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Planejamento e Elaborao de ProjetosUm desafio para a gesto no setor pblico

Jackson De Toni

Porto Alegre, Novembro de 2003

Sobre o autor: Economista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS), Tcnico em Planejamento da Secretaria de Coordenao e Planejamento do Estado do Rio Grande do Sul, Professor do curso de graduao em Economia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e de planejamento estratgico participativo do curso de ps-graduao em Gesto Pblica Participativa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Contato com autor: [email protected]

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ndice analticoPrefcio .....................................................................................................................................................4 Introduo ................................................................................................................................................7

Captulo I As possibilidades de planejamento no Setor Pblico ................................ 121. A experincia brasileira recente .......................................................................................................13 2. Planejamento e gesto do territrio sub-nacional...........................................................................21 3. O Planejamento Pblico nos anos noventa. .....................................................................................26 4. Buscando um novo desenho para o planejamento de governo. .....................................................29 5. Possibilidades de democratizao do planejamento pblico..........................................................39 6. Um Planejamento intensivo em gesto.............................................................................................50 7. A integrao necessria entre Planejamento e Oramento............................................................55

Captulo II Planejamento de novo tipo............................................................................... 601. O marco referencial ...........................................................................................................................64 2. A metodologia proposta.....................................................................................................................71 3. A construo do mtodo: um roteiro de aplicao..........................................................................78 4. Como organizar o planejamento sntese dos procedimentos ....................................................130

Captulo III Elaborao e monitoramento de Projetos.................................................. 1391. O Projeto no contexto do planejamento........................................................................................139 2. O que necessrio para fazer um bom projeto.............................................................................140 3. O ciclo do projeto no marco lgico.................................................................................................147 4. Monitoramento e Avaliao de Projetos........................................................................................157 5. A execuo do Marco Lgico na tica do BID/BIRD ...................................................................167

Capitulo IV Facilitao de grupos e tcnicas de moderao ..................................... 1761. A dinmica de evoluo do grupo...................................................................................................177 2. Tcnicas e dinmica para o trabalho com grupos........................................................................181 3. A importncia da visualizao dos processos ................................................................................186 4. O papel do moderador.....................................................................................................................188

Captulo V O planejamento como modernizao da gesto pblica........................ 1921. A construo da administrao pblica no Brasil: burocracia, insulamento e crise de legitimao............................................................................................................................................192 2. A trajetria do planejamento pblico: desmonte institucional....................................................195 3. A reforma gerencial e as idias fora do lugar................................................................................197 4. A reforma (possvel) entre o hiperativismo decisrio e a paralisia crnica................................199 5. A mudana no paradigma de planejamento..................................................................................203

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6. Um novo modelo de gesto para um planejamento renovado .....................................................208

Concluses............................................................................................................................... 213ANEXO I termos utilizados em projetos e planejamento ................................................................218 ANEXO II Matrizes de Planejamento ...............................................................................................237 ANEXO III Sites indicados .................................................................................................................248 Referncias bibliogrficas ...................................................................................................................250

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Prefcio

O planejamento talvez seja um daqueles assuntos, como o futebol ou a previso do tempo, em que todos se sentem habilitados a dar opinies seguras com enorme convico, todos achamos que entendemos de alguma coisa, ou pensamos entender. Isto no deixa de ser um bom sinal, porque revela um consenso praticamente universal sobre a importncia do tema, com uma boa dose de bom humor, senso comum e expectativas frustradas. Quem j no tentou planejar um empreendimento comercial, uma viagem de frias, o projeto de reforma da casa ou quem sabe a direo de uma organizao pblica ou um projeto de desenvolvimento ? Quem j no planejou mas na hora h no resistiu a pura improvisao? Como em outros temas da vida diria aqui tambm h uma enorme distncia entre o bom senso e a intuio popular e a prtica efetiva e proclamada cientfica das nossas organizaes, particularmente aquelas de natureza pblica e governamental. Infelizmente a histria do planejamento na rea pblica tem ser revelado de um lado a montona repetio de experincias burocrticas e autoritrias, condenadas ao mofo dos arquivos ou esquemas e tcnicas contratadas de consultoria, moda de cada governo, to efmeras e passageiras, no mobilizam uma parte nfima sequer da cultura organizacional pblica, acostumada mais a obedecer ordens superiores que pensar criativamente sobre problemas e estratgias tcno-polticas. Este trabalho representa uma tentativa de lutar contra a corrente e insistir na importncia do planejamento como sinnimo do governar bem, alm disso, governar de forma participativa e democrtica. As reflexes aqui expostas resultam de vrias fontes, da experincia de ensino no curso de Gesto Pblica Participativa da UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) nos anos de 2002 e 2003, alm de conferncias, cursos e intensos debates sobre o tema de planejamento na Secretaria de Estado da Coordenao e Planejamento (SCP) e na Fundao para o Desenvolvimento dos Recursos Humanos (FDRH), ambos ambientes possibilitaram uma frtil troca de opinies sobre o tema.

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Nas prximas pginas h uma tentativa de combinar um tipo de manual de planejamento voltado para a rea pblica e governamental, literatura no encontrada facilmente, com uma fundamentao terica bsica sobre os principais dilemas da modernizao da gesto pblica no Brasil, em particular sobre as experincias recentes desenvolvidas pelo Governo Federal na reformulao do planejamento de longo prazo. A administrao da coisa pblica no objetiva lucro comercial, talvez ele possa ser substitudo pela necessidade de crescente racionalidade do gasto pblico para assegurar nveis de justia social crescentes. Neste aspecto h muitos pontos em comum com o terceiro setor (non profit), por isso os argumentos deste trabalho tambm podem ser aplicados com alguma criatividade adaptativa a esta frente de ativismo social e organizao das polticas pblicas que cresce rapidamente em nosso pas. Agradeo particularmente aos tcnicos da FDRH que neste perodo contriburam com este debate, particularmente Fani A. Tesseler, Daisy Quintana de Aguiar, Nicolas Tato, Aragon Dasso Jr. e Afonso Arajo. Na SCP, sou grato aos Tcnicos em Planejamento do Estado, sempre tensionados entre os imediatismos da micro-poltica e os dilemas da reorganizao do planejamento pblico, especilamente a Rogrio Fialho, Romy Bruxel, Roberto Vieira, Herbert Klarmann, Slvio Reis, Cludio Perrone, Joo Francisco Costa e Paulo Pereira, isentando-os obviamente da responsabilidade pelas opinies emitidas neste trabalho. Devo registrar igualmente meu reconhecimento e gratido a todos aqueles alunos que compartilharam comigo os cursos de Planejamento Estratgico nas turmas I e II do curso de Gesto Pblica Participativa da UERGS (2002 e 2003) e particularmente aos meus alunos de Economia, Cincia Poltica e Servio Social na Universidade Luterana do Brasil, ULBRA, dos cursos de Poltica e Planejamento Econmico, Elaborao de Projetos, Metodologia de Pesquisa e Economia Poltica pelos intensos debates, geradores de idias que contriburam para melhorar a metodologia proposta. Esta obra destina-se no s aos alunos destas disciplinas, mas todos aqueles que por condio profissional ou acadmica trabalham com projetos no setor pblico ou se relacionam com atividades na rea de planejamento em suas organizaes. Enfim, dedica-se a todos que perseguem uma utopia democrtica na gesto pblica, que saiba harmonizar mtodos de gerenciamentos cada vez mais eficazes e profissionais

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com nveis crescentes de autntica particiapao, dos trabalhadores do setor pblico e das populaes beneficiadas pelo seu trabalho. O autor

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Introduo

A maior parte dos governos tem baixa capacidade para governar. Os problemas s so enfrentados quando transformam-se em urgncias na agenda, mas neste ponto os custos da soluo, se houver, so muito mais altos. O processamento poltico dos problemas acontece sem profundidade tcnica, enquanto os processos tcnicos no tm viabilidade poltica. A perda crescente de governabilidade desvaloriza o processo democrtico perante a populao e a democracia padece pelos resultados que promete e no alcana. O cidado, atravs do voto elege ou castiga os dirigentes polticos causadores da sua ltima frustrao, mas no h debate de projetos, nem processo participativo que viabilize formas de organizao popular efetivamente independentes da tutela e do clientelismo estatal. As eleies tornam-se assim uma concorrncia eleitoral entre atores com deficincias mais ou menos semelhantes, embora os discursos e o marketing poltico teime em diferenci-los. A capacidade de ganhar eleies resulta, assim, proporcionalmente na perda de memria do eleitor sobre as ltimas promessas de um candidato, muitas vezes personalista, como a mdia especializada freqentemente chama muito melhor que seu prprio governo!. A presso das circunstncias e os movimentos limitados da conjuntura o limite em que se move a racionalidade dos nossos governos. Os prprios partidos polticos acabam transferindo sua cultura interna, normalmente fragmentada por comunidades temticas e sujeito todo tipo de particularismos, para o comando dos governos, imprimindo um prprio estilo de governar que s aumenta a falta de profissionalismo dos quadros permanentes da burocracia pblica. Infelizmente a maioria dos nossos gestores pblicos, eleitos ou indicados, passam a maior parte do tempo distrados com problemas corriqueiros, no processados tcnica e politicamente, se acomodam s agruras da paisagem poltica e seus problemas aparentemente intransponveis, se especializam no gerenciamento da micro-poltica, emaranhados em rituais e disputas intestinas pela sua prpria sobrevivncia poltica nos aparelhos de poder. Alm disso as assessorias mais prximas cumprem um verdadeiro papel de proteo e blindagem contra as frustraes do mundo real, cercam as lideranas de problemas imaginrios e do conforto que resulta da ignorncia poltica dos problemas reais.

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Num sistema de direo de baixa responsabilidade em direo estratgica ou descentralizao democrtica, a agenda dos dirigentes vitimada pela lgica do carrossel: muitas emergncias do protocolo frio, dos ritos formais do cargo, das rotinas burocrticas que a funo exige ou do simples clientelismo eleitoral, problemas de menor ou maior peso, tudo e todos ficam girando em volta do gabinete, concorrendo indistintamente por um espao na agenda. Trabalha-se muito, aparentemente os dias so curtos e vai-se diariamente at altas horas, mas a sensao ao final de poucos resultados. Alm disso a corrupo e o tecnocratismo, entre outras patologias de governos com baixa capacidade, no so mais do que sub-produtos detes ambiente, sem controle social democrtico ou com formas manipulatrias de participao, nem gesto criativas de problemas reais. Como superar esta baixa capacidade para governar ? Como conquistar viabilidade para projetos pblicos e coletivos que so exigentes em recursos polticos ? Como melhorar a governabilidade das instituies de natureza pblica ? Como mudar a mentalidade tecnocrtica e excludente da cultura organizacional tradicional ? Como vencer o economicismo arrogante dos planejadores convencionais ? Como construir viabilidade poltica estratgia para projetos sem fazer parte da barganha espria do clientelismo partidrio ? Muitas perguntas sem respostas. Este livro se prope a problematizar a gesto pblica como ela praticada no Brasil a partir destas perguntas, mais com o olhar comprometido e interessado de quem participa deste jogo como parte da burocracia permanente do Estado e menos talvez com o olhar de um pesquisador fora do jogo, com a frieza assptica e distante da cena dos acontecimentos. O captulo I investiga as possibilidades de planejamento no setor pblico a partir da contextualizao do que se convencionou chamar a crise do planejamento, termo comum na literatura especializada nos anos oitenta e noventa. O objetivo demonstrar que a crise de planejamento governamental estava associada crise de um padro de financiamento do gasto pblico e transio democrtica inacabada. Um modelo de planejamento entrou em crise efetivamente, mas o prprio conceito de planejamento precisa ser reconceitualizado para poder sobreviver como ferramenta efetiva para governar bem, para aumentar a capacidade de governo. Este modelo se apoia nas formulaes originais de Carlos Matus, economista chileno, sobre a necessidade de um

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novo tipo de planejamento estratgico, flexvel, que incorpore a incerteza como varivel gentica para o mtodo de planejamento como uma aposta que precede e preside a ao governamental. O captulo II apresenta a construo metodolgica do planejamento estratgico voltado especialmente para aqueles ambientes que exigem mediao poltica constante, concertao entre interesses divergentes e que esto submetidos lgica do provimento de bens e servios pblicos, isto , para ambientes de construo e implementao de polticas pblicas. Portanto a metodologia proposta inspira-se na necessidade de aumentar a capacidade resolutiva da ao de governo e dos projetos pblicos. Trata-se de uma ferramenta que procura-se construir atravs e com a participao dos atores envolvidos, especialmente os funcionrios e trabalhadores das organizaes pblicas, no porque isto represente maior probabilidade de eficcia ou eficincia gerencial, mas sobretudo porque a perspectiva de planejamento aqui apresentada pretende-se tambm um instrumento de incluso poltica, de afirmao da cidadania e de regenerao institucional do setor pblico sobrevivente a quase uma dcada de polticas privatizantes que desmoralizaram a prpria condio do servidor pblico. Portanto, no prope-se um mtodo de planejamento estratgico meramente adaptativo da literatura empresarial ou corporativa, que trabalha com outra lgica e outros objetivos, tampouco um conjunto de tcnicas de organizao e mtodos, o objetivo contribuir para um novo paradigma de organizao do setor pblico, um paradigma baseado na democracia participativa. O captulo III dedicado abordagem do Projeto como categoria central do planejamento, seu desenho, constituio, caractersticas e monitoramento. O projeto demonstra a materializao da vontade de ao do gestor, o emblema mais potente da direcionalidade do governo e de um programa, sinaliza com maior fora o sentido do governo e para onde ele caminha. O projeto parte do plano, mas se projeto alm do plano porque cria novas institucionalidades, gera novos patamares de problemas e solues na esfera pblica, demanda recursos, mas gera novas oportunidades no seu prprio desenvolvimento. O captulo IV debate a necessidade que o gestor pblico tem em dominar um conjunto de ferramentas e instrumentos necessrios moderao e facilitao de grupos. O

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domnio de uma tcnica de planejamento e mesmo a cincia de um referencial conceitual bem fundamentado sobre o paradigma democrtico s se realizam efetivamente na relao diria com outros indivduos no cotidiano das organizaes. Da a importncia de discutir numa obra sobre planejamento, governo e servio pblico, um conjunto de processos que envolvem a liderana individual, o manejo de situaes de conflito, o desenvolvimento de habilidades para a participao e incluso, a utilizao de tcnicas e instrumentos de trabalho em grupo. Mas sobretudo tenta-se organizar argumentos para a fundamentao das relaes interpessoais na construo coletiva e na tolerncia divergncia como requisitos imprescindveis renovao democrtica das organizaes pblicas. O captulo V finaliza com a proposio de um debate sobre a gesto pblica brasileira contempornea a partir da crtica aos principais dilemas da chamada escola gerencial de gesto pblica, que inspirou as ltimas duas administraes federais, fazendo eco local s mesmas tendncias verificadas na administrao pblica de diversos pases desenvolvidos. No faz sentido criticar in totum a experincia de reforma do Estado tal como foi executada nos ltimo anos. H elementos positivos que reforaram a transparncia e o controle pblico (accountability), mas o modelo de planejamento subjacente a este conjunto de princpios adaptados da micro-economia ainda padece de enormes lacunas relacionadas s deficincias normativas e metodolgica abordadas nesta seo do trabalho. A concluso aponta a necessidade, mais do que a possibilidade histrica, de retomada do planejamento governamental, em todas as esferas onde o setor pblico se organiza para garantir a produo direta ou o provimento de bens e servios essenciais reproduo social e ao desenvolvimento econmico e social. A estabilidade econmica e a necessidade de retomada do desenvolvimento, a gerao de grandes consensos polticos que renovam o papel do Estado e o imperativo de combate s desigualdades sociais e regionais - aps duas dcadas de predomnio das polticas liberais progressivamente viabilizam a redescoberta do planejamento pblico. A retomada do planejamento de estilo cepalino no contexto do desenvolvimentismo bastardo j no mais possvel, o Estado mudou e a sociedade brasileira tambm. Por outro lado, adotar mimeticamente os paradigmas metodolgicos empregados em empresas privadas, sob

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o primado terico do enfoque da economia neoclssica de fato abandonar a perspectiva do planejamento como instrumento de construo dos consensos polticos universais. H que se construir uma novo enfoque metodolgico que sirva a um s tempo para justificar a democratizao do modelo gerencial pblico e aumente substancialmente nossa capacidade de governar, para o bem de nossa democracia.

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Captulo I As possibilidades de planejamento no Setor Pblico...o congelamento da minha forma de conhecer corre paralelamente estagnao dos conceitos que manejo. Se durante 25 anos no pude renovar minha teoria de planejamento, isso deve-se ao fato de no ter podido ampliar o vocabulrio da teoria social atravs da qual me aproximo do mundo...se fixo minha capacidade de conhecer o mundo, congelo meu vocabulrio, se congelo meu vocabulrio, fixo minha capacidade de conhecer o mundo...o mundo dos homens do tamanho do seu vocabulrio, dos conceitos que conhece.... C. Matus, Adeus, Senhor Presidente

A tradio patrimonialista do Estado brasileiro engendrou uma cultura de planejamento no setor pblico marcada pelo domnio normativo da cincia econmica e particularmente da subordinao execuo de polticas macroeconmicas, monetria, cambial, salarial ou de rendas. A conjuntura dos anos oitenta apresentou elementos significativos de questionamento desta prtica terica, enquanto a crise fiscal limitava o uso e eficcia dos instrumentos da poltica econmica, a crise de representao agia questionando a legitimidade e o protagonismo dos planos e projetos de corte estatal ou com o vis conservador do sistema poltico ainda numa transio democrtica inconclusa. A primeira parte deste captulo objetiva descrever criticamente os limites do processo de planejamento pblico entendido como planejamento das polticas econmicas e sua influncia por efeito-demonstrao na cultura de planejamento das demais polticas pblicas. Na segunda parte o captulo se organiza a partir de duas direes. Uma primeira apontando os paradigmas de um planejamento pblico de novo tipo, intensivo em gesto, incorporando endogenamente a dimenso poltica na produo de projetos e programas pblicos. O outro objetivo sinalizar a possibilidade metodolgica de inovao no paradigma de planejamento pblico atravs da qualificao e aprimoramento dos processos massivos de participao, em especial o debate sobre a pea oramentria que dispe sobre a alocao dos fundos pblicos.

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1. A experincia brasileira recente

Na tradio da economia o abandono do laissez-faire est vinculado cincia de que a flexibilidade de preos no conduz automaticamente ao pleno emprego. A crtica ao timo paretiano1 a viso clssica implicava em assumir que os preos, num mercado no-competitivo, no serviam mais como alocadores timos das foras produtivas2. Com o fim das hipteses sobre concorrncia perfeita, a percepo crescente da influncia de externalidades (transbordamentos da atividade econmica no captados pelos preos) e o conceito de escala, a teoria econmica foi construindo os instrumentos necessrios para justificar e legitimar o planejamento econmico em sociedades capitalistas. Na maioria das experincias de planejamento econmico fixase metas para a renda per capita ou crescimento do PIB, estima-se a evoluo da demanda e projeta-se o crescimento setorial necessrio. Para isso so usados funes matemticas especializadas, modelos economtricos diversos (como a matriz de insumo-produto) e outros instrumentos basicamente quantitativos e de natureza determinstica.3 No Brasil, o movimento conhecido como a Revoluo de 30 transio de uma sociedade oligrquica-exportadora para outra do tipo urbana-industrial pode ser

Situao de mxima satisfao dos consumidores e de eficincia produtiva, ningum pode melhorar de posio sem piorar a dos demais.2

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Na teoria econmica a justificativa para a interveno e regulao dos servios pblicos (seja no provimento ou na produo direta destes) encontra-se na chamada teoria das falhas do mercado, isto , nas situaes em que a oferta de bens e servios pblicos, se submetida apenas aos incentivos tpicos do mercado privado, ficaria abaixo da oferta socialmente tima. Os bens pblicos possuem um consumo no-rival e produzem externalidades positivas, alm de sinalizarem investimentos de capital irrecupervel (custos irreversveis) e muitos tm monoplio natural, assim a histria do planejamento pblico est associada forma de organizao pblica para fornecimento de bens e servios como as estradas, infraestrutura energtica, telecomunicaes, transportes, etc...As formas de regulao que vo variar em cada contexto histrico, atualmente a flexibilidade e a desregulamentao depois de uma fase de expanso esto retrocedendo para permitir a retomada de controles estatais mais diretos sobre servios essenciais. Nos pases de tradio capitalista a adoo do planejamento (econmico) iniciou com o Plano Marshall (1947-1952) para reconstruo da Europa, o Comissariat au Plan na experincia francesa dos anos cinqunta e da criao da Comisso Econmica para a Amrica Latina no mesmo perodo. A Aliana para o Progresso no governo Kennedy, inspirada no sucesso do Plano Marshall, disseminou tambm prticas de planejamento econmico (para o desenvolvimento) nos anos sessenta.

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considerado como o incio da incorporao do planejamento como uma funo pblica moderna. Do prprio movimento consolida-se a idia entre as elites do conceito de Estado como o nico ente capaz de superar os particularismos de uma sociedade desagregada, subdesenvolvida e marginalizada. Porm, desde j, o regime resultante no ser o democrtico, o Estado assumir feies bonapartistas, constitudo num complexo e sutil mecanismo poltico e social de controle sobre as massas emergentes. Estas duas caractersticas, a bifrontalidade a sedimentao passiva foram construdas desde os reformas da Revoluo de Trinta e perduram como marcas genticas do Estado brasileiro. Conforme Nogueira, Disso resultou um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas diversas camadas constitutivas superpostas por sedimentao passiva -, acabam por alimentar a formao de uma macroceflica bifrontalidade: ligadas aos mltiplos interesses societais por inmeros e muitas vezes invisveis fios, duas avantajadas cabeas uma racional-legal, outra patrimonialista iriam se comunicar e se interpenetrar funcionalmente em clima de recproca competio e hostilidade, impedindo a imposio categrica de uma sobre a outra, retirando coordenao do todo e fragilizando o comando sobre as diversas partes do corpo estatal. Do imprio ...aos anos 30, da democracia populista ao regime militar autoritrio, essa seria uma componente ineliminvel do Estado Brasileiro (1998, p. 93) Foi no contexto do ps-guerra, entretanto, que o planejamento se consolida como um procedimento comum de governo, uma prtica universalmente aceita vinculada necessidade de racionalizao permanente dos servios e da mquina pblica. O planejamento como organizador da ao pblica nasce, assim, da necessidade permanente de suporte e estmulo atividade econmica privada. A soluo de problemas tais como o estmulo aos setores econmicos, a formalizao do mercado de fatores de produo no pas ou o controle das relaes sociais de produo j constituam tema de debate no governo Campos Salles (1898 1902). Na possvel funo mediadora dos conflitos (reguladora das tenses dos conflitos intercapitalistas e compensatria das falhas de mercado) se consolida a viso de

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planejamento no perodo. Em 1942 foi criada, ento, a Coordenao de Mobilizao Econmica e o Setor de Produo Industrial com o objetivo expresso de elaborar o planejamento industrial do Pas, situao em que se consolida na estrutura administrativa a funo do planejamento como instrumento estatal de organizao social e econmica. Conforme Ianni (1986) a trajetria do desenvolvimento brasileiro sempre foi submetida a duas grande macro-tendncias, a crescente participao estatal na economia e uma poltica econmica planejada ou voltada para objetivos de estabilizao macroeconmica. Nas estratgias gerais de construo de um modelo de desenvolvimento para o pas o conceito de planejamento sempre foi associado ao de organizao e disputa das relaes de poder, por dentro e por fora do Estado. Nas palavras de Ianni. No h dvida de que o planejamento governamental discutido aqui compreende, sempre e necessariamente (ainda que em graus variveis), condies e objetivos econmicos, sociais, polticas e administrativos. Entretanto, as duas faces conexas do planejamento so a estrutura econmica e a estrutura de poder. Mas os planejadores no tratam, em geral, seno das relaes e processos relativos estrutura econmica. Alis pode-se dizer que, em ltima instncia, o planejamento um processo que comea e termina no mbito das relaes e estruturas de poder (Ianni, 1986, p.309) Deste perodo histrico anterior ao fim dos governos militares os maiores processos de planejamento estatal so caracterizados pelos planos de vis tipicamente macroeconmico com objetivos centrados no desenvolvimento e mais recentemente na estabilizao monetria e fiscal4. No perodo que vai do ps-guerra at o fim do regime militar com certeza o processo mais significativo de planejamento estatal foi a elaborao do Plano de Metas (19561961) no governo Kubitschek. Pelo menos trs fatores fizeram deste processo um ponto notvel: (a) estabilidade institucional e contexto democrtico favorecendo a participao, (b) amplo consenso sobre o tema do desenvolvimento nacional e (c)

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Alguns exemplos so o Plano SALTE (1948), o Plano Trienal (1963) e os PNDs (1972 e 1974).

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acertos de poltica externa e interna viabilizando recursos econmicos. Segundo Nunes (1999) o governo JK foi um governo notabilizado pelo sincretismo poltico, garantindo a permanncia de uma coalizo partidria durante todo o mandato que comeava no PTB de Joo Goulart e o controle do Ministrio do Trabalho, passando pelo PSD dele mesmo, com fortes vnculos rurais at o apoio parlamentar da UDN. Esta estratgia poltica, flexvel, por vezes dbia, apoiada na fragilidade da estrutura partidria garantiu viabilidade para o plano. Nas palavras de Nunes (1999): ao mesmo tempo que se apoiava nas agncias insuladas para realizar as tarefas do desenvolvimento, Juscelino utilizava a poltica tradicional de empreguismo para consolidar apoio poltico: protegia as agncias insuladas e lhes garantia acesso aos recursos, enquanto geria o resto do sistema poltico de modo a reduzir potenciais contestaes s metas desenvolvimentistas e s suas formas de alcan-las (Nunes, 1999, p 112). JK optou por montar uma rede de rgos paralelos administrao direta, com base na avaliao de que executar uma reforma administrativa seria custoso demais (Lafer, 1997). A capacidade de governo repousava, basicamente, na natureza gil e flexvel da estrutura administrativa (as ilhas de eficcia), na autonomia financeira e oramentria dos rgos envolvidos na execuo das metas setoriais5

e na neutralizao da

interferncia parlamentar no processo. Nos anos oitenta e noventa o Plano Cruzado (1986), o Plano Bresser (1987), o Plano Vero (1989), o Plano Collor (1990) e o Plano Real (1994) foram notabilizados muito mais por representarem medidas fiscais e monetrias-cambiais de combate imediato inflao com metas quantitativas mais ou menos definidas - do que profundos processos de planejamento econmico onde o foco central poderia ser a (re)construo de medidas estruturantes de um modelo econmico ou de um projeto alternativo de nao. Pode-se seguramente, sem a pretenso de esgotar um tema que se confunde com a prpria formao do Estado no Brasil, apontar alguns elementos de sntese que servem

Nunes (op.cit.) denomina de insulamento burocrtico o processo de proteo do ncleo tcnico do Estado contra as interferncias externas (dos atores polticos, p.ex.). A informao super-valorizada, o ambiente de trabalho complexo e a arena de disputas e acesso das demandas populares controlada. O insulamento burocrtico associado ao universalismo de procedimentos seriam o contrapeso para outras duas gramticas do Estado brasileiro, o clientelismo e o corporativismo.

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para organizar o debate sobre as alternativas possveis ao planejamento democrtico e participativo no setor pblico. O planejamento pblico tem sido ao longo da tortuosa construo do Estado brasileiro fundamentalmente normativo e linear na sua concepo terica e metodolgica de aplicao. Quase todo ele inspirado e nucleado por problemas de inspirao no campo da macroeconomia. Reduzir o planejamento pblico a um conjunto de tcnicas de racionalizao ou de alocao econmica foi o resultado mais visvel deste perodo. Segundo Garcia (2000) os anos de autoritarismo e economicismo deixaram marcas profundas inclusive na Constituio Federal de 1988: ...A Constituinte...no consegue superar a concepo normativa e reducionista do planejamento governamental herdada dos militares e seus tecnocratas...mesmo com a democratizao do pas; com a poltica a ganhar espao e importncia, com a multiplicao dos atores sociais, com o ritmo de produo e difuso das inovaes tecnolgicas acelerando-se; com o conhecimento e a informao conquistando relevncia; com a comunicao ascendendo condio de recurso de poder e integrao; e com a clara percepo de que se ingressara em uma poca de rpida mudana de valores culturais; ainda assim, o planejamento governamental foi concebido sob um enfoque normativo e economicista. (Garcia, 2000, p. 8) As snteses possveis que resumem a construo do planejamento como procedimento pblico at a transio para a democracia nos anos oitenta poderiam ser resumidas nos seguintes pontos: (1) O planejamento subordinado a uma tica reducionista do ponto de vista terico que o limita ao manejo e operao de ferramentas de organizao estatal e/ou regulao de mercados privados ou setores sob concesso federal ou estadual. Os exemplos mais ntidos deste enquadramento terico a confuso comum entre o conceito de planejamento no setor pblico com tcnicas de racionalizao de trabalho ou processos produtivos, com o simples uso de ferramentas gerenciais ou tcnicas de organizao & mtodos transplantadas para a rea pblica.

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O vis econmico-normativo praticamente organiza todo processo de planejamento6. Apesar da ampliao das funes do IPEA nos anos oitenta e da criao de uma Secretaria de Planejamento e Coordenao vinculada diretamente ao centro poltico do governo federal (Presidncia da Repblica), o tema permanece fortemente vinculado racionalidade econmica e corporativamente atrelado ao quadro e as carreiras dos profissionais de economia. Os traos desta caracterstica podem ser identificados em todos os planos de estabilizao e crescimento Econmico (planos Salte, Trienal, PAEG, PNDs, etc...) e na limitao da atividade burocrtica (produo de poltica pblica) confeco da pea oramentria anual, sendo esta, profundamente normativa e formal. O antigo Oramento Plurianual de Investimentos (Lei 4.320/64 e Constituio de 1967) foi praticamente a nica estratgia de concretizao e materialidade do processo de planejamento estratgico pblico.

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O planejamento no setor pblico, como de resto as demais polticas pblicas tm a marca gentica da excluso, da no-participao e da ausncia absoluta de controle social sobre seus meios e fins. A nossa cultura poltica impregnada de golpismos e prticas autoritrias que se expressam na cidadania restringida e regulada, na fragmentao do aparelho de Estado e no enorme fosso que separa sociedade civil da sociedade poltica fez das prticas de planejamento reduto inatingvel aos grupos organizados ou aos simples cidados. O economicismo, a ausncia de metodologias mais flexveis, o jargo tecnicista em muito contriburam para excluir qualquer possibilidade participativa na prtica de planejamento pblico, mesmo

A tradio metodolgica convencional da economia supe a noo de que existe uma simetria perfeita e lgica entre previso e explicao, a chamada tese da simetria (criticada por Blaug, Metodologia da Economia, EDUSP, 1999), uma racionalidade direta entre causa e efeito, como se a teoria econmica fosse no fundo uma especie de filosofia matmtica . O determinismo formal e positivista desta tradio, tributria do paradigma neoclssico, o grande responsvel pela teora do planejamento como a criticada neste trabalho.

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naquele estritamente vinculado ao tema urbano-espacial na esfera municipal7. Esta tradio na verdade no surge nos anos oitenta, mas na longa relao de cooperao internacional para o desenvolvimento fomentada desde o ps-guerra e especialmente no final dos anos cinqenta entre agncias americanas, especialmente, e a burocracia pblica dos governos latino-americanos. Como diz Mattos (IPEACENDEC, 1986), estabeleceu-se uma verdadeira ortodoxia latino-americana de planejamento marcada pelo voluntarismo utpico baseado na ideologia desenvolvimentista dos tcnicos em planejamento, no reducionismo econmico e no formalismo de procedimentos recomendados e adotados. Destas caractersticas talvez a mais representativa das virtudes e fracassos de um modelo de planejamento pblico fosse o voluntarismo utpico. Mattos (1986, p. 104) assim o descreve: os tcnicos em planejamento tendiam a antepor sua ideologia do grupo social que detinham o controle efetivo dos processos de tomada de decises. No essencial, isso resultou em que a orientao e o contedo dos projetos que foram elaborados nessa etapa responderam mais s aspiraes e aso interesses dos tcnicos em q planejamento do que quelas dos que iriam decidir. E tal orientao e tal contedo responderam ao modelo normativo adotado, que se constituiu no fundamento da maior parte dos projetos elaborados no perodo analisado. No essencial, tratava-se de um modelo de tipo estruturalista (ou desenvolvimentista) que tendo sido originalmente esboado pela CEPAL, foi , posteriormente adotado e impulsionado pela Carta de Punta del Este [conferncia de pases latinoamericanos em 1961] A idealizao da figura do planejador como um burocrata pblico todo-poderoso contribuiu para o auto-isolamento do planejamento e a criao de uma iluso ingnua

Uma tentativa de mudana e inovao metodolgica no planejamento urbano pode ser encontrada no Planejamento Estratgico de Cidades (PEC), originado da experincia de Barcelona (1.988) e divulgado pelo Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratgico Urbano (CIDEU), criado em 1.993. Ele incorpora a idia da abordagem sistmica, da negociao com atores sociais, da participao, e de categorias de planejamento mais modernas: o marketing urbano, a atrao de investimentos, do empreendedorismo urbano, a participao, redes locais, etc.

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que transformava o problema do desenvolvimento num problema de saber aplicar a melhor tcnica. Como pode-se inferir, o isolamento da metodologia de planejamento e do mundo dos planejadores do mundo real dos movimentos polticos, do jogo de presses e da arena movedia das relaes de poder (o Estado como um campo de lutas) esteve na base do envelhecimento precoce da tradio de planejamento latinoamericana. Esta caracterstica reforou, por seu turno, a incapacidade do planejamento pblico em lidar com conjunturas internacionais cada vez mais submetidas incerteza e processos de complexa racionalidade econmica. A turbulncia que as economia latino-americanas viveram no final do anos setenta e at a primeira metade da dcada seguinte sepultaram definitivamente esta tradio terica. Na mesma direo aponta Rui Affonso (1989), segundo este autor a crise do planejamento governamental na Amrica Latina explicada pela crise econmica dos anos oitenta, baseada na ruptura do padro de financiamento baseado no endividamento externo, nas dificuldades da transio democrtica e no surgimento de grandes conflitos distributivos. No caso do Brasil a inoperncia do planejamento vinculava-se incapacidade das elites locais formularem um projeto articulado de desenvolvimento, demonstrado pelo fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento em meados da dcada de setenta. Segundo Affonso o II PND fracassou na sua tentativa de criar uma modalidade de capitalismo social, incorporando setores marginalizados aos benefcios do crescimento econmico e fortalecendo estruturalmente o capital privado nacional por trs tipos de razes: a primeira devido inconsistncia do setor produtivo estatal que foi utilizado para combater a inflao e perdeu capacidade de auto-financiamento, em segundo lugar a escassa disponibilidade de financiamentos produtivos internos e em terceiro lugar a causa de maior relevncia: perda de base de sustentao e articulao poltica internamente entre atores estatais e destes com os agentes privados. A varivel explicativa central para a desarticulao do planejamento estatal, ou deste modelo de planejamento, segundo este autor, foi de fato a falta de coordenao das polticas macroeconmicas. Como exemplo ele cita a coexistncia de trs planos simultneos no final da dcada de oitenta: o I Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova Repblica, divulgado em 1985 com metas para 1986-1989 sob a direo da

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SEPLAN sob a coordenao do ministro Joo Sayad, o Plano de Controle Macroeconmico apresentado em junho de 1987 pelo ministro Bresser Pereira e o terceiro Programa de Ao Governamental, lanado em 1987 para o perodo 19871989 por Anbal Teixeira. O resultado da superposio de planos, da incompatibilidade entre planejamento e oramento e da desconexo entre objetivos macroeconmicos e viabilidade poltica produziram resultados insignificantes, diminuindo ainda mais a j precria governabilidade federal que foi consumada em 1989 com eleio de Fernando Collor. Anita Kon (1999), ao resumir cinco dcadas de experincia de planejamento pblico federal, na sua dimenso estritamente macro-econmica, assim descreve a situao: ao analisar as cinco dcadas de planejamento no Brasil, necessrio acrescentar ainda alguns apsectos relevantes. Primeiramente, o planejamento do pas esteve sempre condicionado s condies polticas subjacentes, que no decorrer do porodod presentaram forte instabilidade, convivendo com situaes conjuntuarais que conduziram a uma intensa particpao estatal, tanto na esfera da coordenao geral quanto da produo (...) o que se observou na maior parte dos planos postos em prtica foi a incapacidade da continuao do processo em toda sua trajetria, muitas vezes devido s dificuldades tcnicas, como a falta de qualificao dos recursos humanos, insuficincia de infra-estrutura e mesmo de controle efetivo, que sobrepujaram a insuficincia de recursos financeiros ou a instabilidade poltica crnica (p.37) 2. Planejamento e gesto do territrio sub-nacional

Uma outra dimenso do planejamento pblico o planejamento regional com objetivo de combater as desigualdades regionais que so, como se sabe, abismais num pas com a formao econmica e social e as dimenses territoriais como o Brasil. As desigualdades regionais esto quase sempre associadas ao surgimento do fenmeno do regionalismo. O regionalismo um fenmeno comum na formao social e

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econmica da sociedade brasileira, desde a perspectiva da autonomia de regies marcadas por dinmicas quase-autrquicas de desenvolvimento at o tema da integrao territorial e a formao de um Estado sob um pacto federativo instvel e complexo. Para o planejamento de governo o tema regional abre a perspectiva de como movimento poltico e administrativo colocar na agenda poltica a ao coordenada do Estado focada no territrio. O centro deste enfoque objetiva constituir o planejamento do desenvolvimento territorial como objetivo para assegurar maior eficcia aos projetos no territrio, integrar e descentralizar a execuo de polticas pblicas, especialmente quando as diferenas na dinmica regional de desenvolvimento so fontes de tenses e conflitos histricos permanentes, como ilustra a longa tradio de revoltas regionais na trajetria poltica brasileira. Haddad (1997) denomina o perodo governamental de 1964 at 1982 (primeira eleio para governos estaduais depois do golpe militar de 1964) - no que diz respeito s prticas de planejamento pblico - de planejamento para negociao. Num quadro de esvaziamento crescente dos instrumentos de poltica econmica sub-nacionais houve uma clara induo para simplificao de procedimentos, minimizando a relao entre objetivos e instrumentos e aumentando a importncia do controle e monitoramento. A prtica de planejamento estadual neste perodo foi quase sinnimo da capacidade dos Estados em bem negociar investimentos pblicos federais ou privados no seu territrio. Este processo de perda da autonomia decisria sugeriu um roteiro diferenciado de planejamento conforme a tabela a seguir: Planejamento Clssico-normativo Elaborao do diagnstico dos problemas potenciais para o desenvolvimento Formulao de uma estratgia de desenvolvimento. Definio dos objetivos prioritrios Quantificao dos objetivos em metas Organizao de sistemas de controle e avaliao do plano Planejamento para negociao Gerao de informao sobre o contexto econmico do Estado Diagnstico dos problemas potenciais de desenvolvimento. Identificao de oportunidades resultantes de investimentos da Unio, setor privado ou agncias internacionais. Processo negocial de programas e projetos. Organizao de sistemas de controle e avaliao do plano.

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As atividades de planejamento estadual, no caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, neste perodo, estiveram concentradas na preparao de estudos e projetos para disputar as oportunidades de investimentos com outras unidades da federao, num quadro permanente de barganha poltica entre os diversos grupos de presso regional e o arco de alianas com os setores dominantes a nvel federal. evidente que a reduo do planejamento regional ao aproveitamento espasmdico de oportunidades de investimento incentivou a fragmentao do pacto federativo, alimentou a guerra fiscal entre unidades da federao e consolidou um tipo de postura intelectual nos organismos de planejamento de exogeneidade da poltica de desenvolvimento, de dependncia dos centros decisores externos8. A extenso da crise fiscal aos Estados, o processo de redemocratizao dos anos oitenta e o reforo da autonomia regional e local ps-constituio de 1988 marcam a adoo de estratgias alternativas de planejamento pelos Estados incorporando aspectos de (a) reprogramao endgena do desenvolvimento, (b) compensao e (c) ativao social (Haddad, 1997). (a) reprogramao endgena do desenvolvimento: envolve de um lado o ajuste fiscal e financeiro, modernizao da mquina administrativa, privatizaes, desregulamentao de atividades e parcerias pblico-privado; (b) compensao: esta estratgia centrada na neutralizao dos impactos adversos da poltica macroeconmica a nvel regional, atravs de aes mitigadoras ou compensatrias; (c) ativao social: objetiva atualizar recursos potenciais e latentes na economia regional e local, ainda no mobilizados por causa de um padro de organizao poltico-cultural inadequado ou no empreendedor.

No caso da cultura poltica rio-grandense, esta sensibilidade subalterna sempre encontrou (ora na resignao em direo integrao ao centro, ora na rebeldia em direo autonomia regional) ressonncia no discurso do fatalismo e da decadncia estadual que a parte o jogo de interesses tinha eventualmente justificaes concretas na instabilidade da agropecuria, nas oscilaes cambiais, no esgotamento da fronteira agrcola e na concorrncia real de produtos de valor mais agregado do eixo SPRJ. Sobre o tema do planejamento estudual do RS consultar a obra Planejamento estadual e acumulao no Rio Grande do Sul 1940/1974, FEE, 1992, Porto Alegre, de Renato Dalmazo.

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Aquela estratgia que mais se aproxima de um modelo mais democrtico de desenvolvimento regional seria a funo de ativao social. Este modelo de planejamento do desenvolvimento regional adota a perspectiva de baixo para cima, isto , pressupe que o crescimento se inicia espontneamente ou de forma incentivada (poltica fiscal ou de crdito, por exemplo) em determinadas reas no territrio e posteriormente se difunde para os demais setores. A operao deste paradigma est diretamente relacionada ao capital social9 presente no territrio, notadamente a fatores scio-culturais, histricos e institucionais que impulsionam ou no ambientes de inovao, aprendizado e solidariedade social. Os componentes essenciais desta estratgia seriam: (a) atribuio de prioridades para programas e projetos que sirvam s necessidades bsicas da populao (alimentao, habitao, servios de infra-estrutura econmica e social, mobilizando ao mximo a utilizao de recursos locais; (b) proviso de acesso amplo terra como principal fator de produo e como principal base (juntamente com o nvel de renda real) para o consumo nas reas rurais e para a formao de patrimnio das famlias de baixa renda em reas urbanas; (d) garantia de maior grau relativo de autodeterminao para as reas perifricas, em relao utilizao e transformao das instituies existentes (ou criao de novas), para a promoo de seu desenvolvimento em funo de seus prprios objetivos; (e) seleo e adoo de processos tecnolgicos que preservem plena utilizao de recursos abundantes localmente (Haddad, 1997, p. 24). A estratgia da ativao social d nfase mobilizao de recursos locais contra uma concepo de busca quase com fervor quase religioso e incondicional de investimentos externos, pblicos e privados. A suposio de que a manuteno do

Emprega-se o termo capital social no sentido em que dado por Putnam (Comunidade e Democracia, a experincia da Itlia Moderna, FGV, 1996). um conceito que designa um conjunto de caractersticas no diretamente mercantis que organizam as relaes sociais em determinados grupos e territrios na direo da cooperao, solidariedade e confiana mtua entre os agentes de modo a viabilizar ou facilitar as aes de carter coletivo. Segundo o Banco Mundial so as instituies, relaes e normas que conformam a qualidade e quantidade das interaes sociais de uma sociedade como um fator de coeso social, incluem-se as redes sociais, horizontais e verticais, sistemas de governana e institucionalidade, judicirio e regime poltico.

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estilo de vida prprio, da pluralidade cultural e das atividades voltadas ao atendimento das necessidades bsicas da populao so elementos de diminuio da vulnerabilidade das economias locais e regionais aos impactos negativos das crises externas e conseguem sustentar e generalizar endogenamente um ciclo de desenvolvimento. Conceito de desenvolvimento que certamente mais do que o crescimento do PIB per capita ou da quantidade de telefones por mil habitantes... Ao avaliar as causas do fracasso do planejamento regional no nordeste gestado a partir do mesmo contexto do Plano de Metas Guimares Neto (1999) parece confirmar a validade da tese da ativao social pelo que deixou de ocorrer naquela regio. Nas palavras do autor o esvaziamento da maior experincia de planejamento regional brasileira ocorreou devido (...) a perda de representatividade poltica que est associada grande concentrao de poderes, no regime militar, que praticamente eliminou o debate sobre a questo regional nordestina, no nvel do Conselho Deliberativo [da SUDENE] e do Congresso, do que resultou a eliminao, tambm, do papel de mediao entre o nvel estadual e federal que a SUDENE e outras entidades regionais buscavam exercer, de modo coordenado, atravs de uma estratgia regional e de planos diretores peridicos (...) a perda de recursos que estavam sob controle do planejamento regional, a partir dos quais era exercida uma coorenao de parcela importante dos gastos pblicos na regio, envolvendo as aes de ministrios pblcios setoriais e governos estaduais (...) surgimento que, e disseminao, a partir do sistema de planejamento nacional, de programas especficos (setoriais, sub-regionais) com freqncia, eram concebidos independentemente do planejamento regional e articulavam os governos estaduais diretamente com outros segmentos do governo federal. ( p. 239) Portanto, pode-se concluir que a experincia de planejamento regional no Brasil tem marcadamente duas fases muito distintas. A primeira delas iniciada no ps-guerra, simbolizada pelo longo perodo e constituio do parque industrial nacional no ciclo

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desenvolvimentista, foi marcada pelas grandes intervenes no territrio. Grandes obras de infra-estrutura rodoviria, energtica ou de transportes para garantir as condies gerais de reproduo do grande capital e socializar custos de implantao das grandes plantas industriais fase que consolida o planejamento pblico de estilo cepalino ou desenvolvimentista. Uma segunda fase inicia com a crise fiscal dos anos oitenta com a drstica reduo de recursos pblicos para projetos de desenvolvimento, diminuio da capacidade de interveno pblica e esgotamento do modelo desenvolvimentista com quase todas as empresas do ento chamado setor produtivo estatal em dificuldades financeira e/ou produzindo bens e servios de baixa qualidade fase que liquida com o planejamento regional e a eficcia dos seus instrumentos (incluive o crdito pblico) e reduz o conceito de planejamento pblico aos planos macroeconmicos anti-inflacionrios de curto prazo. 3. O Planejamento Pblico nos anos noventa.

No decorrer dos anos oitenta a redemocratizao do pas e o aprofundamento da crise econmica expuseram totalmente a crise do Estado. As principais caractersticas do funcionamento estatal no regime militar deixavam de atender s novas demandas sociais: centralidade excessiva, pouca capacidade gerencial, ineficincia na prestao de servios, ausncia de mecanismos democrticos de controle e participao, corrupo, burocracias feudalizando setores pblicos, etc... O padro de reforma do Estado neste perodo foi caracterizado pelo reformismo reducionista e quantitativo (Nogueira, 1998) centrado na reduo de cargos, normas, salrios, competncias e no formalismo de suas medidas, quase todas sem resultados prticos ou permanncia institucional. Temas como o planejamento pblico ou a poltica de recursos humanos foram relegados margem da agenda de debates. Entretanto; a sada para a crise do Estado no se resolveu no campo da ampliao da cidadania, da radicalidade do controle democrtico ou , talvez, num novo tipo de planejamento pblico que pudesse descortinar os segredos do Estado para amplas parcelas da populao. Ao contrrio - na esfera federal - a primeira sada hegemnica foi jogar a favor da corrente, as elites dirigentes do pas optaram pela via da

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globalizao sem condicionamentos, da internacionalizao maior da economia e da destruio definitiva do que ainda restara da antiga capacidade estatal de planejamento, coordenao ou induo do desenvolvimento, perodo que teve o climax no governo Collor. Mais uma vez, nas palavras precisas de Marco Aurlio Nogueira (1998, p.155): ...a crise do Estado no Brasil tinha razes, era de longa durao e s poderia ser enfrentada a partir de mltiplas operaes polticas e societais, fundadas sobre consensos progressivamente consolidados. Tratava-se, portanto de pr em curso iniciativas direcionadas para recuperar a capacidade de coordenao e planejamento do Estado (grifo do autor), para o que seria necessrio tanto uma reforma da administrao de modo a adequar o aparato estatal ao imperativo de plena racionalidade em seu funcionamento e dar suporte efetivo aos atos de governo quanto, acima de tudo, uma reforma do Estado, de modo a passar em revista as prticas, as funes e as instituies polticas, bem como as relaes Estado-sociedade civil, cujo padro histrico sempre foi de baixa qualidade. Em outros termos, a questo era poltica; dizia respeito democracia, criao de grandes consensos nacionais, participao da cidadania, no apenas a um mero enxugamento administrativo. O pas passou pelo processo de impeachment, ultrapassou a dcada perdida e uma nova hegemonia foi estabelecida. Apesar de demarcar na linguagem e nas intenes com o receiturio neoliberal a nova administrao perseguiu os mesmos objetivos. Buscou pragmaticamente transferir competncias para o setor privado ou o terceiro setor, reduzir o dficit pblico mesmo que s custas da precarizao dos servios e subordinar a reforma do Estado e da administrao pblica ao cumprimento das metas fiscais contratadas com o FMI. Na incapacidade de (re)construir um novo projeto estratgico de desenvolvimento nacional, substitudo pela manuteno da estabilidade monetria no curto prazo, com a desconstruo da capacidade de interveno do Estado, num contexto de vulnerabilidade externa e aderncia aos ritmos da globalizao, restou ao planejamento quase uma funo ritual e formalizada, menos que indicativa ou regulatria. Este

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cenrio foi sinalizado na esfera nacional nos ltimos lampejos do planejamento pblico restrito elaborao do Plano Plurianual (PPA), dispositivo previsto pela Carta de 198810. O primeiro PPA (1991/1995) foi to ineficaz quanto emblemtico do estgio final do planejamento na esfera pblica, 94,6% dos investimentos foram paralisados durante o plano (Garcia, 2.000). O segundo PPA (1996/1999), segundo o mesmo autor alcana, quando muito, o carter de um plano econmico normativo de mdio prazo (Garcia, op.cit., pg. 14), quando somente 20% dos programas atingem mais de 90% execuo. A elaborao do terceiro Plano Plurianual (2000-2003) da Unio um momento qualitativamente diferenciado comentado com mais detalhes no captulo V, fundamentalmente, o uso de tcnicas mais potentes e modernas de planejamento estratgico no setor pblico representou o maior diferencial em relao aos PPAs anteriores. Alm disso, na preparao do PPA foi produzido um estudo denominado Estudo dos Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento com o objetivo de orientar o planejamento estratgico federal. A Lei de Diretrizes Oramentrias, a LDO11, teria o papel, neste arranjo institucional, de mediao entre a estratgia mais genrica do PPA e os oramentos anuais. Estes passariam a ter maior vinculao com o Planejamento Governamental. Em sntese, apesar do avano metodolgico e conceitual dos instrumentos de planejamento federal, a ausncia de modificaes profundas nas relaes polticas internas e a permanncia das prticas de gesto tradicionais, com a permanncia do desenho organizacional normativos acabaram por neutralizar boa parte dos resultados teoricamente superiores prometidos pela nova metodologia.

Os precedentes do PPA podem ser encontrados no Oramento Plurianual de Investimentos (Lei 4.320/64 e Constituio de 1967), vigorou at que a inflao nos anos oitenta neutralizasse qualquer capacidade de orientao e integrao entre plano e oramento pblico. O PPA maior instrumento de planejamento governamental, previsto pela Constituio Federal (artigos 195 a 167 ), prev diretrizes, objetivos e metas da administrao pblica para despesas de capital e outras delas decorrentes e para despesas relativas aos programas de durao continuada, trabalha com prazo de quatro anos. A Lei de Diretrizes Oramentrias o instrumento de planejamento que estabelece as metas e prioridades da administrao, orienta a elaborao da lei oramentria anual e dispes sobre as alteraes na legislao tributria.11

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4. Buscando um novo desenho para o planejamento de governo.

No senso comum da maioria das pessoas a palavra planejamento est associada a alguns preconceitos pejorativos sobre esta atividade o papel dos planejadores. Mesmo em empresas privadas o planejamento visto como um processo abstrato dissociado da ao12. No setor pblico, a tradio do planejamento autoritrio e tecnicista , em parte, culpada pela rejeio. A frase to usual planejar uma coisa, fazer outra...: revela com freqncia a ridicularizao do esforo de planejamento na organizao de sistemas pblicos ou privados. Esta viso surge normalmente em instituies que tem precrio planejamento ou feito de modo normativo e determinista. A dicotomia plano versus ao ope processos supostamente antagnicos mas que, na verdade, so parte de um nico momento, na ao concreta que o plano se decide e prova sua importncia. Os mtodos de planejamento tradicionais, ao ignorar a varivel poltica, cortaram o caminha para o dilogo entre plano e gesto, relao absolutamente imprescindvel para casar o planejar com o fazer. Outro argumento comum a constatao aparentemente lgica de que o planejamento engessa a organizao.... Ao invs da deciso meramente intuitiva e lotrica, da administrao do dia-a-dia, estabelecem-se critrios, metas, objetivos, diretrizes de longo prazo, enfim, o planejamento um exerccio sistemtico de antecipao do futuro e intensivo em gesto. A crtica ao Planejamento como uma camisa-de-fora normalmente vem das lideranas que perdem legitimidade quando sistemas de planejamento participativo so implantados. Uma organizao que pensa e planeja estrategicamente cria condies para o surgimento de lideranas baseadas na democracia interna e na delegao de autoridade, o monolitismo de hegemonia poltica, que enfarta o processo democrtico. e o dirigente autoritrio surgem, quase sempre, no ambiente do planejamento determinista, carente

Para aprofundar este argumento ver o excelente artigo de Belmiro V. J. Castor e Nelson Suga, Planejamento e Ao Planejada: o difcil binmio, em Planejamento & Gesto, Setembro de 1989, Vol. 1, N. 2

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Muitos pensam ainda que o planejamento um rito formal desprovido de substncia. Este preconceito est muito associado com o prprio elitismo intelectual que o planejamento tradicional e seus defensores construram ao longo de dcadas, venerando modelos abstratos e inteis, particularmente modelos que abusavam de tcnicas economtricas fundamentadas em pressupostos irreais e previses sempre equivocadas. Neste caso ser sempre verdade o ditado que diz ser o improviso sempre prefervel ao planejamento malfeito, isto , burocrtico, formalista. O ritualismo mata o bom planejamento e condena mediocridade dirigentes e funcionrios. No mercado das consultorias organizacionais comum o surgimento de novas tcnicas e modelos esotricos de planejamento ou temas afins. As siglas se proliferam e poucas delas tem realmente contedo prtico e a aplicabilidade necessria13. Quando se caminha para nveis cada vez mais abstratos de raciocnio, variveis cada vez mais agregadas e grandes snteses polticas, muito fcil descolar-se da realidade concreta e esta armadilha tem apanhado muitos planejadores. Nesta situao sempre recomendvel associar a intuio e o bom-senso - a expertise que falta para muitos - com as tcnicas e modelos mais estratgicos, governar bem afinal, exige cincia, uma boa dose de arte e sorte. O planejamento estaria assim, em nome do interesse pblico, livre das irracionalidades da ideologia e da poltica. O pretendido apoliticismo, na verdade, traduziria uma concepo profundamente conservadora e legitimatria quando a centralidade da teoria passa a ser os modelos de equilbrio auto-regulado e no a mudana social. Segundo Rattner (1979) no se separa planejamento e interesse: Ao perguntarmos aos tecnocratas e planejadores, todavia, em funo de que interesses e a partir de que modelo ou teoria da sociedade so elaborados planos e projetos e tomadas decises a eles pertinentes, as respostas, geralmente, so bem significativas: o interesse pblico ou as necessidades coletivas, primeira pergunta, enquanto a segunda ser eventualmente descartada com a explicao de que os planos e projetos,

Para localizar-se criticamente na proliferao de siglas de mtodos participativos de planejamento pblico deve-se consultar a obra de Markus Brose (organizador), Metodologia Participativa, uma introduo a 29 instrumentos, Tomo Editorial, Porto Alegre, 2001.

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por estarem baseados e elaborados a partir do conhecimento cientfico, e implantados de acordo com a racionalidade tecnolgica, escapariam do subjetivismo e juzos de valor inerentes s teorias sociolgicas. As atividades tcnicas de planejamento e de execuo dos projetos, por sua racionalidade cientfica intrnseca, prescindiriam de uma teoria ou de um modelo de anlise e explicao da realidade social (Rattner, 1979, p. 126). A afirmao de que o planejamento puramente tcnico e deve ser neutro do ponto de vista poltico outra incongruncia alimentada pela postura convencional. evidente que os planejadores devem ter conhecimento tcnico mnimo sobre o que planejam. Tais conhecimentos podem ser apreendidos de forma padro e uniforme, esto acumulados historicamente nos mais diversos setores do conhecimento humano. Entretanto, no setor pblico especialmente, seria um suicdio planejado, fazer planos sem incluir as variveis de poder e da poltica, em sentido amplo, na sua concepo e execuo. No existe planejamento neutro, pelo simples fato de que planejar priorizar e resolver problemas e isto pressupe uma determinada viso-de-mundo, concepo de Estado, de organizao social e assim por diante. Planejar estrategicamente implica necessariamente em manipular variveis polticas, em situaes de poder compartilhado, onde os outros tambm planejam e formulam estratgias. O planejamento que se diz meramente tcnico na verdade resulta em simples adivinhao. A prtica do planejamento governamental (ou pblico) jamais pode ser isolada ou dissociada das concepes mais amplas sobre o Estado ou distante das disputas mais gerais pela hegemonia social. Neste sentido algumas pistas deste novo planejamento devem ser consideradas, estudadas, compreendidas e sobretudo transformadas em novos e criativos instrumentos tcnico-polticos, capazes de aumentar a capacidade dirigente, demonstrar-se ser capaz de atingir resultados concretos, contribuir efetivamente para aumentar a capacidade de governar.

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Recusando os mitos e fantasias do planejamento um grupo de pesquisadores14 na rea da sade pblica definiu bem o que no deve ser o planejamento: O planejamento no deve ser confundido com plano. O plano um dos produtos de um amplo processo de anlises e acordos; ele documenta e enuncia as concluses desses acordos, indicando para onde queremos conduzir o sistema (objetivos gerais ou estratgicos) e como pretendemos agir para que nossas metas sejam alcanadas (estratgias e objetivos especficos ou de processo). Em verdade, o plano deveria ser encarado como uma pea de vida efmera o processo de planejamento, em si, que deve ser permanente porque rapidamente vai perdendo sua atualidade face ao desenrolar da realidade. O plano deve ser permanentemente revisado para se manter atual. Muitas experincias fracassaram ou foram traumticas porque as pessoas aderiram de forma inflexvel a um documento. A riqueza do planejamento est no processo em si de analisar o ambiente e os sistemas e chegar a definir os o que queremos e os como alcan-lo. esse processo que deve ser permanente e envolvente dentro da instituio. Contudo, embora pea secundria, o plano escrito deve existir, at porque preciso documentar os acordos e a direcionalidade do trabalho. Ele deve ser preparado em linguagem clara e concisa, de forma que todos os que o leiam compreendam claramente a viso de futuro e os objetivos perseguidos. O planejamento no tarefa dos planejadores; ele deve ser feito pelos atores envolvidos na ao. Houve tempo em que os ditos planejadores eram agrupados em unidades ou departamentos de planejamento, a partir dos quais pretendiam ditar o futuro do sistema e o curso da administrao. Ainda nos lembramos dos casos de planos centralizados que, de cima para baixo, ditavam at os detalhes da execuo do trabalho.

Conforme corretamente afirmam Tancredi, F. Lopez Barrios, S, Ferreira, J. no artigo Planejamento em sade, da Coleo Sade & Cidadania, disponvel no site www.bireme.br.

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Muitos casos so hoje lembrados como caricatura, mas a triste realidade que vrios dirigentes locais sofreram nas mos de planos que no compreendiam sua realidade e de planejadores arrogantes, distanciados da prtica. O planejamento deve ser feito pelos atores envolvidos na ao, e a figura do planejador, hoje em dia, deve ser vista como a de algum que atua como facilitador do processo. Cada vez mais as organizaes se do conta de que perfeitamente possvel apropriar-se dos conceitos e ferramentas do planejamento, bem como das vantagens decorrentes do envolvimento das pessoas nesse processo. No existe a teoria ou o mtodo de planejamento. H uma vasta literatura sobre planejamento; h, tambm, uma vasta terminologia. Uma fantasia freqente que exista o mtodo de fazer planejamento. Todas as teorias e os mtodos no escapam muito do dilema de Alice: definir qual o futuro desejado, isto , aonde queremos chegar com o nosso sistema e como apont-lo naquela direo, ou seja, que programas e decises implementar para preparar a instituio/sistema a direcionar-se para um determinado rumo e a produzir resultados que nos levem ao futuro desejado. Muitos autores fizeram largas digresses sobre essa coisa to simples, porque, obviamente, o jogo de foras, interesses e ideologias faz com que no seja sempre fcil definir esse norte e tampouco as formas de chegar l. O melhor mtodo aquele que melhor ajudar numa determinada situao...um mtodo bom para o planejamento operacional de um problema especfico de sade no se presta para o planejamento de nvel poltico... Em suma, pouco provvel que na prtica algum siga ipsis litteris um determinado mtodo; mais provvel que na seqncia do trabalho v incorporando diversos instrumentos de trabalho retirados de muitas partes. Planejar no fazer uma mera declarao de intenes ... no depende de que algum o deseje com intensidade; requer decises e aes imediatas. O verdadeiro planejamento no uma lista de desejos ou boas intenes. Ele deve enunciar objetivos factveis e alcanveis, caso contrrio perder a

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credibilidade. Planejar exige a ousadia de visualizar um futuro melhor, mas no simplesmente sonhar grande. Exige maturidade para se acomodar s restries impostas pelo ambiente ou pelo grau de desenvolvimento da organizao. Alm disso, o planejamento obriga a selecionar as aes concretas necessrias para alcanar o objetivo desejado. (p.6) A inspirao para as consideraes anteriores teve origem em estudos mais recentes do economista chileno Carlos Matus (Matus, 1993, 1997, 2000), onde pode-se identificar a emergncia de novas snteses tericas sobre planejamento estratgico de governo15. Algumas idias-chave desta nova postura so as seguintes: 1. O Planejamento como Capacidade para Governar. O ato de governar implica em articular necessariamente trs variveis: (a) um projeto de governo, (b) uma capacidade de governo, (c) atuar sobre um nvel determinado de governabilidade. A eficcia de um projeto de governo depende, alm das habilidades e competncias prprias dos quadros e das organizaes polticas, da relao entre as variveis controladas e no-controladas (governabilidade), sejam elas recursos de poder sob comando de outros atores sociais ou situaes decorrentes da imprevisibilidade da disputa pela hegemonia social. A capacidade de governo viabiliza o projeto e pode gerar maior governabilidade quanto se expressa como capacidade de direo, gesto, administrao e controle. A anlise destes trs elementos induz ao arranjo de trs sistemas de natureza diferenciada: (a) um sistema propositivo de aes e projetos, (b) um sistema social sobre o qual temse diferentes graus de controle e (c) um sistema de direo e planejamento (a capacidade de governar). 2. O modelo normativo de planejamento tem dominado os governos, particularmente os governos da Amrica Latina. Um ator social tem o monoplio do planejamento (o Estado), h somente um campo do conhecimento capaz de propor os instrumentos metodolgicos (a economia), as aes dos demais

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o qualificativo novas usado aqui para demarcar com a longa e antiga tradio da literatura econmica na abordagem do tema planejamento no setor pblico, seja ela de cunho financeirooramentrio ou das polticas macroeconmicas.

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agentes e atores so previsveis e no criativas, admite-se que a incerteza existe, porm, de forma passiva e resignada. As variveis no-controladas ou no so importantes ou simplesmente ignoradas. Um outro modelo estratgico e situacional de planejamento supe, ao contrrio, que o planejamento uma capacidade comum vrios atores sociais que perseguem objetivos conflitivos na arena social. Alm de ser uma teoria e uma tcnica o planejamento um mtodo para governar que opera sempre numa situao de poder compartilhado, onde s a ao e o juzo estratgicos so eficazes. 3. O Plano uma aposta. Se os sistemas sociais so extremamente complexos, com sujeitos coletivos criativos, de final aberto, onde o conflito engendra permanentemente novos arranjos societais, ento, s possvel uma viso situacional da realidade. Isto significa admitir que o sujeito que planeja parte intrnseca do objeto planejado, que s vlida uma explicao a realidade a partir de um ponto-de-vista diferenciado (e diferenciador) dos demais atores sociais. A viso situacional limita drasticamente a objetividade presente nas premissas da modelagem economtrica do planejamento normativo tradicional. Neste contexto o planejamento assemelha-se mais a um jogo e o plano a um tipo de aposta bem fundamentada. O raciocnio tcnico se viabiliza na elaborao da poltica e esta se materializa no complemento da tcnica, o planejamento passa a ser intensivo em estratgia e gesto, a fase normativo-determinstica foi negada e assimilada agora numa nova sntese, ela apenas um dos elementos do planejamento estratgico ou de situaes, no o nico, nem o principal. 4. O centro terico que subjaz noo de viso situacional a idia do clculo interativo. A eficcia do plano depende dos efeitos dos projetos dos demais atores sobre o mesmo cenrio. A interdependncia, o entrelaamento e o padro recursivo das aes mutuamente combinadas constituem o componente fundamental da incerteza, sobre a qual opera o calculo interativo, que precede e preside a ao. Esta incerteza no pode ser superada, se fosse possvel, com o conhecimento mtuo e a informao perfeita, dado que todos jogadores tenderiam a redesenhar suas operaes no momento mesmo em que as intenes dos demais fossem reveladas. Esta insegurana estrutural do plano

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oposto noo do clculo paramtrico, baseado na projeo do futuro com base no passado. Trabalhar com a noo de clculo interativo implica em planejar iniciando pela identificao e seleo de problemas, na considerao de diferentes cenrios futuros e planos de contingncia, na tentativa de estabelecer simulaes atravs dos jogos sociais, no desenho da melhor estratgia. 5. A viso situacional permite compreender a assimetria das explicaes do jogo. O contexto situacional representa a percepo sobre o mosaico de explicaes sobre os mesmos problemas. O significado de uma realidade concreta no existe fora da situao, assim como no existe texto fora de um contexto. Nas palavras de Ortega Y Gasset, ...uma idia sempre reao de um homem a uma determinada situao de sua vida. Ou seja, s possumos a realidade de uma idia, o que ela integralmente, se a tomamos como reao concreta a uma situao concreta. portanto inseparvel dela. Talvez fique ainda mais claro se dissermos: pensar dialogar com a circunstncia. Ns temos sempre, queiramos ou no presente e patente a nossa circunstncia; por isso que nos entendemos. Mas para entender o pensamento de outrem temos de tornar suas circunstncias presente para ns. Sem isso, seria como se, de um dilogo, s tivssemos o que diz um dos interlocutores (apud Matus, 1997, pg. 152). A apreciao situacional uma abordagem baseada no dilogo entre um ator que assume totalmente a posio a partir da qual observa a realidade (diferente dos diagnsticos impessoais do planejamento tradicional) e as explicaes (divergentes ou no) dos demais atores sociais. Dado que a situao explicada compreende e totaliza aquele que explica, no h possibilidade de objetividade absoluta, porque significa tambm explicar-se a si mesmo como sujeito que atua neste contexto. A apreciao situacional s se define como conhecimento destinado ao numa totalidade concreta. O planejamento confinado aos limites do econmico no fundo um sistema impotente ou de baixa capacidade para dar conta da complexidade do sistema social. Se no houvesse argumentos tericos j suficientemente eloqentes, bastaria simplesmente checar as previses feitas e as metas propostas pelos planos econmicos dos governos latino-americanos e os resultados efetivos a que chegaram. A articulao do

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econmico com o poltico passa (a) pela explicitao do contexto poltico do plano econmico, em relao aos objetivos e aos meios, (b) na elaborao e uso de mtodos capazes de integrar critrios de anlise de eficcia poltico com a econmica e (c) viabilizar categoria integradoras tanto na construo do modelo explicativo (anlise de problemas), no desenho de projetos (incluindo recursos de poder, no-econmicos) como na estratgia de viabilidade e gesto. Segundo Matus, ...o planejador tradicional, dominado pelo economicismo, assume que ao sinnimo de comportamento, no estilo da teoria econmica, a base da teoria do planejamento. Essa uma deformao economicista, proveniente do modo especial e artificial como est construda a teoria econmica. A teoria econmica , via de regra, uma teoria do comportamento econmico segundo a hiptese de que o mundo regido por leis sociais de alcance similar ao das leis naturais. Consequentemente, o economista tende a raciocinar sobre uma base de comportamentos estveis que obedecem a leis. Para ele no existem processos criativos. No entanto, a teoria moderna do planejamento refere-se a um tipo especial de ao humana ou ao social. Trata-se da ao intencional e reflexiva, por meio da qual o autor da ao espera alcanar conscientemente determinados resultados. E o fundamento dessa ao um juzo complexo que foge s predies...tem uma interpretao situacional, e seu significado ser ambguo se no se explicitarem o contexto situacional e a inteno do autor...as aes...ultrapassam os limites daquilo que eles afirmam fazer. (Matus, 1997, p. 157) Segundo este autor os principais equvocos (e marcas) do planejamento econmico tradicional e das vises normativas do planejamento pblico em geral seriam as seguintes: (a) normativo supondo relaes sociais mecnicas, tipo causa-efeito. A ao seria um problema dos polticos enquanto o projeto dos tcnicos, o plano no uma mediao entre conhecimento e ao, mas entre conhecimento e projeto. Sua normatividade assume ainda o pressuposto da neutralidade, da

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boa forma, o que impede todo e qualquer dilogo com a complexidade real do mundo social. (b) Valoriza sempre o mdio prazo pois est fora do contexto situacional, da mediao entre passado e futuro, no focaliza as relaes da conjuntura cotidiana, no presente, o que exige potentes sistemas de gesto. (c) profundamente discursivo no seu formato, isto , no operacional nem prtico, a materializao da metfora do plano-livro, longo, vazio de contedos prticos e com linguagem codificada. (d) oficialista, seu vocabulrio e estrutura lgica supe a capacidade de planejar como monoplio do Estado, tecnicista, simplifica grotescamente a polisemia do mundo concreto. (e) Assume e opera no conceito do tempo rgido, isto , o tempo do calendrio impe-se ao tempo da mudana situacional, ao tempo dos eventos. Os cortes homogneos do tempo na fixao de metas, por exemplo, assume a linearidade e a uniformidade do correr do tempo como sendo rigidamente igual para todos atores, em todos os contextos. Adotar tais supostos para propor um novo paradigma terico ao planejamento governamental e criticar radicalmente as premissas simplificadoras do planejamento econmico tradicional exige, por outro lado, estender o conceito de planejamento para a esfera da estratgia e da gesto pblica. Fica evidente que as noes de viso situacional, de planejamento por problemas, do clculo interativo, e outros triviais para o conceitos bsicos, fazem da estratgia e da gesto questes no

processo de planejamento. Normalmente a baixa capacidade de governo da maioria dos nossos pases impede a conscincia plena da brutal fragilidade das tcnicas e mtodos para governar. um tipo de ignorncia em segunda potncia: no se conhece o prprio desconhecimento. A crise contempornea dos aparelhos de Estado na Amrica Latina, venha ela do esgotamento fiscal ou legitimatrio, acabou expondo com mais dramaticidade a ausncia de capacidade de planejamento pblico diante da voracidade do processo privatizatrio e da banalizao da poltica como valor ticomoral.

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5. Possibilidades de democratizao do planejamento pblico.

Recentemente vrias organizaes pblicas brasileiras tem desenvolvido experincias positivas de participao na gesto pblica, particularmente na esfera local, em especial, a conhecida como Oramento Participativo16. Segundo seus promotores um processo de democracia direta, voluntrio e universal combinado com a democracia representativa, na definio dos oramentos pblicos anuais. Representa uma resposta contempornea crise de legitimidade poltica e fiscal do Estado brasileiro (Souza, 1999). Segundo este autor a auto-regulamentao seria responsvel pelo carter dialtico do processo, permitindo a modernizao do mecanismo de participao popular. Este desenvolvimento a partir do debate puramente oramentrio, permitiria crescente complexidade, por exemplo, a formao de plenrias temticas e regionais, a criao de comisses (para analisar a poltica de recursos humanos, por exemplo), para anlise e proposio de temticas setoriais, processos de prestao de contas do governo com participao de setores sociais heterogneos, etc. Um dos avanos mais importantes originados a partir das insuficincias das experincias de Porto Alegre, por exemplo, foi a realizao de Congressos da Cidade. Estes fruns tentam superar a fragmentao das reivindicaes de carter pontual ou as demandas isoladas, criando um ambiente societal mais coletivo e universal que desempenha o papel de gerar grandes consensos ou pactos racionalizantes na relao Estado-Sociedade. No III Congresso da Cidade de Porto Alegre - Construindo a

O processo participativo pode ter vrios contedos, inclusive o do Banco Mundial, por exemplo, no Livro de Consulta para estratgias de combate pobreza (www.worldbank.org/poverty/) define participao como um processo mediante o qual os interessados influenciam e controlam conjuntamente iniciativas de desenvolvimento e as decises e recursos que os afetam...o processo provavelmente abranger um ciclo de dilogo, anlise, aes e reaes participativas no mbito das estruturas, polticas e de governo, a fim de incorporar as opinies de todos os nveis da sociedade civil, desde as comunidades at os setores pblico e privado, na formulao de poiticas e na implementao de programas governamentais (p.3), a participao, para o Banco, habilita os formuladores de polticas a incorporar as prioridades dos pobres, gera parcerias baseadas na confiana e no consenso, promove a transparncia e a responsabilidade coletivas, promove a sustentabilidade do projeto e a incluso social. No atual Relatrio sobre Desenvolvimento (2003) o Banco afirma: O aumento do poder de escolha e da participao dos clientes pobres no processo de distribuio dos servios ir ajud-los a monitorar e disciplinar os prestadores desses servios. Ao levantar a voz dos cidados pobres, atravs da urna e da disponibilizao mais ampla de informaes, sua influncia sobre os responsveis pela elaborao de polticas se fortalece (World Development Report 2004 Making Services Work for Poor People).

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Cidade do Futuro (2000), por exemplo, pode-se ler claramente esta inteno poltica deliberada. O III Congresso representou, assim, um esforo em realizar reflexes estratgicas, de longo prazo, que conseguissem articular globalmente a cidade, atravs de seus vrios interesses e vises, que a cada dia se manifestam com maior intensidade, pluralidade e riqueza, complementando o processo de democracia participativa da cidade que combina o conjunto diverso de demandas localizadas de bairros e regies da cidade com as iniciativas gerais integradoras, que so estruturantes de uma cidade que quer ter um planejamento urbano participativo e no-tecnicicista (Raul Pont, Resolues, 2000, grifos meus).17 Outra experincia localizada, mas que testa inovaes metodolgicas importantes no oramento participativo a cidade de Belm no estado do Par. Conforme Rodrigues e Novaes (2002) o Oramento Participativo um processo virtuoso que busca atender demandas sociais (dvida social) h tempos represadas, mas acaba tornando-se limitado quando no consegue avanar nos debates a respeito das dvidas sociais existentes, enfim daquilo que mobiliza imediatamente. Segundo estes autores ...o povo de planejar, decidir e executar o futuro da cidade, discutir polticas de incluso social, de mudana cultural e da construo da cidade que queremos. (p.52) Fica manifestada claramente a compreenso de que mecanismos participativos de amplo alcance, mas restritos ao campo decisrio do oramento anual se auto-limitam no universo de escolhas que se subordinam um tipo de agenda de curto prazo, enquanto a formao de uma opinio coletiva estratgica (que deveria ser organizar exante o processo de escolhas pontuais) permanece oculta no processo. A participao ampla dos setores populares (o empoderamento dos stakeholders) na discusso do oramento (onde as experincias municipais so as mais conhecidas) representa um esforo para criar condies institucionais favorveis emergncia da

O I Congresso foi realizado em 1993 com 1.500 participantes, o II Congresso, em 1995, com 2.700 participantes e o III Congresso em 2000 com 7.000 participantes, sob forma delegada. Este ltimo Congresso consolidou as propostas bsicas para elaborao do Plano Plurianual da cidade, conforme determina a Constituio Federal. Porto Alegre tem cerca de 1,3 milho de habitantes e um ndice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de 0,825 (1991), (fonte: PNUD/IPEA/FJP, 1998).

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cidadania em novas formas de gesto scio-estatal onde a sistemtica partilha de poder baseada em critrios objetivos, impessoais e universais so os elementos mais fundamentais. Segundo Fedozzi (1997), este processo estabelece um novo tipo de contratualidade, uma despatrimonializao do Estado, uma ruptura com as prticas clientelistas, segundo ele ...uma esfera pblica ativa de co-gesto do fundo pblico municipal, expressa-se atravs de um sistema de racionalizao poltica, baseado, fundamentalmente, em regras de participao e regras de distribuio dos recursos de investimentos que so pactuadas entre o Executivo e as comunidades e apoiadas em critrios previsveis, objetivos, impessoais e universais. A sua dinmica instaura uma lgica contratual favorvel diferenciao entre o pblico e o privado e, portanto, contraporia s prticas clientelistas que caracterizam o exerccio patrimonialista do poder (Fedozzi, 1997, p. 199). Outros autores tm uma viso mais crtica, Pires (2001), por exemplo, classifica as vrias experincias de oramento participativo em stricto sensu quando o processo deliberativo e lato sensu nas demais formas de participao que criam algum tipo de constrangimento completa liberdade do Poder Executivo, tais como conselhos ou audincias pblicas. Este autor problematiza alguns aspectos: (a) dificuldade de estabelecer legitimidades permanentes e pactuadas no processo de escolha entre as regies da cidade que ganham e as que perdem, (b) dificuldade em demonst