular, transitivo circunstancial e tran-sitivo indireto. 1 - Morar, estar estabelecido em um lugar onde se dorme regularmente, estanciar, habitar, viver. 2 Estar, achar-se. 3 - Fig. Ter seu fundamento, seu lugar em: O poder reside no povo. Consistir em: na arte que reside o problema.

    Como podemos qualificar o substantivo residncia em um Brasil que se nega a demarcar territrios indgenas e se prope a rever os j demarcados, isto , em um pas que questiona o direito de moradia dos povos originrios em seus territrios de residncia e existncia, e que precedem em direito a formao dos Estados-nao americanos? Como no relativizar a noo de residncia perante tamanhas contradies relacionadas moradia? Como, se no con-siderarmos os contnuos e acelerados processos de gentrificao, aos quais a arte tantas vezes se alia mesmo sem querer, pelos quais passam as cidades e que operam pela constante expulso econmica e pela violenta remoo das pessoas de suas casas pelo brao armado legitimado dos governos e dos in-teresses de diversos setores privados, a polcia? Onde esto os ex-residentes do bairro do Pinheirinho, em So Jos dos Campos, e os residentes de tantas outras comunidades e favelas que foram des-territorializados.

    Devemos reconhecer que os grupos historicamente desprovidos so em inmeras ocasies os grandes responsveis pela instalao da infraestrutura

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    e consequentemente da valorizao dos terrenos em que residem precaria-mente, sem o aval do Estado, assim como so estes quem muitas vezes se tornam os responsveis pela conservao do patrimnio cultural e histrico por muito desprezado pelas autoridades e instituies: a capela do Morro da Providncia, no Rio de Janeiro, o Pelourinho, em Salvador, o bairro de San-ta Ifignia em So Paulo, entre tantos outros. Quem investiga os incndios criminosos que tanto fazem arder as residncias em favelas espalhadas pelo Brasil? De que maneira podemos pensar em residncias artsticas quando o mercado imobilirio e as incorporadoras controlam e segregam a ocupao das cidades em relao ao poder aquisitivo?

    Everywhere is my land, nowhere is my landAntnio Dias

    Talvez seja interessante comearmos a pensar seriamente em toda residncia como algo ocasional e circunstancial, pois na verdade, apesar de muitas vezes fixarmos residncia em um nico e mesmo lugar, somos todos parte de povos nmades, e isto retorna, mesmo que seja nos sonhos dos quais no lembramos.

    Navegar preciso?Navigare necesse; vivere non est necesse. 8

    Plutarco, in Vida de Pompeu No de hoje que a viagem se faz presente no imaginrio da lida artstica e talvez possamos at mesmo dizer que as residncias j estavam, de certa maneira e em certa medida, pr-figuradas no hbito de mecenas ou personagens ricos e podero-sos em receberem em seus domnios, artistas, cientistas e pensadores, criando con-dies materiais favorveis para o desenvolvimento de trabalhos e pesquisas, assim como protegendo algumas destas figuras que constantemente se viam perseguidas e em risco de morte, pelos seus modos de vida e ideias defendidas. Talvez pensado-res mais do que artistas precisaram de proteo. Enfim, vale dizer que existem ex-perincias de residncia que levam mais de um sculo de trabalho continuo, como o caso da Vila Romana, em Florena, na Itlia. Parece-nos correto pensar que a residncia artstica herda e promove uma situao protegida e privilegiada para que agentes de diversas disciplinas possam desenvolver o seu trabalho, com certo

    8 Navegar preciso, viver no preciso. Frase atribuda ao general romano Pompeu, 106-48 a.C., e que teria sido em-pregada para se dirigir a marinheiros amedrontados, que se recusavam a desprender viagens durante a guerra, e que foi retomada por Pessoa, em seu clebre poema.

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    distanciamento das dinmicas do dia-a-dia, em outros espaos e temporalidades, e frequentemente em convvio com outros profissionais.

    A Res Artis9 , associao voltada promoo e difuso de programas de residncia pelo mundo, atualmente contabiliza mais de 490 iniciativas par-ceiras cujas atividades focam continuadamente em programas de residncia artstica, em mais de 70 pases. J a Transartists10 aponta um nmero de aproximadas 1.400 residncias espalhadas pelo mundo. Na grande maioria dos casos, os programas no se restringem s residncias e oferecem uma vasta gama de atividades comunidade local e aos visitantes: produo de trabalhos, organizao de exposies, agenciamento e superviso de pes-quisas de mdio e longo prazo, e realizao de programas voltados forma-o continuada como seminrios, cursos e oficinas, passando tambm pela produo e lanamento de publicaes. Geralmente, as residncias acabam funcionando como arquivos e centros de referncia de documentao para a pesquisa do trabalho dos ex-residentes, e no raro que constituam uma biblioteca pblica.

    Na Amrica do Sul, poderamos facilmente listar uma centena destas ini-ciativas como o Lugar a Dudas, Taller 7, El Parche, El Kiosko, Flora, e Re-sidencia en la Tierra, na Colmbia; Centro de Investigaciones Artsticas, o extinto, mas importante, El Bailisco e La Ene, em Buenos Aires, na Argenti-na; CRAC, em Valparaso, no Chile; Beta Local, em San Juan, Porto Rico; no Brasil, o pioneiro CAPACETE Entretenimentos, no Rio de Janeiro e em So Paulo, ainda em So Paulo, Casa Tomada, FAAP - Edifcio Luthtia, Casa das Caldeiras, Phosphorous e o Como_Clube, que em janeiro 2014 se lanou em um perodo indeterminado de nomadismo, Sacatar, em Itaparica, na Bahia, JACA, em Belo Horizonte, Minas Gerais etc.

    Por princpio, programas de residncia no so independentes, pois em seu cerne est a necessidade do outro e da troca, e, alm disso, so geralmente fi-nanciados por governos e fundaes pblicas e privadas; portanto suas aes so totalmente dependentes. Residncias, em geral so empreendimentos de indivduos ou pequenos grupos que buscam inventar seus contextos e comuni-dades por meio da hospitalidade e da convivncia. Pessoas estas que frequen-temente esto cansadas da mesmice das instituies tradicionais da arte, que acreditam em outras formas de funcionamento, mesmo sem saber ao certo quais so, e que para isso trabalham sempre em colaborao e autogesto, bus-

    9 http://www.resartis.org/en/ 10 http://www.transartists.org/

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    cando uma autonomia que somente pode ser entendida como poder de deciso e escolha, estabelecendo um contnuo campo de negociao e engajamento.

    Tais iniciativas, como vimos, no so assim to raras, e tampouco esto isoladas j que inmeras participam da formao de redes de colaborao por meio de organiza-es e associaes, mais ou menos ativas e com funes distintas, voltadas ao fomento e fortalecimento das residncias, como o Triangle Network (Triangle Arts Trust), o Residencias en Red (que anda meio desligado, para no dizer desativado), Transartists e o Res Artist, acima mencionadas. Inmeros governos, particularmente na Europa, possuem agncias e departamentos governamentais especializados no fomento a pro-gramas de residncia e apoiam artistas e outros profissionais das artes que buscam participar de residncias. Institut Franais, Frana; IFA e Goethe Institut, Alemanha; Office Contemporary Art Norway, Noruega; Danish Art Council, Dinamarca; Pro Helvetia, Sua; Mondrian Fonds, Holanda; Iaspsis, Sucia; Japan Foundation, Japo; Prince Klaus Foundation, Holanda, para nomear alguns.

    Podemos citar uma srie de trabalhos de recentes mapeamento de iniciati-vas autnomas como New Methods, realizado no MoCA de Miami em 2011, que resultou em uma publicao de ttulo anlogo; RE-tooling Residencies, publicado em 2012 pelo A-I-R Laboratory CCA Ujazdowski Castle, Varsvia, na Polnia, e no Brasil, Em residncia / Rotas para pesquisa artstica em 30 anos de Videobrasil, editado pelo Videobrasil em 2013. Publicaes menos es-pecficas como Encuentros de Gestines Autnomas Visuales Contemporane-as, realizada pela Curatoria Forense e Espaos da Arte no Brasil, de Kamilla Nunes, lanado em 2013, tambm tocam no assunto das residncias, assunto quase incontornvel quando se trata de espaos auto-gestionados e menos for-malmente institucionalizados.

    No se trata aqui de reproduzir um mapeamento das residncias existentes, ou de fazer um levantamento exaustivo da literatura publicada sobre o tema. Se por um lado, as informaes acima citadas podem servir queles que preten-dem empreender uma pesquisa nesta direo, por outro, nos serve especifica-mente para mostrar que residncias artsticas no so algo novo e muito menos algo no elaborado, discutindo e institudo. O conhecimento se d pela experi-ncia e por sua troca, no podemos simplesmente prescindir disto e descartar o terreno onde queremos pisar. Ao mesmo tempo, no creio que seja possvel definir definitivamente o que ou o que pode vir a ser uma residncia artstica. A construo de um argumento de autoridade que normatize as aes e a ima-ginao , no mnimo, desinteressante para o pensamento. O que interessa a estas linhas tentar esboar uma contribuio para a compreenso e a reflexo sobre o tema, e a partir de alguns mecanismos e funcionamentos que esto pre-

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    sentes nas residncias artsticas, paradoxos e contradies, especialmente na articulao e exame de suas potncias na inveno de dispositivos de formao e produo, pesquisa e discusso, documentao e difuso de prticas artsti-cas, caractersticas que podem tornar mais complexas e fortalecer contextos e prticas, agentes e agenciamentos.

    A diversidade dos programas de residncia espalhados pelo mundo exige cada vez mais algumas qualificaes. Residncias de pesquisa, de produo, de escrita, e por que no pensar tambm de frias? A palavra residncia vem sendo atribuda a torto e a direito como uma maneira de agregar valor a pro-jetos, menos do que como uma forma de atuao e engajamento, buscando mobilizar certos tipos de agentes e convocar certo tipo de prtica; quando a plataforma se transforma em trampolim e a pesquisa substituda pelo alpi-nismo social. Talvez seja pela recusa ao trabalho entendido como restrio das atividades humanas ao mundo capitalista produtivista, que as residncias pos-sam oferecer aos profissionais das artes uma situao no apenas privilegiada, porm realmente crtica em relao aos paradigmas operantes.

    Viagem aos confins do meu quarto

    Um lapso, um hiato; silncio... Parar como modalidade de deslocamento, oscila-es, mover-se segundo os afetos. Deslocamento de perspectivas. Por que viajar por um mundo cada vez mais homogneo e de paisagens monoculturais? Para que viajar em um mundo cada vez mais padronizado em montonos modos de vida? Qual a necessidade do deslocamento concreto, se tudo est disponvel em telas e ao alcance das mos, olhos e dedos, por meio de teclas e dispositivos to variados? Se-jamos mais criativos! Por que no pensar em programas de residncia distncia? Residncias feitas por Skype? Facebook, Instagram ou outras redes de comunica-o e de tele presena. Programas de residncias drones e avatares.

    Refluxos

    A multiplicao de programas de residncia e de iniciativas independentes no Brasil vem sendo acompanhada por empreitadas do setor privado, residncias artsticas de galerias e de colecionadores que muitas vezes utilizam este tipo de formato para baratear custos de produo, venda e aquisio, assim como a construo de imagem social, status, e valor agregado sua coleo e ima-

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    gem. Se houve um momento onde as instituies legitimavam para o mercado artistas e prticas, hoje, numa perspectiva reversa, galerias e colecionadores legitimam os artistas para adentrarem no sistema institucional.

    A acelerao dos processos de produo e a formulao de polticas pbli-cas em editais vm determinando a constituio dos programas de residncia, assim como a produo artstica. Multiplicam-se iniciativas que visam, simul-taneamente em poucas semanas, a pesquisa, produo e exposio. A noo de contrapartida o parti pris, o comprometimento mximo do qual padece a ima-ginao artsticas.

    Leitos

    Para finalizar essas breves consideraes, proponho fazermos um pequeno e l-timo desvio em sobrevoo, passando da residncia artstica para a residncia m-dica. No se trata aqui de fazer um trabalho crtico, reflexivo e ou histrico sobre a medicina como instituio e discurso, este que nos levasse a examinar os me-canismos e o funcionamento especficos da formao e da prtica mdica, seus paradoxos e contradies; ou algo de cunho mais social e poltico que analisa as distncias e descompassos entre as polticas pblicas e a insuficiente realidade da medicina e das instituies de sade, e mais especificamente no Brasil. Trata-se aqui de muito menos, de fazer uma operao de contraste e translado de alguns paradigmas presentes no campo da residncia mdica para pensar questes da residncia nas artes. O site do Ministrio da Educao11 nos informa:

    Instituda pelo Decreto n 80.281, de 5 de setembro de 1977, a resi-dncia mdica uma modalidade de ensino de ps-graduao desti-nada a mdicos, sob a forma de curso de especializao. Funciona em instituies de sade, sob a orientao de profissionais mdicos de

    elevada qualificao tica e profissional, sendo considerada o padro

    ouro da especializao mdica. O mesmo decreto criou a Comisso Nacional de Residncia Mdica (CNRM).

    Ensino, especializao, instituies, orientao, tica. A residncia mdica faz do hospital uma escola e estipula parte da formao mdica como o exerccio re-munerado da profisso por meio do suporte de estruturas institucionais e orien-

    11 http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=12263&Itemid=507

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    tao de profissionais com mais experincia e qualificao. No Brasil, a durao de uma residncia mdica varia de dois a cinco anos, segundo a especialidade, e vista como prova de fogo para a consolidao dos futuros mdicos. A formao mdica e o seu exerccio so uma atividade coletiva por excelncia, algo que se d simultaneamente no mundo, e no nos espaos protegidos das universidades ou controlados dos laboratrios de pesquisa, e por isso considerada um bem social. A clnica possui sempre uma clivagem dupla sendo associada tanto ao diagnstico quanto ao tratamento, e umas das modalidades mdicas onde as noes de prtica e de teoria deixam seu tradicional divrcio e se encontram integralmente articuladas. Estas caractersticas e dinmicas se devem provavel-mente seriedade, gravidade e urgncia da prtica mdica, afinal a sade, e muitas vezes a vida de pacientes que est em jogo, o que exige um alto grau de conhecimento, competncia e experincia para lidar com as complexidades de cada corpo e situao, e clinicar, diagnosticar e propor tratamento. A sade um bem social, e a meu ver, tambm pblico o que cada vez mais se esquece , e como tal, os profissionais da medicina no deveriam ser vistos como seres especiais e proprietrios de um conhecimento especfico, mas como mem-bros de uma comunidade que lhes permite portar certo saber para exerc-lo em prol do coletivo e da sua sade; vide o juramento de Hipcrates.

    Defensores das artes, como eu, costumamos insistir no quanto as suas prti-cas no so um acessrio meramente decorativo ou um sofisticado divertimento burgus, ou pelo menos que no se restringem a isso. Acreditamos se tratar de atividades imprescindveis para a vida, para trazer outras dimenses de existncia em produo de diferena. Ento se assim o , porque no atribumos e exigimos tal grau de comprometimento de formao, conjugando diversos profissionais, articulando e formulando coletivamente as instituies? Imaginemos como isso poderia ser transportado para o mundo das artes e quais seriam alguns possveis engendramentos e implicaes.

    Chama obviamente nossa ateno a durao da residncia mdica, algo pra-ticamente inconcebvel para a ocupada e flexvel agenda dos artistas contempo-rneos, estes que dificilmente conseguem comprometer e fixar o seu tempo, por um bom tempo. Que dizer da ideia de orientao e superviso, de trabalho co-letivo, de agenciamento contnuo entre agentes e instituies para quem tanto defende noes como liberdade, independncia e autonomia de criao, caladas na figura do artista como sujeito? E se as instituies se abrissem a uma inveno coletiva, onde formao e exposio, onde pesquisa e produo fossem gestos inseparveis e at mesmo simultneos, lugares de convivncia e troca transdis-ciplinar, talvez como apontava o programa de necessidade do Museu de Arte

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    Contempornea da Universidade de So Paulo, elaborado por Walter Zanini no anos 1960? E, sobretudo, como fazer da tica uma componente fundamental das prticas artsticas em busca de comprometimentos no maniquestas, e muito menos moralistas, que formulem claramente os seus inegociveis e se posicio-nem em relao a estes?

    Ouam um bom conselho, que eu lhes dou de graa

    Faam como Paul Lafargue12 e elogiem a preguia. Repitam o quanto puderem as palavras de nosso sbio heri sem carter13 : Ai que preguia! Ao invs de re-des de residncia, faamos numa rede, como os tupiniquins. Ao invs de residir nas redes sociais, sigam o exemplo do menino passarinho14, no peam licena, faam sua residncia numa rvore, de preferncia numa rvore numa rua que ache bem bonita.

    12 No livro Le droit la paresse, o escritor, ativista e cunhado de Karl Marx, o francs nascido em Cuba Paul Lafargue (15.01.1842 26.11.1911), criticava o movimento operrio de 1848 por reivindicar o direito ao trabalho e com isso atrelar-se integralmente lgica do capital, ao invs de lutar pelo direito preguia, e com isso buscar a emancipao. 13 Andrade, Mrio de. Macunama o heri sem nenhum carter, Vila Rica, Belo Horizonte, 1997.14 No fim do ms de Julho de 2014, um adolescente intrigou os moradores do bairro de Higienpolis, em So Paulo, e atraiu a ateno da grande imprensa aps passar oito dias na copa de uma rvore na Rua Veiga Filho, em frente ao n105, no bairro de Higienpolis em So Paulo. O garoto foi apelidado de menino passarinho, e aps matrias no jornal foi reencontrado pela me que o levou de volta a casa na cidade de Macacu, regio Serrana do Rio de Janeiro.

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    Residncia Artstica: especificidades da pesquisa/produo.

    Marcos Moraes 15

    Refletir sobre a residncia artstica constitui-se em considerar a especificidade desta, o que significa buscar referenciais e metodologias prprias, uma vez que se trata tanto de uma tipologia como de uma topologia outra de espao de atuao do artista. Identificam-se as residncias artsticas como espaos especficos de criao artstica, convertendo-se em lugares de experincias, trocas e reconheci-mento, nos quais os artistas, com seus trabalhos, problematizam a complexidade e a diversidade, o significado e o valor das relaes arte e vida.

    Nesse sentido, crucial pensar sobre processos de criao, em trnsito, em deslocamento, como uma forma contempornea de produo na qual con-ceitos como troca e vida coletiva se tornam fundamentais numa estratgia de atuar , como mecanismo de colaborao com a cena artstica local e, ainda, como meio de dinamizao e circulao de informao e de conhecimentos. A residncia artstica , nessa perspectiva, um instrumento de transformao ao promover o estabelecimento de relaes mais amplas, do que aquelas que se oferecem no ambiente de formao escolar e mesmo em determinados circui-tos de atuao, ao mesmo tempo em que permite apontar alguns dos conflitos e contradies da relao entre a arte e seus espaos, incluindo os de formao, como as escolas de arte.

    Deslocamentos espao-temporais, trocas, experincias-limite, convivncias, isolamento, dedicao, concentrao, mobilidade, contatos pessoais e culturais so aspectos relevantes e significativos indicados pelos artistas em conversas e depoimentos e que colocam a residncia artstica vivida por eles, como uma experincia transformadora e, antes de qualquer coisa, de introspeco, tambm pela busca de sua prpria relao com o mundo.

    A nfase em valores, como o tempo e o espao diferenciados, marca a ideia de residncia artstica, sendo incessantemente mencionados como essenciais para uma condio de trabalho para o artista. Nessa situao especfica, no en-tanto, respondem a uma contnua demanda de requisitos para criar e produzir, reivindicadas por aqueles que veem nesses ambientes uma conjuntura de atu-

    15 Marcos Moraes, pesquisador e curador, doutor na rea de Projeto, Espao e Cultura pela FAU-USP. Coordena a Residncia Artstica da Faap; o Programa de Residncia Artstica na Cit des Arts, em Paris, e o Programa Faap/Fullbright Distinguished Chair in Visual Arts.

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    ao no na sua realidade, nem em sua fantasia utpica, mas em um contexto prprio, em uma heterotopia16.

    A expresso residncia artstica formada por um duplo, que carrega em si um conjunto de significados, muitos deles integrados ao cotidiano, mas no habitualmen-te utilizados de forma concomitante. Porm, sob qualquer tica em que ela seja exami-nada, alguns componentes se destacam, como o deslocamento, o espao privilegiado, as experincias, as convivncias, as trocas, a condio em trnsito, a vida em comum, a participao, as colaboraes, os processos de articulao e negociao.

    Em uma perspectiva contempornea que se aplica ao proposto pelo conceito da residncia artstica, o ateli no mais, necessariamente, lugar idlico do puro isolamento, assim como a casa. Por outro vis, este pode servir como contra-ponto ao isolamento decorrente dos processos de fuga da vida contempornea e as ameaas do cotidiano das grandes metrpoles. O que nos leva proposta de pensar as residncias como forma de responder a um sintoma desse isolamento?

    Agregar ao sentido inicial proposto para residncia, como o lugar que se habi-ta, ou no qual se reside e onde se estabelece o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente fsico (Tuan, 1980:106) ao do ateli do artista como a moldura, o envelope/invlucro, o limite, e o espao inicial de conformao de sua produ-o, como prope Daniel Buren em seu fundamental estudo sobre as funes do ateli, indica uma perspectiva para se pensar esse espao entre o protegido para suas experincias e o da intimidade das relaes pessoais, ao do confronto com o outro, com a possibilidade de expandir essas relaes da ordem do privado para lan-las em outra esfera. Convm insistir sobre um aspecto fundamental, definidor e motivador da produo contempornea o espao visto como um elemento delimitador da prpria produo, pensando-se que ela determinada por essa relao estabelecida com o que a conforma.

    Afirmam-se assim as certezas e unanimidades em torno da ideia de que a experincia da residncia artstica propicia ao artista, uma condio espao-tem-poral especfica, privilegiada, destinada criao e produo.

    Na coletnea de textos editados por Doherty (2004) ao reunir artistas, te-ricos, crticos, arquitetos, curadores, entre outros proposta uma discusso so-bre do caminho trilhado pelo artista do ateli para a situao como um mapea-mento da arte contempornea, ou uma das vertentes presentes nela, nas ltimas dcadas, em que a esttica relacional17 e a site especificidade esto presentes de forma inegvel, mas no inquestionvel. Indagaes podem surgir em meio a

    16 Conceito elaborado por Michel Foucault, em seu livro Outro, de 196717 Teoria esttica, elaborada nos anos 1990, pelo critico Nicolas Bouriaud, em que so reconhecidas e valorizam-se as relaes que os trabalhos estabelecem em seu processo de realizao e de exibio, com o envolvimento de artistas e do pblico.

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    essa discusso: a residncia artstica se insere como um elemento facilitador, ao propiciar, certamente, uma simplificao no sistema das relaes intersubjetivas? Seria a residncia apenas um espao para determinadas formas das prticas ar-tsticas contemporneas?

    Em meio a uma diversidade de programas, de circunstncias de realizaes e de inseres culturais, no parece ser esse um caminho em que a residncia enve-rede. Assim preciso ver a residncia artstica como possibilidade, articulao de pensamentos em torno a uma investigao que no se esgota aqui, ao contrrio, que apenas se insinua e exige olhares mais aprofundados, bem como leituras dos eventos e atividades a ela relacionados.

    Mais uma vez o que se pretende conclamar para uma reflexo mais ampla e aberta sobre o potencial e a importncia do estatuto da residncia, no processo de formao artstica e do artista e, a partir dessa constatao, sugerir que ela integre um sistema de componentes para ampliar as possibilidades dos estudos sistemticos, em nvel superior, na formao de artistas.

    Saliento ainda a residncia artstica como uma alternativa ao artista que habi-tualmente produz em seu ateli, sozinho e distante ou dissociado dos processos que antecedem a difuso, afirmando que esta no mais a nica condio de produo e formao; e tambm como uma forma de ampliao do processo de desenvolvimento do artista ao facilitar uma aproximao entre os residentes e suas trocas alm de outras relaes, propostas a partir do contato com interlo-cutores e profissionais relacionados com suas pesquisas e projetos.

    Do crescimento

    Uma tentativa de leitura panormica sobre a situao brasileira ressalta a fragili-dade de estrutura na rea, uma vez que o nmero efetivo de residncias artsticas em territrio nacional bastante reduzido, qualquer que seja a tica sob a qual se olhe para este cenrio, ademais, de recente desenvolvimento e visibilidade. Para efeitos deste ensaio sobre estes ambientes de pesquisa, criao, produo e difuso, merecem especial ateno algumas iniciativas no pas, que apenas no incio do sculo XXI, nos inserem neste patamar institucional das residncias. Dentre as experincias relevantes criadas e implantadas no Brasil destacam-se: a do Capacete Entretenimentos (atualmente em processo de reformulao), no Rio de Janeiro; a Sacatar (2001) residncia mantida em Itaparica, na Bahia, pelo Instituto Sacatar, uma fundao norte-americana que instalou e mantm um conjunto de edificaes para receber criadores do mundo inteiro para perodos

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    de pesquisa e criao em uma situao de isolamento, contato com a natureza e a comunidade local.

    Nessa leitura do estado da arte das residncias, preciso mencionar que na cidade de So Paulo, no ano 2002, foi organizada uma experincia, j configu-rada como residncia artstica, para trazer artistas que na cidade estabelecessem vnculos de troca para sua produo. Assim entre fevereiro de 2003 e outubro de 2006, a EXO residncias acolheu 33 artistas, socilogos, escritores, cineastas, arquitetos provenientes de vrias cidades e pases, que ocuparam apartamentos no Edifcio Copan, onde residiram de 1 a 3 meses.

    A lista daquelas com durao e atuao de maior tempo acrescida desde o final de 2005 da Residncia Artstica FAAP, que acolhe, no centro da cidade de So Paulo, artistas por um perodo de dois a cinco meses para desenvolverem, naquelas de-pendncias, suas pesquisas, seus trabalhos e sua articulao com a comunidade local.

    Outros programas brasileiros de residncia comearam a ser desenhados; e a esse rol de projetos brasileiros, em franca atividade, pode-se acrescentar o pr-mio Bolsa Pampulha, em Belo Horizonte, programa que prope residncias de artistas, ao longo de um ano, ao fim do qual uma srie de mostras, decorrentes desse processo de trabalho e acompanhamento so apresentadas. Outras propos-tas e programas brasileiros de residncia, como os do Museu de Arte Moderna da Bahia, o do Museu de Arte Moderna Alosio Magalhes, do Recife, a Bolsa Iber Camargo, o projeto Terra Una, o JA.CA, em Belo Horizonte, a Casa das Caldeiras, em So Paulo; ou ainda de projetos centrados na constituio de espaos de tra-balho como os da Casa Tomada, o Programa Red Bull House of Art desde 2013, em sede prpria, e denominado Red Bull Station , Phosphorus, Piv, e, ainda, o programa de residncia em parcerias, organizado pela Associao Videobrasil, para mencionar os j em processo de implantao. Cumpre salientar que o lti-mo mencionado caracteriza-se por no possuir o espao fsico da residncia, o que o leva a manter programas de residncia. Ainda surgiram outras iniciativas, incluindo a mais recente do Ministrio das Relaes Exteriores em parceria com a FAAP, estabelecendo um programa de residncia para artistas brasileiros, em pases dos BRICS (Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul), j iniciado com a etapa da ndia, para a qual foram enviados dois artistas em 2013.

    O recente interesse pelas residncias artsticas fica visvel a partir do surgi-mento e desenvolvimento de aes e reflexes de diferentes naturezas, de distin-tas distribuies pelo territrio nacional, a quantidade de atividades e reflexes relacionadas ao assunto que se manifestam em nmero e diversidade cada vez mais notvel, como as de Bruno Vilela e o projeto Muros: territrios comparti-lhados, ou mais recentemente de Beatriz Lemos e o projeto Lastro.

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    Pode-se afirmar que, ainda em reduzida escala, se comparado ao cenrio in-ternacional, o fenmeno das residncias artsticas no Brasil, apesar da fragilidade e pouca autonomia, reflexo das discusses e articulaes em torno dos espaos de atuao da arte contempornea. Desta perspectiva a necessidade de se com-preender o quadro atual das residncias artsticas no pas, suas especificidades e condies de atuao, se constituem em uma urgncia para aqueles que acredi-tam na potncia e na capacidade delas de atuao no mundo contemporneo.

    Da necessidade de mapeamentos, organizao e articulaes de residncias e programas de residncia artstica, como alternativa, no sistema da arte.

    O crescimento do nmero das residncias em escala global18 no planejado, porm fruto das condies e necessidades dos profissionais e instituies le-vou necessidade de organizar, identificar propostas e divulg-las, surgindo desse contexto a criao de redes a elas relacionadas. A articulao das residn-cias artsticas, que se torna mais evidente a partir do incio da dcada de 1990, faz nascer a Res Artis, a Alliance of Artists Communities e, j no incio do s-culo XXI, a Intra sia; surgem ainda plataformas eletrnicas de suporte como o Centre National des Arts Plastiques - Cnap, ou uma instituio que mescla os objetivos das duas categorias anteriores, como a rede Peppinires. Organis-mos e instituies de apoio como a Transartis, Triangle e o Programa Aschberg da UNESCO, constituem-se, dessa maneira, em uma das formas mais geis e rpidas de acesso informao relativa a residncias artsticas e programas de residncia, em escala global.

    No decorrer do processo de trabalho com esses mecanismos de apoio criao denominados residncia artstica foram identificados outros instrumentos eficazes no sentido de potencializar a ao das residncias, a partir da dcada de 1990: as redes de comunicao. Em funo desse dado, agregado ao mapeamento inicial, ele consistiu, tambm, na identificao e estudo preliminar das redes de comunicao networks como tambm as-sociaes regionais, nacionais e internacionais que congregam e organizam residncias e programas dessa natureza, que podem ser identificados como

    18 Levantamentos e anlises de arquivos online, bem como a leitura das informaes constantes dos anurios, diretrios e publicaes das maiores e mais atuantes redes que congregam residncias (AAC e Res Artis), de forma a identificar os programas j existentes e os criados recentemente, vinculados a estas redes em suas diversidades de objetivos e caracte-rsticas comunidades, colnias, retiros, programas e das redes de comunicao.

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    os mais representativos dessa atividade, tanto de uma perspectiva numri-ca, como por congregarem significativos exemplos deste modelo de projeto, permitindo uma aproximao direta e imediata com o universo dessas for-mas de produo e atuao artstica.

    Foi possvel identificar a velocidade e rapidez de transformao ocorrida in-ternamente a esses grupos determinada por concepes de organizao para as quais as funes e os processos dominantes na Era da Informao, organizam-se cada vez mais em torno de redes e isso representa o auge de uma tendncia histrica (...) (Castells, 2002: 605). Prosseguindo e mesmo reconhecendo a ideia que a rede no inveno da tecnologia contempornea, mas que ela atua em consonncia com o que Castells afirma (2002: 605): Presena ou ausncia na rede e as dinmicas de cada rede, relativamente s outras so os fatores crticos de dominao e mudana nessa sociedade, uma sociedade que assim se pode designar de sociedade em rede.

    Em tempos de redes tecnolgicas com tantos mecanismos disponveis, o forte crescimento de articulaes entre as residncias artsticas com a cria-o de networks e redes, as residncias artsticas no escapam ao uso des-sa estratgia, mas ao contrrio, enveredam por essas relaes, que deixam visveis de que forma (...) o poder dos fluxos prevalece sobre os fluxos de poder (...) (Castells 2002: 605) tornando dessa maneira uma condio de sobrevivncia, ou de possibilidade de atuao.

    O exame das informaes permite apontar para a identificao de formas de acesso s Instituies (endereo, localizao, endereo eletrnico de contato e home page), conhecer a origem, a histria e os objetivos dos programas, bem como identificar as principais reas de atuao (artes visuais, cinema e audiovi-sual, dana, literatura, msica, artes cnicas, performance, design, multimdia, cermica, instalao, fotografia, joalheria, artes grficas, comunicao visual, en-tre outras), as formas de acesso, as condies para participar (perodo e durao, custos, bolsas e apoios, formas de inscrio e processos de seleo), a descrio dos espaos (tipos de atelis, quantidade de estdios e condio das acomoda-es), alm de apresentar as atividades desenvolvidas pela residncia, como ex-posies, estdios-abertos, cursos, palestras, oficinas, encontros, acompanha-mentos sistemticos, tutoriais, publicaes e outras formas de eventos.

    Dentre as mais diversas propostas de programas de residncia artstica exa-minados, h alguns casos exemplares a serem observados como possibilidades de compreenso da amplitude de necessidades que o quadro geral da produo oferece, de suas dificuldades e, portanto, de suas necessidades de alternativas para continuar a ter caminhos de desenvolvimento de pesquisa e ao artstica.

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    A multiplicidade de programas leva a pensar no mbito de sua atuao, no papel que desempenham na atualidade, na distino de ao de outras formas seme-lhantes de aparatos para a produo artstica, como os das Academias e seus prmios de viagem, ou as colnias de artistas, tpicas organizaes do sculo XIX e que perduram ao longo do sculo seguinte, as bolsas de estudo e pesquisa mais caractersticas do sculo XX, quando da criao de outros mecanismos de apoio ao desenvolvimento da produo artstica, como os museus de arte moderna, as fundaes, os organismos e organizaes governamentais de fomento e apoio.

    Os dados numricos indicam uma realidade das residncias artsticas e sua insero; tratam, ainda, sobre o potencial e a importncia dessas formas de atua-o do campo da produo artstica contempornea e levam a pensar sobre pro-cessos de criao, em deslocamento, como forma contempornea de produo, na qual os conceitos de experincia, troca, participao e vida coletiva se tornam peas fundamentais em uma estratgia de atuar. Tem-se, desse modo, uma par-ticipativa forma de atuao em um contexto no qual mobilidade se associa a preocupao com o dilogo e as trocas.

    A leitura j proposta das aes de um programa de residncias artsticas pode ser pensada como uma forma de responder ao sintoma contemporneo do isolamento. E, a partir da experincia de vida coletiva, as relaes de troca so potencialmente capazes de inventar propostas para um tempo novo, confi-gurando-se assim uma possibilidade para o viver junto, ponto relevante para a discusso das residncias artsticas e que balizam discusses, propostas e refle-xes pertinentes arte contempornea. Estas propostas serviram de baliza, por exemplo, para a implantao do programa de residncia que inaugura as ativi-dades da Residncia Artstica FAAP, sua proposio de articular a convivncia e vida em comum na Residncia.

    Outro ponto de reflexo, uma vez que ele ainda no nos permite chegar a fceis e singelas concluses, mas que deve ser pensado como sintomtico da situ-ao atual, seria uma possvel extensa lista produzida atravs da identificao de fundaes, institutos, governos (nacionais, regionais, ou locais) e outras institui-es no governamentais que, nos ltimos anos, vm se posicionando favoravel-mente criao de residncias artsticas e seus programas apoiando, principal-mente financeiramente, suas atividades, reconhecendo sua relevncia e seu papel de agentes participantes do processo de transformao cultural e social, o que no representa uma postura de apoio incondicional, ou que no haja conflitos de interesses permanentemente a serem discutidos.

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    Residncia Artstica FAAP

    A criao da Residncia Artstica FAAP foi possvel, com sua instalao no Edif-cio Lutetia, de propriedade da Fundao Armando Alvares Penteado, um projeto do escritrio Ramos de Azevedo que pode ser identificado como uma constru-o caracterstica da dcada de 1920, tpico exemplar da marcante arquitetura ecltica que predominou no centro paulistano na primeira metade do sculo XX. O conjunto arquitetnico trs edifcios do qual o Lutetia faz parte, foi tomba-do, em 1992, pelo Conselho Municipal de Preservao do Patrimnio Histrico, Cultural e Ambiental da Cidade de So Paulo CONPRESP.

    A ideia de desenvolver um projeto de residncia artstica, pela FAAP, j havia sido lanada, anteriormente, e era justificada pela experincia positiva com a Cit Internationale des Arts, em Paris; alm de ser a possibilidade de preenchimento da lacuna decorrente da inexistncia de plataforma artstica dessa natureza, na cidade de So Paulo. O projeto institucional inicial para o Edifcio era de natu-reza diversa, mas a experincia de montar cenograficamente os lofts se prestou a facilitar a compreenso de usos diversos que poderiam ser atribudos ao mes-mo, dessa forma se tornou possvel argumentar a favor da destinao para re-sidncias de artistas, como foi a inicial apresentao do projeto. O Programa de residncia artstica da FAAP na Cit des Arts, foi referncia para a elaborao e desenvolvimento da Residncia Artstica FAAP. importante ressaltar essa rela-o direta entre os programas uma vez que, ela se apresenta, naquele momento, j como modelo de processo de trabalho e cujo acompanhamento permite refe-renci-lo para a elaborao e implantao de uma plataforma de ao, de mesma natureza (categoria), em So Paulo. Outro fator relevante a compreenso de sua dimenso, ainda que no interior da Instituio, porm de fundamental significa-do uma vez que pde ser utilizado como justificativa para validar a credibilidade de criao de um projeto semelhante, que envolveria alm dos investimentos fi-nanceiros, uma progressiva forma de repensar o projeto e a atuao educacional da Faculdade de Artes Plsticas da FAAP, em funo da estreita relao pensada, desde a origem, e a ser estabelecida entre ambas.

    A justificativa primeira para o desenvolvimento e implantao de uma residn-cia artstica se devia ao fato de a Fundao ter entre suas escolas19, a Faculdade de Artes Plsticas, uma instituio de formao na rea de artes reconhecida por sua boa reputao, manifesta pelo quadro de docentes e pela produo dos egressos,

    19 Poderiam ser relacionados aos propsitos da Residncia a Faculdade de Comunicao, o Museu de Arte Brasileira MAB/FAAP e o Teatro FAAP.

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    entre outros fatores. Assim, aproximar artistas de outras partes do Brasil e do mun-do, do aluno em processo de formao, do professor e artista ou pesquisador, assim como dos alunos recm-formados, seria um elemento importante em seu processo constitutivo de vida profissional e pessoal, por consequncia possibilitando uma nova perspectiva, na qual todos pudessem perceber a potencialidade de relacionar-se com o mundo e outras culturas, entender a importncia de uma formao em outro pas, em outra cidade e contexto, alm de fortalecer o sentido da residncia. A proposta de criao de uma residncia artstica passou a ser examinada e discuti-da, procurando-se identificar o interesse e a viabilidade dessa mudana de projeto, da sua adequao dimenso de atuao institucional da Fundao, alm de suas implicaes jurdicas, administrativas, econmicas e que justificassem a elabora-o e desenvolvimento de projeto dessa natureza e envergadura.

    O projeto aprovado para a residncia foi aquele elaborado pelo arquiteto Pe-dro Mendes da Rocha, e sua equipe de arquitetura da Arte3. A Fundao o con-vidou para desenvolver o projeto de ambientao20 que privilegiou os conceitos de flexibilidade, harmonia, padronizao e individualidade, versatilidade de uso, acompanhados de uma preocupao com equilbrio cromtico, que trabalhados de forma distinta em cada unidade, conferisse seu carter de identidade. Para o arquiteto a oportunidade de elaborar um projeto com essas caractersticas foi um desafio, pelo carter inovador e desafiante da proposta, que requeria uma preo-cupao com a projeo de um espao que pudesse permitir, ou admitir a diver-sidade do uso, mas oferecesse a liberdade necessria para o desenvolvimento de alguns projetos criativos e artsticos, sem produzir uma interferncia que incapa-citasse o uso, por seus ocupantes, como espao de trabalho. O que significou um entendimento da proposta e das especificidades que o espao deveria apresentar. Nesse sentido, a preocupao com a facilidade no uso dos equipamentos se aliava diversidade de usos a que eles estariam submetidas. Outro dado relevante foi o a necessidade de pensar o projeto de forma a poder reproduzi-lo nas diversas unidades, buscando identidade para cada um dos apartamentos/estdios.

    Nesse contexto, iniciou-se a elaborao de um projeto fundamental para a implantao definitiva desta residncia quando a Fundao Bienal de So Paulo props a participao da FAAP na realizao da 27 Bienal de So Paulo, por in-termdio da realizao do projeto de residncias artsticas internacionais, previs-tas no projeto curatorial de Lisette Lagnado , para a mostra Como viver junto.

    20 A palavra ambientao foi escolhida a partir de solicitao do arquiteto para designar a soluo desenvolvida para os ambientes, uma vez que o outro vocbulo proposto ocupao detm forte significado, inclusive dentro do vocabulrio das prticas artsticas contemporneas, o que poderia induzir a leituras equivocadas do projeto.

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    Consideraes

    Qualquer tentativa de abordagem de uma situao brasileira, como sabemos, se tornaria, de imediato, frustrante e frustrada, na medida em que as dimenses geogrficas, as distncias, a diversidade cultural, as disparidades econmicas e sociais, as distines tnicas, as variaes polticas tramam um tecido complexo de relaes e de difcil leitura, se esta no for cuidadosa e levar em considerao, essas e outras variantes.

    Devemos ter em mente, tambm, o papel das mudanas polticas desenca-deadas pelos processos de questionamentos por parcelas significativas da popu-lao, em reivindicaes e conclamaes ao dilogo e participao, ocorridas nos ltimos meses e a emerso do sentido de coletivo que, parece poder ser de-monstrado nas aes desencadeadas nos protestos por todo o pas. A percepo da crise de representao poltica e, por consequncia, tica e moral desencadeia processos de identificao de outras formas de crise, de outras incertezas, ou de certezas desmascaradas, diante das mscaras dos que protestam.

    No se trata aqui de propor uma ingnua, muito menos ambiciosa, leitura das recentes transformaes nas quais, boa parcela da sociedade brasileira se v, mas de uma aproximao a uma realidade que demanda novos mecanismos, novas estratgias, novos agenciamentos e novas negociaes para se articular em outras possveis relaes, distintas das que, este mesmo passado recente, parecia querer nos apresentar como certeza, ou como imagem desta certeza.

    Neste contexto, possvel inserir a ideia de residncia artstica como pos-sibilidade, como alternativa para os modelos capitalistas contemporneos que fragmentam os processos de individualizao e subjetivao, como o direcio-namento para o trabalho solitrio, desconectado do outro e, portanto, da impos-sibilidade de unio, do agrupamento pelas reivindicaes. Ao olharmos para o desenvolvimento das residncias artsticas podemos v-las articuladas com os processos de transformaes globais e locais, e inseridas de forma efetiva, no rol das instituies, ou plataformas e suas aes e atividades, permitindo, tambm, a articulao daquelas, direcionada para seus objetivos e interesses.

    Outro ponto importante na discusso sobre a residncia artstica a relao de cada artista com o desconhecido que se apresenta ao aceitar um desafio para viver uma situao que rapidamente pode converter-se em adversidade; no ape-nas visitar ou estar, mas estabelecer vnculos com as pessoas, espaos e lugares, permitir-se relacionar para produzir a partir desta interao; preciso pensar, ainda, que a ansiedade e o medo, peculiares aos seres humanos e muitas vezes motivadores dessa forma de relao com o mundo so, neste caso, elementos

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    importantes como parte desse desafio do estar deslocado e viver junto. Inserido em outro contexto, o artista no tem mais o controle absoluto e se percebe como incapaz de deter isso em suas mos, ele lana-se em uma experincia-limite e no em uma aventura que o toma por inteiro.

    possvel apreender, ainda, a importncia das trocas que se d em residncia pelo convvio com a comunidade o que se torna, dessa forma, relevante para pensar sua relao com os processos de formao artstica. A residncia artstica oferece-se como uma possibilidade de, nos dias de hoje, ser compreendida como instncia de investigao, criao, produo e inovao no campo das artes e das prticas artsticas contemporneas. Converte-se em alternativa para alguns dos questionamentos sobre o sistema da arte: a individualidade, o exclusivismo, a rigidez e seus problemas, apresentando-se como um ambiente em que os pro-cessos so o principal foco de ao. Nessa proposta, afirma-se como plataforma para atuao e uma reflexo sobre as prticas artsticas, centrada na necessidade de pensar a produo de forma crtica e como geradora de conhecimento.

    Referncias

    CASTELLS, M. A sociedade em rede. A era da informao: economia, sociedade e cultura. Traduo Alexandra Lemos, Catarina Lorga e Tnia Soares. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002, vol. 1 e 2.

    DOHERTY, C. (ed.) Contemporary Art from Studio do Situation. London: Black Dog Publishing, 2004.

    TUAN, Yi-fu. Topofilia. Traduo de Lvia de Oliveira. Diefel: So Paulo, 1980.

    http://novo.itaucultural.org.br/materiacontinuum/marco-abril-2009-arte-con-temporanea/ - acessado em 02 de agosto de 2014

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    MapeaMentos das Residncias aRtsticas no BRasil

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    Apresentao

    O Mapeamento das Residncias Artsticas no Brasil surgiu a partir da percepo da emergncia desse campo na produo cultural, especialmente de novas moda-lidades de pesquisa e criao artstica, em diversos segmentos. O crescimento ex-pressivo do nmero de iniciativas de residncias artsticas no pas, notado em con-vocatrias de instituies pblicas e privadas de diversos estados, alm de presena marcante em programas e editais de fomento administrados pela Funarte, apontou para a necessidade de uma delimitao mais clara e precisa sobre as caractersticas, potenciais e demandas dessas atividades, que tem sido responsveis por originar novas obras, processos e sistemas de produo das artes.

    A realizao deste Mapeamento um dos desdobramentos do II Encontro Fu-narte de Polticas para as Artes, realizado em 2012 pela Funarte, em parceria com a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministrio da Cultura, que teve como foco de discusso as Interaes Estticas em Rede. Durante o evento abordou-se temas importantes para a construo das polticas pblicas para as ar-tes entre os quais: O lugar das ocupaes artsticas na difuso cultural, O papel das redes na produo cultural e Trnsitos: deslocamentos e residncias.

    Uma vez detectada essa demanda, o Centro de Programas Integrados da Funar-te (Cepin), responsvel por diversas aes interdisciplinares de gesto cultural no mbito do Ministrio da Cultura, inclusive a Bolsa Interaes Estticas Residn-cias Artsticas em Pontos de Cultura, props um estudo estatstico que revelasse dados e informaes sobre os programas de residncia artstica, como seus modos de atuao, localizao, gesto, financiamento e perfil dos projetos.

    O levantamento foi concebido e realizado em 2013 e as informaes coletadas foram analisadas no ano seguinte, pela equipe do Cepin, e divulgadas por meio deste relatrio. Foram convidadas a participar instituies pblicas e privadas, or-ganizaes no governamentais, Pontos de Cultura, associaes e outras entidades que desenvolvem programas de residncia artstica de forma estruturada.

    Essa ao se soma aos esforos contnuos empreendidos pelo Ministrio da Cul-tura de levantar dados e informaes sobre a produo cultural brasileira, a exem-plo do Perfil dos Municpios Brasileiros Cultura, ou Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais, conhecida tambm como MUNIC, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsca (IBGE), em 2006, e o Anurio Estatstico da Cultura 2009, realizado pelo Ministrio da Cultura.

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    Delimitao do campo

    Apesar de experincias esparsas desde o perodo modernista, como a clebre Casa de Paschoal Carlos Magno e a Aldeia de Arcozelo22 , no Estado do Rio de Janeiro, as residncias artsticas so um fenmeno relativamente recente no campo da produo cultural. Estima-se que os formatos contemporneos de re-sidncias tenham se moldado no Brasil em meados dos anos 90, culminando em uma acentuada expanso nos ltimos anos. No exterior, especialmente na Euro-pa, observa-se um crescimento expressivo na ltima dcada das instituies que promovem o intercmbio entre linguagens, artistas, metodologias e prticas.

    Diversas atividades culturais podem ser concebidas no mbito de uma resi-dncia artstica. Segundo Moraes estas representariam a necessidade de buscar maneiras de experimentar e vivenciar o mundo em que nos relacionamos, mar-cado pela mobilidade, globalizao e afirmao do lugar como forma de marcar esta transitoriedade23. Ao mesmo tempo seria como nova forma de insero no circuito artstico, oferecendo novos espaos de formao, criao, produo, difuso e reflexo no campo da cultura24.

    Para este mapeamento, so relevantes especialmente as residncias estrutura-das em torno de programas, o que implica em atividades organizadas a partir de um esquema especfico de gesto, envolvendo espaos, metodologias, recortes temporais e atores sociais, resultando em obras de arte, produtos culturais, pro-cessos, vivncias, aprendizados ou trocas simblicas. Para isso, no obrigatrio que os organizadores tenham sede prpria, mas se relacionem com espaos de criao ou pesquisa, esquemas de produo ou diviso de tarefas, permuta de servios e, possivelmente, programao de encontros com outros agentes cultu-rais ou pblico amplo.

    Inicialmente, possvel observar trs formas bsicas de organizao de resi-dncias artsticas. O primeiro so espaos de criao e pesquisa com a finalida-de especfica de sediar residncias artsticas, em especial voltadas ao segmento

    22 A Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes - RJ, que hoje pertence Funarte, foi inaugurada por Paschoal Carlos Magno, em 1965, para ser um lugar onde jovens e artistas de todo o pas pudessem desfrutar de todas as formas de criao e expres-so artstica. As instalaes contavam com dois grandes teatros, sendo um ao ar livre e outro com palco fechado, sala de Msica, espaos para as artes plsticas, galerias, sala de vdeo, biblioteca, coreto, alm do edifcio colonial, com 54 quartos, sales e varanda. Fonte: Brasil Memria das Artes/Funarte, em http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes23 MORAES, Marcos Jos Santos. Tese de doutorado Residncia artstica: ambientes de formao, criao e difuso apresentada ao Programa de Ps-graduao da Universidade de So Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, So Paulo, 2009. Disponvel em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16136/tde-29042010-24 VASCONCELOS, Ana. Residncias artsticas como