manual de lingüística

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Manual de Lingüística:subsídios para a formação de professores indígenas na área de linguagem.

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  • EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Braslia, dezembro de 2006

    Manual de Lingstica:

    subsdios para a formao de

    professores indgenas

    na rea de linguagem

    Marcus Maia

  • Edies MEC/UNESCO

    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    Secretrio-ExecutivoJos Henrique Paim Fernandes

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeRicardo Henriques

    SECAD - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeEsplanada dos Ministrios, Bl L, sala 700Braslia, DF, CEP: 70097-900Tel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar70070-914 - Braslia - DF - BrasilTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

  • Manual de Lingstica:

    subsdios para a formao de

    professores indgenas

    na rea de linguagem

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Marcus Maia

  • 2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco) e Projeto Trilhas de Conhecimentos LACED/Museu Nacional

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Coordenao EditorialAntonio Carlos de Souza Lima

    Projeto Grfico e Diagramao: Andria ResendeAssistentes: Jorge Tadeu Martins e Luciana RibeiroIlustraes: Chang WhanApoio: Rodrigo Cipoli Cajueiro e Francisco das Chagas de Souza / LACED

    Tiragem: 5000 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Manual de Lingstica: subsdios para a formao de professores indgenas na rea de linguagem / Marcus Maia Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade;

    LACED/Museu Nacional, 2006.

    ISBN 85-98171-60-3

    268 p. (Coleo Educao para Todos; 15)1. Lnguas Indgenas. 2. Lingstica. 3. Bilingismo. 4. ndios do Brasil. I. Maia, Marcus.

    CDU 81:371.13(=1.81-82)

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos nesse livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO e do Ministrio da Educao, nem comprometem a Organizao e o Ministrio. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO e do Ministrio da Educao a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

  • Parceiros

    Este livro integra a srie Vias dos Saberes, desenvolvida pelo Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indgenas no Brasil / LACED Labora-trio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento / Museu Nacional UFRJ, em parceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), e contou com o financiamento do fundo Pathways to Higher Education Initiative da Fundao Ford e da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco).

    A iniciativa Pathways to Higher Education (PHE) foi concebida para comple-mentar o International Fellowships Program IFP da Fundao Ford, e tem como proposta investir recursos em vrios pases at o ano de 2010 para promover pro-jetos que aumentem as possibilidades de acesso, permanncia e sucesso no En-sino Superior de integrantes de segmentos educacionalmente sub-representados em pases nos quais a Fundao Ford mantm programas de doaes. Enquanto o IFP apia diretamente indivduos cursando a ps-graduao por meio da con-cesso de bolsas de estudo, a PHE tem por objetivo fortalecer instituies educa-cionais interessadas em oferecer formao de qualidade em nvel de graduao a estudantes selecionados para o programa, revendo suas estruturas, metas e rotinas de atuao. Na Amrica Latina, a PHE financia projetos para estudantes indgenas do Brasil, do Chile, do Mxico e do Peru.

  • Sumrio

    ApresentaoRicardo Henriques ............................................................................................. 9

    PrefcioAntonio Carlos de Souza Lima ........................................................................ 11

    Introduo ..................................................................................................... 17

    Captulo 1 I A Linguagem Humana: conceitos fundamentais1.1 Linguagem e lngua .............................................................................. 231.2 Infinitude discreta ................................................................................. 241.3 Comportamentalismo e cognitivismo .................................................... 251.4 O problema de Plato e o problema de Orwell .................................... 261.5 Aquisio e aprendizagem da linguagem ............................................. 301.6 Competncia e desempenho ................................................................ 311.7 Princpios da gramtica universal e parmetros das gramticas

    particulares ........................................................................................... 341.8 Descritivismo e prescritivismo .............................................................. 361.9 O preconceito lingstico ...................................................................... 401.10 Lngua oral e lngua escrita .................................................................. 411.11 A forma da gramtica .......................................................................... 441.12 As funes da linguagem ..................................................................... 46 Atividades sugeridas ............................................................................ 49 Leituras adicionais................................................................................ 51

    Captulo 2 I A Forma da Linguagem2.1 A estrutura da linguagem ..................................................................... 532.1.1 O signo lingstico ................................................................................ 542.2 A fontica ............................................................................................. 592.2.1 Fisiologia da fala .................................................................................. 60

  • 2.2.2 Tipos articulatrios ............................................................................... 662.2.3 A classificao dos contides .............................................................. 692.2.4 A classificao dos vocides ................................................................ 732.2.5 A prosdia ............................................................................................ 752.2.6 A slaba ................................................................................................ 752.2.7 O vocbulo fontico .............................................................................. 762.3 A fonologia ........................................................................................... 762.3.1 A anlise fonmica ............................................................................... 792.4 A morfologia ......................................................................................... 822.4.1 Classes de palavras ............................................................................. 832.4.2 Categorias lexicais e categorias funcionais ......................................... 872.4.3 Lexemas e morfemas .......................................................................... 872.4.4 Tipos de morfemas ............................................................................... 892.5 A Sintaxe .............................................................................................. 902.5.1 As estruturas sintticas ........................................................................ 912.5.2 Valncia verbal ..................................................................................... 932.5.3 A delimitao dos sintagmas ................................................................ 942.5.4 Argumentos e adjuntos ........................................................................ 972.5.5 A ambigidade estrutural ..................................................................... 972.5.6 As funces sintticas ......................................................................... 1002.5.7 Tpico e foco ..................................................................................... 1052.6 A semntica ....................................................................................... 1082.6.1 Campos semnticos ........................................................................... 1112.6.2 Linguagem e pensamento .................................................................. 1132.6.3 A lexicografia ...................................................................................... 1142.7 A pragmtica ...................................................................................... 1182.7.1 O contexto .......................................................................................... 1192.7.2 Os atos de fala ................................................................................... 1202.7.3 A dixis .............................................................................................. 1212.7.4 A anlise do discurso ......................................................................... 126 Atividades sugeridas .......................................................................... 127 Leituras adicionais.............................................................................. 148

    Captulo 3 I A Variao da Linguagem3.1 Variao diatpica .............................................................................. 1523.2 Variao diastrtica ............................................................................ 1583.3 Variao situacional ........................................................................... 166

  • 3.4 Variao diacrnica ............................................................................ 1673.4.1 A lingstica histrico-comparativa ..................................................... 169 Atividades sugeridas .......................................................................... 172 Leituras adicionais.............................................................................. 175

    Captulo 4 I A Tipologia Lingstica4.1 A abordagem tipolgica ...................................................................... 1784.2 A tipologia lingstica ......................................................................... 1794.3 A tipologia de ordem vocabular .......................................................... 1824.3.1 Os universais de Greenberg .............................................................. 1854.3.2 As generalizaes de Lehmann ......................................................... 1874.4 A tipologia de marcao de casos ..................................................... 200 Atividades sugeridas .......................................................................... 204 Leituras adicionais.............................................................................. 209

    Captulo 5 I Oficina do Perodo5.1 Perspectiva ......................................................................................... 2125.2 O perodo ........................................................................................... 2145.3 Articulao das oraes no perodo ................................................... 215 Atividades sugeridas .......................................................................... 217 Leituras adicionais.............................................................................. 225

    Captulo 6 I A Ecologia da Linguagem6.1 Uma agenda ecolingstica ................................................................ 2286.1.1 A natureza das lnguas ..................................................................... 2316.1.2 As estruturas das lnguas ................................................................... 2326.1.3 A classificao das lnguas ................................................................ 2326.1.4 O uso das lnguas .............................................................................. 2336.1.5 A tradio de escrita das lnguas ....................................................... 2336.1.6 A poltica lingstica ........................................................................... 2346.2 Uma mente, duas lnguas .................................................................. 2356.2.1 A compreenso de oraes adjetivas ambguas ................................ 2366.2.2 A transferncia de padres de ordem vocabular ................................ 240 Atividades Sugeridas .......................................................................... 248 Leituras Adicionais ............................................................................. 255

    Referncias ................................................................................................. 256

  • 9Apresentao

    A Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (SECAD/MEC) tem enorme satisfao em publicar, em parceria como o Laboratrio de Pesquisas em Etnicida-de, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o presente livro, parte da srie Vias dos Saberes.

    Uma de nossas mais importantes misses propor uma agenda p-blica para o Sistema Nacional de Ensino, que promova a diversidade sociocultural, extrapolando o seu mero reconhecimento, patamar j afirmado em diversos estudos sobre nossa sociedade, os quais derivam, em sua grande maioria, de celebraes reificantes da produo cultural de diferentes grupos sociais, que folclorizam manifestaes produzidas e reproduzidas no dia-a-dia das dinmicas sociais e reduzem os valores simblicos que do coeso e sentido aos projetos e s prticas sociais de inmeras comunidades.

    Queremos interferir nessa realidade transformando-a, propondo questes para reflexo que tangenciem a educao, tais como: de que modo reverteremos a histrica subordinao da diversidade cultural ao projeto de homogeneizao que imperou ou impera nas polticas p-blicas, o qual teve na escola o espao para consolidao e disseminao de explicaes encobridoras da complexidade de que se constitui nossa sociedade? Como convencer os atores sociais de que a invisibilidade dessa diversidade geradora de desigualdades sociais? Como promover cidadanias afirmadoras de suas identidades, compatveis com a atual construo da cidadania brasileira, em um mundo tensionado entre plu-

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    ralidade e universalidade, entre o local e o global? Como transformar a pluralidade social presente no microespao da sala de aula em estmulo para rearranjos pedaggicos, curriculares e organizacionais que com-preendam a tenso gerada na sua positividade, a fim de ampliar e tornar mais complexo o dilogo entre realidades, perspectivas, concepes e projetos originados da produo da diversidade sociocultural? Como superar a invisibilidade institucionalizada das diferenas culturais que valida avaliaes sobre desempenho escolar de crianas, jovens e adul-tos sem considerar as suas realidades e pertencimentos sociais?

    O impulso pela democratizao e afirmao dos direitos humanos na sociedade brasileira atinge fortemente muitas das nossas instituies es-tatais, atreladas a projetos de estado-nao comprometidos com a anu-lao das diferenas culturais de grupos subordinados. Neste contexto, as diferenas culturais dos povos indgenas, dos afro-descendentes e de outros povos portadores de identidades especficas foram sistema-ticamente negadas, compreendidas pelo crivo da inferioridade e, desse modo, fadadas assimilao pela matriz dominante.

    A proposta articular os atores sociais e os gestores para que os de-safios que foram postos estabeleam novos campos conceituais e prti-cas de planejamento e gesto, renovados pela valorizao da diversidade sociocultural, que transformem radicalmente posies preconceituosas e discriminatrias.

    Esperamos contribuir no s para difundir as bases conceituais para um renovado conhecimento da sociodiversidade dos povos indgenas no Brasil contemporneo, como tambm para fornecer subsdios para o fortalecimento dos estudantes indgenas no espao acadmico, e tornar mais complexo o conhecimento dos formadores sobre essa realidade e sobre as relaes que se estabelecem no convvio com as diferenas culturais. Finalmente, esperamos que a sociedade aprofunde sua busca pela democracia com superao das desigualdades sociais.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (Secad/MEC)

  • 11

    Prefcio

    Nas trilhas das universidades: as lnguas e a educao de indgenas

    Vias dos Saberes uma srie de livros destinada a fornecer subsdios formao dos estudantes indgenas em cursos de nvel superior. Os textos visam agregar experincia de cada um pontos de partida para a composio dos instrumentos necessrios para aguar a percepo quanto aos amplos desafios sua frente, diante de metas que tm sido formuladas pelos seus povos, suas organizaes e comunidades. Entre as metas esto: a da sustentabilidade em bases culturalmente diferencia-das, em face do Estado nacional, das coletividades indgenas no Brasil do sculo XXI; a da percepo de seus direitos e deveres como integran-tes de coletividades indgenas e enquanto cidados brasileiros; a de uma viso ampla dos terrenos histricos sobre os quais caminharo como partcipes na construo de projetos variados de diferentes futuros, na qualidade de indgenas dotados de saberes tcnico-cientficos postos a servio de seus povos, mas adquiridos por meio do sistema de Ensino Superior brasileiro, portanto, fora de suas tradies de conhecimentos.

    A estas devemos agregar ainda duas outras metas fundamentais: a da conscincia poltica da heterogeneidade das situaes indgenas no Brasil, diante da qual se coloca a total impropriedade de modelos nicos para solucionar os problemas dos ndios no pas; e a da pre-sena, em longa durao, que vem desde os alvores das conquistas das Amricas, dos conhecimentos tradicionais indgenas em meio construo dos saberes cientficos ocidentais, no reconhecida e

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    no-remunerada, todavia, pelos mecanismos financeiros que movem o mundo capitalista contemporneo, e sem qualquer valorizao po-sitiva que no beire o folclrico.

    Num plano secundrio, os volumes de Vias dos Saberes buscam tambm servir tanto formao dos formadores, isto dos docentes do sistema universitrio brasileiro, quanto dos estudantes no-ind-genas, em geral bastante ignorantes da diversidade lingstica, dos mo-dos de vida e das vises de mundo de povos de histrias to distintas como os que habitam o Brasil e que compem um patrimnio humano inigualvel, ao menos para um mundo (Oxal um dia o construamos assim!) que tenha por princpio elementar o respeito diferena, o cul-tivo da diversidade, a polifonia de tradies e opinies e que se paute pela tolerncia, como tantos preconizam no presente. Como denomi-nador comum que aproxima os quase 220 povos indgenas falantes de 180 lnguas, com cerca de 734 mil indivduos (0,4% da populao brasileira) apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estats-tica (IBGE), no Censo de 2000, como indgenas h a violncia da colonizao europia com suas variadas histrias, desde os mais crus episdios de guerras de dizimao e de epidemias em perodos recu-ados da histria desse nosso pedao do continente americano at as mais adocicadas formas de proteo engendradas pelo republicano (e colonialista) Estado brasileiro contemporneo.

    Os quatro volumes desta srie foram especialmente pensados para atender aos debates em classes de aula em cursos regulares ou em cursos concebidos, de forma especfica, para os estudantes indgenas, como as licenciaturas interculturais e s discusses em trabalhos de tutoria, grupos de estudos, classes de suplementao, cursos de extenso, alm de muitos outros possveis espaos de troca e de dilo-go entre portadores de tradies culturais distintas, ainda que alguns deles indgenas e no-indgenas j tenham sido submetidos aos processos de homogeneizao nacionalizante que marcam o sistema de ensino brasileiro de alto a baixo.

    Se reconhecemos hoje, em textos de carter primordialmente pro-gramtico e em tom de crtica, que a realidade da vida social nos

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    Estados contemporneos a das diferenas socioculturais ainda que estas se dem em planos cognitivos muito distintos e em escalas tam-bm variadas de lugar para lugar e que preciso fazer do conflito de posies a matria de um outro dia-a-dia, tenso e instvel mas rico em vida e em possibilidades para um novo fazer escolar, na prtica, esta-mos muito longe de amar as divergncias e de construir as aproxi-maes provisrias possveis entre mundos simblicos apartados. Que fique claro: no apenas uma espcie de mea culpa bem-intencionada e posturas simpticas e pueris que poro termo a prticas geradas por estruturas de dominao colonial de longo prazo, de produo da de-sigualdade a partir das diferenas socioculturais, estas consideradas como signo de inferioridade. Tal enunciao prescritiva da busca de novas posturas mal disfara o exerccio da violncia (adocicada que seja), nica cauo de uma verdade tambm nica e totalitria. preciso ir bem mais adiante.

    Estes livros sobre a situao contempornea dos povos indgenas no Brasil, seus direitos, suas lnguas e a histria de seus relacionamentos com o invasor europeu e a colonizao brasileira no se pretendem pioneiros em seus temas, j que so tributrios de iniciativas impor-tantes que os precedem. Mas por algumas razes marcam, sim, uma ruptura. Em primeiro lugar, dentre seus autores figuram indgenas com-prometidos com as lutas de seus povos, pesquisadores nas reas de co-nhecimento sobre as quais escrevem, caminhando nessas encruzilhadas de saberes em que se vo inventando os projetos de futuro dos povos autctones das Amricas. Em segundo lugar, inovam por referencia-rem-se s lutas indgenas pelo reconhecimento cotidiano de suas his-trias diferenciadas e dos direitos prprios, bem como luta contra o preconceito, as quais tm agora na arena universitria seu principal campo de batalhas. Em terceiro lugar, porque estes livros desejam abrir caminho para muitos outros textos que, portadores de intenes seme-lhantes, venham a discordar do que neles est escrito, e a retificar, a ampliar, a gerar reflexes acerca de cada situao especfica, de cada povo especfico, de modo que, se surgirem semelhanas nesse processo, sejam elas resultantes da comparao entre os diferentes modos de vida

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    e histrias especficas dos povos indgenas, e no do seu aniquilamento pela submisso dessa diversidade a uma idia geral do que ser um ge-nrico cidado brasileiro.

    Finalmente, em quarto lugar e, sobretudo, por serem publicados pelo Governo Federal e distribudos amplamente no pas, espera-se ainda que esses livros abram novas trilhas a conhecimentos essenciais hoje enclausurados nos cofres das universidades a um importante e cres-cente nmero de estudantes indgenas, de modo que eles possam re-combin-los em solues prprias, singulares, inovadoras, fruto de suas prprias pesquisas e ideologias. Assim, talvez pela preservao da dife-rena em meio universalidade e pela busca da ruptura com os efeitos de poder totalitrio de saberes dominantes e segregadores, vivique-se a idia da universidade, em seu sentido mais original e denso, livre das constries amesquinhadoras com as quais a sua apropriao tem sido brindada por projetos de Estado. Quem sabe a a to atual e propalada incluso dos menos favorecidos venha a perder o risco de ser, para os povos indgenas, mais um projeto massificante e etnocida, e se possa reconhecer e purgar que muitas desigualdades se instauram na histria a partir da invaso e das conquistas dos diferentes.

    *

    Manual de Lingstica: subsdios formao de professores ind-genas na rea de linguagem, de Marcus Maia, dirige-se de modo mais decisivo formao universitria e ao exerccio profissional dos mais de 9.000 professores indgenas em atuao nas escolas do pas. Servir luta contra o preconceito, que tem presidido o tratamento dos alu-nos indgenas nas escolas no-indgenas no pas, e servir a uma outra prtica no contexto das escolas indgenas, a comear pela reviso de conceitos errneos que se reproduzem como verdade cientfica, so algumas de suas muitas metas. Mas espera-se que alm de conhecimen-tos sobre o funcionamento da linguagem e acerca da especificidade das lnguas indgenas, o livro suscite tambm reflexes, sobretudo acerca do aprendizado do portugus em contextos de bilingismo, quer nos

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    aspectos didticos propriamente ditos, quer nas suas dimenses mais estritamente polticas. O livro faz-se ainda acompanhar de sugestes de exerccios e de leituras adicionais, no esprito prprio a essa srie: o de abrir novos caminhos, e no de lhes dar o seu ponto final.

    Antonio Carlos de Souza LimaLACED / Departamento de Antropologia

    Museu Nacional / UFRJ

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    Introduo

    Em 1987, eu trabalhava no Museu do ndio (FUNAI/RJ) quando participei da organizao de um encontro de professores da etnia Ka-raj, reunindo representantes dos subgrupos Karaj, Java e Xambio. Na preparao daquele encontro, que se realizaria em julho de 1988, na aldeia Karaj de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, visitei vrias aldeias da etnia, inclusive aquelas mais ao norte, do subgrupo Xambio. Ao chegar, pela primeira vez, na aldeia do PI Xambio, j estudava a lngua Karaj h algum tempo, tendo defendido no ano an-terior minha dissertao de mestrado sobre aspectos da gramtica des-sa lngua. Por isso, arrisquei-me a tentar conversar em Karaj com as crianas que vieram em um bando alegre me receber, quando o jipe da FUNAI, que me trazia, parou no posto indgena, prximo aldeia.

    Ahe! saudei em Karaj. Dear Marcus Maia wanire, me apre-sentei. Imediatamente cessou a algazarra e fez-se um silncio pesado entre os indiozinhos. Entreolhavam-se desconfiados e srios. Kaiboho abo iny ryb tierytenyte? Vocs no sabem a lngua Karaj, pergun-tei. A meninada, ento, se afastou em retirada estratgica. Fui, em se-guida, casa de uma lder da comunidade, a Maria Floripes Txukodese Karaj, a Txuk, me apresentar. L, um dos meninos me respondeu: A gente no fala essa gria no, moo! Outro, maiorzinho, concor-dou: Na cidade, a gente diz que nem sabe de ndio, que nem fala o indioma, seno o povo mexe com a gente.

    O preconceito de que os indgenas brasileiros so alvo por parte de muitos brasileiros no indgenas , sem dvida, um dos fatores respon-

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    sveis pelo desprestgio, enfraquecimento e desaparecimento de muitas lnguas indgenas no Brasil. Durante minha estada nas aldeias Xam-bio, discuti com ancios, lideranas, professores e alunos, a situao de perda da lngua em relao a aldeias em que a lngua e a cultura Karaj encontram-se ainda fortes. interessante notar que, durante a minha temporada na aldeia, quando continuei sempre a exercitar o meu conhecimento da lngua indgena, era freqentemente procurado por grupos de crianas e jovens, que vinham me mostrar palavras e frases que conheciam e testar o meu entendimento delas. Os mesmos meninos que haviam inicialmente demonstrado sentir vergonha de falar Karaj, dizendo-me nem conhecer aquela gria, assediavam-me agora, reve-lando um conhecimento latente da lngua indgena muito maior do que eles prprios pareciam supor! Divertiam-se em demonstrar quele tori (o no ndio, na lngua Karaj) que valorizava e tentava usar a lngua Karaj que, na verdade, conheciam, sim, a lngua indgena. Vrios pais tambm vieram me relatar sua grande surpresa por verem as crianas curiosas, perguntando e se expressando na lngua Karaj, no s pro-nunciando palavras e frases inteiras, como at ensaiando dilogos e narrativas tradicionais.

    A experincia ao longo de vrios anos em programas de educao indgena tem me convencido no s da importncia pedaggica, mas tambm da urgncia poltica de se proceder ao redimensionamento de conceitos fundamentais que restabeleam um substrato terico ade-quado para se pensar, com clareza, questes lingsticas, de modo a contribuir no s com a descrio e anlise das lnguas indgenas brasi-leiras, mas tambm com a sua revitalizao e preservao. Embora mui-tos conceitos inadequados sobre a linguagem e as lnguas estejam, de fato, disseminados em todo o Brasil, a falta de correo dessas noes ainda mais dramtica para as populaes indgenas que, por assim dizer, esto sofrendo na pele (ou seria mais adequado dizer tambm na carne e na alma?), aqui e agora, as conseqncias da introjeo do preconceito, acabando por assumir, eles prprios, que suas lnguas so grias ou dialetos primitivos, manejados por ignorantes analfa-betos que cumpre tentar civilizar, como j ouvi at de professores

  • 19

    no ndios, atuando em cidades prximas a aldeias Karaj. Preconceitos decorrentes em ltima anlise de distores conceituais profundas que, se no foram elaboradas na prpria escola tradicional, deixaram, no mnimo, de ser corrigidas por ela.

    O exerccio de reflexes como as esboadas acima, em conjunto com professores indgenas, tem sido extremamente produtivo e, por vezes, surpreendente, ao se constatar como muitas dessas questes so, na verdade, conhecidas pelos professores. Por exemplo, a noo cognitivis-ta de que a mente rica em estrutura e que o processo de aquisio da linguagem de dentro para fora, os conceitos de competncia grama-tical e desempenho, a concepo de princpios universais e parmetros particulares, a distino entre gramtica descritiva e gramtica norma-tiva, o estudo das variaes diacrnicas, diastrticas, diatpicas e diaf-sicas, entre vrios outros, so todos tpicos que na minha experincia encontraram entre os professores ndios vozes entusiasmadas, prontas a dar novos exemplos, a propor detalhamentos extremamente criativos, que tornam o momento do encontro entre lingista e professor indgena experincia verdadeiramente fascinante. Por essa razo, confiamos que a proposta de estudo dos conceitos lingisticos, desenvolvida no presen-te livro poder ser til em disciplinas de lingstica, lnguas indgenas e de lngua portuguesa, em programas de formao de professores.

    O livro destinado a formadores de professores indgenas e a pro-fessores indgenas, podendo ser utilizado em nvel mdio e em cursos superiores de formao de professores. Sua publicao justifica-se pela escassez de material acessvel, escrito em linguagem simples e objetiva, cobrindo diferentes aspectos do conhecimento lingstico em geral e da lngua portuguesa, em particular, especificamente destinado educa-o indgena em nvel mdio e superior. Partindo dos fundamentos con-ceituais e metodolgicos da lingstica contempornea, o livro pretende contribuir para a formao terica do professor indgena na rea da linguagem, sugerindo-lhe, tambm, procedimentos prticos para o de-senvolvimento da capacidade de redao em lngua portuguesa dos seus alunos nas escolas indgenas. O livro pretende ainda chamar a ateno do professor indgena para a relao entre o portugus e as lnguas

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    indgenas nas situaes de bilingismo, alm de sensibiliz-lo para a questo das lnguas em perigo de desaparecimento.

    Ao longo de todo o livro, fornecem-se exemplos de anlises sobre fe-nmenos do portugus e de algumas outras lnguas, especialmente da lngua indgena brasileira Karaj (Macro-J), procurando-se incentivar os leitores a tambm tentar anlises sobre esses e outros fenmenos em outras lnguas. Encontram-se, em cada captulo, sees destaca-das graficamente do texto principal, geralmente apresentando textos complementares e exemplificao adicional, alm de vrias ilustraes, com vistas a contribuir para a melhor compreenso das questes es-tudadas. Em todos os captulos foram, tambm, includas sugestes de atividades a serem realizadas nas escolas indgenas e indicaes de leituras complementares em portugus, permitindo aos interessados aprofundarem o seu conhecimento sobre os assuntos ali tratados.

    O livro se divide em seis captulos. O primeiro captulo apresen-ta conceitos fundamentais da rea da linguagem, que caracterizada como capacidade cognitiva, enquanto lngua conceituada como pro-duto dessa capacidade. Discutem-se, ainda, nesse captulo introdutrio, temas como a aquisio da linguagem, a diferena entre a competncia e o desempenho lingsticos, a gramtica universal e as gramticas das lnguas particulares, as diferenas entre a lngua oral e a lngua escrita. O captulo introduz tambm noes importantes a respeito da pedago-gia do ensino de lnguas, contrastando o ensino descritivo e produtivo com o ensino prescritivo da gramtica, com vistas a levar o professor a desenvolver uma percepo crtica de concepes populares arrai-gadas, mas equivocadas, sobre a linguagem, tais como a existncia de lnguas primitivas, de uma nica norma gramatical certa, etc. No final do captulo, apresentam-se as funes da linguagem e os subsis-temas constituintes do conhecimento lingstico, introduzindo noes que sero detalhadas no captulo 2.

    O segundo captulo apresenta, fundamentalmente, os sub-compo-nentes da gramtica, a saber, a fontica, a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semntica, alm de resenhar, tambm, algumas noes cen-trais da pragmtica. O captulo tem o objetivo de desenvolver o conhe-

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    cimento integrado dos subsistemas lingsticos, sem a adoo de um vis terico complexo, mas indicando fontes bibliogrficas de referncia para o aprofundamento das questes estudadas.

    O captulo 3 aborda a variao da linguagem, que explorada em seus aspectos diatpicos, diastrticos, diafsicos e diacrnicos. O cap-tulo 4 dedicado tipologia sinttica, especialmente ao estudo dos pa-dres de ordem vocabular e de marcao de casos. O captulo 5 discute a noo de perspectiva e prope prticas de redao e interpretao de perodos compostos por coordenao e subordinao, com vistas a aju-dar a desenvolver a capacidade de redao em lngua portuguesa. Final-mente, o captulo 6 apresenta a ecolingstica, procurando sensibilizar o professor para o fenmeno da transferncia de padres entre as ln-guas na mente dos bilnges e para a questo das lnguas em perigo de desaparecimento, fornecendo-lhe informaes e sugerindo meios para o desenvolvimento de micro-polticas de preservao lingstica.

    *

    Agradeo aos alunos indgenas e aos docentes da rea de Lnguas, Artes e Literatura do Projeto do 3 Grau Indgena (UNEMAT), com-panheiros da primeira experincia de educao superior indgena dife-renciada e de qualidade no Brasil. Ao meu amigo, Ijeseberi Karaja, em memria.

  • Captulo 1

    A Linguagem Humana: conceitos fundamentais

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    1.1 Linguagem e lngua

    A linguagem uma capacidade ou faculdade mental que todos os seres humanos e apenas os seres humanos possuem. Ela a mes-ma nos cerca de seis bilhes de indivduos da espcie humana exis-tentes no mundo. essa capacidade, que pode ser considerada um rgo da mente, que nos permite adquirir e usar diferentes lnguas. As cerca de seis a dez mil lnguas faladas hoje no mundo, includas a as 180 lnguas indgenas faladas no Brasil, bem como as milhares de lnguas que j no so mais faladas, ou mesmo as lnguas que ainda vo ser criadas so ou sero, todas, produtos dessa mesma capaci-dade da mente humana. Dizer que essa capacidade inata significa que no a aprendemos no curso de nossa experincia de vida, mas j nascemos com ela. Essa competncia est na nossa mente e no est na mente de um macaco, por exemplo. por isso que aos dois, trs anos, uma criana humana capaz de falar frases que nunca ouviu antes, fazer perguntas, pedidos, comentrios originais e criativos que no so apenas a repetio de frases iguais as que ouviu em sua volta, como fazem os papagaios, por exemplo. O papagaio, ou mesmo os macacos, por mais espertos que possam ser, no tm essa faculdade em sua mente e por essa razo que at podem aprender a reconhe-cer ou produzir algumas palavras isoladas, mas no so capazes de formar frases originais.

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    1.2 Infinitude discreta

    Esse conhecimento to complexo parte da nossa biologia. Se j no nascssemos com ele, no haveria meio de aprend-lo s atravs da observao das coisas. Se a linguagem fosse aprendida como em um jogo de repetio, s seramos capazes de falar o que ouvimos, mas de fato quando falamos uma lngua demonstramos saber muito mais do que aquilo que ouvimos. Essa propriedade da nossa capacidade de linguagem conhecida pelos lingistas como infinitude discreta, ou seja, somos capazes de produzir um nmero infinito de expresses gramaticais a partir de um conjunto finito de elementos e princpios lingsticos. Essa propriedade se manifesta tambm no nosso conhecimento de matemtica: quantos nmeros podemos for-mar? Qual o fim dos nmeros? Essas perguntas so at cmicas de to bvias, no ? Todos sabemos que podemos formar um sem fim de nmeros, com apenas dez algarismos. assim tambm com os sons das lnguas: com vinte ou trinta sons podemos produzir quan-tas palavras? No d nem para contar porque no tem fim. Ser que algum nos ensinou essa capacidade? Nossos pais certamente nunca nos disseram algo como: olha, meu filho, voc pode formar tantas palavras quantas quiser, combinando esses sons, t? Fica realmente engraado falar assim, porque esse conhecimento j veio com a gente, uma das propriedades fundamentais do nosso rgo da linguagem. Na imagem abaixo, destacam-se duas reas do crebro relacionadas linguagem: esquerda, a chamada rea de Broca, ligada produ-o da linguagem e, mais direita, a rea de Wernicke, associada compreenso da linguagem.

    reas da linguagem no crebro

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    1.3 Comportamentalismo e cognitivismo

    A criana quando chega na escola j sabe tudo isso. E muito mais. Mas j houve quem achasse que a cabecinha da criana como uma caixa vazia, uma folha de papel em branco, no qual se escreve o saber, de fora para dentro. Essa teoria, conhecida como comporta-mentalismo, defendida por um psiclogo norte-americano de nome B.F. Skinner, foi contestada por um lingista, tambm norte-ame-ricano, chamado Noam Chomsky, na metade do sculo XX, com argumentos como esses que estamos considerando aqui. Skinner achava que o fenmeno da linguagem humana podia ser explica-do de fora para dentro, isto , a criana receberia os estmulos lingsticos do ambiente e, ento, produziria suas respostas verbais. Chomsky demonstrou que os estmulos ambientais so pobres quando comparados complexidade do comportamento verbal exi-bido pelas crianas. Tome, por exemplo, uma frase com apenas dez palavras: Tente recombinar qualquer perodo simples formado por umas dez palavras. Voc tem idia de quantas combinaes seriam matematicamente possveis com essas dez palavras? Pois so exa-tamente 3.628.800 combinaes possveis, das quais apenas uma combinao gramatical! Como se pode haver aprendido tamanha restrio combinatria? Certamente, no por meio de instrues ou correes de pais e professores. Possumos estrutura inata poderosa que nos permite eliminar milhes de possibilidades combinatrias. Assim, sabemos que uma frase como (1) bem formada, enquanto que (2) no :

    (1) Tenterecombinarqualquerperodosimplesformado porumasdezpalavras.

    (2) *Palavrasdezumasporformadosimplesperodo qualquerrecombinartente.

    Mesmo algum que nunca pisou em uma escola sabe muito bem que a frase (2) no uma frase bem formada em portugus, sem que ningum tenha ensinado isso a ele. E ele tem esse conhecimento

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    implcito em sua mente. Um analfabeto tambm no formaria uma frase composta apenas por substantivos lado a lado, como lpis mesa sala professor escola. Ele, certamente, usaria esses substan-tivos junto com palavras de outras classes gramaticais, como, arti-gos, preposies, verbos, etc.: O lpis est sobre a mesa da sala do professor na escola. Mas, como ele faz isso, se nem mesmo foi escola para aprender o que substantivo, artigo, preposio, verbo, etc.? Novamente, a resposta que ele tem o conhecimento implcito dessas classes, no a escola que vai lhe ensinar isso. A escola vai apenas explicitar esse conhecimento, ajud-lo a se tornar consciente de quanta coisa ele j sabe, mas nem sabia que sabia!

    Ao chamar a ateno das pessoas para esses fatos, Chomsky pro-voca uma verdadeira revoluo no pensamento cientfico dominante nas universidades na poca. Skinner nem teve resposta a dar em de-fesa do comportamentalismo. Esse perodo, em meados da dcada de 1950, veio a ser conhecido como o incio da revoluo cognitivista nas cincias humanas. O cognitivismo prope que a mente humana no seja vista como uma caixa vazia, como queriam os comporta-mentalistas, mas seja rica em estrutura, composta por diferentes r-gos, cada um com uma funo. Um desses rgos exatamente a faculdade da linguagem que, se bem estudada, pode nos dar a chave para entender a gramtica de todas as lnguas faladas no mundo e pode ser um espelho para a prpria mente humana.

    1.4 O problema de Plato e o problema de Orwell

    Chomsky diz que as duas grandes questes filosficas sobre a cog-nio humana so o Problema de Plato e o Problema de Orwell. O Proble-ma de Plato exatamente o problema da pobreza de estmulos, que temos estado considerando. Este problema pode ser expresso pela pergunta: Como podemos saber tanto, se temos to poucas evidn-cias?. Ou seja, se ningum nos ensina sistematicamente noes im-portantssimas e essenciais para o manejo da linguagem, como as

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    que examinamos acima, como que podemos adquirir uma lngua? A resposta, como vimos, que sabemos tanto porque j nascemos sa-bendo. Obviamente, no que j nasamos sabendo falar portugus ou ingls ou Xavante ou Karaj. J nascemos com uma espcie de instinto lingstico: princpios universais que se aplicam a qualquer uma das lnguas humanas e por isso que somos capazes de adquirir qualquer uma dessas lnguas, de maneira to rpida e uniforme. Seja qual for a lngua, em torno de um ano de idade falamos palavras isoladas; em torno de um ano e meio, comeamos a juntar palavras e com cerca de trs, quatro anos, j adquirimos, basicamente, a gra-mtica da lngua. Claro que aprendemos novas palavras e, mesmo, construes gramaticais ao longo de toda a nossa vida, mas a aquisi-o das estruturas fundamentais se d de maneira muito semelhante para todos os seres humanos, no importando sua raa, classe social, nacionalidade, gnero, etc.

    O Problema de Orwell foi assim nomeado por causa do escritor ingls George Orwell, que escreveu livros como A Revoluco dos Bichos, em que os animais se revoltam contra um fazendeiro que os oprime, mas acabam reproduzindo uma sociedade em que os animais tambm oprimem uns aos outros. O Problema de Orwell expresso por Chomsky pela pergunta: Como podemos saber to pouco se temos tantas evidncias? O que Chomsky quer dizer que, embo-ra tenhamos tantas informaes atravs do rdio, televiso, jornais, internet, livros, etc., ainda somos manipulados e levados a acreditar em certos pontos de vista, em prejuzo de outros. Chomsky diz que o problema fundamental da cognio , de fato, o problema de Plato, mas que, se no considerarmos o problema de Orwell, corremos o risco de viver em um mundo em que nossos pensamentos e opinies sejam totalmente manipulados. Por isso, importante que o proble-ma de Orwell seja abordado, principalmente, no nvel universitrio, quando queremos desenvolver plenamente o pensamento crtico, a capacidade de questionar, de investigar criativamente os fenmenos e no apenas assimilar passivamente contedos pr-estabelecidos. Assim como fizemos com o Problema de Plato, vamos propor um

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    exemplo a ser analisado a fim de ilustrar essa questo. Observe duas notcias sobre o mesmo jogo de futebol entre Vasco e Flamengo, da-das por dois jornais diferentes:

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    Embora se trate da reportagem do mesmo fato: um jogo no est-dio de Moa Bonita, no Rio de Janeiro, em que o Flamengo venceu o Vasco por 3 gols a 1, tendo havido problemas na arbitragem, cada jornal organiza o perodo de modo a minimizar ou dar destaque a al-gum desses aspectos. De tal forma que quem l um dos jornais pode ter a sua ateno chamada principalmente para os erros do juiz , sen-do a vitria do Flamengo minimizada (A Folha). J o leitor do outro jornal v os fatos da perspectiva da vitria do Flamengo, sendo os erros do juiz colocados em segundo plano (O Jornal). Tomar consci-ncia da manipulao da informao atravs da linguagem contribui para desenvolvermos a capacidade de pensar criticamente. No cap-tulo 5, retornaremos a essa questo de maneira mais sistemtica.

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    1.5 Aquisio e aprendizagem da linguagem

    Como vimos acima, o inatismo fornece a resposta ao Problema de Plato: sabemos tanto, embora tenhamos to poucas evidncias por que j nascemos com princpios da linguagem universais que nos indicam as propriedades centrais que qualquer lngua huma-na pode ter. Assim, embora os dados que recebemos do ambiente sejam pobres, isto , assistemticos e fragmentados, conseguimos adquirir uma lngua porque nascemos com princpios gerais que nos ajudam a organizar os estmulos verbais deficientes em estrutu-ras complexas. Vimos tambm que esse processo se d de maneira bastante homognea para todas as crianas, independentemente do meio em que sejam criadas. Esse processo natural e espontneo que se chama de aquisio da linguagem, devendo ser diferenciado do termo aprendizagem. A aquisio o que ocorre criana exposta a estmulos lingsticos: o rgo da linguagem ativamente opera sobre esses estmulos produzindo a aquisio de uma lngua especfica. Esses princpios universais, que os lingistas propem que constituam o rgo da linguagem, so tambm chamados de gramtica universal (GU). Observe que a gramtica universal s aces-sada de maneira natural e espontnea at um certo perodo da vida, conhecido como perodo crtico da aquisio. Esse perodo, que se situa em torno da puberdade, atua como verdadeiro divisor de guas para a aquisio. Note que, aps a puberdade, pode-se aprender, mas no adquirir uma lngua. O processo de aprendizagem de uma lngua, ao contrrio da aquisio, depende de esforo, exer-ccio, prtica, e, geralmente, no se obtm resultados to bons. o que ocorre no aprendizado de uma lngua estrangeira, aps a ado-lescncia: submetemo-nos a um processo qualitativamente diverso daquele levado a efeito na aquisio, um processo muito menos na-tural, que depende de nossas habilidades individuais e exige empe-nho sistemtico durante longo perodo, ao fim do qual, o resultado jamais equivalente ao do falante nativo que adquiriu a lngua na infncia.

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    Como vimos acima, outra evidncia de que a aquisio da lin-guagem , de fato, um processo universal a sua homogeneidade na espcie humana. Isto , independentemente da sociedade em que nasam e sejam criadas, as crianas passam pelos mesmos estgios na aquisio da linguagem: h, inicialmente, o estgio dos balbucios, caracterizado por uma variedade de sons que, muitas vezes, so usa-dos em algumas das lnguas do mundo, embora nem sempre ocorram na lngua que a criana ir, posteriormente, falar. Em alguns meses, os bebs passam a fixar-se dominantemente nos sons falados nas lnguas ao seu redor. Por volta de 8 a 10 meses de idade, geralmente, as crianas passam a pronunciar palavras isoladas de sua lngua o perodo conhecido como holofrstico, em que uma palavra vale por uma frase inteira. Mais alguns meses e as crianas passam a formar frases de duas palavras o incio da sintaxe, a capacidade de com-binar palavras para formar frases.

    Aps o estgio de duas palavras, as crianas aumentam seu vo-cabulrio e seu conhecimento das regras de construo presentes na lngua, adquirindo seu sistema fonolgico e morfolgico, corrigindo sua pronncia, e, geralmente, alcanando a gramtica adulta de ma-neira bem rpida, mesmo que ainda no dominem inteiramente as estruturas mais complexas permitidas por sua lngua.

    1.6 Competncia e desempenho

    Dois outros conceitos que convm distinguir para evitar, desde logo, ambigidades na compreenso das questes lingsticas so os conceitos de competncia gramatical e desempenho lingstico. A competncia gramatical o saber lingstico abstrato que temos em nossa mente. Esse saber ou competncia lingstica acessado toda vez que precisamos produzir ou compreender frases. O uso desse saber em uma situao de fala especfica que constitui o desempenho lingstico. Assim, pode-se dizer que, se a competncia um saber, o desempenho um fazer.

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    Uma comparao que costuma ser usada para tornar mais clara essa diferena a de algum que faz uma conta grande de dividir, por exemplo. Ele sabe os procedimentos, as regras de como realizar aquela operao matemtica. Entretanto, s vezes, ele erra. Pode estar cansado, pode ter se distrado, errou ao fazer um uso de seu saber. Seu problema foi de desempenho, no de competncia. Isso tambm ocorre ao falarmos, isto , quando colocamos em uso nos-so saber lingstico. Por exemplo, j ouvi algum dizer Vou tortar a corta, quando, na verdade queria dizer Vou cortar a torta. Vamos analisar esses dados? Como descrever e explicar o que est acontecendo? Houve uma troca do [t] pelo [k], no foi? Vocs j ouviram coisas assim? Agora, ser que o falante no sabe como se pronunciam as palavras cortar e torta? Ser que um pro-blema do saber lingstico, isto , um problema de competncia? Provavelmente, no, pois, geralmente, ao cometer um deslize de lngua como este, o falante se corrige imediatamente. O que pare-ce estar ocorrendo um problema de desempenho: o falante conhe-ce os vocbulos, mas confundiu certos traos de sua representao sonora ao acess-los.

    OUtrOs desLIzes:

    ANteCIPAOcofeuafarofaporcomeuafarofa

    PerseverAOchutouacholaporchutouabola

    reversOfolouacotoporcolouafoto

    MIstUrAgrerroporgraveerro

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    Tambm ao construirmos perodos compostos por vrias oraes podemos encontrar certos problemas. Por exemplo, podemos formar, em portugus, um perodo como (3), em que h uma orao adjetiva encaixada na orao principal:

    (3) Oaluno [que o professor aprovou] saiu.

    A frase (3) , sem dvida, bem formada; est construda de acor-do com as regras da gramtica da lngua portuguesa. Podemos apli-car a mesma regra de encaixe de orao adjetiva para qualificar o constituinte o professor da orao adjetiva. A, temos, uma frase como (4):

    (4) Oaluno [que o professor [que o novo diretor contratou] aprovou] saiu.

    Agora, a nossa compreenso da frase ficou um tanto problem-tica. Por qu? A regra foi a mesma que aplicamos em (3) e, no en-tanto, temos dificuldade em compreender a frase (4)! No h dvi-de que a frase bem formada, isto , construda em conformidade com as regras da lngua portuguesa. Ento, o que est acontecen-do um problema de desempenho os limites de nossa memria tornam difcil estabelecer as relaes. H vrias frases abertas ao mesmo tempo e quando chegamos aos verbos contratou aprovou saiu nos confundimos para predicar cada um ao sujeito adequa-do: o aluno saiu, o professor aprovou e o diretor contratou. Diz-se, ento, que a frase (4) gramatical, mas no aceitvel, sendo a gramaticalidade um critrio de competncia e a aceitabilidade um critrio de desempenho.

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    1.7 Princpios da gramtica universal e parmetros das gramticas particulares

    A linguagem uma faculdade mental inata, um tipo especfico de conhecimento com o qual nascemos. Assim, como todas as lnguas so produtos da mesma capacidade mental, h profundas semelhan-as entre elas.

    Por exemplo, vejamos um princpio da Gramtica Universal, comum, portanto, a todas as lnguas humanas, conhecido como Princpio do En-caixe ou da Recursividade. Tomemos uma orao como (1):

    (1) Jooescreveuumlivro.

    (2) Pedro disse queJooescreveuumlivro.

    (3) Maria perguntou se Pedro disse queJooescreveuumlivro.

    (4) Luiz no sabe se Maria perguntou se Pedro disse queJooescreveuumlivro.

    Podemos ir encaixando esta orao em outra, sucessivamente, como exemplificado nos perodos compostos (2), (3) e (4). E poderamos pros-seguir fazendo esses encaixes, construindo perodos cada vez maiores, ilimitadamente, formando sempre oraes gramaticais. Temos compe-tncia para tal. O limite ser dado pela nossa memria: embora tenha-mos competncia para formar um perodo com nmero ilimitado de oraes, nosso desempenho tornar difcil ou mesmo impossvel passar de pouco mais de uma meia dzia de oraes. Note que essa no uma propriedade exclusiva do portugus. Se voc conhece outras lnguas, faa o teste agora e confirme! O princpio do encaixe ou da recursivi-dade uma propriedade da Gramtica Universal (GU) e est, portanto, presente em todas as lnguas humanas.

    O princpio do encaixe um princpio universal, parte da GU, que o sistema de todos os princpios e regras que so comuns a todas as lnguas humanas. Os seres humanos nascem equipados com tais prin-cpios, que lhes so disponveis anteriormente a qualquer experincia.

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    Assim como nascemos com a capacidade de andar, mas no de voar, temos um rgo da linguagem. Se assumimos que h uma tal capa-citao gentica, a tarefa de se atingir o conhecimento lingstico facilitada. A GU , assim, a base para a aquisio da linguagem.

    Entretanto, cabe perguntar: se nascemos com um rgo da lingua-gem que nos confere uma competncia gramatical inata, isto , um conhecimento implcito que todos trazemos conosco ao nascer, por que h diferenas entre as lnguas?

    A resposta: ao adquirirmos uma lngua especfica, os princpios da gramtica universal inatos interagem com os dados da lngua particular a que somos expostos e o resultado um complexo de parmetros, isto , especificaes particulares dos princpios gerais.

    Em todas as lnguas h verbos. Em todas as lnguas, h tambm verbos que precisam de complementos, tal como o verbo pegar. Quem pega, sempre pega alguma coisa. Por isso, uma frase como o homem pegou, assim fora de contexto, seria agramatical, isto , no poderia ser ge-rada. J, o homem pegou tucunar uma frase bem formada pois o ncleo verbal pegou complementado pelo nome tucunar. Entretanto, em algumas lnguas, o verbo ocorre geralmente antes do complemento, enquanto em outras, o verbo ocorre depois do complemento. Compare, por exemplo, a frase equivalente na lngua indgena brasileira Karaj:

    (1) habu benora rimyra homemtucunarpegou o homem pegou o tucunar

    Note que o verbo karaj rimyra pegou ocorre aps o complemento benora tucunar, diferentemente do portugus em que, como vimos, a ordem bsica do verbo antes do complemento. Isto ocorre porque o Karaj segue o parmetro do ncleo final, enquanto que o portugus segue o parmetro do ncleo inicial. No captulo IV, nos deteremos com maior detalhe nessas diferenas de ordem vocabular entre as lnguas.

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    1.8 descritivismo e prescritivismo

    Observe que a noo de gramaticalidade sobre a qual estamos falan-do muito diferente da noo de norma gramatical que, geralmente, a maior parte das pessoas tem em mente quando ouve falar em gram-tica. Infelizmente, existe uma noo de gramtica muito difundida, que precisa ser adequadamente caracterizada, se queremos organizar as nossas reflexes sobre a linguagem de modo mais cientfico, isto , evitando confuses e preconceitos.

    At aqui estamos usando o termo gramtica para significar um tipo especfico de conhecimento, distinguindo os seus princpios uni-versais e os seus parmetros particulares. Provavelmente, no entanto, este uso difere daquele que voc aprendeu na escola, que apresenta a gramtica como o conjunto de regras lingsticas que devem ser observadas por todos aqueles que queiram falar ou escrever certo. Note que este uso do termo subentende que uma lngua seja constru-da de fora para dentro, ou seja, a partir da opinio de gramticos, professores, academias ou outras autoridades que propem ou im-pem regras a serem seguidas pelos falantes.

    Do ponto de vista cientfico, o adequado que os gramticos apenas registrem as formas lingsticas que observam em uma co-munidade, sem ditar regras e sem escolher as formas que acham mais certas ou mais bonitas. Na verdade, essa perspectiva va-lorativa, conhecida como normativismo ou prescritivismo, no deixa de ser mais uma faceta do problema de Orwell, que discutimos acima. Impem-se regras com a finalidade de controle social. De fato, muitas vezes, tambm os professores de lngua perdem-se nes-ta confuso: priorizam o ensino de regras, ao invs de buscar de-senvolver mais plenamente o saber lingstico, a criatividade verbal dos falantes. A gramtica normativa afasta-se, portanto, do saber interior intuitivo do falante que, adestrado em regras que no reco-nhece como parte de sua competncia natural, afasta-se do estudo das lnguas, deixando de ampliar a sua capacidade de compreender e expressar a sua experincia do mundo, nos mltiplos aspectos

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    que ela comporta. Muitas vezes, este ensino excessivamente nor-mativista, acaba por bloquear a competncia lingstica natural, para reforar uma gramtica artificial que no corresponde s for-mas lingsticas realmente usadas na comunidade. Sem falar que os gramticos normativos nem sempre se interessam pelas muitas variantes regionais, sociais, etrias do portugus no Brasil de hoje, sinal de diversidade e vitalidade da lngua. Observe que, para ser bem sucedido comunicativamente, no se pode seguir grande parte das regras da gramtica normativa.

    Por exemplo, a gramtica normativa prescreve que no correto iniciar-se frase com pronome oblquo tono. Assim, no se deveria dizer me empresta, me diga, me d, e sim, empresta-me, diga-me e d-me, maneira de Portugal. Ocorre que, em Portugal, estes pronomes so de fato tonos, o que no ocorre no Brasil, onde a pronncia dessas formas efetivamente tnica. Por isso, os brasileiros preferem dizer, na-turalmente, me empresta, me diga, me d, ao invs de seguir uma norma gramatical desvinculada da sua realidade lingstica.

    As regras da gramtica tradicional baseiam-se, geralmente, nas normas da antiga gramtica latina e na lngua escrita, principalmen-te a norma literria usada por autores consagrados. A esse respeito, o educador Lauro de Oliveira Lima nota que ...a escola tradicio-nal est ensinando coisas de ontem s crianas de hoje, que sero adultos amanh. Freqentemente, os professores de lngua so vis-tos como os guardies das supostas verdades do idioma, aqueles que podem transmitir o que certo e o que errado falar ou escrever. Aqueles que aceitam esta perspectiva, esto prescrevendo normas e regras que, de fato, pouco (ou nada) contribuem para o desenvolvimento das capacidades de expresso e de comunicao dos alunos. As normas so variveis e o que considerado certo hoje, poder no s-lo amanh, assim como muita coisa que j foi vista como certa ontem, j no o mais hoje em dia. Da porque muitos educadores, tal como Oliveira Lima, sugerem que um cami-

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    nho alternativo a educao pela inteligncia. Ao invs de despejar sobre os alunos contedos ultrapassados, o professor de lnguas pode provocar a imaginao, o raciocnio, a capacidade de resolver problemas. Podemos, para resumir, caracterizar os dois tipos de ensino. Cada um dos dois d uma resposta diferente pergunta: Para qu ensinamos lngua na escola?

    eNsINO PresCrItIvO

    Digaisso,nodigaaquilo

    Este o lema do ensino prescritivo, que prope (ou impe) que a criana troque seus

    hbitos lingsticos espontneos por outros que a escola considera corretos.

    O ensino prescritivo convencional, abrange a fala e a escrita. Na escrita, h prescries que impedem a transferncia dos mo-delos da lngua oral para a escrita. Deveriam as crianas ter liber-dade para escrever tal como falam? H divergncia de opinies. Uma idia seria deixar que as crianas escrevam, inicialmente, seus prprios padres orais e, em uma segunda etapa, ensinam-se os padres consagrados na escrita. Mais adiante, abordaremos essa questo mais detidamente.

    Um ponto a considerar que, se o ensino prescritivo ocupar muito tempo da aula, o aluno ter uma falsa imagem da natureza da linguagem humana. Acabar pensando que a linguagem no passa de um conjunto de regras e normas, muitas vezes, desprovi-das de coerncia, que devem ser aceitas sem discusso e, mesmo, sem compreenso.

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    Tpico do ensino prescritivo so as atividades de memorizao, repetio e cpia. O professor Eurico Back conta a seguinte estria real:

    Uma professora tentava ensinar aos seus alunos o passado (pretrito perfeito) dos verbos de segunda conjugao:

    Professora: Vender? Ele...Alunos: Vendeu.Professora: Viver? Ele...Alunos: Viveu.Professora: Caber.Alunos: Cabeu.Professora: Errado! O certo coube.Alunos: !!??

    Um menino, no entanto, insistia em usar a forma cabeu, ao invs de coube. A professora, ento, mandou que ele copiasse 100 vezes: No cabeu, e sim coube. O menino trabalhou durante quase uma hora no exerccio. Enfim, entregou a folha professora:

    Terminei, mas s copiei a frase 99 vezes, porque a ltima no cabeu...

    Como podemos interpretar essa histria? Ser que no seria mais til que a professora explicasse que, embora o aluno tenha demonstrado o conhecimento da regra, h nesse caso, uma exceo?

    eNsINO desCrItIvO

    Existeissoeexisteaquilo

    o lema do ensino descritivo, que mostra diferentes aspectos (variantes) do uso lingstico,

    sem procurar impor um desses aspectos como o nico vlido, ou como o melhor, mas

    buscando relacionar cada variante a uma situao especfica.

    O Professor Gama Kury compara este tipo de ensino de lngua aprendizagem do uso do vesturio. Ningum vai de terno e gravata

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    praia, tomar banho de mar, assim como no adequado vestir ape-nas um calo de banho em um dia muito frio. No h uma nica roupa certa para se usar, da mesma forma que no h apenas uma forma certa de falar e de escrever.

    O ideal seria, ento, que as pessoas conhecessem muitas possibi-lidades de expresso e que desenvolvessem a sua sensibilidade para avaliar qual delas seria a mais adequada em cada situao da vida. O ensino descritivo tem natureza cientfica, isto , procura despertar nos alunos a capacidade de fazer observaes, generalizaes, sobre os fatos lingsticos, sem aceitar passivamente regras que no entende.

    Esta perspectiva parece bvia, mas infelizmente a atitude prescri-tivista ainda muito freqente e precisa ser superada. De fato, ha-vendo refletido sobre esse problema, importante que todos ns nos empenhemos para question-lo, contribuindo para o esclarecimento e a correo de atitudes preconceituosas em relao s lnguas.

    1.9 O preconceito lingstico

    A percepo de que h uma variante lingstica certa to equi-vocada em termos estritamente lingsticos como a idia muito di-fundida de que h lnguas superiores e lnguas primitivas. Embora, obviamente, haja diferenas estruturais entre as lnguas, no exis-te base cientfica para se afirmar que uma lngua intrinsecamente mais desenvolvida ou mais completa do que qualquer outra. Todas as lnguas tm uma gramtica complexa que permite que seus falantes as utilizem com diferentes finalidades, satisfazendo suas necessidades psicolgicas e sociais eficientemente. Se uma lngua ou uma variante de uma mesma lngua se torna mais prestigiada por uma comuni-dade do que outra, isso no decorre de diferenas entre suas proprie-dades gramaticais, mas de fatores polticos, econmicos ou sociais. Assim, a afirmao de que uma lngua uma gria, ou um dialeto primitivo menos desenvolvido do que outra, equivocada e revela, apenas, a ignorncia e o preconceito de quem a faz.

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    1.10 Lngua oral e lngua escrita

    A escola pode ter um papel importante na correo do preconceito lingstico. O ensino de lngua na escola deve, para tanto, contribuir para superar dois equvocos muito generalizados:

    (1) Existeumanicaformadefalar(2) Escreve-secomosefala

    Como j dissemos acima e veremos ainda de forma mais detalhada nos captulos III e IV, h no mundo uma grande diversidade lingsti-ca e, para cada lngua, h tambm muitas variantes, isto , diferentes usos a serem adequados a diferentes situaes. Portanto, acreditar que uma dessas variantes a nica certa, sendo as demais erra-das que , em si, um equvoco. Outro equvoco comum o que apontamos em (2), ou seja, o de que a escrita apenas a transcrio grfica da fala. Vamos, ento, pensar sobre a relao entre o oral e o escrito para tentar compreender melhor essa importante diferena.

    Uma primeira considerao diz respeito a saber o que apareceu primeiro, a fala ou a escrita. Embora haja controvrsias sobre como se deu o surgimento da linguagem na espcie humana, se foi resulta-do de um desenvolvimento adaptativo gradual ou de uma mega-mu-tao repentina, h um consenso entre os lingistas de que a lngua oral precedeu em muito a lngua escrita. Tem-se dito que a fala um fato biolgico, enquanto que a escrita um fato cultural. Como vi-mos, como parte da nossa dotao gentica, somos pr-programados para falar, assim como o somos para andar, por exemplo. Entretan-to, no temos uma pr-disposio biolgica para a escrita. Tanto assim que, em grande parte das sociedades humanas, tal como as sociedades indgenas brasileiras, no apareceram sistemas de escrita, mas no se conhecem sociedades humanas em que no se tenham desenvolvido sistemas lingsticos orais. Obviamente, no se conse-gue estabelecer com preciso quando os sistemas orais teriam surgi-do. Muitos estudiosos afirmam que o aparecimento da sintaxe, ou seja, da importante capacidade de combinar itens lingsticos, teria

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    se dado h cerca de duzentos mil anos. Outros pesquisadores, levan-do em considerao projees sobre a evoluo do crebro, chegam a estabelecer que a origem da linguagem teria se dado h cerca de 2 milhes de anos! Quanto escrita, h um certo consenso de que sua origem teria ocorrido na Mesopotmia h cerca de quatro mil anos antes da era crist, ou seja, em perodo muitssimo mais recente do que o aparecimento das lnguas orais na espcie.

    Segundo reporta a professora Mary Kato, em seu interessante li-vro No Mundo da Escrita, a origem dos sistemas de escrita pode ser encontrada na expresso visual que, dos desenhos iniciais, desen-volve-se em duas direes: a arte grfica e o sistema pictogrfico usa-do na comunicao. Este sistema pictogrfico no teria, inicialmen-te, uma relao direta com a fala e com sua expresso sonora, mas estaria relacionado diretamente aos objetos representados. apenas em um momento posterior de sua histria que os sistemas de escrita pictogrficos desenvolvem-se em escritas fonogrficas, ou seja, pas-sam a representar os sons.

    Escrita cuneiforme sumria: sc. IV a.C.

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    Outra considerao fundamental nesta comparao entre o oral e o escrito bastante bvia: a fala de base auditiva, enquanto que a escrita de base visual. Esta diferena de substncia do meio de expresso tem conseqncias importantes para a caracterizao da lngua oral e da lngua escrita. Como diz um ditado popular, as pa-lavras, o vento leva, ou seja, a fala transitria, dinmica, evanes-cente. H pausas, interrupes, hesitaes. Geralmente, a expresso oral se d em situaes espontneas, onde se encontram presentes os participantes do ato comunicativo e o falante pode tambm lanar mo de recursos extras, como gestos, expresses faciais, diferentes volumes, entonaes e melodias de voz, por exemplo. A escrita, por outro lado, no se d, normalmente, na prpria situao comuni-cativa, permitindo, por isso, maior planejamento. Podemos refletir, reescrever, mudar pargrafos de lugar, repensar certas palavras, etc. At por que, segundo outro ditado popular, escreveu, no leu, o pau comeu. Quer dizer: a escrita tem maior permanncia, no de-saparece logo aps a sua expresso, como o caso da lngua oral. Ento, a comunicao escrita tem condicionamentos muito prprios, realmente diferentes da comunicao oral, face a face. No captulo 5, vamos desenvolver melhor esses condicionamentos prprios do meio grfico, cuja compreenso e prtica podem ajudar o professor a de-senvolver com seus alunos a arte da expresso escrita.

    Quadro comparativo entre a fala e a escrita

    LNGUA esCrItA LNGUA OrAL

    Meio visual: permanncia e durabilidade posteriores ao momento de expresso

    Meio auditivo: transitoriedade, estando, geralmente, restrita ao momento da expresso

    Os participantes do ato de comunicao, geralmente, no esto na presena um do outro e o contexto

    situacional imediato no to relevante

    Os participantes esto interagindo diretamente um com o outro, havendo maior dependncia

    do contexto situacional

    Permite planejamento e organizao mais cuidadosos e estruturados, subdividindo-se em perodos,

    pargrafos e apoiando-se em sinais de pontuao

    mais espontnea e sua estrutura menos convencional e planejada, incluindo mais

    improvisaes, repeties, hesitaes

    No conta com recursos extra-lingsticos, como gestos, expresses faciais, tons de voz

    Conta com recursos extra-lingsticos, como gestos, expresses faciais, tons de voz

    mais sujeita a convenes prescritivas menos sujeita a convenes prescritivas

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    1.11 A forma da gramtica

    Como j deve estar claro, a perspectiva de ensino de lngua em que se situa este livro de natureza descritiva e produtiva. De um lado, preocupamo-nos em estudar e descrever os fenmenos lin-gsticos sem estabelecer julgamentos de valor, prescrevendo nor-mas. Neste sentido, exercitamos uma reflexo analtica que procu-ra compreender os fenmenos de modo objetivo, buscando encon-trar os componentes universais e particulares das lnguas, que so produtos da mesma capacidade universal da linguagem. Por outro lado, interessamo-nos pelo processo de produo lingstica, a ca-pacidade que nos permite gerar um nmero infinito de frases que nunca ouvimos antes.

    Como visto acima, a linguagem uma faculdade mental, um co-nhecimento que nos permite produzir e compreender frases gramati-cais. Nosso conhecimento da gramtica, no entanto, envolve diferen-tes conhecimentos. Por exemplo, um falante de portugus sabe que seqncias de sons como mave ou sale so possveis nesta lngua, embora no sejam usadas como palavras. Por outro lado, o falan-te avaliaria seqncias como mbae ou at como sendo ilegtimas em portugus. Da mesma forma, um falante de Karaj saberia dizer que palavras como rori ou lie poderiam existir em sua lngua, enquanto que formas como bnik ou nga no poderiam ser Karaj. Ao adqui-rirmos ou aprendermos uma lngua, portanto, desenvolvemos o co-nhecimento de seus sons especficos, podendo reconhecer e produzir seqncias de sons prprias daquela lngua.

    Esse conhecimento dos sons lingsticos, por si s, no , no en-tanto, suficiente para explicar o conhecimento da lngua, como um todo. preciso associar o conhecimento dos sons com os conceitos e idias que sero expressos pelos sons. A gramtica de uma lngua , portanto, um mecanismo mental que permite juntar o conhecimento dos sons com os conceitos e idias, construindo palavras e frases. O conhecimento lingstico constitudo, assim, por diferentes conhe-cimentos: o conhecimento dos sons (fontica) e fonemas (fonologia),

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    o conhecimento dos significados (semntica), o conhecimento dos princpios que permitem combinar sons e significados (sintaxe), for-mando as palavras e frases que usamos nas diversas situaes da vida social (pragmtica). De maneira mais ampla, podemos pensar esses componentes do conhecimento lingstico com base no esque-ma abaixo:

    LNGUA

    SENTIDO ( SEMNTICA)

    FONtICA FONOLOGIA MOrFOLOGIA sINtAXe LXICO dIsCUrsO

    ESTRUTURA PRAGMTICA USO

    MEIO DETRANSMISSO GRAMTICA

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    No captulo 2, estudaremos mais detalhadamente a natureza de cada um desses componentes do conhecimento da linguagem. Por ora, podemos ensaiar uma definio preliminar de cada subrea dos estudos lingsticos:

    Fontica o estudo dos sons da linguagem, do ponto de vista de sua pronncia pelo aparelho fonador (Fontica Articulatria), de suas pro-priedades fsicas (Fontica Acstica) e de suas propriedades perceptuais (Fontica Auditiva).

    Fonologia o estudo dos sistemas de fonemas das lnguas, isto , dos elementos fnicos capazes de distinguir formas em uma lngua.

    Morfologia o estudo dos morfemas, isto , as menores unidades fun-cionais na estrutura das palavras.

    sintaxe o estudo de como as palavras se combinam para formar sin-tagmas e oraes.

    semntica o estudo da significao lingstica.

    Anlise do discurso o estudo dos discursos, isto , das condies de produo dos enunciados lingsticos constitutivos dos eventos de fala.

    Pragmtica o estudo dos atos de fala, ou seja, dos enunciados lingsti-cos em sua relao com os usurios e com o contexto extra-lingstico.

    1.12 As funes da linguagem

    O lingista Roman Jakobson props o esquema a seguir, que sis-tematiza os elementos constitutivos de todo ato de comunicao ver-bal, argumentando que a nfase em cada um desses elementos carac-teriza uma funo lingstica especfica. Um destinador, remetente ou emissor envia uma mensagem a um destinatrio. A mensagem deve referir-se a um contexto ou referente para ser recebida pelo des-tinatrio ou receptor. Estes devem, tambm, conhecer, ao menos par-cialmente, o cdigo usado para cifrar a mensagem, que precisa ainda trafegar por um canal fsico, estabelecendo uma conexo psicolgica entre o remetente e o destinatrio, facultando a ambos entrar e per-manecer em comunicao.

  • 47

    (funo referencial)

    MeNsAGeM(funo potica)

    CONtAtO(funo ftica)

    (funo metalingstica)

    REFERENTE

    DESTINADOR

    (funo expressiva)

    DESTINATRIO

    (funo conativa)

    CDIGO

    Como dissemos, segundo Jakobson, o enfoque em cada um desses seis fatores determina uma diferente funo da linguagem, a saber:

    1 Funo expressiva ou emotiva centra-se no destinador ou emissor da mensagem. H uma expresso direta da atitude de quem fala em relao quilo que dito. Como revela o julgamento subjetivo do emissor, a funo emotiva , geralmente, caracteri-zada pelo uso de pronomes e verbos na primeira pessoa do dis-curso (a pessoa que fala, o eu) e por interjeies e exclamaes que revelam o sentimento do emissor.

    exemplo:Ah!Eucreionoquedigoevoudefenderminhasopiniesatofim!

    2 Funo apelativa ou conativa centra-se no destinatrio ou receptor da mensagem. H uma inteno de atuar sobre a segunda pes-soa do discurso (a pessoa com quem se fala, o tu ou voc). ca-racterstica, por exemplo, da linguagem da propaganda poltica ou comercial, sendo freqente o uso dos pronomes e verbos na segunda pessoa, bem como do imperativo e do vocativo.

    exemplo: Vocnopodeperderessaoportunidade.Venhaconhecerestapromoo!

  • 48

    3 Funco referencial centra-se no referente ou contexto; de base denotativa, factual, buscando informar com a mxima objeti-vidade, sem manifestar a opinio explcita do emissor ou tentar persuadir o receptor. Tem como marca a predominncia da ter-ceira pessoa do discurso (a pessoa de que se fala, o ele).

    exemplo: AcapitaldoBrasilacidadedeBraslia.

    4 Funo ftica centra-se no canal ou contacto fsico ou psicolgi-co entre o emissor e o receptor; serve, fundamentalmente, para testar se o canal funciona, para prolongar ou interromper a comunicao, bem como para atrair a ateno do interlocutor ou confirmar sua ateno continuada.

    exemplo: Al,tudobem?Estmeouvindo?

    5 Funo metalingstica centra-se no cdigo; tem por finalidade verificar se o cdigo utilizado permite a comunicao entre emissor e receptor, sem incertezas e ambigidades.

    exemplo: Oquevocquerdizercomapalavravrtice? Vrticesignificaturbilho,redemoinho.

    6 Funo potica est centrada na mensagem, colocando em evi-dncia suas propriedades estticas, pelo ritmo, pela rima, pela sonoridade.

    exemplo: Vozesveladas,veludosasvozes, Volpiasdosvioles,vozesveladas, Vagamnosvelhosvrticesvelozes Dosventos,vivas,vs,vulcanizadas [ Cruz e Sousa ]

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    1 V biblioteca, escolha um livro, abra-o em uma pgina qual-quer, escolha uma frase simples. Agora, procure uma repetio exata desta frase. Talvez voc no consiga encontrar, embora procure em todos os demais livros da biblioteca. Que conclu-ses voc pode tirar desse fato?

    2 Em ingls, reporta-se, por exemplo, que algum que queria fa-lar take the bike leva a bicicleta, disse bake the bike assa a bicicleta. Voc conhece exemplos de deslizes da lngua como esses em outras lnguas, alm do Portugus e do Ingls? Sua ocorrncia indica falha de competncia ou de desempenho lin-gstico? Por qu?

    3 Reveja os conceitos de gramaticalidade e aceitabilidade estu-dados na seo 1.6 e, em seguida, avalie cada uma das frases abaixo, procurando decidir quais so agramaticais e quais so gramaticais, mas inaceitveis.

    ( ) Quem um livro sobre te impressionou?( ) O cachorro que o gato que o rato assustou arranhou latiu. ( ) Esta frase no verbo.( ) Esta frase tem contm dois verbos principais.

    4 Um exame dos perodos a seguir revela a dificuldade de organi-zar os enunciados em um conjunto minimamente coeso e coe-rente. Em (a), h uma enumerao de fatos, justapostos sem pa-ralelismo ou nexo lgico entre eles, caracterizando uma estrutu-ra de arrasto, onde oraes independentes e dependentes so atadas entre si por conectivos inadequados. Em (b), o primeiro sintagma (a metodologia didtica) parece ser um tpico, com o qual o comentrio seguinte (eu acho muito bom) no concorda, resultando em um anacoluto. A terceira orao (que o professor usou para ns) ambgua entre uma leitura como subordinada substantiva (eu acho muito bom que o professor usou para ns) e uma leitura como adjetiva extraposta (a metodologia didtica que o professor usou para ns). Em (c), no se consegue esta-belecer a orao principal, a menos que se interprete a orao

    Atividades sugeridas

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    * * *

    iniciada por que alegria como exclamativa e, caso decidamos assim, no temos como integrar o material subseqente no mes-mo perodo. Pode-se concluir que estamos diante de tentativas de transposio de discursos orais para a escrita. Na situao dialgica oral, a enumerao enfadonha de (a) talvez possa fun-cionar em virtude de recursos gestuais, do jogo de inflexes da voz. Em (b), a pronncia provavelmente tambm contribuiria para esclarecer se o locutor acha muito bom que o professor tenha usado certa metodologia (valor substantivo) ou se a me-todologia que boa (valor adjetivo). Mesmo em (c), a situao face a face poderia permitir que se identificasse com facilidade o tipo da segunda orao. Na escrita, entretanto, sem os recursos do som, do gesto e da situao, esses perodos resultam caticos e mesmo impossveis de ser interpretados.

    Com base na anlise acima, reescreva cada perodo, adequan-do-o s caractersticas do discurso escrito:

    (a) Durante da semana os trabalhos foram mais clara os sons das palavras que se usa de maneira falar e de interessar os conhecimentos do professor dar o exemplo e os estudos lin-gusticos como surgiu as idias com sugestes de expressar e utilizao do uso os sons que se diz, atravs do conheci-mento.

    (b) A metodologia didtica, eu acho muito bom, que o profes-sor usou para ns, alm disso, nos vo levar o nosso conhe-cimento.

    (c) Quando eu o vi que alegria que senti foi muito grande porque como um amigo igual a este que nunca mais vou encontrar.

    5 Comente a figura na pgina 29.

  • 51

    Back, Eurico. Ensino de Lngua e Integrao Social. In: LoBato, Lcia (org.). Lingstica e Ensino do Vernculo. Revista Tempo Brasileiro, 53/54, p.112-144, 1978.

    chomsky, Noam. Chomsky no Brasil. Revista Delta, v.13, 1997.

    cury, Adriano da Gama. Novas Lies de Anlise Sinttica. So Paulo: tica, 2000.

    JakoBson, Roman. Lingstica e Comunicao. 20.ed. So Paulo: Cultrix, 1995.

    kato, Mary. No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolings-tica. So Paulo: tica, 2000.

    LoBato, Lcia (org.). Lingstica e Ensino do Vernculo. Revista Tempo Brasileiro, 53/54, 1978.

    LemLe, Miriam. Conhecimento e Biologia. Revista Cincia Hoje, v.31, n.182, p.34-41, 2002.

    Luft, Celso Pedro. Lngua e Liberdade: por uma nova concepo da Lngua materna e seu ensino. So Paulo: tica, 2000.

    Lyons, John. Linguagem e Lingstica. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

    Pinker, Steven. O Instinto da Linguagem: como a mente cria a linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2002.

    Vanoye, Francis. Usos da Linguagem: problemas e tcnicas na produo oral e escrita. So Paulo: Martins Fontes, 1981.

    Leituras Adicionais

  • 52

    Captulo 2

    A Forma da Linguagem

  • 53

    Como vimos no captulo anterior, a linguagem uma facul-dade biolgica exclusiva dos seres humanos, que permite a aquisio de uma ou mais lnguas. As lnguas so produtos sociais da capacidade de linguagem e, por isso, suas estruturas es-pecficas resultam da fixao dos princpios da gramtica universal em parmetros particulares. Podendo ser concebida como um r-go da mente humana, a linguagem tem a mesma forma para todos os membros da espcie, no havendo, por isso, lnguas primitivas ou mais desenvolvidas. Vimos tambm, no captulo 1, que podemos pensar a linguagem como sendo constituda por sub-componentes especializados em certos tipos de operaes. No presente captulo, vamos apresentar, com maior detalhe, no s as disciplinas lings-ticas que estudam esses sub-componentes estruturais da faculdade de linguagem, como tambm a pragmtica, disciplina que focaliza o uso lingstico em diferentes contextos e intenes de fala.

    2.1 A estrutura da linguagem

    Conforme ilustrado no grfico da pgina seguinte, o conhecimen-to gramatical pode ser subdividido em diferentes mdulos. Os fa-lantes de uma lngua possuem um lxico mental, constitudo pelo conjunto de palavras de sua lngua. O componente central do conhe-cimento lingstico a sintaxe, que rene as palavras para formar frases. As palavras, por sua vez, tm uma estrutura interna que especificada pelo componente morfolgico. A fonologia especifica os fonemas que constituem a forma das palavras que sero, ento, con-vertidas em sons, que so caracterizados pela fontica. Finalmente, o conhecimento semntico permitir o entendimento dos significados das palavras e frases e o conhecimento pragmtico facultar a sua caracterizao contextual e intencional.

  • 54

    lxico

    sintaxe

    semnticapragmtica

    morfologiafonologiafontica

    Na prxima seo, introduziremos a noo de signo lingstico, mostrando como ela integra em si os diferentes conhecimentos que constituem a linguagem. Vamos apresentar, em seguida, cada uma das disciplinas que tm por objeto o estudo desses conhecimentos especficos, iniciando pela Fontica, que estuda os sons, a manifesta-o mais concreta do conhecimento lingstico. Em seguida, explo-raremos a Fonologia, a Morfologia, a Sintaxe, a Semntica, o Lxico e a Pragmtica.

    2.1.1 O signo lingstico

    Quando uma pessoa tem uma idia que deseja transmitir para outra, no pode faz-lo diretamente, pois seu receptor no conse-guir observar o contedo da idia, a menos que esta encontre uma expresso material. Essa expresso material pode ser, por exemplo, um texto escrito, em que as palavras esto grafadas em um papel, re-presentando os sons. Pode tambm ser constituda por gestos, como no caso das lnguas de sinais usadas pelos deficientes auditivos. Mais freqentemente, a pessoa executa certas atividades fsicas com os chamados rgos articulatrios (por exemplo, lbios, lngua, e cor-das vocais). Estes movimentos criam ondas sonoras que so trans-mitidas pelo ar. O destinatrio ouve os sons e, correndo tudo bem, decodifica e recebe a mensagem. Nos trs exemplos acima, uma ln-

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    gua foi usada para a comunicao, mas observe que a lngua no , propriamente, nem os diferentes tipos de expresso material (as letras no papel, os sinais gestuais, os sons transmitidos pelo ar) e nem os pensamentos por eles representados. A lngua o mecanismo que permite ao emissor da mensagem a associao de um contedo mental (a idia) a uma expresso material (letras, sinais, sons). O des-tinatrio da mensagem, falante da mesma lngua, recebe a expresso material e reconstri a idia do emissor a partir desses sinais fsicos. Uma lngua , portanto, uma forma de estabelecer correlaes entre um plano de expresso e um plano de contedo, associando sinais materiais a significados mentais. Ela contribui para a organizao do pensamento, fornece a ele uma direo, d-lhe uma forma. Alm dis-so, ela possibilita a sua transmisso concreta atravs da substncia fsica dos gestos, letras ou sons.

    Podemos, ento, conceber as unidades lingsticas como entida-des de dupla face ou signos, que tm como propriedade fundamental o estabelecimento de uma relao entre um plano de expresso e um plano de contedo. O plano de expresso do signo lingstico costuma tambm ser denominado, segundo a tradio da lingstica estruturalista de Ferdinand de Saussure, de significante. O plano de contedo do signo, segundo esta mesma tradio, tambm denomi-nado de significado.

    / gato /

    contedo

    expresso

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    H trs observaes importantes a serem feitas aqui. Primeiro, deve ficar claro que o signo lingstico arbitrrio ou convencional. Isto , no h nada, por exemplo, no significante /gato/ que esteja intrinsecamente relacionado ao conceito de gato. Tanto assim, que as lnguas variam essa codificao.

    haloenigatochatcatmao

    (karaj)(portugus)(francs)(ingls)(chins)

    referente

    significante significado

    Como ilustrado na figura acima, o conceito de gato pode ser ex-presso por diferentes conjuntos de sons, dependendo da lngua. As-sim, em Karaj, chama-se ao felino haloeni; em francs, diz-se chat; em ingls cat; em chins mao. Alm disso, a figura tambm ilustra o fato de que o significado uma imagem mental do referente, isto , do objeto ou ser representado e no o referente em si mesmo. Natu-ralmente, pois o signo lingstico um objeto mental e o referente do signo um objeto do mundo material. O animal gato no est, obviamente, dentro de nossa cabea. O que est em nossa mente a imagem mental do animal.

    Finalmente, preciso ficar claro que o signo lingstico uma entidade da lngua, esse produto social da faculdade da linguagem, que se encontra na mente de todos os seus falantes. por isso que os falantes de uma dada lngua podem se entender entre si. Entretanto,

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    ao usarem os signos lingsticos, os falantes executam-nos de forma varivel. Do ponto de vista do significante, ningum fala a mesma palavra exatamente da mesma forma. Se repararmos atentamente, at uma mesma pessoa no consegue pronunciar uma dada pala-vra duas vezes, de modo idntico. Do ponto de vista do significado, ocorre a mesma coisa: o conceito que algum tem de um gato, por exemplo, no exatamente a mesma imagem mental que qualquer outra pessoa tem do bichano. Assim, conforme ilustrado na figura a seguir, o plano de expresso do signo admite um significante de lngua e um significante de fala. Da mesma forma, o plano de contedo do signo admite um significado de lngua e um significado de fala.

    contedo expresso

    selnguaforma

    solnguaforma

    significante (se)

    de falasubstncia

    significado (so)

    de falasubstncia

    Temos, pois, de acordo com estas consideraes:

    1 Um conjunto de elementos gerais e abstratos, psquicos, os elemen-tos formais da lngua, parte da competncia dos seus usurios. Os significantes e os significados da lngua, armazenados na memria dos falantes/ouvintes so imprecisos e vagos, palavras em estado de dicionrio.

    2 Um conjunto de atos de fala, concretos e particulares, atos psicofsi-cos. Cada atualizao particular dos signos na fala faz com que estes assumam um carter particular e concreto, de modo a dar conta da especificidade de cada experincia. No desempenho da fala, a pala-vra em estado de dicionrio torna-se palavra acontecimento.

  • 58

    Assim, do lado do plano de contedo do signo lingstico:

    Aos significados de lngua (gerais) correspondem significados de fala (particulares), cujo nmero tende ad infinitum. Os significados de fala so emitidos com base nos significados de lngua, mas, na fala, o voc-bulo se materializa, ganha substncia, torna-se mais preciso. Observe o texto do escritor Carlos Drummond de Andrade. O vocbulo po, parte do nosso lxico mental abstrato, pode adquirir uma vasta gama de significados especficos na fala concreta:

    Quepo?Doce?demel?deacar?del?...detrigo?demilho?demistura?derapa?desaruga?francs?nossodecadadia?ganhocomosuordorosto?queodiaboamassou?[ A Eterna Impreciso da Linguagem de Carlos Drummond de Andrade ]

    Do lado do plano de expresso do signo lingstico:

    Do mesmo modo que os significados lingsticos gerais se singularizam na fala, os significantes lingsticos formais tambm se substanciam materialmente na fala. A realizao concreta das unidades formais do plano de expresso ou fonemas tambm pode variar ad infinitum. Duas pessoas no pronunciam o mesmo som de modo idntico. Como j lem-bramos, at