manuel antóniopina1

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Page 1: Manuel antóniopina1
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Page 3: Manuel antóniopina1

Nasci numa terra com um grande castelo, nas margens de um rio onde, no Verão, passeávamos de barco e nadávamos nus. Chama-se Sabugal e fica na Beira Alta, perto da fronteira com Espanha. Quando era pequeno, olhava para o mapa e pensava que, por um centímetro, tinha nascido em Espanha.

Mais tarde descobri que as fronteiras são linhas inventadas que só existem nos mapas. E que o Mundo é só um e não tem linhas a separar uns países dos outros a não ser dentro da cabeça das pessoas.

Page 4: Manuel antóniopina1

A verdade é que, por causa da profissão de meu pai, vivi (depois de ter nascido, antes não me lembro…) em muitas diferentes terras e, por isso, não tenho só uma terra, tenho muitas. Uma delas é o Porto, onde vivi mais tempo do que em qualquer outra, onde nasceram as minhas filhas e onde provavelmente morrerei um dia.

Como fui durante muitos anos jornalista, mais de trinta, viajei um pouco por todo o Mundo, da América ao Japão, da China ao Brasil, da África ao Alaska. E como sou escritor tenho viajado também por dentro de mim mesmo. E por dentro das palavras.

Page 5: Manuel antóniopina1

Assim, apesar de ter nascido numa terra com um grande castelo, nas margens de um pequeno rio, não pertenço a lugar nenhum, ou pertenço a muitos lugares ao mesmo tempo. Alguns desses lugares só existem na minha imaginação. Porque a imaginação, descobri-o também, é o modo mais fantástico que há de viajar.

De facto, os lugares mais distantes e mais belos onde eu alguma vez estive não vêm nos mapas. Quando tinha a tua idade, viajei pelo fundo dos mares, e desci ao centro da Terra, e fui à Lua, e aos pólos, e ao passado, e ao futuro, dentro dos livros de Júlio Verne, de Jack London, de Emílio Salgari. À noite, quando todos se iam deitar e a casa silenciosamente adormecia, partia eu para as mais emocionantes aventuras, às vezes só regressando já de madrugada.

Page 6: Manuel antóniopina1

Combati nos mares do Sul contra piratas e

flibusteiros ao lado de Sandokan; persegui

Moby Dick, a baleia branca, no tempestuoso

barco do Capitão Acab; desci o Mississipi na

jangada de Huckleberry Finn; cacei búfalos

nas imensas pradarias do Oeste; e, com

Tintin fui preso e condenado à morte em

Chicago, na China, nos Andes, e salvei-me

sempre no último momento, e com ele e com

o Capitão Haddock, e com a cadela Milou,

perdi-me nas neves do Tibet e nos desertos

da Arábia, e fui à Lua e voltei…

Page 7: Manuel antóniopina1

Como vês, tenho tido uma vida emocionante

e aventurosa. Hoje lembro-me das grandes

viagens e das aventuras que todas as noites

começavam no meu quarto e tenho medo de

não ser já capaz de vencer tantos perigos e

tantas emoções. De qualquer maneira,

continuo a ter livros na mesa de cabeceira, e

quando saio de casa gosto sempre de levar

um comigo. Porque me pode apetecer voltar

a partir…

Page 8: Manuel antóniopina1

Nasceu em 1943, no Sabugal, Beira Alta;

Licenciou-se em direito, na Universidade de

Coimbra;

Foi jornalista e escritor com obras no campo da

poesia, da literatura infantojuvenil, do teatro e

também da crónica.

Está traduzido em várias línguas;

Recebeu variados prémios, entre eles, o

prestigiado prémio Camões, em 2011;

Faleceu no Porto em 19 de outubro de 2012,

com 68 anos de idade.

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OS GATOS

Há um deus único e secreto em cada gato inconcreto governando um mundo efémero onde estamos de passagem Um deus que nos hospeda nos seus vastos aposentos de nervos, ausências, pressentimentos, e de longe nos observa Somos intrusos, bárbaros amigáveis, e compassivo o deus permite que o sirvamos e a ilusão de que o tocamos

Page 11: Manuel antóniopina1

É então isto um livro,

este, como dizer?, murmúrio,

este rosto virado para dentro de

alguma coisa escura que ainda não existe

que, se uma mão subitamente

inocente a toca,

se abre desamparadamente

como uma boca

falando com a nossa voz?

É isto um livro,

esta espécie de coração (o nosso coração)

dizendo “eu” entre nós e nós?

Page 12: Manuel antóniopina1

A Ana tinha um ioiô muito bonito

Que fazia tudo tudo o que ela queria

Quando ela dizia “para cima” o ioiô ia para baixo

Quando ela dizia “para baixo” o ioiô ia para cima

Como gostava muito muito daquele ioiô

A Ana fazia de conta que não percebia

Para o ioiô ir para cima dizia “para baixo”

Para o ioiô ir para baixo dizia “para cima”.

E como o ioiô gostava muito muito da Ana

Era o ioiô mais obediente que havia

Quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo

Quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima.

Page 13: Manuel antóniopina1

Sou o pássaro que canta

dentro da tua cabeça,

que canta na tua garganta,

que canta onde lhe apeteça.

Sou o pássaro que voa

dentro do teu coração

e do de qualquer pessoa

(mesmo as que julgas que não).

Sou o pássaro da imaginação

que voa até na prisão

e canta por tudo e por nada

mesmo com a boca fechada.

E esta é a canção sem razão

que não serve para mais nada

senão para ser cantada

quando os amigos se vão

e ficas de novo sozinho

na solidão que começa

apenas com o passarinho

dentro da tua cabeça.

Page 14: Manuel antóniopina1

No Meio da Floresta

Havia uma adivinha

Quem a adivinhava voltava para casa,

Quem não a adivinhava nunca mais

vinha.

A Sara gostava muito da casa

Mas gostava ainda mais de adivinhas

Meteu-se pela Floresta sem nenhum

receio

E só parou mesmo no Meio.

Vê se és capaz de adivinhar esta

-Disse o Homem mau, dono da Floresta-

Adivinha se vais voltar para casa ou não,

se vais ficar Aqui para sempre presa ao

chão

A Sara também gostava muito das árvores

Mas não queria ficar Ali para sempre a

arborizar!

Antes queria ser menina, e falar, e andar,

E ter pernas soltas para saltar.

Se dissesse que ia voltar para casa

O Homem mau dizia-lhe que não

Que ia ficar Ali presa na Floresta,

E ela ficava mesmo, porque não tinha

Adivinhado a adivinha.

Vais prender-me – disse então a Sara

E o Homem Mau

ficou muito atrapalhado com a resposta.

Porque, se a prendesse, ela adivinhava e

tinha que ir para casa

Mas, se fosse para casa, não tinha

adivinhado, e devia ficar presa.

(…)

Page 15: Manuel antóniopina1

Como quem, vindo de países distantes fora de

si, chega finalmente aonde sempre esteve

e encontra tudo no seu lugar,

o passado no passado, o presente no presente,

assim chega o viajante à tardia idade

em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa

e deita-se pela primeira vez na sua cama.

Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,

cidades, estações do ano.

E come agora por fim um pão primeiro

sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

O ar não se vê

não se sente não se ouve

mas quanto mais se sobe

mais não sei quê

E quando se sobe

sem sair do chão?

quando a cabeça se move

e o resto do corpo não?

A cabeça subindo

pelo lado de dentro

e o teu pensamento

tão limpo e tão lindo

Tão maravilhoso

como o dum matemático

tão rigoroso

como o dum mágico

Embora às vezes não pareça

embora te digam que não

tens um campo de aviação

dentro da tua cabeça.

Page 16: Manuel antóniopina1

Era uma vez um menino...

que não queria comer sopa de letras.

Podiam lá estar coisas bonitas escritas,

mas para ele era tudo tretas...

Podia lá estar escrito COMER,

podia lá estar GOIABADA,

Como ele não sabia ler,

a sopa não lhe sabia a nada.

Tinha no prato uma FLOR,

um NAVIO na colher,

comia coisas lindíssimas

sem saber mas ele queria lá saber!

Até que um amigo com todas as letras lhe ensinou a soletrar a sopa.

E ele passou a ler a sopa toda.

E até o peixe, a carne, a sobremesa, etc....

Page 17: Manuel antóniopina1

As coisas melhores são feitas no ar,

andar nas nuvens, devanear,

voar, sonhar, falar no ar,

fazer castelos no ar

e ir lá para dentro morar,

ou então estar em qualquer sítio só a estar,

a respiração a respirar,

o coração a pulsar,

o sangue a sangrar,

a imaginação a imaginar,

os olhos a olhar

(embora sem ver),

e ficar muito quietinho a ser,

os tecidos a tecer,

os cabelos a crescer.

E isso tudo a saber

que isto tudo está a acontecer!

As coisas melhores são de ar

só é preciso abrir os olhos e olhar,

basta respirar.

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A Ana quer nunca ter saído da barriga da mãe. Cá fora está-se bem mas na barriga também era divertido. O coração ali à mão, os pulmões ali ao pé, ver como a mãe é do lado que não se vê. O que a Ana mais quer ser quando for grande e crescer é ser outra vez pequena: não ter nada que fazer senão ser pequena e crescer e de vez em quando nascer e voltar a desnascer.

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Pensar de pernas para o ar é uma grande maneira de pensar com toda gente a pensar como toda a gente ninguém pensava nada diferente. Que bom é pensar em outras coisas e olhar para as coisas noutra posição as coisa sérias que cómicas que são com o céu para baixo e para cima o chão.

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Parece que crescemos mas não. Somos sempre do mesmo tamanho. As coisas que à volta estão é que mudam de tamanho.

Parece que crescemos mas não crescemos. São as coisas grandes que há, o amor que há, a alegria que há, que estão a ficar mais pequenos.

Ficam de nós tão distantes que às vezes já mal os vemos. Por isso parece que crescemos e que somos maiores que dantes.

Mas somos sempre como dantes. Talvez até mais pequenos quando o amor e o resto estão tão distantes que nem vemos como estão distantes. Então julgamos que somos grandes.

E já nem isso compreendemos.

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Era uma vez um menino que tinha um defeito de pronúncia. Não era capaz de

dizer tê: dizia quê. Trocava o tê pelo quê. Trocava o têpluquê. Em vez de

dizer tasa, como toda a gente, dizia casa; em vez de dizer tão, dizia cão; em

vez de dizer tapete, dizia carpete (às vezes deixava uns tês para trás, deixava

uns quês para crás). E assim por diante: em vez de dizer tábua, dizia cábula;

em vez de dizer tu, dizia rabo; em vez de dizer Tomé, dizia Comé; em vez de

dizer taxímetro, dizia caxímetro, etc. (em vez de dizer etc., dizia ecc.).

Esta história (em vez de dizer esta história, dizia esca escória) tem uma moral,

é das que têm moral: todos os defeitos de pronúncia (como os outros defeitos

todos, há uma história para cada defeito) têm também virtudes de pronúncia,

senão eram defeitos perfeitos. Ao menino, como a toda a gente que tem

defeitos de pronúncia, ENTARAMELAVA-SE-LHE a língua; este menino tinha

sorte porque, como as letras do defeito dele eram o tê e o quê, a

língua ENCARAMELAVA-SE-LHE e o menino gostava muito (goscava muico)

(…)

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Gigões são anantes muito grandes.

Anantes são gigões muito pequenos.

Os gigões diferem dos anantes porque uns são um bocado mais,

outros são um bocado menos.

Era uma vez um gigão tão grande, tão grande,que não cabia. –

Em quê? – O gigão era tão grande que nem se sabia em que é

que ele não cabia!

Mas havia um anante ainda maior que o gigão, e esse nem se

sabia se ele cabia ou não.

Só havia uma maneira de os distinguir: era chegar ao pé deles e

perguntar:

- Mas eram tão grandes que não se podia lá chegar!

- E nunca se sabia se estavam a mentir!

Então a Ana como não podia resolver o problema arranjou uma

teoria: xixanava com eles e o que ficava xubiante ou

ximbimpante era o gigão, e o anante fingia que não.

A teoria nunca falhava porque era toda com palavras que só a

Ana sabia.

E como eram palavras de toda a confiança só queriam dizer o

que a Ana queria (…).

Page 23: Manuel antóniopina1

Um escaravelho da batata chamado Bocage queria atravessar a rua para ir ao

outro lado da rua pôr uma carta no correio. Como havia muitos carros, o

escaravelho pediu à Ana que o metesse no bolso e a Ana meteu-o no bolso.

Foram ao outro lado da rua e puseram a carta no correio e voltaram. Então o

escaravelho de repente disse:

- Vou contar-te a história da minha vida.

A Ana ia a dizer qualquer coisa mas o escaravelho não lhe deixou dizer nada e

começou a contar a história da vida dele muito depressa.

-Era uma vez eu… Estás a gostar?

-Estou – disse a Ana.

-Então está calada e ouve – disse ele. – Quando eu nasci, era pequeno. Toda a

gente é assim, menos os elefantes gigantes, que já nascem como são e depois

ainda ficam maiores. Continuas a gostar?

A Ana disse que sim com a cabeça, mas o escaravelho não ficou muito satisfeito

com a resposta.

-Estás a gostar ou não? Respondes ou não? Então, não respondes?

-Não! – disse a Ana

-Não, o quê – disse o escaravelho.

-Não respondo – disse a Ana

-Já respondeste – disse o escaravelho – portanto, como estás a gostar, vou

continuar

(…)

Page 24: Manuel antóniopina1

Há muitos anos, num país muito distante vivia um povo infeliz e solitário, vergado sob o peso de uma misteriosa tristeza. O céu era alto e azul, os campos férteis, o mar e os rios cheios de peixe e de vida, as cidades quentes e luminosas, mas as pessoas que passavam entreolhavam-se com olhos tristes, caminhando apressadamente e sumindo-se dentro das casas; e quando se encontravam umas com as outras, nos cafés, nos empregos, na rua, falavam baixo, como se alguma coisa, um segredo terrível, as amedrontasse.

Quem vindo de outras terras, chegava ao País das Pessoas Tristes, não compreendia. As pessoas eram boas e afetuosas e aparentemente só tinham motivos para ser felizes. Mas quando lhes faziam perguntas as pessoas afastavam-se e não respondiam, ou mudavam delicadamente de assunto pedindo desculpa.

Page 25: Manuel antóniopina1

1978 – Prémio de poesia da Casa da Imprensa;

1987 – Prémio Gulbenkian

1988 – Menção do júri do prémio europeu Pierre Paolo da Universidade de Pádua, Itália;

1988 – Prémio do Centro Português para o Teatro para a Infância e Juventude;

1993 – Prémio Nacional de Crónica Press/club

2002 – Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de críticos Literários;

2004 – Prémio da Crónica 2004 da casa da Imprensa;

2005 – Grande Prémio da Poesia da Associação Portuguesa de Escritores;

2010 – Prémio Bissaya Barreto da Literatura para a Infância

2011 – Prémio Camões

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"A atribuição deste Prémio é o reconhecimento da relevância nacional e internacional que a sua obra representa na literatura em língua portuguesa e é, sem dúvida, um motivo de grande orgulho para todos os que apreciam a sua escrita", lê-se numa mensagem do chefe de Estado enviada ao escritor e que foi divulgada no 'site' da Presidência da República.

“É a coisa mais inesperada que poderia esperar“ disse Manuel António Pina quando soube.

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Manuel António Pina adorava gatos;

tinha em casa mais de vinte; uma das suas

preferidas era a gatinha Bé.

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Um dos melhores amigos de Manuel António Pina

era Álvaro Magalhães; este autor escreveu

recentemente um livro com o título “O senhor

Pina”;

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Manuel António Pina trabalhava no

famoso jornal “Jornal de Notícias”, onde

todos os dias assinava, na última página,

uma crónica, apreciada por muitas

pessoas;

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Manuel António Pina chegava sempre atrasado aos

encontros com os amigos. Para o homenagear, os

amigos, recentemente , criaram um clube com o

nome “O clube dos amigos à espera do Pina”.

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Sabem quem era a personagem preferida de

Manuel António Pina?

era… Winnie the pooh! Conhecido

entre nós como sendo o ursinho Puf.

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«Chegou a hora de nos despedirmos do Manuel António Pina. A dor é sempre grande quando morre alguém que brilha no nosso céu. O Pina era a mente mais brilhante que escrevia nas páginas do Jornal de Notícias. Enquanto eu tiver a honra de dirigir este jornal, ninguém mais escreverá opinião neste espaço que era dele mas que ele fazia questão que fosse sempre tão nosso. Obrigado, Pina.

Manuel Tavares» (última página do JN de 20-10-12)

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BIBLIOTECA ESCOLAR

NOVEMBRO DE 2014