manual [de] ajuda e suporte mútuos em saúde mental2013

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AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL REALIZAÇÃO APOIO Saúde “Com o grupo de ajuda e suporte mútuo é diferente (...), o que faz com que eu participe é a minha vontade e/ou necessidade, nada mais. Não sou pressionada. E quando falo de minhas coisas não estou mais tão sozinha. Porque no grupo a minha participação faz diferença. E nesse ouvir e falar acabo descobrindo coisas e sentimentos que ajudam a melhor me conduzir num mundo de pessoas ‘normais’. No grupo aprendi a aceitar as minhas limitações (antes cho rava muito quan- do sem querer me faziam perceber o quanto era diferente). Aprendi que o cuidar, tratar alguém com carinho, possui uma força surpreendente, leva qualquer pessoa a realizar seu potencial mais naturalmente. E isso pode ir além do esperado. Hoje, consigo escrever assim. Porque passei por experiências inespera- das e contei com ajuda de pessoas que apostaram em mim. E depois, pelo conhecimento que fui adquirindo aos poucos através das pessoas do grupo. Há dois anos atrás não teria condições emocionais de sequer começar uma linha. Fico feliz por ainda existir pessoas que lutam para dar dignidade e voz a nós, no nosso sofrimento cotidiano, ao tentar existir e ainda re- alizar sonhos, apesar da sociedade ainda nos ver com olhos cautelosos e amedrontados...”  (Depoimento de participante de nosso primeiro grupo de ajuda mútua) ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ   A   J   U   D   A    E    S   U   P   O   R   T   E    M   Ú   T   U   O   S    E   M    S   A   Ú   D   E    M   E   N   T   A   L

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AJUDA E SUPORTE MÚTUOSEM SAÚDE MENTAL

REALIZAÇÃO APOIO

Saúde

“Com o grupo de ajuda e suporte mútuo é diferente (...), o que faz comque eu participe é a minha vontade e/ou necessidade, nada mais. Não soupressionada. E quando falo de minhas coisas não estou mais tão sozinha.Porque no grupo a minha participação faz diferença. E nesse ouvir e falaracabo descobrindo coisas e sentimentos que ajudam a melhor me conduzir nummundo de pessoas ‘normais’.

No grupo aprendi a aceitar as minhas limitações (antes chorava muito quan-do sem querer me faziam perceber o quanto era diferente). Aprendi que ocuidar, tratar alguém com carinho, possui uma força surpreendente, levaqualquer pessoa a realizar seu potencial mais naturalmente. E isso podeir além do esperado.

Hoje, consigo escrever assim. Porque passei por experiências inespera-

das e contei com ajuda de pessoas que apostaram em mim. E depois, peloconhecimento que fui adquirindo aos poucos através das pessoas do grupo.Há dois anos atrás não teria condições emocionais de sequer começar umalinha. Fico feliz por ainda existir pessoas que lutam para dar dignidadee voz a nós, no nosso sofrimento cotidiano, ao tentar existir e ainda re-alizar sonhos, apesar da sociedade ainda nos ver com olhos cautelosos eamedrontados...” (Depoimento de participante de nosso primeiro grupo de ajuda mútua)

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

  A  J  U  D  A 

  E 

  S  U  P  O  R  T  E 

  M  Ú  T  U  O  S 

  E  M 

  S  A  Ú  D  E 

  M  E  N  T  A  L

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Saúde

AJUDA E SUPORTE MÚTUOSEM SAÚDE MENTAL

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

REALIZAÇÃOAPOIO

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CRÉDITOS

Ilustrações Henrique Monteiro da Silva, artista plástico, usuário de serviço de saúde mental da cidade doRio de Janeiro, participante do movimento antimanicomial e trabalhador da TV Pinel, um projeto do InstitutoMunicipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.Programação visual um triz comunicação visualRevisão e finalização da programação visual Frito StudioRevisão Renato Deitos e Eduardo Mourão Vasconcelos

Concepção geral Projeto Transversões, nome síntese do projeto de pesquisa e extensão integrado“Saúde mental, desinstitucionalização e abordagens psicossociais”, lotado na Escola de Serviço

Social da UFRJ, com apoio do CNPq, Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e OutrasDrogas e do Fundo Nacional de Saúde, ambos do Ministério da Saúde.

CM294 Manual [de] ajuda e suporte mútuos em saúde mental: parafacilitadores, trabalhadores e profissionais de saúde e saúdemental / Coordenação de Eduardo Mourão Vasconcelos;ilustração de Henrique Monteiro da Silva. – Rio de Janeiro :Escola do Serviço Social da UFRJ; Brasília: Ministério da Saúde,Fundo Nacional de Saúde, 2013.

 231p. : il.; ...cm.

  ISBN: 978-85-66883-01-5  Projeto Transversões: projeto de pesquisa e extensão integrado

Saúde Mental, desinstitucionalização e abordagens psicossociais naUFRJ, Termo de Cooperação entre UFRJ e Fundação Nacional deSaúde, Ministério da Saúde, e apoio do CNPq.

1. Grupos de ajuda mútua – Brasil. 2. Serviços de saúde mentalcomunitária - Brasil. I. Vasconcelos, Eduardo Mourão, coord. II.Silva, Henrique Monteiro, ilust.

CDD: 361.40081

Contato: Projeto Transversões / Escola de Serviço Social da UFRJA/C Prof. Eduardo VasconcelosAv. Pasteur 250 Fundos - Rio de Janeiro 22.290-160Fone: (21) 3873-5413E-mails: [email protected] e [email protected]

AJUDA E SUPORTE MÚTUOSEM SAÚDE MENTAL

Eduardo Mourão Vasconcelos (coord.)Glória LotfiRosaura Braz

Rosaura Di LorenzoTatiana Rangel Reis

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Sumário  5

I. Apresentações 10

1) A força criativa da solidariedade e da busca de autonomia – Pedro Gabriel Delgado (Coordenação Nacionalde Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Ministério da Saúde)   10

2) A partir da própria vivência sofrida de crise mental, surgem novos caminhos coletivos de cuidado e saúde 

– Eduardo Mourão Vasconcelos (Projeto Transversões)   12

3) Carta de Richard Weingarten, uma das principais lideranças do movimento de usuários dos EstadosUnidos  18

4) Agradecimentos  20

II. Formação básica operativa para facilitadores e apoiadores   24

1) A diferenciação entre os grupos de ajuda mútua e de suporte mútuo 24

2) Regras básicas dos grupos e atividades de ajuda e suporte mútuos  26

3) O ambiente e os recursos necessários para as reuniões e atividades, e sua influência sobre o coletivo 28

4) As relações de poder e a disposição das pessoas no grupo  295) A dinâmica de funcionamento e facilitação dos grupos de ajuda mútua em saúde mental  30

6) O suporte de profissionais e trabalhadores de saúde e/ou saúde mental no acompanhamentoe supervisão dos grupos  32

7) O caso de um programa municipal de grupos de ajuda mútua, com bolsas de trabalho: gestão,supervisão e monitoramento, e atuação de profissionais ou trabalhadores  34

8) Exemplos de temas a serem discutidos nos grupos de ajuda e suporte mútuos 36

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9) Tipos de reunião de ajuda mútua e aproximações com o suporte mútuo  39

10) Esquema básico para uma reunião de ajuda mútua   42

III. Temas de aprofundamento operativo para facilitadores, trabalhadores e profissionais 49

1) Características e objetivos dos grupos de ajuda e suporte mútuos  49

2) Recomendações para lidar com comportamentos e atitudes não construtivos e desagregadores, ou com

 situações de crise  52

3) Busca de membros, participação inicial, gestão das atividades e crescimento do grupo  53

4) O registro das atividades  55

5) A importância e os cuidados necessários com a gestão de recursos financeiros e materiais  56

6) Qualidades pessoais e éticas desejáveis para facilitadores  57

7) A supervisão externa para os facilitadores  58

8) O trabalho de facilitação como militância e como gerador de renda, e demais recursos necessários para a

capacitação e manutenção do projeto   60

9) Grupos de ajuda e suporte mútuos e a organização de associações de usuários e familiares  61

IV. Textos de aprofundamento teórico-conceitual e sobre a inserção no sistema de saúde e saúdemental  63

1) “Conceitos básicos para se entender as propostas e estratégias de empoderamento no campo da

  saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos   63

2) Histórico, princípios ético-políticos e processo metodológico de construção do “Manual de ajuda e suporte

  mútuos em saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos   90

3) “Quadro atual da organização e agenda política dos usuários e familiares em saúde mental no Brasil”,

de Eduardo Mourão Vasconcelos e Jeferson Rodrigues   107

4) “Para além do controle social: a insistência dos movimentos sociais em investir na redefinição

das práticas de saúde”, de Eymard Mourão Vasconcelos   116

5) “A família como usuária de serviços e como sujeito político no processo de reforma psiquiátrica

  brasileira”, de Lúcia Cristina dos Santos Rosa   134

6) “A família e os grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde mental”, de Rosaura Maria Braz   149

7) “Modelos de intervenção e práxis grupal, grupos de ajuda mútua e os desafios de sua utilização com

usuários do campo da saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos   169

8) “Uma contribuição da psicologia analítica para a compreensão da ajuda mútua em saúde mental:o arquétipo do Curador Ferido”, de Glória Lotfi   217

9) “Indicações para a inserção dos grupos de ajuda e suporte mútuos na atenção primária em saúde”, de

Eduardo Mourão Vasconcelos   220

Apêndice 1: Tabelas de Fases dos Vários Tipos de Reunião  234

Apêndice 2: Plano e Cartão de Crise 244

Apêndice 3: Relatório Mensal de Atividade de Grupo de Ajuda Mútua  252

Apêndice 4: Comunicado para Tomada de Providências  253

Anotações 254

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APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕESAPRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 1

A FORÇA CRIATIVA DASOLIDARIEDADE E DA BUSCADE AUTONOMIA

Pedro Gabriel Delgado

Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool eOutras Drogas 

Ministério da Saúde 

Aos usuários dos serviços de saúde mental e seusfamiliares:

É uma honra para mim dirigir umas palavras aosusuários e familiares, na apresentação desteManual para grupos e atividades de suporte mútuo,organizado por Eduardo Vasconcelos e sua equipe.Tenho certeza de que este pequeno livro seráde grande utilidade para ampliar e fortalecer asiniciativas de ação solidária que já estão em plenoandamento no Brasil.

A Reforma Psiquiátrica tem muito a avançar nestecampo. Em alguns outros países, as iniciativassolidárias envolvendo usuários e familiares, comparticipação de trabalhadores e da sociedadeem geral, já são uma tradição consolidada, ese expressam na forma de organizações, redes,

grupos, intervenções culturais etc., que contribuemde forma decisiva para melhorar a vida das pessoasque trazem consigo a experiência do sofrimentopsíquico.

Experiência: esta é uma palavra-chave nestetrabalho solidário. A experiência do sofrimento,e de como lidar com ele, construindo estratégiascotidianas de busca do bem-estar, é em si um bem

tão inestimável que não deve ser vivido apenaspelos sujeitos que a experimentam. Ela deveser generosamente compartilhada com todos,criando não só uma corrente de solidariedade, mas

formulando meios práticos e eficazes de lidar comos problemas da vida.

Em que consiste o protagonismo dos usuários e

familiares no processo da Reforma? Sem dúvida, nasua participação política, exigindo a criação de CAPS,programas de geração de renda, fortalecimento daatenção primária, qualificação dos serviços e dosprofissionais, e a substituição definitiva dos serviços

fechados e manicomiais. A participação política éfundamental na construção da autonomia.

Mas há também outras formas de participação,igualmente eficazes e igualmente políticas. Quandoos usuários e familiares participam da criaçãode cooperativas de geração de renda, estãofazendo ação política e solidária e contribuindo

para consolidar a Reforma Psiquiátrica. Quandose reúnem em grupos solidários, para buscaremcaminhos de apoio mútuo, de modo a c ompartilharema sabedoria decorrente da experiência do vivido,estão demonstrando a possibilidade concreta e

sem retorno de uma nova saúde mental, em quea autonomia e a gestão da vida cotidiana são osconceitos fundamentais. Do mesmo modo, quandoestabelecem um pacto com os serviços de saúde e

os profissionais, definindo as formas de lidar com ascrises, construindo consensos sobre a melhor formade agir nas situações difíceis – como nos exemplos

do “Cartão de Crise” e da gestão autônoma demedicamentos –, os usuários estão interferindo

ativamente na clínica, na compreensão mais globaldo tratamento, ampliando a visão de todos osenvolvidos e contribuindo para melhorar as práticasem saúde mental.

Outro exemplo de exercício da autonomia sedá quando usuários e familiares participam

de atividades de ensino e de pesquisa, comoprotagonistas legítimos da produção deconhecimento no campo da saúde mental.As experiências brasileiras de ensino comparticipação destes atores ainda são raras, maseste é um campo promissor, e ajudará a formarprofissionais melhores.

Várias destas iniciativas, de ajuda e suportemútuos e protagonismo dos usuários e familiares,são discutidas neste livro, cujo objetivo é apoiara expansão de uma rede de grupos autônomos,articulados com os CAPS e com a rede intersetorialde serviços. São ações simples e solidárias,coletivas, que vão construindo aos poucos uma vidamelhor para todos.

Dezembro de 2010

1110 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 2

A PARTIR DA PRÓPRIA VIVÊNCIASOFRIDA DE CRISE MENTAL,SURGEM NOVOS CAMINHOSCOLETIVOS DE CUIDADO E SAÚDE

Eduardo Mourão Vasconcelos

Projeto Transversões

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verdedos pássaros serve para poesia (...) Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima,serve para poesia 

Os loucos de água e estandarte servem demais O traste é ótimo O pobre-diabo é colosso (...) As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora 

Aliás, é também objeto da poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória 

As coisas sem importância são bens de poesia.

Manoel de Barros1

1 Trechos do poema “Matéria de poesia”, do livro demesmo nome, publicado em 1974, e também disponívelem “Gramática expositiva do chão (poesia quase toda)”,Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996, p. 180-1.

A vivência de uma crise mental profunda é umapossibilidade efetiva para cada um de nós, homense mulheres. Todos os tipos de sociedade humanativeram contato e a conhecem de alguma forma,

pois ela sempre atinge pelo menos uma pequenaparcela de pessoas. No entanto, constitui umaexperiência radical, como se um terremoto, vulcãoe invasão da lava ardente das profundezas abissaisdo inconsciente aflorasse no terreno que sustenta

nossas vidas concretas.

Essa desmontagem do eu e de nossas certezas

mais básicas pode ser uma experiência impactante,

podendo levar a atitudes de risco em relação a sipróprio e aos que convivem conosco, ou simplesmenteà insegurança, isolamento, passividade einvalidação pessoal. As respostas mais comuns que

nossas sociedades deram a esta experiência radicalfoi por muitos séculos a segregação, o abandono,o cárcere privado ou público, a institucionalizaçãonos hospícios, o tratamento como doença a serobjetivada, escrutinada e isolada, o estigma

generalizado na cultura, ou a própria negligênciaindiferente nas ruas das cidades contemporâneas.

Mais recentemente, a partir de meados do séculoXX, surgiram novas esperanças, nos processosde reforma psiquiátrica. Abriram-se inicialmenteexperiências de instituições mais humanizadas, decrítica aos fundamentos e à prática da psiquiatria

objetivante e segregadora, mas a partir dos anos1970 se iniciaram os projetos mais radicais deserviços abertos na comunidade, tendo a liberdade

como principal agente terapêutico e a reinserçãodestas pessoas na vida social concreta da cidade

como direção-chave do tratamento.

No Brasil, apesar de algumas iniciativas isoladas

anteriores, este processo se iniciou de forma maisexplícita no final da década de 1970, ainda emplena ditadura militar, junto aos demais movimentossociais que lutaram pela redemocratização.

Nos anos 1980, assumimos a estratégia maisradical de desinstitucionalização como bandeira,formando um movimento social que chamamos deantimanicomial. Logo a seguir, na década de 1990,criamos o Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, edentro dele passamos a criar os serviços de atençãopsicossocial para concretizar essa estratégia.Nesta mesma época, foram concebidos tambémos dispositivos de controle social do SUS, atravésde conselhos e conferências em todos os níveisda sociedade, em que usuários de serviços, seusfamiliares e demais representantes da sociedadecivil têm um papel-chave na definição dos rumos

da política de saúde e saúde mental. E aos poucos,foram criadas associações de usuários e familiaresjunto à rede de serviços de saúde mental, comparticipação nos conselhos. Na verdade, não sãomuitas em nosso país, têm um funcionamento frágil,mas seu número vem crescendo gradualmente.

Entretanto, em outros países, particularmente nos delíngua inglesa e na Europa do Norte, a organizaçãode usuários e familiares avançou muito, na direçãode movimentos mais autônomos e radicais. Eles vêmconstruindo novas iniciativas de empoderamento,de grupos de ajuda e suporte mútuos, de defesados direitos, mudança na cultura de segregaçãoe estigma na sociedade, bem como de militânciasocial, com vasto material de educação popular,projetos e serviços mais autônomos, muitas vezesorganizados pelo próprio movimento e, na maioriados casos, também com financiamento público.

No Brasil, entretanto, apenas uma parcela domovimento antimanicomial e dos serviços de atençãopsicossocial esboçou iniciativas e estratégias clarasnesta direção do empoderamento. Na maioria dosserviços, ainda vigora de forma dominante aquelavisão mais convencional de que tratamento e cuidadoconstituem uma prerrogativa dos profissionais etrabalhadores, de que a participação se dá apenasno processo de escuta e de prover informação

relativa ao tratamento a usuários e familiares, ounas assembleias dos serviços, ou ainda no máximono ativismo direto nos conselhos de controle social.Tudo isso é reforçado por uma cultura difusa,ainda hegemônica, que valoriza a hierarquia e a

dependência, em meio a uma sociedade com fortedesigualdade social e desvalorização das pessoasoriundas das classes populares.

Nós, integrantes do Projeto Transversões2,

2 A cartilha e o manual foram organizados pela subequipedo Projeto de Ajuda Mútua, que se insere no Transversões,

e que é composta pelos seguintes membros: o próprioProf. Eduardo Vasconcelos, também coordenador destasubequipe, psicólogo, cientista político, doutor pelaUniversidade de Londres e professor da Escola de ServiçoSocial da UFRJ; a psicóloga e terapeuta de famíliaRosaura Braz, que acompanha desde 1997 o Grupo Alento,de ajuda e suporte mútuos entre familiares no campo dasaúde mental, na cidade do Rio de Janeiro, e que desdeo início dos anos 1990 atua e faz parte do Transversões; aProfª Tatiana Rangel Reis, assistente social, doutora pelaUFRJ e professora da Escola de Serviço Social da UFF,em Niterói; Glória Lotfi, psicóloga e analista junguiana,membro analista e fundador da Sociedade Brasileirade Psicologia Analítica (SBPA-RJ) e membro analistada International Association for Analytical Psychology(IAAP), com sede em Zurique, Suíça, e que tambématua na cidade do Rio de Janeiro, bem como RosauraDi Lorenzo, psiquiatra argentina. Jeferson Rodrigues eGirlane Peres, de Florianópolis (SC) membros ativos deoutro projeto do Transversões, colaboraram em muitasocasiões, com conversas e sugestões, mas não puderamparticipar diretamente da produção destas publicações.Verônica Processi, psicóloga carioca, participou dafase inícial do projeto. Incluo também na equipe deprodução deste projeto as irmãs Márcia NascimentoSilva e Claudia Helena Nascimento Silva, com seuapoio no campo administrativo e financeiro. Nos últimosanos, juntaram-se à equipe do Transversões algunsestudantes da Escola de Serviço Social da UFRJ, queestão realizando seus trabalhos de pós-graduação oude final de curso de graduação (TCC) sobre este projetoou temas associados. Embora não tenham participadodiretamente da montagem destes manual e cartilha, seustrabalhos contribuem para a construção do projeto. TiagoLopes Bezerra vem participando também dos grupos,

1312 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

investimos fortemente desde o início da décadade 1990 na pesquisa e na produção de estudossobre as possibilidades de mudar esta realidade e

de avançar no Brasil a perspectiva e as estratégiasde empoderamento que testemunhamos em vários

países europeus e anglo-saxônicos. O Transversõesconstitui um projeto de pesquisa e extensão voltadopara o tema das abordagens psicossociais e da

saúde mental, lotado na Escola de Serviço Social daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado

pelo autor deste texto. Temos também o apoio doCNPq, Conselho Nacional de Pesquisa, ligadoao Ministério de Ciência e Tecnologia, através

de uma reavaliação regular de nossos projetose da concessão de uma bolsa de produtividadeem pesquisa, como também da CoordenaçãoNacional de Saúde Mental, Álcool e OutrasDrogas e do Fundo Nacional de Saúde, ambos

do Ministério da Saúde, que apoiam e financiamo projeto como um todo, e sua cartilha e o manual.Mais recentemente, também a FAPERJ tem apoiado

nossos projetos.

Nos últimos anos, a equipe do Transversões investiuespecialmente na pesquisa, sistematização epublicação de textos sobre as experiências de

grupos de ajuda e suporte mútuos naqueles paísese sobre os dispositivos criados pelo movimento deusuários e familiares no próprio Brasil3. Portanto,

estes manual e cartilha significam o coroamento deum enorme esforço de muitos anos, e temos uma

enquanto Valéria Debortoli Queiroz, Louise Rangel eMarcele Arruda estudam ou estudaram temas correlatos.E Tarcísia Castro Alves, que concluiu recentemente seumestrado na UFSC e assumiu o tema do empoderamentocomo objeto de sua dissertação.3 A indicação de nossos estudos e publicações é feitanos textos de aprofundamento. Aos interessadosdiretamente nestes trabalhos basta ver as referênciasnos finais dos textos, que geralmente tomam a forma delivros, coletâneas, capítulos de livros e artigos.

forte satisfação de podermos agora oferecê-lospara o grande público, particularmente na formade publicações financiadas e apoiadas pelo próprioMinistério da Saúde.

Para os interessados em nos contatar, em trocarideias, em contar sua experiência de grupos de ajudae suporte mútuos, em dar sugestões e nos fazercríticas construtivas para aperfeiçoar a cartilha e omanual, o nosso endereço e contatos estão no finaldeste texto de apresentação. Somos muito gratosa qualquer contribuição para esta caminhada tãoimportante, na qual estamos engajados.

O apoio a este projeto por parte do Ministério daSaúde constitui na verdade a expressão de umprocesso mais amplo nos últimos anos, que é gradualmas cada vez mais incisivo, de reconhecimento elegitimação das estratégias de empoderamentodos usuários e familiares como uma necessidadereal do movimento de reforma psiquiátrica e de lutaantimanicomial. Este reconhecimento teve seu ápicena recente IV Conferência Nacional de SaúdeMental – Intersetorial, que ocorreu em todo paísde março a junho de 2010, quando o assunto foiclaramente assumido no temário prévio divulgado ena aprovação final de inúmeras diretrizes gerais epropostas nesta direção4.

É bom lembrar que, particularmente no Brasil, ondeestamos iniciando a difusão desta metodologiade ajuda e suporte mútuos, é muito provável quelideranças de usuários e familiares, mesmo apósuma capacitação para a formação destes grupos,

ainda se sintam inseguros para atuarem sozinhos

4 Uma avaliação mais cuidadosa e detalhada dasresoluções da IV Conferência foi incluída no texto deaprofundamento sobre a história deste projeto, disponívelneste manual. Também o texto sobre a organizaçãoe a agenda de lutas e reivindicações dos usuários efamiliares no Brasil recente é bastante sugestivo para aabordagem do tema.

como facilitadores de grupos. Assim, profissionaise demais trabalhadores de saúde e saúde mental,desde que comprometidos com os valores deempoderamento e autonomização dos usuários,poderão ter também um papel importante comoestimuladores na formação de grupos, suporte diretona facilitação das reuniões, ou como observadorese avaliadores do processo, e particularmente comosupervisores. Para isso, nossos cursos de capacitaçãotambém incluem os profissionais e trabalhadores desaúde e saúde mental, para atuarem na formação,difusão e assessoria a estes grupos pelo país. Estemanual tem exatamente este objetivo primordial,

de formação para facilitadores de grupo, bem comopara profissionais e trabalhadores de saúde e saúdemental que queiram colaborar e assessorar osgrupos, além da difusão em aberto da metodologiapara o grande público em geral.

De nosso ponto de vista, a inserção dos grupos deajuda e suporte mútuos no campo da saúde e saúdemental pode se dar de diferentes formas:

a) Na  Atenção Primária em saúde, junto aoEstratégia de Saúde da Família (ESF) : estaé a inserção que achamos prioritária, pois nossoprojeto coincide inteiramente com os objetivose estratégias estabelecidos neste campo tãoimportante de atenção pública à saúde para todos,e em que o cuidado em saúde mental tambémse insere. Para isso, incluímos neste manual umpequeno ensaio sobre o tema, no capítulo de textos

de aprofundamento.

b) Pelas gerências e coordenações municipaisdo programa de saúde mental: se a integraçãocom a atenção primária não for possível inicialmente,os grupos podem ser temporariamente iniciados deforma independente, mas buscando a integraçãotão logo seja possível. É possível também iniciar a

experiência em serviços de atenção psicossocial,e aos poucos a expandindo para a comunidadee atenção primária. Além disso, várias outraspropostas e iniciativas de empoderamento dosusuários e familiares, particularmente de suasassociações e organizações, devem ser estimuladase/ou adotadas pelas gerências de forma associadaou não à atenção básica, como indicado em algunsdos textos de aprofundamento.

c) Por ONGs e por  associações de usuários efamiliares: os grupos de ajuda e suporte mútuos

podem ser assumidos por estas organizações eassociações, até mesmo dentro de um conjuntode iniciativas de caráter voluntário e realizadasem rodízio por suas lideranças. Entretanto, devembuscar sua estabilidade e difusão ampla por meiode trabalho remunerado, através de convênios ourecursos oriundos de projetos próprios de renda etrabalho, de forma a prover bolsas ou salários paraos facilitadores. No entanto, esta iniciativa nãodeve substituir a difusão mais ampla dos grupos viaa atenção básica e a gerência do programa de saúdemental, como política pública para todos.

Temos consciência de que metodologias similaresà que estamos propondo aqui já estão acontecendoou podem ser adaptadas também para outros grupossociais e em variadas áreas da saúde e saúdemental, e particularmente da assistência social. É ocaso, por exemplo, de cuidadores de ou das próprias

pessoas com doenças crônicas com forte impactona vida humana ou com deficiências; pessoas compoucas alternativas terapêuticas; idosos ou seusfamiliares e cuidadores; pessoas que passaram portraumas oriundos de violência, acidente ou grandecalamidade; pessoas institucionalizadas ou sobmedida de segurança; familiares de pessoas comuso abusivo de drogas etc. Entretanto, para cada

1514 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

área destas, a metodologia deve ser examinadacom cuidado, para avaliar as mudanças, adaptaçõese cuidados necessários. Sugerimos também que,neste processo de adaptação, se devam realizarexperiências-piloto prévias, acompanhadas deavaliação cuidadosa, para se fazer as devidascorreções5.

Antes de concluir, chamamos a sua atenção parao fato de que este manual inclui, integrada àsua encadernação, mas também destacável,

uma cartilha mais simplificada dirigida para osparticipantes dos grupos, e que deve ser estudadacom cuidado pelos facilitadores. Os facilitadores edemais pessoas interessadas em implementaresta metodologia devem necessariamentemanter para si as duas publicaçõesintegradas, pois há algumas seções que nãoforam necessariamente repetidas em cadauma de suas partes, por motivos econômicos.Assim, o anexo da cartilha contendo documentosimportantes, de legislação e cartas de defesade direitos no campo da saúde mental, nãofoi repetido no manual.  O mesmo ocorre com umapêndice intitulado  Plano pessoal de açãopara o bem-estar e a recuperação, essencialpara o processo de recuperação. Da mesma forma,algumas seções internas e documentos importantespara a realização das reuniões de grupo, como, porexemplo, o Contrato de Funcionamento, só estãodisponíveis na cartilha.

5 Para ajudar neste trabalho, fizemos questão de redigirum texto compilando os princípios ético-políticos emetodológicos que nos orientaram na construção dacartilha e do manual, e que foi incluído no capítulo detextos de aprofundamento.

Por sua vez, o manual apresenta apêndicesexclusivos, não disponibilizados na cartilhados participantes, e que constituem um materialindispensável:

a) Apêndice 1:  Tabelas de Fases dos VáriosTipos de Reunião de ajuda mútua (tabelas 1 a 7) e suporte mútuo (tabelas 8 e 9): a organização dasreuniões de grupo está toda inserida em tabelasindividuais de uma só página, que devem serlevadas para todos os encontros, pois resumem asfases e etapas de cada tipo de reunião, e portanto

são fundamentais no trabalho dos facilitadores.

b) Apêndice 2:  Plano e Cartão de Crise: constitui um conjunto de informações importantes,sintetizadas previamente pelo próprio usuário etécnicos de referência, para auxiliar profissionais,amigos e serviços a tomarem as iniciativas eprovidências necessárias para garantir o bem-estarda pessoa, em caso de uma eventual crise mental.Sua face visível é o Cartão de Crise, com menosdados, e mantido junto aos documentos pessoais,e que anuncia onde se encontra o Plano de Crise,para informações mais detalhadas. Este manualapresenta duas versões de plano e cartão, umaholandesa e uma primeira adaptação brasileira,sendo que esta última já está inserida na cartilhados participantes.

c) Apêndices 3 e 4: Aqui, temos propostas de 2documentos básicos para registro e monitoramento

de grupos de ajuda mútua em programas formaisgeridos por municípios, com bolsa de trabalho paraos facilitadores.

 

Na medida em que a cartilha constitui o materialde base para cada um dos participantes dos grupos,sabemos que a sua implementação vai exigir um

grande número de cartilhas avulsas. Sabemos deantemão que os exemplares da presente ediçãoserão necessariamente insuficientes para aenorme demanda potencial. Para supri-la, nós, doProjeto Transversões, em uma decisão que contacom o apoio da Coordenação de Saúde Mental doMinistério da Saúde, iremos abrir mão dos direitosautorais e disponibilizar o original na forma digitalpara publicação direta por gestores de saúde esaúde mental e por associações de usuários efamiliares do país6. Hoje em dia, a maquinariaeletrônica das gráficas mais atualizadas podeexecutar com facilidade a publicação de pequenas

quantidades de livros, sem custo adicional, comoacontecia nas gráficas convencionais. Em casodisso não ser possível, recomendamos que, parauso local, a cartilha e o próprio manual possam serreproduzidos em cópias reprográficas comuns.

Finalizando, portanto, desejamos então a todosuma boa leitura deste manual, colocando-nos àdisposição para esclarecimentos e reafirmando quesugestões e críticas são bem-vindas e necessáriasao aperfeiçoamento desta metodologia.

Um grande abraço do amigo

Prof. Eduardo Vasconcelos e da Equipe do Projeto deAjuda Mútua

Projeto Transversões

6 Tão logo o manual e a cartilha sejam lançados em papel,estaremos providenciando a montagem de um site oublog na internet onde estes textos serão disponibilizados.Esperamos receber dados básicos sobre responsáveispela republicação, com número de exemplares produzidos,área e mecanismos de distribuição etc.

Contato:

Projeto Transversões

A/C do Prof. Eduardo Mourão Vasconcelos

Escola de Serviço Social da UFRJ

Av. Pasteur 250 Fundos

Rio de Janeiro

Fone: (21) 3873-5413

 

E-mails:

[email protected]

[email protected]

1716 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 3

CARTA DE RICHARD WEINGARTEN,UMA DAS PRINCIPAIS LIDERANÇASDO MOVIMENTO DE USUÁRIOS DOSESTADOS UNIDOS

New Haven (Connecticut, EUA), 6 de março de 2011

Caros Eduardo e demais membros da equipe de

ajuda e suporte mútuos, 

Parabéns pela nova cartilha e o manual de ajudae suporte mútuos! Estou certo de que os usuáriose familiares brasileiros vão se beneficiar muitocom os novos grupos a serem formados, como eumesmo o fiz muitos anos atrás, quando eu estavamuito deprimido e tão desesperado da vida. Foi numgrupo deste tipo que aprendi a falar livremente, semmedo ou vergonha, dos problemas que emergiramcom o meu transtorno e da vida empobrecida queparecia vir junto com ele. Fiz novos amigos entre oscompanheiros do grupo e adorei o dar e receber dofundo do coração que acontece nas conversas dogrupo, que me informaram e inspiraram.

Eu me lembro da primeira vez em que fiz parte de umgrupo desses. Era uma noite escura e chuvosa, e euestava tão deprimido que não conseguia falar. Maseu escutei as pessoas conversarem abertamente

sobre seus problemas e dificuldades, e assim, fuirecebendo compreensão e encorajamento dos outrosmembros do grupo. Quando saí daquele encontro, mesenti muito animado, de uma forma que não sentia hámuito tempo. Fora do hospital, onde foi a reunião, vi asluzes da rua brilharem e piscarem intensamente. Foi aíentão que percebi mais claramente que tinha tido umaexperiência muito positiva.

Nas reuniões seguintes, à medida que comeceia dividir com os demais as minhas experiências,percebi como eu também podia ser útil para eles.Devagarzinho, vendo os outros líderes de grupo, e noinício com muitos receios, aprendi a facilitar grupos.Depois de minhas primeiras tentativas, perguntei aum usuário conhecido como tinha ido na reunião.E ele me respondeu: “Você foi um ‘profissa’, meuchapa, como se estivesse fazendo isso a vida toda!”.

Saber que eu tinha tido um efeito muito positivo nosoutros me deu a confiança necessária para tentarachar um trabalho no campo da saúde mental.

Quando achei o primeiro trabalho, uma das tarefasiniciais foi facilitar um grupo de ajuda mútua parapessoas com depressão e ansiedade. Depois dasquintas à noite, ao final do grupo, nós saíamospara tomar um café em um restaurante próximo.Daí, fomos ficando muito amigos uns dos outros.As pessoas podiam entrar e sair do grupo quandoqueriam ou precisavam. Era muito gratificante vê-las sorrindo após os encontros, depois de entraremcom tristeza e expressões carregadas no rosto, comtodo o peso do mundo em suas costas.

Em algumas semanas, em vez de ter o encontro,a gente ia para o teatro local, para uma noite quepassamos a chamar de “para ver o que a gentepode pagar”. Antes da peça, a gente parava emuma cafeteria para um café e conversa. Mesesdepois, fui a este mesmo l ocal com um conhecido,e descobri alguns dos membros do grupo tendoum café com seus amigos. Ao estar com eles,

me informaram que estavam indo para o teatro,em uma daquelas noites “para ver o que a gentepode pagar”.7 Eu fiquei então muito satisfeito em

7 Nota do coordenador desta publicação: no Brasil,como até mesmo um cinema ou teatro pode não seracessível para a maioria de nossos usuários e familiaresde serviços públicos, este tipo de iniciativa de suportemútuo é realizado com um contato prévio com a direção

saber que o grupo tinha possibilitado a eles oacesso a eventos sociais e culturais.

Mas há também encontros muito difíceis. Umanoite, uma mulher veio muito deprimida parao grupo e falou abertamente em querer semachucar. Nós não a deixamos só. Depois do

encontro, a conduzimos para o hospital maispróximo, e a esperamos na sala de emergênciaaté que a família viesse e a equipe a avaliasse.

Destas experiências tão pessoais, eu passeia apreciar e valorizar os grupos de ajuda esuporte mútuos também em sua dimensão

mais coletiva, como uma parte integrante enecessária do sistema de saúde mental. Alémdisso, os grupos são o terreno preparatório paraas futuras lideranças do movimento de usuários

e familiares. Em outras palavras, conversar sobreminhas experiências pessoais, ter atividadessociais e trabalhar, descobrir novos objetivosde vida, tudo isso não só ajudou a aceitar o

meu transtorno e me fez sair daquela situaçãode solidão e isolamento, mas também me abriunovas e ricas oportunidades para uma vida ativae participativa na sociedade. Na medida desta

aceitação, fui elaborando meu processo pessoalde recuperação, e também fui me capacitandopara trabalhar e participar deste processomais amplo no sistema de saúde mental e na

sociedade em geral.

Eduardo e sua equipe, eu desejo a vocês, bem

como a todos os usuários e familiares que

certamente se beneficiarão destes grupos deajuda e suporte mútuos, boa sorte e muitosucesso! Com estes grupos, vocês estão iniciando

do teatro ou do cinema, no qual se explica a naturezado projeto. Em geral, não é difícil se conseguir asentradas grátis necessárias para os membros dos grupos,particularmente em centros culturais públicos.

uma nova era em saúde mental no Brasil, e comcerteza ajudando a criar um sistema de cuidados

muito mais humano e capaz de despertar cada

vez mais esperança nas pessoas!

Abração do amigo

Richard Weingarten8, M.A., CPRP

New Haven, CT, USA

8 Nota do coordenador: É necessário fazer aqui umaapresentação de Richard, para que se possa entendera sua presença nestes manual e cartilha. Weingartenesteve no Brasil entre 1968 e 1973, como trabalhador

do “Corpo da Paz” (“Peace Corps”) ou da United PressInternational (UPI), como jornalista correspondente, eapaixonou-se pelo nosso país, por nossa gente e cultura.Entre 1974 e 1986, teve fortes crises mentais, comataques severos de depressão e sintomas psicóticos.Foi internado cinco vezes. Uma boa medicação e oenvolvimento com grupos de ajuda mútua em Cleveland,Ohio, em 1986-87, o ajudaram a sentir-se melhor consigomesmo e estabeleceram a base para a sua recuperação,ao mesmo tempo em que o iniciaram como ativista domovimento de usuários em seu país, que já vinha seorganizando desde o início da década de 1970. A partirdos anos 1990, Richard vem exercendo várias funçõescomo diretor de assuntos dos usuários em serviçospúblicos de saúde mental e em atividades acadêmicas,particularmente na Universidade de Yale, e é reconhecidocomo uma das principais lideranças do movimento nosEstados Unidos, mas também desenvolve atividades eé muito conhecido em vários outros países. Tem voltadoregularmente ao Brasil, em iniciativas de intercâmbiocom o Projeto Transversões ou como convidado paraeventos relacionados com a reforma psiquiátrica e coma política de saúde mental. Em 2001, publicou no Brasil,através do Projeto Transversões e do Instituto FrancoBasaglia, no Rio de Janeiro, a cartilha intitulada “Omovimento de usuários em saúde mental nos EstadosUnidos: história, processos de ajuda e suporte mútuose militância”. Construímos conjuntamente e lançamosem 2006 o livro Reinventando a vida: narrativas derecuperação e convivência com o transtorno mental (Rio/São Paulo, EncantArte/Hucitec). Assim, o movimentonorte-americano e o próprio Richard tiveram, portanto,um papel fundamental nestes manual e cartilha, sejacomo uma das principais experiências inspiradoras, sejacomo assessor concreto no seu processo de construção.

1918 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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APRESENTAÇÕES

AGRADECIMENTOS

A cartilha e seu manual, bem como as experiênciaspiloto que subsidiaram a construção destametodologia, não poderiam ser desenvolvidos semo apoio de um enorme conjunto de instituições epessoas, e neste momento gostaríamos de fazerjustiça reconhecendo-as e manifestando nossoagradecimento. Sabemos que, ao nomear pessoas,caímos no risco de fazer injustiças esquecendo dealgumas delas, mas não podemos deixar de fazê-loem relação àquelas que pelo menos deram o seu

suporte mais direto para nossa iniciativa.

Em primeiríssimo lugar está a contribuição “aquente” da experiência de vida, dos depoimentos edas sugestões de todos os usuários e familiaresque participaram de nossos projetos-pilotode grupos, incluindo os participantes do GrupoAlento9, de familiares do Rio de Janeiro, maisantigo, que vem constituindo significativa fontede inspiração para nossos trabalhos. São assimmesmo, anônimos, porque temos que garantir osigilo em todos os nossos grupos. De forma similarestão muitos militantes usuários, familiares,trabalhadores e profissionais do movimentoantimanicomial em todo o Brasil, principalmentedo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, quevêm desenvolvendo iniciativas similares em seuslocais de moradia e de ativismo, que entenderamlogo a importância deste projeto e o apoiaram detodas as formas. Em especial, não podemos deixar

de citar todo o suporte dado pelo Núcleo Estadualdo Movimento da Luta Antimanicomial do Riode Janeiro. Quanto aos membros do movimentoantimanicomial brasileiro, qualquer tentativa de

9 Para os interessados em maiores informações sobreeste grupo, ver o texto de aprofundamento neste manual,de autoria de Rosaura Maria Braz.

nomeá-los fatalmente nos faria cometer muitasinjustiças, e prefiro não me arriscar.

Ainda no Brasil, gostaríamos de agradecerprimeiramente ao Fundo Nacional de Saúde eà Coordenação Nacional de Saúde Mental,Álcool e Outras Drogas, do  Ministério daSaúde, que apoiam e financiam este projeto, e esta

cartilha e o manual. Na Coordenação, queríamoslembrar especialmente do coordenador até aano de 2010, Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado,que acreditou na idéia, e de toda a sua equipe;

e nesta, especialmente de Milena Leal Pacheco

e Karime Fonseca, mais diretamente ligadas aodesenvolvimento deste projeto. Foi fundamentaltambém o apoio político dos integrantes do Grupode Trabalho de Demandas de Usuários eFamiliares, criado junto àquela Coordenação e ematividade em 2009 e 2010, que analisou e aprovouintegralmente esta iniciativa. Ainda no âmbitode Brasília, é fundamental não esquecer ainda doCNPq, Conselho Nacional de Pesquisa, ligado

ao Ministério de Ciência e Tecnologia, com seuapoio regular ao Projeto Transversões na forma debolsa de produtividade em pesquisa.

Este projeto também não poderia se desenvolversem a inspiração nos movimentos de usuários efamiliares de outros países e na sua sistematizaçãoem textos e publicações. Para ter acesso a toda esta

experiência, contamos com a intensa colaboração,assessoria e o apoio efetivo de nossos váriosparceiros internacionais, e não podemos deixar

de citar aqui, dentre eles, particularmente RichardWeingarten, liderança dos usuários nos Estados

Unidos; Claudia de Freitas, psicóloga, pesquisadorae ativista do movimento de usuários na Holanda; ea Profª Shulamit Ramon, pesquisadora e ativista docampo da saúde mental na Inglaterra.

É claro que temos também importantes parceriasintelectuais e de companheirismo acadêmico

no Brasil, e algumas delas tiveram contribuições diretase indiretas fundamentais neste projeto. Aqui, não possodeixar de citar os importantes aportes de Manuel Desviatde Madrid (Espanha); Lucia dos Santos Rosa, de Teresina(PI);de Jeferson Rodrigues, de Florianópolis; de RosanaOnocko Campos, em Campinas (SP); de Sandra Fagundes,em Porto Alegre (RS); de Ana Simões da Fonseca, em Recife(PE), de Magda Dimmenstein, em Natal (RN); de TarcísiaCastro Alves, em Vitória da Conquista (BA); de WillianCastilho Pereira, em Belo Horizonte (MG); de Erika Finotti,em Uberlândia (MG); e de Pedro Gabriel Delgado, PauloAmarante, Marta Zappa, Rita Cavalcante Lima e EduardoPassos, no Rio de Janeiro. Quero lembrar especialmentede Eymard Mourão Vasconcelos, de João Pessoa (PR),

meu irmão e amigo pessoal, companheiro de caminhadadesde o início de nosso ativismo social na década de1970, um dos fundadores e li derança-chave do movimentode educação popular em saúde do país, e que tambémcontribui neste projeto com um texto de aprofundamento.Também Victor Valla (Rio de Janeiro, RJ), intelectual e co-fundador deste mesmo movimento, um saudoso amigo quenos deixou recentemente, nos inspirou e fez sugestõesfundamentais. Ainda neste âmbito das parcerias nacionais,é fundamental agradecer pelo apoio que temos recebido devárias lideranças de profissionais, e particularmente gestores estaduais e municipais de programase serviços de saúde mental em todo o país ,principalmente através da receptividade em nos recebere, em muitos casos, em desejar ou dar suporte concretopara implementar o projeto em seus municípios. Aqui,até o presente momento, no Rio de Janeiro, somos muitogratos ao Dr. Francisco Sayão Lobato Filho e à Dra. MárciaSchmidt, na esfera estadual ; ao Dr. Mario Barreira Campos,a Pilar Belmonte, Alexander Ramalho, Ana Carla Silva,Ana Felisberto Silveira, Mariana Sloboda e Aline CesconJardim, na Coordenação Municipal de Saúde Mental domunicípio; a Patrícia Matos, Andrea Farnettane, Elida dosSantos, Renata Miranda e Marcia Bezerra, no CAPS JoãoFerreira (Complexo do Alemão); a Andrea Marcolan e TâniaCerqueira, do CAPS Ernesto Nazareth, além de Glória deFátima Veiga Santos, que atuam na Ilha do Governador;a Carla Cavalcante Paes Leme, no CAPS Fernando Diniz

(Olaria), e a Paula Urzua, no CAPS Maria do Socorro Santos(Rocinha). Nos demais estados, temos que agradecer aNorma Casimiro, de Camarajipe (PE); a Maria do HortoSalbego, Teresinha Aurélio e Judete Ferrari, de Alegrete(RS); a Suzana Roportella, Dirce Cordeiro, Elisabete Henna,Iana Ribeiro, Drauzio Viegas Junior e Décio Alves em SãoBernardo do Campo (SP); a Albano Felipe, de Santo André(SP); a Rodrigo Presotto e Waldemar Souza, em Campinas;a João Batista Pereira de Souza, L uciene Lemos e NazarethReis, em Angra dos Reis (RJ); a Eraldo Ferreira, deCarapicuíba (SP); e a Marta Evelyn Carvalho, em Teresina(PI). Entre as várias associações de usuários e familiaresque apoiaram ou abraçaram inteiramente este projeto, nãopodemos deixar de agradecer e citar a APACOJUM e aAFAUCEP, no Rio de Janeiro; a AFAUC, de Angra dos Reis; aAFLORE, de Campinas; a De Volta pra Casa, de Santo André;a Mente Ativa, de São Bernardo do Campo; e a Âncora, deTeresina (PI).

Voltando à cidade do Rio de Janeiro, este projeto nãopoderia se desenvolver de forma alguma sem toda aequipe do Projeto Transversões, já nomeados naapresentação, especialmente aqueles mais diretamenteligados a esta iniciativa, que também assinam a autoriadesta cartilha e do manual, como também a autoria dostextos de aprofundamento neste último. Em especial,gostaria de lembrar de Rosaura Braz, que me acompanhouem cada passo deste projeto, em todas as decisões,reuniões e viagens por esse Brasil afora. Rosaura temuma sensibilidade toda especial pelos familiares da s aúdemental, e foi pioneira na criação do Grupo Alento, quetanto nos inspirou. Na conjunto do Transversões, temosum ativismo hegemonicamente voluntário, de profissionaisque arregaçam as mangas a partir da compreensão da

importância ética, política e metodológica do dispositivode cuidado e ativismo que estamos sistematizando. Nacriação do projeto gráfico da cartilha e manual, na revisãoe diagramação, somos gratos pelo trabalho maduro eprofissional da designer gráfica Renata Figueiredo e suaequipe, uma feliz indicação de Kitta Eitler, nossa amigapessoal e também profissional da área. E a revisão final daprogramação visual coube ao Frito Studio, também do Rio

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APRESENTAÇÕES

de Janeiro, e assim, nosso muito obrigado a ClaraColker e a Peu Fulgêncio. E ainda nesse campo,queremos agradecer especialmente a HenriqueMonteiro da Silva, desenhista e usuário da saúdemental, membro atuante da TV Pinel, pelas ótimasilutrações que inserimos neste manual e cartilha.

No apoio institucional ao Projeto, é fundamentalreconhecer que ele não seria possível sem o suporteintegral da Vice-Reitoria da UFRJ,  que faz agestão do convênios externos desta universidade, assumindo portanto o convênio com o FundoNacional de Saúde. Assim, nosso muito obrigadoaos vice-reitores, nas pessoas da Prof.a Sylvia daSilveira Mello Vargas, que exerceu o cargo até 2011,e do atual, Prof. Antônio José Ledo A lves da Cunha.Além deles, dentro da UFRJ, a tramitação contoucom o enorme suporte e aconselhamento regular deInês Maciel, Regina Célia Loureiro, Silvia Reis dosSantos e Penha Ferreira dos Santos, bem como como apoio administrativo da Fundação José Bonifácio(FUJB). Por sua parte, Eneida Oliveira, do Sistemade Bibliotecas e Informações (SIBI) foi fundamentalno suporte técnico em biblioteconomia.

Ainda na UFRJ, tivemos todo o total apoio dadireção da Escola de Serviço Social da UFRJ ,nas pessoas dos professores Mavi Rodrigues eMarcelo Braz; do Programa de Pós-Graduaçãoem Serviço Social, na sua coordenadora naépoca, Prof. Sara Graneman, e do Departamentode Métodos e Técnicas, chefiado neste períodopela Prof. Rita Cavalcante Lima. Estas instâncias sãoaquelas que nos acolhem, avaliam e aprovam todos

os nossos projetos, e dão todo o apoio institucional,o espaço e a infraestrutura básica de funcionamentopara nosso trabalho interno. Somos muito gratosa todos eles. Além da Escola, onde estou lotado,o Instituto de Psicologia da UFRJ  também temapoiado a proposta, na pessoa de seu diretor, oProf. Marcos Jardim. Outras universidades tambémtiveram um papel importante em nossas atividades

no resto do país, e queremos lembrar especialmenteda Universidade Federal do Piauí (UFPI) e daUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

E, finalmente, temos as instituições e pessoas queacolheram em suas instalações os nossos grupos-piloto iniciais no Rio de Janeiro , que serviramde base para a experimentação da metodologia.Agradecemos ao Colégio Pinheiro Guimarães e aoMuseu da República, no Catete, que nos cederamsuas instalações para a primeira capacitação, em2008. Depois, as reuniões passaram a acontecernas salas cedidas pelo Núcleo de Saúde Mental eTrabalho (NUSAMT), na Secretaria Municipal deTrabalho, e agradecemos por isso a Vera Pazos,Reneza Rocha e Carlos Frederico (Fred). Em 2010,fomos “adotados” com muito carinho pela Escola deFormação Técnica em Saúde Enfermeira Izabel dosSantos, em Botafogo, e por isso somos muito gratosa sua diretora, Márcia Cristina Cid Araujo e a suaequipe, com destaque para Luís Aquino. Em 2011,com o fechamento desta escola em Botafogo, fomosacolhidos pelo Instituto Franco Basaglia e InstitutoPhilippe Pinel, com o apoio pessoal de Esther Arotchase Marta Zappa, aos quais somos muito gratos.

Antes de terminar, gostaria de lembrar de nossasfamílias, que compreenderam a importância e estãoapoiando integralmente este projeto desde o início,apesar de saber que ele implicaria em diminuirsobremaneira o nosso tempo de convívio familiar.No meu caso pessoal, quero expressar minha maisprofunda gratidão a Denise Pamplona; a PedroHenrique, Carolina e a nossa neta Luisa; e a Maria

Paula e Roberto Rivelino.

A todos vocês, e aos vários apoiadores que nãopudemos nomear aqui, nosso muito obrigado!

Rio de Janeiro, setembro, 2012.

Eduardo Mourão Vasconcelose equipe do Projeto Transversões

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FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

II. FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVAPARA FACILITADORES EAPOIADORES10

Este capítulo contém as informações essenciaise imprescindíveis que devem constar em umacapacitação básica inicial para facilitadores degrupo, bem como para trabalhadores de saúde esaúde mental que queiram dar suporte aos grupose aos facilitadores.

1) A diferenciação entre os grupos de ajudamútua e de suporte mútuo

As iniciativas e atividades de ajuda e suporte mútuosdevem estar integradas entre si, mas correspondema objetivos , locais de funcionamento   e tipo departicipantes   diferenciados. Em outras palavras,as mesmas pessoas podem, e até mesmo devem,participar dos dois tipos de grupos, mas estes têmarranjos e características bem diferenciadas, comoindicado a seguir:

a) Objetivos:

A ajuda mútua  visa primordialmente à acolhida,à   troca de experiências e de apoio emocional ,realizadas em grupos compostos, na medida dopossível, apenas por pessoas com problemascomuns, que partilham do mesmo tipo desofrimento. São grupos “coordenados” –

preferimos dizer facilitados – por essas mesmaspessoas, e a eventual presença de profissionaisse dá apenas como suporte indireto. Suasreuniões são realizadas em locais e espaçosmais protegidos. No campo da saúde mental, hádois tipos de grupos: aqueles diretamente parapessoas com transtorno mental e aqueles paraseus familiares.

10 Para a construção deste capítulo e do seguinte, foramfundamentais várias experiências de militância social e saúdemental em ambientes populares, desde a década de 1970, eo trabalho de pesquisa geral do Projeto Transversões, maisparticularmente sobre a experiência dos grupos de ajuda esuporte mútuo no Brasil, nos Estados Unidos e de outros países.As seguintes fontes constituíram as principais referências aqui:- O ativismo e acompanhamento de grupos e projetos popularesno campo social, da saúde e particularmente de saúde mentalna Cidade Industrial de Belo Horizonte, nas décadas de 1970e 1980 (Exemplo: VASCONCELOS, E. M. O que é psicologiacomunitária. São Paulo: Brasiliense, 1985, e VASCONCELOS[2008], indicado abaixo);- A experiência de grupo de usuários realizada no Hospital-Dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, entre 1993 e 1995,acompanhada por Eduardo Vasconcelos, no qual os usuáriosgradativamente assumiram a coordenação dos trabalhos;- A experiência prática do Grupo Alento, de familiares docampo da saúde mental, formado em 1997, na cidade do Rio deJaneiro, acompanhada pela psicóloga Rosaura Braz, da equipeorganizadora deste manual;- ZINMAN, S. et al. (ed.). Reaching across: mental health clientshelping each other. Self-Help Committee of the CaliforniaNetwork of Mental Health Clients, Sacramento, 1987;- VASCONCELOS, E. M. O poder que brota da dor e da opressão:empowerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo:Paulus, 2003;- VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens psicossociais, vol II:reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura e daslutas populares. São Paulo Hucitec, 2008;- REIS, T. R. “Fazer em grupo o que não posso fazer sozinho”:indivíduo, grupo e identidade social em Alcoólicos Anônimos.Tese de doutoramento em Serviço Social, ESS-UFRJ, Rio deJaneiro, UFRJ, 2007;- WEINGARTEN, R. O movimento de usuários em saúde mentalnos Estados Unidos: história, processos de ajuda e suportemútuos e militância. Rio de Janeiro: Projeto Transversões/Instituto Franco Basaglia, 2001;- VASCONCELOS, E. M.; WEINGARTEN, R. et al. Reinventando avida: narrativas de recuperação e convivência com o transtornomental. Rio/São Paulo: EncantArte/Hucitec, 2006;- Troca regular de informações e de ideias com Richard

Weingarten, liderança do movimento de usuários deConnecticut, EUA, nosso companheiro de intercâmbio e amigohá muitos anos.

Por sua vez, o suporte mútuo  visa primordialmenterealizar juntos   (usuários, familiares e pessoasconhecidas e amigas do campo) atividades sociais,artísticas, culturais, esportivas, comunitárias, delazer, de reconhecimento, e a utilização de recursossociais na comunidade local e na sociedade . Asideias originais destas iniciativas podem atémesmo nascer dentro dos grupos de ajuda mútua,mas a organização para realizá-las é feita emreuniões e atividades diferenciadas, em diversostipos de locais na sociedade, e os grupos de ajudamútua devem manter suas reuniões regulares.Assim, as atividades de suporte mútuo não se

confundem e não substituem as reuniões deajuda mútua, que constituem a base e portade entrada do sistema de empoderamentopara a maioria dos usuários e familiares, eportanto devem ser contínuas e permanentes .Dessa forma, os objetivos, a organização separadae o trabalho conjunto são os principais elementosdiferenciadores do suporte mútuo. Este busca, nosprimeiros momentos, ampliar as oportunidadesde cuidado, sociabilidade, lazer e vida cultural :promover o acompanhamento, ir juntos ao cinema,teatro, shows, museus, fazer passeios ou realizaratividades esportivas e de lazer, em qualquer tipo delocal público e também utilizado por outras pessoasda sociedade.

Os grupos de suporte mútuo podem chegar, maistarde, a desenvolver projetos mais complexos detrabalho/renda e moradia , que promovam umavida mais independente e mais autônoma de seus

membros. Nestes casos, chegam a se organizarinclusive formalmente, com estatuto e registro civil,em associações civis, cooperativas ou como gruposfiliados a outras entidades sociais ou O NGs.

Nestes estágios mais avançados, os gruposde suporte mútuo podem também constituira “incubadora” de outras estratégias deempoderamento, como aquelas que visam à

defesa informal ou profissional dos direitos daspessoas envolvidas, à transformação da culturade discriminação ou estigma na sociedade, ouainda podem desenvolver iniciativas de militânciasocial e política mais ampla , aliando-se a outrosgrupos e movimentos sociais, e procurandoinfluenciar e realizar transformações no âmbito dasociedade, das instituições, das leis e das políticaspúblicas envolvidas no campo em foco. Sobreeste tema, sugerimos ao leitor a leitura do textode aprofundamento sobre os conceitos básicos deempoderamento neste manual.

b) Tipo de participantes e de problemas comuns:

No campo da saúde mental, os grupos de ajudamútua  são primeiramente voltados para as pessoascom transtorno mental, usuárias ou não de serviçosde saúde mental. Outros grupos separados, mascom dinâmica de funcionamento idêntico, devem sercriados para os familiares. O importante, então, éque estes grupos reúnem os pares , ou seja, pessoascom problemas semelhantes, cujas experiências,sentimentos e estratégias de lidar serão trocadasentre si, gerando também o apoio emocional mútuo.

Os grupos de ajuda mútua podem ser formados emoutros campos, com pessoas que passam por outrostipos de sofrimento e opressão, e possivelmente

2524 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

com um funcionamento muito similar, mas em todosos casos o mais importante é esta característicade grupos entre pares , de pessoas que vivem ummesmo problema ou forma de opressão comum.

Os grupos e projetos de  suporte mútuo , no campoda saúde mental, têm prioridade para os usuáriose familiares da área, mas podem e devem incluiroutros tipos de pessoas, como uma forma de buscara integração na sociedade e combater o estigmaassociado ao transtorno mental.

c) Local e espaços de realização:

No campo da saúde mental, as duas modalidadespodem ser realizadas dentro de serviços abertosde saúde e saúde mental, como, por exemplo, osCAPS (Centros de Atenção Psicossocial), centros deconvivência, ambulatórios, e centros de saúde, masambas devem também procurar sair dos serviçospara outros locais da comunidade e da sociedade,como na própria atenção primária em saúde11. Istoé muito importante, porque existe uma tendênciamuito forte para que as atividades de atençãopsicossocial fiquem restritas aos serviços, gerandouma predisposição para o que às vezes é chamadode “cronificação” dos usuários e familiares nosserviços12.

11 Os interessados neste tema devem buscar o texto deaprofundamento sobre o assunto neste manual.

12 Em muitos países que avançaram em seu processo dereforma psiquiátrica, busca-se compensar essa tendêncianos serviços abertos de saúde mental com uma buscaativa de atividades e recursos sociais e culturais fora dosserviços. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem comoem vários países de língua i nglesa, esta proposta recebeo nome de reach out programmes , expressão que podeser traduzida como “programas de busca ativa fora dosserviços”. Neles, profissionais e lideranças assumem afunção de oficineiros, estimulam os grupos de suportemútuo e partem para passeios, atividades, busca de

Nesta direção, o que mais distingue a ajuda mútua  é sua realização em salas em centros sociais ecomunitários, cujas portas possam ser fechadasdurante as reuniões, para possibilitar um ambienteseguro para seus participantes se mostrarem eexporem suas vivências. Exige, portanto, a garantiade não haver interrupções e entrada de pessoasestranhas, o que ajuda a assegurar o sigilo emrelação aos participantes e às informações faladasdurante a reunião.

Por sua vez, as atividades de suporte mútuo  tambémvisam sair dos serviços para espaços comunitáriose públicos, geralmente abertos e compartilhadospelo grande público. Elas podem ser tambémrealizadas em locais cujo acesso pode ser compradoou negociado, como nos cinemas, teatros, museus,parques e centros culturais.

2) Regras básicas dos grupos e atividades deajuda e suporte mútuos

As regras dos grupos de ajuda e suporte mútuos devemser poucas e simples, mas são importantíssimas,porque elas sintetizam a experiência anterior degrupos similares, evitando problemas e conflitos quepodem inclusive inviabilizar o funcionamento do grupo.

A cartilha do participante traz um “ contrato departicipação nos grupos ”, com as regras básicase indispensáveis que devem ser discutidas e

assumidas como o documento mais fundamentaldo grupo . Todos os participantes devem conhecê- lo previamente, e a aceitação das regras docontrato é precondição para participar do grupo .

recursos e projetos a serem realizados na comunidade ena sociedade em geral.

Nos grupos que ainda estão em formação ouquando há membros novos, o contrato deveser obrigatoriamente lido no início da reunião.Por sua vez, os facilitadores devem conhecer ediscutir este documento em profundidade, poisele constitui o dispositivo-chave para se garantira ordem e a convivência pacífica nas reuniões , oque é uma exigência central para a continuidadedos grupos de ajuda e suporte mútuos e para queeles possam desenvolver seus efeitos psíquicos13.

A seguir, buscamos comentar e dar esclarecimentosadicionais acerca de algumas das regras do contrato:

a) Em retorno pela ajuda e o suporte recebidos, osmembros devem ter respeito, consideração e buscardar suporte e respostas às necessidades de cadaum dos colegas.

13 Este tema é longamente discutido no texto deaprofundamento, incluído neste manual, sobre processogrupal e grupos de ajuda mútua.

b) Principalmente nos grupos de ajuda mútua,o nome dos participantes e o que é dito dentrodo grupo por um de seus membros não pode serlevado para fora, particularmente para a suafamília, amigos ou serviço de saúde mental. Aisso nós chamamos de direito à privacidade , àconfidencialidade e à proteção das informaçõespessoais , e representa um valor importante nomundo dos profissionais e também nos grupos deajuda e suporte mútuos. Apenas em situações deemergência, quando um dos membros precisa dealgum esforço comum do grupo para ser ajudado, éque se pode dividir um mínimo de informações que

possibilite aos demais compreender a situaçãoe prover ajuda. Sempre que possível, pergunte àpessoa se ela não se importa com essa divulgaçãode suas informações, para ajudar no cuidadonecessário de emergência.

c) Talvez a regra mais importante deste contratoseja a que exige “respeito aos valores e ausênciade crítica ou julgamento  em relação ao que o outroestá falando, não sendo permitida nenhuma forma

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de preconceito, intolerância, violência verbal oufísica; em caso de não respeito a esta regra, apessoa é convidada a sair da sala de reuniõesaté se recompor e não mais repetir este tipo de

comportamento”. Essa regra, nos grupos com poucaexperiência, tende a ser frequentemente quebrada,e o papel dos facilitadores, e principalmente dofacilitador específico que chamamos de guardião , éde assegurar a todo o custo a ordem e o respeito no

grupo . Como indicamos acima, para uma discussãomais detalhada deste tema tão importante,sugerimos a leitura do texto de aprofundamentosobre processo grupal e suas implicações nosgrupos de ajuda mútua, incluído neste manual.

d) Os pedidos de fala devem ser anotados pelosfacilitadores, e a palavra deve ser cedida a cada

um nesta ordem. O contrato prevê apenas apossibilidade de sugestões de encaminhamento,também conhecidas como “questões de ordem”, quetêm precedência sobre a ordem da fala e, portanto,devem ser imediatamente atendidas. Às vezes,

em reuniões com menos participantes, a ordem dafala ocorre naturalmente, sem exigir inscrições, eos facilitadores podem experimentar suspendera lista. Muito frequentemente, durante a fala deuma pessoa, é comum um ou mais participantes

fazerem perguntas rápidas ou pedidos breves deesclarecimento sobre algum ponto que não ficouclaro, e isso deve ser permitido.

e) Outra regra de fundamental importância

deste contrato, e que exige muito cuidado aosfacilitadores, é aquela que sugere o “respeito pelotempo de fala dos demais participantes, falandonas reuniões um de cada vez, sem o monopólio da

fala; no entanto, em caso de uma fala emocionada,os facilitadores podem pedir ao grupo um tempomaior para melhor escutar e acolher a pessoa”. Parapermitir a manifestação de todos em uma reunião,

a nossa experiência mostra que o tempo inicial paracada fala deve ser de 3 minutos, podendo então serestendida sob a permissão do grupo, ou, em caso denão haver forte necessidade de continuar, a pessoapode se inscrever novamente.

f) À medida que o grupo vai se organizando, ele deveconquistar a liberdade de criar seu próprio estilo defuncionamento e de revisar o presente contrato.Quando o grupo ganhar estabilidade, recomenda-se que se produza um pequeno folheto explicativodos objetivos, das regras, do funcionamento, dos

projetos, da organização etc.

3) O ambiente e os recursos necessários paraas reuniões e atividades, e sua influênciasobre o coletivo

a) Local adequado para os encontros e atividades :

Nos grupos de ajuda mútua , os encontros devem serem local que assegure a privacidade e o anonimatodas pessoas, bem como garanta o direito de nãoserem interrompidos. Também é importante ter umconforto básico, em termos de boas cadeiras e debaixo ruído no ambiente externo.

As atividades de suporte mútuo , como já indicadoacima, requerem por um lado uma “sala debase”, com características similares às salas deajuda mútua, e, por outro, os demais espaços nacomunidade e na sociedade. Para estes últimos,quando se sai dos serviços e centros sociais jáconhecidos, é importante que os facilitadoresde grupo investiguem previamente a segurançae os possíveis riscos do espaço, o conforto dasinstalações, as formas de acesso gratuito ou não,as atividades disponíveis, a forma de transporte, aspossibilidades de realização de lanches ou refeiçõesacessíveis para o grupo etc.

Em todos estes locais, é importante asseguraro acesso a banheiros adequados, com asseio esegurança, e a água potável.

b) Recursos necessários para os encontros eatividades :

Nas reuniões de ajuda mútua, é aconselhável tersempre disponíveis lenços de papel (para auxiliaras pessoas que se emocionarem), caneta e papelpara se anotar sugestões e dicas, água para bebere o material do lanche no final da reunião. Para asatividades de suporte mútuo fora dos ambientes

protegidos, os recursos dependerão da duração e dotipo de atividade, mas é importante garantir semprea alimentação e a existência de meios de transporteadequados para as pessoas.

c) Problemas com transporte :

A falta de acesso a transporte público adequadopode prejudicar muito as pessoas e a participaçãonos grupos e atividades. Para enfrentar isso, ogrupo deve buscar se reunir ou realizar atividadesem locais de fácil acesso para a maioria dosparticipantes, e criar estratégias junto aos serviçosde saúde e saúde mental, às associações, entidadescomunitárias e movimentos sociais da área, para seconseguir o passe livre para todos os participantes.

d) Féria s e outros eventos :

Os períodos de férias, feriados e outros eventospodem afetar a continuidade dos encontros. Émuito importante prever os possíveis períodos quepotencialmente apresentem maiores dificuldades,montando um cronograma realista e comantecedência. Da mesma forma, um bom sistemade comunicação com as pessoas, por telefone, pore-mail ou aviso em lugar comum de referência, émuito importante.

e) Trabalho e base financeira individual :

Alguns participantes podem ter atividades detrabalho, e estes horários devem ser respeitadosno momento de se marcar os encontros. Às vezes,no fim do mês, quando as pessoas estão mais“duras”, pode ser mais difícil arranjar o dinheiroda passagem. Estas questões devem ser discutidasno grupo para se pensar as melhores maneiras deenfrentá-las, podendo se desdobrar em ações desuporte mútuo e em reivindicações à esfera pública.

4) As relações de poder e a disposição daspessoas no grupo

Os facilitadores devem também estimular aparticipação e as relações de poder igualitáriase horizontais   nos grupos e atividades. Um dosprincipais dispositivos para induzir a isso, que

recomendamos para todos os tipos de grupo oureunião, é a disposição das cadeiras em círculo, que iguala todos os membros no espaço do grupo epermite a visão e a comunicação direta de c ada umcom todos os demais participantes do encontro. Emalgumas ocasiões, podem ser oferecidos espaçospara reuniões com cadeiras fixas, dispostas na formade auditório. Se não houver possibilidade de fazerdeslocamentos ou adicionar cadeiras que possam

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formar círculos, estes locais devem ser evitados.Lembremos que as reuniões de depoimentosdos Alcoólicos Anônimos (AA) e seus derivadosfuncionam com esta disposição das cadeiras emauditório, e nossa avaliação deste dispositivo é deque não estimula a troca mais livre de vivências ecomentários entre os membros do grupo, podendoservir de freio ao crescimento e à criatividade daspessoas no médio e longo prazos14.

Outro fator fundamental para gerar relaçõeshorizontais e participantes entre os membros é otipo de facilitação e coordenação das atividadese reuniões . Isso é particularmente importante nosgrupos e projetos de suporte mútuo, como veremoslogo a seguir.

 

5) A dinâmica de funcionamento e facilitaçãodos grupos de ajuda mútua em saúde mental

Para os grupos de ajuda mútua, estamos sugerindoum dispositivo com dois facilitadores com funçõesdiferentes , e os oficineiros que as assumem podemtrocar de papel em reuniões ou datas diferentes, ouem caso do guardião desejar falar sobre si, comoveremos adiante.

O princípio básico que orienta a nossa metodologia

14 Este tema é discutido de forma muito detalhada notexto de aprofundamento, incluído neste manual, sobreprocesso grupal e grupos de ajuda mútua.

é o de que os postos de liderança e poder nogrupo nunca devem ser ocupados de forma fixa erígida . Sugerimos a troca não só entre a dupla defacilitadores “oficiais”, como também incluir asnovas lideranças que sempre emergem dentrodos grupos, que devem ser convidadas tambéma experimentarem os dois postos. Mais tarde,após estarem mais bem preparadas, elas podemse candidatar também para o posto de oficineirofacilitador de reuniões em outros locais.

Nos grupos de ajuda mútua, os profissionais etrabalhadores de saúde e saúde mental podematé assumir temporariamente um papel maisdireto de facilitador no grupo, quando não existemainda usuários ou familiares capazes de fazê-lo.Entretanto, devem estar plenamente conscientesde que esta função é estritamente temporária,buscando estimular o espírito de liderança entreusuários e familiares, e capacitando-os para queassumam o mais rapidamente possivelmente umaou ambas as funções de facilitação descritas aqui.

As duas posições básicas de facilitação são:

a) Facilitador guardião: é o facilitador que garanteas regras do contrato e do bom funcionamento dodispositivo grupal , com as seguintes funções eatribuições:

- facilitar e assegurar o direito de fala para todos;

- impedir que a fala seja monopolizada; neste caso,ele pode propor, por exemplo, a introdução de umtempo máximo de fala para cada um. No caso deuma fala mais emocionada e pessoal de um dosmembros, dando indicações de que precisa de maistempo, o guardião é o facilitador mais adequado parapedir ao grupo mais tempo para aquele participante;

- garantir o bom clima na reunião, sendo oprimeiro a buscar colocar limites aos eventuaiscomportamentos inadequados, se necessáriolembrando as regras e o contrato de funcionamento;

ou, ainda, tomando a iniciativa, em caso de sernecessário, de convidar a pessoa mais exaltada adar uma “voltinha lá fora”, sempre acompanhada;

- assegurar o tempo previsto para o início e o términoda reunião, alertando o grupo sobre o avanço dotempo e para as eventuais atividades ainda porserem realizadas antes da conclusão do encontro,em caso de notar atividades ou comportamentosmuito dispersivos.

O guardião é um posto central e indispensávelnos grupos de usuários15, e geralmente é menosdemandado nos grupos de familiares. É muitoimportante que a pessoa que assume esta funçãode garantidor das regras não fale de si mesmonesta reunião, para poder exercer melhor estafunção. Se for extremamente importante a suamanifestação pessoal, ele deve pedir ao outrofacilitador que assuma temporariamente o papel de

guardião durante sua fala, pois o posto do guardiãonunca deve ficar vazio . Em caso de ser necessária a

15 Para um detalhamento dos desafios do processode facilitação dos grupos de usuários, ver o texto deaprofundamento sobre modelos de intervenção e práxisgrupal neste manual.

presença de profissional ou trabalhador de saúde/saúde mental na facilitação do grupo, em sua faseinicial, é recomendável que ele comece assumindoeste papel. Gradualmente, é importante que outrofacilitador usuário ou familiar também aprenda aassumir este posto, trocando de papel.

b) Facilitador incentivador: Este é um facilitadorparticipante ativo , que pode também falar de si,de sua experiência pessoal, das estratégias queaprendeu para lidar com os desafios do transtornomental, das experiências de outros companheiros.

Este facilitador participa ativamente e estimula osdemais a expressarem suas vivências, e pode inclusivemobilizar um suporte especial a participantes queassim o necessitem, podendo sugerir palavras deapoio ou mesmo uma manifestação mais concreta,quando alguém expõe algo muito importante e estámuito emocionado. Entretanto, em caso deste postoser assumido eventualmente por um profissionalou trabalhador de saúde mental, é recomendávelque fale pouco de si e que seja o menos diretivopossível, que não faça recomendações diretas,fazendo sempre referência de que sua fala parte deexperiências de pessoas que conhece, valorizandosempre as lições e a sabedoria gerada pela vivênciadireta de usuários e familiares, e que portanto nãoadvêm de sua autoridade como profissional.

Além destas duas funções ou postos diferentes,há algumas recomendações comuns para os

dois facilitadores. É muito importante que elesassegurem a continuidade do grupo . As pessoascom transtorno mental ou familiares precisam sentiresta segurança mínima da existência do grupo comoum suporte efetivo para lidar com seus desafios, aomesmo tempo em que também vão se implicandocom o grupo e se corresponsabilizando pela suacontinuidade. Este sentimento de segurança é

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induzido principalmente pela responsabilidade ea firmeza dos facilitadores, garantindo um bomclima de interação entre os participantes e criandoexpectativas em relação ao que poderá ser trazidopara a próxima reunião.

6) O suporte de profissionais e trabalhadoresde saúde e/ou saúde mental noacompanhamentona e supervisão dos grupos:

Consideramos de vital importância a participação deprofissionais de saúde e/ou saúde mental ajudandoe dando suporte aos facilitadores e demaisparticipantes no processo inicial de formação dosgrupos de ajuda e suporte mútuos, e mais tardecolaborando na supervisão dos facilitadores e,no caso de um programa municipal montado combolsas de trabalho, na gestão do programa em seusdiversos níveis. Assim, temos o que chamamosna experiência do Rio de Janeiro das seguintes

funções: o apoiador local, o supervisor e o gestorcentral do programa.

Diretamente nos grupos, a direção principalde atuação dos profissionais é estimular oempoderamento e a autonomia dos usuáriose familiares, repassando gradualmente todosos postos de poder para eles. Daí, a presençaprofissional é sempre temporária e apenas no

sentido de dar segurança inicial e colaborar naassessoria aos verdadeiros atores da ajuda e dosuporte mútuos, os usuários e os familiares .

Podemos então pensar as várias formas destaparticipação profissional nos grupos e na gestão deum programa mais amplo de grupos de ajuda mútua,em graus cada vez maiores de autonomização paraos facilitadores usuários e familiares:

6.1) A atuação temporária de profissionais outrabalhadores como facilitadores em grupos deajuda mútua:

Em caso de não haver em uma região ou cidadeas duas lideranças de usuários ou de familiaresque se sintam capazes de se colocar logo de iníciocomo facilitadores, podemos ter o apoio iniciale temporário de profissionais e trabalhadores deserviços locais de saúde ou de saúde mental, comexperiência com pessoas com transtorno mentalsevero, interessados na criação de grupos de ajudamútua, e que se disponham a se capacitar para tal.No caso de grupos de ajuda mútua, recomendamosque este profissional não atue como facilitadordentro do serviço de saúde mental em que trabalhacotidianamente , para não criar constrangimentos àliberdade de expressão dos participantes usuáriosdeste serviço específico, bem como porque as duasfunções têm significados simbólicos diferenciados.De qualquer forma, esta possibilidade de suporte deum profissional permite a montagem de grupos emlocais sem nenhuma ou com apenas uma liderança

de usuários ou de familiares disposta a assumir aatividade. Nas primeiras reuniões, recomenda-seque o profissional atue na posição do facilitadorguardião , mas logo o usuário ou familiar deve serestimulado a trocar de papel e também assumireste posto. Gradualmente, outra liderança deve serchamada a assumir o papel de segundo facilitador,em substituição ao profissional, e, se ambos

ainda se sentirem inseguros, este pode ficar comoobservador da reunião, como sugerido a seguir.Gradualmente, os dois facilitadores usuários oufamiliares devem ser estimulados a atuar sozinhos,podendo ter o suporte do profissional apenas comosupervisor externo, como descrito abaixo.

6.2) A atuação de profissionais ou trabalhadorescomo observadores das reuniões:

É também possível pensar na situação de gruposde ajuda ou suporte mútuos em que há liderançasde usuários ou familiares para atuarem como

facilitadores, mas estas não têm experiência préviaou ainda se sentem inseguras para iniciar sozinhosos grupos. Nestes casos, é possível também pensarno suporte de um profissional ou trabalhador amigo,que atue apenas como observador das reuniões  eque intervenha somente em caso de problemasmais difíceis, como indicado anteriormente. Émuito importante também que profissionais etrabalhadores controlem o impulso de responderas demandas de informação e orientação, poisao fazerem isso, a tendência é do grupo se tornarum grupo de orientação, como se faz hoje nosserviços de atenção psicossocial. As demandasde informação e discussão com profissionaisdevem ser encaminhadas para a realização de umareunião específica deste tipo, com convites formaisa profissionais que não atuam regularmente nosgrupos. Acima de tudo, o princípio chave para apresença de profissionais e trabalhadores é de quequalquer intervenção deles deve sempre reforçara autoridade dos dois facilitadores de plantão,e nunca se sustentar na autoridade do próprioprofissional. Isso pode ser concretizado fazendosugestões e recomendações como qualquer outrotipo de participante, para que os facilitadoresa implementem. Isso lhes propicia suporte esegurança nesta fase inicial do grupo e do processo

de aprendizagem de como facilitar reuniões. Nestascircunstâncias, é recomendável que este profissionaldeva também assumir o papel de apoiador local dosfacilitadores, ou necessariamente estar presentenas reuniões de supervisão já disponíveis naárea, para terem uma atuação bem integrada ecoordenada.

6.3) A atuação de profissionais como supervisor(es)dos facilitadores:

Já no início dos grupos, consideramos fundamentala criação de um dispositivo para a supervisão dos

facilitadores de ajuda e suporte mútuos, no qual elespossam trocar suas experiências, suas dificuldadese acertos nos seus respectivos grupos e atividades,bem como tirar suas dúvidas, sugerir entre siestratégias de ação etc. Assim, já na fase inicialde implementação dos grupos, recomendamos aimediata formação de grupo(s) de supervisão emque os profissionais devem ter um importante papelde, a partir de sua experiência de trabalho, ajudaros facilitadores a lidar com os desafios usuais dacondução dos grupos. Mais tarde, facilitadoresusuários e familiares com experiência consolidadapoderão também ocupar esta função.

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7) O caso de um programa municipal de gruposde ajuda mútua, com bolsas de trabalho:gestão, supervisão e monitoramento, eatuação de profissionais ou trabalhadores

Em caso de um programa municipal institucionalizadopara grupos de ajuda mútua, com provisão de bolsasde trabalho, a gestão local e municipal do programadeve necessariamente ser assumida inicialmentepor profissionais ou trabalhadores de saúde e saúdemental, até que tenhamos facilitadores usuários efamiliares com experiência mais sedimentada para

assumir as funções descritas abaixo. Assim, nossaexperiência nos mostrou a importância de formalizaralguns postos ou funções chaves para a gestão doprograma, bem como alguns instrumentos para oseu monitoramento, como descrito a seguir.

7.1) Postos ou funções básicas da gestão do programae a atuação de profissionais e trabalhadores:

Até o momento, a experiência nos indica anecessidade de 3 postos ou funções fundamentaisna implantação do programa:

a) O trabalho no plano local, de uma região dacidade ou área rural   - o Apoiador Local : osgrupos e facilitadores devem atuar localmentesob o comando de um serviço de referência e queorganiza a rede de saúde mental ou de atençãoprimária em saúde na área, como um Centro de

Atenção Psicossocial (CAPS), ou a gerência localda atenção primária, com seu Núcleo de Apoio àSaúde da Família (NASF). Os facilitadores usuários efamiliares com bolsa de trabalho assumem portantouma relação trabalhista, atuando sob a gestãoe responsabilidade institucional de um agente,que chamamos de Apoiador Local. Sugerimos queeste seja, pelo menos no início das atividades,

um profissional ou trabalhador com familiaridadecom a rede local de saúde ou saúde mental, paraatuar de forma integrada com estes serviços. Osapoiadores podem assumir a função temporária defacilitador e de observador diretamente nos grupos,como descrito na seção anterior. Por sua parte, osfacilitadores devem reportar a eles as atividadesrealizadas, a frequência nos grupos, as dificuldades,problemas e desafios, para os encaminhamentosnecessários. Nesta relação com os apoiadores,são discutidos os critérios de participação eas estratégias de divulgação e mobilização departicipantes para os grupos; a relação com as

instituições que provêem espaço para a reuniãoou que referenciam participantes dos grupos;questões de transporte e infra-estrutura; os váriostipos de vínculos com os serviços locais de saúdee saúde mental e o encaminhamento de usuários efamiliares em caso de necessidade; a relação coma comunidade local, etc. Mais tarde, facilitadoresexperientes podem assumir também esse posto deapoiador local, sem dispensar o apoio dos s erviços,profissionais e trabalhadores.

b) O trabalho de acompanhamento técnico- institucional: o Supervisor   dos facilitadores eapoiadores : os programas municipais devem escolherum profissional com experiência consolidada detrabalho de grupo em saúde mental, que tenha umperfil de relações mais horizontais e empáticas comusuários e familiares, e devidamente capacitadopara trabalhar com a metodologia exposta neste

manual. O supervisor tem uma primeira função deagenciar ou organizar a capacitação para gestores,facilitadores e apoiadores locais, e depois fazer asupervisão das atividades, em reuniões regularescom eles, podendo ser reuniões conjuntas ouem separado, dependendo das necessidades econdições locais. Nelas, são expostas e discutidasas experiências dos facilitadores com o exercício dafunção e com o trabalho em grupo, com seus desafiosde condução e encaminhamento; as dificuldades darelação entre os próprios facilitadores; a relaçãocom os serviços de saúde e saúde mental local;como lidar com problemas mais complexos (como

violência, drogas, entre outros), etc.

c) O trabalho de gestão do programa no municípioou em consórcios de municípios menores: o(s)Gestor(es) Municipal(is) : esta função deveser assumida por um profissional ou, em caso denecessidade, por uma pequena equipe bem integradade gestores. O gestor tem a responsabilidade demobilizar recursos para o financiamento do programa;de estabelecer os trâmites administrativos depagamento dos bolsistas; de planejar a capacitaçãoe a implantação do programa junto à rede de saúdemental e de atenção primária em saúde; de executara seleção dos bolsistas; de gestão e monitoramentocentral do programa, com contatos regulares com osapoiadores locais, supervisor(es) e também, quandonecessário, com os facilitadores; e de prestar contaspara os responsáveis pelo programa de saúdemental e de atenção básica no município.

7.2) A dinâmica de registro e monitoramento:

Um programa institucional envolvendo bolsasde trabalho implica em relações trabalhistas;responsabilidades específicas e/ou compartilhadas,com vistas a um bom andamento das atividades;prestação de contas; registro, monitoramento eavaliação regular do trabalho realizado, etc. Os

postos e funções principais foram indicados acima,mas é possível também sugerir alguns instrumentosbásicos de registro que, sem criar uma burocraciaexagerada, podem gerar uma formalizaçãomínima da dinâmica de trabalho e sustentar aresponsabilização individual e compartilhada. Paraisso, sugerimos 3 instrumentos:

a) Diário de campo : os facilitadores devem ter umcaderno, preferencialmente de capa dura (parapermitir anotações em quaisquer ambientes), emque registram os dados mais fundamentais de

cada reunião: dia, local, número de participantes,presença de profissional ou trabalhador, quemassumiu o posto de coordenador e de guardião,eventos e temas mais importantes, desafios,problemas e intuições interessantes. O diário decampo é fundamental como fonte para pesquisa,para a discussão nas reuniões de supervisão, e paraprocedimentos de avaliação e de desenvolvimentoda presente metodologia de grupos.

b) Relatório Mensal de Atividades : o relatórioconstitui o principal instrumento de registroadministrativo e de monitoramento do programa.No Apêndice 3, temos uma proposta de documentobásico para este relatório.

c) Comunicado para Tomada de Providências : estecomunicado, sugerido no Apêndice 4, constituium instrumento para informar, discutir e avaliareventuais problemas ocorridos nos grupos, e para

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mobilizar providências conjuntas imediatas com oapoiador local, no sentido de sanar estes problemas.

8) Exemplos de temas a serem discutidos nosgrupos de ajuda e suporte mútuos

A experiência dos grupos de ajuda e suporte mútuosno campo da saúde mental oferecem inúmerosexemplos de temas discutidos nos grupos, queapresentamos abaixo, discriminando aquelesque emergem mais nos grupos de usuários, de

familiares, e os comuns aos dois grupos. Muitosdos temas mais associados à esfera pessoal eprivada apresentados a seguir são mais comuns emgrupos de ajuda mútua, mas eles podem e devemser trazidos também para o suporte mútuo. Aquelesindicados na terceira lista, de temas mais coletivos,são comuns aos grupos de usuários e familiares, esão fundamentais e indispensáveis para estimularas iniciativas de suporte mútuo e demais estratégiasde empoderamento. Além disso, estas listas sãoapenas ilustrativas, e não têm qualquer pretensãode esgotar todos os temas possíveis.

8.1) Lista de temas mais comuns nos grupos deusuários:

a) formas de estimular o bem-estar e a saúde, e delidar com as dificuldades no dia a dia, ao alcance daspessoas (exemplo: fazer mais coisas que dão paz ediminuem a ansiedade, como caminhadas, pescar,

soltar pipa, ir dançar, ir ao cinema, visitar amigos etc.);

b) coisas e eventos da vida mais comuns que causamansiedade e estresse, e que podem ser evitados, oucomo criar estratégias para lidar com eles;

c) sentimentos, sintomas e sinais mais comuns queindicam a proximidade de uma crise ou que a pessoadeve procurar ajuda imediata;

Obs.: sobre estes três primeiros temas, recomendamosutilizar o apêndice da cartilha intitulado “Plano deação para o bem-estar e a recuperação”, com basena experiência norte-americana dos grupos de ajudamútua. Sugerimos inclusive que este apêndice devaser usado nas primeiras reuniões temáticas, logo nafase inicial dos grupos.

d) relatos da experiência cotidiana dos membros dogrupo sobre a convivência com o transtorno mental,sobre seus desafios e as estratégias de como lidarcom eles. Este tema é o mais frequente no tipo dereuniões que chamamos de “arroz com feijão”.

e) plano de crise (ver anexo neste manual sobre otema);

f) os cuidados necessários durante e após ainternação psiquiátrica, por parte da própria pessoa,seus familiares, amigos e companheiros de grupo;

g) boas formas de suporte e de tratamento, emserviços sociais, de saúde e saúde mental dequalidade disponíveis na região;

h) recursos culturais, musicais, artísticos, sociais,esportivos, religiosos, comunitários e de lazer

disponíveis na região e a experiência de interaçãosocial e convivência neles;

i) como lidar com e avaliar os diferentes tipos detratamento em saúde mental;

j) como lidar com a medicação psiquiátrica: efeitosde cada um no corpo e na mente; ajuste dosremédios, da dosagem, e dos efeitos colaterais;as experiências informais e sem conhecimento dos

técnicos, de diminuição da dosagem ou retirada,

e suas consequências; como conversar e negociar

com os médicos e com a equipe dos serviços sobre

a medicação, etc.;

k) como lidar com os serviços de saúde mental, com

seus psiquiatras e demais profissionais, bem como

com os serviços de saúde em geral; como avaliar

o momento de tomar decisões mais difíceis, como

mudar de profissional ou de serviço;

l) bons cuidados com a saúde física: alimentação,

atividades físicas e terapêuticas, sono, prevenção e

acompanhamento de doenças crônicas etc.;

m) a experiência de buscar uma atividade laborativa e

de trabalho, capacitação e treinamento para o trabalho;

n) os vários tipos de família e formas de viver

sozinho, e a experiência de moradia; alternativas e

serviços de moradia na região;

o) a experiência de lidar com drogas lícitas (bebidas

alcoólicas, café, cigarro etc.) e ilícitas;

8.2) Lista de temas mais comuns nos grupos defamiliares16:

 Os desafios da participação e as questões trazidaspelos familiares para os grupos apresentam muitasespecificidades. Em primeiro lugar, não é fácilmobilizá-los para as reuniões, pois isso implica“quebrar” a longa rotina diária de cuidados eafazeres, e superar a frequente tendência aodesânimo e mesmo à depressão. Em segundo, osgrupos precisam construir um nível de cumplicidadee confiança mútua muito alto entre si e com ostrabalhadores que eventualmente assessoram os

grupos, para que se disponham a falar de temas tãodifíceis e dolorosos, como os listados abaixo:

a) o sofrimento, dúvidas e esperanças vividasquando os serviços de saúde mental informam odiagnóstico;

b) a procura por serviços e profissionaiscomprometidos com o cuidado ao longo do tempo,humanizados, competentes e capazes de um bomacolhimento e sensibilidade com os usuários eparticularmente com os próprios familiares;

16 Para uma discussão mais detalhada destes temas, vero texto de aprofundamento de Rosaura Maria Braz nestemanual.

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c) como conversar com os profissionais semcensuras e aprender mais sobre medicamentos,os efeitos colaterais, o que se pode e não se fazer,incluindo a possibilidade de expressar dúvidas equestionamentos;

d) como reconhecer os sinais de piora no quadro dousuário, e de um eventual próximo surto;

e) a definição e decisão do melhor momento e damelhor forma de se internar (voluntária e involuntária)o usuário, seus dilemas e consequências;

f) a fragilidade e as necessidades próprias dosfamiliares durante o período da internação;

g) a necessidade de ter um arsenal de estratégias deconvivência diária, no lidar com as particularidadesda relação com o usuário e com seus comportamentosmais desafiantes;

h) estratégias de lidar com o uso frequente e abusivode álcool e outras drogas, c om suas consequênciase dilemas;

i) os enormes desafios de lidar com oscomportamentos autoagressivos e suicidas;

j) os dilemas e estratégias relacionadas à recusade tratamento e a suas consequências na piora noquadro do usuário;

k) as diversas estratégias de lidar com oscomportamentos ofensivos aos próprios cuidadorese familiares, ou como “cuidar bem de seu algoz”;

l) como lidar com a tristeza em ver as expectativasfrustradas e os comprometimentos mais acentuados

da vida afetiva, social e profissional de seu familiarcom transtorno;

m) os desafios da busca e conquista de atividadesque ampliem as possibilidades de vida e querespeitem as limitações e potencialidades de seufamiliar, nas áreas de tarefas do cotidiano, cultura,lazer, sociabilidade, esporte, vida comunitária,educação, trabalho etc.;

n) como avaliar a melhor indicação e a dosagem, como menor nível de efeitos colaterais; como conseguira medicação e garantir a rotina que garanta o usoregular e adequado de todos os medicamentos;

o) o reconhecimento e as estratégias de garantir odireito ao descanso, ao cuidado de si e a um projetode vida por parte dos familiares e cuidadores;

p) o dilema de geração na produção do cuidado, ouseja, como os familiares lidam com o medo/pavorde se confrontarem com a própria morte e com odesafio de quem e como se proverá o cuidado paraseu familiar com transtorno no futuro;

q) os desafios adicionais de lidar com usuáriosidosos;

r) as dificuldades próprias dos casos que envolveminfração penal e medidas de segurança.

8.3) Lista de temas comuns aos grupos de usuáriose familiares:

Esta lista indica temas que são comuns aos gruposde usuários e de familiares, levantam questõesmais coletivas e são fundamentais para as demaisestratégias de empoderamento:

a) como lidar com o preconceito e a discriminaçãocontra a pessoa com transtorno mental e suafamília, e como promover mudanças na comunidadee na sociedade a este respeito;

b) direitos das pessoas com transtorno mental ede suas famílias na sociedade e junto a serviços e

órgãos públicos17;

c) os direitos civi s da pessoa com transtorno mental

17 Para a discussão deste tema, recomendamosfortemente a leitura do livro de Luciana Barbosa Musse,Novos sujeitos do direito: as pessoas com transtornomental na visão da bioética e do biodireito, publicado em2008 pela Editora Elsevier, do Rio de Janeiro.

e de suas implicações na família: o que é, e comolidar com a incapacidade civil, tutela, imputabilidade(não responsabilidade por crimes) etc.

d) a luta política por serviços e por uma política de

saúde mental na sociedade; a reforma psiquiátrica ea luta antimanicomial; a participação nos conselhosde política social e de saúde;

e) como difundir a luta pelos direitos das pessoascom transtorno mental: educação política, materiais

e formas de educação popular em saúde e saúdemental etc.

f) a luta pelos direitos civis, políticos e sociais e aaliança com outros movimentos sociais populares,partidos políticos, ONGs, intelectuais e profissionaisengajados etc.

Para concluir esta seção, sugerimos também queos facilitadores anotem, após as reuniões, as dicas

de experiências e estratégias mais bem-sucedidase também o que se deve evitar, para cada umdestes temas. Assim, quando o tema reaparecernovamente, os facilitadores poderão apresentaras experiências dos usuários e familiares queparticiparam das reuniões anteriores. Para isso,

vejam o item sobre registro das atividades nopróximo capítulo deste manual.

9) Tipos de reunião de ajuda mútua eaproximações com o suporte mútuo

9.1) Tipos clássicos de reuniões de ajuda mútua :

a) Relatos e trocas de experiências pessoais e apoio

emocional, entre os participantes associados dogrupo ou novatos : este tipo e o seguinte são os mais

frequentes, que estruturam a base de funcionamento(o “arroz com feijão” ) dos grupos de ajuda mútua. Osgrupos e lideranças iniciantes devem começar com

estes dois tipos, que apresentam vários desafios,principalmente se se utiliza uma metodologia não

tão homogênea e rígida como a dos AlcoólicosAnônimos. Estes últimos optaram por uma dinâmicade reunião muito padronizada e simples, sem

risco, com uma disposição na forma de auditório,para evitar qualquer possibilidade de emergência

de surpresas, eventos disruptivos e conflitos,visando a uma difusão geográfica dos grupos sem a

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necessidade da presença de especialistas. Nametodologia adotada aqui, a dinâmica proposta paraeste tipo de reunião, descrita abaixo, bem como osvários tipos de reunião propostos nesta seção, irãopermitir maior flexibilidade e maior possibilidade desurpresas, mas de forma razoavelmente segura.

b) Reuniões temáticas de troca de experiênciase apoio emocional com base na vivência dosparticipantes associados ou novatos : nestamodalidade, busca-se trocar as experiênciaspessoais relativas a um tema específico, como,por exemplo, lidar com os sintomas, conviver comos efeitos colaterais dos remédios, a relação coma família e seus conflitos, sexualidade, dificuldadesde criar laços de amizade, desafios para ter trabalho,dificuldades na relação com drogas lícitas ou ilícitasetc. Para este tipo de reunião, recomendamosfortemente os facilitadores a utilizarem em primeirolugar o apêndice disponível apenas na cartilha,intitulado “Plano de ação para o bem-estar e arecuperação”, sintetizado a partir da experiêncianorte-americana dos grupos de ajuda mútua.

c) Relato e troca de experiências pessoais e apoioemocional, mas a partir do convite e do relato de umusuário ou familiar, que seja uma liderança externaao grupo com nível mais avançado de experiência :o convite a outras lideranças com boa experiênciapessoal de convívio com o transtorno mental permiteconhecer suas estratégias individuais e coletivas delidar no dia a dia, suas formas de participação nasociedade e na militância social.

d) Relato e troca de experiências grupais, a partir doconvite e do relato de uma liderança de outro grupode ajuda/suporte mútuos : neste tipo de reunião, aparticipação de liderança de outro grupo permiteconhecer a experiência de outros grupos, suasformas de funcionamento, as estratégias de lidarcom o transtorno que eles sistematizaram etc.

e) Reuniões com convidados externos, comoprofissionais, lideranças de movimentos sociais egestores de serviços : neste tipo, estes convidadossão chamados para prover informações geraisou temáticas do campo da saúde mental, discutirestratégias de tratamento e cuidado, avaliar osrecursos e serviços existentes, os direitos dosusuários etc. A escolha deste tipo de convidado éimportante, e um dos critérios mais importantes éo de ser “amigo” ou estimulador da organizaçãoautônoma dos usuários.

f) Reunião para estudo e discussão de texto oupublicação específica : nesta reunião, textos,cartilhas, artigos, textos literários, narrativaspessoais, capítulos de livros acadêmicos etc.que forem considerados importantes serão lidos,previamente ou não à reunião, e discutidos pelogrupo. Visa ampliar o conhecimento dos processosde recuperação, a troca de experiências de vida, osdireitos dos usuários, as formas de s uporte mútuo ede militância social.

g) Reunião para se ver juntos filmes importantes ediscuti-los : hoje temos um acervo muito grande defilmes muito importantes para o campo da saúdemental, e que estão disponíveis em DVD. Muitos delescontam histórias de usuários, de experiências pessoaisde processos de recuperação, de lutas pelos direitos oucontra a discriminação na sociedade etc. Assistir a elesjuntos e discuti-los constitui uma oportunidade muitogrande de crescimento para os participantes do grupo.

A experiência demonstra que, mesmo quandose começa uma reunião optando pelos tipos (b) eseguintes, a tendência mais forte nos grupos deajuda mútua é se voltar ao “arroz com feijão”, comos participantes retornando aos seus relatos deexperiências pessoais. Isso acontece porque muitasvezes estes grupos constituem o único espaço parase falar e se trocar mais abertamente a experiênciacotidiana de vida com o transtorno, com suas

diversas conquistas e desafios. Em grupos maisregulares, com encontros semanais, essa tendêncianão é tão significativa, mas em grupos quinzenaisou mensais o desejo dos participantes de falaremde suas vivências no período entre as reuniões émaior. De qualquer forma, os facilitadores devemser compreensivos, entendendo e respeitandoessa tendência. Assim, depois de algum tempodiscutindo um tema ou ouvindo a experiência dealguém de fora, não há problemas em deixar que osparticipantes voltem a suas experiências pessoais.

9.2) Tipos de reuniões e atividades na direção dosuporte mútuo, defesa de direitos e militânciasocial :

Naturalmente, os grupos de ajuda mútua vãosentindo a necessidade de partir para atividadescomuns fora do grupo, que muitas vezes se iniciamno campo do lazer, de atividades culturais ou desuporte direto a colegas usuários ou familiares,podendo se desdobrar em outras iniciativas mais

permanentes de suporte mútuo, defesa dos direitos,mudança cultural na sociedade, conscientizaçãopolítica ou militância social. Indicaremos aquiapenas algumas atividades de transição, já que ostipos de reuniões e dispositivos coletivos nestesnovos campos são muito variados.

a) Reunião de discussão e proposição de outrasiniciativas de ajuda/suporte mútuo, defesa dos

direitos e militância social : um grupo de ajudamútua já estabilizado deve partir para ampliar suasatividades nestas várias direções, sem desmobilizarsua dinâmica básica de reuniões de ajudamútua. Assim, podemos ter reuniões no horárioconvencional da ajuda mútua para discutir temasque levem a este tipo de iniciativas, tais comonecessidades comuns dos usuários, a formação denovo grupo de ajuda mútua em outro local, direitos,iniciativas de luta, projetos culturais, de trabalho,de moradia etc. Entretanto, não se deve gastarmais de uma ou duas reuniões para estes temas,pois o desdobramento destas iniciativas deve ser

feito sempre em reuniões à parte , em outro horário,com uma dinâmica diferenciada para tal, maisobjetiva e voltada para a prática, e sem substituira reunião convencional de ajuda mútua. Em casode participantes que avançaram no seu processode recuperação e não sentem mais a necessidadepessoal de reuniões de ajuda mútua, estes devemser convidados a participar da formação de novosgrupos de ajuda mútua, já como facilitadores, ou deoutros tipos de grupos, projetos de suporte mútuo,defesa de direitos e militância.

b) Atividade conjunta externa de suporte mútuo,como lazer, cultura, turismo e esporte : os gruposde ajuda mútua podem e devem se organizar paraseus membros saírem juntos para ir a cinema, j ogosesportivos, festas, eventos públicos, passeios,locais recreativos, viagens de turismo e férias, sair

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juntos à noite etc. Podem, para isso, buscar apoionos serviços e programas de saúde mental e deoutras organizações e entidades culturais, sociais ecomunitárias. É muito comum que museus, teatros,cinemas e centro culturais ofereçam livre acessopara públicos com necessidades especiais, desdeque isso seja negociado previamente.

c) Atividade ou projeto externo mais permanentede suporte mútuo, mudança cultural, defesa dosdireitos, e militância social : cada um destes váriostipos de projetos exige reuniões com objetivos edinâmicas diferentes.

10) Esquema básico para uma reunião deajuda mútua 

O primeiro contato com os esquemas apresentadosaqui pode dar a impressão de algo complicado. Nãoé, nem é preciso decorar nada. Basta compreendê-los,identificar a tabela das fases da reunião (Apêndice1) que corresponde ao tipo de reunião desejada, e levá-la para a reunião para servir de guia. Recomendamosque as primeiras reuniões dos facilitadores iniciantessejam sempre lideradas ou acompanhadas por pessoas(lideranças ou profissionais) que tenham experiênciaem coordenar reuniões.

Serão tratados aqui os dois tipos básicos de reunião:

- Tipo 1: reuniões de relatos pessoais e trocasde experiências e apoio emocional, entre osparticipantes associados do grupo ou novatos 

- Tipo 2: reuniões temáticas de troca de experiênciase apoio emocional com base na vivência dosparticipantes associados ou novatos 

Estes dois tipos nos parecem os mais desafiantese pelos quais todos os grupos devem se iniciar.Como dissemos acima, eles constituem o dia adia dos grupos de ajuda mútua, ou seja, os dois

tipos de reunião que devem sempre existir nestesgrupos, a partir do quais os outros tipos serão umdesdobramento natural.

10.1) Primeira fase: acolhimento e regras da reunião:

a) Recepção : trata-se de receber os membros jáveteranos, mas particularmente acolher de formacalorosa os novatos, que irão participar da reuniãopela primeira vez. Para isso, os facilitadores eprincipalmente a equipe de boas-vindas , já descrita

acima, têm um papel fundamental. Como indicadonaquela ocasião, a equipe de boas-vindas mostra olugar, apresenta a versão mais simples da cartilha,explica como funciona o grupo e suas regras básicas(indicando o contrato), apresenta os novos aosmembros antigos. Para isso, sempre que houvernovatos, os integrantes desta equipe devem estardisponíveis pelo menos 30 minutos antes do início

oficial da reunião, e os novos membros devem serestimulados a chegar mais cedo para terem estecontato com a equipe.

b) Apresentação : já sentados em círculo, faz-se umaapresentação pessoal de todos os participantes.Esta é fundamental particularmente nos dias emque há novatos no grupo. Formas mais dinâmicasde apresentação podem ser usadas, substituindo adinâmica de quebra-gelo indicada logo abaixo. Nasreuniões iniciais dos grupos em que as pessoas nãose conhecem previamente, pode ser interessante

sugerir o uso de crachás i mprovisados18.

c) Exposição das regras básicas da reunião : Esteprocedimento se inicia com a apresentação dos doisfacilitadores, indicando claramente quem será oguardião e quem será o incentivador naquela reunião .Particularmente quando há novatos, é importante

18 Existem formas simples de se fazer estes crachás. Umadelas é usar pequenos pedaços de papel com o nome decada pessoa escrito em letra grande e legível, e presocom alfinete, clipe ou fita-crepe dobrada sobre si mesmo,na roupa de cada participante. Pedaços de fita-crepe maislargas também podem ser usados diretamente sobre aroupa, escrevendo-se previamente sobre uma mesa onome da pessoa com uma caneta de ponta mais grossa.

reler os objetivos e as regras do contrato departicipação, que integram a cartilha do participante.Isso deve ser feito pelo facilitador guardião do dia.Mesmo na ausência de novatos, em caso do grupo terdemonstrado nas reuniões anteriores uma tendênciaa quebrar uma ou mais regras básicas ou dos itensdo contrato, este facilitador pode lembrar o grupodesta(s) regra(s) de forma positiva, dizendo algoassim: “é bom lembrar das regras X e Y, que dizem..., e esperamos que o grupo hoje tenha uma reuniãotranquila e proveitosa para nós todos”.

d) Dinâmica simples de quebra-gelo : os participantesdo grupo podem propor uma pequena dinâmica paraquebrar a timidez e “esquentar” o grupo, e se osvários participantes não tiverem nenhuma ideia,aí os facilitadores devem propô-la. A forma maissimples de quebrar o gelo e estimular a amizadee a imaginação é cantar uma música sugestivae conhecida de todos. Para isso, incluímos nacartilha dos participantes alguns exemplos de letrasde músicas brasileiras sugestivas para este fim. Osfacilitadores e o próprio grupo devem estimular queseus participantes também indiquem outras boasletras de música para isso, com as quais se sintamidentificados e gostem de cantar, e que valorizem acultura local. Como indicado antes, uma dinâmicade apresentação mais estimulante pode tambémser uma boa forma de quebrar o gelo entre osparticipantes. Os facilitadores de grupos devempesquisar e conhecer como aplicar alguns jogos edinâmicas de grupo simples, rápidas, não invasivas

e que não exijam conhecimento complexo para suaaplicação, podendo ser reproduzidas facilmente nosdemais grupos. Existem também técnicas simplese breves de relaxamento que podem ser úteis emcaso de haver pessoas que aparentam um nível deansiedade mais alto. A mais comum e fácil de seutilizar em grupos é sentar-se de forma cômoda eposição ereta, baixar os olhos (apenas olhar para

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o chão, fixando em um ponto, mas não fechar) erespirar espontânea e relaxadamente, sem forçar oritmo, contando cada inspiração até dez, e depoisvoltar e recomeçar de novo a conta, não devendodurar em grupos do campo da saúde mental mais dedois ou três minutos.

10.2) Segunda fase: relatos e trocas de experiências:

Nesta fase, os participantes são livres para fazerperguntas e relatar livremente episódios de sua

história pessoal, suas vivências e emoções, vitóriase conquistas alcançadas, estratégias bem e/oumalsucedidas de lidar com o transtorno e com a vida,e particularmente os desafios atuais que enfrentam.Nesta fase e na seguinte, os facilitadores têm umpapel central no bom encaminhamento das atividades.

10.2.1) As três possibilidades de encaminhamentodesta fase da reunião :

Esta fase pode então ter três encaminhamentosdiferentes, dependendo do tipo de reuniãoplanejado. Assim, os facilitadores devem propor eouvir sugestões quanto ao tipo e encaminhamentoa ser feito, podendo inclusive se prever na reuniãoanterior qual o tipo a ser encaminhado no próximoencontro. As opções são:

  Para o tipo 1  (reuniões de relatos e trocas deexperiências pessoais e apoio emocional, entre osparticipantes associados do grupo ou novato): 

a) Primeiro tipo de encaminhamento: expressão livrede experiências do conjunto dos participantes :

Neste encaminhamento, os membros perguntam efalam livremente, um após o outro, em falas curtas.Aqui, os facilitadores têm um papel específicoimportante de:

- garantir oportunidades para que todos possamse expressar, sem monopólio da fala  por nenhumdos participantes, ou evitando polarizações   entreapenas dois ou três participantes;

- identificar um ou mais temas ou desafios comuns  importantes , do ponto de vista emocional, pessoal,ou da perspectiva da recuperação, que estãoem foco, e sobre os quais os demais colegas sãoconvidados a se manifestar.

b)  Segundo tipo de encaminhamento:  escolha daexperiência de um dos membros como foco centralda reunião :

Se o grupo constata que alguém está necessitandode maior atenção, os facilitadores podem sugerire os demais participantes podem decidir sermais generosos com ele, concedendo-lhe maistempo para falar, sem entretanto tomar todo o

tempo disponível, sendo recomendável que nãoultrapasse mais que um terço do tempo da reunião.Os facilitadores então propõem ao grupo que estaexperiência constitua então a base da reunião , apósa qual os outros devem buscar relatar experiênciassemelhantes ou sugestões que ajudem o colega ,particularmente aquelas bem-sucedidas.

Para o tipo 2 (reuniões temáticas de troca deexperiências e apoio emocional com base navivência dos participantes associados ou novatos): 

c) Terceiro tipo de encaminhamento: escolha prévia detema e troca de experiências apenas em torno dele:

Neste tipo de encaminhamento, geralmente decididocom antecedência na última reunião, se elege umtema de interesse geral, e todos os participantes sãochamados a trazer contribuições para a reunião, emtermos de informações, pequenas contribuições naforma de texto (reportagens, artigos etc.), perguntas,

experiências e vivências pessoais relevantes. Osdepoimentos de todos durante a reunião devemidealmente ser ligados ao tema em foco.

10.2.2) Tarefas comuns dos facilitadores nesta fase :

Independente do tipo de encaminhamento, osfacilitadores têm funções muito importantes nestafase. Podemos listar as seguintes:

a) Mobilização de apoio emocional :  em caso doparticipante que estiver relatando se emocionar,precisando de suporte, os facilitadores podem:

- encorajá-lo, falando da importância de se abrir e doacolhimento e a amizade que ele(a) tem disponível alino grupo, e pedindo ao grupo mais tempo para isso;

- em caso de choro, oferecer lenço de papel;

- sugerir que os demais participantes, particularmenteaqueles vizinhos a ele(a), o encorajem, manifestandode alguma forma o seu apoio ou suporte pessoal.

b) Clarificação : em caso de um relato não estarclaro, perguntar se os demais participantes estãoentendendo a história que está sendo contada,estimulando-os a pedirem esclarecimentos sobre

a parte que ficou confusa. Os próprios facilitadorespodem também pedi-los diretamente, sugerindoque a pessoa explique melhor algum ponto obscuro,para que os demais possam entendê-lo. Apenasem situações extremas, de forte incompreensão nogrupo, o facilitador pode ele mesmo tentar traduziro que está sendo dito. Em caso de precisar fazê-lo,deve sempre perguntar à pessoa se é isto mesmoque ela pretendia dizer, valorizando-a e fazendosempre referência a que ela é a autora desta falaou da experiência.

c) Contextualização : os facilitadores podempedir a quem fala para dar mais dados sobre asituação, contextualizando-a melhor e tornando-amais compreensível para todos. Em caso de haverinformações contextuais simples e breves, masimportantes, e que ajudem a entender melhora situação em foco, e que sejam apenas doconhecimento dos facilitadores, estes podem relatá-las muito brevemente, sem porém tirar a palavra e avez da pessoa que faz seu relato.

d) Perguntas reflexivas : os facilitadores podemtambém fazer perguntas que levem a pessoa queexpõe a refletir sobre a situação, ajudando-o a

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sair de situações emocionais difíceis. Exemplos:Existiria nesta situação alguma outra forma de agir?O que você acha que as pessoas estavam sentindonaquela situação?

10.3) Terceira fase: síntese reflexiva e emocionaldos depoimentos:

Quando o tempo de relatos planejado estiverterminado, e espera-se que neste momento haja ummínimo de sensação entre os presentes de terem

sido ouvidos, os facilitadores dão por terminadoo momento de depoimentos   e estimulam entãoos participantes a tentarem resumir as principaislições aprendidas, as conclusões, as sugestões epropostas tiradas no decorrer da discussão .

Esta fase tem uma importância central parafixar os principais ganhos da reunião, mostrandoa importância do grupo, estimulando a suacontinuidade e mobilizando emocionalmente osparticipantes para estarem presentes no próximoencontro, bem como fazendo a opção pelo tipo dereunião que será realizada . Para esta fase, devemser garantidos pelo menos dez minutos. Em casodos participantes não serem capazes de resumir tais

conclusões imediatamente, os facilitadores podeminiciar o processo, fazendo indicações nas seguintesdireções:

a) a boa oportunidade de conhecer melhor um oumais participantes que tiveram mais possibilidadese tempo de falar;

b) o reconhecimento da importância afetiva eemocional de uma temática ou vivência para um oumais participantes, particularmente aqueles maissilenciosos, e que muitas vezes passa despercebidano dia a dia;

c) a importância da escuta, do acolhimento, datroca de experiência, do suporte ou da amizadevivida na reunião. Muitas reuniões não possibilitamconclusões, mas apenas possibilitam a livreexpressão das vivências e das emoções e a troca deapoio entre os participantes, e isso já constitui umganho enorme para o grupo; esta s imples lembrançapode significar um bom fechamento da reunião,encorajando-se os participantes a continuarem essavivência na próxima reunião;

d) a recuperação das principais estratégias paralidar com o transtorno ou com os desafios da vida,sugeridas na reunião, particularmente as mais bem-sucedidas;

e) a identificação de desafios que, mesmo não tendosido apresentadas sugestões e soluções, precisamvoltar na discussão do grupo, para um maioraprofundamento nas próximas reuniões etc.;

f) a coragem de um ou mais participantes

de enfrentarem experiências dolorosas, quenormalmente ficam fechadas, esquecidas ou mesmotrancadas “debaixo do tapete” de nossa existênciapessoal, e serem capazes de expô-las no grupo,gerando um processo de aceitação e de recuperaçãodestas vivências, juntando-as em um todo maiscoerente e se apropriando de nossa história pessoalmais integralmente;

g) em caso de um relato muito difícil e emocional deuma experiência pessoal, e particularmente quandose nota que esta pessoa não está completamenterecomposta, os facilitadores podem propor aospresentes parabenizá-la e cumprimentá-la com umaperto de mão ou abraço, para que esta possa sesentir recompensada e reconfortada pelo esforçorealizado, bem como ter o apoio do grupo para serecompor emocionalmente. Além disso, o facilitadordeve estimular o grupo a demonstrar para estemembro a importância de persistir na sua buscapessoal, já que a recuperação sempre é graduale exige tempo e paciência. Além disso, nos casos

visivelmente necessários, os facilitadores devem seaproximar deste participante após o final da reunião,perguntar como este está se sentindo, e estimulá-lo a procurar suporte profissional adequado nosserviços de saúde mental disponíveis;

h) a importância de um bom clima na reunião, ouda capacidade do grupo de superar os conflitos edificuldades, promovendo ganhos positivos paratodos os participantes, estimulando-os a voltaremna próxima reunião.

10.4) Quarta fase: encaminhamentos sociais,encerramento e confraternização:

Nesta fase, são dadas as notícias de interesse geral,são relembrados os encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo e é montado o planejamentodas atividades futuras. A sequência destesencaminhamentos deve seguir a seguinte ordem:

a) informações e notícias de interesse geral  dos participantes do grupo, incluindo as datascomemorativas, aniversários, eventos do campo dasaúde mental etc.;

b) decisões administrativas, indicativos e tarefas dogrupo  a serem planejadas e realizadas;

c) planejamento da próxima reunião   (escolha dotipo, data, local, horário etc.).

d) confraternização : dependendo das condiçõesfinanceiras do grupo e de seus participantes, podeser cantada uma música, leitura de poesias, serfeito um lanchinho comum etc. Havendo recursos, olanche final é muito positivo, pois permite maiorestrocas informais entre as pessoas, e na culturabrasileira tem significados simbólicos profundos decomunhão e solidariedade entre as pessoas.

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

III. TEMAS DE APROFUNDAMENTOOPERATIVO PARA FACILITADORES,TRABALHADORES E PROFISSIONAIS

1) Características e objetivos dos grupos deajuda e suporte mútuos 

1.1) Características essenciais dos grupos:

a) processo de autodefinição das necessidades ;

total controle da vida grupal por nós, usuáriosou familiares membros, nos dando a chance deexperimentar o que nos ajuda e o que não nos serve;

b) estrutura interna com baixíssimo nível dehierarquia , visando o máximo de poder igualentre nós membros; divisão de responsabilidades,habilidades e poder, tornando-nos tambémprovedores e vice-versa;

c) respeito a cada colega como pessoa, e não comoportador de diagnósticos clínicos , independente daspossíveis contribuições que a medicina e demaisciências possam ter na abordagem do transtornomental e no seu tratamento;

d) participação totalmente voluntária e nãocoercitiva ;

e)promoção da independência e da autodeterminaçãogrupal e individual ;

f) abertura e troca de experiências pessoais ( em

inglês:  self-disclosure) : diferentemente da formacomo os profissionais atuam nos serviços, quandonão se expõem ou falam de si, nos grupos deajuda mútua e nas relações criadas a partir deles,a abertura para falar de si e trocar as experiênciaspessoais é altamente desejável e valorizada. Issopermitir humanizar as pessoas, mostrando que todoscompartilhamos experiências difíceis e desafiadoras

razoavelmente semelhantes em nossas vidas.

g) autonomia crescente em relação ao sistema desaúde, saúde mental e aos profissionais . O apoiode profissionais e trabalhadores de saúde e saúdemental como um dos facilitadores de reuniões devedurar o menor tempo possível, para permitir que nósusuários ou familiares assumamos integralmenteeste papel. A partir daí, é possível ter apoio delesapenas como observadores,supervisores apoiadoreslocais e gestores municipais.

h) sensibilidade para as necessidades específicas degrupos particulares da população e de nós usuários

e familiares , tais como pessoas com necessidadesespeciais, deficientes, grupos étnicos, por sexo egênero (homens, mulheres e outras identidadessexuais e preferências eróticas), grupos geracionaisou de idade (adolescentes, jovens, adultos, idosos)etc. Esta sensibilidade pode gerar a formação degrupos específicos para alguns destes coletivos.

1.2) Objetivos dos grupos

1.2.1) Os grupos de ajuda e suporte mútuos DEVEM:

a) estar atentos a como as necessidades denossos companheiros estão sendo respondidas ,tais como sono, alimentação, um bom lugar para

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

morar e viver, atenção médica em geral, acessoa medicamentos e outras necessidades básicaspessoais e de saúde, e conversar com eles sobreas melhores estratégias para conquistar uma boaresposta a estas necessidades. Para isso, o grupo eseus facilitadores devem buscar conhecer cada vezmais todos os recursos e serviços de saúde, saúdemental, de educação, cultura, transporte e da áreasocial disponíveis no local, no bairro e na cidade, eas melhores estratégias de ter acesso a eles;

b) sistematizar e tornar accessível i nformação sobre

assuntos que mais nos afetam profundamente ,tais como efeitos colaterais dos medicamentose tratamentos, nossos direitos, indicações paraserviços que respeitem esses direitos, e informaçõesgerais que nos ajudem a viver dignamente;

c) superar o isolamento e promover o respeito, aconsideração, o apoio emocional, a amizade e oslaços comunitários entre nós membros ;

d) trocar experiências e estratégias não médicas enão profissionais de lidar com o transtorno e a vidaem geral ;

e)desmistificar gradualmente a vida emocional, comose fosse algo que só os especialistas entendem  epudessem atuar sobre ela, buscando então respeitare validar o nosso próprio conhecimento e recursospara nos ajudarmos mutuamente, tornando-nos aospoucos nossos próprios consultores e especialistas;

f) lembrar sempre do dito popular “a união faz aforça” , visando superar o sentimento de invalidaçãoe ausência de poder perante os serviços,estimulando a autoestima, força interior, poder de

ajudar os colegas usuários ou familiares, a luta peladefesa dos nossos direitos e por mudanças graduaisna relação de poder dentro do sistema de saúdemental e na sociedade;

g) ter sempre em mente que ajuda e suportemútuos “não são terapia”, embora tenham efeitosterapêuticos , pois o objetivo é estar junto edisponível como um amigo e colega interessadoem escutar, trocar experiências e conhecimento, erealizar atividades de forma solidária e coletiva.

1.2.2) Os grupos de ajuda e suporte mútuos NÃODEVEM:

a) prover ou substituir a atenção médica e psicológicaespecializada , que é papel e atribuição privativados profissionais e dos serviços de saúde e saúdemental, e aos quais o acesso constitui direito socialde todos os cidadãos, e portanto constitui dever doEstado a sua provisão com qualidade e com formasadequadas de acessibilidade para todos;

b) pretender realizar psicoterapia de grupo , aoacreditarem ser capazes de lidar com problemáticassubjetivas mais profundas ou com experiênciastraumáticas graves de seus participantes. Oacolhimento neste nível não só constitui umaatribuição privativa dos profissionais de saúdemental, como indicado no tópico anterior, comotambém os facilitadores não têm a formaçãonecessária nem a experiência suficiente que lhespermitam abordar estes processos. Quando estetipo de vivência aflora, o grupo deve fazer umacolhimento mais imediato, reconhecendo a suaimportância e a coragem do colega em partilhar a

sua experiência difícil, mas os facilitadores devemencorajar ou acompanhar este colega na procurade ajuda dos profissionais e dos serviços em queparticipa ou que estão disponíveis na área;

c) desrespeitar a vontade de cada um dosmembros , mesmo que este eventualmente queiraser hospitalizado ou tratado em serviços nãoamigáveis, ou ainda não queira levar em conta asinformações e recomendações do grupo sobre oassunto. Como indicado mais à frente, o tema dasmelhores alternativas de cuidado e tratamento deveser objeto da discussão permanente no grupo, e asdiretrizes de como cada um quer ser tratado nosmomentos de crise devem ser estabelecidas porescrito com anterioridade, nos planos de crise, temaque foi incluído na cartilha e no manual, mas quetambém será objeto de novos textos no futuro;

d) buscar adaptar e ajustar os usuários às expectativasque as famílias e a s ociedade têm para com eles , pois osgrupos de ajuda e suportes mútuos de usuários devemsempre se posicionar e se colocar em primeiro lugarao lado dos interesses e da perspectiva dos própriosusuários, mesmo que isso possa significar frustrar maisimediatamente as expectativas colocadas sobre ele;

e) negligenciar as necessidades próprias doscuidadores , pois no caso dos grupos de familiares ointeresse a ser defendido prioritariamente é o deles.Isso não significa romper com uma direção éticafundamental: não podemos nos desvencilhar denossa parcela de responsabilidade e investimento nocuidado aos membros de nossa família com algumaforma de fragilidade, tarefa que é compartilhadacom as agências públicas. Participar de umgrupo de ajuda mútua de familiares já significa,na prática, continuar a investir neste cuidado enesta(s) pessoa(s), mas o objetivo prioritário dogrupo é olhar para as necessidades e os desafios

próprios dos cuidadores, que geralmente têm muitadificuldade em falar abertamente sobre si mesmos.No campo mais geral da saúde e da saúde mental,ao mesmo tempo em que existe um largo campode convergência entre os interesses de usuáriose familiares, que deve ser exercido nas atividadescomuns de suporte mútuo e militância, é precisotambém reconhecer as diferenças de perspectivas,fazendo parte da diversidade dos atores sociais e dariqueza do campo19.

f) achar que os facilitadores sejam os “heróissalvadores” de cada um dos participantes do grupo ,e sobre os quais podemos despejar todas as nossasdificuldades e os desafios existenciais e sociais.Na verdade, os facilitadores são também usuáriosou familiares que já carregam seu fardo diário dedificuldades, e eles não substituem os serviços e ostrabalhadores de saúde e saúde mental, que têm

sim a responsabilidade efetiva de prover cuidadose assistência na área programática em que atuam .

19 Para os interessados nesta discussão, ver os váriostextos de aprofundamento sobre o tema da família nestemanual.

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

2) Recomendações para lidar comcomportamentos e atitudes não construtivose desagregadores, ou com situações de crise 

Geralmente, estes comportamentos e situações

são pouco comuns nos grupos de ajuda e suporte

mútuos. Entretanto, quando ocorrem, é bom ter umaideia do que é possível fazer:

a) à medida que o grupo vai se organizando, ele deve

discutir o assunto e estabelecer algumas diretrizes

de como atuar coletivamente nestas situações;

b) entre estas diretrizes, sugere-se que o grupo

discuta as melhores alternativas e estratégias de

cuidado local para situações de crise, e que cada

participante preencha seu “Plano de Crise” (ver

versões colocadas no apêndice nº 2 da cartilha).

Em geral, os modelos internacionais de Plano de

Crise costumam indicar as seguintes informações

básicas:

- como gostaria de ser tratado em caso de crise

pessoal;

- qual(is) serviço(s), profissional(is), familiarese amigos devem ser contatados imediatamentee quais os contatos (telefone e endereço) destaspessoas e serviços;

- qual o papel que é esperado dos familiares ourepresentantes pessoais durante o tratamento;

- que tipo de atendimento gostaria de ter;

- quais os medicamentos clínicos e psiquiátricosque costuma tomar nestas situações e quais

costumam ter efeitos colaterais problemáticos emseu caso;

- com que tipos de suporte e cuidados especiais

gostaria de contar por parte dos familiares, dosrepresentantes pessoais e dos companheiros dogrupo etc.

Em alguns países como Estados Unidos, Inglaterrae Holanda, o Plano de Crise é reconhecidopelas autoridades de saúde, e há situações oumodalidades que podem ter valor legal, constituindo

diretrizes efetivas a serem respeitadas na atenção àpessoa em crise.

c) é recomendável que todo facilitador conheçaa si mesmo. Em caso de uma situação disruptiva,qual é a sua tendência instintiva? Ficar com medo,deixar correr solto ou entrar nela imediatamentepara revidar uma ofensa ou agressão? Para mantero bom andamento do grupo nestas situações, éimportantíssimo manter a calma. Se você for do tipoque não consegue lidar com estas situações, planejecom o outro facilitador do grupo, com antecedência,o seu possível afastamento da situação e como estedeverá assumir o encaminhamento da questão;

d) busque entender a natureza e as possíveis causasdo comportamento disruptivo. Ele pode ocorrerpor uma situação estressante ou de crise já vividapela pessoa, pela falta de atenção do grupo, pordiferenças muito acentuadas de personalidadeou competição entre membros do grupo, por mal-entendidos na comunicação etc.;

e) se uma situação muito disruptiva acontecer, pareimediatamente as atividades e busque mobilizaras pessoas mais próximas e amigas da pessoaenvolvida, para tentar acalmá-la, se necessárioretirando-a temporariamente da reunião, a fim deque ela possa se recompor ou receber o acolhimentodevido. Se for necessário, os facilitadores devemlembrar da regra referente ao tema, incluído nocontrato de funcionamento dos grupos, e nasreuniões seguintes, todo o contrato deve ser lido noinício das reuniões;

f) só em último recurso, no caso de ameaça realà integridade da pessoa envolvida e dos demais,é que medidas mais radicais podem ser tomadas,como chamar o SAMU (tel. nº 192) ou o Corpo deBombeiros (tel. nº 193, em caso de crise em viapública). Os serviços de emergência disponíveisna área e o perfil de atuação de cada um e seusnúmeros devem ser conhecidos com antecedênciapelos facilitadores de atividades;

g) após a superação da situação disruptiva, ésempre aconselhável conversar com os presentes

que permaneceram no grupo, para aliviar as tensõese dar suporte às pessoas que necessitarem.

3) Busca de membros, participação inicial,gestão das atividades e crescimento do grupo

a) O grupo deve estabelecer que tipo de membros elequer aceitar, ou seja, os critérios de participação . Ametodologia que estamos propondo é mais dirigidapara grupos de ajuda mútua de usuários de serviçosde saúde mental ou para grupos de familiares,mas os grupos de suporte mútuo podem aceitartambém a presença de profissionais, familiares deusuários, ou outras “pessoas amigas”. Neste caso,o tipo de participação e de responsabilidades quepodem assumir deve ser previsto com anterioridade.É possível também prever, como indicado acima,grupos voltados para situações existenciais

específicas   ou para pessoas que vivam algumaforma particular de opressão ou discriminação, comomulheres, idosos, afrodescendentes, indígenas,pessoas com preferências eróticas específicas etc.

b) Os grupos de ajuda e suporte mútuos devem seiniciar pequenos e crescer devagar , particularmentese os facilitadores e participantes têm ainda pouca

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

experiência. Neste caso, a recomendação é de queos facilitadores devem primeiro aumentar o númerode grupos, mantendo-os pequenos, e só quando sesentirem mais seguros devem ampliar o número demembros em cada grupo.

c) É muito importante que os novos membrossejam recebidos de forma atenciosa e hospitaleira .Participar de um grupo deste tipo pela primeira vezsempre gera medo, ansiedade, incertezas e dúvidas,ou lembranças de situações anteriores nas quais nãofomos bem tratados. Para isso, é muito importante

eleger algumas pessoas para atuarem como umaequipe de boas-vindas : eles mostrarão o lugar,explicarão como funciona o grupo, apresentarão osnovos aos membros antigos, estarão disponíveispara responder perguntas e esclarecer dúvidas etc.

d) Como indicado anteriormente, na medida emque o grupo vai se organizando, ele deve criar seupróprio estilo . Quando o grupo ganhar estabilidade,recomenda-se que se produza um pequeno folhetoexplicativo a que os novos membros tenham acessoe que possa esclarecer as suas dúvidas.

e) É importante que o grupo estimule e que garantaaos novos membros a oportunidade para falar  nosencontros e para se envolverem o quanto antes ematividades e projetos do grupo.

f) O grupo pensa em estabelecer uma inscriçãoformal ? De qualquer forma, a cartilha doparticipante já traz um modelo de ficha de inscriçãocom informações básicas sobre o novo membroe sobre a melhor forma de contatá-lo em casode necessidade. Parece-nos recomendável o seupreenchimento depois de duas ou três reuniões deexperiência, particularmente nos grupos de ajuda

mútua, a partir de uma pergunta simples a esteparticipante, se deseja ou não continuar no grupo.

g) Nos grupos voluntários de associações civis,haverá alguma taxa simbólica  para permanência nogrupo, para ajudar nas despesas eventuais? Em casopositivo, como fazer com aqueles participantes quenão podem pagar até mesmo uma taxa simbólica?Nos grupos promovidos pelo Sistema Único deSaúde (SUS) ou qualquer outra política social,com facilitadores já recebendo bolsas ou salário, alógica que deve presidir é a gratuidade e o acesso

universal, sem qualquer possibilidade de cobrançade taxas, mesmo que simbólicas. No caso de grupose projetos de suporte mútuos, como os recursospodem ser mobilizados através das políticas deEstado e, quando for o caso, de apoios na sociedadeem geral e na comunidade local? Essas são algumasdas questões que irão merecer uma discussão maiscuidadosa na medida do avanço do grupo. Para podermelhor se esclarecer nestes assuntos, verifique aspróximas seções deste capítulo e também utilize asreuniões de supervisão.

h) Depois do grupo já estar bem organizado e sepropor a crescer, quais os meios de divulgação  que serão usados para convidar novos membros?Que tipo de pessoa será prioridade  do grupo parao seu crescimento e expansão? Que tipo de imagemexterna   e quais eventos públicos podem serrealizados? Que alianças  podem ser estabelecidas

com outros grupos e movimentos sociais da área?Qual a relação que o grupo terá com outros gruposde ajuda e suporte mútuos ? Existe a possibilidade eé desejável do grupo se dividir em dois , ou criar umnovo grupo em outro local ? Estas questões tambémexigirão cuidado no processo de crescimento dosgrupos.

4) O registro das atividades

a) O grupo deve discutir e indicar qual o tipo deregistro  das reuniões ele quer desenvolver. Sugere-se que se mantenha apenas dois tipos de registro,que podem ser separados ou não, de acordo com aescolha do grupo: um registro mínimo com data etipo de reunião, número de participantes e tema ouatividade principal, e um outro com a data e a listade presença.

b) As lideranças de grupos e particularmente osfacilitadores devem manter um registro pessoal,na forma de diário de campo,  sem identificarnomes das pessoas, realizado preferencialmentelogo após as reuniões, no qual anotam os temasprincipais que estão sendo discutidos, as váriasestratégias que as pessoas vão desenvolvendopara lidar com os desafios da convivência com otranstorno mental, as melhores recomendaçõesde como atuar em atividades de suporte mútuoetc. É importante esclarecer os objetivos desteregistro para os participantes, e o compromissode não incluir o nome das pessoas, para evitarfantasias persecutórias. Este registro pode ajudaros facilitadores a ganharem prática e agilidade paraa fase de síntese das reuniões , quando o facilitadorbusca resumir alguns dos pontos mais importantes

do encontro. Ajuda também no processo posterior

e regular de sistematização e troca de experiências  

entre os membros do grupo, que vai criando as bases

para uma competência coletiva dos usuários ou

familiares e para o seu empoderamento. Além disso,o registro também constitui uma fonte fundamental

para as reuniões de supervisão , pois confiar apenas

na memória nunca é recomendável. Mais tarde,

estes registros poderão também constituir uma fonte

importantíssima para a pesquisa e para montagem

de material educativo em saúde mental   para osusuários e familiares, como, por exemplo, por meio

de folhetos, pequenos jornais, cartilhas, vídeos e

inserções na internet. Para o diário de campo, é

recomendável o uso de um caderno de capa dura ,

que permita fazer anotações em qualquer lugar

que não disponha de cadeira e mesa para a escrita.Cada registro deve se iniciar com um cabeçalho com

data, local, colega facilitador do dia, para melhor

rastreamento posterior da experiência.

c) Qualquer registro das reuniões constitui

documentação confidencial , e portanto deve serguardado em lugar seguro e se possível trancado, e

nenhuma informação pode ser passada para pessoas

e instituições externas ao grupo, a não ser mediante

pedido escrito ou expresso, e cujo conteúdo é

autorizado pela própria pessoa envolvida e/ou pelo

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

grupo. Na medida do necessário e da curiosidade

dos participantes, esta regra deve ser informada ao

conjunto do grupo.

d) Os registros devem evitar qualquer linguagem

diagnóstica ou do tipo clínico, ou de j ulgamento  das

pessoas envolvidas no grupo.

5) A importância e os cuidados necessárioscom a gestão de recursos financeiros emateriais

Gradualmente, as atividades de ajuda e suportemútuos podem incluir a manipulação de dinheiro

para custear determinadas atividades que tenham

custo, bem como recursos materiais, como, por

exemplo, os frutos de oficinas de arte, trabalho e

renda. É fundamental manter uma gestão destes

recursos com as seguintes exigências mínimas:

- eleição de tesoureiros e conselhos fiscaisresponsáveis  pela gestão dos recursos financeirose de coordenadores   dos projetos que envolvamprodução e guarda de recursos materiais, com regrasprévias e claras  de como deve ser esta gestão;

- registro escrito e sempre atualizado   damovimentação financeira e dos recursos materiaissob guarda, com acesso garantido para consultade todos   os participantes do grupo em qualquermomento;

- local e métodos adequados para guarda dosrecursos , com trancas e cadeados de qualidade e

com toda a segurança. No caso de dinheiro, quantiasmais significativas devem ser depositadas em contabancária, se possível própria do grupo. Em caso deobjetos, particularmente de arte, deve-se garantir asua guarda com a segurança e todos os cuidadosnecessários para cada tipo de material, para seevitar arranhões, danos ou quebras.

A gestão de recursos financeiros e materiaisconstitui um dos aspectos mais problemáticos dequalquer grupo. O tema é particularmente sensívelquando seus membros têm muitas dificuldadesde sobrevivência, o que aumenta o risco de usodos recursos comuns para pequenas emergênciasregulares e normais da vida, mesmo sem intençãode furto, particularmente quando não se tem acapacidade de reposição posterior. Muitos grupose associações de base comunitária têm suaspiores crises a partir de apropriações dos seus

recursos comuns, e portanto esta gestão constituium dos maiores desafios de qualquer projetocoletivo. Este tema também constitui um desafiopara os trabalhadores e profissionais de saúde,particularmente quando têm apenas experiênciaanterior em atividade clínica individualizada, semvivência de projetos sociais.

6) Qualidades pessoais e éticas desejáveispara facilitadores

Facilitar grupos de ajuda ou suporte mútuo não

exige qualidades sofisticadas ou especializadas,mas apenas um processo de aprendizagem pessoal

e coletiva e de acúmulo gradual de experiência a

partir da prática. Entretanto, há algumas qualidadespessoais e éticas desejáveis e que podem ser

desenvolvidas no processo :

a) facilidade de acesso : os facilitadores devem ser

pessoas de fácil acesso, se possível com telefone

fixo, e/ou celular, e e-mail, quando possível.

b) responsabilidade e compromisso com as

atividades agendadas : os atrasos ou a ausência

dos facilitadores podem impossibilitar a realizaçãodo encontro e tendem a desmobilizar o grupo. Para

o caso de algum imprevisto, o facilitador deve terum substituto à altura que possa ser chamado de

imediato. Em caso de impossibilidade absoluta

de substituição, devem-se prever meios de avisarpreviamente os participantes, para que evitem o

deslocamento até o local da reunião, ou, se isso for

impossível, que eles sejam avisados logo no iníciodo encontro, para se evitar o desgaste da espera,e para se planejar o que se pode fazer na ausênciadas lideranças.

c) paciência e   perseverança : no início, aparticipação é sempre pequena e normalmente háinúmeros problemas de organização, coordenaçãoe falta de experiência. Sem deixar de tomar asmedidas necessárias para sanar os problemas, osfacilitadores devem persistir no processo e mostraraos participantes que o amadurecimento do grupo é

normalmente gradual e sempre apresenta este tipode dificuldades.

d) disposição para aprender : um bom facilitador estásempre refletindo e aprendendo com a sua própriaprática com grupos e com a troca de experiênciascom outros grupos e facilitadores. Neste sentido, avisita a outros grupos, a vinda de outras lideranças

no grupo e as reuniões de supervisão constituemsempre boas oportunidades de aprendizagem etroca de experiências.

e) reconhecimento das dificuldades e dos enigmaspróprios do processo de recuperação, sabendo lidarcom humildade e respeito com a própria frustraçãonos casos de não correspondência a nossasexpectativas : os caminhos de vida e da recuperaçãode cada pessoa são sempre enigmáticos, e

muitas vezes vão na direção contrária de nossasexpectativas. Esta é uma característica própria docampo da saúde mental, que não pode pretenderadaptar e ajustar as pessoas à sociedade vigente,e saber lidar com estes limites e frustrações deveser uma busca permanente dos facilitadores,profissionais e demais trabalhadores de saúde esaúde mental ligados a projetos de ajuda mútua.

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

f) sensibilidade e acolhimento : a ajuda e o suportemútuos requerem que o facilitador tenha uma boasensibilidade para os sentimentos e para o perfilde vulnerabilidades de cada um dos participantes,sendo capaz de acolher, demonstrar interesse eestimular que os demais membros participem desteacolhimento.

g) conhecimento de seu próprio estilo : não existeum único estilo ideal de trabalhar com grupos.Por exemplo, alguns falam mais, outros gostammais de escutar. Este estilo tem mais a ver com as

características de personalidade e a história de cadapessoa. É interessante que cada facilitador busqueidentificar, conhecer e aperfeiçoar o seu próprio estilopessoal de lidar com o grupo.

h) senso de seus próprios limites : é aconselhável queo facilitador saiba reconhecer seus pontos positivos esuas limitações, e até que ponto pode efetivamenteexigir de si mesmo. Em alguns momentos, deve

explicitar ao grupo suas limitações ou sua eventualsensação de estar sendo muito cobrado pelo grupo, edas necessidades e demandas que devem ser dirigidasaos serviços e aos trabalhadores de saúde, saúdemental e da área social da região. Em outras ocasiões,pode reconhecer a impossibilidade temporáriade assumir o lugar da facilitação, sugerindo umsubstituto, de forma que ele possa participar destareunião como um membro convencional.

i) consciência e engajamento ético, social e político :os facilitadores devem ir conhecendo cada vezmais a realidade social do país, seus conflitose desafios, e como tudo isso interfere na saúdemental das pessoas; a política de saúde e saúdemental, os serviços e formas de tratamento maisadequados (e os menos aconselháveis também!)

para o desenvolvimento da autonomia, liberdadee empoderamento dos usuários e familiares; os

direitos, as leis e normas mais importantes da área;e as formas de participação, os atores políticose movimentos sociais, as lutas e conquistas docampo. Para isso, os textos de aprofundamento

deste manual constituem um material significativopara leitura, discussão e reflexão, mas é importantebuscar sempre outras formas de melhor conhecer,

discutir e participar destas lutas. Os movimentossociais, reuniões, encontros e congressos da saúdemental também representam ótimas oportunidades

para este crescimento. Aos poucos, o engajamentopessoal e coletivo nestas lutas vai se tornando nãosó uma forma de conhecer melhor esta realidade naprática, como também uma exigência ética e política

de participar na transformação da vida social, contratodas as formas de opressão, na construção de umasociedade mais justa, igualitária e solidária, em

aliança com os demais movimentos populares.

7) A supervisão externa para os facilitadores

Os facilitadores de grupos, particularmente noinício, devem criar um dispositivo regular de

preparação inicial e de avaliação do andamentodos grupos e de discussão dos desafios que vãoaparecendo . É imprescindível que o processoinicial dos grupos e da atividade de facilitação

tenha à sua disposição um dispositivo regulardestes, e o ideal é contar com a presença de umaliderança de usuário ou familiar com experiência já consolidada em atividades grupais, ou com umprofissional   que tenha conhecimento de processogrupal e seja comprometido com a perspectivade empoderamento e de reforma psiquiátrica . Quando isso não for possível, pode ser tambémum profissional amigo com alguma experiência emgrupos. O mais importante é que possa respeitare estimular a autonomia dos usuários e familiarescomo princípio ético e político básico do presenteprojeto.

No atual estágio de disseminação deste projeto noBrasil, no período entre 2010 e 2012, a equipe doTransversões está recebendo recursos para proveruma capacitação básica inicial de poucos dias

intensivos em algumas cidades-chave do país. Ocurso inclui a apresentação/discussão do projeto ede seus conceitos básicos, e duas viv ências práticas.Além disso, é possível se pensar em dispositivos viainternet para se tirar dúvidas e disc utir os problemasde implementação do projeto e da supervisão dosgrupos. No caso de grupos implantados atravésda rede de atenção primária à saúde, sugerimos

que o profissional de saúde mental do núcleo

local de apoio à rede seja aquele responsável pelo

acompanhamento e a supervisão dos facilitadores.

As reuniões de supervisão devem acontecer

regularmente, de forma a permitir que os

facilitadores tenham orientação acerca dos desafios

sentidos nas últimas reuniões, e possam planejar

previamente o retorno aos grupos. No caso dos

grupos de ajuda mútua, a supervisão deve contar

sempre com a presença de ambos os facilitadores

que trabalham em dupla. É desejável que vários

facilitadores que atuam na mesma cidade ou

adjacências, ou em uma mesma região de uma

grande cidade, possam frequentar um mesmo grupo

de supervisão, para facilitar a troca de experiências

e a discussão dos desafios comuns. Os grupos de

supervisão podem também colaborar na formaçãode novos facilitadores, na medida em que devem

estar abertos para aprendizes e iniciantes (desde

que as regras de confidencialidade e sigilo sejam

garantidas), e podem também estimular novos

arranjos de duplas de facilitadores, a partir de

descoberta de afinidades pessoais, condições

comuns que facilitam o trabalho conjunto etc.

5958 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

8) O trabalho de facilitação como militânciae como gerador de renda, e demais recursosnecessários para a capacitação e amanutenção do projeto

Os facilitadores, como usuários ou familiares queprecisam sobreviver, necessitam ter suporte paradesempenhar este trabalho. Alguns usuários oufamiliares já trabalham e/ou têm renda própriasatisfatória, mas a maioria das lideranças oriundasdos serviços públicos de saúde mental sobrevivemcom muitas dificuldades. Além disso, a participação

nas reuniões implicam despesas, como as detransporte e recursos para necessidades correntes(como, por exemplo, lenço de papel para apoio apessoas emocionadas, papel higiênico, sabonete,papel toalha, lápis, papel etc.), e particularmentepara o lanche no final. Assim, o projeto de formaçãode grupos de ajuda e suporte mútuos deve discutirpreviamente as seguintes sugestões:

a) O projeto deve ter o apoio e o subsídio dosprogramas e serviços de saúde e/ou saúde mental,e/ou do movimento da luta antimanicomial e/oudas associações de usuários e familiares  existentesna cidade, e/ou ainda de entidades e ONGs doTerceiro Setor ou de associações civis e religiosas.A inserção prioritária que estamos propondo nocontexto brasileiro atual é no Estratégia de Saúde daFamília, de forma integrada aos serviços de atençãopsicossocial, proposta esta melhor desenvolvida em

um dos textos de aprofundamento deste manual;

b) A provisão de um curso de capacitação parafacilitadores (usuários, familiares e trabalhadores) ousupervisores profissionais   também deve contar comeste apoio, em termos da provisão das cartilhas, local,recursos educacionais, lanches e refeições etc.;

c) Este tipo de trabalho de liderança de usuáriosde serviços, em processo mais avançado derecuperação, vem sendo utilizado com muito sucessono Brasil  e particularmente no Rio de Janeiro, nocampo da atenção ao abuso de álcool e outrasdrogas, na figura do antigo “conselheiro de álcoole outras drogas”, hoje “técnico de reabilitação emdependência química de álcool e drogas ”. No campoda saúde mental, já temos a figura do “ oficineiro ”,ou seja, daqueles que coordenam oficinas, como,por exemplo, em artes, artesanato etc. Assim,sugerimos que os facilitadores sejam reconhecidoscomo “oficineiros em saúde mental”, cuja função

seja associada a uma forma de remuneração justapelo seu trabalho, como indicado a seguir;

d) As lideranças de usuários participantes do projetodevem contar com uma ajuda de custo na fase inicialdo projeto , para as suas despesas correntes e comoestímulo à participação no projeto;

e) Após o período de capacitação, a ser definido noprocesso, o projeto deve propor uma bolsa para osfacilitadores regulares , suficiente para cobrir suasdespesas cotidianas e para a sua manutenção, eque ela seja, após um período de experimentação,transformada em contrato de trabalho regular,normatizado pela CLT. Mais tarde, quando o projetojá estiver consolidado e reconhecido pela sociedadee pelo Estado, recomendamos abrir o debate sobrea possibilidade e se é desejável uma carreira deoficineiro em saúde mental como servidor público.

Mais detalhes e propostas de iniciativas públicasde estímulo a grupos de usuários e familiares seencontram nos textos de aprofundamento.

9) Grupos de ajuda e suporte mútuos e aorganização de associações de usuários efamiliares

No processo brasileiro de reforma psiquiátrica,iniciado em 1978 e que avançou muito a partir dadécada de 1990, estamos assistindo à expansãodo movimento antimanicomial, dos serviçossubstitutivos e dispositivos de atenção psicossocial,bem como do número de associações de usuáriose de familiares. Estas associações hoje no Brasilsão geralmente mistas, formadas por usuários,familiares, profissionais e “amigos”, e vêmdesenvolvendo uma série de atividades, geralmente

de suporte mútuo (principalmente de trabalho erenda) e de defesa dos direitos, c omo raros casos degrupos de ajuda mútua20.

20 Para aprofundamento sobre o perfil das associaçõesde usuários e familiares e outros dispositivosorganizativos no campo da saúde mental no Brasil, vero livro organizado por Eduardo Vasconcelos, intitulado

As associações civis, se devidamente orientadas,têm um potencial de maior autonomia em relaçãoaos serviços públicos e ao Estado, e sua formalizaçãopermite a gestão formal de recursos financeiros emateriais, inclusive a celebração de convênios ouentrada em editais com repasse de recursos, abrindoboas possibilidades de sustentação e para a difusãogeográfica de projetos mais complexos. De formasimilar, as associações têm um maior reconhecimentoe legitimidade para participar como representantes dasociedade civil nos conselhos de política social no país.

Os grupos de ajuda mútua e os projetos de suportemútuo constituem atividades fundamentais parafortalecer a mobilização e organização de associaçoesde usuários e familiares em saúde mental. Outrapossibilidade é de grupos e projetos independentesde ajuda e suporte mútuos se organizarem na formade associação civil, para ampliar o seu crescimento eformas de sustentação financeira. Esta opção deve seravaliada em suas vantagens e desvantagens, levandoem conta a conjuntura local e as possíveis aliançascom outras associações e movimentos sociais. Nostextos de aprofundamento, é indicada uma sériede propostas para estimular e empoderar usuáriose familiares do campo da saúde mental e suasassociações no Brasil atual, incluindo esta propostade formalização dos oficineiros de saúde mental.

Abordagens psicossociais, vol II: reforma psiquiátrica esaúde mental na ótica da cultura e das lutas populares,publicado pela Editora Hucitec, de São Paulo, em 2008.

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 IV. TEXTOS DE APROFUNDAMENTOTEÓRICO-CONCEITUAL E SOBRE AINSERÇÃO NA REDE NO SISTEMADE SAÚDE E SAÚDE MENTAL

Este manual e cartilha de ajuda e suporte mútuosem saúde mental estão sustentados em um já longopercurso de sistematização teórico-conceitual e deexperiências tanto no plano internacional como nocontexto brasileiro. Nesta perspectiva, este capítulomais amplo e longo do manual busca colocar àdisposição do leitor uma série de textos que nósconsideramos fundamentais, por possibilitar aoleitor um aprofundamento gradual neste arcabouçojá construído ao longo dos anos pelos integrantesdo Projeto Transversões, incluindo também doisautores não participantes diretos do projeto, masmuito próximos a nós, como é o caso de EymardMourão Vasconcelos e Jeferson Rodrigues.

Texto 1

Conceitos básicos para se entender aspropostas e estratégias de empoderamento nocampo da saúde mental

Eduardo Mourão Vasconcelos

1. Apresentação

Este primeiro texto de aprofundamento visa fazeruma apresentação inicial deste percurso teórico-conceitual e de experiências dentro do manual,retomando e ampliando um texto originalmenteoferecido ao público em outras publicações21, masem versões iniciais mais reduzidas. O texto passoupor um processo de revisão e ampliação, comacréscimo de novos comentários e de uma seçãointeiramente nova, incorporando novas discussõese avaliações consideradas também relevantes nosúltimos anos. O ensaio busca exatamente fazer estaapresentação introdutória dos conceitos básicos deempoderamento de usuários e familiares no campoda saúde mental, a partir de uma apropriaçãocrítica daqueles já disponíveis na literatura e nasexperiências internacionais e brasileiras. A partir denossa experiência, recomendamos que os conceitosbásicos de recuperação, empoderamento e suasvariadas estratégias, aqui sistematizados, devemfazer parte do conteúdo de qualquer capacitaçãobásica para facilitadores de grupos, para que

21 O poder que brota do fundo da dor e da opressão:empowerment, sua história, teorias e estratégias,lançado em 2003 pela Editora Paulus, de São Paulo,e Reinventando a vida: narrativas de recuperação econvivência com o transtorno mental. São Paulo/Rio deJaneiro: Hucitec/EncantArte, 2006.

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possam compreender o campo mais geral e asdemais estratégias em que a ajuda e o suportemútuos estão inseridos.

Contudo, é preciso ressaltar que este texto nãoesgota todos os ângulos e dimensões de nossotema, e por isso outros textos foram escritos ouincluídos como textos de aprofundamento nestemanual.. Assim, aos interessados em uma visãomais ampla, sistemática e aprofundado do tema,recomendamos também a leitura dos demais textosa seguir.

2. A noção de empoderamento (empowerment )

“Empowerment ” constitui um termo da línguainglesa de difícil tradução direta em português.Alguns a traduzem por fortalecimento , ou poraumento da autonomia , que me parecem alternativasinteressantes, mas limitadas quanto à riquezado termo. Boa parte dos autores a tem traduzidocriando o termo empoderamento , e, emboraesta solução não seja totalmente satisfatória,não vemos outra alternativa. Em meus trabalhosanteriores, optei por usar o termo original em inglês,exatamente para manter a complexidade, a força eo caráter multifacetário do conceito. Entretanto, fuipercebendo que a maioria das pessoas às quaisa palavra busca interpelar, ou seja, as classespopulares e os grupos oprimidos em nosso país,

não eram capazes de entender o termo original eminglês. Assim, passei a utilizar a forma portuguesa.De qualquer forma, mantenho a conceituaçãooriginal já utilizada anteriormente, de “aumentodo poder e autonomia pessoal e coletiva deindivíduos e grupos sociais nas relaçõesinterpessoais e institucionais, principalmentedaqueles submetidos a relações de opressão,

dominação e discriminação social”.

Entretanto, é preciso esclarecer que não se tratade um conceito com estatuto teórico e ético-político próprio. Em nossa visão, trata-se de uma“interpelação ”22  de caráter polissêmico, similaràs de participação e humanização , que pode serapropriada tanto para fins conservadores quantoemancipatórios. Em outro trabalho de revisão(VASCONCELOS, 2003), procurei mostrar como, nahistória ocidental desde a modernidade, a ideia e aspráticas de empoderamento foram apropriadas emambas as direções. Alguns exemplos:

a) Do lado conservador, temos a cultura deautoajuda (self-help ) desde o século XIX, comoo movimento de temperança nos países anglo-saxônicos, e seus desdobramentos até hoje, comona ampla literatura atual de autoajuda, com seusprincipais componentes de liberalismo radical,individualização, recalque da dimensão coletivados problemas sociais e individuais, pragmatismo eutilitarismo, que visam predominantemente adaptaros indivíduos ao status quo e ao bom cumprimentodas expectativas sociais práticas (expresso, porexemplo, na expressão “alcançar o sucesso”).

22 As interpelações são chamamentos que fazemos nodia a dia: “ei, você aí!”. Na concepção de Ernesto Laclau(1885), cientista político de origem uruguaia, e inspiradoem Althusser e Gramsci, as ideologias têm esse papelativo de chamar, interpelar e conformar a visão de mundodos indivíduos e grupos sociais, mas em interação comseus próprios valores e emoções. Para ele, a hegemoniaideológica na sociedade não está propriamente nacapacidade de propor uma visão de mundo inteiramentecoerente e racional, mas sim na habilidade de proporinterpelações que condensem, no sentido freudianodo termo, os valores e vivências morais, familiares,religiosas e políticas dos diversos grupos sociais, deforma a propor uma articulação com um projeto social epolítico mais amplo.

b) Na direção emancipatória e antiopressiva,temos os vários movimentos e organizações detrabalhadores, de direitos civis e de minorias étnicas,o movimento feminista etc. No Brasil, durante aditadura militar, tivemos vários movimentos sociaispopulares importantes com forte perspectivade empoderamento de seus membros, como asComunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspiradasna Teologia da Libertação; a educação popularde Paulo Freire e seus desdobramentos; e, maisrecentemente, os próprios dispositivos de controlesocial das políticas sociais, como em nosso sistemade saúde atual.

Esta mesma revisão mostrou que, particularmentena literatura anglo-saxônica, a interpelação deempoderamento muitas vezes é apresentadacomo única ou principal direção ética e política decategorias profissionais, sem outras qualificações,como um consenso possível. Entretanto,estas apropriações deixam de explicitar umposicionamento mais claro em relação ao modeloeconômico e social vigente na sociedade, bem comoem relação às características das políticas sociaisque devem ser priorizadas pelo conjunto dos atoressociais e políticos do campo.

Assim, nosso posicionamento é de que a interpelação eas estratégias de empoderamento podem e devem serapropriadas para fins emancipatórios, mas isso requer:

- reconhecer seu caráter polissêmico;- conhecer minimamente sua história anterior deapropriações conservadoras e emancipatórias;

- reconhecer que as abordagens de empoderamentonão são suficientes por si mesmas, requerendoportanto que sejam ancoradas em princípios ético-políticos e teorização política, social, cultural epsicossocial, para poderem ser sustentadas de

forma adequada aos interesses emancipatórios epara as características de cada contexto particular;

- admitir que não se trata de fazer simplestransposições transnacionais ou transculturais deconceitos e estratégias oriundas de outros países,

pois sua apropriação em cada contexto exigeadaptações, revisões críticas, comparação comas experiências locais já existentes, experiências-

piloto e sua avaliação etc., previamente a suadifusão ampla.

3. Patologias crônicas, sofrimento, seusignificado pessoal e coletivo, seusdesafios cotidianos e as estratégias de seuenfrentamento

De acordo com o especialista em psiquiatriatranscultural norte-americano Arthur Kleinman(1988), as doenças crônicas levantam sempre duas

linhas de perguntas fundamentais:

- por que eu (nós)?

- o que pode ser feito? 

Em meu ponto de vista, entretanto, acredito quepodemos acrescentar mais duas linhas de perguntastambém essenciais:

- estas experiências que estou vivendopodem ter sentidos/significados pessoais,

existenciais e sociais para além da dor ede todos os seus aspectos negativos e desofrimento? 

- esta experiência pessoal pode significaralgo mais que vivências apenas individuais/ singulares e que possam ter algum valor paraas demais pessoas que vivem experiênciassemelhantes e seus familiares? 

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Kleinman mostra como as ciências biomédicas,clínicas e comportamentais não têm como oferecerrespostas satisfatórias a estas perguntas para alémda indicação de fatores de risco e dos procedimentosclínicos cabíveis, nem têm categorias e meios pararegistrar e descrever este sofrimento para além daabordagem descritiva das dores e dos sintomascorporais e psiquiátricos. A antropologia, a filosofia ea psicologia podem ajudar um pouco mais no sentidodo seu registro, de mapear como estas perguntasforam respondidas de forma mais abstrata peloshomens até o momento, ou de algumas técnicas deapoio, através dos métodos etnográficos, da história

de vida, da pesquisa filosófica, ou da psicoterapia.Entretanto, não podem oferecer respostas efetivasàs complexas questões da emoção, da dor, dodesespero, da angústia moral e da perda de sentidode vida. Além disso, as contribuições parciais dasprofissões de saúde e saúde mental vão dependermuito das referências culturais da clientela, já que ossistemas de interpretação da doença, do corpo e dosofrimento variam basicamente com a cosmovisãode cada indivíduo e grupo social23. Normalmente,o saber acadêmico-centífico dos profissionais sesustenta em representações muito particulares daselites letradas das sociedades ocidentais, tendopouca aderência e eficácia simbólica efetiva paraa grande maioria da população de países como oBrasil.

Na verdade, estas questões e perguntas maisfundamentais são normalmente respondidas pelossistemas particulares de crenças culturais, morais,

espirituais e religiosas, bem como pelos seusrituais de cura, suporte e cuidado. E do ponto devista das terapêuticas formais, os profissionais nãopodem importar seus sistemas de crenças para o

23 Para uma revisão da bibliografia brasileira a respeitodeste assunto, ver o trabalho de Venâncio (2001) e deFonseca (2008).

relacionamento com seus clientes, no sentido deprover tais formas de resposta, suporte e apoio.

Além destas perguntas básicas, patologias crônicascomo os transtornos mentais maiores levantamproblemas e desafios de vários tipos, vividos deforma cotidiana, que necessariamente recolocamestas perguntas de forma reiterativa. Mesmo quepossa ser um pouco cansativo, creio que é possívelampliar as indicações de Kleinman, lembrando deforma mais sistemática os vários desafios:

- os períodos de melhora, piora ou crise aguda,

algumas vezes de forma previsível e compreensível,outras vezes não;

- as ameaças e limitações colocadas à vidadiária, como à rotina doméstica, ao trabalho, aosrelacionamentos, aos deslocamentos, com seusmais diversos aspectos estressantes;

- as mudanças corporais e/ou perceptivas advindasde vários tipos de doença ou deficiência e suasexigências de transformações inclusive físicas doespaço doméstico, em banheiros, nos prédios, nosmeios de transporte, e no espaço urbano em geral,para permitir uma melhor qualidade de vida para aspessoas acometidas;

- as despesas extras para custear remédios,exames, tratamentos, pessoal de apoio, bem comoas complicações e os custos mais gerais inerentes àcontratação e ao acesso ao sistema de saúde;

- a enorme quantidade de tempo despendido com

serviços médicos, psicológicos, de exames, com suassalas de espera, os períodos de repouso obrigatório(algumas vezes inclusive restrito à cama) etc.;

- a energia, o cuidado necessário e as limitaçõesexigidas pelos regimes especiais que interferemna dieta, no estilo de vida, nas possibilidades deatividades de lazer e de esporte e demais atividadesmais simples do dia a dia;

- a energia e o tempo despendido com a busca deinformação e experimentação de alimentos maissaudáveis, terapias alternativas etc.;

- a atenção necessária para auscultarrotineiramente os processos corporais e psíquicos,no sentido de controlar os agentes de risco, asfontes potenciais de piora, de decidir quandoiniciar ou terminar determinados procedimentosclínicos, quando utilizar remédios alternativos alémdos rotineiros, quando procurar ajuda profissionalou mesmo, mais radicalmente, quando mudar deserviço ou profissão, dada a exaustão dos recursosutilizados até o momento;

- os riscos e os efeitos colaterais e iatrogênicos deremédios e das diversas formas de tratamento;

- muitas doenças e formas de sofrimento exigemuma atenção constante de cuidadores formais einformais, principalmente pela família, e dentrodela principalmente as mulheres, exigindo delas amobilização de tempo, recursos, sacrifício de seusprojetos de vida e a exposição a diferentes formasde estresse24;

- os conflitos decorrentes das constantes falhasna qualidade ou nas características estruturaisdo sistema de saúde, das relações muitas vezesautoritárias, impessoais ou de negligência dostrabalhadores e profissionais;

- principalmente na assistência psiquiátrica, aexistência de instituições e formas de tratamentoanacrônicas, segregadoras, violadoras dos direitosde cidadania e com efeitos mortificadores e

violadores do eu;

24 Para discutir os aspectos ligados à produção docuidado pela família e cuidadores informais, seu peso esuas estratégias, ver Melman (2001), Rosa (2003), bemcomo os demais textos sobre o tema incluídos nestemanual.

- muitas doenças crônicas apresentamcaracterísticas e implicações incapacitantes,depreciadoras, segregadoras, desvalorizadorase estigmatizantes, muitas vezes amplificadaspor representações preconceituosas difusas nasociedade.

Lidar com todas estas questões no contexto da vidacontemporânea, que já apresenta suas pressões,confusões e estresses, geralmente adicionam àsdificuldades intrínsecas da doença e do sofrimentomais frustração, irritabilidade, exaustão, e às vezes

gera franca rebelião e revolta diante de tantaslimitações e adversidades. Isso tudo é vivido nãosó pela própria pessoa, mas também pelos seusfamiliares e cuidadores informais. Além disso, esteprocesso exige um longo processo de acumulaçãode experiências, de “dicas” informais, de pesquisae troca de informações e de conhecimento técnico,de adequação às singularidades de cada um, deaprendizagem individual e coletiva, mas, maisfundamentalmente, de luta, de acomodaçõessubstanciais de vida e de elaboração pessoal ecoletiva das emoções e dos significados de todasestas vivências.

Mas lidar bem com tudo isso, ou seja, comesta busca de respostas às perguntas básicasidentificadas acima, com o enfrentamento de tantosproblemas e questões diárias, com a aprendizagemindividual e coletiva necessária de estratégiasdeste enfrentamento, e com o necessário processode elaboração pessoal e grupal, vai dependerfundamentalmente da rede de apoio, suporte esolidariedade disponível para cada pessoa ou grupode pessoas.

Como indicamos acima, a maior parte destasquestões e necessidades não podem ser providasdiretamente pelos serviços e pelos profissionaisdiretamente, mas estes podem se constituir como

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fontes importantes de estímulo ao suporte que apessoa já tem, mas também de estímulo à construçãoe/ou ampliação desta rede de apoio social. Vejamosisso de forma um pouco mais detalhada.

4. Apoio e rede social versus   desfiliação,individualização e solidão, e suasconsequências no campo da saúde m ental

O reconhecimento da importância das redes de

apoio social para a promoção da saúde e saúdemental vem sendo afirmado e reiterado emdiversos campos de saber e de política social,tanto no exterior quanto no Brasil. Vale a penaresenhar, mesmo que rapidamente, algumas dascontribuições que consideramos as mais relevantespara nossos objetivos neste trabalho, ou seja, paraa sistematização e avaliação das abordagens eestratégias de empoderamento.

Na área da saúde, particularmente na atençãoprimária e na educação popular e/em saúde noBrasil, um dos autores pioneiros foi Victor Valla,professor emérito da ENSP-FIOCRUZ, no Rio deJaneiro, falecido em 2009. Em um artigo já clássicoe considerado de referência (VALLA, 1998), baseadoem extensa pesquisa sobre as condições de saúdenas classes populares brasileiras, Valla trouxe parao debate brasileiro a noção de apoio social, jácorrente em outros países de língua inglesa, obtendo

no Brasil enorme repercussão. Apesar de um poucolongo, vale a pena reproduzir todo o trecho maisconceitual do autor:

Apoio social se define como sendo qualquerinformação, falada ou não, e/ou auxílio material,oferecidos por grupos e/ou pessoas, com os quaisteríamos contatos sistemáticos, que resultam em

efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos.Trata-se de um processo recíproco, que tanto geraefeitos positivos para o sujeito que recebe comotambém para quem oferece o apoio, permitindoque ambos tenham mais sentidos e controlesobre suas vidas. Desse processo se apreendedo que as pessoas necessitam umas das outras.Essencialmente, o debate sobre o apoio social sebaseia em investigações que apontam para o seupapel de manutenção da saúde, na prevenção contradoenças e como forma de facilitar a convalescença.Uma das premissas principais da teoria é a de que oapoio social exerce efeitos diretos sobre o sistema

de imunidade do corpo, isto é, agindo como umefeito tampão, no sentido de aumentar a capacidadedas pessoas a lidar com o stress . Outro possívelresultado do apoio social seria sua contribuiçãono sentido de criar uma sensação de coerênciada vida e de controle sobre a mesma, o que, porsua vez, afeta o estado de saúde das pessoas deuma forma benéfica. Partindo desse pressuposto,poderíamos dizer que, na direção contrária, quandoo apoio social diminui, o sistema de defesa poderiaser afetado, fazendo que o indivíduo se torne maissuscetível à doença. (VALLA, 1998: 156)

Pesquisas internacionais mais recentes empsiquiatria e psicologia médica corroboramclaramente com esta perspectiva de análise.Em livro recente publicado por Johan Cacciopo,professor emérito da Universidade de Chicago eWillian Patrick, editor fundador do Journal of Life

Sciences  (CACCIOPO e PATRICK, 2010), os autoressistematizam os resultados de várias pesquisassobre a  solidão, entendida como um isolamentosocial involuntário e de longo prazo, em que oindivíduo se encontra desprovido de vínculos sociaissignificativos, chegando à conclusão de que esteestado tem impacto devastador sobre a saúde. Aintensidade e as características deste isolamento

variam entre os indivíduos e grupos sociais, eparticularmente de como ele induz em cada pessoaa experiência subjetiva que conhecemos comosolidão. Mesmo que possamos fazer alguns reparosao modelo hegemonicamente biomédico e/oubiológico de investigação dos autores, as evidênciasempíricas sistematizadas por eles demonstram queentre os efeitos e sintomas associados à solidãoestão o pessimismo, a desconfiança e a depressão,o mau funcionamento imunológico, o aumentoda pressão sanguínea, a elevação dos níveis dehormônio do estresse, a má qualidade de sono,o alcoolismo, o uso de drogas, a aceleração dos

processos de demência em idosos etc. Assim, asolidão pode ser considerada um fator de risco tãosério para a saúde quanto a obesidade e o tabagismo.No campo da saúde mental, é importante lembrarque os transtornos mentais maiores tendem a gerarmais isolamento social e solidão, aumentando aindamais estes riscos.

Os processos e os efeitos do isolamento e dasolidão, contudo, devem ser considerados emsuas particularidades de gênero, que são maisacentuados nas classes populares, em um fenômenojá assinalado desde os anos de 1970 em váriosestudos de epidemiologia psiquiátrica  tantointernacionais25  como brasileiros26, vários delesinfluenciados direta ou indireta pelo movimentofeminista. Os efeitos do isolamento são mais clarosentre as mulheres, com mais ênfase quando seconsidera a depressão, nosologia mais comum

25 Entre os estudos internacionais, estão Brown andHarris (1982), Brown et al. (1975), Weissman and Klerman(1977), Miles (1988) e Pearlin and Johnson (1977).

26 Entre os estudos brasileiros, podemos citar AlmeidaFilho e Bastos (1982), Mari (1986), Tancredi (1979), Marie Andreoli (1990) e também na investigação de naturezamais abrangente de Vasconcelos (1992b).

entre elas. Estes estudos demonstraram umaenorme confluência dos resultados, indicando queas mulheres têm maior probabilidade de desenvolverdepressão, fenômeno que aumenta expressivamentenas classes populares, particularmente se estasmulheres passaram por processos de migração(distanciamento de seus vínculos familiares eculturais de origem), perda ou ausência de vínculosconjugais (solteiras, separadas ou viúvas), commaior ênfase a partir dos 30 anos de idade. Estequadro contribui diretamente para um maiorconsumo e dependência de drogas tranquilizantese sedativas (por exemplo, diazepínicos) entre as

mulheres com tais características. Para os homens,a nosologia mais prevalente é o abuso de drogas, sedestacando entre elas o álcool. Quanto à etiologia,a relação entre alcoolismo e isolamento social écomplexa, controversa e dependente de fatoresculturais, mas os dados existentes indicam que oquadro é claramente indutor de isolamento social,dado o efeito devastador que possui nas relaçõesconjugais e familiares, bem como nos vínculos detrabalho (CARDIM et al., 1986).

O fenômeno do isolamento social tem também clarasdimensões sociais. Nesta direção, podemos citaro já clássico estudo do sociólogo francês RobertCastel sobre a desfiliação social no contextoeuropeu, mas que tem clara aplicabilidade noBrasil (CASTEL, 1994 e 1998). Para ele, o quadro devulnerabilidade social depende da situação de trêseixos fundamentais de inserção social dos indivíduos:os vínculos de trabalho, os laços relacionais (família

e rede social próxima) e a proteção social privadaou pública. A situação é agravada e se radicalizaem situações abertas de desfiliação social, quandohá perdas significativas e simultâneas nestestrês eixos, ou seja, quando temos desempregoou situações precárias de trabalho, perda devínculos familiares e da rede social primária, efalta de acesso a programas sociais, como ocorre

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em conjunturas de desinvestimento em políticassociais. Este parece ser o quadro típico gerado parauma parcela significativa da população nas últimasdécadas pelas políticas neoliberais, particularmenteem países periféricos e semiperiféricos, como oBrasil.

Os estudos sobre a transição e as mudançasdemográficas recentes27 no Brasil e demais paísesperiféricos identificam processos (Vasconcelos eMorgado, 2005) que estimulam ainda mais estatendência à desfiliação social:

a) o aumento significativo e constante de domicílioscom pessoas que moram sozinhas e do númerode famílias monoparentais (chefiadas geralmentepor mulheres), com enfraquecimento dos laçosconjugais e precarização da estrutura familiar;

b) a crescente participação da mulher no mercadode trabalho, com sobre-trabalho doméstico (tendocomo co-adjuvante a continuidade da culturamachista entre os homens, que tendem a não dividira carga das tarefas e o cuidado na esfera familiar);

c) uma diminuição real da presença física paterna ematerna na família e uma precarização das funçõessimbólicas de maternagem (cuidado, atenção etc.) epaternagem (autoridade, colocação de limites etc.);

d) uma diminuição da capacidade das famíliasproverem cuidado informal aos seus membros

27 Para os interessados em uma exploração mais detidados estudos demográficos sobre o país, recomendofortemente uma visita ao site na internet da AssociaçãoBrasileira de Estudos Populacionais (ABEP): www.abep.org.br

dependentes ou em situação de vulnerabilidade(crianças, idosos, doentes crônicos, deficientes,pessoas com transtorno mental etc.), com aumentodo número de casos de negligência, abandono,cárcere privado e violência;

e) uma tendência ao abandono ocasional oupermanente da casa da família como opção inevitávelde sobrevivência, e aumento do contingente decrianças, adolescentes e adultos como moradoresde rua, gerando perdas cada vez mais definitivas doslaços relacionais, um dos componentes do processo

de desfiliação social.

O impacto deste quadro no campo da saúde mental,particularmente para a maioria da populaçãopauperizada, é brutal. A desfiliação social contínua,a perda de vínculos sociais significativos, o“desmapeamento cultural”, a situação de morar nasruas, o abuso de drogas e a exposição sistemática eregular à violência são conhecidos fatores de riscoe deterioração do quadro de saúde mental para osindivíduos e grupos populacionais atingidos.

O processo de isolamento social também temuma dimensão cultural  muito importante emsociedades periféricas e fortemente hierarquizadas,como a brasileira. A meu ver, quem melhordescreveu esse processo nas classes populares, doponto de vista antropológico, foi sem dúvida algumaRoberto Da Matta, em seu clássico livro Carnavais,malandros e heróis , publicado em 1978:

“Essa é a massa individualizada, deslocadade seus locais de origem, onde seus membroseram tratados com respeito e consideração. Defato, sua maioria é de migrantes deslocados,passo fundamental para sua transformaçãoem indivíduos sem representação alguma,

inteiramente sujeitos às leis do mercado edo Estado. Nós os chamamos de massa ou

povo, conotando assim sua individualização oufalta de apadrinhamento social. (...) Essa é amais profunda experiência de exploração emsociedades semitradicionais, como é o casoda sociedade brasileira: a de ser um indivíduo

numa sociedade que tem seu esqueleto numahierarquia, a de ser tratado como um númeroou um dado global de uma massa, num mundoaltamente pessoalizado, onde todos são “gente”

e vistos com o “devido respeito” e a “devidaconsideração”. (DA MATTA, 1977: 198-9)

Nesta mesma linha, pesquisas antropológicasvoltadas especificamente para o fenômenos mentaistêm demonstrado que, em vários países do mundo,

mas particularmente em nações periféricas comoo Brasil, temos um conjunto de representaçõescom características próprias, como uma concepçãoprópria e particular de representar e vivenciar os

fenômenos mentais nas classes trabalhadoras.Esta concepção é denominada pela literatura demodelo do nervoso, cujo principal sistematizadorno Brasil tem sido Luís Fernando Duarte (DUARTE,1986; DUARTE e LEAL, 1998; FONSECA, 2008).

É bastante diferenciada do modelo psicologistada cultura letrada das classes médias e da elite(origem sociocultural da maioria dos profissionaisde saúde mental) ou do modelo estritamentebiomédico dominante. Muitas vezes, as estratégias

terapêuticas utilizadas no sistema de saúde mentalsão oriundas originalmente da prática clínicadirigida para estas classes, e não se adaptam aoscódigos próprios das classes populares.

Para levarmos a sério o objetivo assistencial, ético epolítico de pensarmos processos terapêuticos maisadequados para as classes trabalhadoras, podemos

partir de uma distinção entre individuação

psicológica e individualismo cultural. Oprocesso de individuação pode ser entendido comouma exigência inexorável de amadurecimentopsicológico requerido em cada indivíduo, de formagradual e diferencial em cada fase de seu ciclode vida, e que é mobilizado mais intensamentenos processos de enfrentamento do sofrimento eno tratamento em saúde mental. Dependendo docontexto cultural em que ocorre, pode requerermomentos de interiorização e autorreflexão de formamais ou menos acentuada. Contudo, isso não se dánecessariamente pelos mecanismos individualizantesdominantes da cultura ocidental e de suas elites, apartir da modernidade capitalista. No momento atual,por exemplo, estas sociedades estão marcadas porum lado pelo enfraquecimento dos espaços urbanospúblicos, cada vez mais atingidos pela miséria,desfiliação e violência, e de outro, pelo fortalecimentodas fronteiras dos ambientes isolados, como osshopping centers  e condomínios fechados, em que asociabilidade é associada aos simulacros de sonho,de consumo, do mundo virtual, de uma individualidadeà margem do social e da história, e que reduzemportanto a intimidade, a liberdade e a individuaçãoa um refinamento muitas vezes estritamente privado,narcísico e fechado para a convivência, a troca e oengajamento social.

Nos estudos antropológicos indicados e na avaliaçãode experiências brasileiras de projetos de saúdemental que buscaram se adequar aos interesses e àcultura dos setores populares (VASCONCELOS, 2008),que emergiram no Brasil particularmente a partir da

redemocratização e de ascensão dos movimentossociais populares, a partir do final da década de 1970,vimos constatando que o processo de individuação esuas implicações terapêuticas, particularmente paraas classes populares, devem ser pensados de outrasformas. Por exemplo, Jurandir Freire Costa (1983 e1989), conhecido psicanalista e pesquisador brasileirodo campo da saúde mental, procurou na década de

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1980 adaptar métodos terapêuticos convencionaispara a clientela das classes populares, no entãoHospital Pedro II, no Rio de Janeiro. Uma de suasconclusões principais é a de que, entre aquelesque vivenciam o modelo do nervoso, a “identidadepsicológica” é altamente dependente da identidadesocial, em um processo não somente dependentedas condições econômicas, mas também comfortes características simbólicas. Outros grupossociais podem lidar com os estresses da vida, semque estes conflitos alcancem necessariamente aidentidade psicológica. Todavia, a peculiaridadedas classes populares está em que alguns estresses

concretos da vida (o exemplo dado por Costa é odesemprego e problemas de trabalho para homens)podem realmente atingir a esfera “psicológica”,identificada por eles como “problemas de nervo”.

Outra sugestão importante foi dada por Duarte(1981), indicando que a noção de princípio docontraste no processo de formação da identidadesocial pode ser bastante útil para se pensar adinâmica interna no modelo do nervoso. Sugere queo processo de individuação pode ser vivido por cadapessoa das classes populares pelo estabelecimentovoluntário de contrastes entre sua identidadee a dos outros, visando se diferenciar deles, ouressignificar sua própria experiência de vida. Assim,para as pessoas marcadas mais fortemente peloscódigos hierárquicos e pelo modelo do nervoso, asestratégias terapêuticas mais adequadas deveriamincluir alguma forma de reintegração em dispositivosgrupais e comunitários. Este princípio orienta a

abordagem da Terapia Comunitária (Barreto, 2005),hoje em acelerada difusão na atenção em saúdemental junto à rede de Estratégia de Saúde daFamília (EFS), na atenção primária em saúde, noBrasil 28.

28 A relação e diferenciação entre a presente abordagemde grupos de ajuda e suporte mútuos e a terapia

Nestes vários tipos de grupos, pode-se não só

reconstruir uma rede pessoalizada de vínculos

e a identidade pessoal em novas bases, como

também reestruturar esta identidade em termos

de relacionamentos com maior reciprocidade,

participação e igualdade, o que pode ser

interpretado também como um componente político

e de cidadania dessa busca, em sua dimensão

mais micropolítica e subjetiva. Assim, de um ponto

de vista mais etnográfico, é possível postular que

estes dispositivos grupais e comunitários podem,

em determinadas condições29, funcionar como

ambientes estimuladores ou dispositivos de cuidadoe individuação, que poderiam ser descritos através

dos seguintes conceitos:

a) o conceito de refúgio , muito utilizado para se

referir à função positiva que os dispositivos, projetos

e serviços de saúde mental podem ter, como um

ambiente protegido que permite ao indivíduo

ressignificar e reconstruir uma identidade pessoal e

social em crise ou estigmatizada;

b) o conceito de viagem , como um percurso

simbólico para além dos limites geográficos e

culturais já conhecidos, e como uma oportunidade

de contato com novas formas de olhar o mundo,

com novas e diferentes visões da vida humana, com

novas pessoas, com diferentes tipos de trabalho e

comunitária será discutida no texto de aprofundamentosobre a inserção dos primeiros na rede de atençãoprimária em saúde.

29 Este tema das condições para os grupos funcionaremcomo dispositivo de individuação é discutido emprofundidade no texto de aprofundamento sobre modelosde intervenção e práxis grupal neste manual.

estilos de vida etc.30 Aqui, o princípio de contraste éamplamente acionado;

c) a noção de “troca de figurinhas, de experiênciase de estratégias de lidar com os desafios da vida ede sofrimento ”, pela qual os participantes relatame escutam diferentes estratégias de lidar com ador, o sofrimento, com os sintomas difíceis, comos dilemas da relação com a sociedade e com osistema de saúde etc. Aqui também o princípio docontraste fica muito claro;

d) o conceito de rede social , no sentido de queos grupos, particularmente quando ocorremem espaços acessíveis ao local de moradia dos

30 A “viagem”, como dispositivo de individuação, éum elemento sempre presente nos mitos e históriasde heróis, que Carl Gustav Jung, conhecido psiquiatrasuíço e fundador do movimento de psicologia analítica,eleva como imagens e relatos representativos de umarquétipo essencial e universal no inconsciente coletivo,inerente ao desenvolvimento psicológico humano (JUNG,1964/2008). Na modernidade, este dispositivo é assumidocomo elemento fundamental da estrutura narrativa dochamado “romance de formação” (na expressão originalem alemão, Bildungsroman ), cujo exemplo fundamentalé Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, doreconhecido autor alemão Goethe (1749-1832), publicadonos anos 1795-6. O romance de formação como gêneroé considerado hoje pela teoria literária como um cânoneou modelo de valor universal, dada a sua significaçãocultural e psicológica. Para um aprofundamento nestadiscussão, ver os trabalhos de Vasconcelos (2010) e deMaas (2000). É interessante lembrar que também Fausto,avaliada como a obra mais importante de Goethe, tema viagem como elemento fundamental de sua estruturanarrativa, embora a obra não seja considerada um típicoromance de formação. No cinema contemporãneo, filmesde viagem constituem um gênero específico, conhecidona língua inglesa como “on the road movies ” (emtradução livre, “filmes de estrada”), usualmente comcaracterísticas similares aos romances de formação.

participantes, podem ser o ponto de partida para acriação de novos vínculos de amizade, sociabilidadee de suporte social concreto para lidar com osdesafios cotidianos.

Diretamente no campo da saúde mental brasileira,a perspectiva que estamos desenvolvendo nestaseção pode ganhar uma dimensão para além daanálise cultural das classes populares, conquistandoo estatuto de um postulado mais geral, inspirado nateoria sistêmica, para a atenção em saúde mentalpública. Em um trabalho hoje ci tado como referência

no debate sobre a contratualidade e autonomizaçãona atenção psicossocial, Roberto Tikanori Kinoshita,uma das conhecidas lideranças do processo dereforma psiquiátrica no Brasil, propõe a seguintedefinição para autonomia:

“Entendemos a autonomia como a capacidadede um indivíduo gerar normas, ordens para asua vida, conforme as diversas situações queenfrente. Assim, não se trata de confundirautonomia com auto-suficiência nem comindependência. Dependentes somos todos;a questão dos usuários é antes uma questãoquantitativa; dependem excessivamente deapenas poucas relações/coisas. Esta situação dedependência restrita/restritiva é que diminui a suaautonomia. Somos mais autônomos quanto maisdependentes de tantas mais coisas pudermosser, pois isto amplia as nossas possibilidades de

estabelecer novas normas, novos ordenamentospara a vida.” (Kinoshita, 1996: 57).

Sua proposta concorda inteiramente com a perspectivaque estamos defendendo aqui, mas apenas ressaltamosque, de nosso ponto de vista, não deveríamosdispensar as dimensões qualitativas das classes

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sociais e da cultura que atravessam este c ampo, e quematizam e complexificam a dinâmica do processo deautonomização nos vários sujeitos e grupos sociais.

Para concluir esta seção, podemos dizer entãoque a busca de compreensão dos processos e deserviços de apoio social e de saúde mental maisadequados às classes populares tanto no exteriorquanto no Brasil tem dimensões sociais, políticas,de gênero, culturais e subjetivas muito próprias, járazoavelmente investigadas e sistematizadas porestudos acadêmicos e pela avaliação de experiências

concretas. A síntese feita aqui nos permite agoraavaliar de forma mais crítica, com parâmetros maisclaros e também assentados sobre a cultura e apráxis dos movimentos sociais populares no Brasil,a possível contribuição do movimento de usuários efamiliares de outros países, relativas às estratégias deempoderamento, bem como algumas das abordagensprofissionais de saúde mental comprometidas comeles, como a seguir.

5. Alguns conceitos-chave para se entenderas práticas de empoderamento de usuáriosindividuais, de grupos, associações emovimentos sociais no campo da saúde mental

Como indicamos acima, os usuários, grupos eassociações de usuários e familiares do campo dasaúde mental nos vários países vêm desenvolvendo

práticas fundamentais no processo de enfrentamentopessoal, familiar e coletivo dos desafios colocadospelo sofrimento psíquico. A relação dos conceitospara descrição destas práticas proposta abaixoconsiste de uma tentativa minha de adaptação ediversificação dos termos originais em inglês, paraadequá-los às condições e estratégias no campo dasaúde mental em nosso país. Vejamos:

a) Recuperação (recovery ): o conceito da línguainglesa de recovery   (DAVISON, 2003) não é defácil tradução em outras línguas. Em português,estamos propondo uma primeira tentativa deaproximação através de noção de recuperação , masainda a achamos limitada, mas não encontramosoutra alternativa. Toda tradução para outraslínguas exige discutir com cuidado qual a palavradisponível que melhor se aproxima ao conceitoou à apropriação crítica que se queira fazer. Anoção original em inglês tem origem no campodas doenças e deficiências físicas (WRIGHT,1983). Como assinala Anthony (1993) em relação à

doença física, ela não significa que a limitação oudeficiência física desapareceu, ou que os sintomasforam removidos e o funcionamento da pessoafoi restaurado inteiramente. Significa então que apessoa, a despeito das limitações, e dependendodo suporte e das mudanças sociais, ambientais eculturais necessárias, pode retomar uma vida usualrelativamente ativa. No campo da saúde mental, elatem sido apropriada pela perspectiva da psiquiatrianorte-americana autodenominada de psychosocialrehabilitation 31, e objeto há algumas décadasde investigações epidemiológicas, de políticase programas de saúde mental e de avaliação deserviços. O conjunto de evidências mais sólido, anosso ver, parte de estudos longitudinais de longaduração (20 a 30 anos) de pessoas diagnosticadascomo esquizofrênicas, investigando as perspectivasde recuperação e reinserção social, realizados nosEstados Unidos e em alguns outros países, porautores como Anthony, Harding, Strauss, Breier,Ashikaga, Brooks, Ciompi, Davidson e outros

31 O principal centro de investigação, sistematização edivulgação desta perspectiva nos Estados Unidos, comvárias obras já publicadas, é sem dúvida alguma o Centerfor Psychiatric Rehabilitation, da Boston University, cujowebsite é www.bu.edu/cpr

(DAVIDSON et al., 2005-6). A avaliação do impactodo tempo nos sintomas, funcionamento social equalidade de vida nestes casos demonstrou que, emvez da esperada trajetória no sentido de cenáriospiores indicados pelos prognósticos da psiquiatriaconvencional, mais da metade das coortesinvestigadas, independente de ainda estarem emtratamento, mostraram uma melhora significativaou o que chamaram de recovery . Aquelesindivíduos que foram inseridos em programas dereabilitação psicossocial, integração comunitáriae autossuficiência demonstraram um perfil maisavançado de recuperação. Nos programas de

reabilitação, entre os principais fatores que induzemo processo de recuperação, estão a moradia,a capacitação e o trabalho supervisionado, asoportunidades educativas, as oportunidades reais desocialização, incluindo amizades e inserção emgrupos e movimentos de usuários. O movimentode usuários e familiares nos Estados Unidos, porsua vez, vem se apropriando desta abordagem,propondo que ela constitui um processo pessoal ecoletivo de mudanças que pode levar a uma vidacom satisfação, desejo e participação social, mesmocom as limitações associadas ao transtorno. Paraa consecução destes objetivos, consideram comoelementos fundamentais a existência de um sistemade saúde mental orientado efetivamente para arecuperação e o empoderamento, e a existênciade um movimento de usuários e familiares quedesenvolvam os dispositivos de cuidado de si, ajudae suporte mútuos, defesa de direitos e militância,como descrito a seguir.

b)  O cuidado de si e demais estratégias deenfrentamento dos desafios cotidianos32:

32 Como indicado no texto, o conceito amplo eimpreciso de self-help da língua inglesa foi reapropriadocriticamente aqui de forma a desdobrá-lo em três

venho propondo que o conceito inglês de self- help   (autoajuda) seja reapropriado criticamentee desdobrado em cuidado de si, ajuda mútua esuporte mútuos, categorias estas expostas a seguir.No nível individual, temos então o que chamo decuidado de si , me reapropriando parcialmentede uma ideia chave de Foucault 33, significando

diferentes conceitos (cuidado de si, ajuda mútua esuporte mútuo), para se adequar à realidade brasileirae aos pressupostos ético-políticos que defendemos. Àmedida que vou me aprofundando no tema, mais meconvenço da necessidade de evitar a tradução direta

do termo em inglês para o conceito em português de“autoajuda”. Uma das razões é se distinguir do sentidoamplo e acrítico associado à “literatura de autoajuda”,tão marcante na cultura individualista e alienada domercado editorial ocidental contemporâneo. Alémdisso, a representação historicamente sedimentada deautoajuda enfatiza a capacidade do próprio indivíduode promover o seu processo de recuperação, sem ajudaexterna, tendo implícitas visões liberais fortementeindividualistas inspiradas na cultura da temperançadifundida a partir do século XIX nos países anglo-saxônicas. Finalmente, o desdobramento do conceitopermite acentuar o componente de suporte mútuo,indicado a seguir, vetor muito frágil na tradição principalde origem norte-americana que se espalhou em todo omundo, a dos Alcoólicos Anônimos. Para aqueles quequiserem se aprofundar no assunto, sugiro retomar omeu livro O poder que brota... e um outro interessantetrabalho publicado no Brasil, por Rüdiger (1996).

33 O conceito de cuidado de si foi introduzido por Foucaultem seus últimos livros, publicados antes de sua morteprematura, em 1983 (História da sexualidade, em 3 vols).Mais recentemente, o assunto constituiu tema centralnas publicações feitas a partir da gravação de suas aulasmagistrais no Collège de France nos seus últimos anos devida (ver Foucault, 2008; e para o conceito do cuidado desi, ver Foucault, 2011). Nesta temática, Foucault retomauma certa noção de sujeito ativo que havia sido descartadano conjunto anterior de sua obra, de teor claramente anti-humanista. Neste trabalho, o uso do conceito retoma essasignificação mais ampla de Foucault, mas se apropria delede uma forma muito prática, a partir da experiência concretade recuperação dos núcleos internacionais mais ativos eavançados do movimento de usuários em saúde mental.

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aqui as estratégias para mobilizar a iniciativa e avontade individual de cada pessoa, para que atuepara responder os desafios pessoais concretoscolocados pelo transtorno mental no dia a dia epara reinventar uma nova vida que vá além destesdesafios, no sentido de recuperar uma vida ativa,participativa e prazeirosa do ponto de vista pessoale social. Acima, listamos uma série de desafiosque os usuários têm que enfrentar, e têm de fazê-lo para além do suporte provido pelos serviços eprofissionais de saúde mental. Neste trabalho,de um ponto de vista mais prático, o cuidado desi significa inicialmente desenvolver, individual e

coletivamente, a capacidade de i dentificar:

- as atividades cotidianas que fazem cada um sesentir melhor, que geram bem estar, e que portantodevem ser cultivadas;

- as nossas qualidades pessoais que se devem servalorizadas, e como podemos ajudar para que sejamreconhecidas pelas pessoas mais próximas de nós;

- os eventos e processos desagradáveis(“disparadores”), que geram estresse, ansiedade eangústia, e as estratégias e ações para lidar comeles;

- os sinais de alerta e os sintomas de que a nossasaúde mental não está bem, ou de que uma eventualcrise pode estar próxima, e quais as iniciativas quedevem tomar nestas ocasiões.

Todos estes pontos são discutidos em detalhe notexto “Plano pessoal de ação para o bem estar ea recuperação”, disponível na cartilha para os

participantes dos grupos.

Do ponto de vista subjetivo, o cuidado de si tambémimplica que o usuário em processo de recuperaçãopossa gradativamente ir se reapropriando de suasexperiências catastróficas de vida, principalmenteaquelas associadas às fases mais agudas dotranstorno, aceitando-as como parte de sua história e

dando um novo sentido a elas, em um conjunto maiscompreensível de eventos, sentimentos e sensaçõesintegrados em um todo, recuperando a auto-estimae sua inserção ativa na sociedade. Outra formaimportante de cuidado de si é buscar cultivar amizadesprofundas, aqueles amigos “irmãos”, com os quaispodemos conversar e desabafar tudo, sem restrições,com regularidade ou nas horas mais difíceis,trocando nossas experiências, emoções, dúvidas esugestões. Com a Internet, como descrito no próximoitem, podemos inclusive manter tais amizades àdistância. É claro que este processo pode e devecontar também o suporte de práticas profissionais,

dos serviços de saúde mental 34, dos dispositivoscoletivos do movimento de usuários e da construçãode narrativas, como descritos a seguir. Contudo, elesó pode ser iniciado e desenvolvido efetivamente pelamobilização e investimento pessoal intenso por partedo próprio usuário.

c) Ajuda mútua: este tipo de prática ficou conhecidahistoricamente principalmente por meio dos gruposdo tipo Alcoólicos Anônimos (AA), NeuróticosAnônimos e organizações similares. Constituemgrupos de troca de vivências e experiências,de ajuda emocional e discussão das diferentes

34 Não compartilho de uma visão a meu ver unilateraldefendida por alguns grupos autonomistas mais radicaisdo movimento de usuários em países anglo-saxônicos, deque se deva estimular apenas o uso de serviços e projetosorganizados ou dirigidos por usuários. Além disso, o fatode termos identificado acima uma série de limitaçõesestruturais dos serviços e dos profissionais de saúde,em questões que devem ser respondidas pelos própriosusuários, não significa negar que o suporte de serviços ede profissionais de saúde mental é imprescindível parao processo de recuperação no campo da saúde mental.Novamente, aos leitores que quiserem uma visão maissistemática do debate, sugiro a leitura de meu livro “Opoder que brota...”.

estratégias de lidar com os problemas comuns,tais como aqueles descritos acima. São dispositivosimportantíssimos em si mesmos, mas a experiênciainternacional do movimento de usuários em saúdemental tem mostrado que, apesar de seus numerosospontos positivos, apresentam ainda algumaslimitações e características polêmicas. Este tema édiscutido de forma detalhada no meu livro O poderque brota ... e na tese de doutorado de Tatiana RangelReis (2007), mas uma das principais limitações, pelomenos dentro da estrutura original do AA, diz respeitoa uma prática de ajuda mútua relativamente isolada,fechada em si mesma, sem estimular de forma mais

sistemática os vários outros tipos de iniciativas35,principalmente de suporte mútuo e militância, comodescrito a seguir. Outro caminho para a ajuda mútuaé constituído pelas redes informais mais amplas deamigos e companheiros, com os quais vamos trocandoregularmente as nossas experiências, vitórias,desafios e dificuldades da vida. Uma outra formaimportante de ajuda mútua surgiu mais recentementeatravés da internet 36, para os que têm computadorespessoais e acesso a ela, e que permite ajuda mútuaentre pessoas em todo o mundo, por meio de:

35 Os grupos de AA desenvolvem algumas atividades desuporte mútuo como os grupos Al Anon, para apoio dosfamiliares dos alcoolistas, mas não há outras iniciativaspara os próprios alcoolistas a não ser a difusão dasreuniões com uma dinâmica mais padronizada de ajudamútua. Como dito acima, uma análise mais detalhada doAA é desenvolvida no livro O poder que brota..., de ondese originou este texto.

36 É possível indicar endereços sugestivos na internetpara vários dos dispositivos listados a seguir no texto,mas estes variam muito com o tempo e a região relevanteno país e no exterior. Assim, penso que a melhor formade contatar estes dispositivos é fazer pesquisa, atravésde bons instrumentos de busca que temos, tais como oGoogle. Para isso, sugiro se usar as categorias acima(“autoajuda”, “ajuda mútua”, e “suporte mútuo”)acrescidos de “saúde mental”.

- páginas especializadas no assunto, que muitasvezes estimulam os grupos de discussão; os chats ,(conversas entre usuários por texto ou até mesmopor voz e imagem, para os que têm câmeras emicrofone); blogs (espécie de página pessoal ondeescrevemos como em um diário, e que fica abertapara os comentários e até mesmo contato via correioeletrônico dos que têm interesse no assunto);

- correio eletrônico, quando já conhecemos oendereço da pessoa com quem queremos trocarmensagens mais pessoalizadas, e que têm umcaráter confidencial;

- redes sociais (Orkut, Facebook etc.).

d) Suporte mútuo: na maioria das vezes, a partirde dispositivos de ajuda mútua, podemos tambémdesenvolver atividades e iniciativas de cuidado esuporte concreto na vida cotidiana, compreendendodesde, por exemplo, passeios e atividades de lazere cultura nos fins de semana; cuidado informal dooutro que se encontra em maior dificuldade; ajudanas tarefas diárias na casa e fora dela; suportea familiares que precisam de uma “folga” paradescansar ou viajar, assumindo-se o cuidado dousuário; até o desenvolvimento de projetos comunsmais complexos. Estes podem atuar em várias áreas:cultura, artes, dispositivos residenciais, projetode trabalho, cooperativas, cuidado domiciliar,acompanhamento, telefone de serviço de suportepessoal, clubes sociais, e elaboração de cartilhasinformativas e educativas para temas relevantes

(tais como estratégias de enfrentamento no dia a dia,efeitos colaterais de remédios, defesas de direitos,serviços, experiências bem-sucedidas, comoorganizar grupos de ajuda mútua e suporte mútuoetc.). Também neste campo as redes de amizade eos dispositivos da internet são fundamentais.

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e)  Defesa de direitos (advocacy ): pode serde dois tipos principais. A informal   pode serdesenvolvida pelo próprio usuário (autodefesa), queé capacitado pelos grupos de suporte mútuo para tal,ou pelos companheiros usuários e familiares, como,por exemplo, para ajudar o outro a conseguir umbenefício ou a resolver problemas na comunidade.A defesa de direitos pode ser ainda formal , atravésda criação de serviços, algumas vezes lideradospor usuários, nos quais profissionais de saúdemental e advogados são colocados à disposição dosusuários e familiares para defender seus direitoscivis, políticos e sociais. Além disso, esta prática

no âmbito micropolítico deve ser expandida para acriação de cartas de direitos, normas de serviçose de legislações municipais, estaduais e federais,que busquem consagrar os direitos dos usuários efamiliares em todas as esferas do sistema de saúdemental e da sociedade37. Um bom exemplo deste tipode iniciativa está na Carta dos Direitos dos Portadoresde Transtorno Mental da ONU de 1991. Esta cartainspirou a Carta de Direitos e Deveres dos Usuáriosem Saúde Mental, lançada em sua primeira versãopor usuários e familiares brasileiros presentes no IIIEncontro de Associações de Usuários e Familiaresem Saúde Mental, em Santos (SP), em 1993, quevirou um documento de referência para os usuáriosligados ao Movimento da Luta Antimanicomial. Emparalelo a este processo foi lançado no CongressoBrasileiro em 1989 o projeto de lei Paulo Delgado,que, doze anos mais tarde, em abril de 2001, apósinúmeros debates e reformulações, foi promulgadacomo a Lei 10.216, que estabelece as linhas básicasdo processo de reforma psiquiátrica brasileira, eque inclui direitos básicos dos usuários38. Estas

37 Para uma discussão mais pormenorizada dos direitosdos usuários nas diversas instâncias mencionadas, ver umoutro trabalho meu já publicado (VASCONCELOS,1992).

iniciativas de defesa de direitos devem estarintegradas de forma orgânica às duas estratégias deempoderamento indicadas a seguir. Os dispositivosde defesa de direitos devem utilizar largamente osdispositivos da internet, dada a sua agilidade paratroca de informações, para comunicação de eventos,para a circulação de denúncias, para montagem deabaixo-assinados e para a mobilização concreta daspessoas.

f) Transformação do estigma e dependência narelação com a loucura e o louco na sociedade:

desenvolvimento de iniciativas individuais ecoletivas, cotidianas ou mais permanentes, decaráter social, cultural e artística para mudar asatitudes discriminatórias em relação à loucura nasrelações cotidianas, na comunidade local, na mídia ena sociedade mais ampla. Um exemplo simples masimportante está na própria linguagem que usamoscotidianamente para nos referir aos fenômenose pessoas: expressões tais como “paciente” e“doença mental” acentuam a passividade e asegregação, e podem ser substituídos por “usuário”e “sofrimento psíquico”, “problema mental”,“experiências subjetivas radicais”, ou, quando seexige uma linguagem mais técnica, por “transtornomental”. Outro exemplo simples está na tradiçãodo movimento de usuários em vários países anglo-saxônicos e europeus, mas que também já estásedimentado no Brasil, de reivindicar que qualquerevento no campo da saúde mental e principalmenteacerca da reforma psiquiátrica (palestra,

conferência, seminário, curso, conselho de gestãoetc.) tenha a participação de representantes deusuários e familiares. Ainda neste campo datransformação da cultura dominante, é fundamental

38 Os textos da carta da ONU e da nova lei foram incluídoscomo anexos no meu livro O poder que brota...

estimular projetos de lazer, arte, cultura, esportee sociabilidade que estimulem a convivência daspessoas com transtorno com os demais habitantesda cidade e de suas comunidades locais. Alémdisso, é necessário fomentar a produção de obrasculturais e artísticas pelas pessoas portadoras detranstorno, bem como a sua exibição e divulgação nasociedade, não só como estratégia de recuperaçãodestas pessoas, mas também como forma desua valorização social, quebrando a percepçãoconvencional de sua invalidação39. Estes doisúltimos aspectos são componentes essenciais doseventos públicos que são realizados no Brasil pelo

movimento antimanicomial, nos dias em torno do18 de maio, data anual eleita pelo movimento paradivulgar a luta por uma sociedade sem manicômios.Também tem sido fundamental a produção deprogramas para a mídia   que divulguem as açõesdos usuários e familiares, os novos serviços eabordagens, e particularmente que discutam asdiferentes formas de estigma e discriminação nasociedade. É importante que nestes projetos sejamos próprios usuários e familiares que realizem todaa concepção, o uso dos aparelhos e a produção

39 Neste âmbito, temos projetos muito bem-sucedidosrealizados de forma intersetorial com o Ministério daCultura, chamados de Pontos de Cultura, e inseridos emum programa mais amplo denominado de Cultura Viva.Os pontos são ações e projetos de produção de arte ecultura, particularmente de origem popular, apoiadosfinanceira e institucionalmente pelo Ministério daCultura, que tenham impacto nas suas comunidades.Têm formatos muito flexíveis, sem modelo único, nem deinstalações físicas, nem de programação ou atividade.Em abril de 2010, havia 2,5 mil ações em 1.122 cidades,ou seja, um quinto do total de municípios brasileiros. Nocampo da saúde mental, há inúmeros projetos e açõesem andamento, com vários tipos de produção artísticae cultural, incluindo até mesmo escolas de samba. Parauma visão mais detalhada deste programa, ver o siteoficial do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br).

concreta dos programas, a partir de capacitaçãopermanente. Como exemplos deste tipo de iniciativano Brasil, temos a Rádio Tantan, de Santos (SP); a TVPinel, no Rio de Janeiro; a Rede Parabolinoica, emBelo Horizonte (MG) o Estúdio Ondas Mentais, derádio, em Campinas, etc. A internet também tem tidoum papel importante neste campo, principalmentepela facilidade de divulgação de denúncias, decirculação de ideias e de troca e experiências nestecampo.

g) Participação no sistema de saúde e saúde

mental e militância social mais ampla: deforma integrada aos demais tipos de organizaçãodescritos anteriormente, os grupos de usuários efamiliares participam das instâncias e de conselhosde saúde, saúde mental e outras políticas sociais,bem como podem desenvolver projetos de pesquisa,planejamento e avaliação de serviços, incluindo acapacitação de profissionais. Em outros termos,valoriza-se no sistema de saúde, saúde mental eassistência social o ponto de vista, o testemunho ea voz dos que viveram ou vivem concretamente, noplano pessoal, os problemas mentais. Além disso,os grupos também desenvolvem a participaçãocidadã na comunidade vizinha do serviço ou dolocal de moradia dos usuários e familiares, atravésdas associações de moradores, outros movimentossociais, ONGs etc. E neste âmbito, a internettambém tem tido um papel fundamental. Todasessas formas de inserção criam uma rede de vínculosfundamental para os momentos de mobilização

política, para uma participação em campanhase reivindicações por mudanças mais globais naspolíticas e legislação em saúde, saúde mental eoutras políticas sociais, bem como nos modelos e nosistema socioeconômico. No Brasil, as associaçõesde usuários e familiares já realizaram seis encontrosnacionais: em 1991, em São Paulo, promovido pelaPrefeitura e pelo Ministério da Saúde; em 1993, em

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Santos, como já mencionamos anteriormente, noqual foi redigida a Carta de Direitos dos Usuários eFamiliares em Saúde Mental; em 1995, em Salvador,organizado pelo Ministério da Saúde; em 2003, noRio de Janeiro; em 2007, em Vitória; em 2009, emSão Bernardo (SP), e em Angra dos Reis, em 2011.Além disso, os usuários e familiares, avulsos ouintegrantes de associações e grupos já organizados,também vem constituindo gradativamente a maioriados participantes nos eventos do Movimento da LutaAntimanicomial, fundado em 1987, e que já contacom uma história de vários encontros de âmbitonacional e de intensa participação nos eventos e

campanhas por conquistas e avanços na política desaúde mental no Brasil.

h)  As narrativas pessoais de vida com otranstorno mental:  A experiência do movimentode usuários e familiares no campo da saúdemental, principalmente nos países anglo-saxônicose europeus, vem demonstrando a importância deincentivar que usuários de serviços e seus familiares,e particularmente aqueles que se encontram em umestágio mais avançado de recuperação, escrevam ougravem depoimentos em primeira pessoa, contandoa sua história pessoal de crise, das dificuldadesdurante o processo de tratamento e das estratégiasde recuperação. A literatura internacional(KLEINMAN, 1988; SAKALIS, 2000) vem indicandoa importância das narrativas pessoais de doençasno campo da saúde mental, indicando os seguintesobjetivos:

- uma forma de se apropriar das experiênciascatastróficas de vida, principalmente associadasàs fases mais agudas do transtorno, e dar um novosentido a elas em um conjunto mais compreensívelde eventos, sentimentos e sensações integrados emum todo, resultando em “dar de volta a si mesmo algo

que tinha sido perdido”;

- uma forma de aceitar o transtorno maisintegralmente, como uma experiência radical e difícil,mas que constitui parte integral da vida humana;

- uma estratégia que possibilita outros usuáriosa terem contato entre si e aprender individual ecoletivamente, a partir da vivência daqueles que têmmais experiência no processo de recuperação, comum grande potencial de uso nos grupos e dispositivosde cuidado de si, de ajuda e suporte mútuos;

- uma afirmação da experiência subjetiva humanae de seu papel como sujeito, em detrimento da

autoridade e das narrativas feitas de fora e decima pelos profissionais e especialistas, e contraa impessoalidade e padronização de sistemas deassistência centrados nas prioridades de eficiência,economia ou até mesmo de segregação e negligência,particularmente no atual contexto de crise daspolíticas sociais;

- uma estratégia de mostrar como as representaçõessociais, culturais e institucionais modelam aexperiência de estar doente, denunciando eiluminando os conflitos e as estruturas de poder entreusuários e as culturas institucionais de assistência,desafiando as ideologias dominantes de tratamento/assistência e os padrões aceitos de comportamentoneste campo, essencialmente marcados pelapolarização entre passividade (por parte do chamados“pacientes”) e atividade (pelos “profissionais”), bemcomo apontando direções para mudanças em todo ocampo;

- uma voz autêntica e instrumento de mudança social,cultural e institucional na sociedade civil difusa,principalmente tendo em vista a defesa e conquistade direitos e a luta contra o estigma associado aostranstornos mentais;

- uma forma de texto com enorme potencial literário,

que, além de seu próprio conteúdo, pode alcançarníveis elevados de elaboração estética e linguística,podendo ser inclusive publicado em papel e nainternet, o que também implica valorização de seusautores e maior difusão de suas ideias.

No Brasil, o uso direto, as referências e estudossobre narrativas pessoais vêm se desenvolvendoem várias direções, a saber:

- no campo da história da literatura, já há uma

razoável valorização das narrativas orais e de suatransposição para a publicação impressa no país,a partir do início do século XIX. Para conheceresta história, sugiro conhecer a excelente obra deAlmeida e Queiroz (2004);

- na área da educação, tem havido em alguns centrosacadêmicos internacionais uma forte valorizaçãoda história de vida, como dispositivo de educaçãode adultos. A experiência de Pierre Dominicéna Universidade de Genebra, com repercussõessimilares nos Estados Unidos e em Portugal, foisistematizada por Marie-Christine Josso, ex-alunade Dominicé, e traduzida para o português, em umaobra que recomendo, intitulada Experiências de vidae formação (JOSSO, 2004);

- no campo da comunicação social, começam aaparecer os primeiros estudos sobre os blogs , comoum novo padrão de comunicação, de gênero literário,e de escrita íntima – tais como os antigos diários

pessoais, só que agora digitais e compartilhadosvia internet. O interessante estudo dos blogsrecentemente publicado por Denise Schittine (2004)traça esta história desde os diários pessoais e suascaracterísticas hoje. Em minha opinião, do ponto devista das estratégias de empoderamento, os blogstêm um enorme potencial ainda por ser explorado;

- em psicologia clínica, narrativas costumam ser

obtidas por profissionais em gravações do discursode seus clientes, como parte de estudos de casoclínico, como desenvolvido por um grupo depesquisadores ligados ao Instituto de Psiquiatria daUFRJ (RIBEIRO et al., 2001) ou por pesquisadoresindividuais (MIRANDA, 1998), com publicação detrechos considerados mais significativos;

- no campo da saúde e saúde mental coletiva,narrativas são muito frequentemente obtidas apartir de gravações de depoimentos de moradoresde comunidades, usuários de serviços e seusfamiliares, como material de estudos etnográficose antropológicos. Aqui, destacam-se as pesquisassobre representações sociais de saúde e doença, eno Brasil particularmente acerca do fenômeno dadoença de nervos, tais como aqueles desenvolvidospor grupos de pesquisadores do Museu Nacional daUFRJ (DUARTE e LEAL, 1998), do Núcleo de Estudosem Ciências Sociais e Saúde da UniversidadeFederal da Bahia (RABELO et al., 1999) e deoutros pesquisadores de Santa Catarina e Paraná(SILVEIRA, 2000);

- ainda na área da saúde mental, existempequenas narrativas escritas por usuários, quesão divulgadas em publicações do tipo boletiminformativo ou literário, normalmente informais,produzidas por serviços de saúde mental ou pelomovimento de usuários, ou ainda em publicaçõese páginas na internet de ONGs, engajados na lutapela reforma psiquiátrica ou no movimento de lutaantimanicomial;

- finalmente, algumas histórias de vida e narrativasmais longas de usuários são publicadas comolivros. Um importante exemplo recente deste tipoé o livro produzido por Austregésilo Carrano (1990),intitulado Canto dos Malditos , que foi transformadono filme Bicho de Sete Cabeças , e que teve um forteimpacto no país e foi várias vezes premiado, tendoum papel político considerável na luta pela reforma

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psiquiátrica e antimanicomial.

Creio ser importante comentar um poucomais sobre as direções listadas acima maisdiretamente ligadas ao campo da saúde mental.Nos tópicos (e) e (f), as narrativas constituemum material de pesquisa que é recortado pelospesquisadores, de acordo com a lógica analíticaproposta, sendo apresentado ao público apenasum pequeno conjunto de trechos dos originais,para efeito ilustrativo da análise realizada. Têmuma importância fundamental como reveladordas estruturas implícitas, das representaçõescoletivas e dos processos psíquicos associadosà saúde e doença mental em nossa sociedade eem nossas particularidades culturais, objetivandoa produção de conhecimento e uma formaçãoprofissional mais sensível. Nos blogs e nas duasúltimas modalidades, entretanto, as narrativassão apresentadas na primeira pessoa, em suatotalidade, mostrando toda a trajetória e o esforçopessoal de compreender, dar sentido e totalizaras experiências fragmentada da vida, revelando“por dentro” a visão existencial e política doprocesso de saúde-sofrimento, dos serviços e

da atenção à saúde mental vivida, pontos quereafirmam os tópicos levantados acima sobrea importância destas narrativas pessoais devida com transtorno mental como elemento-chave das estratégias de recuperação eempoderamento. Além disso, considero que noBrasil elas têm também um potencial enorme eainda pouco explorado, como coadjuvante do

movimento de usuários, como divulgador daperspectiva de recuperação e de empoderamento,e como estratégia da luta antimanicomial e pelareforma psiquiátrica40.

Antes de concluir esta seção, é interessanteretomar a maior parte destes conceitos queexpomos acima, para uma visão mais integral dadinâmica de empoderamento e de organizaçãodos usuários e familiares. Podemos representá-la pelo Quadro nº 1. Nele, tentamos representar aidéia de que os diversos dispositivos e estratégiasde empoderamento descritos acima estão todosinterligados, de forma que os movimentos sociaise os programas públicos de saúde mental devempromover todo o conjunto, e que usuários efamiliares sejam estimulados a transitar entre todoseles. Mesmo se isso ocorrer, podemos esperar que

40 Para este fim, é interessante relembrar que o trabalhode intercâmbio internacional com Richard Weingartenjá gerou uma pequena publicação, em associação com oInstituto Franco Basaglia (IFB), do Rio de Janeiro, intituladaO Movimento de Usuários em Saúde Mental nos EstadosUnidos: história, processos de ajuda e suporte mútuos e

militância, lançada em 2001, na qual várias das questõesdesenvolvidas neste anexo são mais bem explicitadas eexemplificadas. A publicação está disponível para compra(por apenas R$ 3,00) no IFB, através dos seguintes contatos:

Endereço: Av. Wenceslau Brás 65, 3º andar. CEP 22.290-140 - Rio de Janeiro.

Fone (telefax): 2295-1857 - E-mail: [email protected] - Site:www.ifb.org.br

Quadro 1: A dinâmica mais geral do processo de empoderamento

cuidado de si ajuda mútua suporte mútuo defesa dos direitos

luta contra a discriminação e estigma participação, controle social e militância

uma boa parte poderá conseguirá apenas participardos grupos de ajuda mútua, pois estes são os maissimples e acessíveis para todos, independente dasdificuldades emocionais e cognitivas dos usuáriose familiares. Até mesmo um usuário em silêncio,emsimesmado, é capaz de estar presente emum grupo e receber contribuições dos relatos eexperiências dos demais. Contudo, se houver umestímulo adequado, muitos usuários e familiarespoderão partir da ajuda mútua para desenvolver umcuidado de si mais variado e com mais autonomia,bem como para o suporte mútuo, ou para as demaisestratégias. Por exemplo, se temos uma rede destes

grupos, em qualquer iniciativa de luta contra oestigma ou campanha por direitos, os membrosdos grupos devem ser convidados a participar.Consideramos, portanto, a ajuda mútua como abase deste sistema de empoderamento, como odispositivo mais acessível para todos. Por outraótica, a partir dessa dinâmica, podemos tambémafirmar que os grupos de ajuda mútua, dependendodo conjunto de estratégias em que estao inseridos,não constituem um dispositivo fechado em simesmo, individualizante ou despolitizante, poistêm o potencial para constituir uma base ampla demobilização para outras formas de participação emilitância social e politica.

6. As diversas estratégias de empoderamento,sua importância para a reforma psiquiátrica epara a participação/controle social no SUS

Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atençãopara um aspecto importante destas estratégias deempoderamento para a rede de atenção psicossocialem saúde mental e para a perspectiva mais geralda desinstitucionalização psiquiátrica e da lutaantimanicomial no Brasil. Hoje, um dos riscos

reconhecidos de forma praticamente consensualentre as lideranças do movimento antimanicomialno país é a cristalização da rotina e do papelde uma relativa passividade dos usuáriose familiares  nos novos serviços. Da mesmaforma, também os profissionais, as equipes e seusdispositivos de ação tendem a se institucionalizar eentrarem na rotina cotidiana, na direção da repetiçãoe da rigidez, o que acaba estimulando a reproduçãoda mentalidade manicomial até mesmo dentro dosnovos serviços. Esta tendência à institucionalizaçãoé enfaticamente reconhecida como um componenteintrínseco aos processos grupais, organizacionais

e institucionais, pelas abordagens sartriana,basagliana e pelas várias vertentes da análiseinstitucional, que sustentam nossas abordagensprincipais na reforma psiquiátrica brasileira.Entretanto, estas abordagens chamam tambéme enfaticamente a atenção para se estimular osprocessos instituintes nos grupos e instituições, eé isso que sustenta um dos aspectos centrais da ideiade desinstitucionalização, como um princípio tãocaro para nossa estratégia como movimento social ecomo política pública. Nesta direção, as estratégiasde empoderamento significam estimular os atoressociais que mais têm este potencial instituinte,pela posição de interessados mais diretamente naqualidade dos serviços. Além disso, os grupos têmum papel fundamental de promover o acolhimentoe o ativismo dos usuários e familiares fora dosserviços , na própria comunidade, na medida emque são realizados em quaisquer lugares com

alguma função pública, como igrejas, associaçõesde moradores, sindicatos, centros comunitários,escolas etc., o que inclusive já estimula as iniciativasde suporte mútuo dentro do grupo ou de formaintegrada com atividades semelhantes promovidaspor outros grupos comunitários.

Em segundo lugar, a experiência em vários países eos grupos já existentes no Brasil vêm demonstrando

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que a participação nestes grupos constitui fatorfundamental para uma reabilitação psicossocialmais consistente e eficaz. Como indicado acima,os estudos epidemiológicos longitudinais delongo prazo realizados principalmente nos EstadosUnidos vêm demonstrando a importância dessasestruturas de suporte nos programas de reabilitaçãopsiquiátrica de usuários como transtornos mentaisseveros  (DAVIDSON et al., 2005a). As revisões dasevidências existentes, mesmo que baseadas aindaem pesquisas sem o tradicional desenho de grupocontrole, têm mostrado que três formas de ajuda esuporte mútuos são fundamentais para o processo

do que chamam de recuperação: os grupos informaisde ajuda e suporte mútuos, os serviços dirigidospor usuários e o emprego formal de usuários nosserviços de saúde mental (DAVIDSON et al., 2005b).

É por isso que considero que a proposta dos gruposde ajuda e suporte mútuos, como a base primordialdas estratégias de empoderamento, tem um papelessencial e imprescindível em nossas lutas pelareforma sanitária, pela reforma psiquiátrica eparticularmente na luta antimanicomial.

Em terceiro lugar, gostaria de considerar aimportância dos grupos para o conjunto da reformasanitária e das demais políticas sociais. É precisoreconhecer que  no Brasil e em nosso movimentosanitário,  parte dessa estratégia participacionistae de empoderamento dos usuários e familiaresdo sistema de saúde já vem sendo estimulada ereconhecida, no âmbito do SUS e de outras políticassociais, na noção de controle social, através da

presença de representantes da sociedade civil nosconselhos e conferências destas políticas a níveldistrital, municipal, estadual e nacional. Entretanto,é praticamente consenso que o perfil destaparticipação ainda é muito incipiente. Por exemplo,muitas organizações que se dizem representantesdos usuários e de familiares na verdadecorrespondem a associações criadas, financiadas

e/ou sob inteiro controle de profissionais ou deempresas prestadoras de serviços ou da indústriafarmacêutica, que buscam difundir seus interessesatravés da fala e da ação dos usuários. Alémdisso, muitas vezes a representação nos conselhosé aparelhada “por cima” por partidos políticos,transformando estes conselheiros em correia detransmissão de decisões tomadas nas cúpulaspartidárias ou em redes de influência clientelista.Algumas iniciativas vêm sendo tomadas nos últimosanos no SUS para prover capacitação políticapara estes conselheiros, bem como de valorizara militância política de lideranças individuais de

usuários e familiares. Iniciativas como estas sãofundamentais, mas a meu ver ainda limitadas,pois ainda não intervêm ou promovem propostaspara uma organização de base mais autêntica erepresentativa dos próprios usuários e familiares.

A experiência internacional e brasileira no campoespecífico da saúde mental indica também que amilitância social e política direta, por si só, com seusconflitos, relações de poder e formas de cooptaçãopor cima, sem os demais níveis de acolhimento eparticipação, não só gera um perigoso descolamentodas lideranças de suas bases, como também muitasvezes só é viável para pouquíssimos usuários efamiliares, devido às dificuldades e limitaçõesintrínsecas colocadas pelo próprio transtorno, pelaausência de organizações de base que sustentemessa militância, ou pelas próprias exigências davida cotidiana e de cuidado no âmbito da família.Assim, uma noção muito restrita e politicista

de participação, com foco exclusivo no controlesocial e na militância, apresenta fortes limitações,particularmente no campo da saúde mental.

A história já consolidada do movimento internacionalde usuários e familiares do campo da saúde mentalnos aponta então na perspectiva de que é necessáriopropor estratégias concretas de empoderamento emníveis diferenciados de participação, complexidade

e dificuldade. A maioria dos participantes e usuáriospode se inserir nos níveis mais elementares, comoos grupos de ajuda e suporte mútuos, mas algunsusuários e familiares com características pessoaise culturais compatíveis e potencial de liderançapoderão ser chamados a criar ou participar deprojetos nos níveis mais avançados. Da mesmaforma, estes, idealmente, quando se alçam nestasesferas, não devem perder de vista seus vínculoscom os grupos de base, e nos casos de reincidênciade uma crise psíquica, que constitui sempre umapossibilidade no campo da saúde mental, já terão seuacolhimento garantido nestes grupos. Dessa forma,o ideal em um movimento social mais amplo destetipo seria valorizar todos os níveis de organização eestimular o trânsito de seus associados entre eles.

A proposta dos grupos de ajuda e suporte mútuose seu gradual empoderamento, portanto, apresentauma estratégia global de organização de basedos usuários e familiares em seus vários estágiosde organização e consciência, com um profundoimpacto para ampliar a luta pela reforma sanitária,reforma psiquiátrica e na luta antimanicomialno país. Contudo, ela também implica questõesvoltadas para a consideração de nossas utopiasno  futuro, e as considero também fundamentaisnesta discussão. Queremos não só uma sociedadesem manicômios, que reconheça a legitimidade dasdiferenças existenciais e subjetivas, mas tambémuma sociedade não pautada pela indiferença eexclusão, e que portanto, assuma as bandeirasda garantia da cidadania e do cuidado a todos

os cidadãos, mas particularmente para todosaqueles marcados por alguma forma de fragilidade,dependência e sofrimento, que constitui o nossoobjeto central no campo da saúde mental, comotambém de outras áreas da saúde e da assistênciasocial. Estas novas formas de cuidado não só devemexcluir as instituições fechadas e totais, comotambém devem assumir e dividir o peso do cuidar

que ficou historicamente nos ombros das mulheres,

na invisibilidade dos lares e da vida privada. As novasmodalidades socializadas de cuidar usam instituiçõesabertas, no território, mas também, como que já se

mostra hoje na atenção básica à saúde e nas políticasoriundas dos estatutos da criança/adolescente e

do idoso, batem nas portas das casas, entram naprivacidade de cada um, examinam a intimidade de

suas relações e os seus corpos, para avaliar, cuidare defender os direitos de todos os que têm alguma

fragilidade ou limitação em sua autonomia, bemcomo de sua família. Entretanto, na prática, esta“clientela” acaba sendo praticamente todos nós,

por que, em regra, na maioria das famílias, temos nomínimo crianças e/ou idosos. Assim, na busca ativa

de cuidar e defender os direitos humanos e sociaisdestes cidadãos “especiais”, nós, agentes estatais e

profissionais, também estamos construindo, no longoprazo, verdadeiras “máquinas de intervenção” nas

esferas mais íntimas das pessoas, verdadeiros bigbrothers  de nós próprios e de todos os cidadãos, masparticularmente dos extratos mais empobrecidos41.Contudo, longe de qualquer ilusão romântica ou de

análises apressadas inspiradas em alguns autorespós-modernos, penso que todo o cuidado social e toda

luta de defesa dos direitos de pessoas fragilizadasenvolvem inevitavelmente este tipo de relações de

poder, e que essas máquinas de intervenção sãonecessárias e inevitáveis. Entretanto, que tipo de

contrapoder poderá contrabalançar o poder crescentee cada vez mais penetrante da esfera pública e dosprofissionais na esfera privada, corporal e subjetiva

das pessoas? Esta discussão talvez tenha sidotemporariamente ofuscada pela miséria, violência e

desassistência que o neoliberalismo nos impõe hoje,

41 Um bom exemplo disso está nos programas contra anegligência, a violência e o abuso sexual de crianças eadolescentes, que exigem um acompanhamento rigorosoda situação social, familiar, psicológica e corporal delas.

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mas este dispositivo é sempre mobilizado a cadanovo passo de construção de serviços de atençãosocial, de saúde e saúde mental no território, eque nós necessariamente devemos universalizare massificar tão logo as condições econômicas epolíticas o permitam.

7. Considerações finais

Para concluir este texto, espero que a presentesistematização de conceitos e estratégias possibilite

uma melhor compreensão da metodologia para gruposde ajuda e suporte mútuos proposta neste manual,e que possa contribuir realmente para aquelesque quiserem se juntar aos seus companheiros eamigos, usuários ou familiares, para trocarem suasexperiências, para se darem apoio emocional e para,a partir daí, desenvolverem outros tipos de grupos,projetos e lutas no campo da saúde mental.

Este ensaio também procurou demonstrar que aapropriação que estamos fazendo das experiências,abordagens e estratégias de empoderamentodisponíveis no plano internacional não implicaqualquer forma de transplante automático para onosso país. Como indicamos acima, os conceitos eestratégias de empoderamento são polissêmicos,prestando-se a apropriações tanto conservadorascomo progressistas e emancipatórias. O caminhorealizado por nós passa por um processo complexode revisão histórica e teórico-conceitual, visandoadequá-los aos objetivos ético-políticos que

adotamos no processo de reforma psiquiátrica ede luta antimanicomial no Brasil, bem como àsindicações que temos a partir da literatura, dacultura e das experiências de projetos popularesinovadores no campo da saúde mental, comos quais tivemos contato. Além disso, nossametodologia vem adquirindo consistência a partirda experimentação concreta, nos projetos-piloto

que temos criado e acompanhado nos últimos anos.Outros textos a seguir neste manual visam explorarcom mais detalhes as diversas dimensões desteprocesso, e é para a sua leitura que convidamos oleitor neste momento.

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WEINGARTEN, R. O movimento de usuários em saúdemental nos Estados Unidos: história, processos deajuda e suporte mútuos e militância. Rio de Janeiro:Projeto Transversões/ IFB, 2001.

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Sites da internet citados

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www.cultura.gov.brwww.ifb.org.br

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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Texto 2

HISTÓRICO, PRINCÍPIOSÉTICO-POLÍTICOS E PROCESSOMETODOLÓGICO DE CONSTRUÇÃODO “MANUAL DE AJUDA ESUPORTE MÚTUOS EM SAÚDEMENTAL”

Eduardo Mourão Vasconcelos

1) Apresentação

Como pesquisadores e militantes do campo social, dasaúde e saúde mental, e particularmente engajadosna luta antimanicomial e no processo de reformapsiquiátrica brasileira, estamos contribuindo para odesenvolvimento de políticas, programas, projetos emetodologias que muitas vezes, apesar das múltiplasexperiências internacionais já consolidadas, passama ter um perfil muito particular em nosso país. Issose dá não só pelas condições socioeconômicas,demográficas e culturais específicas de nossa

população, mas também pelas característicaspróprias do desenvolvimento das políticas sociaisem nosso contexto.

Assim, os serviços e metodologias que estamosrecriando no campo da saúde mental no Brasil exigemcoragem para montar as primeiras iniciativas-piloto,ter a devida disciplina de trabalho e paciênciahistórica para monitorar sua implementação, criaruma sustentação teórico-conceitual adequada,discutir e avaliar seus resultados e desafios, compará-las com as experiências similares internacionais, epara reorientar e corrigir os eventuais problemas.Além disso, na maioria das vezes, estes projetosocorrem em contexto de intenso debate político,muitas vezes sem conseguir mobilizar todo apoioinstitucional e profissional que seria desejável, eque só mais tarde o reconhecimento e a legitimidadeda experiência consolidada conseguirá angariar.

Entretanto, este é o preço a pagar para camposde militância e política social que se quereminovadores e que buscam auscultar o máximopossível os interesses popular-democráticos eas características particulares destes grupos, eque visam não se submeter ao conjunto de forçashegemônicas na economia, na política, na cultura eaté mesmo nas organizações corporativas.

Sem dúvida alguma, o presente projeto desistematização de uma metodologia para grupos deajuda e suporte mútuos em saúde mental tem estascaracterísticas. Contudo, apesar da significativamargem de incertezas que envolve o seu processode desenvolvimento, a estratégia e os passosque seguimos não são aleatórios, são frutos devalores ético-políticos, teóricos e metodológicossistematizados em experiências e projetosanteriores e claramente objetiváveis, e portantodevem ser explicitados e colocados em discussãojuntamente com todo o conjunto do manual. Este éo objetivo deste texto.

2) Breve história político-institucional desteprojeto

Na experiência mundial, as várias formas deorganização, participação e empoderamento

de grupos populares são parte integrante dahistória humana, particularmente na modernidade(VASCONCELOS, 2003). Contudo, os grupos deajuda mútua propriamente ditos, na forma como osconhecemos hoje, tiveram seu início em 1935, nos

Estados Unidos, com os Alcoólicos Anônimos (AA), esua metodologia foi expandida para abarcar outros

tipos de problemas, como, por exemplo, a neurose ea psicose, o que resultou nos Neuróticos Anônimos(NA) e nos Psicóticos Anônimos (PA), além de

muitos outros grupos voltados para problemassemelhantes. Mas a experimentação não parou aí.Depois disso, em vários países, no campo da saúdemental, foram iniciados outros movimentos e tipos

de grupos, com metodologias mais diversificadas, emuitas vezes a partir de avaliações da experiênciados AA, como novos desdobramentos operacionais(VASCONCELOS, 2003 e 2008b; REIS, 2007). NoBrasil, no campo específico da saúde mental, esta

experiência se iniciou nos anos 1970, quando foicriada uma primeira associação de familiaresdo campo da saúde mental no Rio de Janeiro,mas só se difundiu amplamente a partir dos anos1990. Estes grupos e associações compõem o que

hoje chamamos de movimento de usuários e defamiliares de serviços de saúde mental .

Desde o final da década de 1980, quando inicieimeu programa de doutoramento na Inglaterra, tivecontatos regulares com os grupos e movimentosde usuários e familiares em saúde mentalparticularmente na Inglaterra, Holanda, Suécia e

Estados Unidos, que desenvolvem grupos de ajudamútua desde o início dos anos 1970. O tema foiassumido como objeto de estudo e pesquisa no

Projeto Transversões, um projeto integrado depesquisa e extensão voltado para o tema da saúdemental e das abordagens psicossociais, e por mimcoordenado. Ele está lotado institucionalmente naEscola de Serviço Social da Universidade Federaldo Rio de Janeiro, onde trabalho como professorassociado, e conta desde 1996 com a avaliaçãoperiódica e o apoio do CNPq, Conselho Nacionalde Pesquisa, ligado ao Ministério de Ciência eTecnologia, através de bolsa de produtividade empesquisa (do tipo I-C), e mais recentemente tambémdo Fundo Nacional de Saúde, ligado ao Ministérioda Saúde. Desde seu início, a pesquisa sobre o tema

gerou inúmeros artigos e textos dentro de nossaspublicações42. Além disso, em nossa militânciajunto ao movimento antimanicomial, passamos aestimular a formação de associações de usuários efamiliares, que vêm se difundindo a partir de 1990em todo o país, processo cuja avaliação foi tambémassumida como objeto de pesquisa, cujos resultadosvêm sendo divulgados de forma mais sistemáticaa partir de 2007 (VASCONCELOS, 2007 e 2008b;VASCONCELOS e RODRIGUES, 2010).

Em outubro de 2008, o Projeto Transversõespromoveu na cidade do Rio de Janeiro um primeirocurso intensivo para profissionais, usuários efamiliares, para formação de facilitadores de grupos,e iniciou dois grupos-piloto, um para usuários eoutro para familiares, para um experimentação maissistemática da metodologia, grupos estes que vêmse reunindo mensalmente desde então. Estes doisgrupos têm proporcionado uma experimentação

bastante rica da metodologia, cuja sistematização

42 O leitor interessado em se aprofundar no processoacumulativo de estudo deste tema deve consultar asseguintes publicações: Vasconcelos, 1992, 1999, 2000,2003, 2007; 2008a, 2008b, 2008c, 2010a e 2010b;Vasconcelos e Furtado, 1997; Vasconcelos et al., 2006;Vasconcelos e Rodrigues, 2010; Weingarten, 2001; Reis,2007; Rosa, 2003 e 2009.

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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foi sendo inserida gradualmente neste manual.Desde então, cursos similares foram realizadosautonomamente pelo Projeto Transversões emTeresina (PI), Natal (RN) e em Angra dos Reis (RJ).

O último trabalho publicado sobre o perfil dasorganizações e movimentos sociais no campo dasaúde mental no país (VASCONCELOS, 2008b)

teve um impacto significativo, inclusive porquefoi divulgado nos maiores eventos do movimentoantimanicomial no final de 2008. As propostassugeridas a partir da pesquisa (e, entre elas, a

sugestão de se ter um projeto sistemático de

implantação destes grupos de ajuda e suportemútuos no país), foram integralmente assumidascomo reivindicações próprias pelas lideranças deusuários e familiares de uma das duas alas de nosso

movimento antimanicomial, que passou a cobrar doMinistério da Saúde a sua implementação.

Ao receber estas reivindicações, no final de 2008, a

Coordenação de Saúde Mental do Ministérioda Saúde tomou a iniciativa de formar o Grupo deTrabalho de Demandas de Usuários e Familiares,que iniciou seus trabalhos em abril de 2009. Assim, do

ponto de vista institucional e político, esta proposta decriação de grupos de ajuda e suporte mútuos em s aúdemental, coordenados por facilitadores usuários e/oufamiliares em processo mais avançado de recuperação,já foi avaliada e aprovada em 2009 pela coordenação

no âmbito deste grupo de trabalho, como parte deum conjunto maior de iniciativas. Este inclui tambéma criação de um cadastro nacional de associações de

usuários e familiares, um programa de inclusão digitalde associações de usuários e familiares, além da

implantação do Plano/Cartão de Crise, um dispositivojá em vigor na Inglaterra e na Holanda, cuja vi sibilidadeno Brasil partiu da mesma publicação do ProjetoTransversões (VASCONCELOS, 2008b).

Ainda em 2009, a Coordenação de SaúdeMental do Ministério da Saúde demonstrou

interesse em celebrar um convênio com a Escola deServiço Social da UFRJ, que permitisse ao ProjetoTransversões capacitar profissionais, usuários efamiliares e implementar mais amplamente estes  dispositivos em vários locais no país, na forma decapacitação, bem como de seguimento/supervisãode experiências-piloto por meio de pesquisa. Aproposta foi encaminhada ao GT de Demandasde Usuários e Familiares, sendo aprovada em suareunião de 17/9/2009, incluindo o próprio GT comouma das instâncias gerenciadoras e de prestação decontas deste convênio. Nesta reunião, a propostado convênio foi ampliada, passando a incluir os

seguintes itens:

 

a) publicação oficial de uma cartilha nacional, emlinguagem popular, sobre direitos dos usuáriose familiares no campo da saúde mental;

b) capacitação para usuários, familiares eprofissionais para implantar experiências-piloto de grupos de ajuda mútua em quatroou cinco cidades do país, com acompanhamentoe supervisão por um ano;

c) publicação oficial do manual específicopara este projeto de ajuda e suporte mútuos, oque está sendo objetivado na presente publicação;

d) capacitação específica para o Plano eCartão de Crise, em quatro ou cinco experiências-piloto no país, preferencialmente de forma orgânicaao projeto de grupos de ajuda e suporte mútuos;

e) pesquisa avaliativa do cadastro deassociações de usuários e familiares  que seinscreveram junto à Coordenação.

A reunião do GT de setembro de 2009 tambémcontemplou outras propostas que não serão incluídasneste convênio com o Projeto Transversões, masque também fazem parte desta linha de trabalho

de fortalecimento das associações de usuáriose familiares do campo. Assim, a Coordenaçãode Saúde Mental já desenvolve ou ainda secomprometeu a encaminhar e implementar outrosprojetos, tais como:

a) desenvolvimento de programas de inclusãodigital para associações e para cada um dosusuários. Uma das alternativas levantadas é acriação de Escolas de Informática e Cidadania parausuários e familiares, promovido conjuntamentecom as associações, em convênio com a ONG

CDI – Comitê de Democratização da Informática.Outra forma possível de implementar este tipo deprograma é através da Casa Brasil, que está sendovinculada diretamente ao Ministério da Ciênciae Tecnologia. Ainda uma terceira forma seriacolocar um computador adicional em cada CAPS,juntamente com a capacitação adequada para oseu uso, e estímulo para que todos os usuários queassim o quiserem tenham e-mail próprio;

b) apoio ao estudo multicêntrico do projeto de“Gestão Autônoma da Medicação” por parte dosusuários do campo da saúde mental, experiência jáimplantada no Canadá, e que está sendo realizadoem Campinas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul;

c) continuidade do programa de geração derenda e trabalho para usuários do campo da saúdemental, já em implementação pela Coordenação erealização de  Encontro Nacionais de PráticasInovadoras em Geração de Trabalho e Renda ;

d) estímulo a grupos de teatro do oprimido narede de CAPS, com o lançamento do PrêmioAugusto Boal entre os CAPS.

Em 2010, o tema da organização e empoderamentode usuários e familiares, juntamente com váriasdestas propostas, foi colocado em discussão em uma

esfera de controle social maior, a IV ConferênciaNacional de Saúde Mental – Intersetorial , da

qual participei intensamente, assumindo o papel demembro da Comissão de Organização e de relator

adjunto. A conferência foi convocada por decreto

presidencial em abril, quando foram iniciadas as

conferências municipais e estaduais, tendo a suaetapa nacional realizada em Brasília no final de

junho. O assunto constituiu um subeixo específico (o

de nº 3.7, intitulado “Organização e mobilização de

usuários e familiares em saúde mental”) do terceiroe último eixo (“Direitos humanos e cidadania como

desafio ético e intersetorial”) do temário geral da

conferência.

Como destacou Delgado, titular da Coordenação

Nacional de Saúde Mental em sua carta de

apresentação do Relatório Final, o processode mobilização, discussão e participação na

conferência foi significativo, apesar de todas as

limitações conjunturais, com a participação de

cerca de 1.200 municípios nos debates do temáriodesde fevereiro de 2010; a participação efetiva de

variadas agências intersetoriais na discussão do

tema da saúde mental, com repercussões tanto no

nível federal como no plano estadual e municipal;e a participação decisiva dos usuários e familiares

no próprio processo, ocupando lugares nas mesas-

redondas e painéis, na coordenação de atividades

e facilitação de grupos, na Tenda Austregésilo

Carrano, na Feira de Empreendimentos de Geraçãode Renda e Economia Solidária, bem como no

conjunto de propostas aprovadas no sentido defortalecer o seu empoderamento e a sua organização

na rede de serviços e nas políticas de saúde mental.(Sistema Único de Saúde / Conselho Nacional de

Saúde, 2010: 9)

Nas decisões finais da IV Conferência, expostas

em seu Relatório Final, as diretrizes gerais de

fortalecimento da organização dos usuários e

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familiares foi claramente enfatizada43. Da mesma

43 Isso pode ser claramente constatado nos tópicos 893 e894 do relatório, de princípios e diretrizes gerais relativasao subeixo 3.7, “Organização e mobilização de usuários efamiliares em saúde mental”:

“893. Da mesma forma, estas diretrizes implicam tambémem fortalecer as associações de usuários, familiares etrabalhadores de saúde mental, em estimular a criaçãode cooperativas e a participação dos familiares nosempreendimentos solidários em saúde mental, visandoa reintegração social e o enfrentamento do desempregoe a inserção dos usuários de serviços de saúde mental

no mercado de trabalho, conforme suas habilidades epossibilidades, favorecendo a redução do preconceito, aconquista da cidadania e a diminuição do estigma. Aomesmo tempo, este fortalecimento das organizaçõestambém requer a criação e diversificação de mecanismosde denúncias quanto à violação e de defesa de direitosdos usuários de saúde mental, bem como a produçãode material de educação popular, formação política e dedefesa de direitos. Estas mesmas diretrizes devem visartambém a organização dos familiares e usuários dosserviços dirigidos aos problemas decorrentes do uso deálcool e outras drogas, de forma que possam defenderseus direitos civis, políticos e sociais junto à rede deserviços e ao poder público.

894. No plano local dos serviços, o fortalecimentoda organização de usuários e familiares implicacriar dispositivos de conscientização da população,principalmente dos familiares, sobre a importância daparticipação dos mesmos no processo de tratamento,assim como sobre as formas de acesso e modos defuncionamento dos serviços. Ao mesmo tempo, exigetambém implementar políticas públicas explícitas desuporte e assistência psicossocial aos familiares ecuidadores de usuários dos serviços de saúde mental,reconhecendo importância dos mesmos nesse campo.Além disso, é preciso garantir que as equipes dos CAPS eoutras unidades de saúde e saúde mental sustentem umdiálogo ativo e permanente com os usuários, familiarese cuidadores, fortalecendo os dispositivos internos departicipação (assembleias, oficinas, grupos de trabalho,conselho gestor etc.) e regulamentando os espaçospróprios de sua organização, dotados de autonomia econdições próprias de funcionamento” (Sistema Únicode Saúde / Conselho Nacional de Saúde, 2010: 142).

forma, os projetos específicos de empoderamentoe particularmente o de grupos de ajuda e suportemútuos foram claramente aprovados, nas propostasde número 897 a 899, também constantes do RelatórioFinal44. Assim, podemos concluir que a propostatema deste manual foi discutida, reconhecida eaprovada na instância maior de controle socialda política de saúde mental no país.

No atual momento, o presente projeto de metodologiade grupos de ajuda e suporte mútuos vem sendodiscutido no âmbito de alguns municípios brasileirosque possuem uma experiência mais consolidada de

organização de usuários e familiares, para a montagemde cursos de capacitação e início das primeirasexperiências locais de grupos de ajuda e suportemútuos. Este é o quadro em que nos encontramos nofinal de 2010, em que escrevo este texto.

44 O texto integral destas propostas aprovados é oseguinte:

“897. Garantir financiamento público parabolsas de incentivo à formação de lideranças defamiliares e usuários de saúde mental, de modo aestimular projetos de produção de autonomia e deprotagonismo, desde que em concordância com osprincípios da reforma psiquiátrica.898. Implantar, nos serviços de saúde mental,metodologias específicas de grupos, empoderamento,psicoeducação, conhecimento do uso demedicamentos, grupos de ajuda e suporte mútuos, ePlano/Cartão de Crise para os usuários, valorizandosempre os usuários, sua autonomia e autoestima,e objetivando de forma ampla as conquistas dosdireitos de cidadania.899. Criar cartilhas informativas e outros materiaisde divulgação, a serem disponibilizados em órgãospúblicos e nos diversos espaços da vida social,que esclareçam os direitos e deveres dos cidadãosportadores de sofrimento psíquico e contemplemas redes de atendimento em suas especificidades”(Sistema Único de Saúde / Conselho Nacional deSaúde, 2010: 143; grifo do autor do presente texto).

Antes de terminar esta seção de história do projeto,é importante ainda lembrar que já existem naprática antecedentes de inserção de usuáriose familiares com maior experiência de vidae de trato com o transtorno e com práticasorganizativas, no contexto de iniciativas desaúde mental junto à rede de atenção em saúdee saúde mental. Exemplos interessantes são osdos cuidadores de saúde mental (para os serviçosresidenciais), dos oficineiros em saúde mental(que coordenam oficinas de artes e artesanatonos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS) edos técnicos em reabilitação em dependência

química, em serviços na área de abuso de álcoole outras drogas, sendo que estes já exercem suasatividades desde o início da década de 1980 noRio de Janeiro, como ex-usuários de drogas e ex-alcoolistas que agora realizam um trabalho dereabilitação diretamente junto aos usuários. Alémdestes, é importante lembrar também dos própriosAgentes Comunitários de Saúde (ACSs), que já estãoavançados no caminho da conquista de uma carreiracomo servidores públicos estáveis e inteiramenteinseridos no SUS.

A proposta dos grupos de ajuda e suporte mútuostambém se insere na perspectiva da Estratégiade Saúde da Família (ESF), como um dispositivovoltado para a atenção de portadores de transtornomental mais grave e de suporte para seus familiaresno próprio local de moradia das comunidades. Estaproposta emerge em uma conjuntura bastantefavorável, coincidindo com a recente iniciativa de

criação pelo Ministério da Saúde dos Núcleosde Apoio à Saúde da Família – NAFS  (Portaria154/2008 do Ministério da Saúde), que realizama supervisão das equipes de atenção básica edão um grande estímulo à plena implantaçãodestas equipes no nível do município, pelo apoiofinanceiro federal embutido na medida. Os núcleossão formados por um grupo interprofissional da

área da saúde, sendo necessariamente um docampo da saúde mental, o que permite que elespossam assumir uma supervisão mais próxima dosfuturos facilitadores dos grupos. Além disso, outrainiciativa do governo federal também favorece aimplantação da proposta dos grupos, a de introduzirna atenção primária a abordagem de TerapiaComunitária (TC), desenvolvida pelo etnopsiquiatracearense Adalberto Barreto (BARRETO, 2005),como estratégia específica de elaboração das

questões de saúde mental na população, cujosgrupos podem dirigidos inclusive pelos própriosAgentes Comunitários de Saúde (ACSs). Assim, emum futuro breve, esperamos ter o seguinte conjuntode estratégias dirigidas para a saúde mental nocontexto da atenção básica:

a)as formas já convencionais de suporte e intervençãoda rede específica de atenção psicossocial naatenção básica , como o apoio matricial, as visitasdomiciliares, a intervenção no ambiente das casase no bairro, os encaminhamentos e a capacitaçãode agentes e profissionais das equipes de saúde dafamília;

b) os grupos de Terapia Comunitária (TC) , voltadaprincipalmente para a abordagem dos chamados“transtornos mentais comuns” (FONSECA, 2008),ou seja, os transtornos mentais leves e difusosna população. Eles também são identificados pelaantropologia social e pelas próprias representaçõessociais populares como “problemas de nervo”(idem);

c) os grupos de ajuda e suporte mútuos , objetoda presente iniciativa, capazes de lidar com asespecificidades de uma abordagem comunitária do

quadros chamados de psicose.

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Em outro texto deste manual, discutimos commaiores detalhes a inserção dos grupos de ajudae suporte mútuos na atenção primária em saúde.Penso que agora já temos todos os elementoshistóricos necessários para iniciar a exposição sobreos princípios éticos e metodológicos que inspirarame orientaram a construção deste manual.

3) Princípios ético-políticos de base queorientaram a construção desta metodologia edo manual

A construção deste manual se insere em umprocesso mais longo de ativismo e militância socialjunto às classes populares, e que se sustenta emum conjunto de valores ético-políticos que devemosexplicitar45, já que inspiram e dão a orientação maisgeral também para o nosso trabalho profissional nocampo da saúde mental:

a) na relação dos fenômenos psicológicos comas outras dimensões da vida, uma perspectivademocrático-popular e crítica das abordagens edispositivos psicossociais não pode reproduzir ascaracterísticas mais gerais das práticas terapêuticase teorias clínicas convencionais, realizadas noâmbito privado, como nos consultórios particulares.Estas tendem a colocar entre parênteses o contextohistórico e suas determinações e finalidades

sociais, políticas e culturais, visando realçar aimportância e as particularidades dos fenômenossubjetivos e inconscientes para cada sujeitoe sua responsabilidade no processo pessoal

45 Esta perspectiva foi desenvolvida com maioresdetalhes em outros trabalhos (VASCONCELOS, 2008a e2010a).

de mudança. Este dispositivo pode ter seusefeitos e sua validade particular no seu terrenopróprio e em termos de eficácia clínica, masacaba sendo expandido a todo o edifício teóricoe epistemológico da maioria das abordagensclínicas, criando nelas uma impossibilidaderadical de abordar fenômenos mais amplos ou deoutra natureza. A perspectiva de abordagens e deatenção psicossocial que defendemos se coloca nadireção contrária, na perspectiva de uma atençãopública e gratuita, como direito social eresponsabilidade do Estado, baseado nosprincípios da universalização, integralidade,

intersetorialidade, descentralização eterritorialização da atenção, integraçãoinstitucional e da gestão, bem como departicipação e controle social das políticase programas pela sociedade civil e pelostrabalhadores. Daí, a responsabilizaçãodos serviços públicos pela integralidade dasnecessidades de seus usuários, que pressupõesua provisão integrada pelas diversas agências doEstado e dispositivos de ação intersetorial, o queacaba por também implicar a ampliação do objetoda atenção psicossocial;

b) abordagens psicossociais emancipatórias nocampo da saúde, saúde mental, assistência sociale educação devem ser capazes de identificare analisar os mecanismos estruturais deopressão, de desigualdade e discriminaçãosocial, de gênero, etnia, geração, identidade

sexual e cultura que atravessam a vida social, avivência dos usuários e o acesso aos serviços.Neste esforço, devem procurar identificar tambémas principais representações específicasenvolvidas nos grupos espoliados, no sentido demelhor ouvir suas demandas, estabelecer umdiálogo multi- e intercultural compreensivo,e desenvolver metodologias operativas

adequadas, capazes de superar as barreiraslinguísticas, sociais, de gênero e culturais de trocasocial e de acesso aos dispositivos de cuidado, ouque comprometam a continuidade e a qualidade daatenção nos serviços;

c) as teorias psicossociais comprometidas comuma perspectiva popular-democrática devemevitar qualquer perspectiva teórica funcional,que isole e autonomize a dimensão psíquicaou que a aprisione em fronteiras rígidasde normalidade e de doença, que acabem

empurrando-a na direção da adaptação eajustamento dos indivíduos e grupos humanos aosvalores e padrões sociais aceitos pela sociedademais ampla. Ao contrário, a transformação darealidade psíquica interna em cada indivíduose dá de forma inteiramente conectada e aomesmo tempo conflituosa com a realidadesocial e cultural externa, na medida em que oinconsciente e o desejo forçam permanentementeos limites atuais da realidade, conformandoos processos instituintes e transformando oreal existente. Assim, os seguintes elementosfazem parte integral do objeto das abordagenspsicossociais:

- o conhecimento crítico da realidade, das relaçõesde poder e das contradições e lutas sociais nasociedade envolvidos nos processos psicossociais;

- a luta pela transformação das condições concretasde vida, de moradia e trabalho, e de reproduçãosocial dos usuários da atenção psicossocial;

- o amplo reconhecimento das necessidadesespecíficas dos indivíduos e grupos sociaisusuários da atenção psicossocial, particularmentedaqueles com algum grau de dependênciaou fragilidade, aumentando a oferta, a

universalização e a acessibilidade a dispositivosadequados de atenção e cuidado;

- a reinvenção de modos de viver no sentido deuma maior criatividade e inovação, estimulandoindivíduos e grupos sociais para que questionem ospadrões aceitos de normalidade e os mecanismosde estigma e discriminação, para que ampliem orol de possibilidades e a aceitação das diferençasexistenciais na vida social e cultural, exatamente nadireção contrária da adaptação e do ajustamento;

- a mudança dos serviços e políticas sociaisenvolvidas, bem como dos saberes científicos

e profissionais que incidem no campo e dospressupostos epistemológicos que os s ustentam;

- a ampliação e a defesa dos direitos civis,políticos e sociais dos usuários e principalmentedos indivíduos mais fragilizados, no sentido deseu empoderamento, autonomização, participaçãopolítica e social, e conquista de plena cidadania.

d) estas lutas por políticas e direitos sociaisdevem ser inseridas em um projeto históricomais amplo de emancipação social,econômica e política, por formas de sociedademais igualitárias, solidárias, democráticase participativas. Para isso se torna fundamentalo engajamento de todo este conjunto de ativistas,trabalhadores, usuários e familiares em movimentossociais e partidos que buscam estes objetivos, comocondição imprescindível para estabelecer uma

integração e universalização das lutas setoriais coma luta emancipatória mais global;

e) este compromisso ético-político de base  éque orienta a avaliação e inclusão das diferentesabordagens existentes, em uma perspectiva pluralista,mobilizando para a sistematização teórica e suapráxis o máximo possível de forças e atores

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sociais progressistas e engajados que lutamno campo. Dessa forma, cria-se um campo

de alianças , ou, em termos gramscianos, umbloco histórico   de atores sociais, políticos eacadêmicos, que vêm contribuindo para asvárias formas de práxis emancipatórias dirigidaspara um objeto de estudo e/ou intervenção.Esta identificação comum estimula que estes atorespossam reconhecer suas várias contribuições, possamcolaborar, se criticar e competir fraternalmente entresi,  colocando a prioridade e a centralidadeda práxis como principal critério de aferição,escolha e produção de conhecimento, no sentido

de construírem historicamente abordagens maiscomplexas e eficazes na transformação da realidadeexistente e na construção de novas formas maiscomprometidas de cuidado humano para todos;

f) no processo de construção desta metodologia edeste manual, buscamos ter a máxima aberturapara explicitar o mais claramente possível osdesafios e dilemas presentes na metodologia  para os participantes, facilitadores dos grupos eprofissionais. Isso visa esclarecer os benefícios e oseventuais riscos de uma metodologia em construção,propiciar as melhores condições de conquista domáximo de autonomia na gestão de seus projetoslocais e para que possam participar do processocoletivo de construção e avaliação da própriametodologia. Por exemplo, considero que o principaldesafio da presente proposta de metodologia estána busca de um equilíbrio sutil entre duas exigências

polares, estruturais e contraditórias que perpassamtodos os tipos de dispositivo grupal de ajuda mútuano campo da saúde mental46:

46 Para o leitor interessado na discussão maispormenorizada deste tema, sugiro a leitura do textoespecífico de aprofundamento sobre processo grupal,dentro deste manual.

- de um lado, está o de criar um dispositivo com altonível de proteção e segurança para os participantes.Como exemplo deste encaminhamento, o dispositivoproposto deve prover mecanismos claros decontrole da agressividade, dos conflitos e do caos,o que constitui um fantasma concreto no caso degrupos facilitados por usuários do campo da saúdemental. Uma das formas de concretizar isso estáno dispositivo de coordenação dos grupos, queexige sempre dois facilitadores, sendo um delesresponsável pela ordem da reunião;

- de outro, está a exigência de que o dispositivotambém permita a flexibilidade necessária para seproduzir diferentes tipos de reunião e para não gerarpadronização identitária e/ou normatização social,portanto criando espaço para que os participantespossam crescer e avançar na sua experiência degestão grupal e em seu processo de individuação.

g) a partir dos valores e estratégias envolvidas naabordagem de empoderamento  (VASCONCELOS,2003), adotada como princípio básico da presentemetodologia, buscamos o desenvolvimentodo máximo possível de autonomização eempoderamento da gestão dos grupos nas mãosdos usuários e familiares, sem criar formas dedependência permanente em relação aosprofissionais e aos serviços de saúde mental .Por outro lado, esta autonomização crescente dosusuários e familiares não implica reprivatização

do cuidado, e daí a preocupação em criarmecanismos concretos para que o trabalho eventuale inicialmente voluntário de facilitadores de grupoem associações de usuários e familiares não sejaapropriado por serviços e programas públicosde saúde e saúde mental, com vistas a reduçãode custos dos serviços e projetos de atençãopsicossocial. Portanto, a metodologia proposta

aponta necessariamente para que seja adotada eexercida por lideranças reconhecidas de usuários efamiliares, a partir de uma seleção criteriosa, comouma atividade remunerada, que, embora noinício possa utilizar mecanismos provisórioscomo bolsa de trabalho, deve se encaminharpara contratos formais com plenos direitostrabalhistas e quem sabe, no futuro, atémesmo na direção de uma carreira de servidorpúblico dentro do SUS. Um exemplo desteprocesso ocorreu no Brasil na atenção primária emsaúde, no caso dos Agentes Comunitários de Saúde(ACSs).

4) Princípios e aspectos ético-metodológicosdo processo de construção deste manual

A partir dos princípios ético-políticos listadosacima, temos agora a condição de alinhavar asprincipais diretrizes e estratégias metodológicasque orientaram a construção deste manual:

a)  Processo de produção de conhecimentocomplexo que assume maior nível de incertezae riscos:

Adotar o posicionamento ético-político de basesistematizado acima implica trabalhar comobjetos de estudo e intervenção, assumindo todaa sua complexidade e multidimensionalidade, emcolocar a práxis como componente de reinvençãopermanente das ações emancipatórias, de auscultadas forças sociais instituintes, e de forma orgânicaaos movimentos e projetos sociais populares. Estapostura implica fazer do processo de construçãode conhecimento uma atividade com “riscos”e incertezas muito maiores, em relaçãoao pensamento herdado. Para enfrentar estes

riscos, temos por um lado maiores exigênciasde rigor epistemológico e metodológico (VASCONCELOS, 2002), de organicidade permanentecom a pesquisa, com as práticas nas políticaspúblicas e com os movimentos sociais, e de análiseda implicação dos produtores deste conhecimento,

para constante checagem do saber produzido. Alémdisso, as próprias características do campo revelamum conhecimento de feitio mais militante, umacerta provisoriedade e uma exigência de renovaçãopermanente, sem a pretensão do caráter mais

definitivo reivindicado pelo conhecimento herdado.Além disso, estes projetos exigem um cronogramamais alongado, que permita a sedimentação dasexperiências e a avaliação das práticas, de sua

efetividade e implicações em um tempo mais longo.

b) A revisão bibliográfica como dispositivopermanente de explorar as várias dimensõesdo objeto de estudo e das experiênciassimilares:

Uma das principais formas de lidar com estadimensão complexa e interdisciplinar do estudo

e da intervenção está na permanente revisãobibliográfica, teórico-conceitual, históricae de experiências similares relevantes  nocampo, que apontem para os diversos olhares econtribuições possíveis para o objeto de estudo.

Assim, a revisão produz o mapeamento dos principaisindícios, de possíveis insights , correlações, relaçõesparadoxais etc., que exigirão aprofundamento

na discussão teórica, no processo investigativoe na avaliação e sistematização dos dispositivosde intervenção. Neste manual, particularmenteo capítulo de textos de aprofundamento teórico-conceitual busca cumprir este objetivo, trazendopara a análise contribuições de diferentes campos

(psicologia, psicologia analítica, teorias sociais epolíticas, análise institucional, educação etc.).

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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c) Desenvolvimento de uma base de sustentaçãointerteórica complexa e não linear:

Esta revisão permite não só construir elementos decontextualização e comparação, mas também forjaruma sustentação teórico-conceitual particular capazde sustentar o projeto em foco. Essa estratégia nãose dá de forma eclética ou aleatória , pois se exigeum conhecimento mínimo das diferentes perspectivasteóricas adotadas na estrutura analítica proposta. Odesenvolvimento de estrutura teórica interdisciplinare interteórica complexa e não linear passa por umadecodificação dos diferentes conceitos-chave

e uma comparação contextualizada que apontepara as diferenças teóricas e ético-políticas,contradições e críticas mútuas, como tambémpara sinergias, possíveis apropriações oufertilizações recíprocas (VASCONCELOS, 2002).Para isso, os projetos integrados de pesquisa sãofundamentais, pois vão explorando o objeto deestudo por várias perspectivas diferentes, tanto doponto de vista histórico como teórico-conceitual, eas publicações anteriores do Projeto Transversões, amaioria delas já indicadas aqui, apontam para estaperspectiva cumulativa de produção de conhecimentosobre o objeto.

d) Articulação de ativistas, pesquisadores eestudiosos dos campos envolvidos:

Do ponto de vista organizacional, a perspectivainterdisciplinar e interteórica indicada cima requerum mínimo de

articulação entre ativistas,pesquisadores e estudiosos das diversasabordagens e experiências similaresenvolvidas,  que contribuem para o debate e aanálise do fenômeno, a partir de sua vivência maissistemática de seus próprios campos particulares.

e) Experimentação independente e anecessidade de fomento estatal, com os seusdevidos cuidados:

to de vista político-institucional, processos deapropriação e adaptação deste tipo de projetos nocampo popular-democrático deveriam ser idealmentedesenvolvidos pelos próprios movimentos sociaispopulares e serviços locais, de forma independente.Entretanto, estes atores sociais contam com poucosrecursos para tal. Assim, um processo maissistemático de experimentação e avaliaçãorequer formas especiais de fomento, para a

própria implementação experimental dos projetose para a sua avaliação de forma o mais orgânicapossível, para que possam conquistar gradualmenteseu próprio reconhecimento, podendo então maistarde competir com as outras abordagens e osprojetos já legitimados e em oferta na sociedade enas políticas sociais já institucionalizadas. No casode fomento estatal, entretanto, é fundamentalgarantir que as modalidades de apoio e auxíliotenham palcos decisórios os mais legítimos,visíveis e democráticos possível, e que nãocomprometam de forma alguma a autonomiados projetos locais e dos grupos popularesque o implementam. Os editais públicos quefuncionam com recursos a fundo perdido, segarantidas estas condições, constituem uma dasformas de encaminhar isso.

f) Cuidados exigidos na transposição

transnacional de abordagens e experiênciasinternacionais:

A avaliação e a experimentação de teorias,abordagens e dispositivos de atenção psicossocialque tiveram origem e desenvolvimento em outrospaíses requerem um enorme cuidado para evitarimportações e transposições automáticas,que desconheçam as diferenças sociais,

econômicas, políticas e culturais envolvidasnestas práticas, não só entre diferentescontextos nacionais, mas também culturais,étnicos, de classe social e de perspectivaético-política das práticas (VASCONCELOS, 1989e 2005). No campo psicossocial isto é fundamental,ao se considerar que os fenômenos mentais sãoabordados de forma muito diferenciada entreclasses sociais e culturais, sendo as representaçõesdo “nervoso” um bom exemplo (DUARTE, 1986;FONSECA, 2008). Mais particularmente, aexperiência internacional dos grupos de ajuda esuporte mútuos é atravessada por este dilema,

na medida em que há uma clara diferenciaçãocultural entre a Europa latina e católica, com suacultura hierárquica, comunitária e valorizadorada dependência, e a cultura predominantementeprotestante, individualista e mais valorizadorada autonomia pessoal da Europa do Norte, o quedetermina as características mais autonomistas ecombativas do movimento de usuários nos paísesdesta região. Daí, a importância da permanentevigilância teórica e prática, no sentido de levar emconta as especificidades do contexto brasileiro depaís semiperiférico, com alto grau de espoliação,desemprego estrutural e desigualdade social,crise do Estado e das políticas sociais efetivas, eparticularmente com sua cultura predominantementehierárquica nas classes populares. Assim, aspropostas que estamos sistematizando aqui têminspiração em experiências bem-sucedidas emoutros países, outras em projetos mais isolados em

locais específicos do Brasil (VASCONCELOS, 2008b),e portanto requerem ser mais bem avaliadas,experimentadas e adaptadas para o contextobrasileiro como um todo e para assegurar a efetivaparticipação e empoderamento de usuários efamiliares.

No caso da presente metodologia de grupos deajuda e suporte mútuos, todos estes cuidados

foram fundamentais no processo de construção

exposto neste manual. Isso envolveu vários projetosde pesquisa e estudos prévios dentro do ProjetoTransversões, incluindo viagens internacionais paraconhecimento e avaliação de experiências similares,

o que gerou várias publicações, como já indicadono histórico acima. Após este processo, passamosà experimentação cuidadosa de alguns dosdispositivos grupais concretos utilizados em algunspaíses, com destaque para o movimento de usuários

dos Estados Unidos e da Inglaterra. Normalmente,estes dispositivos foram primeiramente avaliados,foram feitas as devidas adaptações, para só então

serem divulgados e experimentados nos nossosgrupos. Só mais tarde, após serem devidamente

verificados e aprovados na prática, é que passaram aser incluídos na metodologia exposta neste manual.

g) Implementação e avaliação integrada, pormeio de métodos de pesquisa interventiva equalitativa, com resultados convertidos emrevisões e acréscimos regulares ao manual:

Ao mesmo tempo em que a metodologia foi sendoimplementada em projetos-piloto, foi feito umenorme esforço de registro e avaliação regular esistemática das vivências dos grupos, na formade observação participante com diário decampo, entrevistas e conversas rápidas, ereuniões e seminários internos regulares daequipe do projeto para discussão e análise daexperiência. A opção por métodos de pesquisa

interventivos e qualitativos  é fundamentalnesta fase de sistematização e experimentaçãoda metodologia, em que diferentes tipos deorientações e dispositivos grupais são colocados àprova, com os desafios e problemas que emergemsendo devidamente examinados e avaliados à

medida que surgem, e com estabelecimento deestratégias alternativas de ação. Este tipo de

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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pesquisa interventiva e de corte qualitativo temuma tradição já bastante sedimentada no país, comvasta bibliografia já publicada em vários camposdisciplinares47. No futuro, já com uma metodologiade grupos mais consolidada e difundida no país,acreditamos que a inclusão de métodos avaliativosde cunho quantitativo, de forma integrada e comtriangulação de métodos (MINAYO et al., 2005),de ensaios clínicos convencionais (VASCONCELOS,1995; HULLEY et al., 2003; OLIVEIRA, 2006) e deestudos sistemáticos de caso (YIN, 2001) serãobem-vindos e necessários.

Os resultados da avaliação realizada ao longo nosvários anos de experimentação desta metodologiaforam formatados para serem incluídos como textoregular das diversas seções deste manual. Emoutras palavras, a equipe de pesquisa foi orientadano sentido de que os resultados da observaçãoparticipante, das entrevistas e conversas rápidas,bem como dos seminários internos, fossem redigidose convertidos em acréscimos e novos textos dopróprio manual, objetivo central do projeto nestemomento, colocando em segundo plano outrostipos de publicação, como artigos em periódicos oucapítulos de livros avulsos.

Enquanto o corpo do manual foi construído naforma de texto coletivo, a maioria absoluta dostextos de aprofundamento são individuais eassinados por cada um dos membros da equipe,

47 Para os interessados em se aprofundar nestetema, sugerimos o contato com as seguintes linhas dedesenvolvimento e suas referências: nas ciências sociais(SILVA, 1991; THIOLLENT, 1992 e 1997; DEMO, 2004;DIONNE, 2007); no campo da antropologia e educaçãopopular (MORIN, 2004; BRANDÃO e STECK, 2006); naanálise institucional (LOURAU, 1993; BARBIER, 2002);na assistência social e saúde mental com crianças eadolescentes (CASTRO e BESSET, 2008) e no própriocampo da avaliação de serviços de saúde mental(PINHEIRO et al., 2007; CAMPOS et al., 2008).

do Projeto Transversões ou de projetos aliados.Nestes, contudo, além de serem fruto de discussõescoletivas prévias, suas versões iniciais sãorepassadas previamente ao conjunto da equipe paraanálise, revisão e acréscimos.

h) Redação e divulgação de várias versõespreliminares do manual na forma de apostilae texto digital, para uso, testagem, validaçãoe saturação nas capacitações e nos grupos,antes da versão e publicação final:

A primeira versão integrada da cartilha e destemanual, divulgada em 2008, resumiu-se a cercade 30 páginas de formato A4, em espaço simples.Gradualmente, novos acréscimos e correçõesforam feitos no texto principal, mas tambéme particularmente pela redação e inclusãode novos textos de aprofundamento, gerandonovas versões do manual que foram colocadasà prova em nossos cursos de capacitação enas vivências de grupos. Alguns documentos-chave da metodologia, como, por exemplo, ocontrato de participação nos grupos, foram objeto deinúmeras discussões entre os participantes, e entreeles e a equipe de pesquisadores, com inúmerasversões escritas e divulgadas, até chegar à presenteversão. Trabalhamos, portanto, com o princípioda saturação, pelo qual se avalia o processo dematuração da metodologia, do texto e da pesquisapelo número decrescente de acréscimos e correçõesnecessárias, só permitindo sua publicação final

quando estas tendem a ficar residuais.Além disso, foi realizada uma divulgação massivapor meio digital, via e-mail, para ampliar oacesso ao manual e o universo de pessoas quepotencialmente poderiam contribuir para a avaliaçãodo material. Em todos os eventos em que o tema vemsendo discutido pela equipe, fazemos uma lista deendereços de e-mails das pessoas interessadas em

receber o manual no formato digital, e várias destaslistas continham mais de uma centena de c ontatos.Nestes eventos, encorajamos estes interessados aenviarem de volta comentários, críticas e sugestões.Embora o número destes comentários escritosnão tenha sido elevado, os que recebemos forambastante sugestivos e úteis.

i) Valorização máxima da contribuição dosusuários e familiares da saúde mental noprocesso de construção da metodologia edas publicações, de forma coerente com os

valores do empoderamento e como exemplodemonstrativo de sua efetividade:

Neste processo de construção da cartilha e do manual,foi dada uma enorme importância às intuições esugestões dadas pelos usuários e familiares naconstrução da metodologia e na redação deste manuale cartilha. Todos os participantes dos cursos e gruposreceberam as duas publicações e foram estimuladosa lê-las e a fazer sugestões de mudanças no texto eno processo de condução dos grupos. No dia a dia dosgrupos, seus aportes foram anotados sistematicamenteem nossos diários de campo, e serviram de base paraas constantes revisões e versões do texto, comoindicamos acima.

De forma similar, a escolha de Henrique Monterioda Silva como ilustrador das duas publicaçõessegue o mesmo princípio. Além da indubitávelcapacidade artística e expressiva intrínsecarevelada em seus desenhos, o fato de ser um usuario

e um membro ativo da TV Pinel busca demonstrarna prática que os usuários da saúde mental têmefetiva habilidade de participar profissionalmenteem projetos editoriais como este.

j) Estrutura e estilo de texto acessível aopúblico-alvo do projeto, com níveis crescentesde complexidade e aprofundamento histórico,teórico-conceitual e operativo:

Tendo em vista o público-alvo deste manual eos princípios ético-políticos fundamentais departicipação, democratização do conhecimento eempoderamento, foi dada uma enorme ênfase na

acessibilidade , através de uma estrutura e estilode texto o mais simples possível e adaptadoàs características cognitivas, culturais elinguísticas das pessoas com transtornomental e às classes populares. Entretanto,

isso é feito sem se descuidar do rigor necessáriopara a sistematização conceitual e operativa dametodologia. Daí, em primeiro lugar, a separaçãoentre a cartilha dos participantes, que parte de

conteúdos mais simples, operacionais, de interesseimediato e com um maior nível de pessoalidade noestilo, e o manual, voltado para facilitadoresde grupo e profissionais. Em segundo lugar, nomanual, colocamos como prioridade fundamental

uma estrutura sequencial das seções com níveiscrescentes de dificuldade, para que lideranças deusuários, familiares e profissionais, à medida de seumaior engajamento no projeto, possam gradualmenteexplorar cada vez mais o manual, com um tratamento

de maior complexidade, multidimensionalidadee detalhamento dos problemas e desafios. Emterceiro lugar, buscamos condensar as instruçõesoperativas para cada tipo de reunião de grupoem tabelas simples de apenas uma página, paraque os facilitadores das reuniões possam usar umareferência simples e esquemática na condução dosgrupos. De forma similar, temos como objetivo queo estilo de editoração e diagramação de todo o

texto para a publicação definitiva siga a mesmadiretriz, com uma escala decrescente derecursos didáticos e visuais, partindo da cartilha,onde tais recursos devem ser explorados ao máximo.

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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5) Considerações finais

Para nós, membros da equipe deste projeto, quevisamos construir projetos de atenção psicossocialque buscam auscultar ao máximo os interesses

históricos das classes populares, e que possamter a maior capacidade de difusão, aprendizageme gestão coletiva entre os interessados, seriaimpossível publicar este manual sem explicitar osvalores que orientaram e o “como” construímos esta

metodologia e este manual. Além disso, faz partede nosso arsenal teórico, neste caso inspirado no

movimento institucionalista (BAREMBLITT, 1992;VASCONCELOS, 2008a) e em nossos fundamentosepistemológicos (VASCONCELOS, 2002), explicitar

sempre os atravessamentos e a nossa implicaçãocom o conhecimento que produzimos. Assim,devemos colocá-los também em análise e discussão,no momento em que apresentamos os resultados

objetivos de nosso trabalho.

Da mesma forma, consideramos que a metodologiaque estamos propondo neste manual “não tem

dono”, ou, melhor, é fruto de um processo coletivocujos principais autores devem ser os ativistas domovimento antimanicomial, particularmente aslideranças de usuários e familiares, alvo principaldeste projeto. Assim, é fundamental que todos os

elementos necessários para a apropriação destametodologia devam ser claramente explicitados,para que ela possa ser modificada, transformadae aperfeiçoada livremente pelos diferentes atores

sociais do campo. Isso significa também que nãotemos receio de receber críticas construtivase mesmo contestações diretas, e neste casome lembro dos poderosos adversários do atualprocesso de reforma psiquiátrica em curso no país,

pois acreditamos que qualquer movimento socialcom pretensões emancipatórias deve ter em suasproduções este caráter público e aberto, acreditando

no ativismo e na gestão coletiva que levará à frente

seus projetos.

Este pequeno texto visou tais objetivos, e temos o

maior interesse em receber críticas, comentáriose sugestões, e para isso pedimos que sejam

encaminhados aos contatos do Projeto Transversões.

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105104 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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Site na internet citado

www.ifb.org.br

Texto 3

QUADRO ATUAL DA ORGANIZAÇÃOE AGENDA POLÍTICA DOS USUÁRIOSE FAMILIARES EM SAÚDE MENTALNO BRASIL

Eduardo Mourão VasconcelosJeferson Rodrigues48

1) Apresentação

O presente texto49 se integra ao esforço e às inúmerasiniciativas de realização da IV Conferência Nacional

48 Enfermeiro, doutorando pelo PEN/UFSC, militantedo movimento antimanicomial no Brasil e membro daComissão Organizadora da IV Conferência Nacional deSaúde Mental – Intersetorial representante da ABEn(Associação Brasileira de Enfermagem).

49 O presente texto foi publicado originalmente naseguinte obra: VASCONCELOS, E. M. (org.). Desafiospolíticos da reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo:Hucitec, 2010.

de Saúde Mental – Intersetorial, em curso nopaís, em suas etapas municipal/regional, estadual

e nacional, sendo que esta última está marcada

para os últimos dias de junho de 2010. No temáriogeral da conferência, o tópico da organização e

mobilização dos usuários e familiares constitui umdos subeixos do Eixo Temático 3 (Direitos Humanos

e Cidadania como Desafio Ético e Intersetorial), e,

assim, vem sendo objeto de discussões nos váriosgrupos de trabalho em conferências em todo o país.

Assim, este texto visa sistematizar, na medida do

acesso possível, as principais ideias e propostas

sobre o assunto discutidas no âmbito dos doisramos do movimento antimanicomial brasileiro

(Movimento Nacional de Luta Antimanicomial

– MNLA e Rede Nacional Internúcleos da LutaAntimanicomial – RENILA), bem como nas esparsas

referências bibliográficas acadêmicas, citadas nodecorrer do trabalho50, e na iniciativa governamental

neste campo. Este trabalho constitui um dos textosde apoio escritos a convite da ComissãoOrganizadora, para subsidiar as etapas finaisdeste processo, e portanto, foi montado dentro deum cronograma apertado. Os relatórios de cada uma

das fases da conferência em todo o país certamente

constituirão um material muito rico a este respeito,

50 As seguintes fontes documentais foram utilizadasaqui: as propostas aprovadas em encontros nacionais doMNLA (2001, 2005 e 2009a), RENILA (2004, 2007), emEncontros Nacionais de Usuários e Familiares do MNLA(MNLA, 2003 e 2009b) e os relatórios de duas reuniões doGrupo de Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009a e 2009b). É importanteinformar que os dois autores deste texto participamdo MNLA, mas há uma confluência significativa entreas principais reivindicações mais gerais para a políticade saúde mental nos dois movimentos. Contudo, asdiferenças se acentuam particularmente nas análisessobre o movimento (item 2 a seguir) e nas propostas defortalecimento da organização dos usuários e familiaresna base, tema da última seção deste curto ensaio.

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

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a ser devidamente sistematizado no futuro, mas noatual momento, em meados de maio, seu acesso éainda pontual ou impossível, e, naturalmente, nãoforam utilizados para a montagem do presente texto.

2) Análise sucinta do quadro atual daorganização de usuários e familiares no Brasilhoje

Há uma considerável escassez de pesquisas maisabrangentes a respeito da organização dos usuáriose familiares em saúde mental no Brasil. Certamente,temos algumas dissertações, teses e artigoscientíficos acerca do movimento antimanicomialcomo um todo, estudos sobre projetos e iniciativaslocais de usuários e familiares, trabalhos de coletade depoimentos e narrativas pessoais de lideranças,ou ainda estudos de políticas municipais nas quaishá inserção de algumas destas organizações.Contudo, uma tentativa recente de investigar etraçar o perfil, a tipologia das formas de organizaçãodos usuários e familiares no país e sua comparaçãointernacional (VASCONCELOS, 2008), mostrou nãosó a inexistência de estudos abrangentes, comotambém a enorme dificuldade de coleta de dadosem associações e projetos de caráter muito local,e cuja estrutura organizativa se mostrou muitoinformal, frágil ou volátil.

Entre os vários achados desta pesquisa, realizadaentre 2004 e 2007, destacou-se o seguinte perfilmais comum: associação mista (usuários,familiares, e técnicos), fundada depois de 1992,

criada a partir de e ligada a um CAPS, fortementedependentes dele e de seus profissionais, comum funcionamento central baseado em plantãoou atendimento regular por técnico do CAPS emembro da associação, muitas vezes um militantedo movimento antimanicomial ou de reformapsiquiátrica, com uma reunião quinzenal oumensal, cobrando uma contribuição financeira

quase simbólica (2 a 5 reais), apoiando a reforma

psiquiátrica, expressando sua missão em termosda defesa dos direitos do usuário e familiar, edesenvolvendo pelo menos alguma oficina, projetoou atividade de trabalho e geração de renda .

Há vários outros tipos de associações, e em algunscasos com uma estrutura organizativa e consciênciapolítica mais avançada, mas o perfil descrito acima

corresponde à maioria absoluta das associaçõesexistentes. Além disso, é preciso lembrar tambémque o número de CAPS no país que possuem umaassociação de usuários e familiares constitui uma

fração muito pequena do total geral destes serviços.Hoje, em maio de 2010, temos mais de 1.500 CAPSno Brasil, e o cadastro de associações criado pelaCoordenação Nacional de Saúde Mental em 2009recebeu apenas cerca de 120 inscrições.

Em tese, este perfil se coaduna com países cujacultura é ainda hegemonicamente patrimonialistae hierárquica, ou seja, que estimula a dependência

econômica, política e até mesmo pessoal àslideranças e autoridades sociais. Há que considerartambém que a maioria absoluta dos usuários dosserviços de atenção psicossocial é oriunda dossetores mais empobrecidos, com menor nível de

escolaridade formal, com pouco acesso a bense serviços culturais, e com poucos recursos parapagar até mesmo o transporte público para apresença regular nos serviços ou em atividadesorganizativas. Assim, no campo da saúde mental

brasileiro, as iniciativas são geralmente induzidas

por profissionais a partir das discussões e da culturapolítica gerada dentro dos movimentos de reformapsiquiátrica e antimanicomial.

Os resultados da pesquisa permitem então c oncluirque atualmente um dos problemas principais dasassociações de usuários e familiares e do próprio

movimento antimanicomial está em suas basesde sustentação econômica, organizacional

e política. Uma fonte clássica e eventual derecursos para as atividades são as coordenaçõesde saúde mental  municipais, estaduais e nacionalcomprometidas com a reforma. Entretanto, comosabemos, para qualquer movimento social popular,a dependência contínua e regular em relaçãoaos governos e ao Estado é consequentementeproblemática. Outra estratégia tem sido utilizar asorganizações corporativas dos profissionais, o quepode até mesmo constituir um avanço político paraas suas respectivas categorias. Contudo, do pontode vista do movimento, pode também apresentarvários riscos, particularmente se for centralizada

em apenas poucas categorias profissionais.Isso gera dependência em relação aos recursosde seus aparelhos institucionais, centralizaçãopolítica nos principais detentores de cargos elideranças, descolamento das bases do movimentoe continuidade da concentração do poder nas mãosdos profissionais.

Neste contexto, podemos ter casos de liderançasextremamente capazes e que se politizaram noprocesso, mas a tendência é de se autonomizaremdo cotidiano das associações de usuários efamiliares, passando à militância social e políticamais ampla nos conselhos de políticas sociais ede saúde, ou na própria militância antimanicomial.Entretanto, estas lideranças não têm mais tempo,recursos ou paciência de acompanhar o processona base, deixando a associação com os padrõesorganizacionais de fragilidade indicados acima.Além disso, o engajamento e a participação política

nas esferas institucionais apresentam enormesdesafios em termos de conflito, competição, ritmode militância e cooptação política, em certasfases incompatíveis com os limites existenciaise psíquicos de usuários e familiares da saúdemental. Por isso, mesmo para estas liderançasmais avançadas, é necessário pensar espaços deacolhimento e elaboração na retaguarda, junto a

seus pares, para que possam se recuperar e retomarmais tarde a militância política. Assim, ainda queas atividades públicas regulares em torno do 18 demaio, ou os eventuais momentos de mobilizaçãorazoavelmente fortes, possam dar uma primeiraimpressão de força, a fragilidade organizacionalnas bases do movimento de usuários e familiaresse mantém.

É fundamental lembrar que esta fragilidadetambém aumenta o risco de sua apropriação poratores políticos contrários a nossa estratégia dedesinstitucionalização. Um elemento preocupante

do quadro político atual no campo da saúdemental tem sido o movimento de reorganização dapsiquiatria biomédica, com campanha já abertacontra a reforma psiquiátrica na grande imprensa,no Congresso (Câmara Federal e Senado) e noMinistério Público. Já tivemos no passado oexemplo de uma associação de familiares dealcance nacional (AFDM) que foi financiada pelaFederação de Hospitais Psiquiátricos, e que fezaberta campanha contra nossas propostas. Aperspectiva dos familiares é bastante sensívela este tipo de apropriação, e a fragilidadeorganizacional e financeira das associaçõesaumenta ainda mais este risco.

A nosso ver, reconhecer a fragilidade daorganização e a ambiguidade política dosegmento dos familiares no contexto da reformapsiquiátrica não implica ignorá-los como atorespolíticos ou desconhecer suas necessidadesespecíficas. Processos de reforma que não fazemeste reconhecimento e não proveem o devidosuporte aos familiares podem gerar privatizaçãodo cuidado e da desassistência, em um contextode limitações cada vez maiores para sua produçãono âmbito da família, dada a sua fragmentaçãoatual, a participação das mulheres no mercado detrabalho e a ainda forte resistência dos homensem também se responsabilizar por ele, processos

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estes que têm pouca visibilidade social. Em outraspalavras, o tema do cuidado na família está

intrinsecamente ligado às lutas femininas, contra

as formas mais sutis de opressão de gênero!

Assim, sem a devida atenção aos familiares narede de saúde mental, estes ficam cada vez mais

disponíveis para serem capturados por posturas e

forças políticas contrárias à reforma psiquiátrica

(ROSA, 2009).

E, finalmente, também preocupa a atuação da

indústria farmacêutica. Um estudo da ONG

norte-americana Essential Action, dedicada à

saúde pública, resenhado pela Folha de S. Paulo(18/5/2008), indica que até então pelo menos

nove entidades brasileiras de defesa dos direitos

de usuários da saúde (hemofílicos, diabéticos eusuários com câncer e hepatite) são financiadas

por fabricantes de remédios. As entidades

passam então a defender os interesses do

setor farmacêutico, realizando campanhas pelaproteção de patentes de remédios ou contra os

genéricos, pela compra estatal de remédios caros

ou estimulando usuários a entrar na justiça para

adquirir medicamentos novos e muito caros.

É importante relembrar que esta análise não é

consensual entre as duas alas do movimentoantimanicomial, e tem constituído uma

preocupação maior entre as lideranças do MNLA.

Estas têm enfatizado que, neste contexto, torna-

se fundamental para a continuidade da luta pelareforma psiquiátrica tentar investir diretamente

no fortalecimento da organização dos usuários efamiliares pela base no país. Na seção seguinte,

passaremos ao exame das reivindicações epropostas pelo movimento como um todo, tanto

para a política de saúde mental em geral como

para o seu fortalecimento organizacional em

suas bases, para poder enfrentar a fragilidadeidentificada acima.

3) As principais reivindicações e propostas domovimento de usuários e familiares no Brasilrecente

3.1) Reivindicações gerais em relação à política desaúde mental mais ampla no país:

O movimento de usuários e familiares e as duasprincipais tendências do movimento antimanicomial(MNLA e RENILA) vêm regularmente produzindodocumentos e encaminhando reivindicações àsagências pelas políticas de saúde mental nas trêsesferas de governo. No ano de 2009, se destacaramtrês iniciativas principais neste campo:

- a Marcha dos Usuários, convocada originalmentepela RENILA, que aconteceu em Brasília em setembrode 2009, com participação aproximada de mais de2.300 pessoas de todo o país, formalizando junto adiferentes órgãos do governo uma pauta importantede reivindicações e propostas, documentada empublicação recente (CFP e RENILA, 2010). Este foisem dúvida alguma o principal evento político noano de 2009 neste campo, levando à conquista finalda realização da IV CNSM-I;

- a realização do VII Encontro Nacional de Usuáriose Familiares do MNLA, que aconteceu em SãoBernardo do Campo, em 2009, que produziu umrelatório final (MNLA, 2009a);

- a realização do IX Encontro do Movimento Nacional

da Luta Antimanicomial, também em São Bernardo,em 2009, que também produziu um relatório final(MNLA, 2009b).

Embora o documento da Marcha dos Usuáriosconstitua a pauta mais abrangente e sistemáticaentre as três fontes, podemos dizer que há umaforte confluência entre os dois movimentos em

relação ao perfil das propostas mais gerais para apolítica de saúde mental no país. Os principais eixosde reivindicações são:

- efetivação imediata da rede substitutiva deatenção em saúde mental : aqui, a ênfase principalestá na ampliação do número de CAPS III e CAPSIII ad, pela sua capacidade de lidar com crises eurgências, mas também são indicados os serviçosresidenciais e demais serviços de saúde mental;

- ampliação dos projetos de trabalho e renda ,cursos profissionalizantes; iniciativas deempreendedorismo, cooperativismo e economia

solidária; bolsa-trabalho; trabalho protegido etc.;- ampliação do Programa de Volta para Casa , comrevisão dos mecanismos de inclusão, dos valores dabolsa e de suas formas de financiamento;

- regulamentação e financiamento próprio para osCentros de Convivência ;

- não financiamento de ECT e outras intervençõesinvasivas  pelo SUS;

- garantia de provisão regular e adequada demedicação psiquiátrica  pelo SUS a todos os usuáriosde serviços e pessoas c om transtorno mental;

- transporte coletivo gratuito  para as pessoas comtranstorno mental;

- criação de comissões de saúde mental em todosos conselhos estaduais e municipais de saúde ,conforme a Lei 8.142, que garante o controle socialpela participação da sociedade civil;

- ação conjunta da Secretaria Especial de DireitosHumanos e Poder Judiciário para revisão dasinterdições judiciais de pessoas com transtornomental ;

- abertura de projetos e serviços gratuitos de defesados direitos dos usuários e familiares , com equipesinterdisciplinares e particularmente com assistênciajurídica especializada no campo da saúde mental;

- aceleração dos processos de desinstitucionalizaçãode hospitais de longa permanência , com medidasimediatas para coibir ações degradantes e maustratos;

- promoção de eventos e ações para garantia dosdireitos das pessoas com transtorno mental nosistema prisional , visando também a revisão de todaa legislação penal neste campo;

- implantação de política conjunta com o Ministérioda Cultura para iniciativas em arte e cultura para aspessoas com transtorno mental , e particularmentecom a participação das associações de usuários e

familiares;

- revisão dos critérios e garantia do acesso aoBenefício de Prestação Continuada (BPC) , sem aexigência de curatela.

A discussão destas reivindicações e propostasdentro do movimento de usuários e familiarescumpre um papel importante de crescimento daconsciência política, de preparar o movimentopara o exercício do controle social nos conselhos econferências, bem como de mobilizar para as lutasconcretas por sua conquista perante a sociedade eas várias instâncias do aparelho de Estado.

3.2) Reivindicações e propostas para oempoderamento e fortalecimento organizacional domovimento de usuários e familiares em s uas bases

Tendo em vista o enfrentamento do quadro defragilidade da organização de usuários e familiaresno Brasil, descrito na seção 2, há um conjunto depropostas e reivindicações que vem sendo levantadonos últimos anos. Como vimos anteriormente,neste campo não há consenso entre as duas alasdo movimento antimanicomial. Este foco particular

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sobre estratégias adequadas de empoderamentoe fortalecimento da organização nas bases domovimento de usuários e familiares constitui umapreocupação mais específica do MNLA51, pelomenos ao se considerarem os documentos e aliteratura a que tivemos acesso. Neste campo, asprincipais propostas são:

- ampliação e fortalecimento do Cadastro Nacionalde Associações de Usuários e Familiares emSaúde Mental , de acesso público, para facilitar ointercâmbio dentro do movimento, e como porta

de entrada para uma política de apoio sistemáticoa estas associações, por todos os atores do campoda saúde mental, incluindo as propostas indicadasa seguir;

- programa de inclusão digital para usuários efamiliares nos CAPS e para suas associações , comprovisão de um computador completo em cadaCAPS com acesso gratuito à internet e a cursos deinformática, e estímulo ao uso de articulações viateleconferências, grupos de discussão, e-mails etc.;

- programa de estímulo a pesquisas   sobre arealidade do movimento de usuários e familiares;

- criação de fundos públicos para financiamento depequenos projetos autônomos de associações deusuários e familiares , com seleção pública para osprojetos mais consistentes, e premiação periódicapara os melhores projetos executados;

- política ativa de comunicação regular, de

divulgação e apoio estratégico às ações e aos

51 É importante lembrar que, como membros do MNLA,não há aqui qualquer pretensão de exclusividade porparte de nosso movimento em relação a estas propostas.Pelo contrário, gostaríamos muito de que as diversas alasdo movimento antimanicomial e de reforma psiquiátricaconhecessem melhor, discutissem e desenvolvesseminiciativas nesta perspectiva ou similares.

projetos desenvolvidos pelas associações , portodos os atores do campo, bem como de estímulo àcriação de novas associações:

- criação de equipes específicas para produção dematerial de educação popular   (cartilhas, vídeos,filmes, revistas etc.) no campo da saúde mental;

- implantação de grupos de ajuda e suporte mútuos  facilitados por lideranças de usuários em processosmais avançados de recuperação e de familiares commais experiência, de forma separada para ajudamútua e conjunta no suporte mútuo (VASCONCELOSet al., 2010), com esquemas de trabalho remunerado

de “oficineiro em saúde mental” , com capacitação esupervisão específica, para atuar principalmente nacomunidade e na rede de atenção básica em saúde;

- experimentação e implantação de dispositivosvariados de apoio a familiares na rede , de formaorgânica com as associações de usuários efamiliares;

- experimentação e difusão de metodologias degestão autônoma da medicação psiquiátrica parausuários , com base em experiência bem-sucedidarealizada no Canadá, no sentido de os capacitarempara identificar melhor os seus efeitos desejáveise indesejáveis, para discuti-los nas consultas comos psiquiatras, melhorando o monitoramento damedicação e seus efeitos colaterais;

- promoção de cursos de capacitação de conselheirosem saúde e saúde mental , incluindo itens deeducação e formação política ;

- criação e implementação gradual na rede de saúdemental do “Plano de Crise ”, pelo qual o usuárioestabelece as diretrizes e medidas necessárias parao seu cuidado em períodos de crise aguda, conformea experiência internacional já consolidada em paísescomo Holanda, Inglaterra, Estados Unidos etc.;

- abertura de ouvidorias   em saúde mental , nasáreas programáticas e serviços mais complexos,

para escuta de demandas e defesa dos direitosde usuários e familiares, com encaminhamentosmonitorados pelas associações de usuários efamiliares, pelas assembleias de usuários dentro

dos serviços de atenção psicossocial e pelosconselhos distritais de saúde.

Propostas inovadoras como estas não sãoreivindicações que se fazem ao Estado para que

sejam implementadas automaticamente por ele,como a maioria daquelas l istadas na seção anterior,que têm formatos já razoavelmente consolidados no

país, a partir das primeiras experiências iniciadas nadécada de 1980. Ao contrário, várias das propostasacima têm inspiração em projetos bem-sucedidosem outros países, outras nascem de projetos maisisolados em locais específicos do país, e requeremser mais bem conhecidas, experimentadas e

adaptadas para o contexto brasileiro como um todo,com formas de fomento e avaliação orgânicas aosprojetos-piloto. Um bom exemplo de uma área dasaúde coletiva que se desenvolve desta forma noBrasil é a da Educação Popular e Saúde  (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2007; VASCONCELOS, Eymard M., 2009).Além disso, a história da organização popular noBrasil e nos países periféricos mostra que entre osfatores primordiais para que os movimentos sociaisde base se mantenham ativos estão o intercâmbio

nacional e internacional, bem como o fomentoefetivo à experimentação para projetos inovadoresem todo o país, com forte participação popular.

Assim, as propostas indicadas acima precisam sermais bem conhecidas, financiadas e experimentadasem projetos-piloto, avaliadas e legitimadas, paragarantir as estratégias mais adequadas à realidade

brasileira, e para assegurar a efetiva participação,empoderamento e autonomização de usuários efamiliares. À medida que forem sendo testados,poderão ser difundidos com mais segurança, em

decisões formais na esfera do controle social e dagestão do programas de saúde mental. Esta lógicalevou à reivindicação por parte do MNLA de umgrupo de trabalho junto ao Ministério da Saúde em2008/2009, e que agora acreditamos ser necessáriogarantir a sua institucionalidade, na seguinteproposta adicional:

- oficialização do Grupo de Trabalho de Demandasde Usuários e Familiares, ligado à CoordenaçãoNacional de Saúde Mental do Ministério daSaúde , mas com representação plural de todas as

tendências do movimento de usuários e familiares eda CISM (Comissão Intersetorial de Saúde Mental)do Conselho Nacional de Saúde, como uma instânciade debate e amadurecimento das propostas listadasacima, para mais tarde poderem ser encaminhadascom mais segurança ao controle social e àscoordenações executivas da área nas três esferasde governo, como política para todo o país.

3.3) Outras reivindicações e propostas a partir deespaços específicos:

- A partir dos CAPS ou de serviços de saúde e/ouassistência social : que a concepção de clínica sejaeminentemente política e psicossocial; que os CAPStenham assembleias gerais e que seja estimulada aparticipação de usuários, familiares e comunidadedemocraticamente; oficinas, cursos e grupos de

formação política; estímulo à participação eminstância de controle social intersetorial na cidade;encontros entre usuários e familiares das redesterritoriais.

- A partir das associações : clareza de que estaação coletiva potencializa e organiza a soma dasações individuais no sentido “juntos podemosmais”; parcerias intersetoriais para criar estatuto

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da entidade e prestação de contas; articulação comOAB, Defensorias Públicas e serviços universitáriosde escritório- modelo montados por faculdades dedireito para ampliar o entendimento e a montagemde serviços de defesa de direitos sensíveis àsparticularidade da saúde mental; treinamento paraelaborar e administrar projetos que possibilitemrenda; contribuição para transformação do estigma edo preconceito individual e coletivo; formação políticae atualizações em encontros para a participação sociale militância política e social ampla.

- A partir dos núcleos e movimentos sociais :

qualificação dos integrantes dos movimentos cominvestimentos em lideranças críticas, reflexivas epropositivas e que consigam organizar e estabelecerrelações com sua base; incentivo a diferentes formasorganizativas novas e autônomas para o movimentode luta antimanicomial; formação/educação política;planejamento e agendas de lutas com pautasprioritárias conforme o momento histórico, políticoe social; diálogo mútuo entre os movimentos sociaisde luta antimanicomial para estabelecer estratégiasde participação e representação em relação aoEstado e à sociedade; ampliar a participação emfóruns nacionais e internacionais de movimentossociais, e aproximações com movimentos sociaismais experientes; seminários sobre financiamentopara movimentos sociais; tornar a comunicaçãointerna e externa do movimento mais ampla eacessível e com páginas de internet; instâncias paradecisões políticas emergenciais que asseguremrepresentatividade.

4) Considerações finais

Esperamos que este breve texto sirva de subsídioefetivo para a compreensão dos desafios atuaisda organização de usuários e familiares em saúdemental no Brasil e para os debates da IV CNSM-I.

Este campo é amplo, cheios de possibilidades,com linhas de ação e agendas diferenciadas paratodas as perspectivas de luta e movimentos sociaisdo campo da reforma psiquiátrica. Ações maismilitantes, de luta e de mobilização, complementam-se e se integram com o fortalecimento dasorganizações pela base e atuantes no cotidiano darede, nos curto, médio e longo prazos, elevando opatamar de participação para novas mobilizaçõesno futuro, e vice-versa. Em certas ocasiões,alguns atores do campo expressaram o receiode que o desenvolvimento de uma destas linhaspudesse ser incompatível ou competir com aoutra. Em outros momentos, outros companheirosmostraram reservas em relação a esta perspectivade empoderamento e organização pela base, comose ela pudesse competir com as atribuições dosprofissionais e gestores, principais responsáveispela assistência em saúde mental.

Nossa expectativa é de que este texto sirva paraesclarecer e subsidiar o debate destas e outrasquestões adicionais, mostrando a importânciade fomentar a organização e a luta dos usuáriose familiares. A nossa história recente mostra queem conjunturas desfavoráveis para a expansão daspolíticas sociais universais, em que profissionaise gestores apresentam mais limites para aação política, a organização popular pela base,combinada com momentos de grandes mobilizaçõese lutas, constitui o principal vetor para garantir oavanço da reforma psiquiátrica com um todo. Alémdisso, há uma perspectiva ético-política de base,

que identifica nos atores sociais mais diretamenteoprimidos os principais sujeitos políticos no processode superação mais radical das diferentes formas deopressão. Estes postulados, a nosso ver, constituema razão de ser do movimento antimanicomial, desdea sua fundação, em 1987. Quem acredita nestaperspectiva, que assuma este debate como bandeirae instrumento de luta.

Referências

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Ministério da Saúde. Relatório da I Reunião do Grupode Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares .Brasília: Coordenação Nacional de Saúde Mental,

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MNLA. Relatório Final  do VII Encontro Nacional deUsuários e Familiares do Movimento Nacional daLuta Antimanicomial . Rio de Janeiro, 2003.

MNLA. Relatório Final do VI Encontro Nacional doMovimento da Luta Antimanicomial . São Paulo,2005.

MNLA. Relatório Final do VII Encontro Nacional doMovimento da Luta Antimanicomial . São Bernardodo Campo, 2009a.

MNLA. Relatório Final   do IX Encontro Nacionalde Usuários e Familiares do Movimento Nacionalda Luta Antimanicomial . São Bernardo do Campo,2009b. 

RENILA. Relatório Final do Encontro Nacional daRede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial .Fortaleza, 2004.

RENILA. Relatório Final do Encontro Nacional daRede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial .Goiânia, 2007.

ROSA, L. A família como usuário de serviços e comosujeito político no processo de reforma psiquiátrica.In: VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,vol. III: perspectivas para o serviço social. São Paulo:Hucitec, 2009.

VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,vol. II: reforma psiquiátrica e saúde mental na óticada cultura e das lutas populares. São Paulo: Hucitec,2008.

VASCONCELOS, E. M. et al. Manual de ajuda e suportemútuos em saúde mental . Rio de Janeiro: ProjetoTransversões, ESS-UFRJ, 2010. Disponível a pedidospelo e-mail [email protected].

VASCONCELOS, Eymard M. Para além do controlesocial: a insistência dos movimentos sociais eminvestir na redefinição das práticas em saúde. In:FLEURY, S; LOBATO, L. V. C. (org.). Participação,democracia e saúde . Rio de Janeiro: CEBES, 2009.

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Texto 4

PARA ALÉM DO CONTROLE SOCIAL:A INSISTÊNCIA DOS MOVIMENTOSSOCIAIS EM INVESTIR NAREDEFINIÇÃO DAS PRÁTICAS DESAÚDE52 Eymard Mourão Vasconcelos53 

O debate sobre a participação popular na saúde,que vem ocorrendo amplamente em congressos,reuniões de serviço e publicações do campo dasaúde coletiva, tem estado centrado em suadimensão de reorientação do planejamento e dagestão das políticas de saúde. A ênfase principal

52 O presente texto foi publicado originalmente em:Sonia Fleury e Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato(org.). Participação, Democracia e Saúde. Rio de Janeiro,CEBES, 2009, e sua publicação neste manual foidevidamente autorizada pelo autor e pelos portadores deseus direitos autorais.

53 Professor do Departamento de Promoção da Saúde e doPrograma de Pós-Graduação em Educação da UniversidadeFederal da Paraíba (UFPB), e uma das principais liderançasdo movimento de educação popular e/em saúde no Brasil.

tem sido as questões relativas ao fortalecimentoe ao papel dos conselhos e conferências de saúde,bem como às lutas sociais para ampliação dosrecursos disponíveis. A participação da populaçãoem ações concretas de atenção à saúde temsido discutida principalmente na perspectiva demobilização e apoio para sua implementaçãoampliada nas comunidades nos moldes previamenteplanejados pelos profissionais e gestores. Apesar deestas dimensões serem muito importantes, acreditoestar sendo pouco valorizada a importância daparticipação popular na reorientação das práticascotidianas de atenção à saúde. Este texto buscará

refletir essencialmente sobre a importância políticae epistemológica desta dimensão da participaçãopopular e as formas como ela vem ocorrendo noBrasil, procurando ressaltar as suas possibilidadespara a criação de um sistema de atenção à saúde maisintegral e eficaz, menos subordinado aos interesseseconômicos e corporativos das empresas e gruposprofissionais do setor saúde e mais adequado àscaracterísticas e aos interesses da população.Estas iniciativas ampliam a solidariedade, aamorosidade e a autonomia das pessoas na vidasocial e no enfrentamento dos problemas de saúde.Procurará mostrar que, apesar de pouco ressaltadasnas discussões no campo da saúde coletiva, asiniciativas populares de construção e redefiniçãode práticas de saúde continuam muito presentes nocotidiano da vida comunitária e apontam para umadimensão de seus interesses que vem sendo poucodiscutida.

A participação da população e de seus gruposorganizados na gestão dos serviços de saúde,principalmente através dos conselhos e c onferênciasde saúde, representa um grande avanço no processode democratização da sociedade brasileira, ajudandoa pensar os caminhos de superação da democraciarepresentativa, conquista ainda recente na AméricaLatina. A sociedade não aceita mais apenas eleger

seus representantes no governo para geriremas políticas públicas durante o período de seusmandatos. No processo de gestão do Estado, ela j ánão aceita ser apenas representada pelas liderançaspolíticas eleitas; quer continuar influenciando acriação e a orientação de várias iniciativas públicas.Os conselhos de saúde representam um grandeavanço neste sentido. O setor saúde foi pioneironeste processo no Brasil, servindo de referênciapara outros setores das políticas sociais. Emnenhum destes outros setores se atingiu os níveistão amplos de mobilização e organização obtidospelos conselhos de saúde. Muito ainda precisa ser

avançado para que estes conselhos possam cumprirsuas possibilidades e as expectativas da população.Mas este não é o tema deste texto.

Apesar de tantos avanços neste campo, tem sidomuito comum encontrar um forte sentimento deincômodo e insatisfação entre muitos trabalhadoressociais e lideranças populares mais envolvidos coma construção e a ampliação da participação popularno setor saúde. Este sentimento tem se manifestadomuito nos espaços de debate do movimento deeducadores populares do setor saúde, aglutinadoprincipalmente pela Rede de Educação Popular eSaúde54, e está correlacionado à percepção de que osdiferentes conselhos e das diferentes conferênciasde saúde têm possibilitado pouco espaço paramanifestação de dimensões importantes da criaçãoprópria do mundo popular no enfrentamento de seusproblemas de saúde. Percebe-se sua importância,mas constata-se, ao mesmo tempo, a inadequação

deste espaço para expressão de dimensõesimportantes da participação popular na saúde. Quedimensões são estas que não conseguem ser aliexpressadas? Que constrangimentos ali presentes

54 Para maiores informações sobre esta Rede, veros sites: http://www.redepopsaude.com.br/ e http://br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude

dificultam esta expressão?

Os conselhos e conferências de saúde têm sededicado principalmente a temas correlacionadosà gestão e ao planejamento das políticas de saúdee não têm contemplado a articulação e o apoio àspráticas solidárias e participativas de enfrentamentodos problemas de saúde na sociedade. No climade embate que costuma predominar, é exigido dosparticipantes um amplo e sofisticado conhecimentodos meandros das instituições envolvidas paraque seus posicionamentos sejam considerados,dificultando muito a participação de ativistas queainda não acumularam este conhecimento. Issoespanta a participação de outras pessoas e ajudaa perpetuar a permanência de lideranças antigas,que vão se distanciando das bases dos movimentosque representam. Forma-se uma burocraciadas organizações sociais que é muito hábil emarticulações políticas e em jogos institucionaisde enfrentamento de outros participantes demovimentos sociais que questionem seusposicionamentos. Não se encontra, no espaçodos conselhos, um ambiente de solidariedade ede investimento na participação ampliada quepredomina no cotidiano da maioria dos movimentospopulares. Foi, assim, se criando um sentimentode cansaço e desânimo entre muitas liderançaspopulares em relação à possibilidade de influirde forma significativa no espaço dos conselhos edas conferências de saúde. Ali, não se sentem àvontade. Muitas de suas propostas e questões nãocabem neste espaço. Percebem que tendem a ser

convocados e valorizados quando os conselheiros eoutras lideranças mais envolvidas no controle socialprecisam ser legitimados pelo apoio de sua base.

Muitos ativistas sociais e lideranças populareslocais percebem estes conselhos essencialmentevoltados para a orientação da ação dos serviçosestatais sobre os problemas de saúde; mas paraa população a busca da saúde não se restringe a

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ações mediadas pelo Estado, pois está tambémestreitamente correlacionada a iniciativas e lutasde reorganização da vida pessoal e social que,muitas vezes, ela quer autônomas em relação àsorganizações estatais. Assim, muitos ativistassociais e lideranças populares sentem que estesespaços institucionais de participação são restritospara a amplitude de suas motivações e buscas.

É muito compreensível que os profissionais de saúdeprogressistas, ligados à luta para o fortalecimentodo SUS, mirem para os movimentos sociais a partirdo local em que se encontram. Estes profissionais,enfrentando inúmeras dificuldades e oposições epreocupados em conseguir parceiros para o difíciltrabalho de qualificar e democratizar as políticaspúblicas de saúde, tendem a ver a vida popular apartir do mirante institucional em que estão. Ocontrole social das políticas de saúde passa, então,a ser visto como se fosse a totalidade da luta pelasaúde dos movimentos sociais e das redes locaisde apoio mútuo. Mas não é. Existem muitas outrasdimensões da luta popular pela saúde que sópodem ser percebidas se há uma inserção no mundopopular não preocupada apenas com a dinamizaçãoe o aprimoramento das políticas de saúde. A ação doEstado é fundamental para a saúde da população,mas não é tudo. A população, com suas iniciativasdiversificadas e autônomas, está afirmando que suabusca pela saúde não se restringe ao que pode serfornecido pelos serviços de saúde.

Após a criação do SUS, foi criado um amplomovimento de conselheiros e de ativistas sociais

muito hábeis na importante tarefa de controlar agestão das políticas de saúde, mas que é apenas umapequena parcela dos movimentos de solidariedadee luta pela saúde, existentes no meio popular decada recanto da nação. Infelizmente, quase todo odebate sobre a participação popular na saúde temse focado apenas neste importante, mas restrito,setor mais organizado dos movimentos sociais e

na atuação de lideranças mais aproximadas dadinâmica de funcionamento do SUS. Pouco se temreparado e valorizado a outra gama, muito maisampla e difusa, de movimentações e iniciativassociais voltadas para a busca da saúde. Mas estasituação é relativamente recente. Nas décadas de1970 e 1980, não foi assim.

1) A centralidade das práticas comunitáriassolidárias de saúde nos primórdios doMovimento Sanitário

Os primórdios do atual sistema de saúde brasileiroremontam às lutas do Movimento Sanitário, quefoi se delineando na década de 1970. Ele tinhaduas faces: uma do movimento de profissionais eestudantes que lutavam contra a ditadura e suapolítica de saúde privatista e hospitalocêntrica.Tinha também outra face popular, constituída pormovimentos que se organizaram, inicialmentebastante integrados às igrejas cristãs, com suasinúmeras experiências de saúde comunitária. Estasduas faces sempre estiveram muito integradas.Muitos profissionais que lideraram a luta pelaReforma Sanitária se formaram nestas experiênciasde saúde comunitária das décadas de 1970 e1980. Muitos movimentos populares de saúde seorganizaram e se expandiram pela presença detécnicos bastante integrados em sua dinâmica.

Durante a ditadura militar, iniciada no Brasil em1964, muitos trabalhos comunitários de saúde,

implementados com a participação de profissionaisde saúde, dedicaram muita energia ao processo defortalecimento das redes locais de solidariedadenas comunidades, com a discussão de problemas desaúde ali presentes e buscando criar novas práticas desaúde que fossem, ao mesmo tempo, participativase adequadas aos interesses e peculiaridades dosmoradores. A repressão da ditadura militar impedia

que os trabalhos comunitários expandissem muitosuas lutas políticas mais amplas, pois isso lhes dariauma visibilidade que acabaria atraindo a repressãopolicial. Percebia-se que as ações de saúde,individuais ou coletivas, podiam ter importantesignificado educativo e político para a comunidade,dependendo da forma como eram organizadas. Comisso, até meados da década de 1980, era muito fortea valorização das diferentes dinâmicas culturais eorganizativas de enfrentamento dos problemaslocais, bem como o investimento na criação depráticas sanitárias baseadas no trabalho coletivoe solidário. Os detalhes técnicos da organizaçãodestas ações de saúde eram amplamente discutidosnão apenas pela iniciativa dos chamados “agentesexternos”, como naquela época se denominavamos técnicos, intelectuais e lideranças popularesvindas de outros locais, mas também pela vontadedos moradores envolvidos. Percebia-se o grandeinteresse e a mobilização das pessoas e gruposlocais em repensar as práticas de enfrentamentodos problemas que mais lhes incomodavam.

A ditadura havia reprimido as várias organizaçõesda sociedade civil com atuação junto às classespopulares, mas não conseguiu reunir força políticapara esvaziar o trabalho social das igrejas cristãs,muito legitimadas na cultura brasileira. Estasigrejas passaram, então, a abrigar e protegermuitos ativistas sociais sem maiores ligaçõesanteriores com as mesmas. Tornaram-se, por isso,as principais instituições de suporte das iniciativasde resistência política à ditadura e suas políticas

econômicas e sociais. Muitos profissionais de saúdeforam trabalhar junto às igrejas cristãs. Por isso, asexperiências de saúde comunitária cresceram muitointegradas às práticas pastorais destas igrejas quese deixavam conduzir pela teologia da libertação,em que a educação popular é a principal referênciateórica na orientação do trabalho social. Assim,muitas orientações metodológicas da educação

popular passaram a estar fortemente presentes emseu cotidiano: valorização das decisões coletivas,problematização em roda das dificuldades maisimportantes, participação igualitária de todos osprofissionais (do servente ao médico) nas decisões,valorização dos saberes e iniciativas populares naconstrução de soluções, ênfase na construção dedinâmicas e ações educativas que permitam incluiros atores sociais usualmente mais excluídos etc.Estes elementos metodológicos marcaram muito ascaracterísticas das práticas de saúde que surgiramnesta época.

Naquele contexto social, era muito enfatizada aintegração dos profissionais na vida comunitária,chegando-se a insistir na importância dele ir alimorar. Era a chamada “conversão aos pobres”,que, segundo o discurso muito presente nestasigrejas, os agentes oriundos de outras classessociais necessitariam fazer para poderem realmentecompreender a vida popular e, assim, conseguiremestabelecer diálogos mais profundos no processode construção de soluções para os problemaslocais e de organização de novas formas de vidasocial. Muitos profissionais de saúde foram morarnas periferias urbanas e rurais. Outros passarama conviver intensamente com o seu cotidianode vida. Este processo de aproximação culturalde muitos profissionais com o mundo popularsignificou algo semelhante ao que ocorre naobservação participante, metodologia de pesquisada antropologia, em que se busca aproximar dacompreensão dos grupos sociais pesquisados a

partir de seus próprios sentimentos e lógicas. Aaproximação intensa e a integração com a dinâmicade vida local vão permitindo que o pesquisadorou o trabalhador social comece a captar estessentimentos e estas lógicas. Criaram-se, assim,condições para que muitas ações de saúde,executadas por estes profissionais fortementeinseridos, começassem a ser redefinidas, mesmo

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que não fossem explicitamente discutidas nosgrupos comunitários.

Experiências de saúde comunitária, alternativas àforma dominante de organização da assistência àsaúde, espalharam-se por toda a nação que passarama ser articuladas pelo MOPS – Movimento Popularde Saúde – na década de 1980. Nos seus encontros

locais, regionais e nacionais, era impressionanteo entusiasmo com que se discutiam tanto as suaslutas por mais recursos sanitários e pelo direitode controlar seu funcionamento, como também

a criação de novas práticas técnicas e sociais de

enfrentamento de problemas específicos de saúde.A luta política por mais serviços e pelo seu controlesocial era integrada e apoiada na mobilizaçãopopular despertada por ações e práticas de saúde

solidárias, participativas e tornadas adequadas àspeculiaridades locais. A palavra de ordem do MOPSpor muitos anos, “saúde, uma conquista popular ”,não valorizava apenas a necessidade de seconquistar mais serviços, mais recursos sanitários

e deles participar na gestão. Significava também avalorização da redefinição das práticas de saúde aserem expandidas, ou seja, a conquista de modosde se obter saúde, mais integrados à vida popular.

Percebia-se que a atenção médica tradicional não éinjusta apenas porque é oferecida de forma limitadaaos pobres, mas também porque a sua racionalidade

interna reforça e recria, no nível das microrrelações,as estruturas de dominação da sociedade. O seubiologicismo, o autoritarismo do doutor, o desprezo

ao saber e à iniciativa do doente e familiares, aimposição de soluções técnicas para problemas

sociais globais, o mercantilismo e a propagandaembutida dos grupos políticos dominantes sãoexemplos de alguns dos mecanismos entranhados naassistência à saúde oficial que se procurava superar.

Essas percepções daquela época ganharam, depois,maior ressonância com os estudos de Michel

Foucault. Ele criticou as análises tradicionaisda esquerda sobre o poder, na medida em quese centram basicamente nos grandes aparelhosestatais e na burguesia. O poder seria algo maisdifuso. O poder funciona e se exerce em rede.Nunca está localizado aqui ou ali, nem está sónas mãos de alguns. Não é a dominação globalque se divide e repercute, de cima para baixo, notecido social. A dominação geral pode funcionarporque se sustenta em micropoderes, com relativaautonomia, que acontecem a partir de múltiplosatores sociais. Para se entender o poder é precisobuscar perceber as táticas e técnicas de dominaçãono detalhe da vida social e procurar compreendercomo os diversificados mecanismos de poder sãoutilizados, transformados e ampliados pelas formasmais gerais de dominação. O poder, para se exercer,precisa produzir, organizar e colocar em circulaçãosaberes que o tornem legítimo. As práticas técnicaspresentes nas instituições foram sendo estruturadasa partir de saberes marcados pelos interesses dosgrupos hegemônicos e contribuem para os legitimarna medida em que lhes emprestam uma aparênciameramente racional. Elas induzem na populaçãocomportamentos e formas de encarar a vida emacordo com estes interesses.

A partir desta contribuição de Foucault, as práticascotidianas de conformismo e resistência queacontecem no cotidiano da vida passaram a sercentrais, respectivamente, na sustentação e nasuperação da dominação que marca a sociedade.Assim, a luta pela transformação das dimensões

políticas do processo de adoecimento na sociedadese descentraliza das instâncias partidárias, dosconselhos gestores, do aparelho estatal de direçãopolítica e do comando das grandes empresas, parase estender também às cumplicidades, apoios eresistências que envolvem todo o tecido social etambém à reorientação dos saberes que orientamas práticas institucionais (FOUCAULT, 1985).

Muitas práticas, que hoje marcam as característicasde funcionamento dos serviços brasileiros deatenção primária à saúde, foram delineadas nasexperiências alternativas de saúde comunitáriaque se multiplicaram a partir da década de 1970.Entre estas práticas podemos citar a valorizaçãoda ação educativa de agentes comunitários desaúde da própria comunidade, formas grupais deenfrentamento de problemas de saúde específicos(grupos de hipertensos, diabéticos, gestantes etc.),ênfase na construção de ações de saúde integradasaos movimentos sociais locais, conselhos locais desaúde buscando se estruturar de forma inclusiva

e participativa, envolvimento da equipe de saúdecom lutas políticas locais, gestão do trabalho dosprofissionais por meio de rodas de conversa, estudoe negociação que inclui todos os membros da equipe,valorização de dimensões emocionais, artísticase espirituais nos grupos, integração com práticase saberes populares etc. Sanitaristas de outrospaíses, com frequência, reconhecem no SUS ummodo de atuação que diferencia e inova em relaçãoao que é praticado em países mais avançados, quesão considerados referências internacionais para areforma de sistemas de saúde.

2) Ações e práticas de saúde são um dever doEstado. À população cabe apenas o controledestas ações?

Com a conquista do fim da ditadura militar, o poder

político se tornou mais permeável às pressões dasociedade civil. Neste novo contexto, os movimentossociais reorientaram suas práticas tentando ocupareste espaço de participação nas ações do Estado.A luta política voltada para a transformação daspolíticas sociais passa a centralizar atividadesde grande parte dos movimentos populares, emdetrimento de atividades de cunho mais cultural

e educativo voltadas para a população. Mas nãotinha como não ser assim, pois era urgente areestruturação da vida política nacional. E, nessesentido, os movimentos populares, ainda bastanterecentes, tiveram um papel fundamental e inovadorno alargamento das formas tradicionais de sefazer política, antes, muito centradas no partidopolítico e na ação de personalidades da aristocraciaeconômica e política. Eles possibilitaram amultiplicação dos atores no jogo político e adiversificação das formas de ação organizada nointerior do Estado e no mundo da produção. Forammarcantes na explicitação do caráter multifacetado

da realidade social e, consequentemente, da lutaanticapitalista. Fizeram emergir o desafio e a utopiade se construir uma nova hegemonia política atravésda intervenção direta das massas, trazendo para aarena política a diversidade e o cotidiano da vidadas classes populares (EVERS, 1984).

À medida que as forças repressivas da ditaduramilitar foram sendo controladas, vão se estruturandonovos partidos políticos. Surgem também novossindicatos de trabalhadores. Velhos sindicatos sereorganizam. São formadas diferentes centraissindicais e diferentes instituições de assessoria.Multiplicam-se as ONGs – Organizações NãoGovernamentais. A imprensa e as cadeias de rádioe televisão fortalecem-se, passando a alojar os maisdiversos grupos de interesse e crença. Mesmo asentidades de classe dos setores dominantes sãoobrigadas a se aparelhar, dinamizar e até mesmo serecriar, uma vez que já não contam e nem confiam

mais, como antes, na ação do Estado autoritário.Constituem-se e fortalecem-se múltiplas entidadese instituições da sociedade civil voltadas para adifusão de propostas culturais, artísticas, religiosase filosóficas. Associações profissionais e científicaspassam a ter uma atuação marcante. Os dirigentespolíticos constroem formas de organizaçãodiferenciadas: Conselhos de Secretários Municipais

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e Estaduais de Saúde, associações de prefeitose vereadores, Conselho de Reitores etc. Mesmodentro das grandes instituições públicas e privadasorganizam-se grupos, com níveis diferentes deformalização, voltados para a defesa de interessese propostas específicas. Os Núcleos de Estudo emSaúde Coletiva das Universidades são exemploimportante dos grupos mais formalizados. Enfim, asociedade civil tornou-se recortada e povoada pormúltiplas, diversas e até mesmo surpreendentesformas de organização, muitas vezes com sofisticadoe amplo aparelhamento institucional e material.

Configura-se, cada vez mais, o quadro políticodescrito por Gramsci como característico dassociedades capitalistas complexas: a presençade uma sociedade civil repleta do que chamou de“aparelhos privados de hegemonia”: organizaçõesresponsáveis pela elaboração e difusão dasideologias, compreendendo o sistema escolar,as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, asorganizações profissionais, a organização materialda cultura etc. (COUTINHO, 1981). Estes organismossociais coletivos voluntários e relativamenteautônomos face ao Estado (entendido dentro doconceito que Gramsci chamou de “Estado restrito”)formam uma trama marcada pelo conflito. Nestatrama sustenta-se a hegemonia do grupo políticodominante e desenvolve-se a luta dos gruposinteressados em alterar o poder político, em umaguerra de trincheira em trincheira, de aparelho emaparelho privado de hegemonia.

Neste contexto, os inconstantes, fluidos e informais

movimentos sociais perderam muito de suacentralidade como instrumentos de expressão dosinteresses da sociedade. Muitos trabalhadoressociais, intelectuais e lideranças políticas passarama enxergar este processo como se significasse amorte dos movimentos sociais. Mas antes de umasubstituição ou de uma superação dos mesmos porentidades mais estruturadas, o que temos é uma

rica interação. Um não pode ser compreendido hojesem a presença do outro. Muitas das organizaçõesformais da sociedade civil constituíram-se a partirdo processo de tecnificação e alargamento daatuação dos movimentos sociais que exigiam ummaior aparelhamento institucional. Por sua vez, osmovimentos sociais são hoje bastante dependentesdas assessorias e apoios dos grupos mais formais.Um tem no outro um elemento dinamizador.

Tornou-se habitual ouvir de lideranças dosmovimentos populares e de intelectuais que osassessoram queixas sobre o seu esvaziamento.Afirma-se que a população não mais se aglutina emobiliza em torno de seus grupos organizados. Asreuniões estão esvaziadas. Lutas básicas, comoa reivindicação de saneamento para favelas, nãoconseguem mais despertar interesse da maioriada população local. Reclama-se intensamenteda fragmentação e da divisão dos movimentos,impedindo a soma de forças em torno de questõesmais amplas.

Assim, a partir de meados da década de 1980,passa-se a reclamar muito da incapacidade dessesmovimentos sociais em saírem de reivindicaçõesmais restritas e assumirem lutas mais globais.Tenderiam a se constituir e a sobreviver em torno dedemandas específicas que, uma vez solucionadas,desencadeiam o fim da mobilização sem deixarformas mais permanentes e contínuas de organizaçãopopular. Têm dificuldade de se articular maisamplamente entre si, formando frentes nacionaiscom maior poder de pressão. Ficariam, pelo contrário,

restritos à ação mais localizada, difundindo uma visãoparoquial dos problemas que atingem a população.As grandes questões nacionais ficariam distantesde suas práticas. Para muitos teóricos, seriamuma forma atrasada de organização social, que sedesenvolveu no período da ditadura, principalmentecomo reflexo da precariedade ou falta de canaismais formais de representação e de instituições mais

organizadas na sociedade civil. Assim, à medidaque a situação começou a se reverter e os partidospolíticos readquiriram presença e competitividadena sociedade, os movimentos tenderam a perder oseu dinamismo e visibilidade, mostrando seu caráterconjuntural, ou seja, algo significativo apenas emsituações em que inexistem outros canais maiseficientes de representação e em que o Estado,tornando-se totalmente omisso como provedor deserviços de consumo coletivo às populações carentes,tenha levado a um aumento da insatisfação e revolta.Mas seriam movimentos limitados apenas a esseslugares e a esses períodos (JACOBI, 1989, p. 16).

Assim, a partir da segunda metade da década de1980, muitos profissionais de saúde, que vinham sededicando ao trabalho educativo nas comunidades,começam a se deslocar para os espaços institucionaistornados mais permeáveis aos interesses dapopulação. O processo de constituição de umsistema de saúde público, que c omeça a incorporaros anseios e o saber dos movimentos sociais, atrai oinvestimento e a energia da maior parte da militânciado movimento sanitário brasileiro. O desafio central,a partir de 1988, passou a ser a criação do arcabouçojurídico e institucional do SUS. Este deslocamentoda dedicação do movimento sanitário chegou atal ponto que Giovani Berlinguer, um dos líderesda reforma sanitária italiana, afirmou, já em 1988,quando visitava o Brasil:

Não quero criticar os amigos, mas a implantação

do SUDS e toda a luta necessária na Constituintepodem ter levado a uma preocupação muitoinstitucional, com risco de subestimar os problemasreais de saúde. Como provocação, sugiro avaliaremquantas páginas das publicações de saúde falavam,neste período, de regulamentações, legislações einstituições. (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 1989)

Os movimentos sociais em geral perderam

visibilidade dentro do Movimento Sanitário.Passaram a ser valorizados e ressaltados apenasos movimentos que participam nos espaços oficiaisde controle social. A discussão sobre participaçãopopular em saúde quase que se resumiu à questãoda participação nos conselhos e nas conferênciasde saúde. Mesmo no seio dos movimentos sociais,muitas lideranças passaram a valorizar apenas aslutas políticas mais amplas, capazes de influenciarnos espaços de decisão das políticas sociais.

O investimento em práticas comunitárias solidáriasde enfrentamento dos problemas de saúde passou

a ser visto como algo do passado. Quando o Estadoera omisso, os movimentos sociais eram obrigados aassumir a frente da implementação destas práticas.Com a democratização da sociedade e a criação deum SUS regido pelos princípios da universalidade,integralidade e equidade, o que passou a serconsiderado legítimo foi encarar a implementaçãode qualquer prática de saúde como uma obrigaçãodo Estado. À população e seus movimentosorganizados caberia lutar para que estas açõesfossem implementadas e buscar controlar suaoperacionalização. O envolvimento da populaçãocom práticas de saúde passou a ser considerado,muitas vezes, como algo conservador e reacionário,pois ajudaria a escamotear a responsabilidade doEstado de prover todos os serviços necessários. Oconceito de controle social passou, assim, a ser ocentro do debate progressista sobre a participaçãoda população na luta pela saúde.

3) Os movimentos sociais insistem emimplementar e propor práticas de saúderegidas por lógicas diferentes

No entanto, os movimentos sociais e as redes locaisde apoio social continuaram a investir na criaçãode práticas voltadas para o enfrentamento de

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seus problemas de saúde. Fora do foco de atençãoda maioria do Movimento Sanitário, em cadacomunidade multiplicam-se ações solidárias desaúde. Que ações são estas e como se organizam?Em muitos movimentos nacionais, como o MST –Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra–, são organizadas iniciativas próprias de saúde.Parcelas crescentes da população recorrem àsigrejas cristãs pentecostais para solucionaremseus problemas de saúde. Na Igreja Católica,houve expansão de várias atividades pastoraisvoltadas para problemas de saúde com bastantecapilaridade no tecido social. ONGs, ligadas ao

enfrentamento da AIDS, articuladas em fóruns,vêm desenvolvendo práticas inusitadas de apoioaos doentes e de prevenção, com grande impacto.Movimentos e organizações sociais muito antigos,como a Sociedade São Vicente de Paula e osAlcoólicos Anônimos, continuam presentes, deforma importante, na vida das comunidades.A expansão do Programa Saúde da Família, aocolocar profissionais mais próximos do cotidianoda população, está possibilitando que muitasiniciativas locais de saúde comecem a ganharnovamente uma maior visibilidade no MovimentoSanitário. Em muitos municípios brasileiros, onde hágestores orientados pela educação popular, o SUSvem possibilitando a emergência e a expansão depráticas de saúde construídas de forma dialogadaentre a população e os profissionais de saúde quevêm surpreendendo pelo alcance. É necessário darmais visibilidade a estas iniciativas tão numerosas

e difundidas. É preciso buscar entender melhor oque elas apontam como necessidade e propostada população. É importante buscar compreendero seu significado político e epistemológico. O queesta insistência da população, suas redes de apoioe seus movimentos podem ensinar ao MovimentoSanitário sobre os caminhos do SUS?

Há anos a Rede de Educação Popular e Saúde vem

enfatizando esta desvalorização pelo MovimentoSanitário das lutas sociais pela saúde nãocorrelacionadas diretamente ao controle social noSUS. Victor Valla, há uma década, vem afirmandoque a sensação de decepção com os movimentossociais, tão forte entre os profissionais de saúde,significa mais uma crise na compreensão dosintelectuais sobre os atuais caminhos de buscade ser mais e de organização da população doque uma crise dos movimentos sociais. Paraele (VALLA, 1997), os intelectuais tendem a verapenas as iniciativas de organização popular quese enquadram nas formas clássicas de organização

política descritas nos textos de ciências sociais enão enxergam modos novos de organização. Muitasvezes, as associações de moradores, os sindicadose os partidos políticos estão vazios, mas as igrejas,as escolas de samba e situações concretas depadecimento estão mobilizando muita gente. E estasmobilizações geram iniciativas muito importantespara a saúde local.

Valla passou a difundir no Brasil o conceito de redesde apoio social para compreender formas menosestruturadas de organização social, ajudando a darvisibilidade a muitas práticas solidárias de saúdeque acontecem cotidianamente nas comunidades(VALLA, 1998). Criou-se, assim, um instrumentalteórico capaz de entender e valorizar as inúmeraspráticas de apoio solidário que sempre aconteceramno seio das famílias, nas redes de parentesco,entre vizinhos, nos grupos religiosos, nas iniciativasculturais e esportivas de caráter local, entre

colegas de trabalho, nos grupos de filantropia enas ações de pessoas devotadas aos cuidados desaúde, presentes em cada comunidade. Possibilitatambém ressaltar dimensões muito concretas dofazer cotidiano dos movimentos sociais que nãose restringem às suas lutas centrais. A riqueza e adiversidade das práticas solidárias de apoio socialmarcam profundamente o fazer de quase todas

as iniciativas coletivas no mundo popular, mas,muitas vezes, só se percebem e valorizam suaslutas políticas principais. São práticas informais,com grande nível de espontaneidade e sem umaorganização estável, mas extremamente importantese presentes no cotidiano de todas as pessoas domundo popular e que a maioria dos profissionaisde saúde não considera ao planejar a orientaçãode cuidados terapêuticos. Elas, muitas vezes, sãocapazes de reorientar o caráter individualista,biologicista e autoritário das prescrições médicasusuais. Estruturam cuidados e tratamentos paramuitos problemas, que não chegam aos serviços de

saúde ou que deles se afastam, frustrados com osresultados. As conversas, reuniões e celebraçõesque acontecem nestas práticas solidárias de saúdesão ainda espaços centrais de elaboração dialogadade sentidos e entendimentos para o que estáacontecendo na crise da doença.

Do mesmo modo como as redes de apoio social têmpouca visibilidade para a maioria dos trabalhadoressociais e intelectuais, as suas práticas solidárias desaúde também são pouco percebidas e valorizadas.São desenvolvidas por mães, vizinhas, amigos,conhecidos e “entendidos” de modo “misturado”no dia a dia da vida local. Não se mostram comopráticas distintas, especiais ou especializadas. Porisso, tendem a não ser identificadas como práticasde saúde com eficácia, saberes e característicaspróprias e importantes. Mas seu caráter difuso egeneralizado na vida social não significa que nãosejam instruídas por saberes bastante elaborados,

muitas vezes milenares, e com característicaspróprias que variam nos diversos grupos sociais.

Victor Valla vem também, há uma década,denunciando o olhar preconceituoso e desqualificadorda maioria dos profissionais do campo dasaúde coletiva em relação a uma das maiorestransformações culturais que vem acontecendo nasclasses populares: o surpreendente crescimento do

pentecostalismo (VALLA, 2001). O pentecostalismodas igrejas cristãs, mas principalmente das igrejasevangélicas, vem se expandindo não apenasquantitativamente, mas também gerando um nívelde engajamento religioso muito mais intenso nomeio popular. As igrejas orientadas pela teologia dalibertação já conseguiram uma boa aceitação entreos sanitaristas por sua contribuição ao MovimentoSanitário, mas este crescimento do pentecostalismoé comumente analisado como fruto da alienaçãoou “lavagem cerebral” feita por liderançasreligiosas espertas. No entanto, inúmeros estudostêm mostrado a impressionante capacidade de

transformação positiva para pessoas, famílias egrupos do meio popular a partir do momento em quepassam a participar de igrejas pentecostais a pontode a pesquisadora Regina Novaes tê-las chamadode “via subalterna de produção de dignidade”(NOVAES, 2001, p. 68). Tal fato é repetidamenteconstatado por trabalhadores sociais que atuamnas periferias urbanas. Situações de alcoolismo,dependência de outras drogas, envolvimentocom grupos ligados a atividades ilícitas, violênciadoméstica, crises conjugais intensas, distúrbiosmentais, crises existenciais graves, abandonofamiliar, conflitos entre vizinhos e desajustes notrabalho, com frequência são resolvidas nestasigrejas. Elas são organizadas nas periferias coma participação intensa de pastores, obreiros eauxiliares que moram na região, ajudando a formarfortes redes de apoio social entre os participantes.Por terem uma forma de organização do culto

em que as emoções são cultivadas, possibilitama explicitação do turbilhão emocional a que osmoradores das periferias são submetidos pelasituação de opressão em que vivem, criandodinâmicas religiosas para sua elaboração.

Muitas das igrejas pentecostais assumemexplicitamente rituais de “cura” para doenças, maso enfrentamento dos problemas de saúde acontece

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em todo o conjunto de suas atividades. Váriosestudos vêm buscando desvendar os caminhos desteenfrentamento a partir de diferentes abordagensteóricas da ciência. Um exemplo importante sãoos estudos de Paulo Bonfatti sobre os significadosdos ritos da Igreja Universal do Reino de Deus,utilizando a psicologia junguiana e a antropologia(BONFATTI, 2000). Outros estudos do grupo depesquisadores próximos a Victor Valla têm frisadoa importância das fortes redes de apoio socialcriadas por estas igrejas para as pessoas vivendoproblemas de saúde. Eles resgatam também estudosantropológicos que apontam para a importância da

vida religiosa, celebrada com intensidade, de ajudara criar uma linguagem simbólica em que se podeelaborar o sentido da crise trazida pela doença,bem como a motivação para o seu enfrentamento(VALLA, 2001b).

Pesquisas para entender as razões dogrande interesse das classes populares pelopentecostalismo, que gerou tanta estranheza nomeio intelectual, ajudaram a resgatar estudos,alguns bastante antigos, da antropologia, psicologia,sociologia e das ciências das religiões que vinhamsendo pouco valorizados pela saúde coletiva,tornando mais claro o papel da vida religiosa nabusca da saúde. Foi ficando claro que, para a maioriada população latino-americana, a vida religiosa éelemento fundamental na elaboração do sentidoe da motivação para enfrentar as crises pessoais,familiares e comunitárias que acompanham asdoenças graves. A população não incorporou o

dualismo do paradigma newtoniano e cartesiano deciência, que afasta a dimensão espiritual da análisedos fenômenos materiais. Em pleno século XXI, asclasses populares latino-americanas insistem emvalorizar a dimensão espiritual no enfrentamento detodos os problemas de saúde, sejam eles de ordememocional, biológica ou social. A valorização dosestudos sobre espiritualidade na saúde em países

mais avançados, com a emergência de inúmerosestudos epidemiológicos comprovando a correlaçãoentre vida religiosa e saúde, ajudaram a legitimarestas constatações (VASCONCELOS, 2006).

A maioria da população brasileira (cerca de 75%)continua, no entanto, ligada à Igreja Católica. Nela, aquestão da saúde é assumida direta ou indiretamentenos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base(CEBs) e nas suas inúmeras pastorais (da criança,saúde, sobriedade, terra, dos índios, portadoresde deficiência física, presídios e direitos humanosetc.). Em qualquer recanto da nação, há grupos

destas distintas pastorais organizando práticassolidárias de enfrentamento de problemas desaúde ou investindo na promoção da saúde. Muitasvezes, a equipe de saúde do SUS, por não conseguircompreender suas ações como práticas de saúdeou mesmo visualizá-las, por seu olhar focado narotina do serviço, despreza as ricas possibilidadesde parceria que poderiam ser construídas. A maiorinfluência da teologia da libertação na Igreja Católicafez com suas práticas de saúde tivessem uma maiorênfase na dimensão política. Toda a experiência deluta social de seus grupos mostrou a possibilidadee a importância de integrar a dimensão espiritualindividual com a dimensão de enfrentamento dasdimensões estruturais do processo de adoecimentoe cura. Mostrou que há uma espiritualidade daluta social que é capaz de gerar maior potênciaàs mobilizações e enfrentamentos políticos(VASCONCELOS, 2006, p. 95-111). A oposição dospapados de João Paulo II e Bento XVI à teologia

da libertação, numa tentativa de volta à grandedisciplina e à hierarquia do catolicismo tradicional(LIBÂNIO, 1984), refreou parcialmente a expansãodesta forma de organização da vida religiosa noBrasil, que, no entanto, continua muito presente nagrande maioria das dioceses.

As práticas sociais de igrejas influenciadas pelateologia da libertação (ela está também presente em

várias igrejas evangélicas) têm trazido elementosmuito inovadores para a cultura de enfrentamentodos problemas de saúde, em que se articulamdimensões técnicas, psicológicas, espirituais,estéticas e políticas. Experiências muito exitosas,desenvolvidas por unidades básicas de saúde doSUS, foram construídas a partir da integração deseus profissionais com grupos destas igrejas. Háuma dimensão epistemológica desta integração quevem sendo pouco ressaltada. O já referido dualismodo paradigma newtoniano e cartesiano de ciênciasgerou um tipo de ação de saúde que pretende serorientado apenas pela razão e pelos conhecimentos

construídos racionalmente. Para este paradigma,a presença de outras dimensões da subjetividadeturvaria o agir objetivo e eficaz. Mas as açõesconstruídas com a participação intensa de gruposreligiosos são estruturadas “regadas” pela emoção ea espiritualidade, em meio a encontros organizadoscom celebrações e dinâmicas. Se entendermos areligiosidade, de acordo com a psicologia junguiana,como a forma mais utilizada pela população paraexpressar e elaborar a integração, por meio deuma linguagem simbólica, das dimensões racional,emocional, sensitiva e intuitiva, ou a articulaçãodas dimensões consciente e inconsciente dasubjetividade humana e de seu imaginário coletivo,esta aproximação da equipe de saúde com estesgrupos religiosos, na construção de novas práticas,representa também uma superação epistemológicado paradigma newtoniano e cartesiano de ciênciasque está sendo legitimado pela eficácia social das

práticas que tem gerado para o SUS.As CEBs e as diversas pastorais da Igreja Católicasão formas relativamente recentes de ação religiosae social. Mas o quadro atual da vida religiosa católicanão é só composto de elementos novos. Organizaçõesmuito antigas da Igreja continuam muito presentese ativas no cotidiano de inúmeras comunidades. Umexemplo importante é a Sociedade São Vicente de

Paula, organização centenária com uma autonomiamuito grande em relação ao clero católico, quecontinua presente na maioria das periferiasurbanas e rurais com atividades de identificaçãoe apoio às famílias mais pobres. São grupos, emsua maioria compostos por moradores da própriaregião, bastante pobres, que têm um trabalho muitoorganizado e persistente de apoio às famílias emsituação especial de pobreza. São grupos tímidos,com uma visibilidade muito inferior ao tamanho desua presença. É preciso maior divulgação de estudossobre a diversidade de formas de organização socialpresentes nas comunidades periféricas brasileiras.

O olhar dos profissionais, muito centrado em formasmais tradicionais de organização popular, faz comque muitos grupos importantes, com suas práticas eseus saberes tão diversos, não sejam considerados.

As religiões afro-brasileiras são exemplos muitoricos de como formas bastante tradicionais devida religiosa têm conseguido se organizar demodo inovador no enfrentamento de problemasde saúde. Em 2003, foi formada a Rede ReligiõesAfro-Brasileiras e Saúde, que vem realizando muitosseminários estaduais, regionais e nacionais paraestudar, valorizar e aperfeiçoar as práticas de saúdeque, há tantas décadas, vêm sendo desenvolvidasnos terreiros. Multiplicam-se experiências muitoricas de enfrentamento de problemas de saúdemental, AIDS, sexualidade, dependência dedrogas e vários outros, bem como de promoção dasaúde pela valorização da autoestima de gruposmarginais e da identidade negra. Pais e mães

de santo vão se capacitando para uma ação desaúde que integre suas práticas espirituais com osaber científico e as políticas sociais. Lidam comgrupos sociais com cultura muito própria que, porisso, costumam ter dificuldades na relação com osserviços públicos. Com sua linguagem simbólicarica, bonita, mobilizadora de fortes motivações ecom grande poder transformador de atitudes diante

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das doenças, estas religiões têm ajudado a trazerpara o setor saúde uma melhor compreensão dadimensão espiritual no processo de luta pela vida(SILVA, 2003).

A dimensão espiritual na saúde vem sendovalorizada e fortalecida não apenas pelasreligiões, mas também pelos grupos de autoajuda.Apesar do termo autoajuda ser usado com váriossentidos, usualmente os grupos de autoajuda sereferem a uma série de movimentos anônimos (oscomponentes não se identificam publicamente)formados por pessoas com problemas específicos

e que se orientam por metodologias semelhantesao AA – Alcoólicos Anônimos, criado em 1935, nosEUA. Vários outros movimentos foram c riados nestaperspectiva: Al Anon (com familiares de alcoólicos,no que chamam de codependência), Al Ateen(adolescentes familiares de alcoólicos), Mulheresque Amam Demais, Neuróticos Anônimos etc. NoBrasil, existem 5.700 grupos de AA, com 120.000participantes. Não recebem apoio de instituiçõespúblicas ou privadas, demonstrando enormecapacidade de organização autônoma de seusparticipantes. São importantes referências para osserviços de saúde de todo o Brasil encaminharemseus pacientes com alcoolismo, problema combaixíssima resolutividade pelos métodos médicostradicionais. Apesar de terem sido criados porpessoas dependentes, não profissionais desaúde, e continuarem a existir sem supervisão deespecialistas, eles têm uma eficácia amplamentereconhecida na sociedade. Trabalham com uma

espiritualidade não vinculada a uma religiãoespecífica, apesar de vários autores identificaremuma inspiração no protestantismo norte-americano(DUMONT, 1974). No entanto, muitas pessoas nãoreligiosas se envolvem muito em suas atividades.Inovaram ao apropriarem do cristianismo elementosda vida espiritual que transcendem as diversasreligiões e por terem, com estes elementos, criado

práticas extremamente potentes de enfrentamentode problemas de saúde muito difíceis, pelapresença de dimensões inconscientes muitoarraigadas. Apesar da origem norte-americana,reafirmam elementos repetidamente presentesnas práticas de saúde do meio popular latino-americano: enfrentamento coletivo, solidário, comos participantes buscando superar desigualdadesentre si, compartilhamento intenso de dimensõessubjetivas envolvidas, organização não dependentede especialistas e centralidade da dimensãoespiritual.

Nas novas e contraditórias formas de organizaçãoe manifestação cultural das classes populares,integram-se dinâmicas internacionais e locais,como é o caso do narcotráfico. Ele não é apenasuma atividade ilícita que vem penetrando nasperiferias urbanas de forma crescente, mastambém uma forma de organização e manifestaçãode interesses de grupos juvenis. Ele interfere ereorienta as várias outras formas de organizaçãosocial local. Ao mesmo tempo em que cria redesde apoio social próprias, desorganiza e desagregamuitas outras redes locais de solidariedade local.Reforça uma cultura individualista, competitiva ede violência na juventude. Por aparelhar com armassofisticadas muitos grupos de periferia, gera formasaudaciosas e agressivas de afirmação de identidadee enfrentamento de humilhações e opressões. Porgerar medo e desencadear situações de extremosofrimento, baixa a autoestima dos moradores,desconstrói outras iniciativas de afirmação social e

reforça o preconceito contra os pobres.Movimentos artísticos vêm também criandoformas inusitadas de organização e expressãode identidade e interesses no mundo popular. Umexemplo marcante é o hip hop, movimento iniciadonos EUA, na década de 1980, que rapidamente seespalhou nas periferias urbanas de todo o Brasil,com suas festas, grupos locais, rodas, músicas,

compositores, danças e ritmos que passaram a serimportantes canais de construção de identidade,expressão de interesses, elaboração de leituras domundo e criação de novas formas de sociabilidade.É impressionante a intensidade e a velocidade dastransformações culturais e de organização social queas classes populares vêm passando. No entanto, osprofissionais de saúde responsáveis pelos serviçosa elas destinados tem investido pouco no estudo ecompreensão destas transformações.

Grandes movimentos sociais, de abrangêncianacional e importante força política, foram

formados nos últimos anos. Muitos deles vêmtambém se dedicando diretamente às questões dasaúde, mesmo que elas não sejam o centro de suasatividades. Um exemplo importante é o MST – oMovimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra –que, mesmo com sua grande força política, optoupor querer orientar as práticas dos serviços desaúde de seus acampamentos e assentamentos,não aceitando a apenas reivindicá-los e depoisparticipar de sua gestão. Vem formando muitos deseus profissionais de saúde em cursos conveniados,em que participa da organização. Busca reorganizaras práticas de seus serviços de saúde, procurandointegrá-los com as práticas organizativas locais.Valoriza muito a fitoterapia e outras tecnologiasalternativas, tendo clareza das implicações políticasdos formatos técnicos de cada prática de saúde.Apesar da ênfase na dimensão política, criam muitoespaço para a dimensão espiritual. As suas váriasreuniões, quase sempre, iniciam ou terminam com

uma “mística”, uma dinâmica coletiva que busca,por meio de símbolos, histórias ou manifestaçõesartísticas, expressar os sentidos e motivações domomento e da ação.

Há ainda vários movimentos organizados porportadores de problemas específicos de saúde(hanseníase, deficiência física, AIDS, usuáriosde serviços de saúde mental, colostomizados,

diabéticos) que têm colaborado muito noquestionamento e no aperfeiçoamento das práticasde atenção a eles específicas, criação de redesde apoio solidário e de intercâmbio, construção edifusão de informações que julgam importantes(muitas vezes bastante diferentes daquelasinformações selecionadas pelos profissionais) eresgate da autoestima dos membros. Mais umavez, não aceitam apenas reivindicar mais recursose serviços e participar de sua gestão. Insistemem participar da redefinição das várias práticastécnicas de tratamento e promoção da saúde e emorganizar iniciativas próprias, com grau significativo

de autonomia em relação às instituições de apoio.

Diferentemente do que acontece em muitosoutros países, no Brasil, as Organizações NãoGovernamentais – ONGs – foram formadasprincipalmente a partir de grupos ligados aosmovimentos sociais, mantendo um grandevínculo com estes e continuando várias de suasformas de atuação (SOUZA, 1991). No setorsaúde, vêm se ocupando de muitas frentes, masé no enfrentamento da AIDS que elas mais seexpandiram, devido à integração com a políticanacional de enfrentamento desta patologia.Formaram-se Fóruns ONG/AIDS nos vários estadosbrasileiros que vêm articulando a ação das diversasONGs do setor. Além de promoverem mobilizaçõesreivindicativas, influenciarem fortemente as políticassociais, prestarem assessoria jurídica e atuarem nosmeios de comunicação de massa divulgando suasperspectivas sobre o problema, elas têm tido um

forte investimento na criação de práticas bastantediferenciadas e criativas de cuidado e apoio aosdoentes e pessoas portadoras do vírus, de prevençãojunto aos grupos populacionais mais vulneráveis ede educação da população em geral. Muitas daspráticas de atenção e prevenção, hoje incorporadasnos serviços públicos de saúde, foram concebidas eaperfeiçoadas por ONGs. A diversidade das ONGs

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permite o investimento em formas muito diferentesde atuação.

Outra frente de atuação de ONGs no setor saúde,que tem mostrado imensa capacidade de inovarem termos de práticas de atenção e prevenção, é ocampo voltado para a redução de danos decorrentesdo uso de drogas. Por lidarem com públicosextremamente marginalizados, consideradosmuito próximos da criminalidade e extremamenteperturbados emocionalmente, foram exigidasabordagens muito criativas e bastante afastadasdos modos mais conhecidos de atuação em saúde,

a ponto de causarem rejeição de pessoas que nãoconhecem o contexto em que atuam. Apesar deserem financiadas principalmente com o objetivode diminuir a transmissão de AIDS, hepatites B e C,estas ONGs foram desenvolvendo formas muito sutisde aproximação e cuidado das pessoas envolvidascom drogas que têm encantado. Têm desencadeadomuitos casos de resgate da autoestima e de criaçãode atitudes solidárias entre os usuários de drogasque, algumas vezes, conseguem trazê-los parauma vida mais digna. Os serviços estatais nãoteriam liberdade para desenvolver estas práticas.São um exemplo muito rico da possibilidade decriação de práticas inovadoras de saúde, emsituações extremamente difíceis, que rompem como paradigma biomédico em direção à integralidadeda atenção.

4) Práticas de integralidade em saúde:

contra uma construção centrada apenas eminiciativas e na lógica dos profissionais desaúde

A expansão do Programa Saúde da Família teminserido milhares de profissionais no meio popular.Assiste-se algo correlato ao que aconteceu, nasdécadas de 1970 e 1980, quando muitos profissionais

de saúde, dedicados à militância política contra aditadura militar, inseriram-se profundamente nascomunidades periféricas e tiveram a oportunidadede conhecer de perto a cultura e o contexto deopressão e miséria ali existente. Esta nova levade inserção profissional, agora muito mais amplanumericamente, no ambiente de vida das classespopulares, está possibilitando um grande movimentode redefinição das práticas da atenção básica.Diferentemente do que acontece nos hospitais enos grandes ambulatórios, nas unidades do PSF, osprofissionais estão constantemente tendo acesso ainformações vindas da população que apontam paraas limitações das práticas do modelo biomédico.Nos últimos dez anos, cresceu muito o interesse deinúmeros profissionais no questionamento, estudo eredefinição das práticas profissionais. Alguns dessesprofissionais, que tiveram uma maior preparaçãopara uma relação dialogada com a população e osseus movimentos, têm conseguido criar práticasnovas de extrema eficácia social.

Algumas destas práticas se aperfeiçoaram e seconsolidaram, possibilitando que pudessem serexpandidas para muitos outros locais. O exemplomais importante é o da Terapia Comunitária,desenvolvida pelo Projeto Quatro Varas, emFortaleza, sob o comando do médico AdalbertoBarreto. Orientado pela psicologia sistêmica, aeducação popular e a antropologia, em intensainteração com a população e os movimentos sociaislocais, foi sendo desenvolvida a técnica da terapiacomunitária. Princípios básicos foram definidos,

cuidados metodológicos foram padronizados eorganizaram-se os conhecimentos mais importantespara sua implementação. De uma prática de saúdelocal construída processualmente, emergiu umatécnica de abordagem do sofrimento psíquico emcomunidades populares, de forma suficientementeclara e padronizada para poder ser expandidanacionalmente, inclusive em locais sem profissionais

de nível superior que a pudessem acompanhar. Trata-se, portanto, de um processo de maturação teóricae prática de uma experiência inicialmente local, aponto de se tornar uma técnica com possibilidadesde expansão para outros contextos bastantediferentes. Esta técnica difundida tende a levar paraoutros recantos os princípios teóricos da educaçãopopular, da psicologia sistêmica e da valorização dacultura local, mesmo que as pessoas que a operemnestes novos locais não conheçam muito essesprincípios. Trata-se de um caminho a ser seguido poroutras práticas desenvolvidas localmente.

Se, nas décadas de 1980 e 1990, o centro dointeresse do movimento sanitário foi principalmentea criação do arcabouço jurídico e administrativodo SUS, na atual década começa a crescer ointeresse na redefinição das práticas de saúdenos serviços expandidos. O Ministério da Saúdepassa a organizar Mostras Nacionais de Produçãoem Saúde da Família, com Concursos Nacionaisde Experiência em Saúde da Família. O conceitode práticas exitosas em saúde da família começaa ser divulgado. Em 2000, é criado, no Instituto deMedicina Social da Universidade Estadual do Rio deJaneiro, o LAPPIS – Laboratório de Pesquisas sobrePráticas de Integralidade em Saúde –, que vemdesenvolvendo intensa programação voltada parao repensar as práticas de atenção à saúde numaperspectiva de integralidade. Mas é importante nãorepetir o erro realizado pelo Movimento Sanitárioem outros momentos de muito enfatizar o trabalhodos profissionais e intelectuais do setor saúde e

pouco valorizar as contribuições da participaçãopopular na construção destas práticas integrais.Os movimentos sociais e as redes locais de apoiosocial têm apontado para dimensões importantesda integralidade que têm sido pouco valorizadaspela maioria dos pesquisadores. É importante ouvir,estudar e valorizar mais o que v em sendo motivo detanta insistência por parte dos movimentos sociais.

Para isso é preciso olhar para as iniciativas e lutaspopulares de forma menos focada na dimensão docontrole social.

A ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e

Práticas de Educação Popular e Saúde55  –, criadaem 2003, tem representado um importante espaçode visibilidade política e debate destas práticas

de saúde construídas integradas aos movimentossociais. Nos seus encontros estaduais e nacionais,bem como na sua lista de discussão pela internet

e nos textos produzidos por seus participantesesta questão tem se clareado. O presente texto

representa uma tentativa do autor de sistematizar asdiscussões que aí tem acompanhado. Mas é precisoum maior esforço teórico para tornar mais claras edar maior visibilidade política às contribuições dos

movimentos sociais para a integralidade em saúde.

5) Considerações finais

A maioria das atuais práticas técnicas de atenção àsaúde foi criada regida pela lógica do capitalismo,

em seus centros de pesquisa médica. São práticasque induzem o consumo exagerado de mercadoriase serviços, reforçam os caminhos individualistas de

busca da saúde, deslegitimam saberes e valores dapopulação, consolidam a racionalidade instrumentale fria da modernidade e reforçam o poder da

tecnoburocracia estatal e empresarial. Sob suaaparência técnica e racional, elas escondem lógicas

e interesses de acumulação de capital e legitimaçãopolítica. Portanto, não são neutras. Representam acristalização das lógicas e dos interesses dos gruposque as geraram. Ao serem difundidas, reforçam a

55 Para maiores informações ver site: http://br.groups.yahoo.com/group/aneps/

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lógica capitalista na microcapilaridade do tecidosocial. São instrumentos dos grupos dominantesmanterem sua hegemonia cultural e política sobreo restante da sociedade.

A insistência dos movimentos sociais e das redeslocais de apoio social em redefinirem as práticasde saúde tem um significado político que não

está sendo devidamente valorizado e explicitadoentre os profissionais ligados ao campo da saúdecoletiva. Ela pode ser entendida como umatentativa de desconstruir as lógicas e os interesses

presentes nas práticas técnicas dominantes nos

serviços de saúde e de ampliar as dimensõesde solidariedade, amorosidade e autonomia daspessoas no enfrentamento dos problemas de saúde.O Movimento Sanitário, muito preocupado na

redefinição do desenho institucional do SUS, temvalorizado pouco essa insistência.

Saúde não se alcança apenas com mais e melhores

serviços de saúde, tal como hoje estão concebidos.Pressupõe justiça, integração e respeito ao meioambiente, valorização das dimensões subjetivasprofundas das pessoas e democratização sem fim

das relações sociais no mundo da economia, nasfamílias, comunidades, instituições e organizaçõescivis. Não basta investir na democratização dagestão das políticas de saúde; é preciso tambéminvestir nas relações sociais que criam condições

para a saúde acontecer na vida das pessoas.

A assistência à saúde, pela grande presença deseus serviços na capilaridade da sociedade, pode

contribuir muito para isso. Muitas experiênciascomunitárias vêm demonstrando a fortepotencialidade das ações de saúde na reorientaçãoda vida social. Para isso, é preciso todo um movimento

de redefinição das práticas sanitárias e da formacomo os serviços se relacionam com a população,sabendo ouvir e valorizar as c ontribuições e criaçõesque já vêm sendo desenvolvidas nos movimentos e

nas redes sociais. Iniciativas populares podem se

expandir e multiplicar com pequenos apoios das

instituições públicas que respeitem sua autonomia.

Muitas destas iniciativas são frágeis e podem

perder suas potencialidades de solidariedade, de

ampla participação e de valorização dos saberes

locais próprios, se tratados de forma pouco

compreensiva por gestores e profissionais de saúde

com promessas de recursos materiais. Não basta

anunciar e desejar desenvolver formas dialogadas

e participativas de relação com a população. Esta é

uma relação assimétrica, tornando difícil o diálogo

respeitador da autonomia popular. A educaçãopopular tem mostrado ser um saber importante neste

processo. Educação popular é uma arte e um saber,

desenvolvidos na América Latina e respeitados em

todos os continentes, de condução desta difícil

relação entre trabalhadores sociais e a população,

voltada para a construção de uma sociedade sem

opressão a partir da participação ampliada dos

grupos sociais subalternos e dos seus movimentos.

A democratização radical da vida social tem um

grande efeito no processo de democratização

interna das políticas de saúde por caminhos muito

mais amplos do que apenas o fortalecimento dos

conselhos e suas conferências voltadas para o

controle de sua gestão. Muito se discute hoje como

fortalecer o controle social através de estratégias de

apoio e reorganização dos conselhos e conferências

de saúde. Há muito o que fazer neste sentido, mas

o controle social pleno só virá com democratização

radical da vida social, que exige enormes esforçosa serem desenvolvidos fora do espaço destes

conselhos e destas conferências. Este processo é

dependente de dinâmicas políticas e econômicas

gerais, mas o setor saúde tem muito a contribuir se

passar a encarar o investimento na democratização

da vida social e o enfrentamento das opressões como

parte central do trabalho de promoção da saúde.

Referências

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Texto 5

A FAMÍLIA COMO USUÁRIA DESERVIÇOS E COMO SUJEITOPOLÍTICO NO PROCESSO DEREFORMA PSIQUIÁTRICABRASILEIRA 56

Lúcia Cristina dos Santos Rosa57 

56 Este texto foi publicado originalmente no livroAbordagens psicossociais, vol III: implicações para oserviço social, publicado pela Editora Hucitec, de SãoPaulo, em 2008, organizado por Eduardo Vasconcelos. Elenos pareceu interessante como indicação das múltiplasdimensões da situação dos familiares no processo decuidado e no sistema de saúde mental, temas que podemser aprofundados nos grupos de ajuda e suporte mútuosde familiares.

57 Lúcia Rosa é assistente social e professora da Escolade Serviço Social da UFPI; doutora em Serviço Socialpela ESS-UFR e pesquisadora integrante do ProjetoTransversões. É autora dos livros Transtorno mental e ocuidado na família (CORTEZ, 2003), Panorama da reformapsiquiátrica no Piauí (EDUFPI, 2004) e O Nordeste nareforma psiquiátrica (EDUFPI, 2006), e é muita conhecidapor sua militância no campo da saúde mental e do serviçosocial, particularmente nos estados do Nordeste.

1. Introdução

Este texto objetiva analisar a família como usuáriode serviços e como sujeito político do processo dereforma psiquiátrica brasileira, em curso no país,como política oficial, desde o início dos anos 1990.

A desinstitucionalização58  emerge como eixonorteador da política de assistência psiquiátrica,norteada pelos direitos da pessoa com transtornomental e pela criação de uma outra relação entresociedade e loucura. Esta mudança no modeloassistencial exige uma outra relação entre os

serviços destinados à assistência psiquiátrica e ogrupo familiar, principalmente com os cuidadores-familiares, manifesto na sua incorporação comoparceiros dos novos dispositivos. Tal inserção, emprocesso de construção, implica vários limites,possibilidades e riscos, cujo mapeamento sepretende realizar neste trabalho.

A família, e principalmente o familiar-cuidador,são sujeitos políticos importantes para a garantiada direção imposta ao processo em andamento,mas ao mesmo tempo se depara com uma série dequestões que merecem ser levadas em consideraçãopara sua inclusão mais ativa na supracitadadinâmica. Pretende-se com o presente texto estarsistematizando e trazendo à tona mais elementospara o enriquecimento dos debates.

Todo conteúdo do texto tem origem na vivênciacomo pesquisadora, a partir das experiências com

58 Desinstitucionalização, para Amarante (1996),constitui um processo de desconstrução de práticas esaberes das instituições psiquiátricas convencionais,principalmente aquelas chamadas de totais, que fechamos indivíduos e realizam todas as atividades, na totalidadede suas esferas de vida, sob uma mesma direção e lógicaorganizacional.

familiares de segmentos de baixa renda no contextopiauiense e como docente, no acompanhamentode estagiárias do Curso de Serviço Social daUniversidade Federal do Piauí junto aos diferentesserviços do Hospital Areolino de Abreu, hospitalpsiquiátrico gerido pelo governo estadual e nodiálogo e trocas com os profissionais dos serviçosde assistência psiquiátrica, sobretudo da RegiãoNordeste.

2. Contextualizando o engajamento da famíliana assistência psiquiátrica

Nas políticas hoje em curso no país, sobretudo nocampo da assistência social, parece haver umatendência de mudança, com uma ampliação na lógicada cidadania, da proteção exclusiva do indivíduopara a proteção de seu grupo familiar. Assim, cadavez mais o grupo familiar é chamado, e às vezesexigido, a se inserir nos programas sociais na área deassistência e nos projetos terapêuticos dos serviçosde saúde. Tal tendência, contraditoriamente,acompanha as mudanças societárias e legislativasque realçam cada vez mais os direitos específicos dealguns segmentos no interior da família, sobretudoa criança, o adolescente e o idoso. Tal tendênciaconsolida avanços e ao mesmo tempo vários dilemasa serem geridos sobretudo pelos genitores, aindanão preparados para os novos desafios postos. Porexemplo, é comum as escolas, ao abordarem comas crianças o Estatuto da Criança e do Adolescente,

enfatizarem os direitos dos mesmos. Por outro lado,com a família, particularmente com os pais, tendema realçar os deveres. Neste sentido, a relaçãoescola-família acaba por instituir uma tensão, atéporque muitas vezes os pais, desconhecendo aextensão dos direitos da criança e do adolescente,sentem-se desautorizados a impor limites e a suaautoridade, dimensões inerentes ao processo

educativo, pelo temor de acionamento das instânciasde garantia de direitos de seus próprios filhos.Em uma outra arena, na pediatria, por exemplo, apresença da mãe como acompanhante da criançaé uma exigência de humanização da assistência,em nome de direitos, conforme reza o Estatuto daCriança e do Adolescente, e ao mesmo tempo deapoio ao serviço, pela própria carência no númerode trabalhadores em saúde. O cotidiano em umaenfermaria hospitalar é muito tenso e comumenteentediante para um acompanhante, que algumasvezes procura circular pelos corredores do hospitalpara se distrair, fato que frequentemente é visto

como perturbador das rotinas pelos profissionais.

Em saúde mental, por sua vez, é com a portaria nº251/GM, de 31 de janeiro de 2002, que estabelecediretrizes e normas para a assistência hospitalar empsiquiatria e reclassifica os hospitais psiquiátricos,que passa a ser vislumbrado oficialmente umdispositivo na mudança nas relações entre osserviços psiquiátricos e a família, haja vista que oscuidadores domésticos, até então, eram percebidos,preponderantemente, das seguintes formas: comoinformantes; como um recurso episódico ou comouma visita, muitas vezes, inconveniente. A citadaportaria prevê, no desenvolvimento dos projetosterapêuticos, o preparo para o retorno à residência/inserção domiciliar e uma abordagem dirigida àfamília no sentido de garantir orientação sobreo diagnóstico, o programa de tratamento, a altahospitalar e a continuidade do tratamento.

O legislador parece ter sido perspicaz ao exigire contornar uma abordagem mínima ao grupofamiliar pelos hospitais psiquiátricos, num contextode ampliação do cuidado comunitário e garantiados direitos, sobretudo civis, das pessoas comtranstorno mental. Neste cenário o grupo familiarpassa a ser reconhecido também como provedor decuidado, e desse modo torna-se imprescindível suaincorporação nas ações dos serviços, requerendo-se

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portanto um preparo mínimo para o desempenhodesta função.

A família, sobretudo na fase inicial da eclosão dotranstorno mental, tem um papel fundamental naconstrução de uma nova trajetória para o seu enteenfermo, mas seus recursos emocionais, temporais,econômicos e seus saberes têm que ser bemdirecionados, e a contribuição dos trabalhadores eserviços psiquiátricos tornam-se fundamentais atépara desconstruir o imaginário social de que “lugarde louco é no hospício”. É importante destacar quea família também partilha deste imaginário social,

pois é membro da sociedade e, consequentemente,participa de seus valores. Assim, é fundamentaluma ação intensiva e de retaguarda dos serviçosjunto às famílias, para que se s intam potentes paracontinuar com sua função de cuidadora.

Teoricamente, a família ganhou visibilidade comoprovedora de cuidado no Brasil através da produçãodo professor Eduardo Mourão Vasconcelos (1992).No seu livro, o autor apresenta os contornos dacrise do provimento de cuidado doméstico à pessoacom transtorno mental em função das mudançasdemográficas e sociais que impactam a família.

Como um ator a ser cuidado pelos serviços, afamília é trabalhada por vários autores, tais comoo psiquiatra Jonas Melman (2001) a partir daexperiência do Centro de Atenção Psicossocial LuizCerqueira, na cidade de São Paulo, primeiro doBrasil. É também vista como provedora de cuidadosno plano doméstico e prático, a partir dos impactos

das demandas de cuidado impostas pela emergênciade uma pessoa com transtorno mental (ptm) em seuseio, dentre outros, por Rosa (2003).

A família no interior dos debates reformistasganha uma pluralidade de sentidos e dimensões,preponderantemente como: 1) um grupo queprecisa de assistência e cuidados; 2) como umrecurso ou lugar, como outro qualquer, mas não o

único; 3) como provedora de cuidados; 4) como

avaliadora dos serviços e 5) como sujeito político.Tais dimensões não são excludentes, ao contrário,fundem-se em várias circunstâncias, sendo que emalgumas situações uma ou outra dessas identidadesse sobressai mais.

Por sua vez, o envolvimento significativo da famíliano processo de reforma psiquiátrica, como um

ator, um protagonista, tem se constituído umdesafio. Inicialmente alguns familiares, atravésde associações, inserem-se na luta em prol dacidadania da pessoa com transtorno mental e de sua

reinserção na comunidade. Isto é, originariamentealguns grupos de familiares aparecem publicamentereivindicando algo para o ptm e não mostrandosua realidade enquanto provedores de cuidadoou requisitando algo para si. Outros, sobretudoatravés da Associação de Familiares de Doentes

Mentais (AFDM), com sede no Rio de Janeiro, têmresistido a este processo em função do temor dedesassistência, por entender o processo reformistacomo equivalente à desospitalização, tendo por

premissa que “a desinstitucionalização significariaabandonar os doentes à própria sorte, seja pelapremissa crítica, correta, de que seu objetivo podeser o de reduzir ou erradicar a responsabilidade doEstado para com estas pessoas e familiares, seja

por uma compreensão pouco correta do conteúdoteórico que está em jogo” (AMARANTE, 1996: 21).

Para exemplificar tal receio, no mês de setembrode 2002, a AFDM realizou no Rio de Janeiro seu II

Congresso Nacional, para “debater as consequênciasdas Políticas de Saúde Mental”. No jornal AFDMInforma   a manchete destaca: “Congresso rejeita

política de saúde mental imposta pelo MS”, porconsiderá-la produtora de desassistência.

Embora com uma conotação política

contrarreformista bastante evidenciada, tentarorganizar os familiares em função do temor de

desassistência torna-se um forte atrativo paraos familiares, pois, se o hospital psiquiátricoconvencional é, real ou potencialmente, violador dedireitos, no senso comum e na exaustão do cuidador,“ruim com ele, pior sem ele”. Tal percepção deve-se à função que tal modalidade assistencial temcumprido na divisão de encargo do cuidado coma ptm, entre Estado e família (VASCONCELOS,1992). Ainda, como a política de saúde mental seencontra em uma fase de transição de modelos,a coexistência do novo modelo com o anterior, bemcomo as contradições e crises, singulares e comunsa todo processo de mudança, aliada ao jogo político,

em muitos momentos, repõe antigos fantasmas– manicomiais – na arena de embate, exigindoreforços extras na garantia da direção do processo.

Neste sentido, é identificada a resistência de algunsgrupos de familiares, organizados politicamente ounão, por desconhecimento da proposta do movimentode reforma psiquiátrica, até porque não parece claroà maioria dos familiares-cuidadores a extensão e osbenefícios das mudanças em curso; em função dassobrecargas vivenciadas pelos mesmos no ambientedoméstico e das próprias mudanças internas pelasquais vem passando o grupo familiar; por temor emterem que arcar sozinhos com o peso do cuidado oupor questões ideológicas e posicionamento político.No III Fórum Social Mundial, no Seminário/Oficina:“Clínica e Política e Capitalismo Contemporâneo:resistências no/do campo da reforma psiquiátricabrasileira”, na síntese das proposições, figura aseguinte expressão: “deve-se admitir o fracasso da

inclusão dos familiares na proposta da Reforma epropor novas formas de abordagem da questão”.Parece uma visão um tanto quanto pessimista,muito embora sinalize a necessidade da criação denovas formas de abordagem da questão.

O apoio da família e sobretudo dos cuidadores-familiares à mudança no modelo assistencial éfundamental, haja vista que são eles que “sentem

na pele” o peso do cuidado ou as mudanças naqualidade de vida, propiciadas pela inserção daptm na comunidade. Assim, são atores estratégicostambém na formação de opinião pública, a favor oucontra o modelo assistencial.

Um dos aspectos a serem repensados na abordageme inclusão dos cuidadores-familiares no novo modeloassistencial, sobretudo nas rotinas dos centros deatenção psicossocial, remete ao formato desejadopelos profissionais de nível superior acerca da formade participação/integração da família nos projetosterapêuticos versus  as possibilidades concretas das

famílias. Neste horizonte desenha-se um possívelcampo de tensão e de construção, pois algunstrabalhadores da saúde têm uma perspectiva deencontrar uma família “já pronta politicamente”,ou seja, crítica em relação ao modelo assistenciale ação do Estado e ativa, isto é, conhecedora dosmecanismos de garantia de direitos. Ainda, temuma representação de como a família poderia serincluída, qual lugar poderia ocupar, que nem semprecorresponde ao desejo e às reais possibilidades dasfamílias.

Atualmente, vislumbra-se o desenho de participaçãono cerne das políticas públicas no formatorepresentativo. Em alguns contextos, materializadosna forma de conselho gestor dos serviços, emoutros na forma da participação em comissões dereforma psiquiátrica, em que a integração da famíliafica limitada a poucas pessoas. Isso não seria umlimite, caso houvesse dispositivos eficientes, demassa e diversificados, para atingir principalmenteo público analfabeto, de divulgação e socializaçãodas informações. Da mesma maneira, no geral,observa-se que quando um grupo de familiares tomaa iniciativa de se reunir e deliberar pela criação deuma entidade representativa, ao ser nomeado umpresidente/coordenador, a pessoa que assume estelugar tende a ficar solitário ou contar com reduzidonúmero de pessoas no trabalho cotidiano. Até

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mesmo as pessoas dos demais cargos de diretoriatendem a apenas emprestar seu nome, sem sair

daquele lugar nomeado hierarquicamente, mas, aomesmo tempo, sem contribuir e participar de forma

ativa na gestão do dia a dia das deliberações. Talcaracterística de participação é típica da formação

política do brasileiro, que se sente ativo apenas no

momento de oferecer seu voto, e que, não rarasvezes, é assediado por ofertas de compra de voto.

Além disso, no campo da assistência psiquiátrica,

os familiares-cuidadores exaustos e estigmatizadostemem tornar pública sua condição ou se expor

publicamente como representante da “saúdemental”, pois, conviverão com o risco de rótulo de

“familiar de doido”. Somando-se aos limites dados,observa-se que as associações de familiares-

cuidadores preponderantemente são coordenadase compostas por mães, no geral, com uma certa

idade, isto é, em uma fase da vida que podem

estar precisando também ser cuidadas. Aí, pode-seindagar, por que no âmbito familiar é a maternidade

que, mais intensamente, mobiliza a participaçãopolítica?

Parece haver uma crise nas formas de participação,

até então construídas. Além disso, há umasubalternização59 histórica dos segmentos de baixa

renda que se soma ao desconhecimento e falta deexercício cotidiano dos direitos de cidadania e todas

59 Emprego este termo para informar o jeitoaparentemente passivo e resignado com que os usuáriosde baixa renda se comportam diante dos serviços e dapessoa que estudou, do(a) doutor(a). Um jeito de serconstruído no processo histórico e na sabedoria popularque evita o confronto e a cobrança direta. Longe está deculpabilizar o usuário pelo seu próprio comportamento.Registra apenas a forma como se configurou a cidadaniaem uma sociedade com poucos letrados, que não tevea cidadania plena/universal, e que se relaciona com ospobres de maneira autoritária e como recebedores defavor.

as questões a eles atinentes, que impõe uma formapeculiar de enfrentar as tensões políticas e sociaisatravés do “jeitinho brasileiro”. Neste sentido háuma tendência de familiares/usuários dos serviçosde saúde contornarem e rejeitarem a perspectiva deum confronto direto com os trabalhadores de saúdee com os dirigentes dos serviços. Por estratégia,pois, temem que qualquer represália recaia sobre o“lado mais fraco da corda”, a pessoa com transtornomental, ou ficam receosos no caso de precisar voltara necessitar do serviço e ficarem marcados e,assim, serem negligenciados ou sofrer a desforra,que pode se dar de forma bastante sutil, quase

imperceptível. Ainda desviam-se, e algumas vezessão desviados intencionalmente de tal confronto,por desconhecimento dos mecanismos formais, dotipo ativação do Ministério Público, do Conselho deSaúde, ou de denúncia nos conselhos de profissões...Quando o usuário decide-se pelo confronto,atualmente, é comum o recurso à imprensa, e atéhá pouco tempo era ao bispo/à igreja. A denúnciade violação de direitos em veículo de formação deopinião pública, mais destacadamente a televisão,tem-se mostrado bastante eficiente e eficaz. Écomum a resolução quase que imediata de certosproblemas na área da saúde, assim que ganhavisibilidade pública, muito embora os mecanismosde controle social e o Ministério público tenhamapresentado também certa eficácia.

Vale lembrar, mais uma vez, que o lugar atualda família nos serviços de saúde mental sofrea influência de toda a conformação definida no

arcabouço teórico das origens da psiquiatria.Historicamente, no campo psi,  a família ganhouvisibilidade teórica (como vilã ou vítima do transtornomental); assistencial (como recurso, visita ou agenteassistida através das terapias familiares) e maisrecentemente como sujeito político, que se organizae luta por direitos, promove ações na esfera pública;ou como provedora de cuidados, que deve ser

incluída nos projetos terapêuticos dos serviços.Evidentemente, estas visões não são excludentesentre si, ao contrário, fundem-se, e sobre a família/cuidador podem-se construir múltiplas imagens,pois têm uma atuação multidimensional, sendosua identidade plural e manifesta a partir de suacondição de classe, de seu contexto assistencial, desuas atitudes, de seu preparo político e instrumentalcomo cuidadora e ainda a partir da posição de quema examina.

3. De que família se fala na assistência

psiquiátrica?

No presente estudo a família será conceituadaa partir de uma concepção sociológica, e assim éapreendida como o “conjunto de pessoas ligadaspor laços de sangue, parentesco ou dependênciaque estabelecem entre si relações de solidariedadee tensão, conflito e afeto (...) e (se conforma) comouma unidade de indivíduos de sexos, idades eposições diversificadas, que vivenciam um constantejogo de poder que se cristaliza na distribuição dedireitos e deveres” (BRUSCHINI, 1989).

Várias disciplinas definem o que é família, cada qualdestacando aspectos considerados importantespara o conjunto de saberes e práticas de cada área.Muito embora haja diferenças entre os vários ramosdo saber, consensualmente todos reconhecem quea família é um grupo histórico, que é determinadopor instâncias macroeconômicas, mas também cria

novas determinações que remetem à sociedade.É assujeitada e é sujeito do processo histórico.Alguns teóricos chegaram a decretar a sua morte,sobretudo da família moderna/burguesa/edipiana,por considerar que é um grupo patogênico, produtorde repressão e sofrimento. Contudo, atualmente, osestudos têm mostrando o seu revigoramento, apesardas intensas mudanças pelas quais atravessa, sendo

a sua existência reforçada por alguns segmentos.Para exemplificar, as famílias homoparentais lutamcontemporaneamente pelo casamento e pelaadoção de filhos, isto é, certas minorias de quemse esperava a construção de formas alternativas dese associar e viver em sociedade (ROUDINESCO,2003) passam a reforçar aquela organização queaparentemente negavam, principalmente a famíliaedipiana.

Teórica e praticamente, a revitalização do temada família pode ser atribuída a alguns processoshistóricos em curso. As mudanças decorrentes dareestruturação produtiva, que lançou vários de seusintegrantes ao desemprego estrutural, mostrama importância da família na garantia de vínculos/referências sociais e como espaço de sobrevivênciae provimento de cuidado. As políticas neoliberais,direcionadas regressivamente para as políticassociais, remetem várias funções, antes assumidasem parte ou integralmente pelo Estado, para o grupofamiliar. Os processos de desinstitucionalização,que mostram a falência das instituições totais(manicômios, prisões, asilos, orfanatos etc.) ebuscam propostas alternativas que asseguremdireitos a grupos específicos da população evalorizam os serviços abertos e comunitários,têm a família como uma das parceiras nos novosprocessos, ao ser a mediadora entre seus membros ea sociedade. Neste contexto, parece que até mesmoa cidadania sofre algumas injunções que alargamseu espectro. Até então, a cidadania implicava umarelação direta do indivíduo-cidadão com o Estado,

por isso as políticas sociais serem fragmentadase voltadas para certos indivíduos em situaçõespeculiares no grupo familiar: a criança, a gestante,o idoso, a pessoa com deficiência. Atualmente, háuma tendência das políticas públicas terem suamatricialidade na família, para um grupo de pessoas,a exemplo do Programa Saúde da Família e doSistema Único da Assistência Social. Dessa forma,

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tende a haver uma “invasão” da família, ao ganharfocalidade nos programas governamentais. Emboraprogramas como o Saúde da Família não se limitemà família de baixa renda, é, todavia, esta que tem setornado seu público principal, até porque tende a sermais receptiva, a criar vínculos com maior facilidadecom os profissionais, e arrisca assim descortinar oseu espaço de intimidade/privacidade, por ser maisporosa à intervenção de outrem.

Um ponto importante é que a família que procuraa assistência psiquiátrica, no geral, está em umcontexto de crise, e uma crise já instalada, com umahistória e várias tentativas, sem êxito, para debelá-la. A observação e os estudos sistemáticos têmmostrado que a família tenta resolver os problemasque emergem em seu seio, inicialmente, de maneiraprivada, recorrendo a seus próprios conhecimentose estratégias de atuação que se mostraramanteriormente eficazes.

Assim, se não consegue resolver um problemainternamente, o grupo familiar tende a recorrerem seguida à rede de parentesco e vizinhança e àsautoridades próximas ao local de residência (padre,pastor, pai de santo, benzedeiras etc.). Esgotados osrecursos de maior proximidade, aí sim procura umserviço público.

Normalmente, esta família chega a um serviçopsiquiátrico com sentimentos de impotência,exaustão, culpa, desespero. É uma das últimasformas de publicizar uma questão que preferia,se tivesse outra opção, resolver no plano privado.Como é acolhida? Qual o seu lugar nos serviços deassistência psiquiátrica?

Na pedagogia dos hospitais psiquiátricos, afamília tendeu a ser abordada como informante daenfermidade, da trajetória da pessoa com transtornomental e como visita. Ou seja, figurou como atorinstrumental ao tratamento, e não como sujeito,provedora de cuidado.

Todavia, parte significativa dos hospitaispsiquiátricos se modernizou e é exigido, comovisto na portaria acima, a incluir a família nosseus projetos terapêuticos. A portaria 251 parecerestringir o âmbito da abordagem da família/cuidador ao aspecto instrumental da enfermidadee do tratamento. Estabeleceu padrões mínimos dequalidade assistencial, sobretudo para hospitaispsiquiátricos, na abordagem da família. Isso nãoquer dizer que tais serviços devam se limitar aeste mínimo, muito embora a tradição brasileirade gestão tenha comprovado que o mínimo tendea se transformar em máximo. De qualquer maneira,

é exigido que todos os serviços assistenciais empsiquiatria passem a ter uma abordagem voltada àunidade ou ao grupo familiar/cuidador.

A experiência tem mostrado que frequentemente,ao familiar-cuidador, os serviços oferecem umatendimento com orientações individuais ougrupais. É relativamente comum a prática regular dereuniões semanais com a família. Alguns serviçospromovem visitas domiciliares, mas são os centrosde atenção psicossocial que a desenvolvem demaneira mais sistemática, como parte inerenteao projeto terapêutico. As supracitadas reuniões,mesmo que episódicas em alguns contextos,tornam-se importantes para o cuidador doméstico,pois muitas vezes é a maneira mais efetiva/seguraque tem institucionalmente de tirar suas dúvidassobre a enfermidade, o cuidado e de dialogar com osprofissionais. Mas, no geral, são os novos serviços,abertos e comunitários, que são desafiados a

implementar práticas diferenciadas com estesegmento, a criar novas tecnologias de abordagemcom os familiares-cuidadores, e, sobretudo, adar visibilidade e contribuir na sua condição deprovedora de cuidados domésticos, tendo em vistaque:

um dos objetivos dos CAPS é incentivar que asfamílias participem da melhor forma possível docotidiano dos serviços. Os familiares são, muitasvezes, o elo mais próximo que os usuários têmcom o mundo e por isso são pessoas muitoimportantes para o trabalho de CAPS, nãosomente incentivando o usuário a se envolver noprojeto terapêutico, mas também participandodiretamente das atividades do serviço. Osfamiliares são considerados pelos CAPS comoparceiros no tratamento. (BRASIL, 2004, p. 29)

A parceria é conceituada no dicionário comouma reunião de pessoas com um fim em comum,uma sociedade. Como CAPS e família são ambosprovedores de cuidado, a inclusão dos familiares-cuidadores no projeto terapêutico tende a trazeruma série de benefícios para os dois lados, tendoem vista o objetivo maior que é a reabilitação

psicossocial. Tal conceito é empregado por Saracenocomo sinônimo de cidadania, circunscrita ao

conjunto de estratégias orientadas a aumentar asoportunidades de troca de recursos e de afetos: ésomente no interior de tal dinâmica das trocas quese cria um efeito “habilitador” (...) reabilitação éum processo que implica a abertura de espaçosde negociação para o paciente, para sua família,para a comunidade circundante e para os serviçosque se ocupam do paciente: a dinâmica da

negociação é contínua e não pode ser codificadade uma vez por todas, já que os atores (e ospoderes) em jogo são muitos e reciprocamentemultiplicantes. (SARACENO, 1999: 112)

Para metamorfosear em práticas os pressupostossupramencionados, os trabalhadores em saúde têmque ser potentes mediadores, articulares de pessoas,

serviços e capacidades. Para se transformar empráticas, as ações têm que se desconcentrar dasestruturas arquitetônicas tradicionais e dos lugarestípicos dos técnicos e ir para os espaços onde agestão da vida cotidiana da pessoa com transtornomental acontece, e por isso a lógica do CAPS estarcentrada no território.

4) Algumas limitações no trabalho com afamília

Trabalhar com famílias apresenta várias limitaçõese possibilidades ao profissional, porém apenas seelencarão algumas questões.

Contemporaneamente, as unidades familiares vêmpassando por intensas mudanças, independenteda classe social. Algumas mudanças demográficastêm um peso significativo no cuidado entre seusintegrantes. A redução no tamanho das famílias fazcom que um número cada vez menor de pessoasesteja disponível para prover cuidados. De formaassociada, sendo a mulher historicamente a principalcuidadora no ambiente doméstico, sua saída parao mercado de trabalho e suas múltiplas jornadas eexigências de requalificação têm intensificado astensões entre os provedores de renda para o grupoversus  as pessoas que s ão dependentes de cuidadosde terceiros. O familiar-cuidador que trabalha forasofre com a necessidade de divisão entre os temposde gerar renda e de prover cuidado, arriscando-seao subemprego ou até mesmo ao desemprego. Comas separações conjugais/divórcio, e a diferençano mercado matrimonial, desfavorável à mulher, onúmero de famílias monoparentais chefiadas pelasmulheres, sobretudo por idosas, tem aumentadosignificativamente. Dessa maneira, as mulheresidosas, numa fase que necessitam de maiorescuidados com a própria saúde, continuam sendointensamente demandadas como provedoras de

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renda, até porque, no geral, têm a renda segurada aposentadoria e como provedoras de cuidado,inclusive de netos.

As mudanças nos valores no interior do grupofamiliar têm intensificado alguns conflitos,sobretudo de caráter intergeracional. Entre asfamílias dos segmentos de baixa renda, orientadoshistoricamente por valores mais holistas erelacionais, em que a pessoa existe em funçãodo todo e suas decisões consideram primeiro asnecessidades do grupo, parametrado pelo “dar,receber, retribuir” (SARTI, 1996), tem penetrado

com intensa rapidez o valor do individualismomoderno. As novas gerações, orientadas pelovalor do indivíduo moderno, que centra a pessoaem si mesma, sustentando as relações com baseprioritária em critérios de prazer e realizaçãopessoal, têm produzido mudanças relacionais,que impactam a qualidade dos relacionamentosentre os idosos e os jovens do grupo familiar. Valedestacar que a terceira idade é vivida de maneiraplural, heterogênea. Vários valores permeiam aexperiência dos idosos contemporaneamente. Omercado consumidor, sobretudo de turismo, teminvestido nos idosos dos segmentos de alta renda.Contudo, entre os segmentos de baixa renda,vislumbram-se mudanças mais intensas em duasdireções. De um lado os filhos, orientados pelovalor do indivíduo moderno, querendo poupar osavós, sobretudo a avó, para que possa usufruir aterceira idade com o autocuidado, prazer e lazer,tem distanciado os netos das avós, que foram

socializadas predominantemente em valores holistase relacionais, de ter uma vida em função do cuidadodo outro e não de si mesma. Neste sentido, observa-se que algumas idosas, ao se verem sozinhas, porseparação, por divórcio ou morte do cônjuge, ao severem “sozinhas no mundo”, sem saber como gerirum tempo que era dedicado ao outro, sem conseguirorientar o cuidado para si mesma, correm o risco

de se isolar, se deprimir ou até mesmo entrar noalcoolismo. Neste sentido, os centros de convivênciae as universidades da terceira idade têm sido umexcelente antídoto para aqueles ainda capazes defrequentar tais espaços, mas nem todos têm acessoou condições físicas para tal e, assim, o sofrimentoe o transtorno mental rondam estas pessoas, que seveem fragilizadas socialmente.

De uma outra forma, alguns filhos, sobretudo osmais jovens, não têm integrado em seus valorespessoais de vida o princípio da retribuição docuidado oferecido por pai/mãe. Tem sido frequente

o sofrimento de mães idosas que gostariam de sercuidadas por seus filhos e, ou têm que continuarprovendo cuidado ou, ainda pior, percebem que osfilhos a rejeitam e não têm o desejo de dispensarcuidado quando necessitam.

As famílias até há pouco tempo tinham papéis maisdemarcados, mais definidos e estáveis, em que oidoso tinha, se não um papel de destaque, mas deautoridade, e era uma figura que merecia a priori  orespeito e a consideração de todos. Todavia, algumaspessoas mais idosas, sobretudo de baixa renda,tendem a resistir à família contemporânea, maisigualitária, dinâmica, flexível e plural (VAITSMAN,1994), em que o lugar da autoridade se dissolve,ou perde vigor. É comum, mesmo entre os maisidosos, a perda no manejo da autoridade. Algunsestudos vêm mostrando que não são os filhos quemudaram, foram os pais que perderam exatamenteos seus lugares sociais, sobretudo como autoridade.O crescente reconhecimento de direitos de cada umdos indivíduos no interior da família tem impostouma mudança sem precedentes, que leva os paisa perderem referências até então construídas portransmissão oral. Ainda, as possibilidades colocadaspela informática, pelo mercado consumidor e pelaprópria violência urbana, têm fascinado e ao mesmotempo atemorizado muitos pais, ou feito com quemudem comportamentos, sobretudo nas classes

média e alta. Em certos casos, estes processos têmestimulado a precocidade dos filhos: uso do celular érotina entre as crianças; a vida sexual dos filhos emmuitos domicílios da própria família também não éraro; o estímulo à direção de veículos antes da idadelegal etc. As casas são cada vez mais muradas eprojetadas com equipamentos de segurança queisolam a família. Os pais não são mais a únicafonte de transmissão de conhecimento, junto com aescola, pois tem-se hoje a internet.

A partir deste conjunto de mudanças, os profissionaissão demandados a dialogar com famílias cada vez

mais no plural, mas com experiências e valoresdistintos e regras bastante singularizadas. Umaoutra limitação é que poucos trabalhadores emsaúde estão capacitados para o trabalho comfamílias. Além disso, no geral, as modalidadesde capacitação disponíveis aos profissionais parase qualificarem em um trabalho com a família nocampo psi  é dispendioso, tendo, no geral, que sercusteadas pelos próprios alunos, têm uma duraçãoprolongada e exigem uma dedicação intensa, sendofrequentemente dirigidos para o atendimento aossegmentos de classe média, que fala a mesmalinguagem dos trabalhadores, e, portanto, detêm omesmo habitus  (BOURDIEU, 1982), mas criando umaincompreensão dos fenômenos familiares e umaadequação das abordagens operativas quando setrata de famílias oriundas das classes populares, nocontexto de serviços públicos.

Ainda carecemos no Brasil de uma proposta teórico-metodológica para abordar famílias em contextode crise e engajá-las de forma efetiva nos projetosterapêuticos dos serviços de saúde mental. Nãobasta informá-la sobre o diagnóstico, o tratamentoe a alta. As experiências na assistência psiquiátricacom grupos de familiares são escassas, e ainda nãodevidamente documentadas e divulgadas. A famíliademanda um preparo mínimo para o complexoprovimento de cuidado doméstico a uma pessoa

adulta com transtorno mental e para enfrentar suaspróprias questões, que são múltiplas e multifacetadas.Mas não um preparo nos moldes convencionais, emque um detentor do saber competente vai ensinar,mas sim trocar saberes e também aprender. Há quese ter como pressuposto de qualquer processo decapacitação que a família traz um conhecimentoconstruído com base no ensaio e erro e nas múltiplasexperiências que troca com seus pares. Ainda, nãotem como haver uma receita ou uma fórmula-padrãopara prover cuidado no ambiente doméstico, poisvários aspectos singularizam tal espaço. Este saberdo senso comum tem uma sabedoria e precisa

ser valorizado, respeitado e integrado ao sabercientífico. Ainda, não basta prescrever condutas,embora algumas famílias demandem “receitasprontas”, pois, sobretudo, aquelas dos segmentosde baixa renda e com um transtorno mental em seumeio são imediatistas, querem que “o doutor, queestudou pra isso”, ofereçam algumas respostasque garantam segurança e alguma resolutividadeno enfrentamento do cotidiano do provimento decuidado.

5. Alguns riscos envolvidos no trabalho comfamílias

No dia a dia da abordagem e atuação com a família,vários riscos permeiam a relação do profissionalcom a família, destacando-se alguns. O primeiro éconstituído pelo profissional se dispor a fazer um

trabalho com a família sem o devido preparo teórico,metodológico e ético. Neste sentido, qualquer serhumano se sente “meio doutor” em família, poisviveu e sofreu a vida toda a influência das relaçõesfamiliares. Desse modo, “naturalmente”, podeacreditar que entende de família.

 A ação conjunta de dois ou mais profissionais podetrazer algum risco para a família. Se os envolvidos na

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questão não tiverem preparo mínimo e maturidade,podem reproduzir os conflitos que a própria famíliavivencia. Podem entrar em um jogo de disputa porcompetência ou simpatia da família.

Ilustrativamente, é bastante comum em um serviçode saúde, mesmo CAPS, a família, mesmo sendoatendida por todos os profissionais da equipe de

nível superior, sentir que não foi atendida se nãofalar ou passar por uma consulta com o psiquiatra,dada a dominância desta profissão na cultura emgeral. Às vezes, a atuação dos demais profissionais

é mais intensa com os cuidadores domésticos, mas

é comum em reuniões ou assembleias os mesmoselogiarem ou só reconhecerem publicamenteapenas a ação médica.

Em muitos serviços, além dos vínculos precáriosde trabalho e dos baixos salários, há um baixonível de recompensa simbólica, por exemplo, dereconhecimento pelo trabalho realizado e este,

muitas vezes, é um dos quais os profissionaisesperam ter, e muitas vezes não têm, da parte doscuidadores-familiares. Neste contexto, não é rara adecepção e a fala de indignação dos profissionais

que não foram reconhecidos. É preciso maturidade,bom senso e acima de tudo ética para enfrentaresta situação. As “guerrinhas” de vaidade ouinterprofissionais podem ser reproduzidas naintervenção com os familiares-cuidadores, pois

muitos profissionais querem mostrar serviço,mostrar-se úteis para a família. Muitas vezes estasdisputas acabam reproduzindo os próprios conflitos

vivenciados entre os membros no interior de cadagrupo familiar. A carência afetiva/simbólica do

profissional acaba, algumas vezes, se sobrepondoàs necessidades das pessoas e dos gruposvulnerabilizados. É necessário muita autovigilâncianas práticas com a família. O espaço das supervisões

é fundamental neste sentido.

Outro aspecto é a relação com famílias de baixa

renda. No geral, poucos profissionais foramcapacitados academicamente para trabalhar com afamília, e, quando o foram, parte significativa dasqualificações se voltam para a família de classemédia, de consultório, próximo da experiênciapessoal do profissional. Neste sentido, quando oprofissional olha a família dos segmentos de baixarenda, muitas vezes só consegue ver desorganização,desestruturação, pois quando a família está em criseé assim que ela aparece aos seus próprios olhos eaos olhares dos demais. Contudo, é nesta ocasiãoque ela busca um profissional ou um serviço deassistência psiquiátrica. Os profissionais, no geral,

estão pouco habituados com o olhar antropológicopara entender outros códigos culturais e outrosarranjos, que não os de sua própria classe social.Além disso, confundem pobreza econômica,material, com pobreza cultural, e assim, nemsempre se abrem para aprender com os segmentosde baixa renda, que têm códigos linguísticos ecomportamentais particulares.

Os familiares-cuidadores, no geral, trazem paraos profissionais e serviços de saúde, além dacrise psiquiátrica, toda a sua crise existencial,pelos abalos produzidos, sobretudo, pelasprivações socioeconômicas. Vale lembrar queum dos princípios do Sistema Único de Saúde éa atenção integral. Neste horizonte, não bastaescutar a “enfermidade” e sim também os seuscondicionantes/determinantes e o contexto de vidadas famílias. A crise psiquiátrica é apenas um dosproblemas a intensificar os dramas vividos pelas

famílias, vulnerabilizadas pelo contexto de pobrezae exclusão/destituição social.

É um risco profissional só se ver pobreza, impotênciae impossibilidade. Neste caso, o risco maior é doprofissional ficar tão paralisado quanto a família, enão vislumbrar outras possibilidades, nem mesmoatravés da intersetorialidade com outras políticaspúblicas. A circunstância de crise é a ocasião em

que o grupo familiar mostra toda sua incapacidade,impotência, mas é também a ocasião onde estãoafloradas várias capacidades que o próprio grupo,geralmente, não consegue identificar. É o momentoem que o profissional pode observar a dinâmicafamiliar de forma exponenciada, na solidariedade ouausência dela, nas tentativas de encontrar saída, nosrecursos ou falta deles, assim como se observa se afamília conta com uma rede social com limitações oucom oportunidades de oferecer suporte.

As redes podem constituir um suporte noenfrentamento de situações adversas, como otranstorno mental, na situação de insegurançaeconômica e também frente à falência dos serviçospúblicos, muito embora não os substitua. Podeainda ser um agravante da situação vivida pelafamília, pela sua ausência, por falta de vínculos desolidariedade ou pelo estigma associado.

Diante da família em crise e que quer transferir aresolução de seus problemas para os profissionais“que estudaram e entendem disso” (do cuidadoda pessoa com transtorno mental), é comum oprofissional se ver diante do dilema de ter que daruma resposta, seja ela qual for, até para aliviar suaprópria angústia, demonstrar certa competênciaou dar a impressão de que deu alguma solução.Para o médico parece ser mais tranquilo prescreveruma medicação ou requisitar um exame. Paraos demais profissionais, às vezes há o apego aoencaminhamento para os recursos da comunidade,muitas vezes numa postura de transferência deresponsabilidade e não de compartilhamento de

soluções. O familiar-cuidador, frequentemente,tem a expectativa de que o profissional tenha uma“varinha de condão”, e muitos profissionais assumemtal encargo/fantasia. Aqueles que assumem oexercício de sua profissão como “o” doutor60  têm

60 Não se trata da posição e sim da atitude hierárquicae autoritária, daquele que sabe tudo e por isso tudo

que ter uma resposta para tudo para se manterneste lugar. Ou seja, trata-se de uma formaçãoe atitude elitistas e autoritárias que permeiam asintervenções e que colocam o profissional como oúnico solucionador de problemas. Daí também aprática do “aconselhamento”61  ser generalizada.Frequentemente, alguns profissionais acham quesabem o que é melhor para todas as famílias quechegam em seu consultório/serviço ou que seencontram sob sua responsabilidade.

Neste horizonte, é importante registrar que qualquerprofissional reage ao se deparar com o grupofamiliar e com seus problemas. Cecchin (2000:73)aponta cinco respostas básicas dos profissionais emrelação à família:

a) o profissional tem necessidade de tornar-seútil para a família. Neste cenário, quanto mais oprofissional é útil, mais a família se sente inútil,desamparada e impotente, pois não constrói novassoluções para seus problemas;

b) alguns se colocam como professores,prescrevendo comportamentos, “aconselhando”sem a família-cuidador ter solicitado. Neste sentido,quanto mais professoral é o profissional, menos afamília e o cuidador aprendem, e menor qualidadeinteracional existirá entre ambos;

c) o profissional deseja c ontrolar o grupo, disciplinar

resolve, sem diálogo, sem aprendizagem e interlocuçãocom a família-cuidador.

61 Muitos profissionais assumem, tacitamente ou não, quefazem aconselhamento sem definir tal conceito e sem terum preparo específico para tanto, limitando-se a prescrevercondutas, sem avaliar o impacto de sua atuação sobre afamília-cuidador. “Aconselhar” não deixa de ser uma dasestratégias para aliviar a angústia de muitos profissionais,que também acreditam que com isso mostraram suacompetência ou deram uma “resolutividade” à questãotrazida pelos usuários de seus serviços.

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o processo interativo, deixando os membrosdependentes ou apáticos;

d) o profissional quer proteger as pessoas e afamília percebida como desorganizadas, infelizese desestruturadas, e toma para si a tarefa dereorganizar e cuidar do grupo. Neste sentido, nãohá um aprendizado do próprio grupo na resolução desituações limites;

e) o profissional manifesta, consciente ouinconscientemente, o desejo de punir a família,dando uma lição no que considera ser o mau marido,má mãe, má filha, mau cuidador.

 

Nas formas acima esboçadas de oferecer respostaao grupo de familiares-cuidadores, o profissionalarrisca exercer a cruel compaixão (SZASZ, 1994),pois em nome de contribuir, auxiliar o grupo para sairde seu contexto de crise e impotência, substitui opapel dos membros da família, s ubtrai competênciaprópria da família, desconsidera recursos e anecessidade da própria família construir sua históriae se sentir potente para resolver suas própriasquestões, em conjunto ou com a colaboração dosprofissionais, e não exclusivamente por estes.

Um outro risco está inerente aos novos processos detrabalho, que impõem a visita domiciliar. Primeiro,o profissional tem que fazer uma visita para a qualnão foi convidado. As famílias, no geral, nem foramconsultadas se desejam tal visita. A residência éum espaço da família, de sua intimidade. Cada casatem suas próprias regras, horários e cada famíliatem ainda seu senso de dignidade, que muitasvezes é abalado em função da invasão de muitosprofissionais que, além de impor sua presença noambiente doméstico, não consideram o horário queseria mais conveniente para a família: “o horário,as rotinas não devem ser encarados como parte darotina burocrática dos serviços. Há que se definirhorários compatíveis com as rotinas domésticas e

com a disponibilidade da família” (TRAD, 2005)62.

Mesmo entre os mais pobres há um espírito dehospitalidade, há um desejo de oferecer um café, àsvezes impossível. É comum em visitas domiciliares àsfamílias muito pobres o pedido de desculpas por nãoter cadeira para oferecer ao profissional para que sesente. Em muitas ocasiões, a boa conversa se dá nafrente de casa, sentados no paralelepípedo da calçadaou no tronco de uma árvore no fundo do quintal.

Ainda, os profissionais tendem no ambiente natural dafamília a obter segredos da família, a ter informaçõesprivilegiadas que o familiar-cuidador não forneceria

se não estivesse naquele espaço. As várias versõese vivências de um mesmo fenômeno, a partir de umaconversa conjunta, sobretudo com o usuário do serviçoe com o seu cuidador, tendem a se explicitar, exigindodo profissional a escuta cuidadosa, preservadorada integridade de cada um, e o devido manejo éticopara que o confronto de duas versões, algumas vezescontraditórias, não se explicite e produza maior danoaos implicados. Há então, a necessidade de zelo pelaprivacidade, intimidade e, acima de tudo, o agir comética com este grupo.

No ambiente doméstico, nos bairros pobres,o profissional sai dos espaços seguros dosconsultórios, onde ele domina o meio, e vai para umespaço incerto, com regras que desconhece, tendoque lidar inclusive com a violência urbana. É comumos familiares-cuidadores alertarem os visitadoresque é melhor irem embora de certos bairros antesdas 18 horas, pois o pessoal do tráfico começa a sefazer presente depois deste horário.

Leal (2002), ao analisar a violência na rede deassistência à saúde mental, mostra como os

62 Leny Trad, professora da UFBA em palestra no IIICongresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas emSaúde, promovido pela ABRASCO, de 9 a 13 de julho de2003 em Florianópolis, SC.

profissionais dos serviços podem ser violentos comos familiares de pessoas com transtornos mentaisseveros. Informa que em

geral porque acabamos por naturalizar a gravidadedos casos que nos chegam. Damos poucarelevância às queixas desses familiares, que vãodesde queixas de estarem sofrendo psiquicamentecom as situações graves que vivenciam até queixasde perdas materiais decorrentes de episódios deagressividade do paciente ou mesmo de violênciafísica. (...) essa naturalização do sofrimento dasfamílias, em prol da valorização e proteção dosofrimento dos pacientes graves (...) me parecefruto de uma atitude nossa que é muito maiscomum do que imaginamos (...) no afã de defenderos loucos fomos capturados por uma tendência devitimizá-los.(...) só resta ao serviço ser heroico esalvar o paciente. Atitude que atribui à instituiçãode cuidado um poder muito totalizante e perigoso.Fica ressaltada, sob essa ótica, a história darelação do serviço com o “caso”, e não a históriade vida da pessoa e do meio no qual está inserida.(p. 147)

A autora mostra a tendência de polarização eredução das análises e experiências cotidianas, oque subtrai a complexidade inerente às situaçõesmais comuns na assistência psiquiátrica.

Como visto, os riscos que permeiam o trabalhocom a família são densos, exigindo tanto da famíliaquanto do profissional. Cabe ao bom cuidador zelar

então para que a dignidade e a integridade dasfamílias sejam preservadas.

6. Considerações finais

Como um texto introdutório, o objetivo foi mapearalgumas questões relevantes para enriquecer o

debate, sobretudo sobre a dialética da família, por umlado como usuária de serviços e programas de saúdemental, e, por outro, como sujeito político, parceira eparticipante das ações da assistência psiquiátrica.

A partir de nossa análise, constatamos a necessidadeda construção de uma nova pedagogia na relaçãoentre os serviços de assistência psiquiátrica com asfamílias e, sobretudo, com os familiares-cuidadores,reconhecendo e valorizando seus saberes e recursosforjados na convivência diária com a pessoa comtranstorno mental. Neste sentido, é fundamental:

a) uma organização flexível dos serviços de saúdemental, de forma a atender às necessidades,também, do familiar-cuidador;

b) a ultrapassagem do provimento de cuidadoda esfera meramente pessoal e doméstica, dosespaços considerados naturais, politizando-o comouma questão de toda a sociedade, remetida àspolíticas públicas;

c) uma maior visibilidade sobre a questão do c uidadodoméstico, objetivando reorientar a atenção dosórgãos formadores e gestores;

d) uma atenção especial para as mudançassociodemográficas dos grupos familiares no país,sobretudo para a posição e a vulnerabilidade dasmulheres em seu interior;

e) uma maior integração dos familiares-cuidadoresna atenção, sem descuidar da pessoa comtranstorno mental e sem polarizar olhares, mas

sempre resgatando a complexidade das situações. 

Para finalizar, é preciso reconhecer que trabalharcom um tema complexo como o provimento decuidado doméstico à pessoa com transtorno mentallança qualquer profissional em um campo de maiorincerteza e complexidade, e exige o acionamento deum olhar integral que implica a “intersetorialidade

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

e a diversificação. Se nos propusemos a lidar comproblemas complexos, há que se diversificar ofertas,de maneira integrada, e buscar em outros setoresaquilo que a saúde não oferece, pois nem semprelhe é inerente” (ALVES, 2001).

Referências

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humanos. Rio de Janeiro: IFB/Te-Corá Editora, 2002.MELMAN, J. Doença mental e família . São Paulo:Escrituras, 2001.

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L. C. S. Transtorno mental e o cuidado na família .São Paulo: Cortez Ed., 2003.

ROSA, L. C. S. O cotidiano, as tensões e srepercussões do provimento de cuidado doméstico

ao portador de transtorno mental. In: Saúde emDebate , Rio de Janeiro, v. 28, n. 66, p. 28-37. jan/abr. 2004.

SARACENO, B. Libertando identidades:   dareabilitação psicossocial à cidadania possível. Riode Janeiro: Instituto Franco Basaglia/TeCorá, 1999.

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VAITSMAN, J. Flexíveis e plurais:   identidade,casamento e família em circunstâncias pós-

modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

VASCONCELOS, E. M. Do hospício à comunidade:  mudança sim, negligência não. Belo Horizonte:Segrac, 1992.

Texto 6

A FAMÍLIA E OS GRUPOS DE AJUDAE SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDEMENTAL

Rosaura Maria Braz63

1) Apresentação

Este texto é fruto de minha atuação, iniciada

em 1983, no Rio de Janeiro, como psicóloga emconsultório e como acompanhante terapêutica,

quando pude compartilhar o cotidiano de clientese demais moradores dentro de suas próprias

residências, inclusive nos momentos de crise aguda;trabalhando com grupos de familiares num grande

asilo, ou em associação de familiares e no Grupo

Alento, um grupo de familiares de usuários da

63 Psicóloga clínica, terapeuta de família, coordenadorado Grupo Alento (de ajuda mútua com familiares docampo da saúde mental) e pesquisadora acerca de temassobre família, desinstitucionalização e saúde mental(Projeto Transversões ESS / UFRJ). Contatos: [email protected] e telefone cel. (21) 9129-072

saúde mental fundado em 1997, e portanto já commuitos anos de atividades, e que será descrito maisà frente; ou ainda na militância antimanicomial eem minha própria vivência pessoal e familiar. Nosúltimos anos, com uma inserção mais orgânica destetrabalho junto ao Projeto Transversões, da Escolade Serviço social da UFRJ, passei a atuar maisativamente como pesquisadora e fazer anotaçõesmais sistemáticas sobre ele, na forma de diário decampo.

A pretensão deste texto introdutório é de levantarquestões que nos ajudem a pensar sobre osestereótipos e estigmas vividos pelas famíliasque convivem com o sofrimento mental dentro decasa, e convidá-los a saírem de seu isolamentoe engajarem-se na troca com seus pares,particularmente em grupos de ajuda mútua e emassociações de familiares e usuários. Além disso,

visa também sensibilizar profissionais e a sociedadecivil, que fazem parte deste processo de recuperaçãodo usuário e sua família.

É fundamental afirmar que, em minha estimativa,o número de familiares amorosos, solitários,impotentes e sem saber aonde recorrer paramelhorar os cuidados permanentes ao usuário emelhorar sua própria qualidade de vida é bastante

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TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

significativo. Este texto será dedicado a estesfamiliares, que merecem todo o nosso respeito eapoio.

Gostaria de iniciar meus comentários tecendoalgumas considerações mais amplas sobre ostranstornos mentais.

2) Transtornos mentais: considerações maisgerais

Na Classificação de Transtornos Mentais ede Comportamento da CID – 10 (ClassificaçãoInternacional de Doenças/1992), o termo transtornonão é considerado um termo exato, porém é usadopara indicar a existência de um conjunto de sintomasou comportamentos clinicamente reconhecível,na maioria dos casos associado a sofrimento einterferência com funções pessoais. A ausência dedisfunção pessoal faz com que um desvio ou conflitosocial não seja incluído nesta categoria.

Existem diferentes tipos de transtornos mentais ecom diversos níveis de gravidade, que normalmenteevolui para a cronicidade. A chamada loucura (comosão conhecidos alguns transtornos mais profundos)é um sofrimento de origem biopsicossocial e podese manifestar através de um surto psicótico, definidocomo um episódio de dissociação da estruturapsíquica do indivíduo, fazendo com que estemostre comportamentos socialmente estranhos e

diferentes, devido à momentânea incapacidade depensar racionalmente.

O início pode ser insidioso ou abrupto, com umcaráter disruptivo e, muitas vezes, se apresentandosob a forma de uma crise aguda ou surto. Costumamanifestar-se entre os 13 e os 35 anos de vida deuma pessoa. O diagnóstico é realizado através deuma entrevista com o paciente e sua família, para

obter informações detalhadas sobre sua história devida e de seus sintomas. Até o presente momentonão existem marcadores biológicos próprios dessadoença nem exames complementares específicos.

Alguns fatores podem contribuir para odesencadeamento de um surto psicótico, como

o uso abusivo de bebidas alcoólicas ou outrasdrogas, mudanças no ciclo vital, fatos inesperados edramáticos na vida pessoal. Os transtornos mentaismaiores, ou psicóticos, manifestam-se atravésde sintomas clássicos como alucinações, delírios,

falta de pragmatismo, alterações do pensamento

e da afetividade, além de um número específicode variações profundas de comportamento, taiscomo excitação e hiperatividade grosseiras, retardopsicomotor marcante e comportamento catatônico.

Quando o surto é desencadeado somente pelo usode drogas lícitas ou ilícitas, a interrupção do usodestas substâncias pode reverter o quadro, masmuitas vezes o uso abusivo de drogas ilícitas está

associado a algum transtorno mental.

Do ponto de vista de um diagnóstico diferencial, ostranstornos mentais mais usualmente identificados

com a loucura são os vários tipos de esquizofreniae as diversas manifestações do transtorno afetivobipolar, considerados transtornos mentais maiores e“crônicos”, ou seja, para os quais não se pode esperaruma cura definitiva. Seu tratamento exige recursos

intensivos e permanentes, tornando-o caro se providoapenas no mercado privado de ofertas terapêuticas,e requer uma assistência interdisciplinar e

de parcerias entre diferentes setores: saúde,educação, moradia, trabalho, transporte, esporte,lazer, cultura e justiça. Geralmente, o tratamentodos transtornos mentais maiores deve ser contínuo,impondo acompanhamento permanente dosusuários de serviços, apoio aos seus familiares e da

generosidade da família extensa e amigos.

Historicamente, no Brasil, a loucura passou a sertrancafiada a partir da chegada da corte portuguesana cidade do Rio de Janeiro, em 1808. As melhoriasurbanas, como calçamento e iluminação dasruas, e a nova cultura requerida pelo status   desede do império, exigiam a retirada das viaspúblicas daquelas pessoas excluídas socialmente(prostitutas, epiléticos, devassos, ladrões,alcoólatras e os loucos). Todos foram encaminhadospara os porões da Santa Casa da Misericórdia,sendo que os loucos, em 1852, foram enviados parao recém-inaugurado Hospital de Alienados Pedro II,na Praia Vermelha, na época distante da cidade e

o primeiro de uma série de manicômios que foramcriados posteriormente no Brasil. Se inicia assimno país o afastamento da pessoa com sofrimentomental do convívio familiar e social, em um processotardio mas similar ao que também ocorreu em outrospaíses europeus.

3) O processo gradual de contato da famíliacom o transtorno mental, em suas diversasetapas

3.1) “E que sejam felizes para sempre”: asexpectativas no momento de constituição dafamília

Quando duas pessoas resolvem se unir e formar

uma família, existe também a querência mútua ea expectativa futura de alegrias e sucessos, sejamestas pessoas conservadoras ou não. Apesar deser comum não se esquecer de alguma eventuallembrança desagradável nestes momentos, elasgeralmente não estão presentes e no máximopensamos que vão acontecer conflitos rotineiros eque serão facilmente superados.

O nascimento de um(a) filho(a) aumenta estasexpectativas e é comum o desejo de que estacriança seja saudável, inteligente, bonita e quetenha um futuro bem-sucedido. O olhar de parentes,amigos, vizinhos e conhecidos contribui com todosestes sonhos.

3.2) “Mas aí, um dia ... o que é isso?” O sustocom a primeira crise e com o diagnóstico

Tudo vai bem até que um dia aparece um convidado

inesperado – uma doença ou condição crônicade dependência –, e neste momento aquelasexpectativas e projetos de vida são brutalmenteameaçados, como se o chão de repente se abrisseem nossos pés em um abismo sem fundo e a vida seacabasse, em direção a um futuro sombrio e triste.

No caso dos transtornos mentais isso se agravadevido ao enorme estigma e discriminação difusosna sociedade, fruto de anos e anos de práticashegemônicas de segregação que se baseavam nomodelo hospitalocêntrico e de profissionais ocupadosem estudos e práticas para normatizar pessoase extirpar os sintomas. Esta cultura e as práticaspsiquiátricas geraram o isolamento dos internados eo afastamento de seus familiares, isto é, a exclusãodo usuário do convívio familiar e de sua comunidade.Neste contexto, os familiares, sem esperança derecuperação, envergonhados e sem saber o porquêdeste agravo, tendem a se “proteger” transformandoesta situação em segredo de família, e o mandato

de aparente assistência difundido pela psiquiatriaconvencional reforça a indiferença quanto ao futurode seu familiar dentro de tais instituições totais,ficando eles portanto abandonados e sem notícias deseus parentes diretos. A rede familiar e social quetorceu com a chegada desta criança, agora endossao preconceito e se afasta.

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Entretanto, se formos além desta visão maismacrossocial, sombria e sintética de todo oprocesso, poderemos constatar que até mesmo oprimeiro contato com uma crise mental não é tãolinear e simples assim, pois gera muitas situaçõesambíguas, complexas e carregadas de muitaansiedade, tensão e angústia para seus familiares.

Quando os primeiros sinais de um transtorno mentalsurgem, as famílias frequentemente buscam ajudade parentes, amigos, religiosos e de eventuaisprofissionais de acesso pessoal. Somente apósfindar este repertório inicial de procura, paraentender e procurar sanar o que está acontecendo,é que aceitam consultar profissionais e serviçosformais, públicos, privados ou conveniados e,muitas vezes, procuram vários destes profissionaissimultaneamente. A confirmação do diagnósticopode levar anos, e, como já foi citado, tanto o usuáriocomo a família relutam para aceitar este “veredito”,o que dificulta ainda mais a adesão de todos aotratamento, podendo com isso agravar e/ou retardara melhora destes sintomas e, consequentemente,um melhor patamar de bem-estar para todos.Este diagnóstico costuma vir acompanhado deimaginários e preconceitos dramáticos. Entretanto,a experiência com famílias que convivem melhorcom o transtorno mostra que aceitar o diagnósticonão significa que a pessoa passa a ser apenas, apartir de então, o transtorno. Isso quer dizer que,de agora em diante, esta pessoa terá necessidadesespeciais, deverá ter um acompanhamento mais deperto, e que as pessoas envolvidas precisarão de

ajuda para aprenderem a administrar melhor o diaa dia da família. Por exemplo, Maria vai continuara ser a Maria, só que agora também se apresentacom uma determinada condição crônica que exigiráalguns cuidados regulares; contudo Maria sempreserá mais do que um diagnóstico.

Após o diagnóstico, é comum as famílias ficaremenvergonhadas, sentirem-se c ulpadas e esconderem

esta informação de sua rede familiar, social e detrabalho. O familiar que adota esta conduta vai,sem perceber e lentamente, se castrando e abrindomão de projetos para a sua vida. As justificativasencontradas para estas atitudes podem estarrelacionadas, da forma como aparecem no cotidianodos atendimentos, tanto aos efeitos colateraisdesagradáveis dos medicamentos (ganho depeso, exigência de exames de sangue periódicos,entre outros) quanto ao vilão maior da loucura,o estigma, que associa os transtornos mentais apericulosidade, a incapacidade e a doença incurável.Por outro lado, o diagnóstico ajuda a compreender

atitudes e condutas desta pessoa acometida pelotranstorno mental, o que às vezes facilita o convíviodentro e fora de casa e viabiliza buscas efetivas derecuperação.

3.3) A evolução do transtorno mental e seuimpacto na família

Durante anos a família foi “culpabilizada”(responsabilizada) pelo aparecimento de algumtranstorno mental em um de seus membros, mesmoquando se atribui apenas uma predisposiçãogenética. Além disso, esta família muitasvezes é muito mais reconhecida por adjetivosnegativos (esquizofrenizante, omissa, indiferente,oportunista, entre outros) do que como um conjuntode pessoas capaz de ajudar no tratamento dapessoa com sofrimento mental e que necessita de

apoio e cuidados. Naquela primeira visão negativa,a família pode ser associada à imagem de um“cartão de crédito estourado”, isto é, que carregauma enorme dívida simbólica, em termos de umveredito de culpada (no próprio autojulgamentodos familiares, que teriam falhado em sua tarefade gerar, cuidar e educar), de responsável pelotranstorno (pelo saber profissional) e estigmatizada

(pelo senso comum e pela cultura societária emgeral).

Assim, estes adjetivos e imagens costumamfomentar sentimentos muito dolorosos nosfamiliares. A culpa, por exemplo, pode s e manifestar

de diversas formas, tais como:

a) acreditar que foi quem transmitiu o gene doente;

b) o de não ter cuidado direito da pessoa adoecida;

c) o de sentir raiva por ver seu ente querido adoecido,rejeitado e sem perspectiva de futuro.

Este sentimento (a culpa), mesmo em silêncio,costuma vir acompanhado de vergonha, deisolamento e da crença de que o segredo seria “a”solução para o problema. Há diferentes estratégias

e mecanismos de defesa para lidar com isso. Écomum observarmos mães que necessitam estarde olho neste usuário todo o tempo, diferente de

irmãos e outros familiares que procuram evitar esteolhar, isto é, evitar o contato com este sofrimento,recorrendo a mecanismos de defesa como adenegação   e a fuga , se desligando com o tempo

do familiar em sofrimento mental. As internaçõesde longo prazo também contribuem para isso.Entretanto, este texto não irá focar em familiares

que conscientemente abandonaram ou exploramseus parentes adoecidos.

3.4) O tratamento psiquiátrico convencional ea relação com o cuidado produzido na família

 

Na ótica da psiquiatria que nasceu no início

do século XIX e que perdurou dominante até ametade do século XX, a terapêutica utilizada era ainternação, sem tempo determinado (inclusive por

que não se sabia muito sobre a dinâmica própriados transtornos mentais), em nome de uma buscado “sucesso da cura”. As formas de abordagemeram agressivas e se difundia a crença de que oadestramento da conduta desta pessoa levariaao sucesso no tratamento. Esta família era entãoalijada, não recebia orientação, e, por não saber oque fazer, seguia o curso que lhe era imposto pelasinstituições psiquiátricas.

O lugar de cuidador, ainda hoje, é geralmentecentrado em uma ou duas pessoas, especialmente asmulheres da família: a mãe, a avó, a esposa, a filha, a

irmã ou prima(s). Mais recentemente, começamos apresenciar nos serviços uma participação ainda quediscreta de homens cuidadores: o pai, o filho, o tio(geralmente materno) e irmão(s). De qualquer forma,este cuidado costuma ficar centralizado nas mãos depoucas pessoas, o que aumenta o risco de estresse,quando uma profunda tristeza vai s e enraizando navida destes familiares-cuidadores. Condutas comoanulação pessoal e o esgotamento físico e mentalajudam a fortalecer os sentimentos de impotência ede desamparo, junto a uma completa descrença emrelação a qualquer possibilidade de c onquistar umamelhor qualidade de vida para todos.

A dita “responsabilidade” da família faz parte doimaginário social, ratificada por algumas crenças eteorias recorrentes ao longo do tempo. Por exemplo,esta família é acusada de não saber educar: porexemplo, por não colocar limites ou por ser muitopermissiva. Já nos primeiros sinais deste sofrimento,é comum a pessoa com transtorno ser vista comopreguiçosa ou rebelde, e marcada pela ausênciade quem eduque este seu temperamento ou gênioforte. Nesta representação, a família aparece comoomissa, indiferente e passiva. Para a grande maioriada população, marcada por estas representaçõesdominantes e pelo desconhecimento de outrasvisões alternativas acerca deste drama, aceitar odesconhecido ou o que é carregado de estigmas

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é uma tarefa dolorosa e exige um grande esforço.Assim, para as famílias que não têm contato como universo das novas formulações acerca do campoda saúde mental, torna-se extremamente difícilreconhecer e aceitar o que está acontecendo. Nestecaminho, o diagnóstico definido pelos serviçospsiquiátricos tradicionais representa uma sentençadificilíssima de ser absorvida e aceita, pois é comose um sinal amarelo ficasse eternamente congelado,com a pessoa com qualquer limitação crônica sendovista como tendo seu selo de qualidade rompido,enquanto a família ou o cuidador passa a convivercom uma espada eternamente apontada sobre a sua

cabeça e principalmente para o seu coração.

Encontramos familiares que se anulam inteiramentepara cuidar da doença e do contato com serviçosde saúde, médicos e remédios. O trabalho forade casa pode até ser possível, particularmentequando constitui o único meio de subsistênciade todos, mas, no caso de haver outro provedorna família, é frequente cuidadores abandonaremqualquer pretensão de ter atividades externas àcasa. Estes, além de abrirem mão de seus projetosde vida, não acreditam que alguém diferente delesconsiga cuidar tão bem quanto eles. Uma eventualmorte antecipada da pessoa com algum transtornopermanente é a única chance de descanso destecuidador obstinado, mas também representa oconvívio eterno com a dúvida  de que esta pessoapoderia ter chances de se curar um dia e conseguirter uma vida mais alegre e saudável. Outros tentamescapar deste impasse procurando ficar o máximo

de tempo fora de casa, o que na verdade é umailusão de bem-estar, dada a possibilidade semprepresente de ser avisado e de ter que administraruma nova crise ou incidente, ou dado o medoaterrorizante de ser o próximo a sentir esgotamentoou adoecer, ou por que a angústia ou o medo de teroutro parente querido com transtorno mental estásempre presente no seu inconsciente.

O silêncio e o isolamento contribuem parafabricar desilusões e a transformar a própria vidaem um poço de lamentações (autopiedade e/ouvitimização), o que pode até mesmo gerar algumganho secundário no convívio com outros membrosda família e amigos, mas esta conduta tende aretardar o investimento na recuperação do parenteque vive o sofrimento mental.

3.5) As transformações geradas pelo atualprocesso de reforma psiquiátrica

Até meados do século XX, em casos de qualquerdoença e principalmente de transtornos mentais,a única referência era o binômio paciente-médicocomo a única possibilidade legítima de tratamento.Apesar de não ter sido sempre assim (exemplodisso são os pajés, curandeiros e parteiras, ealgumas práticas terapêuticas alternativas, como ahomeopatia e aquelas baseadas na cultura oriental),no ocidente moderno a psiquiatria, seu modelohospitalocêntrico e suas “terapêuticas” agressivasé que dominaram e eram reconhecidas e legitimadassocialmente.

Entretanto, a partir da II Guerra Mundial,presenciamos várias iniciativas e movimentos quevêm questionando profundamente a psiquiatria eeste modelo de assistência centrado em práticasmanicomiais. Este processo tem sido genericamentechamado de reforma psiquiátrica (AMARANTE,

1995; VASCONCELOS, 2008), e a direção mais geraldas mudanças inclui:

- questionar o objeto fictício e isolado do fenômeno“doença mental” para considerar um conjuntocomplexo e integrado de processos somáticos,subjetivos, sociais, culturais e políticos envolvidosna condição do sofrimento psíquico;

- buscar substituir o hospital psiquiátrico porserviços abertos na comunidade, com equipesmultiprofissionais e práticas interdisciplinares;

- desenvolver práticas multidimensionais em tornode um projeto terapêutico amplo, que vise reinventara vida e a saúde das pessoas acometidas, bem comoas condições de sua reprodução social;

- estimular dispositivos de assistência e cuidadohumanizados junto às pessoas com transtornosmentais, valorizando a sua condição de sujeito, aescuta e o fortalecimento dos vínculos afetivos esociais na vida das pessoas;

- desenvolver práticas terapêuticas baseadasna  inclusão, participação, empoderamento,autonomização e organização crescente  dosusuários e seus familiares.

Neste contexto, os grupos de ajuda e suportemútuos têm se constituído um dispositivofundamental e eficiente para quebrar o ciclopré-moldado e inexorável para os familiares ecuidadores descrito acima, possibilitando a seusparticipantes produzirem caminhos alternativos eoutros destinos pessoais para si próprios, bem comomelhores oportunidades de vida para aqueles dequem cuidam. A experiência do Grupo Alento, quedescreverei a seguir, é um exemplo vivo disso.

4) A experiência bem-sucedida do GrupoAlento e algumas da vivências comuns nas

famílias com transtorno mental

 

No início de 1997, em meu trabalho em equipe comoterapeuta de família64, atendíamos uma família

64 A equipe era constituída por quatro psicólogas: AnnaMaria Hoette (coordenadora), Patrícia Rubim (psicóloga

que convivia com conflitos aparentemente “semsolução”. Ela era constituída de pai, mãe e três filhos.A filha mais velha é médica, generosa, coerente

e insistia para que o restante da família nuclear eextensa procurasse um atendimento psiquiátrico

para a irmã caçula que, apesar de inteligente,sensível e de aparência saudável, também era muitoarisca, “esquisita”, “s empre aprontando confusões”

e “fazendo gastos acima das condições econômicasda família”. Tudo o que a moça começava “não tinha

continuidade”, o que ela justificava como sendo aincompreensão de terceiros. Contudo, ela insistiaexaustivamente para que todos contribuíssem

com um novo projeto para a sua vida. Os parentescomprometidos com os cuidados diários por suavez estavam desacreditados, exaustos, furiosos

e ao mesmo tempo aprisionados pela dúvida   de,“quem sabe, desta vez pode ser que seja diferente”.

O segundo filho, único homem, estava sempreausente e distante dos conflitos familiares e nuncacompareceu nas sessões de terapia da família.

Os atendimentos enfrentavam a resistência desta

família, que desconsiderava as intervençõesterapêuticas. Na época, eu atuava tambémcomo psicóloga voluntária de uma associação de

familiares, e propus à equipe convidar uma mãe queconvivia há mais longo tempo com o transtorno, e quenão só já aceitava e compreendia o sofrimento de

sua filha como também investia na sua recuperação.O objetivo era ter uma conversa e trocas de

de campo), Miriam Benarroch e Rosaura Maria Braz(atrás da sala de espelho onde era feito o atendimento,observando e fazendo considerações durante oatendimento).  Anna e Rosaura são as idealizadoras doGrupo Alento, nome escolhido pelo próprio grupo defamiliares. Em 2007, Anna foi substituída por Maria ClaraStockler e Rosaura Di Lorenzo. 

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experiências entre os familiares e a possibilidadede novas informações e encaminhamentos. Estaproposta era baseada na observação de que,quando familiares conversam entre eles sobredeterminadas experiências dolorosas, ressoava umeco que era muito mais terapêutico do que quandoesta conversa era apenas com um profissional, pormais acolhedor e competente que fosse.

Voltando ao caso, este encontro acalmou afamília, conseguiram ouvir e se identificar com ashistórias vividas por todos eles. Ao final do segundoencontro, o pai confessou que não suportava mais

aquilo tudo e que não voltaria mais. Como a mãeconcordou em dar continuidade, construímos emconjunto o formato de novos encontros só com osfamiliares desejosos de obter mais informações,trocar experiências e buscar encaminhamentos narede social em que estavam inseridos.

Uma constatação imediata nos permitiu ratificar avisão dos grupos de ajuda e suporte mútuos comoum dispositivo eficiente: quando outro familiar semanifestava sobre o mesmo problema que estavasendo relatado, o olhar e a atenção de quem estavafalando previamente se modificava, e ali surgiaum brilho diferente. Neste momento brotava asolidariedade e a cumplicidade entre pessoas queviviam histórias parecidas e o consolo de não sermais o único a viver tal situação.

Em paralelo, como terapeutas de família, asreuniões nos permitiram também perceber esistematizar alguns mecanismos típicos e comuns

da dinâmica psicológica interna ao grupo familiar,em sua relação com o transtorno mental:

a) os demais membros da família considerados“saudáveis” tentam ficar ausentes e distantesdos conflitos familiares, como também existe umacrença de que a mudança de conduta da pessoa comtranstorno resolverá todos os problemas familiares.

Este afastamento pode se dar às vezes por medode um dia adoecer ou por não suportar ver o irmãoadoecido recebendo mais atenção dos pais, emespecial da mãe. É uma ilusão pensar que só umapessoa seja a causadora de todos os problemasfamiliares. O transtorno mental tende a cegar eparalisar o que acontece ao redor, e ajuda a encobriroutras questões familiares;

b) os parentes e amigos próximos costumam“esquecer” de convidar e/ou incluir o usuário parafestas e confraternizações, talvez por acreditarem

que assim vão evitar si tuações embaraçosas;

c) o grau de desamparo e desinformação dasfamílias consolida uma postura de vítimas da vida eo sentimento de autopiedade. É recorrente falaremcompulsivamente de seus sofrimentos infinitos, comdificuldade de escutar o sofrimento do outro, e sóreconhecendo recursos e saídas possíveis para asoutras pessoas, e não para elas;

d) mesmo o familiar que recupera sua vida pessoale reconhece as conquistas do usuário, costumaser descrente e medroso. Cada melhora o remetea crises passadas e à desconfiança de que esteavanço em seu familiar pode ser passageiro.Persiste o pensamento: O que será na próximavez? Esta melhora vai durar até quando? Emcontrapartida, o usuário é crédulo e sedento de uma

vida considerada normal;

e) a família alega que não fala do transtorno vividopara não “expor” o usuário e para a proteção deste,e com isso usuário e família ficam “escondidosou protegidos” da vida social. Por outro lado, estaalegação colabora com o segredo e empobreceas trocas sociais. É importante que aprendam

a discriminar segredo de vida privada. Sem a

exposição em locais adequados, dificulta-se muitoas conquistas por uma assistência mais humanizadae a aceitação social;

f) é interessante a família s e perguntar:

- quem mais fica protegido com o silêncio do

sofrimento mental em casa é o usuário ou a família?

- quem mais tem dificuldade de se expor é o usuárioou sua família?

O modo de viver contemporâneo nas classes sociais

privilegiadas costuma só dar espaço para o bom, obonito e não para as dificuldades e complicações.

Esta constatação dos mecanismos comuns e daimportância da troca emocional e de experiênciasdiretamente entre os familiares nos estimulou a

continuar com a experiência. Hoje, em 2011, oGrupo Alento já comemorou 14 anos de existência,constituindo um dispositivo de importânciaabertamente reconhecido por todos os familiares

que dele têm participado.

5) As famílias nos grupos de ajuda mútua, suasnecessidades e temas mais recorrentes

Em geral, os familiares que procuram os gruposde ajuda e suporte mútuos são pessoas sensíveis,

sofridas e muitas vezes vivendo estados dedesespero, como se tivessem chegado ao “fundodo poço”. Buscam um espaço para conversar sem

repressões e um ombro amigo que entenda o queestão vivendo, e, se possível, que reconheçam osseus sofrimentos. São familiares com uma longahistória de frustrações, culpas e sem saber mais

o que fazer; os que estão iniciando o convívio com

esta experiência radical se consolam quando ouvemos relatos dos familiares com mais experiência;outros vêm mais para pedir uma orientação doque propriamente fazer; outros procuram compedidos objetivos, como, por exemplo, o nome deum psiquiatra, psicólogo ou serviço; outros estãocuriosos para saber o que se faz nestes encontros;outros chegam por indicação de algum profissional.Geralmente, o familiar, para continuar no grupo,precisa sentir nele um cli ma acolhedor e respeitoso.

Seja qual for o motivo desta procura, é unânimea busca por uma luz no fim do túnel, o brotar

da esperança de que dias melhores virão. Epor estarmos inseridos numa cultura em que épraticamente proibido falar do sofrimento e exporfragilidades, é importante que os vínculos afetivos ede confiança sejam cultivados e fortalecidos dentrodo grupo. Apesar da mesma busca, os familiaresque acompanham o dia a dia de seus entes queridosreagem de diferentes formas frente ao problema:

- alguns se comportam de forma maníaca, falandomuito, mas sem agir em conformidade com o quepregam;

- outros negam o diagnóstico e se ocupam emadjetivar negativamente a conduta do usuário oudos profissionais envolvidos;

- existem os familiares narcisistas que competementre si em relação ao nível de atenção e cuidadoscom os usuários;

- outros estão sempre muito ocupados, talvez comouma das estratégias para não entrar em contatocom os próprios sentimentos e com a realidade quelhes é imposta; outros se anulam e passam a viversomente para os cuidados e se tornam reféns dotranstorno;

- outros estão raivosos e acusam o usuário por seuinsucesso na vida;

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- e, finalmente, temos os que vêm em busca demudança e, mesmo com recaídas, costumam serparticipativos e afetivos, e estes facilitam o processocom o seu próprio crescimento e o do grupo.

Quando este tipo de familiar consegue refletir sobreseus valores e preconceitos e investe numa mudançaem seu pensar e agir, lentamente seu parente comtranstorno também melhora, buscando um novo lugarno mundo. Pessoas que sofrem mentalmente sãosensíveis e inteligentes, e reagem negativamenteem ambientes com estresse, tensões e cobranças

das quais não conseguem dar conta. Assim, temosconstatado que, quando o cuidador melhora, ousuário também avança em seu próprio processo.E, quando ambos estão engajados em grupos demútua ajuda, é notória a diferença nos objetivos departicipação: enquanto o familiar vai em busca desaber mais sobre este tema, os usuários buscam umespaço para conversar e falar de suas dificuldades.Minha hipótese para esta diferença é que o familiarnão desiste da busca de encontrar uma razão parao surgimento do transtorno, enquanto o usuárioprecisa “correr atrás do prejuízo”, isto é, ter comquem conversar de igual para igual.

Nos grupos de ajuda mútua com familiares, asreuniões abordam um conjunto variado de temas,entre os quais:

 

a) o sofrimento, dúvidas e esperanças vividas quandoos serviços de saúde mental informam o diagnóstico :para o próprio familiar, é difícil de dizer o que é pior:as crises ou o diagnóstico. Num primeiro momento,desacredita-se do profissional. Até à fase de aceitaro transtorno é percorrida uma longa estrada e mesmoassim acompanhada de muita dúvida, e mantendoviva a torcida por uma cura mais definitiva. Os gruposde ajuda mútua são fundamentais para acelerar etornar mais compreensível este processo;

b)a procura por serviços e profissionais comprometidoscom o cuidado ao longo do tempo, humanizados,competentes, e capazes de um bom acolhimentoe sensibilidade com os usuários e particularmentecom os próprios familiares : o familiar necessita sesentir acreditado em seus relatos, bem como tersua experiência e saber (acerca dos sintomas, dasdificuldades e das necessidades particulares dousuário) reconhecido pelos profissionais e serviços.Ao mesmo tempo, quer ser apoiado e confiar queeste profissional vai estar presente nos momentosdifíceis. É preciso lembrar que, infelizmente, é comumse encontrar profissionais com posturas julgadoras

ou indiferentes, em relação ao sofrimento ouimpossibilidades vividas pelos familiares-cuidadores.Os grupos podem oferecer boas indicações de serviçose de profissionais com as características desejáveis,a partir da própria experiência e de busca ativa deinformação qualificada;

c) como conversar com os profissionais semcensuras e aprender mais sobre medicamentos,os efeitos colaterais, o que se pode e não se fazer,incluindo a possibilidade de expressar dúvidas equestionamentos : o familiar quer ser parceiro e terrespostas para as suas dúvidas. É muito comum ofamiliar ter medo de que seus questionamentosfeitos ao profissional vá provocar algum forma denegligência ou má vontade no atendimento de seuente querido. Neste campo, a troca de experiênciasnos grupos permite aos familiares conhecerem as

estratégias para lidar com estes desafios, paraganharem mais confiança e mais assertividade narelação com os profissionais;

d) como reconhecer os sinais de piora no quadro dousuário, e de um eventual próximo surto :  na trocade experiências dentro dos grupos, os familiares vãoconstruindo um repertório de sinais e de situações

que podem se constituir em possíveis detonadoresde uma futura ou próxima crise. Este c onhecimento,quando é considerado pelos profissionaisresponsáveis pelo caso, pode contribuir paraantecipar estratégias preventivas, para minimizara intensidade do surto ou ainda para aumentar osintervalos entre eles;

e) a definição e a decisão do melhor momento e damelhor forma de se internar (voluntária e involuntária)o usuário, seus dilemas e consequências : às vezes,a convivência fica tempestuosa, acima do limite

de suportabilidade deste familiar, ou há risco deauto- e/ou heteroagressão, e não há saída senãoa internação. As formas de internação (voluntáriae involuntária) constituem uma decisão importante,dependem da capacidade do usuário de percebera piora de seu quadro, e cada uma delas temconsequências futuras. A internação involuntáriasempre tem consequências mais negativas,mas às vezes é a única alternativa viável para ascondições apresentadas. Independente do númerode internações já ocorridas, cada situação dessasé vivenciada com muitas dúvidas se o momento éo mais adequado, se é possível esperar mais, senão há outro jeito etc. Além disso, faz reviver osentimento de fracasso e, por outro lado, representaum descanso no cotidiano, acompanhado daesperança de que as crises não se repitam. Estesdilemas, ambiguidades e sentimentos constituemtema importante e frequente nos grupos;

f) a fragilidade e as necessidades próprias dosfamiliares durante o período da internação :  osfamiliares necessitam de profissionais que, nosmomentos mais severos, se responsabilizem pelainternação e que garantam que ao longo desteperíodo o usuário tenha um acompanhamentohumanizado, que o prepare para uma alta programadae com um contrato firme e claro de continuidade do

tratamento. Também aqui a experiência de outrosfamiliares é essencial;

g) a necessidade de ter um arsenal deestratégias de convivência diária, no lidar com asparticularidades da relação com o usuário e comseus comportamentos mais desafiantes :  muitassituações exigem estratégias especiais, como,por exemplo, proteger-se e não ter medo, em casode agressividade e devaneios exagerados. Nosserviços de saúde mental, é comum se cobrar queo familiar coloque limites; entretanto, isso não é

bem explicado a eles, nem é considerado o contextoparticular deste grupo familiar, nem é perguntadocom quem este familiar conta nos momentosdifíceis. Existem pessoas que não contam comninguém e nem têm recursos econômicos para talgasto, e, neste caso, o que fazer? Neste campo, astrocas de experiências e as iniciativas de suportemútuo têm um papel fundamental para as famílias;

h) estratégias de lidar com o uso frequente e abusivode álcool e outras drogas, com suas consequênciase dilemas :  hoje tem sido muito frequente nosdepararmos com familiares vivendo este drama esem saber para onde encaminhar e como convencereste usuário a aceitar e aderir a qualquer tipo detratamento. Também têm sido regulares os relatosde serem submetidos a agressividades e extorsãopor parte deles. Por outro lado, há uma crençageneralizada na abstinência/reclusão com único

modelo de lidar com estes casos, por parte dasociedade em geral, dos familiares e mesmo deprofissionais. Poucos conhecem as característicasdos programas de redução de danos implantadospelo Ministério da Saúde. Assim, estas famíliaschegam aos serviços e profissionais em buscade respostas efetivas e de resultados imediatos.Lamentavelmente, muitas delas não aceitamrefletir sobre suas próprias condutas e tendem a

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abandonar ou ignorar qualquer abordagem. Muitasvezes, confundem o esforço do grupo em ajudá-las e se acreditam julgadas. Todos estes temaspodem ser objeto de conversa, no sentido de buscarinformações mais qualificadas, de conhecer osserviços e estratégias de tratamento, e de superaras visões do senso comum;

 

i) os enormes desafios de lidar com oscomportamentos autoagressivos e suicidas : muitosfamiliares relatam com ira, menosprezo e melancoliaa conduta de vários profissionais que apregoam que

“quem quer se matar, se mata e não tem jeito”. Emnossa experiência, observamos que os familiaresque atuaram energicamente e contaram com ajudade outros profissionais, familiares e amigos, tiveramum desfecho mais feliz, muitas vezes tendo comoresultado o abandono destas práticas pelo usuário.Contudo, mesmo nestes casos, para os familiaresainda é muito difícil se esquecerem da experiência.Já aqueles que viveram a perda de um parente porsuicídio, tendem a viver angústias e culpas graves.Assim, a experiência do comportamento suicida,concretizada ou não, vem sempre associada a pecadoe culpa, e os grupos de ajuda mútua têm um papelimportante de acolher e redefinir estas vivências;

j) os dilemas e as estratégias relacionados àrecusa de tratamento e a suas consequências napiora no quadro do usuário : o que fazer e a quemrecorrer quando o usuário não aceita ser tratado?Existe um número enorme de familiares queconvivem isolados com usuários que não aceitamqualquer forma de intervenção, particularmenteir a psiquiatras ou a qualquer serviço de saúdemental, ou que não querem tomar os medicamentospsiquiátricos prescritos, e que inclusive podem ficararredios, acusando todos à sua volta de estaremdiagnosticando-o como louco. Nos grupos, a trocade experiências com famílias com mais tempo de

convivência com tais desafios é fundamental;

k) as diversas estratégias de lidar com oscomportamentos ofensivos aos próprios cuidadorese familiares, ou como “cuidar bem de seu algoz” :a experiência com familiares aponta para apossibilidade de uma reelaboração acerca doscomportamentos disruptivos e ofensivos por parte dousuário. Muitas vezes, o que é dito nos momentos deira e mal-estar não vem “do coração”, mas constituimais uma expressão sintomática de seu transtorno.Existe a possibilidade do cuidador aprender a se

discriminar do lugar imaginário criado por estasacusações e/ou ofensas, que são mais porta-vozesdos conflitos internos do usuário. Conseguir realizareste deslocamento e assim saber perdoar podetrazer mais leveza à relação diária. Dentro do gruposde ajuda mútua, os relatos de outros familiares queconseguiram desenvolver estas estratégias sãofundamentais para os “novatos”;

l) como lidar com a tristeza em ver as expectativasfrustradas e os comprometimentos mais acentuadosda vida afetiva, social e profissional de seu familiarcom transtorno : muitas vezes, este é sensível einteligente, mas tende a projetos duvidosos ousempre inacabados, à ociosidade e ao isolamento.Este tema e as estratégias de como lidar com elesão muito comuns nos grupos de ajuda mútua;

m) os desafios da busca e conquista de atividadesque ampliem as possibilidades de vida e que

respeitem as limitações e potencialidades de seu

familiar, nas áreas de tarefas do cotidiano, cultura,lazer, sociabilidade, esporte, vida comunitária,

educação, trabalho etc.: este campo constitui temafrequente nos grupos, e as iniciativas de suportemútuo aqui têm um papel fundamental;

n) como avaliar a melhor indicação e a dosagem,com o menor nível de efeitos colaterais; comoconseguir a medicação e garantir a rotina quegaranta o uso regular e adequado de todos osmedicamentos : o ajuste da medicação e de seusefeitos colaterais é sempre um processo delicado,às vezes demorado, pois exige uma sensibilidadepara identificar seus efeitos reais no cotidiano euma negociação sutil e regular com o psiquiatra. Aexistência de medicamentos de segunda geração, àsvezes com níveis mais baixos de efeitos colaterais,coloca novos problemas pelo seu alto custo eprocedimentos extras para conquistá-la por vias

judiciais. De qualquer forma, mesmo a medicaçãomais convencional nem sempre está disponível nosserviços públicos, e fora deles ela pode representarum custo muito elevado para vastos setores dapopulação brasileira. As farmácias popularesainda não estão abastecidas com uma cestadiversificada de psicofármacos e que aborde todasas necessidades no campo da saúde mental. E, alémdisso tudo, pode haver resistência para se tomar amedicação de forma regular e responsável, e osfamiliares desenvolvem uma série de estratégiaspara tentar conseguir isso, representando nosgrupos de ajuda mútua uma troca das experiênciasmuito intensa. É também preciso muito cuidado parase estabelecer a estratégia e a rotina de tomada dosremédios, para se evitar as confusões tão comunsna hora de saber o horário de cada um, para semonitorar se a dose daquele dia já foi tomadaetc. Assim, a medicação e seus vários dilemas

constituem um tema recorrente nos grupos;

o) o reconhecimento e as estratégias de garantir odireito ao descanso, ao cuidado de si e a um projetode vida por parte dos familiares e cuidadores : a vidanão é só a pessoa com transtorno, e ser capaz dese distanciar em alguns momentos precisos (algunsfins de semana, férias, construir um projeto de

trabalho ou de desenvolvimento pessoal, momentosregulares do dia para fazer atividades para si ou paraos demais membros da família etc.) não só garante a“recarga das baterias”, mas também é fundamentalpara se construir uma relação menos pesada comquem recebe o cuidado, com menor cobrança eestresse. À medida que se conquista este espaço,é possível pensar na busca de projetos pessoais devida para além do cuidado. Neste campo, os gruposde ajuda mútua podem desenvolver iniciativasconcretas e variadas de suporte mútuo . Isso podevariar desde atividades mais simples como deixarseu parente com outra família por uma noite ou fim

de semana, até projetos coletivos mais complexos,como esquemas de passeios, turismo, atividadesculturais e esportes; colônia de férias; residênciasterapêuticas; projetos de trabalho e renda etc.;

p) o dilema de geração na produção do cuidado, ouseja, como os familiares lidam com o medo/pavorde se confrontarem com a própria morte e com odesafio de quem e como se proverá o cuidado paraseu familiar com transtorno no futuro : uma situaçãofamiliar muito frequente é a existência de cuidadoresmais velhos (pais, tios, avós etc.) que a(s) pessoa(s)com transtorno mental. Nestes casos tão comuns,há um tema muito difícil e que só é explicitadoclaramente por estes cuidadores em ambientesmuito acolhedores e especiais: o confronto com suaprópria morte e com o desafio da continuidade daprovisão do cuidado em condições adequadas. Apossibilidade de uma internação em instituições

totais desumanizadas e mortificadoras está semprepresente. Assim, um enorme esforço é despendidoem tentar garantir renda e cuidado de boa qualidadea partir da falta futura dos cuidadores, e aqui seencontra também um vetor muito comum de esforçopara a criação de associações de familiares: atentativa de criar projetos coletivos duradouros demoradia, renda, trabalho, sociabilidade e cuidados,

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capazes de garantir uma boa qualidade de vi da paraseus parentes no futuro. Este tema só emerge nosgrupos de ajuda mútua quando este desenvolve laçosmais profundos de solidariedade e cumplicidade;

q)os desafios adicionais de lidar com usuários idosos :os cuidados e os tratamentos de qualquer doençacrônica são caros, permanentes e precisam da ajudaoperacional de outras pessoas. Quando este usuárioé idoso, estas dificuldades se multiplicam. Além dadificuldade em se contratar auxiliares competentes,carinhosos e íntegros para o cuidado domiciliar,

os serviços que assumam este tipo de tratamentoe acompanhamento terapêutico são raros. Estaspessoas requerem atendimento psiquiátrico,neurológico, geriátrico, fisioterapêutico, e, às vezes,outros cuidados adicionais. Neste campo, todasestas formas de cuidado são dispendiosas, e cadaum deles é indispensável para que esta pessoapossa ter uma qualidade de vida digna e o máximopossível saudável, do ponto de vista físico, mental,psíquico e social. Aqui, nos grupos, a vivência e oconhecimento das alternativas das famílias commaior tempo de experiência é fundamental;

r) as dificuldades próprias dos casos que envolveminfração penal e medidas de segurança : quandoadultos, a maioria das pessoas com transtorno quereceberam sentenças por infrações penais tendem aser abandonados nos hospitais de custódia, sem odireito de recorrer e reivindicar penas alternativas,

o que pode significar uma pena de prisão perpétua.No caso de adolescentes, as medidas são menosdraconianas, mas as condições dos abrigos atuaisno Brasil são preocupantes. As alternativasdependerão de programas de desinstitucionalizaçãoprogressiva e de profissionais engajados e sensíveis.Nestes casos, a família que investe em seu familiarnestas condições tem enormes desafios adicionais,

no sentido de acreditar na reabilitação, em mobilizara instituição, seus profissionais e os recursosjudiciais cabíveis, bem como se disponibilizar e criaras condições ideais para as saídas programadas,além de lidar com formas mais exacerbadas aindade estigma. Embora estes casos sejam mais rarosnos grupos, o apoio concreto dos demais familiaresé essencial.

6) O sistema de saúde mental, as necessidadesda família e os principais desafios a seremenfrentados

Naturalmente, a elaboração e as respostas possíveisa todas as questões levantadas acima vão dependermuito das características da política, dos serviçose dos profissionais de saúde mental disponíveisno país e particularmente no município onde seencontra a família. As transformações da assistênciaem saúde mental ainda são muito recentes, secomparadas aos mais de 200 anos de práticas edoutrinas tradicionais ensinadas nas escolas, queformam profissionais nas áreas de saúde e saúdemental direcionados quase que exclusivamenteà escuta dos sintomas da doença e à prescriçãode tratamentos muitas vezes desrespeitososou agressivos. A abordagem da PsiquiatriaDemocrática, desenvolvida na Itália a partir dadécada de 1960, e que constitui a principal fontede inspiração para a reforma psiquiátrica brasileira,entende a importância do psicodiagnóstico e dapsicofarmacologia. Entretanto, tem como princípioprimordial acolher primeiramente o sofrimento desteusuário e de sua família e só em seguida ocupar-se da avaliação, das possibilidades terapêuticasmúltiplas e da elaboração interdisciplinar de umprojeto terapêutico individual. Este novo processode assistência implica também, como vimos acima,

novas ações por parte dos usuários, dos familiarese da equipe interdisciplinar. A revisão dos valoresda sociedade em relação às pessoas com transtornomental, também é de suma importância.

Como indicamos acima, um dos maiores dilemasque a família vive é o que fazer no período de criseaguda. Nestes momentos, é importante que a própriaequipe de profissionais assuma a responsabilidadepela internação. O comum é a família ficar com esteônus e ser acusada pelo usuário, que fica raivoso comeste procedimento, muitas vezes realizado de formainvoluntária. Também é comum a família ser olhadacom desconfiança pela equipe de profissionais e serpouco acolhida.

Certamente, seria um avanço se os profissionaisque atendem nos ambulatórios e serviços deatenção psicossocial trabalhassem também nosleitos de crise, preferencialmente em enfermariasde hospital geral ou em emergências gerais. Ainternação por si só é assustadora, e para suavizá-la seria bom ter profissionais conhecidos e comuma boa relação a priori   com a pessoa em crise.Em seguida, se for necessário, este usuário serialogo transferido para um CAPS III (24 horas pordia e 7 dias na semana) ou uma casa de transição(de médio tempo de internação) inseridas nacomunidade e parceiras das redes intersetoriais, emque todos estariam comprometidos com um projetoterapêutico individual criterioso. A internação deveestar sempre comprometida com a alta programadae com os acordos claros e sedimentados entre osprofissionais, o usuário e seus familiares, já com

uma orientação acertada para onde ir, que facilitassea continuidade da vida e do tratamento, tentandoevitar recaídas e conflitos maiores dentro da família.Para isso, é fundamental que os profissionais sejamfixados e com plantões regulares na emergência,nos ambulatórios, nas oficinas e nas internações,no sentido de diminuir o ônus que representa umainternação. Uma equipe permanente promoveria

uma tranquilidade para todos, incluindo os própriosprofissionais.

Como e onde cuidar de pessoas que acumulam otranstorno mental com o uso abusivo de algumadroga? As equipes de profissionais precisam atentarpara as particularidades deste sofrimento, paraa falta de horizonte que é vivenciada por estesfamiliares, e para o quanto estes pacientes ficamà deriva e conduzidos pela dupla vinculação. Estescasos exigem mais investimentos em pesquisas,novas tecnologias e principalmente a participaçãodos profissionais, dos usuários, das famílias e dasociedade. Este “milagre” é de responsabilidadecoletiva. Urge a criação de espaços que assumameste cuidado e assim interrompam a cruzada dafamília que convive com o vaivém entre os serviçospara adictos e de saúde mental.

Outro grupo importante são as crianças, quenormalmente são vistas como “o futuro do país”.Isso é sempre apregoado em nossa sociedade,mas quando esta criança sofre mentalmente, nemsempre se oferece as condições de tratamentoadequadas às possibilidades dela e de sua família.Outras vezes, esta criança é sentida socialmentecomo “coitadinha” e inserida com pouca tolerâncianos espaços sociais. Urge a necessidade dediferentes espaços de tratamento, abordagens eserviços para a inclusão destas crianças.

Quanto aos idosos, sabemos que sua população noBrasil é cada vez mais numerosa e que gradualmenteatingem maior longevidade. Entretanto, aindanão foram criados no campo da saúde mental osespaços adequados para acolher a crise e suasparticularidades neste grupo social. Em caso denecessidade de internação, geralmente por poucosdias, estas pessoas acabam ficando entre jovense sem equipamentos de segurança adequadospara as suas características específicas (barrasde proteção, piso antiderrapante e outros). Esta

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clientela necessita de espaços públicos dignos ecom profissionais carinhosos e íntegros.

Para vários destes grupos específicos, seria degrande valia a promoção de espaços múltiplos,entre eles os Centros de Convivência e Cultura, comatividades diferenciadas e acessíveis a todos osmoradores da comunidade, diferente dos CAPS e deoutros serviços substitutivos. Não podemos correro risco de transformar os serviços substitutivos emespaços de exclusão no futuro, pois ainda não noslibertamos do imaginário de detenção manicomial.

Se pensarmos da  perspectiva dos interesses

da família, incluindo o seu parente com transtornomental, podemos listar alguns dos desafios queenvolvem diretamente os quatro atores (pacientes,famílias, profissionais e gestores) e, também,desafios gerais para o processo da reformapsiquiátrica brasileira em si mesma:

a) Desafios a serem enfrentados pelas própriaspessoas com transtorno mental:

- aceitar o diagnóstico de ser um portador detranstorno mental; aceitar não significa ficarreduzido a um diagnóstico;

- aderir ao tratamento medicamentoso e ao daequipe interdisciplinar como um todo;

- aprender mais sobre as circunstâncias e o instanteem que cada usuário decide redefinir sua vidapessoal e se decide por sua recuperação possível;

- estabelecer vínculos com outros usuários, comfamiliares de sua confiança, com profissionaisresponsáveis por seu tratamento e com diferentese diversos grupos sociais (religiosos, culturais, eoutros);

- enfrentar o estigma vivido por ser uma pessoaacometida de um transtorno mental, impedindo

que este estigma o influencie negativamente naaceitação da loucura como condição humana;

- reatar os vínculos familiares rompidos,especialmente os usuários com histórico de longotempo de institucionalização;

- ratificar o direito de ter uma moradia digna, segurae que seja um espaço de criação de vida. Para osegressos de longo tempo de internação, incluindoos que não têm recursos materiais ou humanos,mesmo os que não são contemplados pela portarianº 106/2000 (Serviços Residenciais Terapêuticos);

- inserir-se em projetos de geração de renda

e trabalho que respeitem suas limitações edignifiquem suas potencialidades;

- encontrar pessoas disponíveis a consolidar umavida amorosa, com respeito mútuo;

- conquistar e ter garantias de que se poderá teruma vida futura segura e sem maiores estresses;

- sair da “invisibilidade” e juntar-se aos seus parespara enfrentar dificuldades e estigmas, o quesignifica lutar por uma sociedade que respeite aloucura.

b) Desafios a serem enfrentados pelos familiares:

- aceitar que seu ente querido tem um sofrimentomental e também a clareza de que esta pessoa éum ser com recursos que superam o diagnóstico eque vale a pena apostar no processo de recuperação

deste, como um processo de conquista de umavida ativa e útil, mas necessariamente ainda comalgumas das limitações oriundas do transtorno;

- ter o apoio da família extensa nestes cuidados;

- confiar que terá a credibilidade dos outrosquando relatar que o usuário dentro de casa temuma conduta diferente de quando está na consulta

ou no contato com terceiros;

- encontrar profissionais que acolham o seusofrimento e o tenham como parceiro importante noprocesso de recuperação do usuário;

- superar o sentimento de decepção quanto àssuas próprias expectativas iniciais, que não serealizaram como haviam sonhado, em relação aosseus parentes com transtorno;

- enfrentar os sentimentos de vergonha, culpa,medo, autopiedade, raiva, frustração, desamparo,entre outros;

- aprender a:+ conviver com os sintomas e as limitaçõesconsequentes dos transtornos mentais;

+ discriminar sinais iniciais de um possível surto;

+ reconhecer os sintomas do transtorno e adiferenciar dos traços de personalidade do usuário;

+ aceitar que terá uma vida de altos e baixos, masque é possível avançar para uma vida com maiorqualidade do se tinha no passado.

- conquistar recursos e ter sabedoria paraadministrar os altos custos que acompanham todadoença crônica;

- saber superar a expectativa de uma cura definitivade seu parente e procurar construir novos projetospara sua própria vida;

- promover, dentro do possível, um ambientefamiliar amoroso, bem-humorado e que acredite na

recuperação do usuário;- reconhecer e se alegrar com os pequenos sinais derecuperação do usuário;

- tolerar a morosidade inerente de qualquer processode recuperação, pois a mudança real necessita deum tempo que não é propriamente cronológico paraser contínua e prolongada;

- ser capaz de verbalizar para o usuário, a equipede profissionais e suas redes familiar e social aangústia vivida no convívio diário com condutas, taiscomo: ociosidade, vícios, monólogos e o medo denovas crises do usuário;

- aprender que alguns sentimentos são inevitáveis eque sentir raiva de uma pessoa não é sinônimo defalta de amor, mas que é o s entimento inevitável deresposta a determinadas atitudes desta pessoa ou asituações desagradáveis;

- ter tolerância em relação aos cuidados permanentesque deverá dedicar à pessoa que tem o transtorno

mental, sem deixar de ter uma vida independente,de prazer, amorosa e social;

- encontrar e se engajar em grupos de ajuda esuporte mútuos, mas que estejam localizados emespaços fora de instituições ligadas a saúde mentale que não sejam frequentados por seus parentesque sofrem o transtorno mental;

- estudar e procurar mais informações sobre ostranstornos mentais e seus diferentes graus decomprometimento, pois nem todos conquistamum grau avançado de recuperação, mas todosconseguem melhorar. Além disso, é necessárioacompanhar as novas descobertas e possibilidades;

- reconhecer a necessidade de espaços na vida parao cuidado de si próprios e para construir projetospessoais próprios, para além da situação decuidadores, e trabalhar ativamente para garanti-lose vivenciá-los sem culpa. Para isso, devem elaborarem si mesmos o direito a ter estes espaços, podendo

chegar a iniciativas coletivas de s uporte mútuo comoutros familiares e até mesmo projetos coletivos.

c) Desafios a serem enfrentados pelos profissionais:

- ter uma postura de acolhida sincera com o usuário

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e sua família e também disponibilidade parafortalecer vínculos de confiança com estes;

- escutar o sofrimento do paciente e de seusfamiliares sem ter como referência somente ossintomas clássicos;

- entender que uma pessoa com transtorno mentaltem necessidades, competências e singularidadescomo as pessoas consideradas normais;

- prover explicações adequadas, em linguagemcompreensível para o usuário e familiar, sobre osmedicamentos, e indicar os mais apropriados e asdosagens mais eficazes para ajudar o paciente a

equilibrar seu transtorno mental;

- ter humildade para reconhecer o saber do pacientee do seu familiar e paciência no tempo da consulta;

- ter tolerância e disponibilidade para construirvínculos fortes com o usuário, com seus familiares ecom a equipe terapêutica;

- desenvolver dispositivos individuais e decoletivos de acolhimento, troca de experiênciase empoderamento com e entre os familiares nosserviços, incluindo, estimulando e assessorando aorganização de associações de usuários e familiares;

- compreender a importância do vínculo com ospacientes e familiares e procurar se fixar nosserviços, evitando a rotatividade;

- discriminar a luta por melhores salários, que sedá no campo sindical do exercício da profissão: écomum profissionais trabalharem insatisfeitosdevido aos baixos salários. Nossa profissão tem umcaráter social e os usuários, familiares e a própriaequipe não são os responsáveis por isso;

- aprender que existem diferentes formas decompensação pelo trabalho: a financeira, a afetiva, aaquisição de conhecimento, a conquista de prestígioou facilidades, entre outras. É curioso o profissionalconseguir refletir sobre os ganhos e perdas de cada

um destes “salários”;

- usar de sensibilidade durante a atenção aosusuários e familiares, e não ficar aprisionadosomente aos ensinamentos teóricos que sãoimportantes mas se c ontextualizados;

- estar atento aos recursos da rede social dopaciente e ter bom senso ao sugerir possíveisencaminhamentos;

- ser ousado, criativo e expandir seu repertório deações profissionais, com ética, transparência eatitude humanitária;

- conhecer e estreitar relações com as outrasclínicas, especialidades e redes de serviçosdiferentes do campo da saúde mental, para facilitara ação intersetorial.

d) Desafios a serem enfrentados pelos gestores docampo da saúde mental:

- buscar uma forma de sua indicação para o cargoque leve em conta os interesses e o ponto de vistados usuários, familiares e colegas de profissão,após experiência reconhecida em saúde mental;

- investir em iniciativas que levem ao empoderamentodos usuários e familiares, tanto internamente aosserviços de atenção psicossocial como na atençãoprimária e nas ações na comunidade e na sociedade,e particularmente estimulando a organizaçãode associações de usuários e familiares e seu

protagonismo no sistema de saúde e saúde mental;- estimular que os serviços de saúde mentalcontemplem os vários dispositivos de atenção ede suporte aos familiares e cuidadores como umadas prioridades do programa e das iniciativasintersetoriais;

- ser competente, sensível e acessível para reuniões

e trocas com as pessoas que frequentam os serviços

de saúde mental;

- não se distanciar da base da assistência, sepossível dando um plantão semanal, exercendoassim atividade que o mantenha informadodiretamente com as carências e necessidades dos

usuários, familiares, profissionais e dos serviços;

- ratificar a inclusão da saúde mental na atenção

primária como estratégia de prevenção;

- investir na capacitação de acompanhantesterapêuticos para no momento da crise tentar evitar

a internação e oferecendo suporte nesses lares;- estimular práticas alternativas, tais como osgrupos de ajuda e suporte mútuos, acupuntura,entre outras;

- respeitar e desburocratizar os casos de pacientesque escolhem se tratar em serviços diferentes de

suas áreas programáticas;

- empregar esforços na manutenção de equipesinterdisciplinares e fixas nos serviços;

- estabelecer um sistema de referência econtrarreferência, e informar e treinar as diferentesclínicas médicas sobre a especificidade e asnecessidades das pessoas com sofrimento mental;

- promover encontros intersetoriais periodicamente

e fortalecer estas parcerias;

- implantar serviço telefônico gratuito (0800)

e realizado por usuários e familiares, comremuneração, para orientar as pessoas com dúvidasou em momentos de aflição;

- treinar e equipar o serviço de remoção (192) paraatender todos os casos de atenção em saúde mental

(em casa ou na rua);

- estreitar relações com os diferentes meios de

comunicação para promover um diálogo constantecom a sociedade sobre o transtorno mental;

- realizar a manutenção das instalações e aprimorarcada vez mais os serviços, assim ajudando aspessoas a se libertarem da crença de que o serviçopúblico é de má qualidade;

- ajudar a população a se desvincular deatendimentos privados ou de seguros de saúde querepresentam um grande esforço econômico para asfamílias, em espaços que não estão comprometidoscom uma atenção i nterdisciplinar, intersetorial e nacomunidade.

7) Considerações finais

A expectativa que tive ao construir este texto é deter contribuído para o conhecimento dos variadose complexos aspectos, características e dilemasenvolvidos no processo de cuidar de pessoas comtranstorno mental, no âmbito da família. Nestadireção, busquei sistematizar os inúmeros temase desafios que os próprios familiares e cuidadoresexpressam em sua participação nos grupos deajuda mútua que acompanho. Para isso, assumi aposição de aprendiz e de escuta, em que eles foramos principais mestres e professores, com suasfalas, vivências e emoções de enorme sensibilidadee riqueza humana. Pretendi ainda revelar aquique, neste cuidado diário e sem fim, há inúmerasdimensões que muitas vezes passam despercebidasou são completamente invisíveis para a sociedade e

até mesmo para os próprios serviços e profissionaisde saúde mental.

Contudo, o objetivo mais fundamental deste textofoi mostrar a existência de caminhos concretos paraminorar o peso, o sofrimento e o estresse envolvidoneste processo de cuidar, gerando assim esperançade dias melhores e de uma vida mais leve e cheia desentido, em que cabem o cuidado de si e os projetos

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pessoais, bem como a troca de experiências e asiniciativas de s olidariedade e empoderamento entrecuidadores . É assim que vejo os grupos de ajuda esuporte mútuos, cuja metodologia nós, integrantesdo Projeto Transversões da UFRJ, estamos nospropondo a sistematizar e divulgar.

Encerro este texto com o depoimento de uma mãeque frequenta o Grupo Alento, uma das iniciativasque acompanho, e que expressou da seguinte formaa sua experiência em um grupo deste tipo:

Participar de um grupo de mútua ajuda é umprocedimento enriquecedor. Pelas descobertas.Você descobre que outros sofrem da mesma dorque a sua, talvez maior, e deixa de ser O Crucificado.Você descobre a solidariedade dos seus pares edeixa de ser O Sozinho. Você descobre que o ecodos seus lamentos lhe é devolvido modificado pelacompreensão, pela aceitação, pelo afeto coletivo,e deixa de ser O Desconsolado. Você descobre quegente sofrendo continua sendo gente, que pode,deve amar e ser O Amado. Por aí vai, ad infinitum ...Beijos. Graças por me ter feito pensar. (mãe eparticipante do Grupo Alento)

Referências

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BRAZ, ROSAURA M. Ressocialização de pacientesde longa permanência em uma instituiçãopsiquiátrica asilar, in Cadernos IPUB nº 7, Saúdemental e desinstitucionalização – reinventandoserviços . Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria daUFRJ, 1997.

GOFFMAN, ERVING. Manicômios, prisões econventos . São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).Classificação de Transtornos Mentais e deComportamento da CID – 10: Descrições Clínicase Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1993.

ROTELLI, FRANCO et al. Desinstitucionalização . SãoPaulo: Hucitec, 1990.

SARRACENO, BENEDETTO. Libertando identidades:da reabilitação psicossocial à cidadania possível.Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te Cora Editora /

Instituto Franco Basaglia, 2001.

SLUZKI, CARLOS E. A rede social na práticasistêmica . São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

VASCONCELOS, EDUARDO M. O poder que brotada dor e da opressão: empowerment , sua história,teorias e estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.

VASCONCELOS, EDUARDO M. Abordagenspsicossociais, vol. I: história, teoria e trabalho nocampo. São Paulo: Hucitec, 2008.

WEINGARTEN, RICHARD. O movimento de usuáriosem saúde mental nos Estados Unidos . Rio deJaneiro: Projeto Transversões (ESS / UFRJ)/InstitutoFranco Basaglia, 2001.

Sites da internet consultados ou recomendados

www.saude.gov.br/saudementalwww.ccs.saude.gov.br/biblioteca

www.sms.rio.rj.gov.brwww.tcm.rj.gov.brwww.ifb.org.br/

Texto 7

MODELOS DE INTERVENÇÃO EPRÁXIS GRUPAL, GRUPOS DEAJUDA MÚTUA E OS DESAFIOS DESUA UTILIZAÇÃO COM USUÁRIOSDO CAMPO DA SAÚDE MENTAL65

Eduardo Mourão Vasconcelos

1) Introdução

O presente texto objetiva em primeiro lugar

apresentar ao leitor, de forma muito panorâmicae introdutória, a história e uma tipologia dos

65 Alguns pequenos trechos deste texto foram publicadospreviamente como seções de capítulos de livros de minhaautoria, (VASCONCELOS, 2008a e 2008b). Entretanto, opresente trabalho revisou e ampliou muito os trabalhosanteriores, como poderá notar o leitor com acessoàqueles textos.

principais modelos contemporâneos de teorização,intervenção e práxis através de pequenos grupos, nosentido de compreender a dialética interna e externaque organiza a sua estrutura e suas vivências.Dessa forma, o texto procura dar subsídios paraa compreensão dos processos grupais que sãomobilizados na práxis dos movimentos sociais ecomunitários, ou nas práticas profissionais na áreasocial, educacional, saúde e saúde mental. Emsegundo lugar, este trabalho também visa c olaborarna elucidação dos processos grupais mobilizadosnos grupos de indivíduos que vivem problemasexistenciais, de saúde e saúde mental comuns entre

si, e que buscam se reunir para conhecer melhor oque vivenciam e trocar experiências e estratégiasde como lidar com eles. Este é exatamente o casodos grupos de ajuda mútua , objeto deste manualde ajuda e suporte mútuos, para o qual este textofoi produzido. E, finalmente, o trabalho buscarásistematizar as características do processo grupalem grupos de ajuda mútua com usuários de serviçosde saúde mental, portadores de transtorno mentalmaior 66. Embora possa constituir um texto paraleitura independente do citado manual, o leitor ocompreenderá melhor, particularmente em suasseções sobre a prática concreta nos grupos, sepuder fazer sua leitura de forma concomitantecom as várias seções do referido manual. E se apreocupação é menos conceitual e histórica, esim mais voltada para os desafios concretos daimplantação e do acompanhamento destes grupos,o leitor pode ir direto e iniciar sua leitura a partirdo tópico [5.3], intitulado “Principais característicasdo processo grupal na ajuda mútua, seus riscos edesafios, e estratégias de como lidar com eles”,

66 Os transtornos mentais maiores constituem aquelescom maior comprometimento do conjunto do aparelhopsíquico, ou seja, todos os quadros identificados comopsicóticos, em seu sentido mais amplo, o que inclui asesquizofrenias, o transtorno bipolar e a paranoia.

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voltando apenas pontualmente às referências e aosconceitos anteriores quando sentir a necessidade.

Assim, adentrar gradualmente neste panoramahistórico e na literatura sobre os fenômenos grupaisconstitui um caminho fundamental para todos aquelesque abraçam os grupos como dispositivo importantede sua atuação profissional ou de seu ativismo emmovimentos sociais populares contemporâneos.

Entretanto, não compartilhamos da visão de queo conhecimento sistematizado neste texto possaconstituir um pré-requisito anterior e indispensávelpara o trabalho com grupos, pois isso negaria o

caráter prático que reconhecemos na formaçãode muitas lideranças de movimentos sociais comboa atuação em grupos, mas sem uma formaçãoteórica e conceitual prévia no campo. Para essaspessoas, consideramos o presente texto como umaoportunidade de aprofundamento, como uma reflexãoque deverá ser realizada gradualmente, e que irá semdúvida alguma subsidiar a melhor compreensão e oplanejamento do trabalho com grupos.

2) Rápido panorama histórico das primeiraspropostas de práxis social e política compequenos grupos na modernidade

As formas de apropriação de processos grupaiscom objetivos religiosos, culturais, educacionais,políticos, militares e sociais têm longa trajetória

na história humana. Para ilustrar isso, podemoscitar variados modelos de organização de pequenosgrupos humanos para sustentar projetos religiososmais amplos, e que foram profusos na história dasreligiões. Como exemplo, tivemos as comunidadesdos primeiros grupos cristãos, perseguidas pelopoder romano, mas que se difundiram rapidamentenas bases sociais do Império. Outro exemplo está

nas várias utopias sociais que povoaram a literaturae a história da filosofia e do pensamento político(CAREY, 1999). Entretanto, uma reflexão tentandocompreender melhor os processos que ocorrem nospequenos grupos humanos para sustentar novaspropostas de organização social mais ampla é bemmais recente. As primeiras tentativas neste sentidopodem ser localizadas a partir do final do séculoXVIII, na Europa ocidental, com a emergência docapitalismo, realizadas pelos movimentos sociaisque lhe fizeram oposição.

Uma das primeiras iniciativas concretas desta

reação foi o movimento cooperativo, fortementeinfluenciado pelo romantismo, um movimentocultural de oposição nostálgica às significativasperdas humanas provocadas pela ascensão docapitalismo (VASCONCELOS, 2010b). As primeirascooperativas de moinhos de farinha começaram noReino Unido em meados dos anos 1760, em umaconcretização do anseio popular de obter alimentosnão adulterados a preço razoável, em um contexto dealtos preços e monopólio do milho, desenvolvendomais tarde as conhecidas cooperativas deconsumidores, incluindo entrepostos de vendas(SZELL, 1992:186). A ideia avançou em outros paíseseuropeus, por meio da criação de cooperativas detrabalho, no sentido de proteger trabalhadorese artesãos do desemprego e da competição dosnovos processos industriais e contra a exploraçãodo trabalho.

O movimento de cooperativas de consumo i nglesas eas cooperativas de trabalhadores franceses, ambasdesenvolvidas de forma mais madura no século XIX,tornaram-se exemplos e modelos para experiênciassimilares através da Europa e outros países doOcidente, com uma forte difusão especialmentena Alemanha, na Itália e na Espanha. Em 1895,uma associação internacional de sociedadescooperativas de diferentes países, a InternationalCooperative Alliance (ICA), foi formada. Em uma de

suas pesquisas, realizada em 1930, a ICA identificousete princípios fundamentais nos projetos domovimento:

“- quadro de membros aberto e voluntário;- controle democrático;- interesse limitado em capital;- dividendos nos negócios realizados;- neutralidade em política e religião;- pagamento em dinheiro nas compras e vendas;- promoção de educação” (SZELL, 1992: 188).

 

Ainda no século XIX, esta experiência tambéminspirou os pensadores socialistas utópicos, comoOwen na Inglaterra; e Fourier, Buchez e Blanc, naFrança, que propuseram entre outros projetos aideia de pequenas comunidades de trabalhadoresproduzindo e recebendo todo o fruto de seu trabalhoatravés da troca direta de suas mercadorias. Porexemplo, Charles Fourier (1772-1837) propôso modelo das falanges , pequenos grupos queconstituiriam a base de sustentação de suasociedade utópica e socialista mais ampla, e quecombinariam a “atração apaixonada” que se dá nosgrupos, que promove a alegria e o prazer do viverhumano, com o trabalho produtivo, mas conservandoa liberdade, a igualdade entre os homens e orespeito às diferenças. Embora muito difundidas,estas ideias românticas visionárias acreditavam queteriam um apelo tal que seriam capazes de mobilizaro apoio das elites sociais e dos governos, podendo

chegar a mudar toda a sociedade da época.

A mesma Europa dos meados do século XIX foitestemunha de outra teoria e movimento social, oanarquismo, que foi mais radical em sua oposiçãoe ataque ao capitalismo e suas formas políticas.Constituiu um razoavelmente amplo espectrode diferentes perspectivas teóricas e práticas,centrados na ideia do poder como a dimensão

principal da opressão que se abate sobre os sereshumanos, ideia que gerou uma oposição radical atodas as formas de poder centralizado que exercema coerção estatal e social. Entre elas, estavamas versões de extremo individualismo, como ado niilista alemão Max Stirner (1805-1856); asperspectivas mutualistas, como desenvolvida pelofrancês Proudhon (1809-1865); as linhas maiscoletivistas, como a do russo Bakunin (1814-1876);e as perspectivas comunistas anarquistas, comocolocadas pelo italiano Malatesta (1853-1932) epelo russo Kropotkin (1842-1921), que pregavamque essa nova sociedade poderia ser induzida pelasolidariedade humana organizada em associaçõesvoluntárias de trabalho e de comunidades locais(SZELL, 1992). As ideias anarquistas tiveraminfluência considerável na Comuna de Paris de 1871e em vários movimentos políticos ao longo do séculoXX, em vários países, tendo também uma constantepresença na tradição socialista, apesar das fortescríticas feitas pelo próprio Karl Marx e por seusseguidores (VASCONCELOS, 2010a).

De sua perspectiva própria, os marxistas tentaramconciliar a ideia de formas participativas debase e movimentos de massa, como na própriaexperiência da Comuna de Paris de 1871 e tambémnos soviets   formados a partir de 1905 na Rússia,com um Estado forte e centralizado que garantiriaa continuidade da experiência socialista durante operíodo revolucionário. Entretanto, pensaram que aparticipação social ampla poderia ser sustentávelno longo prazo, ao projetarem uma suposta

superação da luta de classes e a extinção gradualdo Estado na sociedade pós-revolucionária (Marx,1871/1970; Lenin, 1917/1970). Embora o temaseja extremamente complexo, podemos dizer comcerteza que as experiências de socialismo realexistentes até agora mostraram, ao contrário, e comraríssimas exceções mais locais, a preponderânciaabsoluta da hipertrofia do Estado, do totalitarismo e

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do desempoderamento das organizações populares(VASCONCELOS, 2010c).

Por sua vez, no Brasil recente, particularmente nocontexto do final da ditadura militar, o processode democratização do país envolveu uma fortemobilização política e social da sociedade civil e dasmassas populares. Entretanto, foi particularmentea capilaridade de muitos movimentos sociais,

envolvidos em projetos criativos e participativosem suas bases, que possibilitou uma renovaçãomais significativa das relações e das políticassociais. Foi exatamente nas áreas em que eles

foram mais fortes e criativos, que mais pudemosavançar. Muitas destas lutas setoriais desaguaramna Constituição de 1988, permitindo mais tardeconquistas importantes na estrutura das políticassociais, mesmo que a conjuntura neoliberal quese abriu a partir da década de 1990 tenha criadoenormes obstáculos para sua implantação efetiva.

Se pudermos então tentar um primeiro esforçoprovisório de síntese a partir deste rápido panoramahistórico da modernidade, em nossa opiniãopodemos concluir que:

- O tema dos pequenos grupos e da participação,autogestão e controle do poder pelas classespopulares estão no centro de uma dialéticapermanente e estruturalmente insolúvel entre asesferas do universal e do particular de exercício dopoder político. Os projetos políticos emancipatóriose populares podem abrandá-la, mas não superá-la,com suas tentativas de mediar e transformar asrelações de poder colocadas pela divisão social epela divisão técnica do trabalho. 

- Na história humana, as iniciativas e os modelossociais baseados na organização de pequenosgrupos participativos e/ou autogeridos têm sido

uma interpelação constante de movimentos sociaise políticos populares de base, buscando alternativas

de maior liberdade e renovação da vida social,notadamente em contextos de maior opressão

econômica, social, étnico-cultural, política, religiosa,de gênero etc.

- Muitas vezes, estes movimentos tiveram uma

perspectiva fortemente nostálgica, romântica,anarquista ou meramente local, sem serem capazes

de projetar alternativas mais realistas e capazes deserem universalizadas para a sociedade mais ampla .

- Outras vezes, estes movimentos buscaram estauniversalização, mas foram sendo gradualmente

institucionalizados, burocratizados e cooptados porcima pela rigidez ideológica e política ou pelo poder

econômico, partidário e estatal, que lhes extraíram avitalidade e as forças instituintes e de renovação 67 .

Além disso, as exigências técnicas e científicasnecessárias para a gestão social, se não são

mediadas, transformadas e/ou atenuadas, acabamdistanciando as esferas de saber e poder do controledas bases e dos grupos populares, acentuando ainda

mais a centralização e o aparelhamento por cima,pelas instituições estatais, partidárias, técnico- 

científicas e pelos setores econômicos e políticosdominantes da sociedade civil .

Apesar destas tendências, podemos dizer que

os movimentos sociais populares autênticosmobilizam uma dialética inexorável de interpelação

67 Este é o tema do livro Crítica da razão dialética, deSartre, publicado pela primeira vez em 1960, acercado processo revolucionário francês, principal eventorevolucionário que conformou a nossa ideia moderna derepública (SARTRE, 1960).

e organização de pequenos grupos, de buscada autogestão da vida social, como base paraa luta mais ampla contra todas as formas deopressão entre os seres humanos, pelos direitoscivis, sociais, políticos e por melhores condiçõesconcretas e subjetivas de vida . Daí, a importânciada compreensão dos processos grupais dentro destadinâmica mais ampla entre ativismo/participaçãode base/renovação social, de um lado, e auniversalização/institucionalização/burocratizaçãoda gestão social, de outro, nas mais diversasesferas de vida. E no caso da discussão realizadaaqui, no campo da assistência social e notadamenteda saúde/saúde mental.

3) As primeiras tentativas acadêmicas ecientíficas de compreensão dos processosgrupais

Foi a partir da virada dos séculos XIX e XX queemergiram as primeiras tentativas de decifrar osmecanismos e as estruturas ocultas presentesnos processos grupais. Pelo menos dois autores-chave não podem de forma alguma ser esquecidosnesta trajetória: o austríaco Sigmund Freud (1856-1939), fundador da psicanálise, e o originalmenteprussiano Kurt Lewin (1890-1947), considerado opai da psicologia social experimental e da pesquisa-ação com grupos, com seu principal trabalho nesta

temática desenvolvido após a sua imigração para osEstados Unidos, em 1932.

A primeira obra de Freud mais consistente sobre oassunto foi Totem e tabu , de 1913, em que examinao comportamento dos seres humanos na hordaprimitiva, submetida ao poder despótico de ummacho líder, que monopolizava as fêmeas do bando.Os filhos machos se rebelam, matam e comem o

corpo morto do pai. Após, sentem remorso, temema sua mera substituição e a reprodução da velhaordem por um dos filhos machos emergentes, eassim inventam uma nova ordem social, baseada naexogamia (renúncia às mulheres da horda, ou seja,proibição do incesto), e no lugar vazio do antigopoder absoluto do pai morto elevam a imagem deum totem. Nesta trajetória, o complexo de Édipo écolocado como uma estrutura universal e fundanteda ordem social e humana, sustentada pelos tabuscolocados sobre os desejos agora recalcados, masrevividos como conflitos inconscientes de base: odesejo do incesto e de matar o pai.

O segundo texto importante para o tema é Psicologiadas massas e análise do eu , de 1921, a partir doscomentários acerca de um trabalho anterior dofrancês Gustave Le Bon sobre o assunto, de 1895.Este texto de Freud é também significativo emvários aspectos, entre os quais por rejeitar qualqueroposição entre psicologia individual e psicologiasocial, na medida em que a vida psíquica dosindivíduos é sempre marcada por um outro, o que oscoloca diretamente no âmbito das relações sociais.Além disso, também neste livro o laço humano éoperado pela libido, que tem sua fonte energéticana pulsão inconsciente, e que se expressa nasrelações amorosas e suas identificações. Isso sedá particularmente na relação da massa com seuslíderes mais significativos e amados, que sãoidealizados; nas relações amorosas e de filiaçãocomum entre os membros dessa massa entre si, quelimitam o narcisismo de cada um; e nas relações de

ódio com os indivíduos externos, que representamum perigo para esta coesão. Estão aqui esboçadasas ideias fundamentais, importantes para todosaqueles que atuam com grupos, das fantasias e dosvínculos transferenciais inconscientes 68  que se dão

68 Nestes vínculos e fantasias, os indivíduos tendem areproduzir e projetar seus desejos, medos e resistências

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no grupo, entre os membros do grupo com o líder ouprofissional coordenador, entre os membros entre si,e com os indivíduos de fora do grupo .

Outra obra significativa posterior para o tema foi Omal-estar na cultura , publicada pela primeira vez em1930. Aqui, as relações do indivíduo com a sociedadesão vistas no âmbito da dualidade estrutural edialética permanente entre o princípio do prazer  (a busca do gozo e a evitação da dor) e o carátercoercitivo do princípio da realidade , que rege arelação com o mundo externo e a sociabilidade. Esteprincípio impõe limitações, sofrimento, insatisfação,e portanto renúncia à felicidade, gerando mal-estar, sublimação, neurose, intoxicação e psicose,bem como uma tendência imanente e pervasivade agressividade para com os demais indivíduose para com a sociedade, dinâmica que determinaoutra dualidade estrutural, entre a pulsão de vida  ea pulsão de morte . É claro, todos estes conflitos sãovividos de forma inconsciente por cada indivíduo,em sua vida particular, mas também nos grupos ecoletivos humanos.

Por sua vez, Lewin compreendeu as relações dogrupo e particularmente dos indivíduos no grupo,no contexto de um campo de forças e de fatorespsicológicos que agem em um certo momentono grupo e no espaço vital de cada indivíduo.Estes fatores podem ser por exemplo a fome, afadiga, eventos externos gerados por situaçõessociais específicas, recordações do passado etc.Neste enquadramento, aproximou-se das noçõesde topologia e notadamente de forças vetoriais,

como na física. Este tipo de análise foi aplicadoem experimentos e situações e conflitos sociaisconcretos, em suas relações de aproximação eevitação, de diferentes tipos de grupo (tais como

inconscientes, fazendo interagir suas tendênciasindividuais com os processos coletivos tambéminconscientes induzidos pela própria situação grupal.

o democrático, o autoritário e o laissez-faire ) ede liderança. Suas concepções e práticas podemapresentar limitações e aspectos polêmicos, masé indiscutível sua contribuição original para odesenvolvimento das ideias acadêmicas e científicassobre os grupos humanos e seus processos.

4) Os principais modelos de intervençãoe teorização sobre processos grupais noséculo XX

Esta seção buscará sistematizar uma visãopanorâmica dos vários tipos de dispositivos e teoriasgrupais sintetizados no percurso do século XX, bemcomo das características da i ntervenção profissionalou leiga nos grupos no campo da saúde e saúdemental. Esta síntese constitui uma ampliaçãosignificativa de uma abordagem inicial propostapor Grinberg et al. (1976) para tentar compreendera evolução da psicoterapia de grupo, e se baseia natentativa de comparar:

- o tipo da intervenção (processos psicoeducativos,terapias genéricas, psicoterapia, modelos mistose de transição, modelos de mudança social einstitucional) e seus objetivos;

- o tipo de teoria ou conhecimento mobilizado para acompreensão dos processos grupais;

- os processos grupais e as relações de podermobilizadas nos dispositivos propostos.

4.1) Terapias exortativas que agem pelo grupo

Neste tipo de intervenção, usam-se técnicaspsicoeducativas ou terapêuticas genéricas

buscando mudar o comportamento e estilos de vidaavaliados como pouco saudáveis, para aquisiçãode hábitos considerados mais adequados, ou paraque pacientes adotem com mais afinco um rolde medidas exigido pelo tratamento de doençasfísicas crônicas. Geralmente, esta modalidade deintervenção utiliza mecanismos grupais típicos, massem necessariamente teorizá-los.

O exemplo típico deste tipo grupal de intervençãofoi usado por J. H. Pratt, em 1905, com um sistemade classes coletivas com pessoas em tratamentode tuberculose , visando sua adesão ao tratamento

e acelerar a recuperação física deles. As classesreuniam cerca de 50 usuários em uma conferênciado terapeuta, que dissertava sobre as medidas dehigiene necessárias e os problemas do tratamento,ao final da qual os presentes podiam fazer perguntase discutiam. Os usuários mais interessados nasatividades coletivas e aqueles que melhor cumpriamo regime de medidas ocupavam as primeirascadeiras da sala, criando-se um quadro hierárquicoconhecido por todos. Os resultados práticos datécnica no tratamento foram muito positivos, e Prattpassou a sistematizar e publicar69 sobre o assunto.

Segundo Grinberg et al., este modelo utiliza,portanto, de forma deliberada, os processoscoletivos inerentes ao grupo, com uma finalidadeterapêutica, mobilizando dois mecanismos grupaistípicos : de um lado, o uso controlado de sentimentosde rivalidade, competição e solidariedade entre osmembros do grupo , e, por outro, a mobilização dosafetos em relação a uma figura paterna idealizada,centralizada no terapeuta ou profissional ,estimulando a identificação com ele, sendo que o

69 O artigo é citado por Grinberg et al., mas de formaincompleta: Pratt, JH – The principles of class treatmentand their applications to various chronic diseases.Hospital Social Services, 1922, apud Grinberg et al.(1976: 30-1 e 260).

sistema hierárquico recompensa o “bom paciente”pela maior proximidade com o terapeuta. O métodoé eficaz e prático, buscando influir de forma ativae econômica sobre grupos numerosos, mas sem se

preocupar com a compreensão dos mecanismosque mobiliza no grupo nem com as questõesétnico-culturais, éticas e políticas da indução decomportamentos .

Grinberg et al. chamam a atenção para o sucessodeste tipo de dispositivo grupal em doençasorgânicas, para adesão a formas de tratamento

pouco polêmicas, mas que apresentaria inúmeros

problemas em caso de transtornos de origempsíquica. É preciso ir além, alertando que estemodelo gera uma relação de poder muito desigual,um processo unidirecional de emanação de valores e

uma enorme dependência em relação ao terapeuta,bem como um nível muito baixo de troca, cooperaçãoe autonomização entre os participantes, com riscosenormes de normatização social dos mesmos peloprofissional e pelas instituições sociais e de saúde.

Como veremos mais adiante, um modelo comalgumas características similares, por um lado, mas

por outro razoavelmente diferenciado, é constituídopelos grupos de ajuda mútua, cuja matriz temantecedentes e é mais bem conhecida pelos gruposde Alcoólicos Anônimos (AA), que se iniciaramem 1935, nos Estados Unidos, e que se difundiram

por todo o mundo.

Uma outra variante do modelo é o da comunidadeterapêutica, particularmente na versão anglo-

saxônica, em que se destacam Maxwell Jones (1972)na Inglaterra e Menninger nos Estados Unidos. Nocontexto da pressão pela reabilitação de soldadosrecém-chegados do campo de batalha na II Guerra

Mundial, buscou-se a dinamização da vida sociale do processo decisório dentro do hospital, comassembleias, grupos de trabalho, horizontalizaçãoda relação com os profissionais etc. É possível

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indicar a similaridade com as terapias exortativasque agem pelo grupo, inclusive pela ausência deuma teorização sistemática dos processos grupaismobilizados, mas apresenta as particularidadespróprias de seu forte componente de estruturafraternal e de desinvestimento relativo do poderprofissional vertical até então exis tente.

Um modelo de transição entre o modelo de terapiaexortativa que age pelo grupo e a psicoterapia degrupo é constituído pelo psicodrama, criado porMoreno a partir de 1911, em Viena. O psicodramatem elementos comuns com o modelo da terapia

pelo grupo, mas mais particularmente com osgrupos de ajuda mútua e com a comunidadeterapêutica, especialmente pela sua forte estruturafraternal  e pelo fato de ser uma terapia pelo grupo ,pela dramatização dos conflitos existenciais epsicológicos e pela catarse de seus participantesno grupo. No entanto, apesar de uma razoávelfaixa de liberdade de atuação dos participantes ede uma relativa diminuição da identificação como psicodramatista, o papel deste último é centralcomo coordenador de toda a dinâmica. Além disso,há um razoável esforço de compreensão teóricados processos dramáticos e grupais operados nastécnicas e de sistematização acadêmico-conceitualdo psicodrama. Estes dois aspectos o diferenciamdo modelo descrito acima, colocando-o como ummodelo de transição a caminho da psicoterapia degrupo, tema da próxima seção.

4.2) Psicoterapias interpretativas do indivíduono grupo

Este modelo na verdade constitui uma continuidadequase linear do modelo clínico convencionalcom indivíduos, só que o dispositivo agoraopera com grupos, ou seja, faz-se psicoterapiaindividual no grupo. O psicoterapeuta propõe

o dispositivo, coordena-o e interpreta o discursoou o comportamento dos participantes, com oobjetivo de realizar tratamentos psicoterápicos

em cada indivíduo. Em suma, as relações depoder, a condução do processo e as relaçõestransferenciais a serem interpretadas estão todascentradas no analista. Do ponto de vista teórico,estas abordagens são principalmente de cunhopsicanalítico (GRINBERG et al., 1976; PY et al.,1987), mas existem também algumas contribuiçõesexistencialistas e fenomenológicas de importância

(PAGÈS, 1982).

Do ponto de vista dos dispositivos hoje utilizadosno processo de reforma psiquiátrica no Brasil, estemodelo tem relevância apenas nos ambulatórios,

nos quais este modelo convencional ainda é umrecurso clínico muito importante, além de propiciaro aumento no número de usuários atendidos70.Do ponto de vista das abordagens de atençãopsicossocial, as psicoterapias de grupo nãoconstituem um modelo operativo importante por

si mesmo, mas sim pelo forte impulso teórico quegerou, no sentido de colaborar na compreensão dosprocessos psicológicos individuais nos grupos, e, emalguns casos, também dos processos i nconscientesdo grupo como um todo.

4.3) Terapia ou análise interpretativa do grupoterapêutico ou de trabalho

Este outro modelo não foca propriamente os

70 Para uma discussão um pouco mais crítica eaprofundada sobre os dispositivos clínicos grupais emsaúde mental, ver o capítulo sobre experiências popularesem saúde mental, de minha autoria (VASCONCELOS,2008b), bem como no texto específico sobre práticasgrupais no contexto de serviço social brasileiro(VASCONCELOS, 2009).

indivíduos no grupo, mas sim o próprio grupocomo o fenômeno central e principal objetoda interpretação. Considera-se o grupo e seusprocessos inconscientes como uma totalidade aser compreendida, e, em alguns casos, tambémcomo dispositivo clínico ou de trabalho . As obrasde Freud citadas anteriormente são fundamentais,e consideradas como ponto de partida deste tipode teorização. De forma semelhante, a teorizaçãoindicada acima de Lewin também vai nesta linha epode ser incluída neste modelo.

Outro autor de relevo neste campo foi o inglês

Wilfred Bion (1897-1979), que desenvolveu ateoria dos pressupostos básicos dos grupos,baseada na teoria psicanalítica de Melanie Klein,entendendo-os como disposições inconscientes quepresidem a vida emocional e operativa dos grupos,que podem desviar/dificultar ou apoiar a atividaderacional do grupo (BION, 1970; BLÉANDONU, 1992).Outra inovação importante de Bion foi a utilizaçãodesta teoria não só em grupos com objetivosterapêuticos, mas também em grupos de trabalho,  com tarefas concretas a serem realizadas.

Uma abordagem semelhante foi desenvolvida pelopsicanalista de origem suíça e depois radicadona Argentina, Pichon-Rivière (1907-1977), comsua teoria de grupo operativo, tendo como basetambém a teoria kleiniana e uma aproximaçãocom o marxismo de Lucien Goldman. O grupooperativo está centrado na sua tarefa, que pode serterapêutica, educativa ou de trabalho, mas tambémse pensa e se tenta revelar os processos grupais queestão sendo operados, e que implicam diferentespadrões de relação com a sua tarefa (PICHON-RIVIÈRE, 1971 e 1991; SAIDÓN, 1982). De formadiferenciada, ambos os modelos (Bion e Pichon-Rivière) propõem uma relativa minimização do papele do poder do coordenador ou facilitador do grupo ,já que as relações transferenciais para com ele nãoconstituem um objeto central de interpretação, mas

sim as relações que estabelecessem com a tarefaou com os pressupostos básicos do grupo.

Uma terceira abordagem que poderia ser incluídanesta categoria é o movimento de psicoterapiainstitucional francesa, que se desenvolveu naFrança no contexto da II Guerra Mundial, a partirde experiências internas aos hospitais psiquiátricosconvencionais. O movimento retrabalhou e ampliouconceitos psicanalíticos para a compreensãodas relações interpessoais que se estabelecemnas instituições, e utilizou-os em processos dedemocratização e transformação das relações

institucionais nestas instituições psiquiátricas, pormeio de ações horizontalizadas de decisão coletiva,divisão de trabalho e práticas grupais. Seus principaisautores são os franceses Tosquelles e Oury, mashá autores brasileiros que vêm sistematizando edivulgando seus conceitos e práticas ( VERTZMAN etal., 1992; VERZTMAN e GUTMAN, 2001; MOURA,2003). No aspecto descritivo e prático, este modeloé contemporâneo e se parece muito com o dacomunidade terapêutica anglo-saxã, indicada acima.A diferença principal está na forte sistematizaçãoteórica que realizou, de inspiração psicanalítica,para compreender os aspectos inconscientes dosprocessos institucionais, o que não está presenteno modelo inglês e norte-americano.

Neste modelo e suas variações indicadas acima,há uma clara e profunda transição sendo operada ,em que a compreensão clínica dos processosinconscientes do grupo como totalidade podemter objetivos ou efeitos psicoterapêuticos para osparticipantes dos grupos , mas também pode ir alémdestes objetivos especificamente clínicos, paracolaborar na compreensão dos processos grupaisem grupos de trabalho, voltados para objetivoseducacionais, profissionais ou mesmo para amilitância social . Em outras palavras, a compreensãodos aspectos psicossociais do processo grupal poderesponder sim a objetivos clínicos, de tratamento

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de seus participantes, mas também à compreensãodos mecanismos inconscientes mobilizados pelaforma de se organizar para realizar tarefas objetivasna realidade, ou seja, para analisar os processospsíquicos envolvidos em seu trabalho concreto71.

Assim, estas abordagens podem operar, se chamadaspara isso, uma ultrapassagem dos objetivos clínicosconvencionais, para colaborar na c ompreensão dosprocessos psicossociais envolvidos na organizaçãoe no trabalho de grupos sociais concretos. Porexemplo, em minha vida de cerca de 35 anos deprática profissional e de militância social, muitas

vezes fui chamado para assessorar grupos popularesou ligados a movimentos sociais, para ajudá-losa repensar e avaliar seus conflitos e impassesinternos, ou suas dificuldades de organização . Emtodos os casos, posso assegurar que os impassescombinavam aspectos econômicos, sociais, políticose institucionais com dificuldades no processointerno de organização, de liderança, de dispositivosparticipativos e de relações de poder, em queaspectos psicossociais inconscientes também estãopresentes. Nestes momentos, as buscas realizadasnas teorizações de Bion, de Pichon-Rivière eda psicoterapia institucional francesa tambémofereceram contribuições significativas para estetrabalho de assessoria.

4.4) Análise ou intervenção interpretativa degrupos de trabalho, movimentos sociais einstituições

Este modelo se diferencia do anterior apenas porque

71 Afirmar isso não implica, porém, pretender eliminartensões, conflitos, contraposições e passagens entre osdois tipos de perspectivas e paradigmas – o clínico e osocial –, mas mostrar que esta convivência contraditóriaé possível em dispositivos grupais e institucionais.

agora o objetivo da assessoria aos grupos ou dacompreensão/interpretação analítica dos processosgrupais não tem mais objetivos especificamenteclínicos ou terapêuticos. Embora a ação possa terefeitos terapêuticos nos indivíduos e nos grupos, seu

objetivo central e principal é contribuir diretamentepara que os grupos de trabalho, organizaçõesou movimentos sociais possam compreender osprocessos grupais e institucionais envolvidos em suadinâmica interna e sua práxis. Além disso, possamtambém induzir processos de mudança quando

identificam aspectos indesejáveis ou incongruentescom seus objetivos institucionais e ético-políticos,particularmente de ação e transformação social epolítica.

O principal exemplo de abordagem neste modelo éa psicossociologia, que teve origem na França,nos anos 1970, com base nas obras culturais deFreud, mas integrando algumas contribuições dafilosofia de Castoriadis e da sociologia da ação

social de Touraine. Os autores mais conhecidossão Pagès, Kaës, Anzieu, Enriquez, Levy, Barus-Michel e também o inglês Elliot Jacques, todoseles com trabalhos já publicados no Brasil72. Os

psicossociólogos realizam seu trabalho a partir daintervenção psicossociológica, na qual o profissionalé chamado a atuar em grupos, associações,instituições e projetos sociais, no sentido deestimular que os participantes tenham acessoaos mecanismos conscientes e inconscientes que

atuam nos processos grupais e institucionais.Muitas vezes, mesmo projetos marcados pelasmelhores intenções no plano consciente, nosentido de buscar ideias críticas, estratégias

72 Considero que uma boa introdução a esta correntepode ser obtida pela leitura das seguintes obras,sugerindo-se respeitar a ordem de apresentação: Levy etal., 1994; Barus-Michel, 2004; Enriquez, 1997; Kaës et al .,1991, e Fernández, 2006.

participativas e valores democráticos, podem estarsendo montados de forma a articular e mobilizarinconscientemente formas de subjetividade queimplicam perda da autonomia, autoritarismo, ou atémesmo fanatismo e violência. Na psicossociologia,dada a forte influência psicanalítica, os analistas esua competência têm um papel importante comoassessores/consultores e como o ator central naexplicitação e nas interpretações sobre os eventosou processos em curso.

4.5) Análise militante de grupos sociais e

instituições

Este modelo tem similaridades com o anterior,mas sua práxis é menos interpretativa, no seusentido freudiano, para assumir mais a formade uma militância micropolítica . Embora seusrepresentantes possam assumir uma posição deanalistas institucionais semelhantes à intervençãopsicossociológica, as correntes deste modelotendem a não acentuar o saber-poder dos analistas,para fazer emergir as competências difusas dosvários participantes do processo. Entretanto, oconhecimento de seus conceitos e estratégiasinterventivas pelos analistas e ativistas sociaisainda é um pré-requisito para seu exercício, e háum esforço significativo de parte de alguns seusrepresentantes e lideranças em democratizar oacesso a este conhecimento, apesar do jargãofortemente acentuado que alguns ainda utilizam

regularmente em suas discussões.

Uma das correntes mais importantes deste modeloé a socioanálise, que nasceu na França, nos anos1960, tendo como principais expoentes Lapassadee Lourau73, na esteira da forte influência dos

73 Para uma primeira introdução à socioanálise, sugiro

movimentos da contracultura e do Maio de 1968.Constitui uma abordagem mais sociológica, comfortes aproximações ao marxismo e às obras deSartre mais próximas do marxismo (SARTRE, 1960),mas também se apropria de forma muito própriade alguns conceitos psicanalíticos. Está centradana ideia-chave de que todos os fenômenos grupaise organizacionais têm sua face de superfícievisível, mas estão atravessados de ponta a pontapor processos institucionais ocultos e reprimidos,que podemos chamar de inconsciente social .Aqui há forte aproximação com Marx, na suadescrição das formas de ocultamento das relações

sociais de dominação, mas a contribuição originalda socioanálise está em buscar identificar osprocessos institucionais, grupais e subjetivos desteocultamento e os conceitos e dispositivos quepodem induzir o seu processo de desvelamento. Poroutro lado, da mesma forma que no plano individualhá o que Freud chamou de retorno do recalcado, hátambém processos de “retorno do reprimido social”nos eventos “analisadores”.

Em termos muito sintéticos, no processo deintervenção em coletivos, a socioanálise constituiuma práxis que estimula a emergência ou produçãodos chamados analisadores espontâneos ouconstruídos . Estes são uma espécie de “atosfalhos” que ocorrem nos grupos e que revelam ascontradições que os atravessam, as várias formasde vínculos e de implicação de seus membros(sociais, políticos, étnicos, psíquicos, de gêneroetc.) e as relações de poder   e as estruturas do

inconsciente social, permitindo aos atores sociaisidentificarem com mais clareza as forças instituídas ,bem como as forças instituintes  e renovadoras da

o livro mais recente de Lourau (2004), a coletâneaorganizada por Rodrigues e Altoé (2006), para depoisfazer uma incursão nos livros mais clássicos, comoLapassade (1983) e Lourau (1995).

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dinâmica institucional, que podem ser mobilizadasnos processos de mudança social e política. Assim,as contribuições da socioanálise são fundamentaise têm enorme relevância no trabalho com grupos,em organizações, em projetos econômico-sociais eno trabalho comunitário.

Outra corrente importante deste modelo maisabrangente é a esquizoanálise de Felix Guattarie Gilles Deleuze, que caminha em uma direçãomuito próxima à da socioanálise, apropriando-se e modificando de uma maneira muito própriareferenciais teóricos variados, mas principalmente

oriundos da psicanálise, do marxismo e do pensamentode Nietzsche. Seu principal representante operativofoi Guattari, autor francês com vários livros sobre otema e sobre experiências concretas de práticas eintervenções no campo social, da saúde e da saúdemental. Guattari propõe que:

“O inconsciente pode voltar-se para o passadoe retrair-se no imaginário, mas pode i gualmenteabrir-se para o aqui e agora, ter escolha comrelação ao futuro (...) O que importa, agora (...)é o que denomino “devir”. (...) A única maneirade “percutir” o inconsciente, de fazê-lo sair darotina, é dando ao desejo o meio de se exprimirno campo social (...): construir sua própria vida,construir algo de vivo, não somente com ospróximos, com as crianças – seja numa escolaou não – com amigos, com militantes, mastambém consigo mesmo, para modificar, por

exemplo, sua própria relação como o corpo, coma percepção das coisas (...).” (GUATTARI, 198574)

74 Esta inserção constitui na verdade uma montagemde vários trechos do livro, para tornar suas ideias maiscompreensíveis e accessíveis ao leitor não acostumadocom seu estilo. Além desta obra, o leitor interessado podeconsultar Baremblitt (1992), outras obras individuais dopróprio Guattari (1988, 1992), de Guattari e Rolnik (1986) e

Uma outra ideia fundamental da esquizoanáliseé a passagem de grupo assujeitado   para gruposujeito . Os grupos assujeitados recebem sua pautade trabalho e ideias de fora, sem assumir suaperspectiva de sujeitos do processo. Os grupossujeito, como o próprio nome indica, assumemativamente esta condição, reelaborando suas regras,seu modo de trabalho, suas formas de lideranças,as várias formas de implicação  de seus membrose os atravessamentos do grupo, em processoautogestivo. Este último aspecto é importante,ou seja, a maior capacidade dos grupos sujeitosde identificarem e analisarem a transversalidade ,

entendida como as diversas dimensões e relaçõesopressivas que atravessam o grupo, como asrelações de sujeição e dominação de classe, degênero, de etnia, de geração, de discriminaçãosocial e cultural, de identidades sexuais, ouassociadas a condições existenciais específicas,como deficiências, doenças crônicas, transtornomental etc. Outra característica dos grupos sujeitoé buscar assumir a sua provisoriedade, aceitando aangústia associada à possibilidade sempre presentede sua morte e dissolução, já que uma formaçãoreativa inconsciente a esta possibilidade sempregera enrijecimento e apego ao estabelecido nosgrupos.

A esquizoanálise tem vários representantesargentinos e brasileiros importantes, tais como SuelyRolnick, Gregório Baremblitt, Regina Benevides deBarros, Antonio Lancetti, Peter Pál Pelbart e HelianaRodrigues (esta última muito próxima também da

socioanálise), entre vários outros.

Antes de concluir esta seção descritiva sobre osdiversos modelos de intervenção e práxis grupal,é importante reconhecer que todas as correntesresenhadas esquematicamente nesta seção têm

de Guattari et al. (2003).

suas especificidades e são complexas, e merecemuma avaliação detalhada de suas contribuições elimites. Essa análise é importante e necessária,

mas extrapolaria os objetivos e as dimensões dopresente ensaio, centrado na revisão do processo

de construção histórica dos modelos grupais edos grupos de ajuda mútua. Entretanto, o maisimportante para os objetivos do presentetexto é reconhecer a importância daexperimentação prática e do conhecimentocada vez mais aprofundado destes váriosmodelos para a formação das liderançassociais ou dos profissionais que adotam osdispositivos grupais como ferramenta deatuação e práxis social e profissional . Mesmoque não adotemos este ou aquele modelo específico,

o conhecimento gradual dos vários modelos, suasteorizações e os conceitos são fundamentais para

se trabalhar com qualquer um dos demais modelos,como o leitor poderá já visualizar ainda no decorrerdo presente texto. Um das razões para isso está em

que os processos subjetivos e psicossociais sãomultidimensionais e exigem formas de conhecimentointerteóricas (VASCONCELOS, 2002), pois muitas

vezes a análise de um único fenômeno grupal podeexigir a ajuda de conceitos e processos propostos

por outras correntes. Neste sentido, o aparelhopsíquico grupal parece ter as mesmas característicaspolissêmicas do aparelho psíquico individual, como

nos indicou Freud. Não raramente, a explicação deum fenômeno singular de um indivíduo ou de umaestrutura psicopatológica particular exigia fazer uso

simultâneo de dois ou até mesmo dos três modelosmetapsicológicos que sintetizou, e que são baseados

em diferentes filosofias do conhecimento. Essaexigência é ainda maior quando tratamos de gruposcom perfis particulares de membros, e inseridos

em diferentes contextos sociais e institucionaisna sociedade mais ampla, exigindo integrar mais

dimensões em nossa análise.

Feitas estas observações, podemos então passaragora à análise mais detalhada do modelo grupalmobilizado pelas estratégias de ajuda mútua.

5) O modelo dos grupos de ajuda mútua,suas características estruturais, desafios eestratégias de lidar com eles

5.1) Classificação do modelo

Dentro do conjunto de modelos que vimosexaminando até agora neste texto, os grupos deajuda mútua podem ser classificados no primeirotipo, ou seja, como terapias exortativas que agempelo grupo . Historicamente, o movimento que utilizaeste modelo que mais se difundiu espacialmente nomundo foi o dos Alcoólicos Anônimos, fundado em1935 nos Estados Unidos e que hoje estão presentesem cerca de 150 países, com pelo menos doismilhões de membros diretos. A difusão também sedeu no sentido de abarcar outros comportamentoscompulsivos e problemáticos, o que levou asua conhecida tradição dos doze passos a abriroutras organizações, tais como as dos NeuróticosAnônimos e dos Psicóticos Anônimos.

A diferença fundamental dos grupos de ajudamútua com o modelo preconizado por Pratt utilizadono tratamento de tuberculose, indicado acimaneste texto, está em evitar a utilização do segundomecanismo, o de identificação com o terapeuta,pois deliberadamente não há profissionais nestesgrupos. Assim, este modelo visa estimular aidentificação horizontal cruzada entre os membrosdo grupo, e particularmente com aqueles em estágiomais avançados de recuperação, que alcançarammaior tempo sem beber e conseguiram reconquistarum melhor padrão de vida, depois de passar pelo

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“fundo do poço”. Assim, podemos então chamar osgrupos de ajuda mútua inspirado nos AA de terapiasexortativas que agem pelo grupo, com estruturafraternal 75, constituindo portanto uma outra variaçãointerna dentro desta categoria mais ampla.

5.2) Ensaio avaliativo de um exemplo típico, osAlcoólicos Anônimos

A avaliação histórica, doutrinal, cultural epsicossocial do modelo do AA é extremamente

complexa e já constituiu o tema de inúmerostrabalhos já publicados, particularmente forado Brasil. Em nosso país, foi objeto de poucosestudos sérios, entre os quais saliento revisõesde estudos significativos da literatura em inglês,de minha autoria (VASCONCELOS, 2003 e 2008b),o trabalho de Mota (2004) e a extensa e sensíveltese de doutorado de Reis (2007). Não caberetomar aqui toda a complicada linha de avaliaçãojá desenvolvida nestes trabalhos, mas podemosreproduzir um extrato da última síntese já publicada(VASCONCELOS, 2008b), para permitir uma visãointrodutória à complexidade dos mecanismosacionados pelos grupos de ajuda mútua do AA:

 

a) há um relativo consenso positivo entre os analistas,como indicam Reinarmar (1995) e Davis e Jansen(1998), de que o AA apresenta uma organizaçãoe uma estrutura de filiação completamente

75 Muitos destes dispositivos de estrutura fraternalnão deixam de ter seus mitos fundadores, no sentidoantropológico desta expressão, particularmente emrelação aos criadores concretos dos movimentos, comoacontece também no AA. Porém, nas estruturas fraternais,estes mitos não são presentificados em liderançascentralizadoras e estruturas de poder personalizadas,com papel preponderante nas práticas grupais.

descentralizadas e de base, sem mandato deautoridade superior sobre a autonomia dos gruposlocais ou membros individuais, e um processo dedecisão baseado no consenso obtido após longoprocesso de debate igualitário. Por outro lado,constatamos particularmente em nossa pesquisano Rio de Janeiro (REIS, 2007), na direção inversadesta estrutura organizacional horizontalizada edescentralizada de sua dinâmica grupal na base,que há em toda uma rede organizacional hierárquicade gestão mais geral dos grupos, e um verticalismodoutrinário extremo, já que todo o conjunto deprincípios, de instruções de funcionamento dosgrupos, os textos doutrinais e o material dedivulgação geralmente parte da agência matriznorte-americana. Qualquer sugestão de mudançadoutrinal e na metodologia de funcionamento dosgrupos tem que fazer um longo percurso nesta

hierarquia organizacional até o topo, na ConferênciaInternacional de Serviços Gerais;

b) de forma também positiva, há o reconhecimentode que o AA geralmente está disponível nosespaços mais variados, das grandes cidades às vilasrurais, na maioria dos países do mundo, e, portanto,apresenta ampla difusão e acessibilidade;

c) além disso, toda a literatura constata que omodelo de funcionamento e os princípios do AAtambém se difundiram mundialmente para e foramcapazes de abraçar a abordagem de vários outrosproblemas de abuso químico e de comportamentocompulsivo;

d) embora haja ainda alguma polêmica em relaçãoa detalhes sobre a avaliação dos resultados,constatamos em nossa pesquisa que a maioriados especialistas e profissionais reconhece que

a participação regular em grupos de AA constituio dispositivo mais efetivo e amigo do usuário, edisponível para abordagem do abuso de álcool;

e) entre os analistas citados, há também umconsenso positivo de que, nos grupos de AA, háuma proibição explícita de acumulação de dinheiro,propriedade e prestígio;

f) outra avaliação positiva consensual, confirmadaem nossa pesquisa empírica no Rio de Janeiro, é

relativa ao fato de que em suas seções e em todaa organização, há uma preocupação ativa e regrasfortemente estabelecidas para garantia de absolutoanonimato para o mundo fora dos grupos de AA,que oferece segurança e confidencialidade aos seusmembros;

g) essas mesmas fontes reconhecem positivamentea completa autonomia e independência que aorganização mantém em relação a profissionais e aseus serviços em geral, particularmente aos da área“psi”, constituindo um fator real de empoderamento.É importante lembrar que a organização, atravésde seus membros, não descarta a ou mesmo podeestimular um eventual uso pessoal e privado detratamentos profissionais;

h) da mesma forma, David e Jansen (1998) e nossapesquisa no Rio de Janeiro constatam que o AApromove uma forte valorização da história pessoalde cada membro e da vivência grupal, construídopor meio do colocar em comum as vivências de cadaum e da construção e reconstrução das narrativasde vida, em uma tradição oral muito próxima dacultura popular, e que permite a identificaçãointerpessoal imediata entre seus participantes,o acolhimento e o intercâmbio de experiências e

estratégias de recuperação;

i) nossa pesquisa no Rio de Janeiro constatouque o AA possibilitou o desenvolvimento dafigura do “conselheiro de álcool e drogas” (hojedenominado técnico em dependência química), ouseja, de lideranças de seus grupos que, a partir desua experiência pessoal de recuperação, passama ter um papel fundamental nos programas derecuperação no campo como assalariados voltadosexclusivamente para a atenção a novos usuáriosnos serviços, valorizando-se e empoderando-se a

figura dos usuários mais avançados no processo derecuperação, em um contexto em que normalmenteapenas os profissionais eram chamados a atuar;

j) sobre a concepção de alcoolismo:

Reinarmar (1995) avalia que no AA, o alcoolismoé representado como uma “doença progressiva” eincurável, tratável unicamente por meio da abstinênciaabsoluta, e associada à falta de controle sobre o atode beber. Assim, critica o seu enquadramento dosproblemas do álcool dentro de um modelo médico,no seu sentido mais convencional e unidisciplinar,apesar de sua independência dos profissionais einstituições médicas para desenvolver o processode recuperação. Em contraste com esta abordagem,as novas abordagens de abuso de drogas adotadaspela atual política de saúde mental no Brasil, porexemplo, colocam a abstinência absoluta   apenascomo uma das possibilidades dentro de um rol mais

amplo de estratégias, enfatizando outras, na linhada redução de danos   (MINISTÉRIO DA SAÚDE,2005).

Em uma perspectiva inversa, mais simpatizante doAA, David e Jansen (1998) indicam que a li nguagemdo AA, inclusive do alcoolismo como doença,constitui na verdade uma linguagem metafórica,aberta a apropriações variadas e múltiplas,

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denotando, entre outras coisas, isolamento,desespero e vida caótica.

De nossa parte, a partir da pesquisa no Rio deJaneiro e do estudo de Reis (2007), percebemosque, muito além desta impressão inicial de umavisão estritamente médica, esta perspectivaconstitui na verdade um dispositivo inicialdesculpabilizante, que visa absolver em um primeiromomento o alcoolista e sua família da culpa moral(o indivíduo é portador de uma doença incurável,e não imoral, desviante ou psicologicamentefraco). Em um segundo momento, porém, quando oindivíduo já está integrado ao grupo e assume o seuprocesso de recuperação, o dispositivo aciona umaradical mudança no sentido da individualização,convertendo o alcoolismo em problema moral eespiritual de inteira responsabilidade de cadaindivíduo. Assim, esta abordagem do AA envolveaspectos somáticos, mentais e principalmentemorais e espirituais em uma combinação complexa,com aspectos similares às representações sociaisdos fenômenos mentais das classes popularesbrasileiras, na linha dos fenômenos do “nervoso”,já bastante sistematizados pela antropologia socialbrasileira76, particularmente por pesquisadoresassociados a Luís Fernando Duarte (1986; DUARTEe LEAL, 1998), mas com particularidades deindividualização muito próprios;

k) Reinarmar (1995) indica que esta perspectivaindividualizante do AA é coerente com suas raízesprotestantes, ao localizar a responsabilidadeexclusivamente em cada pessoa, através de umfoco individualista e terapêutico. Nesta abordagem,qualquer consideração de aspectos sociais,

76 Para maiores detalhes sobre o assunto, ver nessevolume da coletânea o texto de Liana Fonseca sobreo modelo do nervoso, bem como meu trabalho sobreexperiências de projetos populares em saúde mental.

estruturais, políticos e culturais que possam seraventados para explicar o ato de beber tendem a serdefinidos como questões “externas”, sendo excluídasdos encontros ou interpretadas como evidência dedesculpa, negação ou racionalização da situaçãopessoal, e, portanto, como clara manifestaçãoda doença. De nossa parte, no Rio de Janeiro,percebemos que a maioria das avaliações feitas emnosso país por autores ligados à esquerda indicamneste tema os principais efeitos de alienação,individualização e privatização de questões sociaise políticas da abordagem do AA, não promovendoa consciência crítica sobre o estímulo ao consumo

do álcool pela sociedade atual, nem o engajamentodos indivíduos em processos de defesa de direitos emudança cultural e social;

l) ainda sobre os aspectos religiosos e espirituaisdo AA, Reinarmar (1995) avalia que, embora nãoconfessional ou denominacional, o AA mantém umaabordagem profundamente religiosa, por meio deum sentido de recuperação inspirado na conversãoreligiosa do tipo evangélica. Indica que algumasfeministas irão enfatizar que a representação dopoder superior reproduz os modelos patriarcaise masculinos. De nossa parte, no Rio de Janeiro,constatamos que essa representação espiritualizadada recuperação também encontra resistência entreos profissionais, dada a sua formação laica eracionalista.

Outros avaliadores, como David e Jansen (1998),mais simpáticos ao AA, assinalam que a linguagemreligiosa dos 12 passos é também metafórica, do tipokoan   (espécie de enigma usado pelos zen-budistaspara meditação e crescimento espiritual). Reinarmar(1995), mesmo sendo mais crítico que os dois autores,reconhece que, apesar desses componentes religiosos,não há qualquer elemento prescritivo de tipoprotestante ou vitoriano relativo ao campo da moralsexual ou de uma perfeição moral antiquada;

m) este mesmo pesquisador, a partir de sua revisãoda literatura, critica o modelo do AA, como baseadoem uma psicologia pragmática e racionalistainspirada nos primeiros psicólogos cognitivostais como Willian James, remodelando conceitosreligiosos como “pecado” e “retribuição” na formade “defeitos de caráter”, “correção”, que parecemlembram a s ensibilidade moderna norte-americana,anticlerical, pós-proibição do álcool;

n) outra linha muito comum de avaliação doAA critica a representação do caminho para a

recuperação e para se retomar o controle, comorequerendo a admissão da completa ausência depoder e pela admissão do “Poder Superior”. Visõesmais simpáticas ao AA, como as de David e Jansen(1998), afirmam que esta é uma abordagem inicialnecessária ao sentimento de onipotência típico dosalcoolistas, como se capazes de pleno controle desi, em paralelo a uma denegação do caos de suasvidas, e cuja saída passa pela conexão com oscolegas de grupo, e, gradativamente, pelo controleefetivo de suas próprias vidas. Apontam aindaque há frequentes confusões na compreensãodeste aspecto por visões mecânicas, positivistas ereducionistas de algumas ciências c omportamentais,e que a recuperação só pode ser entendida comoprocesso dialético de várias fases, com algumassemelhanças a certos tipos de psicoterapia ouestratégias espirituais de desenvolvimento pessoal,que resultam necessariamente em empoderamentogradual da pessoa. De minha parte, a partir denossa pesquisa etnográfica no Rio de Janeiro, avalioque o processo de saída do caos e a fase inicial derecuperação tem um potencial de fazer o indivíduoretornar à vida social e ao trabalho, com clarosefeitos de empoderamento, mas, no longo prazo, apadronização da dinâmica grupal (tema do próximoitem), o leque repetitivo de dispositivos e o corpodoutrinário, com as características já revisadas

acima, não estimulam formas mais avançadas deempoderamento e de individuação psicológica;

o) nossa pesquisa constatou também que, aoenfatizarem a difusão em massa sem dependerde especialistas, e evitando qualquer forma derisco e imprevisto, o AA optou por uma dinâmicapredominante de reunião estereotipada, baseada nomodelo de auditório, marcado por relações unívocas

com o palestrante, sem permitir v ariações temáticase criatividade. Por exemplo, modelos de reunião naforma de círculo possibilitariam diferentes tipos

de relações cruzadas, mais horizontalizadas eigualitárias, bem como poderiam ser mais flexíveispara diferentes temáticas. Estas alternativaspoderiam ser fomentadas em fases mais avançadasde desenvolvimento dos grupos, bem como de seusmembros, estimulando a individuação psicológica ea formação de identidades pessoais e sociais maisflexíveis e criativas, capazes de lidar com níveiscrescentes de desafios;

p) finalmente, penso que, apesar da importânciahistórica do AA como modelo matriz de ajuda mútua,os movimentos sociais atuais mais engajados,inclusive o próprio movimento de usuários emvários países, tendem a inserir os grupos de ajudamútua em um leque mais amplo de dispositivose estratégias de empoderamento, como gruposde suporte mútuo, defesa dos direitos, ações detransformação do estigma e representações sociaisna cultura e na sociedade, e militância social epolítica.

Como se pode depreender desta síntese

esquemática, o processo doutrinário e associativodo AA é bastante complexo, multifacetado eobjeto de polêmicas em seu processo de avaliação,

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impedindo a meu ver qualquer avaliação unívoca,que tenderia a ser simplificadora e reducionista.Além disso, qualquer serviço sério dirigido a abusode álcool e outras drogas no Brasil conta com oapoio do trabalho do AA e seus grupos análogos,que têm um nível de eficácia no tratamentomais alta do que qualquer dispositivo clínico eprofissional formal isolado. Em minha opinião, issoimplica que devemos, em primeiro lugar, aprofundarnossa avaliação desta tradição no país. Em segundolugar, por mais que tenhamos elementos de c ríticasa alguns ou vários aspectos desta tradição, ela estáhoje difusa em todo o mundo, e é imprescindível e

até hoje insubstituível na abordagem e tratamentodo abuso de drogas. Em terceiro, dada a sua hoje járelativa longa história, bem como sua centralizaçãoe verticalização doutrinária em sua estrutura, nãopodemos ter nenhuma ilusão da possibilidadede mudanças mais substantivas “por dentro”do movimento, a não ser pela dissidência, comoocorreu em alguns grupos na Europa e nos EstadosUnidos (REIS, 2007).

5.3) Principais características do processogrupal na ajuda mútua, seus riscos e desafios,e estratégias de como lidar com eles

A partir da avaliação desenvolvida nas seçõesanteriores, temos todas as condições agora paraexplicitar melhor as principais linhas de força quemarcam a dialética interna e externa dos grupos de

ajuda mútua. Esta análise nos ajuda a compreenderos conflitos estruturais e os desafios semprepresentes em suas reuniões e encontros, comotambém algumas de suas relações com o mundosocial, possibilitando estabelecer estratégias decomo melhor lidar com estes aspectos em projetosque visam à sua expansão. Os diversos elementosindicados abaixo são interligados, mas serão

separados para efeito didático e da organizaçãoda análise. Os tópicos partirão de questões maisinternas, para ir gradualmente abordando as suasligações com temas e problemas externos aosgrupos.77

5.3.1) O poder e os processos transferenciais emrelação ao líder, terapeuta ou analista, e/ou desua análise (como nos modelos de psicoterapia degrupo), é deslocado para as relações horizontaise diretas entre os membros . Esta característicacentral dos grupos de ajuda mútua tem os seguintes

aspectos e razões:

a) as relações de poder e os lugares de liderança,coordenação ou facilitação são enfraquecidos nadinâmica grupal pelos seguintes mecanismos:

- a atuação dos líderes e facilitadores está maiscentrada na garantia do dispositivo grupal proposto,objetivado nas regras/normas de convivência e/ouno contrato de participação;

- as pessoas que ocupam estes postos de podersão ou podem ser frequentemente trocadas,como regra estimulada pelo dispositivo grupal, oque desloca e despersonaliza a atuação nesteslugares, estimulando a consciência no grupo de queconstituem um lugar ou papel apenas institucional,e que todos podem chegar a ocupá-lo um dia;

- a provisoriedade da ocupação destes lugares poruma pessoa concreta não estimula a identificação

77 Nossa concepção de processo grupal, seguindoaqui a perspectiva desenvolvida pela socioanálise e daesquizoanálise, envolve temas e fenômenos que ocorremtanto na dinâmica interna dos grupos como também osprincipais processos e determinações mais amplas, queincidem e atravessam os grupos.

e introjeção maciça das características pessoais dolíder ou coordenador;

- os membros do grupo são obrigados a aprender aviver em constante “processo de luto” em relaçãoà perda regular destas pessoas nos postos deliderança.

b) o dispositivo e a fala dos coordenadores devemestimular para que os processos transferenciais ede identificação se deem prioritariamente com seuscolegas de grupo, particularmente pela sua coragemde expor seus problemas e pela c apacidade de levaradiante o processo de recuperação e superaçãogradual de problemas e desafios;

c) o dispositivo e a ação das lideranças não devemestimular a sensação de que a existência do grupodependeria da presença de um ou mais líderes maiscarismáticos, mas sim da presença, participação ededicação regular de todos os seus membros;

d) o poder ainda mobilizado pelas liderançasou facilitadores não enfatiza a posse de umacompetência ou saber especializado ou profissional,mas apenas é baseado na experiência vividapessoalmente ou no contato com os demaiscompanheiros de jornada;

e) os conflitos de ideias ou de sugestões prescritivas

de comportamento geralmente são evitados, e, nocaso de emergirem, as lideranças ou facilitadoressão estimulados a não se colocarem na posiçãode quem tem a última palavra, pois isso estimulao recentramento do poder em suas mãos e oprocesso de normatização social. Em geral, nosgrupos de ajuda mútua, pode-se apenas expor econtrapor o maior número possível de experiências

e sugestões, e a decisão de quais são as melhorese as que devem ser tentadas cabe exclusivamenteà avaliação e à decisão de cada participante. Emcaso de dúvida acerca de questões científicas ouprofissionais, os grupos devem dispor de tipos de

reuniões que permitam chamar profissionais ououtras lideranças de confiança, externas ao grupo,para se tirar dúvidas. De forma similar, em casode exposição de uma experiência, comportamentoou ideia que possa ter efeitos considerados sériospara os demais membros (e às vezes isso pode serfeito de forma muito sedutora por participantes),os facilitadores ou membros mais experientes nãodevem fazer uma contraposição frontal com baseem conhecimento a priori . Devem apenas relatarexperiências que enfatizem outras formas de pensare agir, ou sugerir um convite a profissional ou líderexterno com experiência no assunto, para a próximareunião.

5.3.2) Os efeitos terapêuticos e psicossociaiscentrados na ação ou interpretação do terapeutasão deslocados para o efeito direto e concreto dasrelações estabelecidas entre os participantes nogrupo, organizadas pelo dispositivo grupal proposto .Assim, os grupos de ajuda mútua constituem umespaço de:

a) reconhecimento e valorização do indivíduocomo pessoa e de suas vivências, em contraste

com a desvalorização social vigente na sociedademais ampla, dadas as relações de opressão a quegeralmente os indivíduos estão submetidos;

b) recolocação do indivíduo na posição de sujeito,não só pela ênfase na narrativa em primeira pessoado singular, como também estimulando, valorizandoe apoiando suas tentativas de ação prática para

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a resolução de problemas, em contraste com asrelações sociais dominantes de assujeitamento,

passividade e objetivação na sociedade mais ampla

e nos serviços sociais e de saúde;

c) relativamente livre (o grau de liberdade dependediretamente do dispositivo criado) expressão

de experiências cotidianas e dos sentimentos

associados, com níveis moderados de efeitocatártico 78   da exposição aberta destas vivências.

Os grupos de ajuda mútua se diferenciam da

psicoterapia grupal pela ausência de um profissional

formado, que em tese é capaz de permitir eestimular a expressão de experiências profundas ede alto conteúdo emocional e dramático, bem como

de elaborar junto com o grupo caminhos para uma

relação menos despotencializada e desdramatizadados participantes com estas vivências. Em outras

palavras, os grupos de ajuda mútua não podemter a pretensão de realizar psicoterapia degrupo, não só por que esta é uma atribuiçãoprivativa de profissionais específicos, comotambém seu dispositivo e seus facilitadorestêm limites claros no manejo deste tipo deexperiências. Este tema será retomado maisadiante.

78 Do ponto de vista conceitual, a catarse ou ab-reação constitui o efeito produzido quando um indivíduoconsegue reviver ou relatar vivências difíceis outraumáticas, conflitos e dramas pessoais, possibilitandoque a energia psíquica associada àquela experiênciapossa ser liberada. Isso permite a sensação de alívioemocional (choro, por exemplo), diminuindo a intensidadee a forma maciça com que aquela energia psíquica seriadeslocada para provocar sintomas psicossomáticos,às vezes com deterioração significativa de sua saúdesomática e psíquica.

d) reconhecimento e aceitação de problemas edificuldades somáticas, subjetivas e existenciaisde longo prazo na vida, como doenças crônicas,transtorno mental, dependência de drogas,comportamentos compulsivos, dificuldadesduradouras de relacionamentos com os demais;

e) geração de esperança, dada pelo exemploconcreto do outro que já conseguiu avançar noprocesso de recuperação;

f) troca de experiências concretas de como lidar comos desafios colocados por estes problemas, não sóindividuais e familiares, como também de iniciativascoletivas e de lutas na defesa dos direitos nasociedade;

g) apoio emocional e de construção de laços e redesde amizade e companheirismo, que se estendempara a vida externa ao grupo.

5.3.3) O poder de gerir conflitos e vivências caóticas,normalmente centrado no terapeuta ou coordenadornos demais modelos grupais, passa a s er deslocadopara o dispositivo grupal , possibilitando a difusãohorizontal dos grupos de ajuda mútua na sociedade,sem criar dependência em relação a profissionais,especialistas e suas instituições.  Isso requerum dispositivo grupal com características muito

próprias, com muitos efeitos psicossociais positivos,mas também com alguns riscos que devem seravaliados com cuidado.

 Os grupos e suas relações interpessoais internasestão perpassados pelas diferentes ideologias erelações de poder e dominação vigentes na sociedade,bem como pela possibilidade seus membros

mobilizarem sentimentos de competição, inveja,narcisismo, desejo de dominação, agressividade,relações sadomasoquistas etc. Nos grupos de ajudamútua, o poder de gerir conflitos não constitui umaprerrogativa ou está centrado diretamente nas mãosdos líderes e coordenadores, mas é deslocado parao dispositivo grupal. Isso em geral não significa queos estatutos cheguem a reconhecer explicitamenteeste lado humano mais sombrio e inconsciente, ouos conflitos estruturais da sociedade que atingem osgrupos, pois, ao contrário, eles tendem a enfatizarmais os seus objetivos solidários, humanitários e/ou emancipatórios. Entretanto, a experiência práticaanterior e a cultura jurídica vai exigindo a criação deregras de convivência entre os participantes e parao exercício do poder nos cargos de coordenação,que normalmente são formalizadas em um estatutoou contrato, e muitos destes grupos fazem inclusivea sua leitura regular ou frequente no início dasreuniões.

Além destas normas mais gerais, nos gruposde ajuda mútua o arranjo grupal prevê tambéme detalhadamente a disposição dos membros,as formas de relação possível, o tempo de fala,a estrutura e a pauta das reuniões etc. Um dosobjetivos centrais deste dispositivo é, portanto,criar um ambiente protegido para os participantese controlar a emergência de conflitos e vivênciascaóticas que possam prejudicar os membrose colocar em risco a própria continuidade dogrupo. Por exemplo, a reunião padrão do AA é

detalhadamente ritualizada, dá-se na forma deauditório e não de um círculo, e cada participantepode ir à cabeceira da mesa e falar por no máximodez minutos, após os quais não há comentários porparte dos demais participantes. Este dispositivo nãopermite de forma alguma a emergência de conflitosabertos, e possibilita que qualquer liderança comalguma experiência prévia possa abrir outro grupo,

sem depender de uma competência significativa oude profissionais para isso. Essa é uma das razões daenorme capacidade de crescimento e difusão do AA.

 

A avaliação deste dispositivo grupal do AA, comoexemplificamos em seção prévia neste texto, develevar em conta se tratar de uma problemáticacomplexa, o abuso de álcool e seus problemasassociados, que mobiliza fortes mecanismossomáticos (a dependência química), emocionais,comportamentais (a compulsividade) e psíquico-

cognitivos de resistência (como a racionalização e

a denegação). Em geral, os estudos desta tradição,como indicamos acima (VASCONCELOS, 2003 e2008b; REIS, 2007), apontam que os depoimentosgerados a partir deste dispositivo grupal são bastanteestereotipados (início do consumo, dependência,“fundo do poço”, contato com AA, experiênciasde abstinência e suas dificuldades, e reconquista

gradual da vida social, familiar e de trabalho). Nocurto prazo, isso oferece um ambiente fortementeprotegido e um aparelho psíquico compartilhado ougrupal 79  importante para introjeção pelo membroiniciante, normalmente com a vida pessoal epsiquismo desorganizado e em crise pelo abuso dadroga. Contudo, a médio e longo prazos, a ofertaquase exclusiva deste tipo de reunião para a grande

79 De acordo com a psicossociologia (KAËS, 1991), umdos modelos grupais e de teorização apontados acima, asinstituições e os grupos sociais mais significativos não sógeram práxis e fornecem elementos sociais e simbólicoscomuns a seus membros, mas também realizam funçõespsíquicas. Eles mobilizam dinâmicas e mecanismosde defesa comuns para a economia psíquica de seusmembros, para lidar com os impulsos inconscientes ecom as emoções decorrentes de situações semelhantes.Isso significa na verdade a constituição de um aparelhopsíquico de ligação e de transmissão, que pode serchamado de aparelho psíquico compartilhado ou grupal(ou ainda de grupamento).

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maioria de seus membros pode também gerar uma

identidade social muito padronizada, que impede o

crescimento e o processo de individuação 80.

Este é um risco muito comum nos grupos e

movimentos de ajuda mútua, e todo o cuidado

deve ser tomado no momento de avaliar seu

processo grupal. Em tese, estes dispositivos optam

80 O processo de individuação constitui um conceito-chave no pensamento do psiquiatra suíço Karl GustavJung, companheiro inicial de Freud, mas que depois se

diferenciou para fundar a psicologia analítica. Apesar deapresentar características complexas e multifacetadas,pode ser entendido como um processo inexorável deamadurecimento psicológico exigido de cada indivíduodurante todo o seu ciclo de vida. A individuaçãorequer primeiramente uma diferenciação no campointrapsíquico, de um encontro gradativo da consciênciacom os conteúdos do inconsciente, com as imagens eenergias vitais e coletivas de renovação psicológica,no sentido de abarcar a totalidade da psique. No planointersubjetivo, exige uma penosa diferenciação eu-mundo, de valorização da individualidade em relaçãoàs normas e identidades já estabelecidas, nas relaçõescom os outros mais significativos, com os grupos sociaise a sociedade em geral, sem que se rompa os vínculosindispensáveis à convivência e sobrevivência social,apesar das diferenças que se vão constituindo. Mais alémainda, a individuação, mesmo que requeira momentos efases de interiorização, não implica cair no escapismo,no individualismo cultural ou na aceitação passiva darealidade social já dada, pois significa também o resgatede valores universais preservados pela cultura numplano mais avançado, na descoberta de uma dimensãoprofundamente ética, mas diferenciada e mais autônoma,já que estes valores deverão ser vividos de forma maissingular e inconfundível. Assim, a individuação acabarepresentando, principalmente em suas etapas maisavançadas, uma razoável expansão psicológica e ética,experimentada por um lado no aprofundamento dasexperiências subjetivas pessoais e, de outro, na vivênciaparadoxal da necessidade de uma certa dose de reduçãodo ser individual, pela interação necessária com osoutros e pela participação nas lutas por transformaçõesna sociedade e no ambiente (VASCONCELOS, 2006).

necessariamente por posições intermediárias entredois polos, ora acentuando um ou outro: de umlado, a proteção dos membros participantes, queestimula a padronização, e de outro, a necessidadede também estimular o processo de individuação.Para valorizar este último lado, várias medidas sãopossíveis:

- usar outros tipos de disposição das cadeiras nasreuniões, diferentes do auditório, como, por exemplo,o círculo, bem como utilizar rituais e regras deconvivência que possibilitem trocas um pouco mais

livres, mas de forma combinada com mecanismosclaros de controle contra comportamentosindesejáveis (como agressividade, discriminação,violência etc.), de forma a garantir a proteção dosparticipantes e assegurar um clima construtivo e debem-estar dos membros e a continuidade do grupo;

- criar diferentes tipos de reuniões, com diferentespossibilidades de enriquecimento pessoal e coletivo;

- prover material educativo e estimular o crescimentoeducacional, político e cultural, nos planos pessoale coletivo nos grupos;

- promover encontros e eventos de pesquisa etrocas de experiências entre os grupos de ummesmo movimento e entre diferentes movimentos,

possibilitando a avaliação dos dispositivosutilizados, mudanças de rumo e o enriquecimentomútuo.

5.3.4) A conformação de um campo doutrinário laicoe acessível ao senso comum pode democratizaro conhecimento, a acessibilidade nas formas deapoio social e o diálogo cultural com largos extratos

da base da pirâmide social , mas também podeapresentardesafios e riscos sérios que precisam sercuidadosamente avaliados.

Os grupos e movimentos de ajuda mútua sãomarcados pela independência e autonomia emrelação a profissionais e especialistas no seu diaa dia, em campos marcados pela ambiguidadee complexidade da vida, da subjetividade, dasespecificidades dos fenômenos e problemas queabordam e das estratégias de lidar com ele. Issoexige a interpelação de um campo de valores e

doutrinário laico, presente na cultura difusa dasociedade e razoavelmente acessível ao sensocomum. Como indicado, temos aqui c laros ganhos nademocratização do conhecimento, na acessibilidadeàs formas de apoio social mobilizadas e na aberturado diálogo inter e multicultural com largos extratosda base da pirâmide social, mas também temosriscos que precisam ser considerados.

Se colocarmos essa temática tendo como panode fundo os desafios subjetivos colocados pelamodernidade (VASCONCELOS, 2010c), temosenormes desafios. A sociedade capitalista ocidental,a modernidade e seu estímulo a processos desubjetivação e individuação/individualização81 

81 Precisamos diferenciar estes dois termos. Já falamosacima sobre o conceito de individuação em Jung, quetem características psicológicas mais universais, masque ocorre de formas diferenciadas nas várias culturas,inclusive nas sociedades mais tradicionais. A sociedadecapitalista vem gerando um processo acentuado deindividualismo social e cultural, e, pelo menos para as elitesletradas, o processo de individuação é chamado a se darunilateralmente através da introjeção do individualismosocietário e por processos de psicologização. Esta nãoparece ser a trajetória típica e desejável de individuaçãoda maioria das classes populares, particularmente noBrasil, pois são ainda muito marcadas por uma culturahierárquica e holista (VASCONCELOS, 2008b).

inauguraram uma proposta imprescindível deemancipação do gênero humano82, mas não acessívelpara as grandes massas populacionais. Por um lado,

liberou o indivíduo comum dos laços tradicionaisde servidão, de dependência interpessoal, desubmissão ao mestre na corporação de ofício e à

autoridade ilimitada combinada da igreja cristã, daaristocracia e do poder de Estado, abrindo relaçõesmercantis que ampliam cada vez mais o contatocom as potencialidades de todo o gênero humano.

Por outro lado, transforma cada trabalhador-cidadãoem mercadoria, força de trabalho “livre”, atomizada,individualizada, a ser vendida em um mercado de

trabalho competitivo regido por mecanismosimpessoais e completamente desfavoráveis a seusinteresses, em uma sociedade agora sem dispositivosaccessíveis de formação e de subjetivação no

campo moral, ético e psicológico, capazes de gerara reflexividade e a autonomia necessária para asua formação pessoal e para lidar com os desafios

existenciais no novo contexto histórico e cultural.Várias estratégias são colocadas à disposição dapopulação mais geral, mas aos setores populares

a cultura dominante no Ocidente vem ofertandomassivamente duas linhas principais de elaboraçãosubjetiva e cultural:

a) os movimentos de reinterpelação dasidentidades religiosas tradicionais, abertamenteconfessionais ou não, mas com nova roupagem

mais individualista e liberal. Um dos melhores

exemplos foi o movimento da temperança , que

82 Do ponto de vista do conjunto dos interesses popular-democráticos na história humana, este é um projetoemancipatório importante, mas parcial, que precisaser integrado a outros projetos de cunho econômico,social e político, inclusive para que ele próprio possaser expandido em toda a sua plenitude e acessível àsgrandes massas.

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teve enorme difusão na Inglaterra, nos EstadosUnidos e em outros países de maior penetraçãoda cultura anglo-saxã e capitalista, a partir da

segunda metade do século XIX (VASCONCELOS,2003). Nas Sociedades da Temperança e na sualiteratura83, as marcas evidentes do neodarwinismo,

do protestantismo e da cultura vitoriana sãomescladas ao individualismo liberal e empresarial,reforçando junto aos trabalhadores a importânciada autoeducação e do cuidado de si como motores

do crescimento do indivíduo, rejeitando-se a ajudaexterna oriunda de programas sociais, filantrópicose públicos. Não há dúvidas de que há alguma

continuidade cultural entre esta matriz e as práticasque conformaram os Alcoólicos Anônimos (AA) esuas organizações derivadas, como vimos acima.

Mais recentemente, no século XX, essa perspectivade análise certamente pode oferecer bons subsídiosna compreensão da rápida e crescente expansãodas igrejas cristãs evangélicas, com forte ligação ou

inspiração nas matrizes norte-mericanas;

b)  a literatura e as práticas convencionais de

autoajuda , que muitas vezes são inspiradas emmatrizes religiosas e nas interpelações do movimentoda temperança, e que combinam os objetivosutilitaristas do individualismo possessivo tradicional

com o ensino do desenvolvimento de capacidadespessoais subjetivas e objetivas, com vistas aatingir o sucesso pessoal no trabalho, nas relações

amorosas, na família e no convívio social, de forma

inteiramente instrumental e adaptativa. Podem às

83 Nesta literatura se destaca o livro de Samuel Smiles,intitulado Autoajuda – com ilustrações de condutae perseverança, lançado inicialmente em 1859 naInglaterra, que foi traduzido em várias línguas e vendeumilhões de exemplares em vários países do mundo,inclusive japonês, hindi e albanês (VASCONCELOS, 2003:84).

vezes ter alguma abertura para uma exploraçãoum pouco mais profunda da personalidade e davida espiritual, mas normalmente este componenteinstrumental é mais forte, centrado na ideia de um

final de sucesso na vida social.

Assim, não é aleatório que nos trabalhos quevenho publicando sobre movimentos sociais deempoderamento, faço a distinção inexistente no

inglês entre esta cultura de self-help  (autoajuda),fortemente marcando essa matriz individualistae liberal, e os grupos de ajuda e suporte mútuos,

para diferenciar as suas possibilidades culturaise seus diferentes sentidos políticos. E, nessa

direção, as estratégias, os movimentos e gruposde ajuda mútua devem ter suas origens históricas,culturais e ideológicas avaliadas com muitocuidado. É necessário identificar não só seus ideaise práticas com potencial humanitário, solidário

e emancipatório, mas também e principalmenteos seus riscos de reproduzir valores e ideologiaspolêmicos, de reduzir a flexibilidade normativanecessária para lidar com os conflitos do problema

humano em foco e da área em que atua, e portantode ser usado como mais um dispositivo denormatização cultural e social.

Uma outra dimensão deste risco está na capacidadedeste corpo doutrinário reconhecer   as variadasestratégias de recuperação em seu trabalhoprescritivo para seus membros e para a sociedade ,a partir da diversidade dos indivíduos, das culturas

e do problema em foco. Um exemplo disso está nopróprio campo do alcoolismo, na medida em quenem todos os indivíduos s e adaptam à estratégia deabstinência absoluta  proposta pelo AA, que parece

ser a única compatível com seu corpo de valores, eque vem senso exportada e difundida nos serviçosprofissionais e públicos de atenção ao abuso dedrogas em todo o planeta. A consideração crítica da

diversidade possível de estratégias levou à criaçãodos variados programas de redução de danos ,que não invalida a primeira, mas a diversifica. NoBrasil atual, adotamos esta perspectiva mais pluralnas políticas de assistência social, saúde e saúdemental brasileira, não só no campo de abuso dedrogas, mas também em várias outras áreas.

Como veremos mais abaixo, estes desafios sópodem ser elaborados a partir da aliança destesmovimentos com outros movimentos sociaispopulares e particularmente com intelectuaisorgânicos, capazes de ampliar o seu campo de

discussões e de politização.

5.3.5) Nos atuais grupos e movimentos de ajudamútua, assistimos à conformação de um processode geração/sistematização do conhecimentoe de formação de lideranças e ativistas, comcaracterísticas muito inovadoras e próprias, emrelação aos moldes convencionais de produçãode conhecimento, especialização e formaçãoprofissional.

Os estudos sobre o desenvolvimento histórico dadivisão social e técnica do trabalho e a sociologiadas profissões descrevem os padrões típicos daprodução do conhecimento, da sistematizaçãode competências fragmentadas e de habilidadesprivativas, dos mandatos sociais específicos paracada grupo profissional, de suas organizaçõese interesses corporativos, bem como de suasinstituições formadoras. Estes estudos mostramque em vários aspectos este conjunto não estávoltado para os interesses históricos da maioriada população (VASCONCELOS, 2002). Por outrolado, muitos dos movimentos sociais popularescontemporâneos mais importantes vêm criandobrechas significativas nessa divisão social e técnicado trabalho atual, criando novos padrões de produzir

e se apropriar do conhecimento acadêmico e dos

novos dispositivos eletrônicos e de informação,de estabelecer vínculos com seus intelectuaisorgânicos e de formar seus quadros de liderançase ativistas.

Nos movimentos típicos de ajuda mútua, esseprocesso mostra algumas destas característicasinovadoras, mas também tem características

próprias e vem acontecendo de forma muito desiguale variada entre os vários movimentos. Entretanto,há alguns elementos comuns à maioria deles:

 

a) a base do conhecimento e da formação pessoal

é eminentemente existencial e prática, diretamenteassociada a uma condição biográfica particular,geralmente com forte componente involuntário, deser nascido ou ser acometido por uma deficiência,doença crônica, situação existencial traumática,

desvalorizadora ou geradora de discriminação etc. ,ou de ser um familiar ou cuidador responsávelpor uma pessoa que a possui . Esta característicagera componentes de empoderamento muitoimportantes, tais como a valorização da biografia

e da narrativa pessoal em primeira pessoa; dorelato/depoimento personalizado das dificuldades,obstáculos e das conquistas realizadas; da troca deexperiências e do apoio emocional entre pares; dasestratégias de como lidar com os desafios cotidianos

etc. No material de educação popular e de formaçãode lideranças, bem como no dia a dia dos grupose nos eventos dos movimentos, estes elementos

estão sempre presentes, têm grande importância esão claramente diferenciados das fontes, materiaise depoimentos de autoria de profissionais eespecialistas que não compartilham da condiçãoexistencial comum ao grupo, em termos de regrasdiscursivas e de valor atribuído. Por outro lado,

muitas vezes falta a estes grupos e movimentosuma atenção mais cuidadosa e um conhecimento

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mais sistemático sobre a conjuntura econômica epolítica mais geral do país, das políticas sociais edos demais movimentos sociais, e esta é uma funçãoimportante dos intelectuais orgânicos inseridos nosgrupos e movimentos de ajuda mútua;

b) o patrimônio cultural e simbólico herdado dafamília, o acesso à escolaridade formal e a cursosuniversitários são fundamentais para potencializara capacidade de liderança e de organização dosmovimentos, mas não parecem constituir condiçãoindispensável e restritiva aos indivíduos e grupos que

não os possuem originalmente . Por exemplo, o perfildas associações de usuários e familiares do campoda saúde mental no Brasil (VASCONCELOS, 2008b)mostra que algumas associações independentesde serviços alcançam patamares organizacionaismais avançados por terem se originado em grupossociais com acesso a estes elementos. Alémdisso, entre seus ativistas, esta história pessoalpossibilita chegar muito mais facilmente a posiçõesde liderança e projeção. Entretanto, o movimentoantimanicomial e as associações ligadas a serviçosde atenção psicossocial, cujos usuários sãomajoritariamente oriundos das classes populares,acabam também, embora mais lentamente,estimulando várias de suas lideranças a buscaremconcluir sua escolarização e até mesmo a chegaremem cursos de nível universitário. E, talvez maisfundamentalmente, a experiência cotidiana delidar com os grupos e a militância política acabagerando uma competência extraordinária, moldadadiretamente na própria práxis social e política.Muitas destas lideranças hoje participam deconselhos de políticas sociais, particularmente naárea da saúde, e já são chamados para participarde eventos de formação de profissionais de nívelsuperior, para apresentar a visão própria dosusuários e dos familiares sobre os temas e serviçosde saúde mental.

Por sua vez, pelo menos no âmbito da dinâmicainterna das reuniões grupais e dos projetos c riados,parece ser uma característica generalizada dosvários movimentos e grupos de ajuda mútua,que esta diferenciação social e técnica sejacompletamente suspensa, e todos os participantes,independente de sua história social e educacional,normalmente têm oportunidades iguais de acesso àfala e aos dispositivos de suporte mútuo criados;

c) muitos movimentos têm conseguido criarestratégias importantes de atração e de criação de

vínculos orgânicos com intelectuais e instituiçõesdo âmbito profissional, acadêmico, técnico- científico e político-institucional . Como exemplo,o movimento antimanicomial brasileiro e omovimento de associações de usuários e familiarestêm aglutinado um conjunto significativo de apoioe de lideranças entre psiquiatras, psicólogos,assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, bemcomo de seus conselhos profissionais e de váriasinstituições universitárias. Isso acaba polarizandosuas práticas profissionais e acadêmicas, e gerandosistematizações de conhecimento fundamentaispara seus movimentos sociais e ampliando a visãomais particularista que estes grupos tendem a ter;

d) por outro lado, a produção de material deeducação popular, de divulgação cultural e dedifusão na internet, que tem mostrado umaimportância fundamental na formação de lideranças

e na ampliação dos movimentos e grupos de ajudamútua, é bastante desigual entre os diversosmovimentos e países . Por exemplo, o movimento deusuários do campo da saúde mental na Inglaterra,na Holanda e nos Estados Unidos mostra uma largaprodução deste tipo de material, mas no Brasil estematerial é ainda muito rudimentar e escasso, emboraapresente muito eventos e produções no campo da

arte e cultura. No Brasil, apenas agora se buscainiciar projetos de inclusão digital para usuáriose familiares. Além disso, a articulação política,educativa e cultural com outros movimentos sociais,tão importante para a geração de dispositivosformativos, ainda é ainda bastante restrita no país.

5.3.6) Os atuais movimentos e grupos de ajuda mútua,nos diferentes países, apresentam variadas formas decolaboração e integração de suas práticas voluntáriase leigas com programas públicos de assistência sociale de saúde, mas em muitos casos há uma ampla

faixa de possibilidades e de ambiguidade acerca dosobjetivos internos/externos ao grupo e do nível deresponsabilização possível de suas práticas e dosativistas nestas relações, com vários desafios e riscosa serem avaliados de forma cuidadosa.

Os movimentos de ajuda mútua, no âmbito interno deseus grupos, estimulam fortemente suas li derançase participantes a desenvolverem iniciativasinterpessoais e coletivas de apoio e suporte mútuofora do grupo. Assim, a criação de vínculos, de redesde trocas e apoio social, de iniciativas culturais ede lazer, de defesa dos direitos, faz parte integraldos objetivos destes grupos, ao interpelarem suaslideranças e participantes para a solidariedade e aresponsabilidade que também têm com o bem-estarde cada um de seus companheiros.

Nos locais onde este tipo de trabalho se desenvolve,

os serviços e programas públicos da área social,da saúde e educação acabam podendo contar,no momento de prover assistência para seususuários, com uma rede de suporte fundamental nacomunidade. Há várias modalidades de interaçãopossível, e entre elas podemos citar:

- serviços e profissionais encaminham seus usuários

para os grupos disponíveis na área e vice-versa;

- movimentos oferecem grupos de ajuda mútua eoutras atividades dentro dos serviços públicos;

- profissionais dos serviços passam a colaborarcom os grupos, podendo chegar a ser intelectuaisorgânicos ativos do movimento;

- serviços e movimentos promovem juntos eventos,atividades e projetos, com financiamento de ambos;

- programas e serviços passam a assalariar liderançasdo movimento para desenvolver atividades dentroou na rede de serviços e programas;

- programas passam a terceirizar atividades, projetose serviços, repassando fundos para o Terceiro Setore/ou organizações de movimentos sociais etc.

Estas múltiplas possibilidades e outras não citadaspodem induzir avanços e conquistas em ambosos polos da parceria, mas podem também levar aenormes desafios e riscos. Não temos condiçõesde desenvolver aqui, de forma sistemáticae responsável, toda a complexa discussãonecessária84, mas cabe apontar, de forma muitoresumida, pelos menos três tópicos que, a meu ver,não podemos deixar de debater e avaliar, em ambosos lados da parceria:

a) no atual contexto de políticas neoliberais , comforte desinvestimento nas políticas sociais, o Estadocapitalista vem sistematicamente terceirizando serviços

84 Para a discussão das possibilidades de colaboraçãoentre movimentos de ajuda mútua e a política desaúde mental no Brasil, ver neste manual os textos deaprofundamento intitulados “Indicações para a inserçãodos grupos de ajuda e suporte mútuos na atenção primáriaem saúde”, e “Conceitos básicos para se entender aspropostas e estratégias de empoderamento no campo dasaúde mental”, ambos de minha autoria.

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através do Terceiro Setor e de movimentos sociais,gerando desresponsabilização, privatização, perdade direitos trabalhistas dos servidores e de direitossociais do cidadão, descontinuidade e focalização dosprogramas públicos etc . Neste contexto, movimentossociais e ONGs vêm sendo cooptados e vários delesvêm sendo coniventes com este processo;

b) a interpelação por iniciativas de suporte mútuodos movimentos de ajuda mútua fora dos gruposé genuína, mas não significa substituir os serviçosou sobrecarregar suas lideranças com demandas

e responsabilidades que são dos próprios serviçospúblicos . Assim, os participantes dos grupos deajuda mútua devem ser estimulados a conhecer eutilizar todos os recursos públicos existentes em suacomunidade e cidade, e, se precários ou inexistentes,ser chamados a reivindicar sua melhoria ou provisão.As lideranças dos movimentos devem avaliar ediscutir claramente com os serviços os objetivos dacolaboração, definindo explicitamente as fronteirasde responsabilização de cada esfera junto aosusuários e à comunidade;

c) os grupos de ajuda mútua, quando inseridos emserviços e programas públicos, são atravessadospor uma série de novas injunções e contradições,que afetam profundamente a sua dinâmica internae o papel de suas lideranças . Estas transformaçõesdevem ser muito bem avaliadas previamente àrealização das atividades.

5.4) As particularidades dos grupos de ajudamútua com usuários de serviços de saúdemental portadores de transtorno mental maior

Nos processos recentes de reforma psiquiátrica emcurso nos diversos países, estamos gradualmente

substituindo os serviços hospitalares convencionais,fechados, de alto custo e com maiores efeitosinstitucionais iatrogênicos, por serviços abertosna comunidade. Assim, nestes novos serviços, háuma clara priorização dos portadores de transtornomental maior, que requerem cuidados contínuos emais complexos, e que constituem o maior desafioassistencial.

Em paralelo, desde a década de 1970, em países docentro e do norte da Europa, bem como de váriospaíses de língua inglesa, em vários continentes,o movimento de usuários e de familiares vem

se desenvolvendo e se organizando de formasurpreendente, tendo como principal sustentaçãoem sua base os grupos de ajuda mútua, a partirdos quais vão se desdobrando outras atividadese projetos de suporte mútuo, defesa dos direitosetc. (HAAFKENS, 1986; WEINGARTEN, 2001;VASCONCELOS, 2003).

No Brasil, o movimento de usuários e familiares docampo da saúde mental vem se desenvolvendo desdeo início da década de 1990 (VASCONCELOS, 2008b),realizando principalmente atividades de suportemútuo, defesa de direitos e militância. Por sua vez, aequipe do Projeto Transversões vem acompanhandoum grupo de familiares há cerca de 12 anos.Entretanto, em relação aos usuários, apenas em2008 iniciamos o funcionamento sistemático de umgrupo regular de ajuda mútua específico para eles,buscando também anotar as suas particularidadesmetodológicas. A avaliação deste grupo maisrecente nos mobilizou para resgatar também asanotações de outras experiências realizadas nopassado, com grupos de usuários dentro dos novosserviços de atenção psicossocial. As observações aseguir são uma primeira tentativa de sistematizar,ainda que de forma resumida, estas diversas fontes.Algumas destas reflexões podem ser aplicadasaos grupos de familiares, mas a especificidade dacondição de ser um portador de transtorno mental

maior coloca inúmeros desafios particulares, e,portanto, as próximas seções do trabalho serãodedicadas especificamente a eles.

5.4.1) Alguns traços da vivência de grupo compessoas marcadas pela experiência psicótica

Para entrar neste tema, é importante esclarecerprimeiro que não se trata de descrever aqui, deforma isolada e essencialista, as características eos sintomas principais associados à psicose, por

várias razões. Em primeiro lugar, por que este nãoé o foco deste trabalho e os processos psicóticosconstituem uma temática extremamente complexae pouco consensual entre os vários autores, mesmodentro de um mesmo campo teórico85. Entretanto,o principal argumento está em que a aproximaçãoà psicose que temos realizado no campo daatenção psicossocial e da reforma psiquiátricatem demonstrado a necessidade de criticar e iralém destas tentativas de objetivação isolada dosquadros psicopatológicos e seus sintomas, parauma abordagem que contemple estes sujeitos nasua interação com a vida, com sua comunidade ecom os vários recursos e serviços de reabilitaçãopsicossocial (SARACENO, 1999; BASAGLIA, 2005; eLEAL, 2007).

Para melhor exemplificar isso, pode ser importantelembrar os resultados de um conjunto de estudosepidemiológicos longitudinais de longa duração

(20 a 30 anos) de pessoas diagnosticadas comoesquizofrênicas, investigando as perspectivas de

85 Apenas para efeito de ilustração, o leitor interessadona discussão feita no campo da psicanálise acerca dapsicose poderá ver a dispersão de modelos explicativossobre o fenômeno, tanto em Freud e em Lacan como emvários outros autores do campo (QUINET, 1990; SIMANKE,1994; BIRMAN, 1999; e TENENBAUM, 1999).

recuperação e reinserção social, realizados nosEstados Unidos e vários outros países, por autores

tais como Harding, John Strauss, Breier, Ashikaga,Brooks, Ciompi, Larry Davidson etc. (DAVIDSON et

al., 2005). Estes estudos fizeram uma avaliação do

impacto do tempo nos sintomas, funcionamentosocial e qualidade de vida destes indivíduos. Eles

perceberam que, em vez da esperada trajetóriano sentido de cenários piores indicados pelos

prognósticos da psiquiatria convencional, mais da

metade das coortes investigadas, independentede ainda estarem em tratamento, mostraram

uma melhora significativa ou o que chamaramde recovery (que temos traduzido no Brasil como

recuperação ). Aqueles indivíduos que foram

inseridos em programas de reabilitação psicossocial,integração comunitária e autossuficiência

demonstraram um perfil mais avançado derecuperação. Nestes programas de reabilitação,

entre os principais fatores que induzem o processode recuperação, estão: moradia, capacitação e

trabalho supervisionado, oportunidades educativas

e de socialização, incluindo amizades e inserção emgrupos e movimentos de usuários .

Assim, nossa concepção requer que falemos

dos traços da psicose de forma descritiva econtextualizada em situações e dispositivos

concretos de reabilitação, o que no nosso caso são

os grupos de ajuda mútua86. Descrever estes traços

desta forma pode ser relevante, particularmente

tendo em vista que muitas pessoas e profissionais

nunca passaram pela experiência de convivercom estes grupos, e podem ficar assustadas ou

86 A literatura sobre processo grupal com portadoresde transtorno mental maior no Brasil é restrita. Paraos que se interessam pela ampliação da discussão,sugiro a publicação organizada por Lancetti (s/d [a]),e particularmente o seu próprio texto dentro dela(LANCETTI, s/d [b]).

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não compreender o que se passa neles. Nossasobservações cotidianas em nosso grupo mostraram,entre as principais características da vivência destesgrupos, os seguintes traços:

a) A dificuldade de conviver com as regras e aordem no grupo, e/ou a literalização das normascontratuais :

A teorização lacaniana a respeito da psicose mostra

a dificuldade das pessoas acometidas pela psicoseem conviver com a Lei Simbólica. Na nossa vivênciaconcreta dos grupos de ajuda mútua, a relação comas regras grupais mostra duas tendências claras:em vários momentos, a intensidade da vivênciaemocional ou do processo delirante faz com que oindivíduo perca a noção das regras de convivênciae da reciprocidade do Outro. Por outro lado, comoformação reativa, os participantes tendem atomar as normas contratuais do grupo de formainteiramente literal, sem serem capazes de qualquerflexibilização ou metaforização, processo requeridopelas várias situações concretas diferenciadas ea necessidade de lidar com imprevistos, semprefrequentes, e com novos desafios.

b) As fantasias permanentes da invasão de conteúdoinconsciente em cada um ou de ser invadido pelooutros, e o espectro do caos; a exacerbação dosconflitos interpessoais :

 

Na experiência psicótica aguda, o ego e a percepçãodo mundo e dos outros é invadida pelo conteúdoinconsciente, provocando a alucinação e o delírio.Muitas vezes, este momento é vivido também comautoagressão, ou com agressão ao outro, ou aindasendo objeto da agressão ou tentativa violenta decontenção pelos outros. Superada a crise aguda,e desenvolvendo-se uma relativa estabilização, a

memória daquela experiência ainda fica bastanteviva, ou a tendência mais frequente é haverresquícios ou traços delirantes persistentes na

percepção de si mesmo, do próprio corpo e dosoutros. No grupo, particularmente quando se falada própria experiência pessoal, isso se manifestaem uma fantasia permanente de ser invadidonovamente pelo conteúdo inconsciente, ou de se

perder o autocontrole na relação com os outros.Essa fantasia também é projetada nos demais, comose pudessem a qualquer momento também perder ocontrole e tomar o poder, ter “gozo” no seu exercício

sobre os demais, ou invadir ou agredir os demais.Assim, nos grupos com pessoas marcadas pelaexperiência psicótica, o espectro do caos constituiuma fantasia e uma ansiedade inconscienteconstante, e isso se manifesta de várias formas, e

talvez a mais frequente é sem dúvida a exacerbaçãodos conflitos interpessoais.

c) As linhas temáticas flutuantes nos relatos ediscussões grupais :

 Mesmo em grupos em que não há pessoaspropriamente em situação de crise, e dadas as

razões indicadas acima, os relatos das experiênciastêm forte centramento na própria história pessoal,tendendo fortemente a não seguir linhas temáticasdefinidas. Na verdade, cada participante tem

um amplo espectro de estímulos e elementosbiográficos e simbólicos próprios que são acionados

pela fala dos outros, ou acaba fazendo ligações comelementos muito particulares dos relatos anteriores.Além disso, não é raro também o silêncio e a inércia

total por parte de alguns. Estas característicasem geral são sentidas como muito estranhas poraqueles que nunca conviveram com estas pessoas ecom estes grupos, podendo levá-los a ficar confusosou a tentar colocar ordem neste aparente “caos”

temático, o que não só é infrutífero, como também,e mais fundamental, é inadequado.

d) Enormes dificuldades com as tarefas :

Pichon-Rivière, o autor argentino que sistematizou aproposta de grupos operativos, percebeu que todosos grupos humanos têm dificuldades de se confrontare realizar de forma direta suas tarefas, dado quea relação com elas mobiliza as duas ansiedadesinconscientes básicas, de natureza depressivaou paranoide87. Por exemplo, uma das formas dosgrupos burlarem as suas tarefas é acionar um pactomafioso que impõe ao líder ou c oordenador o deverou a “honra” de sua realização (uma das formasé o grupo “seduzir” e elogiar o coordenador comopessoa sempre responsável e boa, que nunca deixa“furos”). Nos grupos com pessoas que passarampela experiência psicótica, estas dificuldades sãoainda mais exacerbadas, porque tais ansiedadesestão mais fortemente presentes. Em um grupo compouco tempo de existência, uma atividade podeser proposta e aceita, mas seu encaminhamentoconcreto pode demorar bem mais tempo, com váriasidas e vindas, avanços e recuos.

5.4.2) As decisões tomadas e as características dogrupo-piloto sob observação

Antes de partir para a descrição de traços concretosda experiência no grupo formado desde 2008,

principal base da sistematização realizada aqui,é fundamental indicar algumas características dogrupo e de seu funcionamento.

87 Para aqueles que quiserem ter acesso a uma visãointrodutória sobre a abordagem operativa de Pichon-Rivière em português, indico a interessante e já clássicasistematização de suas ideias feita por Saidón (1982).

O grupo foi formado a partir de um convite paraparticipar de um curso rápido de dois dias sobregrupos de ajuda e suporte mútuos, em queparticiparam profissionais, familiares e usuários,

e que se desdobrou na formação de dois gruposseparados, para os dois últimos. O convite foifeito principalmente para lideranças do movimentoantimanicomial do Estado do Rio de Janeiro, bemcomo de associações de usuários e familiares.

Assim, os participantes deste grupo são usuáriosem estágio avançado de recuperação, e comexperiência anterior de participação em grupos emovimentos sociais. Alguns deles concluíram cursosuperior, outros têm apenas o colegial completo, mas

todos são de extratos sociais das classes médiasempobrecidas ou da classe trabalhadora. Este perfildo grupo teve em vista o objetivo prioritário deservir de experiência-piloto, mas principalmente de

formar facilitadores para atuar em eventuais futurosprojetos de grupos de ajuda e suporte mútuosintegrados à política municipal de saúde mental.

Não houve neste grupo, e este é um princípioimportante na proposta, de que no processo deformação dos grupos se evite qualquer preocupaçãoquanto ao diagnóstico dos potenciais participantes.Todos são bem-vindos, embora não recomendemos a

inclusão ou a participação de pessoas que estejam nomomento em crise psicótica aguda, particularmentequando a fala e o comportamento estão muitoexaltados, o que dificultaria muito a observância das

regras básicas de convivência no grupo.

Este grupo concreto é pequeno, com participaçãovariando de 5 a 10 pessoas, dependendo da época

do ano e das dificuldades para se vir à cidade doRio, pois alguns moram no interior do estado. Otamanho máximo recomendado para cada grupo éde 15 membros, pois, além disso, o espaço de fala

individual fica muito reduzido.

O grupo se reúne mensalmente e vem aceitando

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novos membros a partir da indicação e apresentaçãoprévia oral por um dos membros ou coordenadoresdo projeto, sendo a decisão final de aceitação ou nãogeralmente feita por consenso dos participantes. Estenão é um princípio que consideramos desejável paratodos os grupos, e constituiu apenas uma decisãoparticular dos integrantes do presente grupo.

A primeira reunião foi facilitada pelos coordenadores

do Projeto Transversões, mas logo depois os usuáriosassumiram todas as duas posições de facilitadores,ficando os coordenadores na assessoria do grupo,com o status  de membro comum do grupo. Todos

os participantes receberam o manual de ajuda esuporte mútuos logo no primeiro encontro, e váriosfizeram referência à importância de sua leitura ecompreensão. As regras de participação são aquelasconstantes no manual.

5.4.3) Apontamentos iniciais acerca dos grupos de

ajuda mútua com portadores de transtorno mentalmaior, seus desafios e estratégias de como lidarcom eles

 A presente seção, portanto, é fruto da experiênciacom este grupo de ajuda mútua com portadores detranstorno mental maior, de algumas experiênciaspontuais realizadas em capacitações em outroslugares do país, bem como de algumas experiências

prévias em grupos de usuários inseridos em serviçosde atenção psicossocial. Estas observações foramcruzadas com a sistematização acima, de conceitose processo grupal em geral e em grupos de ajudamútua no sentido amplo, e por isso alguns temaspodem ser aparentemente repetidos, mas o objetivoé exatamente abordar a especificidade destesprocessos com os portadores de transtorno mental

maior. Assim, foi possível levantar os seguintestópicos sobre o processo grupal com este público,seus vários desafios e sobre como lidar com eles:

a) O deslocamento do poder para o dispositivoe a questão central do controle da ordem, daagressividade e da violência no grupo; a manutençãodo dispositivo como o possibilitador do principalefeito terapêutico do grupo: 

Tendo em vista as características indicadas acimado processo grupal nos grupos de ajuda mútua,o controle do processo grupal é deslocado parao dispositivo e para sua forma visível e literal, ocontrato e suas regras de convivência. E, tendo emvista o fato de que os membros passaram de algumaforma pela experiência psicótica aguda, com algumaexperiência concreta de caos no passado e comtraços dessas fantasias e ansiedades inconscientesno presente, como indicado acima, o controleda ordem e a evitação de conflitos abertos, comagressividade ou violência explícita, torna-se umatarefa essencial. Este controle constitui, na opiniãode nossa equipe, o desafio mais difícil e maisimportante da proposta . Os facilitadores são apenasguardiões deste poder centrado no dispositivo, sópodem exercê-lo pelo mandato provido pelo grupoao aprovar o contrato, e, mesmo assim, este podersó pode ser exercido de forma discreta. E episódiosde tensão ou conflito abertos, que reverberam asexperiências anteriores de caos e crise, são difíceisde serem revividos pela maioria, e tendem a afetar de

forma mais acentuada as pessoas que se encontramem maior fragilidade no momento, fazendo-as seafastarem do grupo, o que pode ameaçar inclusive asua própria continuidade e existência futura.

Daí a importância de evitar a todo custo aemergência destes episódios abertos de vivênciacaótica e sem controle. Para isso, o projeto inclui aregra de que a aceitação do contrato é pré-requisito

para a presença no grupo, e ele deve ser lido noinício da reunião no período da formação do grupoe sempre que haja novatos. Além disso, todos osparticipantes devem receber a cartilha básicacontendo este contrato, e são estimulados a lê-la. Aqualquer manifestação de julgamento, preconceitoou agressividade, os facilitadores, particularmenteo guardião, interrompe o comportamento e diz queisso não é possível no grupo. Um dos facilitadorespode inclusive se sentar ao lado da pessoa,acompanhá-la, dar-lhe suporte ou indicar limites,em caso de notar a tendência à repetição. Nocaso da ação continuar, a pessoa é convidada a se

retirar temporariamente até se recompor, devendoum dos facilitadores ou pessoa amiga presente serconvidada a acompanhá-la fora da sala por algunsmomentos para isso. Além disso, os facilitadorespodem reforçar a ideia de que as diferençasde opiniões e de jeito de ser são importantes edevem coexistir, e que no grupo não se tem quechegar a nenhuma conclusão comum. E mais, queos elos comuns do grupo são mais importantes:a experiência do transtorno; as vivências desofrimento, de desamparo, como também aquelasalegres e prazerosas; a possibilidade e a coragemde falar delas no grupo; o desejo de fazer amigos, desair da solidão e de buscar ser feliz; e o grupo comoespaço especial criado para viver tudo isso, e daí aimportância de preservá-lo.

O dispositivo de condução das reuniões temseu fundamento neste princípio estruturante dodispositivo grupal proposto: é realizado por dois

facilitadores, sendo um deles (o guardião) dedicadoexclusivamente a garantir a ordem e as regras deconvivência, devendo inclusive abrir mão de falar desi enquanto estiver nesta função, e o outro podendofalar de suas experiências pessoais e coletivas.

Assim, um dos principais efeitos terapêuticosdo grupo está neste processo repetitivo, a cadareunião, de mostrar a seus participantes que é

possível conviver, falar de si, fazer vínculos eamigos, e isso acontecer sem que cada pessoa e ogrupo não sejam necessariamente tomados pelasfantasias e ansiedades de caos . A existência docontrato e do lugar de facilitador, particularmentedo guardião, e em rodízio, sem fixação definitiva auma pessoa, funciona analogicamente como o totemda horda primitiva de Freud, ou como a reiteraçãoda existência de uma ordem social objetivada,independente das pessoas concretas, que deve serpreservada, e que ninguém pode destroná-la,  ouassumir o poder e subjugar os demais. 

Sabemos que temporariamente isso é assimiladoem sua literalidade, ou seja, na tendência dese “agarrar” ao corpo concreta das regras, semmuita capacidade de simbolizá-la ou de tomá-latambém como uma metáfora a ser interpretada.Mas aqui o processo é sempre muito gradual, e,à medida que as situações limítrofes e ambíguasnecessariamente ocorrem, o grupo será exigido afazer alguma flexibilização cuidadosa e consensualde algumas das normas pelo coletivo, sem ausurpação ou abrir mão deste poder preservador daordem no grupo. Esta vivência coletiva também temenorme importância terapêutica, por que possibilitaaos participantes terem esta experiência gradualde flexibilização e metaforização das normas, que édifícil de ser realizada individualmente .

b) A importância do espaço livre de fala e expressão,e da reunião “arroz com feijão” :

 A maioria das pessoas que passam ou passarampela experiência psicótica têm um senso muitoagudo da desvalorização e do estigma social queisso representa, e têm poucas oportunidades deserem ouvidas com atenção e serem valorizadas .Este é um dos objetivos centrais dos grupos deajuda mútua com este tipo de pessoa.

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Isso se manifesta na importância que ganha nogrupo o tipo de reunião que chamamos de “arroz comfeijão”, ou seja, aquela sem qualquer compromissocom a discussão de um tema específico ou coma presença de alguém de fora. O grupo se tornao espaço onde se pode falar das experiênciascotidianas boas e más, das dificuldades, dasconquistas, do desabafo (com níveis moderados deefeito catártico, como já indicamos acima) e da trocadestas vivências, sem julgamento. Isso representatambém um importante efeito terapêutico do grupode ajuda mútua .

 Avaliamos que esta “fissura” dos participantespara falar de suas vivências depende muito daregularidade e do tamanho do grupo. Reuniõesquinzenais ou apenas mensais tendem a estimularesta tendência, bem como grupos maiores, nosquais diminuem as oportunidades de fala paracada um. Além disso, os facilitadores devemcompreender que, mesmo quando se programa umareunião temática ou com a presença de alguém defora, a tendência a se voltar ao “arroz com feijão” émuito grande, e faz parte da própria dinâmica grupalcom este tipo de pessoas. Assim, se o grupo já falouum pouco sobre o tema proposto e a conversa jáescapou para as vivências de cada um, não convéminsistir muito para se voltar ao assunto. Um dosfacilitadores pode apenas perguntar ao grupo se osparticipantes já estão satisfeitos com a discussãofeita, e se se pode passar para os depoimentosabertos sobre as vivências de cada um.

c) A temática flutuante, a desimportância deconclusões nas reuniões livres sobre vivência, e opapel multifacetado dos facilitadores :

 Nesta mesma direção, é importante reconhecerque a temática flutuante , como indicamos acima,

é característica típica do processo grupal de ajudamútua com portadores de transtorno mental maior.Portanto, este tipo de reunião de fala livre sobre asvivências não tem que chegar a quaisquer conclusõesou decisões específicas, pois o próprio dispositivoe o funcionamento do grupo, por si, já induzem osseus principais efeitos terapêuticos . Para aquelesparticipantes ou facilitadores oriundos da militânciasocial, isso pode gerar uma certa estranheza, eassim esta tendência precisa ser explicitada, parase compreender melhor qual é o papel precisodos facilitadores. Estes apenas acompanham asequência dos depoimentos, asseguram a ordem

e o dispositivo, mas têm um papel importante derealizar algumas tarefas e objetivos permanentesdurante as reuniões:

- manter a ordem e o dispositivo do grupo, eparticularmente a inscrição dos falantes (em caso deter várias pessoas querendo falar) e o tempo de falade cada um : no manual, estão dadas as instruçõespráticas de como realizar isso. O tempo regularde fala no grupo que observamos foi estipuladopelos próprios participantes em três minutos, paraevitar o monopólio da palavra quando várias outrastambém desejam falar, e que sem dúvida refletiutambém a “fissura” de todos falarem de suasvivências, em um grupo de encontros mensais. Noentanto, há situações que exigiram a flexibilização,particularmente quando alguém está emocionado erelatando uma vivência importante e difícil. Dada ao

apego à letra da norma, foi difícil o grupo estabelecerque a extensão do tempo pudesse ser avaliada emcada caso, ficando a cargo dos facilitadores pedirlicença ao grupo para realizá-la;

- identificar e pontuar as estratégias de se lidar com otranstorno no dia a dia : a partir dos depoimentos, osfacilitadores devem identificar neles as estratégias

que podem ser comuns para todos, os fatores quegeram estresse; como lidar com eles; os principaissinais de uma possível deterioração do estado dapessoa; o que fazer neste caso. A lista de possíveistemas comuns para o grupo é fornecida nestemanual e na cartilha (no apêndice “Plano pessoal deação para o bem-estar e a recuperação”);

- identificar temas e sugestões de atividades quepodem constituir objeto de outras reuniões nofuturo : isso pode ser feito durante as reuniões, comos facilitadores se inscrevendo também para falar,

com a função de não só “descarregar” a agendatemática do dia, quando um ou mais participantesquerem insistir na discussão de um tema particularsem a adesão dos demais, mas também de projetara importância da continuidade do grupo. Além disso,esse procedimento pode estimular o grupo a discutirno futuro temas importantes, que fazem parte daplataforma de empoderamento e de luta no campoda saúde mental, como também de estimular açõesde suporte mútuo, defesa dos direitos etc.;

- prestar atenção e estabelecer algumas estratégiasprotetoras em caso do estímulo ao empoderamentopessoal ser apropriado de forma distorcida porusuários marcados por traços maníacos e paranoides :os grupos de ajuda mútua estimulam a capacidadedos usuários lidarem cada vez com maior autonomiade seus desafios diários, bem como a participar deiniciativas de suporte mútuo, defesa dos direitos,

militância social etc. Entretanto, é possível que esteestímulo possa ser interpretado de forma distorcidapor usuários em fase marcadamente maníaca ou comdelírios de grandeza, como um incitamento a açõesindividuais impulsivas e/ou de maior visibilidadesocial. Nestes casos, os facilitadores podemchamar a atenção de que quaisquer iniciativascom maiores consequências na vida pessoal ou na

sociedade devem ser antes muito bem conversadasno grupo e/ou com os demais companheiros. Estetipo de advertência pode ser feito na forma de umaexperiência concreta, que pode ser pessoal e/ou dealgum companheiro imaginário;

- realizar a síntese no final : nesta, os facilitadoresindicam vivências e temas importantes faladosdurante a reunião, e define com os demaisparticipantes o tipo de reunião que será adotadono próximo encontro. Esta síntese também tem oobjetivo importante de mobilizar os participantes

para se fazerem presentes nele, garantindo acontinuidade do grupo. Esta tem também umaimportância simbólica, de elaboração da expectativade uma cura definitiva, tão comum nos estágiosiniciais do transtorno, na direção de uma apostano devir, no investimento e no cuidado de si, e daesperança, esta sim possível, de uma vida com umasintomatologia mais leve e controlada, e mais ativae participativa na sociedade .

Além destas tarefas, cabe uma outra adicional, quepela sua importância merece se constituir comoitem à parte, a seguir.

d) As possibilidades e os limites na expressãode vivências dramáticas   e/ou traumáticas   e deprocessos catárticos nos grupos; o agenciamentode apoio àqueles que precisam de um suporte

emocional imediato, e de evitar que o grupo fiqueparalisado ou amedrontado pela intensidade dasvivências :

 O relato de vivências difíceis pode gerar

naturalmente processos catárticos, podendo chegara estados emocionados e de alta dramaticidade. Omanual já identifica sugestões práticas imediatas

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de como os facilitadores podem lidar com taissituações. Cabe agora aprofundar um pouco maisnos desafios colocados por estas vivências.

Em primeiro lugar, cabe lembrar, como já indicamosacima, que os grupos de ajuda mútua se diferenciamda psicoterapia grupal pela ausência de umprofissional capacitado para permitir e estimularativamente a expressão de experiências profundas

e de alto conteúdo emocional e dramático, bemcomo para elaborar ativamente junto com o grupocaminhos para uma relação menos despotencializadae desdramatizada dos participantes com estas

vivências. Por sua vez, nos grupos de ajuda mútua,os facilitadores não devem induzir ou estimulareste aprofundamento, centrando-se nas vivênciasmais simples e cotidianas de lidar com o transtorno.Entretanto, em várias ocasiões, o relato dosparticipantes pode chegar a este nível, podendocontagiar e aprisionar os demais participantes pelasua dramaticidade e gerando um clima de medo e/ou de paralisia em todo o grupo.

Nestes momentos, em minha opinião, há váriaspossibilidades de ação para os facilitadores:

- pedir ao grupo um tempo adicional para escutarum pouco mais as vivências da pessoa, permitindoque ela se expresse mais livremente e indicandoque os demais participantes se interessam por ela;

- estimular a todos que escutem com atenção,pois isso já tem forte significação para a pessoa.

É importante evitar “pular” imediatamente dentroda situação com perguntas ou sugestões de comose proceder, ou pedindo-a que se acalme ou deixe

de chorar. Isso acabaria passando uma mensagemimplícita de que não se tem tempo ou disponibilidadeemocional para ouvir a pessoa;

- se necessário, lembrar que não podemos suprimira dor das pessoas, e que cada um deve aprender

a lidar com os desafios e dificuldades de suavida, bem como descobrir suas potencialidades evalores positivos, que lhe darão força e indicarão ospossíveis caminhos de encaminhamento;

- reconhecer a dificuldade e a dor da pessoaque viveu, bem como a coragem de falar destasexperiências;

- perguntar como a situação se desdobrou, como apessoa e as demais agiram etc.;

- perguntar aos demais se tiveram ou têm vivênciassemelhantes, e principalmente o que foi feito oué possível de ser feito para enfrentar situaçõessimilares já vividas;

- sugerir que as pessoas do grupo, se quiserem,possam também manifestar concretamente, porpalavras, o seu encorajamento e desejo de muitaforça para a pessoa lidar com o desafio.

Se estas estratégias não forem suficientes e apessoa ainda se encontrar emocionalmente aindamuito alterada e sem alternativa, sugerimos que umdos facilitadores a convide para sair um pouco dogrupo com ele, para conversarem com mais calma.

Em caso de um quadro persistente, os facilitadoresdevem sugerir a procura de algum dos serviçosprofissionais disponíveis na área, para ofertar umaabordagem mais aprofundada da problemática.

e) As dificuldades em relação às tarefas, e as

estratégias possíveis dos facilitadores :

Como indicamos acima, todos os grupos humanosmobilizam ansiedades básicas no momento de seconfrontar com as tarefas, e isso é mais exacerbadonos grupos com portadores de transtorno mentalmaior. Uma das estratégias-sintomas disso éfazer “uma espécie de pacto mafioso que consisteem impor aos coordenadores a liderança a fim

de evitar a tarefa”. E os coordenadores, por suaparte, “ao entrarem em contato com intensa

ansiedade psicótica, têm a tendência a defender-se interpretando ou respondendo uma a uma àssolicitações que lhe são formuladas. Estas respostas

favorecem a serialização 88  do grupo, propiciam aexacerbação da ansiedade e a desintegração dogrupo” (LANCETTI, s/d [b]: 163). Só com algum

tempo de reunião é que os participantes poderão sereferir mais claramente a tarefas e sugerir algumaatividade, e isso chegar a ter algum eco no grupo,

partindo para tentar fazer algo a respeito. O papeldos facilitadores é estimular os participantes a

desenvolverem a atividade proposta, mas semqualquer ação sua independente do grupo, nomáximo se juntando a eles e realizando-a junto com

os demais participantes .

A situação pode ficar mais complexa se o projetode grupos de ajuda mútua estiver inserido emum programa de saúde mental, e os facilitadores

assumirem a função de forma remunerada. Nestecaso, há atividades de suporte na comunidadeque deverão ser realizadas pelos facilitadores, de

forma independente ao grupo, e estas injunçõesinstitucionais dos facilitadores podem manter o

grupo na paralisia. A saída é estabelecer maisclaramente um conjunto particular de atividadespara as quais o grupo deverá necessariamente se

organizar para desenvolvê-las, e que não serãorealizadas de forma alguma pelos facilitadores, e

88 Serialização é um dos importantes conceitospropostos por Sartre (1960) para descrever a dinâmicagrupal. O conceito se refere particularmente ao estágioinicial de grupos ainda em potência, em que as pessoasestão individualizadas e recebem de fora a injunção deestarem juntas em um mesmo espaço (como em uma filade ônibus), e ainda não assumiram nenhuma atitude ouação coletiva (o que chamou de fusão), nem sabem bemquem está ali com elas, o que constitui a base para acriação de vínculos.

isso deve ser discutido e negociado previamente nomomento de se planejar a ação dos facilitadores naárea.

f) A importância das identificações horizontais, dageração de esperança e dos vínculos que se criam,bem como a indução de iniciativas interpessoais deajuda mútua e suporte social fora do grupo :

Como salientamos acima a respeito do processogrupal em ajuda mútua em geral, as identificaçõeshorizontais que se dão entre os membros dogrupo constituem um dos seus principais efeitospsicossociais. Entre os portadores de transtornomental maior há uma tendência a se acentuar oesgarçamento dos laços relacionais e familiares,gerando o enfraquecimento do suporte social ecomunitário no dia a dia, e portanto induzindo aoisolamento, solidão, desamparo etc. Assim, osgrupos de ajuda mútua com este público tambémtêm um papel fundamental de:

- construção de laços e redes de amizade ecompanheirismo, como apoio emocional esolidariedade que se estendem para o dia a diaexterno ao grupo : além do que acontece na própriareunião, os laços e vínculos tendem a se estenderpara fora da reunião, com as pessoas buscandose contatar, falar do que está vivendo, pedirsugestões etc. Assim, os grupos são uma estratégiafundamental de reconstrução de redes sociais de

suporte na comunidade ;

- geração de esperança, dada pelo exemploconcreto de outros que já conseguiram avançar maisno processo de recuperação : a possibilidade deconhecer pessoas que passaram por experiênciasradicais e difíceis como a sua própria, e que, noentanto, avançaram no processo de recuperação,

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gera linhas de identificação muito fortes, geradorasde esperança e estimuladoras do investimento nocuidado de si e no tratamento;

- troca de experiências concretas de como lidarcom os desafios colocados por estes problemas nodia a dia, não só no plano pessoal e familiar, comotambém de iniciativas para a defesa dos direitos,o que pode inclusive levar a iniciativas coletivas :o grupo oferece esta troca de experiências, quenecessariamente implica um leque de estratégiasmuito concretas de lidar com o transtorno no

cotidiano, sem prescrever qual é melhor para cadaum, já que esta escolha é inteiramente pessoal.

g) Os “personagens” mais frequentes vividos noprocesso grupal, dadas as características pessoais,as implicações que cada um traz consigo para ogrupo, e das várias possibilidades de vivência dasangústias e sentimentos inconscientes no grupo :

Em tese, o comportamento de cada pessoa emgrupos de ajuda mútua depende de alguns fatoresbásicos:

- suas características pessoais, particularmentesubjetivas, moduladas pelos traços dominantes dapersonalidade;

- as implicações pessoais que as pessoas trazem aogrupo, determinadas pela sua história, sua posição

de classe social, visão política e ideológica, inserçãona divisão técnica do trabalho, gênero, etnia,geração, identidade sexual, condição existencialespecífica (por exemplo, portador de deficiência oude transtorno mental) etc.;

- injunções, processos e sentimentos vividoscoletivamente no processo grupal, nos quais um dosparticipantes pode, por exemplo, ser porta-voz de

sentimento coletivos ou condensar em si a projeçãodos demais.

Estes três fatores se interagem, e a experiênciaconcreta de trabalho com grupos vai nospossibilitando gradualmente desenvolver nossacapacidade de identificá-los. Na literatura sobre

grupos, é comum se apresentar listas com algunsdestes papéis ou “personagens típicos” e maisfrequentes. Tendo como base o trabalho de Pereira(2001: 310), podemos listar, entre aqueles listados,os seguintes:

- o porta-voz : tende a enunciar anseios ou denunciarproblemas ou conflitos no interior ou exterior dogrupo. Geralmente, como característica pessoal,pode ter maior grau de ansiedade, pode apresentartraços persecutórios, ou apenas maior percepçãocrítica dos processos grupais e sociais. Estepersonagem pode ser muito útil ao grupo, mastambém pode ser usado e estimulado pelos demaiscomo um contestador ou como aquele que vai nafrente, para o sacrifício, enquanto o resto do grupomantém a sua boa imagem e a paralisia. Podetambém abusar do grupo, aproveitando-se dessascaracterísticas para se colocar em uma posiçãoprivilegiada. Nos grupos de usuários da saúdemental, há sempre os “porta-vozes da loucura”,ou seja, aqueles que têm seu comportamentoidentificado como “mais difícil”. Eles, no entanto,

são os melhores “porta-vozes da experiênciahumana radical” induzida pelo transtorno mental,e é justamente para eles que os grupos têm a suarazão de existir, e portanto devem ser acolhidos como máximo de carinho possível;

- o bode expiatório : é a pessoa escolhida para serresponsabilizada pelos fracassos e dificuldades

do grupo, carregando a culpa grupal. A fantasia dogrupo é de que, eliminando-a, os problemas estariamsuperados. Este fenômeno pode ser estendido aminorias internas ou externas ao grupo, neste últimocaso mobilizando a agressão para fora. Este processopode ocorrer também em grupos maiores, e até mesmoem países e regiões inteiras, em relação a minoriasétnicas, políticas, religiosas etc., podendo justificaraté mesmo operações amplas de genocídio, comotivemos no século XX. Os julgamentos precipitadospodem gerar injustiça, perda de direitos, e significamum mecanismo de defesa do grupo em avaliar seusproblemas e conflitos;

- osabotador : trata-se de indivíduos ou pares que nãoaceitam mudanças e inovações, e tendem a resistire sabotar os processos de transformação no grupo,criando uma série de obstáculos e dificuldades;

- o rejeitado ou vítima : em geral, tem dificuldadesem aceitar a si mesmo, e tende a projetar sobreo grupo a rejeição. Dá espaço aos outros, depoisreclama de ter sido postergado. Busca a atençãodos demais no papel de vítima, e tende à estratégiado “quanto pior, melhor”;

- o narcisista : só pensa em si e em seus interesses,fechando-se em si mesmo e naquilo que lhe podedar algum ganho, desinteressando-se pelo resto.Uma variação deste tipo é o infantil , que quer tudo

“pronto e mastigado”;

- o silencioso : fala pouco ou nada, e, portanto,tende a não participar, ficando olhando de longe econtrolando o grupo com seu olhar;

- o atualizado : faz cursos, lê, interessa-se, participa

e contribui com novas ideias;

- o líder democrático e de mudança : acredita naforça do grupo, dá coragem, é otimista e assumepapéis de liderança, mas sempre estimulando aparticipação e o trabalho de todos e relativizandoos ganhos secundários do poder, como a glória eo prestígio. Assim, tende a assumir a lei do grupo,elaborada pelo trabalho coletivo dos integrantes;

- o líder despótico : geralmente apresenta

características pessoais que estimulam a assumir afigura de “pai despótico”, marcado pelo desejo deglória, prestígio, vaidade e narcisismo, e, portanto,ao mesmo tempo carismático e castrador, seduzindoos demais com uma sensação de segurança,proteção e pequenos privilégios, e requerendo emtroca dedicação e obediência.

O uso destas categorias na avaliação concretaentre os participantes do grupo deve ser bastantecriteriosa, pois pode na verdade simplificar osproblemas e estimular a identificação de novos“bodes expiatórios” ou de outros processosde discriminação dentro e fora do grupo. Noentanto, elas podem ser bastante úteis para aanálise das situações grupais pelos facilitadores,particularmente nas supervisões.

h) A gestão dos atravessamentos e temas maisdivisionistas no grupo, particularmente religião epolítica :

Alguns movimentos de ajuda mútua, no afã deproteger seus membros, tendem a proibir temas quesão mais divisionistas e conflituosos, e que podemgerar discussões exacerbadas e desintegradoras,

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como a política e a religião. Nossa visão é de queo campo psicossocial está inteira e intimamenteintegrado a estes dois temas, e seria redutor eempobrecedor proibi-los nas reuniões, gerandodespolitização e perda de oportunidades para arecuperação, pelas seguintes razões:

- política : o processo de empoderamento erecuperação tem dimensões políticas fundamentais,como a defesa de direitos, a luta contra aspectosdiscriminadores e o estigma na cultura mais geral,a participação e a luta por mudanças nas políticas

sociais e particularmente na de saúde e saúdemental, bem como nos serviços etc. O engajamentonos movimentos sociais que as promovem sãoessenciais tanto para o processo de cada indivíduocomo para a conquista de avanços sociais e políticosem todos esses aspectos. Assim, o engajamento dosmembros dos grupos deve ser estimulado, e o temadeve necessariamente fazer parte do cotidiano dasreuniões. No entanto, há algumas restrições quedevem ser observadas nos grupos, como políticapartidária e propaganda eleitoral , e para isso osfacilitadores devem deixar claro aos participantesas regras para isso;

- religião e espiritualidade : a participação emagremiações religiosas, suas práticas devocionaise espirituais, bem como a criação de vínculos desolidariedade e suporte social entre seus membros,fazem parte integral do processo de expressão

da subjetividade, de crescimento pessoal erecuperação em saúde mental. Na cultura brasileira,as instituições religiosas e suas práticas oferecemvariados caminhos para se lidar com a solidão, odesamparo, o sentido da vida, e para a reconstruçãode vidas ameaçadas pela violência, miséria, abusode drogas e transtorno mental. Assim, nos grupos,seus participantes necessariamente irão falar

destas práticas, o que deve ser feito de formapluralista, ecumênica e com base no direito àliberdade religiosa de cada cidadão. Para isso, osfacilitadores devem esclarecer que este direito deveser exercido apenas para falar de si mesmo. Paraalém disso, há algumas restrições importantes,em relação a proselitismo e pregação religiosa,a referência ou qualquer avaliação julgadora oudiscriminatória de quaisquer religiões, bem como aprática de rituais ou orações de religiões específicasdentro do grupo, que acaba melindrando as pessoasligadas a outras crenças e credos . Os grupos deajuda mútua são para todos, independentemente

de credo religioso, e esta característica laica esecular dos grupos busca garantir que nada possacriar constrangimentos para um bom acolhimento aqualquer pessoa em suas reuniões.

  i) A importância de se conhecer os recursos eserviços sociais, educacionais, de defesa dosdireitos humanos e particularmente de saúde esaúde mental na região do grupo :

Os facilitadores, e também gradualmente osmembros de grupos, devem conhecer bem osserviços e recursos da área social, educacional,de denúncias e de defesa dos direitos humanosdo cidadão, e notadamente os serviços de saúde esaúde mental. Cada pessoa com transtorno mentaldeve ser estimulada a se inserir nestes últimos,com presença ou consulta regulares, e ter vínculo

sólido com o profissional que atua como seu técnicode referência. Os facilitadores devem conhecermuito bem  os serviços de emergência em saúde ede emergências psiquiátricas da área programáticaonde o grupo e a maior parte de seus membros estãolotados, suas condições de atendimento, a forma decomo chegar até eles e a estratégia a ser adotadaem caso de um dos facilitadores ter que assumir este

papel de dar suporte a um dos membros do grupoem dificuldades. Estes são temas e estratégiasespecialmente importantes de serem conhecidos eplanejados pelos facilitadores, de forma prévia aoinício das atividades . Não é incomum ter membrosdos grupos requerendo cuidado imediato, e que àsvezes pode ser apenas uma consulta de emergênciapara efeitos colaterais de psicofármacos, ou umestado de ansiedade maior que pode ser debeladocom uma medicação mais simples.

j) Os limites de um grupo de ajuda mútua e de seus

facilitadores, e a importância de “não carregar a dordo mundo nas costas” :

Os grupos de ajuda mútua com usuários dasaúde mental e a atuação de seus facilitadorestêm objetivos bastante definidos, e não visamsubstituir o papel dos serviços públicos de saúdemental. Entretanto, este é um campo muito fértilpara ambiguidades e mal-entendidos, e que estáintrinsecamente ligado ao processo grupal interno,às características da atenção em saúde mentaldisponível na área do grupo e às relações dosgrupos com esta assistência.

Em primeiro lugar, os grupos têm como objetivo gerarestratégias de ajuda e suporte mútuos, e a própriadinâmica grupal tende a enfatizar a potência do grupoe o heroísmo de seus membros em oferecer isso aosdemais participantes do grupo. Assim, no intervalodas reuniões, as pessoas se ligam, “fazem ajudamútua” e desenvolvem atividades de suporte social.No entanto, a expectativa é particularmente maiorem relação aos facilitadores, que têm mais tempo eexperiência, e são os responsáveis pela existênciae a continuidade do grupo. Muitas vezes esta ajudaé demandada na forma de chamadas telefônicas,a qualquer hora; de pedidos de informação e desuporte para dificuldades existenciais e situações

emergenciais; ou mesmo para visitas e contatos

pessoais e institucionais. No entanto, os demaismembros do grupo e particularmente os facilitadoressão todos usuários, com as suas dificuldades epreocupações existenciais particulares, seu trabalhoe formas de manutenção, e não têm como arcar com

uma demanda muito grande deste tipo de suporte,notadamente quando este trabalho é realizado deforma voluntária.

Outra área que merece especial atenção sãoas denúncias de violação de direitos humanosperpetradas no campo da assistência à saúde e

saúde mental, envolvendo os usuários ou pessoasde seus vínculos. Os facilitadores têm um papelimportante de avaliar as informações que lheschegam, examinar a gravidade da situação, dar umprimeiro suporte, encaminhar ou fazer junto comas pessoas envolvidas a denúncia necessária, se

for o caso, bem como angariar outras formas dedivulgação e suporte social e político necessário.

No entanto, esta carga de trabalho e suporte podeficar enorme e ultrapassar os limites do dispositivoe das pessoas. Na experiência deste grupoparticular que criamos, várias vezes esta discussãoemergiu nas reuniões, e acabamos forjando a

expressão de que ser membro de grupo de ajudamútua e particularmente ser facilitador não s ignifica“carregar a dor do mundo nas costas”. Isso s ignificaque podemos escutar de vez em quando o outro, trocarideias, orientá-los dentro de nossas possibilidades,

ajudá-los em algumas de suas dificuldades de vida,

mas temos de aprender a respeitar nossos próprioslimites. Para além disso, cada usuário com seusproblemas deve ser referenciado a seu serviço de

saúde mental ou buscar os recursos existentes daárea social, educacional, de direitos humanos, desaúde etc .

É claro que isso depende fortemente da provisão e daqualidade dos serviços e recursos disponíveis nestes

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vários campos de política social, e particularmenteda saúde e da saúde mental. E em caso dedesassistência ou problemas na provisão, os gruposde ajuda mútua devem abordar o assunto, sugerirreuniões próprias para discutir o que fazer, buscaraliados, e uma das possibilidades é estimular queseus membros participem dos movimentos sociaise das lutas que visem reivindicar e conquistar novospatamares de qualidade e acesso nestas políticas .

Uma outra possibilidade é os próprios gruposde ajuda mútua serem promovidos e estareminteiramente inseridos na política local de saúde

mental ou de atenção básica em saúde, com seusfacilitadores realizando trabalho remunerado.Neste caso, ainda assim, a agenda e a pauta deresponsabilidades dos facilitadores devem sermuito bem avaliada, definida e ter sua execuçãomuito bem planejada, pois continuam a ser usuários,têm seus limites pessoais, e sua atuação não visasubstituir a atuação dos profissionais e dos serviçosde saúde mental, nem da rede de atenção básica nocampo da saúde mental.

k) A separação necessária entre grupos de ajudamútua de usuários e de familiares, e as suaspossíveis formas de integração :

 

A partir da experiência internacional e de nossavivência, adotamos a perspectiva de que os gruposde ajuda mútua de usuários e de familiares nocampo da saúde mental devem ser organizadosseparadamente. Sabemos que outros dispositivospolíticos, sociais, terapêuticos e comunitários optampor reunir os dois grupos de forma indiferenciada, oque a nosso ver é uma opção acertada e adequadapara os contextos e objetivos com que atuam.Exemplos deste trabalho integrado estão na TerapiaComunitária (BARRETO, 2005), no movimentoantimanicomial e nas associações de usuários e

familiares, que estão se difundindo no país, comsuas práticas de suporte mútuo, defesa dos direitose militância (VASCONCELOS, 2008b).

No entanto, especificamente nos grupos de ajudamútua, nossa opinião é de que a separação énecessária pelos seguintes motivos:

- a experiência da clínica psicossocial e da atençãobásica nos ensina que na abordagem de casos olevantamento da história do transtorno e de seusdesafios na família geralmente leva a duas versõesdiferenciadas e muitas vezes conflitivas,  com umnúmero enorme de queixas de parte a parte : oportador de transtorno mental, de um lado, e seusfamiliares e cuidadores, do outro. Muitas vezes, atémesmo este ato de fazer o levantamento inicial docaso pede contatos separados, inclusive para nãoexacerbar ainda mais os conflitos já existentes;

- em encontros apenas com familiares, há temasextremamente sensíveis, alguns deles guardados“a sete chaves” por mecanismos de defesa muitofortes, que só são tocados com muita dificuldade,gradualmente e em ambientes que despertam muitareciprocidade e confiança, tais como:

+ o tempo necessário e o peso global do cuidado, àsvezes atingindo o sacrifício de todo um projeto devida pessoal do cuidador principal para se dedicar

a ele, e que tem um caráter invisível e muitasvezes naturalizado, particularmente porque sãoprincipalmente as mulheres que o exercem;

+ o estresse vivido pelos cuidadores no dia a dia,para atendimento das várias demandas e dasdificuldades no funcionamento social;

+ as várias outras dimensões econômicas (asinúmeras despesas extras com fármacos, com

transporte para os serviços etc.) e sociais doprocesso de cuidar;

+ a ansiedade dos períodos de “sumiço”;

+ o medo da emergência das crises e da violência;

+ a agonia no caso de dependência a drogas, quegera a “fissura” por arranjar dinheiro a qualquercusto, podendo incluir a venda de eletrodomésticosda família, pequenos furtos, endividamento e/ourealização de pequenos trabalhos para o tráfico,gerando muitos riscos para o usuário e para toda afamília, e tendo sérias implicações penais;

+ a angústia surda dos pais associada ao dilemageracional do cuidado , ou seja, ao bem-estar futurode um filho usuário, quando eles estiverem maisvelhos, incapazes de cuidar, e particularmentequando falecerem etc.

Assim, a presença dos usuários no mesmo ambientede acolhimento dos familiares acaba por bloquearintegralmente a possibilidade destes temasemergirem e dos cuidadores poderem falar maisabertamente sobre estes e outros temas similares .

- na perspectiva inversa, os usuários têm tambémsuas reclamações , que podem variar de queixassimples de invalidação e discriminação, falta deassistência e cuidado, internações involuntáriasconsideradas indesejáveis e desnecessárias, algumaforma de violência nestes procedimentos podendo

até chegar a casos mais sérios de tentativas deinvalidação e de perda dos direitos por processo detutela indevida, que podem, em casos mais graves,ser acompanhados por eventuais apropriaçõesindébitas de seus benefícios e bens etc.

- nos processos de desinstitucionalizaçãopsiquiátrica, os usuários tendem a ter posições mais

firmes e radicais, enquanto os familiares às vezes sealiam a abordagens mais médicas e conservadoras,podem defender os serviços tradicionais deinternação, além de cobrarem dos serviços pelafalta de suporte e por estes muitas vezes jogaremem seus ombros o peso do cuidado .

Assim, pelo menos para os grupos de ajuda mútua,a diferenciação entre usuários e familiares éextremamente necessária.

Esta postura não significa, porém, desconhecer apossibilidade de diversas formas de colaboração,integração e ação conjunta, iniciando-se ainda naprópria esfera dos grupos de ajuda mútua, mas commaior ênfase nas demais estratégias de recuperaçãoe empoderamento, como, por exemplo:

- convites dos grupos de familiares para que umaliderança dos usuários mais conhecida possaparticipar de uma reunião dos primeiros, atravésdo tipo de reunião em que se tem convidados,permitindo aos familiares conhecerem os pontosde vista e a vivência própria de usuários com umavisão mais crítica e em um estágio mais avançadodo processo de recuperação;

- o contrário, em reuniões de ajuda mútua dosusuários;

- eventos de confraternização dos grupos em datasou eventos festivos;

- organização conjunta e promoção de eventosde formação, tais como seminários, encontros,debates etc., podendo incluir os gestores e outrosmovimentos sociais;

- desenvolvimento de projetos de suporte mútuo,mudança na cultura, defesa de direitos etc.;

- contatos e militância comum no movimento

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antimanicomial e em outros movimentos sociaispopulares, bem como nas instâncias de controlesocial no SUS e em outras políticas sociais.

Assim, mesmo que as duas linhas de grupos de ajudamútua devam ser operacionalmente separadas, hávárias formas de manter a integração, a colaboraçãomútua e a militância social. Esta interação, inclusive,é fundamental para a perspectiva do movimentoantimanicomial, para acompanhar e se garantir umposicionamento político mais claro e firme por partedos familiares.

l) A importância de uma seleção criteriosa dosfacilitadores de grupos de ajuda mútua :

 Em nossa experiência, a escolha de liderançasde usuários ou familiares para atuarem comofacilitadores de grupos de ajuda mútua deve sermuito cuidadosa e criteriosa, tendo em vista osvários desafios indicados acima, e particularmentequando o projeto deixa de ser apenas informal evoluntário, para assumir o caráter de um trabalhosistemático junto à rede de saúde mental e/ou deatenção básica em saúde.

A nosso ver, há vários parâmetros que podem seravaliados no processo seletivo, que pode requerercurriculum vitae , entrevista pessoal, capacidade de

lidar com grupos em dinâmicas simuladas, e, emcaso de muitos candidatos, também prova objetivade conhecimento. Entre os possíveis parâmetros deavaliação, podemos citar:

- experiência anterior de ativismo social ecomunitário : a vivência de projetos de suportemútuo, atuação comunitária ou militância social, e

particularmente em conselhos de controle social,possibilita aos seus integrantes ter experiênciaprévia na coordenação de grupos e assembleias, naorganização de reuniões, encontros e eventos etc.;

- experiência e participação anterior em associaçõese movimentos sociais do campo da saúde mental : aparticipação em associações de usuários e familiaresdo campo da saúde mental, bem como no movimentoantimanicomial, possibilita não só ter experiênciade ativismo social, mas agora diretamente comusuários e familiares do campo, com todas as

particularidades do campo: sensibilidade para lidarcom sintomas e com as ambiguidades e desafios dotranstorno, capacidade de acolhimento etc.;

- avanço no processo pessoal de recuperação e deestabilização de sintomas (no caso de usuários) :gradualmente, a experiência de tratamento e comas estratégias de lidar com os sintomas no dia adia geram uma relativa estabilização do transtorno,que permite maior segurança para assumir trabalhoe responsabilidades. Isso não significa descartarquem tenha tido uma crise recente, mas é precisoavaliar toda a trajetória clínica e a história detratamento nos últimos anos;

- escolaridade formal : embora não deva significarum critério de exclusão, a escolaridade formalmais avançada geralmente significa uma maior

capacidade de lidar com desafios cognitivos, comsistematização escrita, com maior capacidade decomunicação oral, maior nível de conhecimentogeral etc.;

- capacidade cognitiva e prática de lidar com tarefasorganizativas e com computadores : muitas vezes, aausência de escolaridade formal não é impedimento

para um indivíduo desenvolver habilidadesorganizacionais, cognitivas, computacionais etc.Assim, é importante levantar a experiência prática docandidato nestes diversos campos;

- capacidade prática de lidar com grupos : em casode desempate entre fortes candidatos, no final doprocesso seletivo, pode-se incluir a observação decada um em dinâmicas de grupo;

- prova objetiva de conhecimento do campo da saúdemental e da abordagem do empoderamento : apenasem caso de se prever muitos candidatos, é possível aindicação prévia de uma bibliografia de referência ede se ter uma primeira fase eliminatória com base emprova objetiva.

 Tendo listado estes tantos temas e desafios, pensoque podemos concluir este trabalho, passando agorapara as considerações finais.

6) Considerações finais

O presente texto constitui uma primeira tentativa dereunir e sistematizar temas tão complexos e delicadoscomo os grupos de ajuda mútua e sua relação com osprocessos grupais, a partir de algumas experiênciasiniciais que estamos acompanhando, como forma

de oferecer subsídios para o desenvolvimento degrupos de ajuda e suporte mútuos no campo dasaúde mental no Brasil. Constitui um texto “emsituação”, no burburinho da prática ,  e portantoassume seu componente de provisoriedade. Nossamaneira de trabalhar com estes temas, no contextode um projeto em andamento, inclui conhecer esistematizar o processo histórico anterior, mapear ascontribuições teóricas e conceituais que nos permitem

analisar a realidade da perspectiva ético-política epopular-democrática que adotamos, acompanhar asexperiências e os projetos no presente, por meio damilitância e da pesquisa, e tentar ler na realidadeseus traços estruturais, suas tendências, os desafiose as estratégias de lidar com eles. Escrever textoscomo este, mesmo que temporários e situados emuma determinada conjuntura, ajuda-nos a estruturarnossa compreensão, a levantar mais perguntas edúvidas, e particularmente a qualificar melhor nossaintervenção na área. Mais à frente, com a ampliaçãodas experiências e da discussão, com o alongamentodo tempo e a abertura de mais horizonte no olhar,

certamente poderemos corrigi-lo e complementá-lo.Talvez outros colegas e companheiros prefiram esperarestágios mais avançados do processo para expor epublicar a sua produção, de forma mais protegida.Entretanto, para nós, esta postura de explicitar asdificuldades e os desafios e de “refletir em voz alta”sobre as estratégias de lidar com eles constitui umprincípio de uma filosofia do conhecimento voltadapara a práxis coletiva popular-democrática, mesmocom todos os riscos de oferecer munição para os quenão apoiam nossas propostas. Adicionalmente, estaopção se baseia em um compromisso ético e solidáriocom cada um dos usuários e familiares com quemtrabalhamos, com os movimentos sociais da área ecom a renovação das políticas de saúde mental, naforma de projetos inovadores e participacionistas,cujas balizas ainda estão sendo construídas no próprioprocesso. Assim, a publicação de trabalhos como esteé também um convite para que nos enviem sugestões,para que nos proponham discussões e debates, como

parte de uma produção eminentemente coletivade conhecimento e de novos projetos de ação, nomomento mesmo da práxis.

Esperamos que o leitor entenda esta proposta, e queparticipe conosco deste processo, pois, a despeito detodos os desafios, ele é muito instigante, criativo egerador de muitas alegrias a cada pequena vitória econquista.

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Texto 8

 

UMA CONTRIBUIÇÃO DAPSICOLOGIA ANALÍTICA PARA ACOMPREENSÃO DA AJUDA MÚTUAEM SAÚDE MENTAL: O ARQUÉTIPODO CURADOR FERIDO

Glória Lotfi89 

Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um importantepesquisador do psiquismo e até hoje suas

descobertas são acatadas no mundo inteiro pormuitas pessoas interessadas em compreender

89 Psicóloga, especialista em clínica e supervisora clínicapelo CRP/05, membro analista e fundador da SociedadeBrasileira de Psicologia Analítica (SBPA-RJ), e membroanalista da International Association for AnalyticalPsychology (IAAP), com sede em Zurique, Suíça.

melhor como funciona a mente humana e em ajudaraqueles que sofrem psicologicamente. No fimdo século XIX, no momento em que Jung deveriaescolher qual especialização médica seguiria,encontrou no Manual de Psiquiatria   de Krafft-Ebing uma expressão que o deixou inteiramenteemocionado, quando aquele autor denominou aspsicoses como “doenças da personalidade”. A partirdisso, ele chegou à conclusão de que finalmentehavia encontrado um lugar de confluência de seusmaiores interesses, natureza e espírito, em umcontexto de uma medicina fortemente voltadaapenas para a descrição objetiva dos fenômenos,

e viu então na psiquiatria um campo comum dosdados biológicos e espirituais, e a elegeu como suaespecialidade.

Em 1900, assumiu o lugar de médico assistente nohospital de Burgholzli, em Zurique, e na c onvivênciacom pessoas com transtorno mental, Jung foiintuindo e experienciando sua teoria dos Arquétipose do Inconsciente Coletivo, que explicaremos aseguir. Sua obra inspirou teoricamente os trabalhosde Nise da Silveira no Brasil, reconhecida como aprimeira psiquiatra brasileira a desenvolver umtrabalho inteiramente humanizado e respeitosono atendimento à pessoa com transtorno mental,acompanhando-a em seu caminho interno de buscade superação. Da mesma forma, as instituiçõesditas “junguianas”, criadas em todo o planeta,buscam ensinar uma maneira mais holística decompreensão do psiquismo.

Em seus estudos, Jung foi aos poucos percebendo

a importância dos mitos, histórias que os homensescreveram desde seu início de vida na Terra,criadas para expressar e facilitar a compreensãodos mistérios que rodeiam nossas vidas. Os mitosestão presentes nos relatos contados de geraçãoem geração, na tradição oral e escrita, na l iteraturae nas religiões. Nessas histórias semelhantes emculturas diferentes e distantes, podemos perceber aexistência de padrões típicos de comportamento em

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cada desafio humano específico. Há um Arquétipopara cada um dos nossos desafios, por exemplo, arelação mãe-filho; a importância do pai na relaçãocom seu filho e do filho em relação ao pai; o papel doeducador e sua relação com o aluno e a relação doaluno com o educador, além daquele que estamosagora interessados em compreender melhor, que éo Arquétipo do Curador Ferido.

 Para Jung, portanto, o ser humano, ao nascer, trazconsigo uma herança, não só genética, como tambémcultural e psíquica: não é uma tabula rasa  (ou seja,um quadro branco que será escrito apenas com aexperiência de vida), seu psiquismo não é novo, é

tão antigo como a raça humana, e é coletivo. O Egoindividual se desenvolve em meio às experiênciasde vida e às energias psíquicas oriundas destepsiquismo comum a todos nós humanos, que elechamou então de Inconsciente Coletivo. Cabe acada indivíduo a tarefa de, no confronto com asexperiências de vida e com as energias vindasdeste Inconsciente Coletivo, desenvolver umamaneira única de ser em interação com o meio, eJung chamou a isso de Processo de Individuação.Dessa maneira, o homem, dedicado à tarefa de seconhecer, vai aos poucos se percebendo integrado aum todo que o transcende, ao mesmo tempo em quelida com os desafios concretos do mundo de formacada vez mais singular e criativa.

Jung viu no transtorno mental a dificuldade do egoem se estruturar em meio a forças internas muitosuperiores e às vezes em condições de vida difíceis,precárias em amor e cuidado, o que em nadaauxiliavam a pessoa no seu desenvolvimento. Essa

compreensão do transtorno mental parte de umponto de vista dinâmico, para além da compreensãopsiquiátrica convencional, mais preocupada emdescrever sintomas e classificar as doenças.

Uma das contribuições de Jung que pode nosajudar a compreender melhor o que ocorre nosgrupos de ajuda e suporte mútuos é sua noçãode Arquétipo do Curador Ferido. A partir do

estudo dos mitos, como vimos acima, Jung nosensinou que Arquétipos são estruturas básicasdo psiquismo inconsciente que todos nós sereshumanos compartilhamos, e que constituemrecursos que temos para lidar com os desafiospsicológicos mais fundamentais de nossas vidas.

Toda vez em que alguma pessoa que está sofrendo,pede ajuda, e outra pessoa se põe à disposiçãopara ajudar, é ativado o Arquétipo do CuradorFerido, expresso em mitos de várias culturas. TodoArquétipo é bipolar, quer dizer, temos em nós asduas polaridades, a do curador e a do ferido, poispodemos ser quem sofre e por vezes somos quemauxilia.

Um outro Arquétipo, fundamental em nossas vidas, éo da Grande Mãe, e nele convivem a energia da mãeque maternaliza e a da criança que é maternalizada.As duas polaridades do arquétipo estão presentese são ativadas nos momentos em que precisamoslidar com essas energias, na maternidade ou apenasobservando um bebê, ou mesmo em momentos emque gostaríamos de uma cama com lençóis limpose perfumados para deitar e dormir. Somos maternossempre que, cuidadosa e amorosamente, cuidamos denós mesmos ou do outro.

A bipolaridade está presente em cada um dospróprios polos individuais, e assim um educadortambém aprenderá com seu aluno, embora estejano lugar de quem ensina. Da mesma forma, noprocesso de cura, o curador será curado de suaferida enquanto se dedica à cura da ferida do seupaciente, entendendo cura por um processo de busca

de superação das dificuldades e de harmonização.

São inúmeros os exemplos desse Arquétipo, poiso Curador Ferido está presente na mitologia e naliteratura mundial. No Candomblé, por exemplo,temos a figura de Obaluaê (jovem) e Omulu (velho),orixás portadores da peste que a espalham e acuram. Em um seriado contemporâneo na televisão,tivemos o médico House, dependente químico e

também um portador de transtorno mental, masinteiramente genial e capaz de exercer a medicina.

Vou neste texto privilegiar a figura de Quíron,encontrado na mitologia grega. Quíron era umCentauro, da cintura para cima um homem, e dacintura para baixo um cavalo. Nasceu assim porqueseu pai, o deus Cronos, transformou-se em cavalopara conquistar Irina, uma ninfa, que não era deusae portanto, era mortal. Logo que nasceu, Quíronfoi rejeitado por seus pais porque era estranho ediferente. Essa foi a primeira ferida de Quíron, arejeição. Apolo e Ártemis, um casal de irmãos, doisoutros deuses, resolveram cuidar de Quíron e lhe

deram uma educação excelente. Assim, Apolo, deusda razão, das artes e do intelecto, e Ártemis, deusada natureza, contribuíram para a imensa cultura queQuíron possuía. Apolo, como conhecedor de todasas ciências da época, ensinou também medicina, eÁrtemis contribuiu com o estudo das plantas e suaspropriedades medicinais e das leis da natureza queregem o ser humano. Logo Quíron ficou conhecidopor seu saber e era procurado por todos queprecisavam de alívio para suas dores, chegando ater vários discípulos, que aprendiam medicina comele, sobretudo heróis que iam lutar nas guerras eprecisavam aprender como curar suas própriasferidas, como também as de seus companheirosde luta. Foi um desses alunos, Hércules, quemferiu Quíron por engano, pois as suas flechascontinham um veneno mortal. Mas como Quíronera um semideus, herdando a divindade de seupai, era imortal e não morreu. Sua vida, a partirdesse momento, passou a ser um suplício de dor

e sofrimento, mas ele continuou exercendo amedicina, pois a experiência pessoal de lidar comsua própria ferida o fazia compreender melhor oscaminhos da recuperação, bem como poder aliviara dor alheia o ajudava a suportar a sua própria dor edava um sentido maior à sua vida.

Segundo Jung, este Arquétipo está presente emtodos nós, em seus dois lados: o lado do ferido e

o lado do curador. É o curador que existe em cadapessoa que está sofrendo que deve ser despertado.Nos grupos de ajuda e suporte mútuos, esse curadorinterno será despertado pela presença dos outrosparticipantes do grupo, pois a dor do outro despertao curador e mobiliza a compreensão do que cadaum pode dizer e fazer para melhorar seu estado. Osfacilitadores de grupo, aceitando sua própria ferida,como pessoas com transtorno ou como familiares, etendo alguma experiência em condução de grupos,estarão aptos não só para avançar em seu processode recuperação de uma vida mais ativa e útil,como também para ajudar, com sua experiência,

os participantes dos grupos que facilitam. Nestacaminhada, eles vão adquirindo sabedoria, sendocada vez mais capazes de ouvir a dor e de facilitar oaparecimento do curador em si mesmo e nos demaisparticipantes do grupo.

Sugestões para leitura complementar eaprofundamento

GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo:FTD, 1997.

JUNG, C. G. (org.). O homem e seus símbolos . Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2008.

MARONI, A. Jung: individuação e coletividade. SãoPaulo: Moderna, 1998.

PIERI, P. F. (dir.). Dicionário junguiano . São Paulo:

Paulus/Vozes, 2002.ROUTHGEB, C. L. (coord.). Chaves-resumo das obrascompletas: CG Jung. São Paulo: Atheneu, 1998.

SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: JoséÁlvaro, 1968.

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Texto 9

INDICAÇÕES PARA A INSERÇÃODOS GRUPOS DE AJUDA E SUPORTEMÚTUOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIAEM SAÚDE

Eduardo Mourão Vasconcelos

 

1) Introdução

Neste texto, gostaríamos de defender a ideia de que

a presente proposta de criação de grupos de ajuda

e suporte mútuos em saúde mental pode significar

mais uma proposta importante para a integraçãoda saúde mental na Estratégia de Saúde da Família

(ESF), não se superpondo e sim complementando

organicamente todas as propostas, sendo

implementadas no SUS nesta direção.

Como já tínhamos indicado na c arta de apresentação

deste manual, a inserção dos grupos de ajuda e

suporte mútuos no campo da saúde e saúde mental

pode se dar de diferentes formas:

a) na Atenção Primária (AP) em saúde, junto aoEstratégia de Saúde da Família (ESF): esta é a

inserção que achamos prioritária, pois nosso projetocoincide inteiramente com os objetivos e estratégias

estabelecidos neste campo tão importante de

atenção pública à saúde para todos. Este é tema dopresente anexo;

b) pelas gerências e coordenações municipaisdo programa de saúde mental: se a integração

dos grupos de ajuda e suporte mútuos com aatenção primária não for possível inicialmente, os

grupos podem ser temporariamente iniciados deforma independente, mas buscando a integraçãotão logo seja possível. Além disso, várias outras

propostas e iniciativas de empoderamento dos

usuários e familiares, particularmente de suasassociações e organizações, devem ser estimuladas

e/ou adotadas pelas gerências de forma associadaou não à atenção básica, como indicado no Anexo 8;

c) por ONGs e por  associações de usuários efamiliares: os grupos de ajuda e suporte mútuos

podem ser assumidos por estas organizações e

associações, até mesmo dentro de um conjuntode iniciativas de caráter voluntário e realizadas

em rodízio por suas lideranças. Entretanto, devembuscar sua estabilidade e difusão ampla por meio

de trabalho remunerado, através de convênios ou

recursos oriundos de projetos próprios de renda e

trabalho, de forma a prover bolsas ou salários paraos facilitadores. No entanto, esta iniciativa não

deve substituir a difusão mais ampla dos grupos viaa atenção básica e gerência do programa de saúde

mental, como política pública para todos.

Neste anexo, faremos então uma série de indicações

para o primeiro tópico, ou seja, a inserção dosgrupos na Estratégia de Saúde da Família.

2) A Estratégia de Saúde da Família omo linhaprioritária e global de atuação dentro do SUS

A saúde da família foi a estratégia escolhida pelapolítica de saúde brasileira, em conformidadecom avanços internacionais e com as diretrizesda Organização Mundial de Saúde (OMS), sendodiscutida e aprovada nas diversas instâncias deplanejamento, participação e controle social doSUS, para reorientar a assistência no país, dandoprioridade para a atenção básica e promoção emsaúde90. Esta estratégia foi iniciada no país ainda em

1991, com a implantação do Programa de AgentesComunitários em Saúde (PACS). Mais tarde, ganhouo nome de Programa de Saúde da Família (PSF),e mais recentemente, passou a ser chamado deEstratégia de Saúde da Família (ESF), para ganhar ostatus  de uma estratégia prioritária e global dentrodo SUS, e não apenas como mais um de seus váriosprogramas já existentes e concorrendo com eles nomesmo nível e status .

De acordo com o Ministério da Saúde (1998), osobjetivos da estratégia são:

a) prestar assistência integral, contínua, comresolutibilidade e boa qualidade às necessidades desaúde da população adscrita;

b) intervir sobre os fatores de risco aos quais apopulação está exposta;

c) humanizar as práticas de saúde através doestabelecimento de um vínculo entre os profissionaisde saúde e a população;

90 Para uma revisão inicial da literatura disponível sobreo tema, indico os seguintes trabalhos: Morosini e Corbo(2007); Teixeira e Solla (2006); Castro e Malo (2006);Costa e Carbone (2004); Czeresnia e Freitas (2003); Sousa(2001 e 2002) e Vasconcelos, Eymard (1989 e 1999).

d) proporcionar o estabelecimento de parceriasatravés do desenvolvimento de ações intersetoriais;

e) contribuir para a democratização do conhecimentodo processo saúde/doença, da organização dosserviços e da produção social da saúde;

f) fazer com que a saúde seja reconhecida comoum direito de cidadania e, portanto, expressão daqualidade de vida;

g) estimular a organização da comunidade para oefetivo exercício do controle social (apud Costa eCARBONE, 2004: 9).

Do ponto de vista das estratégias de empoderamentoe da presente proposta de grupos de ajuda e suportemútuos, a ESF apresenta inúmeros avanços:

a) atua prioritariamente no território, nas casas daspessoas, conhecendo de perto a sua realidade esuas condições reais de vida, visando transformarjunto com a população os fatores e processos queaumentam o risco e a vulnerabilidade social e emsaúde, na linha da prevenção e da promoção;

b) valoriza e requer um trabalho baseado nosprincípios da integralidade e da intersetorialidadecom outros programas e políticas sociais 91;

c) permite conhecer a realidade de cada pessoaou família, em suas particularidades, construindoestratégias de cuidado mais personalizadas;

d) possibilita a integração com ou utilização diretade dispositivos grupais e de educação popular em

91 Conhecer a discussão sobre princípios da integralidadee da intersetorialidade em saúde e assistência social éfundamental para a discussão da promoção da saúde, dasaúde mental e da assistência social. Para isso, sugiro ostrabalhos de Pinheiro e Mattos (2001, 2003, 2004, 2006,2007a e 2007b), Andrade (2006) e Vasconcelos (2008).

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saúde e saúde mental, bem como um trabalhoconjunto com as organizações populares locais,possibilitando um controle social mais orgânico porparte destas e da população em geral;

e) valoriza o saber local e insere agentes dapopulação local no trabalho profissionalizado emsaúde e na carreira pública, como no caso dosAgentes Comunitários de Saúde (ACS).

3. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) e aatenção em saúde mental

Vários municípios brasileiros, particularmenteaqueles que mais avançaram na implantação da ESFe no processo de reforma psiquiátrica, construindoa sua rede de serviços de atenção psicossocial emsaúde mental, também promoveram experiênciasmuito inovadoras de inserir o cuidado em saúdemental na rede de atenção primária. Embora aindanão tenhamos muitas publicações sistemáticase abrangentes a respeito, destacam-se hoje asdiretrizes emanadas pelo Ministério da Saúde(BRASIL, 2003 e 2006) e as coletâneas organizadaspor Lancetti (s/d) e Loyola (2007).

Nestas experiências já consolidadas, descritasnesta literatura, foram sistematizadas algumasformas de intervenção clássicas nesta integraçãoda saúde mental na ESF:

a) a capacitação e a supervisão continuada dos ACSe dos profissionais de saúde inseridos nas equipes(geralmente médicos e enfermeiros) para lidar comas especificidades do campo;

b) a realização de visitas nas residências deportadores de transtorno mental grave, com aprovisão de estratégias de cuidado direto junto ao

usuário (que geralmente inclui a medicação), a suafamília, e com intervenções no ambiente das casase no bairro;

c) o chamado apoio matricial   mais global, quesignifica um sistema de integração, capacitação,supervisão e encaminhamentos responsáveis comserviços mais complexos de saúde e saúde mental,bem como a ação intersetorial com outras políticase programas sociais. As equipes e os serviços deatenção psicossocial em saúde mental do territóriotêm um papel fundamental neste apoio matricial;

d) dentro desta proposta de apoio matricial, emcasos graves ou de crise aguda com riscos, busca-sea internação em serviço de emergência de referênciana área, se possível em serviço aberto, como nosCAPS, e em hospitais gerais, e somente quandoisso não for possível, em hospitais psiquiátricosconvencionais. A internação, sempre que possível,deverá ser acompanhada pela equipe local da ESF.

Mais recentemente, o Ministério da Saúde vemreconhecendo a importância de fortalecer o suportedireto para as equipes da ESF nas áreas maisparticularizadas de saúde, e tomou duas iniciativasimportantes para a atenção básica de modo gerale particularmente para a sua atuação em saúdemental:

a) a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde daFamília (NAFS) (Portaria GM nº 154, de 24/1/2008),integrado por uma equipe que atua na supervisão eno suporte das equipes do ESF, com vários tipos deprofissionais, mas sempre com um deles do campoda saúde mental, como uma forma de promoveruma inserção mais incisiva deste campo na atençãobásica;

b) as gestões do então ministro da Saúde JoséGomes Temporão no sentido de promover adifusão da Terapia Comunitária (TC), umaabordagem criada pelo Prof. Dr. Adalberto Barretono Ceará e já em processo de disseminação pelopaís (BARRETO, 2005; www.abratecom.org.br),junto à rede de atenção básica. Trata-se de umaabordagem comunitária, inspirada na culturapopular, com reuniões com até 50 pessoas, e quevem demonstrando uma enorme importância comodispositivo de acolhimento imediato do sofrimentodifuso na população, particularmente os chamadostranstornos mentais comuns (FONSECA, 2008).

Em nossa opinião, ambas as iniciativas são importantese fundamentais para esta consolidação dos cuidadosà saúde mental na rede de atenção básica no país.Entretanto, consideramos que nossa abordagemde grupos de ajuda e suporte mútuos em saúdemental pode significar mais uma propostaimportante e imprescindível nesta direção,e que não se superpõe e sim complementaorganicamente todas estas propostas deintegração da saúde mental na ESF.

Nesta direção, nas discussões que temos hojecom nossos companheiros inseridos na gestão dosprogramas de saúde mental e na rede de atençãobásica, as dúvidas mais imediatas surgiram acercada possível superposição de objetivos e de público-alvo entre a nossa proposta e a da TC. Este é o temada próxima seção deste anexo.

4. Uma avaliação comparativa entre a TerapiaComunitária (TC) e a proposta dos grupos deajuda e suporte mútuos (GASMs)

Neste terreno, consideramos importante explicitarde saída nossa tese central:

Os grupos de ajuda e suporte mútuos, facilitadospor lideranças de usuários e familiares, constituem

uma estratégia que não se superpõe aos grupos deTC, mas os complementam, exatamente naquilo que

a abordagem da TC, pelas características de suametodologia e dispositivo grupal, bem como pelo

seu público-alvo típico, não é capaz de prover deforma integral, intensiva e com real efetividade.

Para desenvolver esta tese, gostaríamos deapresentar os seguintes temas e argumentos:

a) O alvo e o público diferenciado da TC e dos

GASMs: as pessoas com transtornos mentaiscomuns (PTMC) e as pessoas com transtornos

mentais severos (PTMS): 

A TC tem o grande mérito de acolher um público e

um tipo de transtorno mental que até agora não eraprioridade da política de saúde mental e do s istema

de saúde em geral: o sofrimento difuso   e/ou ostranstornos mentais comuns  (TMC).

O sofrimento difuso é entendido pela literatura

especializada como aquele que se expressa pormeio de

“queixas somáticas inespecíficas, estados de

mal-estar generalizado, problemas gástricos,insônia, nervosismo e dores pelo corpo”, e querepresentam uma “enorme fatia de usuários da

rede básica que demandam cuidados (...) Taisqueixas, por sua vez, apesar de constituírem

problemas de saúde mental considerados demenor gravidade, causam prejuízos e sofrimento

significativos tanto para ao sujeitos envolvidoscomo para os profissionais que os acolhem e que

ainda não recebem capacitação adequada paratanto”. (FONSECA, 2008: 173)

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Uma categoria similar a esta vem sendosistematizada por estudos epidemiológicospsiquiátricos, a de transtornos mentais comuns  (TMC), que

se manifestam através de queixas somáticasinespecíficas, problemas gástricos, insônia,mal-estar, irritabilidade, sem necessariamentepreencher os critérios diagnósticos para osgrandes transtornos mentais (...) e se relacionamdiretamente com variáveis sociodemográficascomo baixa renda, baixa escolaridade, precáriainserção no mercado de trabalho, precárias redes

de apoio social e gênero feminino. (Idem: 174-5)

Até recentemente, a prioridade do processo dereforma psiquiátrica no Brasil tem sido as pessoascom transtornos mentais severos (PTMS), dado queela é que constituiu historicamente a demandados hospitais psiquiátricos convencionais, e queno início da década de 1990 consumiam cercade 96% dos recursos da área de saúde mental.Assim, o descongelamento destes recursos e seuredirecionamento para serviços extra-hospitalaresexigiram priorizar a substituição da atençãohospitalar, através de serviços abertos de atençãopsicossocial intensiva voltados para esta clientela.Só recentemente, após ultrapassarmos a barreirasimbólica de mais de 50% dos recursos da saúdemental estarem sendo dirigidos para serviçosextra-hospitalares, o que aconteceu em 2007, éque o Ministério da Saúde vem ampliando a sua

agenda, e incluindo também a clientela de PTMCna comunidade. A TC é uma abordagem tipicamentevoltada para este público.

Contudo, embora os grupos de TC possam tambémacolher de forma imediata os PTMS, sua metodologiaé incapaz de abordar toda a complexidade, aintensidade emocional e a estranheza geradapelos sintomas e manifestações do TMS a médio

e longo prazos. Por exemplo, dentro das reuniões

comunitárias da TC, a possibilidade de apenas umapessoa falar por um pouco mais tempo de seusproblemas pessoais em cada reunião requer umacapacidade simbólica e emocional de suportar afrustração e de atenção concentrada para a escuta

do outro que é impossível de ser esperada de umapessoa acometida pela psicose. Além disso, nasPTMS, a intensidade e a estranheza dos sintomas,as limitações no funcionamento social e a gravidade

dos desafios existenciais cotidianos, com sua enormecarga associada de discriminação e segregação,têm muita dificuldade de um acolhimento adequadoem grupos tão heterogêneos e grandes.

Isso pode ser comprovado pela experiênciaque se teve no plano internacional e no Brasil,particularmente na primeira fase da reformapsiquiátrica brasileira, na década de 1980, em que o

modelo inspirador era o da psiquiatria preventiva deinspiração norte-americana . A prioridade foi dadaa equipes e serviços ambulatoriais lotados na rededa atenção básica, acreditando-se que ela iria ser

capaz de acolher a pessoa com de TMS, diminuindoa demanda para o cuidado hospitalar especializado.O que aconteceu foi que estas equipes acabaramacolhendo a demanda de pessoas com TMS, ea clientela com TMG acabou seguindo o mesmo

circuito direto até a internação hospitalar. Emoutras palavras, precisamos também de umametodologia mais diretamente dirigida e capaz deum acolhimento mais intensivo, que ofereça umacontinência de médio e longo prazos às PTMS na

comunidade, como uma estratégia de continuidadedo processo de reforma psiquiátrica no país.

b) O processo de recuperação para as PTMS éextremamente complexo e multidimensional, envolvendo

uma variedade de temas e desafios e um processo longode experimentação cotidiana e de troca de experiências: 

A experiência internacional de grupos de ajuda esuporte mútuos revela que há uma ampla lista detemas e questões que são muito importantes parase lidar melhor com o cotidiano das PTMS e seusfamiliares. Os grupos dirigidos especificamentepara eles é que possibilitam a ambos desenvolveruma melhor capacidade de trocar suas experiências,discutir as estratégias de lidar com os desafios nodia a dia e sistematizá-los gradualmente. Esta lista de temas típicos dos grupos para PTMS foi incluídaem outro local deste manual, mas, para efeitode facilitar sua avaliação na ótica da presentediscussão, vale a pena recolocá-la aqui:

- relatos abertos dos membros do grupo sobre aexperiência pessoal de convivência com o transtornomental, sobre seus desafios e as estratégias decomo lidar com eles;

- coisas e eventos da vida mais comuns que causamansiedade e estresse, e que podem ser evitados, oucomo criar estratégias para lidar com eles;

- sentimentos, sintomas e sinais mais comuns queindicam a proximidade de uma crise ou que a pessoadeve procurar ajuda imediata;

- formas de lidar com os sintomas no dia a dia,ao alcance das pessoas (exemplo: deixar de fazercoisas que causam ansiedade e fazer mais coisasque dão paz, como caminhadas, pescar, soltar pipa,ir dançar, ir ao cinema, visitar amigos etc.);

- Plano de Crise;

- os cuidados necessários durante e após ainternação psiquiátrica, por parte da própria pessoa,seus familiares, amigos e companheiros de grupo;

- boas formas de suporte e de tratamento, emserviços sociais, de saúde e saúde mental dequalidade disponíveis na região;

- recursos culturais, musicais, artísticos, sociais,

esportivos, religiosos, comunitários e de lazer

disponíveis na região e a experiência de convivercom eles;

- como lidar com e avaliar os diferentes tipos detratamento em saúde mental;

- como lidar com a medicação psiquiátrica: ajustedos remédios, da dosagem, dos efeitos colateraisetc.;

- como lidar com os serviços de saúde mental, comseus psiquiatras e demais profissionais, bem como

com os serviços de saúde em geral; como avaliar

o momento de tomar decisões mais difíceis, comomudar de profissional ou de serviço;

- bons cuidados com a saúde física: alimentação,atividades físicas e terapêuticas, sono, prevenção eacompanhamento de doenças crônicas etc.;

- a experiência de buscar uma atividade laborativa

e de trabalho, capacitação e treinamento para otrabalho;

- os vários tipos de família e formas de viver sozinho,e a experiência de moradia; alternativas e serviçosde moradia na região;

- a experiência de lidar com drogas lícitas (bebidasalcoólicas, café, cigarro etc.) e ilícitas;

- como lidar com o preconceito e a discriminaçãocontra o portador de transtorno mental;

- direitos dos portadores de transtorno mental nasociedade e junto a serviços e órgãos públicos;

- os direitos civis do portador de transtorno mental:o que é e como lidar com a incapacidade civil,

tutela, imputabilidade (não responsabilidade porcrimes) etc.;

- a luta política por serviços e por uma política desaúde mental na sociedade; a reforma psiquiátrica ea luta antimanicomial; a participação nos conselhos

de política social e de saúde;

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- como difundir a luta pelos direitos dos portadoresde transtorno mental: educação política, materiaise formas de educação popular em saúde e saúdemental etc.;

- a luta pelos direitos civis, políticos e sociais e aaliança com outros movimentos sociais populares,partidos políticos, ONGs, intelectuais e profissionaisengajados etc.

Como se pode depreender a partir desta lista, asPTMS e os seus familiares requerem um espaçopróprio e específico de troca de experiências e de

sistematização de suas estratégias de lidar com otranstorno no cotidiano.

Além disso, hoje, a maioria dos CAPS já instaladosestá com sua capacidade de acolhimentopraticamente esgotada, ao mesmo tempo emque mostra uma tendência para a cristalizaçãoe a continuidade da dependência da clientelaem relação aos serviços, sem demonstrar umaboa capacidade de reinserir sua clientela maisefetivamente na comunidade. Neste sentido, osgrupos de ajuda e suporte mútuos significam umaalternativa de acolhimento fora dos serviços,em locais de reuniões na própria comunidade,estimulando a autonomização e a independênciados usuários e familiares em relação aos serviços,desafogando-os e aumentando sua capacidade deassistência para novos usuários.

c) Uma abordagem inteiramente capaz de acolhere dar continência a todas as especificidades edesafios próprios das PTMS e dos familiares requergrupos diferenciados de ajuda mútua de usuários ede familiares, o que não ocorre na TC .

Nossa experiência em grupos de ajuda mútua defamiliares demonstra que, na presença da PTMS,

os familiares e cuidadores mais diretos se sentemimpossibilitados de falarem de seus sentimentos etemores mais profundos: o medo da agressividadeda PTMS; o peso do cuidado em termos financeiros,de tempo de cuidar, de renúncia a projetos de vidapelo cuidador principal; os sintomas e estressesgerados pelo cuidado contínuo; o desejo eventualde que a PTMS morra e pudesse dar um alíviona responsabilidade interminável de cuidado; ostemores de que após a morte do cuidador a únicaalternativa será a internação da PTMS etc. Estessentimentos e receios precisam ser reconhecidos,expressos e eventualmente despotencializados

de sua enorme energia psíquica original, para adiminuição da angústia e do estresse gerado pelocuidado contínuo e para a construção de alternativasmais leves e socializadas de cuidado. Assim, osgrupos de TC, pelo fato de reunirem usuários efamiliares em uma mesma reunião, impossibilitaminteiramente este processo.

De forma similar, os usuários têm uma gama enormede reclamações e uma visão muito própria de suasdificuldades familiares. Os agentes comunitáriosde saúde (ACS) conhecem muito bem isso em suasvisitas domiciliares, quando o ambiente não permiteescutar cada uma das partes em separado, o quegeralmente provoca um conflito de visões muitodiferenciadas, entre a que é apresentada pelofamiliar e a que é expressa pela PTMS, às vezesgerando acusações recíprocas e aumento de tensãoentre eles.

Assim, o enfrentamento das diferenças e conflitos,com toda a sua intensidade, pode até ser feito emconjunto, em processos similares ao que acontecenas terapias familiares, mas isso requer a presençade um profissional muito bem capacitado e emposição de destaque e poder para lidar com estenível mais elevado de tensão e conflito e comuma enorme carga de material desconhecido einconsciente geralmente mobilizado, bem como de

um setting   muito protegido que garanta a plenaexpressão dos participantes. Assim, a experiênciainternacional demonstra que qualquer abordagemcomunitária e leiga exige necessariamente,pelo menos nos grupos de ajuda mútua, umagrupalização separada de usuários e de familiares.Isso entretanto não significa negar a possibilidadeou mesmo a necessidade de reuniões eventuais deajuda mútua de um segmento em que se convidauma liderança mais avançada do outro segmento,para troca de experiências, bem como desconhecerque os grupos e projetos de suporte mútuo devemser predominantemente conjuntos.

5. Desafios adicionais e algumas indicaçõespara o processo de inserção dos grupos deajuda e suporte mútuos na rede de atençãobásica em saúde

Nas discussões sobre este manual com profissionaise gestores de programas de saúde mental e daatenção básica, vários temas e desafios adicionaisvêm emergindo e merecendo nossa atenção. Seriaimpossível abordar todos eles neste espaço, masgostaríamos de nos deter rapidamente pelos menosnaquelas questões que consideramos como asprincipais e mais desafiadoras:

a) A importância central de se identificar fontes definanciamento e recursos apropriados para a criação

da bolsas, bem como para a seleção, a capacitaçãoe a supervisão permanente dos facilitadores, nostrês níveis de governo :

Este nos parece o maior desafio imediato para opresente projeto, e exigirá dos gestores um enormeinvestimento em discussão e negociação para seidentificar os recursos, para processar a seleção e

a capacitação adequada dos facilitadores. Contudo,as atuais dificuldades para se gerar novas linhasde pagamento de pessoal nos governos municipaistem demonstrado que, no Brasil, a expansão de umprojeto deste tipo dependerá da montagem de umprograma especial do Ministério da Saúde, comeditais específicos, para se repassar aos municípiosinteressados os recursos necessários para aimplantação deste programa a nível local.

b) A importância de se avaliar a rede de atenção emsaúde mental e as suas demandas mais prioritárias

em cada município, para decidir sobre o exatomomento de induzir o presente projeto :

Há vários municípios no país cuja rede de saúdemental é ainda muito precária, com falta ouprecariedade em termos de número adequado deprofissionais, serviços, instalações físicas, itensde custeio e alimentação, transporte etc. Em geral,nestes municípios, as prioridades serão outras, enão propriamente a implementação imediata dopresente projeto. Entretanto, há outros em quea rede foi implantada há mais tempo e está hojemais bem aparelhada, com equipes e lideranças deusuários e familiares mais motivadas e estimuladaspela militância antimanicomial. Nestes municípios,sem dúvida alguma, este projeto pode representaruma prioridade fundamental.

c) A importância do profissional de saúde mental doNASF para a implementação do projeto :

No atual momento, as equipes do NASF estãosendo montadas em todo o país, necessariamentecom pelo menos um profissional de saúde mental.Este deverá ser plenamente capacitado para atuarno presente projeto, como apoiador permanente,

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227226 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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podendo assumir as posições de facilitadortemporário onde não haja a dupla de lideranças jáprontas para assumir o trabalho; como supervisordos facilitadores; e como gerenciador mais geral doprojeto no seu território.

d) O cuidado necessário para não desestimular osagentes comunitários de saúde (ACS) em relaçãoao trabalho em saúde mental, descarregando seusencargos para o facilitador inserido no território :

Atualmente, em boa parte da rede de atençãobásica no Brasil, a agenda de trabalho dos ACScobre uma vasta lista de questões de saúde, e estesestão acumulados de trabalho e muito cansados.Além disso, geralmente ganham salário mínimo ouapenas um pouco mais, com uma carga semanal detrabalho de 40 horas. Neste contexto, a inserção defacilitadores usuários e familiares no território podeinduzir a falsa impressão aos ACS de que poderiamdeixar suas tarefas e atribuições no campo da saúdemental nas mãos dos facilitadores recém chegados.Para prevenir isso, pensamos que alguns medidasserão extremamente necessárias:

- estabelecer tarefas muito bem definidas ediferenciadas para os ACS e os facilitadores, sendoque estes últimos devem se centrar na ofertados grupos de ajuda mútua e, mais tarde, nasiniciativas de suporte mútuo e outras estratégias de

empoderamento deles resultantes;- discutir a possibilidade de que, pelo menosinicialmente, a bolsa dos facilitadores tenhamum diferencial financeiro a menos em relação aoganho dos ACS, para reiterar-lhes de que têmresponsabilidades muito mais amplas na atenção àsaúde mental no território em foco;

- enfatizar que os usuários facilitadores têm suas

dificuldades estruturais, pois precisam continuareles mesmos seu tratamento, e têm limitaçõesgeradas pelo próprio transtorno, que os impossibilitade terem uma carga horária e de trabalho no mesmonível que os ACS. Da mesma forma, os familiaresfacilitadores mantêm suas responsabilidades decuidar da PTMS em sua própria família.

Até o presente momento, com apenas umaexperiência recente de implementação de bolsas detrabalho realizada na cidade do Rio de Janeiro, éimpossível fazer qualquer recomendação definitivasobre o limite máximo de carga horária ou sobre

o número ideal de grupos a serem facilitados porsemana por cada dupla de usuários ou familiares.Contudo, nossa intuição hoje vai no sentido de quese deve iniciar o projeto com apenas um gruposemanal, para que os novos facilitadores ganhemconfiança e segurança, e que a expansão gradualda carga de trabalho não deva exceder a marca de 3grupos semanais.

e) Estratégias para lidar com a segregação e avergonha em relação ao transtorno mental severoe à participação nas reuniões no processo demobilização e de formação dos grupos :

Os PTMG e seus familiares em geral têmconstrangimentos em se apresentar como tais,além de serem objeto de discriminação por parteda comunidade. Além disso, em algumas favelas, a

violência e o silêncio induzidos pelo tráfico de drogaspode dificultar a mobilização de interessados. Paraisso, é possível pensar nas seguintes alternativas:

- o início das atividades pode se dar através de convitenas igrejas e reuniões comunitárias para palestras deesclarecimento sobre temas da saúde mental em geral,nas quais se convida a todos, de forma indiscriminada;

- formas adicionais de convite podem ser feitasnas visitas domiciliares, nas demais atividades eparticularmente no atendimento ambulatorial narede básica de saúde;

- nos convites, chamar a atenção para a solidão e oisolamento das PTMS e de seus cuidadores, e daí aimportância da busca de apoio, de conhecimento eda troca de experiências proprcionada pelos gruposde ajuda mútua;

- enfatizar o fato dos grupos garantirem o segredosobre os assuntos e sobre as pessoas quefrequentam as reuniões;

- em algumas áreas, o projeto pode ser iniciadojunto ou com a clientela dos CAPS, que estãomais acostumados com reuniões, e geralmentesem problemas graves com a discriminação ousegregação pela comunidade.

f) As previsíveis dificuldades geradas pelaassociação dos problemas de saúde mental com oabuso de drogas e com a violência social :

Nos bairros populares e nas favelas, sabemosque os problemas de saúde mental emergem hojecada vez mais associados ao abuso de drogas, àconvivência com a violência diária na vida urbanaou comunitária local, ou mesmo na própria família.A atual difusão do crack em praticamente todo oterritório brasileiro vem deteriorando esta situação.

Em relação ao abuso de drogas , é preciso terclaro que a metodologia aqui apresentada paragrupos de ajuda mútua não tem como lidar comos inúmeros desafios trazidos por aquelas pessoasem que o abuso de drogas ou a abstinênciagerada pela falta delas constitui o problema maisurgente. Elas apresentam processos e sintomassomáticos agudos que exigem cuidados médicosimediatos, bem como os constantes mecanismos

de racionalização   (justificativas bem montadas doponto de vista lógico e racional) e de denegação  (desconhecimento ou completa negação de eventosocorridos durante o uso mais intenso da droga)utilizados não podem ser confrontados nos gruposque estamos propondo. Assim, estas pessoas, nesteestágio do enfrentamento do abuso, bem comoseus familiares, devem ser encaminhadas para osserviços especializados para abuso de drogas, oupara os grupos de Alcoólicos ou Narcótico Anônimos.Nos estágios mais avançados da recuperação,estas pessoas podem ter superado esta fase deenfrentamento agudo com a droga, ou conseguido

fazer um uso mais funcional, menos impulsivo eprejudicial dela, e podem então querer investir notratamento de seus problemas pessoais de saúdemental. Nesta etapa, se for o caso de transtornosseveros, que constituem a prioridade para os nossosgrupos, a participação nos grupos de ajuda mútuaé possível e pode ser efetivamente útil para estaspessoas, e geralmente não apresenta riscos para osdemais participantes.

Já em relação aos problemas gerados pelaconvivência ou presença próxima da violência , épreciso tomar alguns cuidados importantes, e nestesentido podemos fazer as s eguintes recomendaçõesiniciais para se lidar com eles nos grupos:

- em primeiro lugar, os facilitadores devem ter claroque não são heróis salvadores das pessoas ou dacomunidade, e que se trata de problemas complexos

que devem ser abordados com muito cuidado;- o registro de queixa nas delegacias ou a denúnciaaberta à polícia devem ser realizados apenas emcasos muito graves e urgentes, em que há riscossérios para a segurança das pessoas e em que osdemais recursos de mediação foram esgotados, esempre após um cuidadoso exame da situação comajuda dos profissionais apoiadores de saúde mental,

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

229228 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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ou da assistência social e de saúde. Estes cuidadossão imprescindíveis particularmente quando há riscosde retaliação ou de se fomentar a ação de traficantes,milícias ou de outros grupos de marginais locais, quemuitas vezes detêm o controle do território;

- nas reuniões, os facilitadores devem buscaresclarecer e estimular a avaliação de todos osaspectos e detalhes da situação, antes de qualquerrecomendação de ação;

- nos casos menos graves e urgentes, é semprenecessário valorizar as experiências prévias e osrecursos que a própria pessoa já possui para lidar

com tais situações ou para buscar orientação(por exemplo, através de vínculos e contatoscom familiares e pessoas mais experientes e dereferência na comunidade);

- é também importante valorizar a experiênciaanterior dos demais participantes, perguntando sejá viveram situações similares, como enfrentaram asituação ou que sugestões fariam para a pessoa emfoco; em caso de não haver experiência prévia, podese propor a discussão e a pesquisa de todos até apróxima reunião, quando o tema pode ser retomadocom mais subsídios, desde que resguardando osigilo e os dados que possam gerar a identificaçãodas pessoas envolvidas ou a ação indesejada deoutros membros e grupos da comunidade;

- ainda é possível sugerir uma próxima reuniãotemática, para melhor discutir o assunto, podendoou não convidar pessoas ou profissionais maiscapazes de orientar o grupo sobre o problema.

Esta são apenas algumas recomendaçõesmais gerais, pois é impossível indicar osencaminhamentos mais adequados sem conheceros detalhes e particularidades de cada situação.

6. Considerações finais

No momento de concluir este texto, é importantelembrar que nesta fase de implantação de uma novaabordagem, o importante não é a quantidade degrupos criados, mas a qualidade de um númeromais reduzido de experiências piloto, quedevem ser acompanhadas e supervisionadascom todo cuidado. Neste etapa, é importanteassegurar a nossa capacidade de monitorá-las, defazer correções de rumo, de realizar as adaptaçõeslocais e as mudanças mais gerais que forem

necessárias em sua metodologia, para assegurarbons resultados e a possibilidade de se ter umbom efeito demonstrativo e persuasivo  deexperiências bem sucedidas.

Neste processo, temos certeza de que novosdesafios irão imergir na implementação dos gruposem qualquer um dos ambientes de inserção narede de saúde e saúde mental, mas acreditamosque na atenção básica em saúde podemos ter umnúmero maior de perguntas e problemas, dado lidarcom uma dinâmica social muito mais variada ecomplexa, e com um leque de responsabilidades jábastante amplo. Por outro lado, em nossos contatosiniciais com os ACS, o projeto têm mobilizado umforte interesse, na medida em que eles pressentemo enorme potencial de cuidado e suporte que elepoderá proporcionar para os usuários e familiares,sem necessariamente aumentar significativamentea sua carga direta de trabalho.

De qualquer modo, esperamos, por parte detodos os leitores interessados, novas e variadascontribuições e sugestões para vencer os desafiose promover o aperfeiçoamento desta metodologia.As questões podem ser enviadas através de nossocontato indicado no final da carta de apresentaçãodeste manual, e desde já agradecemos todas asiniciativas neste sentido.

Referências

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Site da internet

www.abratecom.org.br

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TABELA 1

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “ARROZ COM FEIJÃO”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

  A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especialdos novos membros

A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ousem dinâmica de grupo

A) Acolhimento- Regras da reunião(10 a 15 minutos)

A3 – Dinâmica simples de quebra-gelo (opcional)

- Estratégia para a descontraçãodo grupo, através de umadinâmica

A4 – Exposição das regras básicasda Reunião (obrigatório em casosde pessoas novas na reunião)

- Contrato para o funcionamentoda reunião

B) Relatos e trocasde experiências(cerca de 1 hora)

- Os participantes são livrespara fazer perguntas, relatarepisódios de sua históriapessoal, suas vivências eemoções, vitórias e conquistasalcançadas, estratégias beme/ou malsucedidas

- Relato livre deexperiências

C) Síntese reflexivae emocional dosdepoimentos (15minutos)

- Término do momento dosdepoimentos e resumo dasprincipais lições aprendidas,as conclusões, as sugestões e

propostas tiradas no decorrer dadiscussão

- Fixar os principais ganhos dareunião, mostrando a importânciado grupo, estimulando no gruposua continuidade e mobilização

emocional para garantir apresença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais,encerramento econfraternização(15 min.)

- Espaço para notícias de interessegeral, encaminhamentos sociaise administrativos do grupo eelaboração do planejamento dasatividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns;- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo;- Confraternização com lanche,musicas e poesias

TABELA 2

REUNIÃO AJUDA MÚTUA TIPO “TEMA ESPECÍFICO SEM CONVIDADOS”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A1 – Recepção - Acolhimento geral, emespecial dos novos membros

A2 - Apresentação - Apresentação de todos comou sem dinâmica de grupo

A- Acolhimento- Regras da reunião(10 a 15 minutos)

A3 – Dinâmica simples de quebra-gelo (opcional)

- Estratégia para adescontração do grupo,através de uma dinâmica

A4 – Exposição das regras básicasda reunião (obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para ofuncionamento da reunião

B) Relato e trocade experiênciasa partir de umtema previamenteescolhido, estimuladospor uma apresentaçãorápida por umparticipante do grupodefinido anteriormente(cerca de 1 hora)

Nesta fase, acontece o relato etroca de experiências pessoais ede apoio emocional, mas a partirdo debate de um tema específicoescolhido previamente pelosparticipantes.

- “Tema específico semconvidados”

C) Síntese reflexiva daexposição e do debateocorrido (15 minutos)

- Término do momento daapresentação do tema e do debate,com o resumo das principais liçõesaprendidas, as conclusões, assugestões e propostas tiradas nodecorrer da discussão

- Fixar os principais ganhos dareunião, mostrando a importânciado grupo, estimulando no gruposua continuidade e mobilizaçãoemocional para garantir apresença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais, encerramentoe confraternização (15min.)

- Espaço para notícias de interessegeral, encaminhamentos sociaise administrativos do grupo eelaboração do planejamento dasatividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

Apêndice 1

TABELAS DE FASES DOS VÁRIOS TIPOS DE REUNIÃO

APÊNDICE APÊNDICE

235234 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

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TABELA 3

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “ARROZ COM FEIJÃO COM CONVIDADO”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

  A1 – Recepção - Acolhimento geral, emespecial dos novos membros

A2 – Apresentação - Apresentação de todos comou sem dinâmica de grupo

A) Acolhimento- Regras da reunião (10 a15 minutos)

A3 – Dinâmica simples dequebra-gelo (opcional)

- Estratégia para adescontração do grupo, atravésde uma dinâmica

A4 – Exposição das regrasbásicas da reunião (obrigatórioem casos de pessoas novas nareunião)

- Contrato para ofuncionamento da reunião

B) Relatos e trocas deexperiências a partirdo relato de usuário ouliderança externa (cercade 1 hora)

- Nesta fase, acontece aexposição da experiênciade vida por um usuárioconvidado com nível maisavançado de recuperação,seguida de debate pelosdemais membros do grupo,com trocas de experiênciase apoio emocional.

- “Arroz com feijão comconvidado”

C) Síntese reflexiva eemocional do debate edos depoimentos (15 minutos)

- Término do momento daexposição e do debate entre osmembros, com o resumo dasprincipais lições aprendidas,as conclusões, as sugestões epropostas tiradas no decorrer

da discussão

- Fixar os principais ganhosda reunião, mostrandoa importância do grupo,estimulando no grupo suacontinuidade e mobilizaçãoemocional para garantir a

presença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais, encerramento econfraternização (15 min.)

- Espaço para notíciasde interesse geral,encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo eelaboração do planejamentodas atividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

TABELA 4

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO “TROCA DE EXPERIÊNCIAS GRUPAIS A PARTIR DE RELATODE LIDERANÇA CONVIDADA”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A1 – Recepção - Acolhimento geral, emespecial dos novos membros

A2 – Apresentaçã o - A pre sen tação de todos comou sem dinâmica de grupo

A) Acolhimento

- Regras da reunião (10 a 15minutos)

A3 – Dinâmica simples de

quebra-gelo (opcional)

- Estratégia para a

descontração do grupo,através de uma dinâmica

A4 – Exposição dasregras básicas da reunião(obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para ofuncionamento da reunião

B) Trocas de experiênciasa partir do relato de umaliderança de outro grupo deajuda ou suporte mútuos(cerca de 1 hora)

- Relato e troca deexperiências grupais,a partir do convite e dorelato de uma liderançaexterna de grupo de mútuaajuda e/ou suporte mútuo

- “Troca de experiênciasgrupais a partir de relatode liderança convidada”

C) Síntese reflexiva daapresentação e do debateocorrido (15 minutos)

- Término do momento daapresentação e do debatecom as principais liçõesaprendidas, as conclusões, assugestões e propostas tiradasno decorrer da discussão

- Fixar os principais ganhosda reunião, mostrandoa importância do grupo,estimulando no grupo suacontinuidade e mobilizaçãoemocional para garantir apresença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais, encerramento econfraternização (15 min.)

- Espaço para notíciasde interesse geral,encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo eelaboração do planejamentodas atividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventoscomuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas dogrupo- Confraternização comlanche, musicas e poesias

APÊNDICE APÊNDICE

237236 MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTALMANUAL DE AJUDA E SUPORTE MÚTUOS EM SAÚDE MENTAL

8/20/2019 Manual [de] Ajuda e Suporte Mútuos Em Saúde Mental2013

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TABELA 5

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “TROCA DE EXPERIÊNCIAS DE VIDA A PARTIR DO RELATO/ REPASSE DE INFORMAÇÕES PROFISSIONAIS DE PROFISSIONAIS OU OUTRAS LIDERANÇASSOCIAIS CONVIDADAS”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A) Acolhimento- Regras da reunião (10 a15 minutos)

A1 – Recepção - Acolhimento geral, emespecial dos novos membros

A2 – Ap resen tação - Apresentação de tod os comou sem dinâmica de grupo

A3 – Dinâmica simples dequebra-gelo (opcional)

- Estratégia para adescontração do grupo, atravésde uma dinâmica

A4 – Exposição dasregras básicas da reunião(obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para ofuncionamento da reunião

B) Trocas de experiênciasa partir do relato de umprofissional ou liderançade não usuário convidados(cerca de 1 hora)

- Relato/explanação etroca de experiências devida, a partir da exposiçãode um convidado sobretema relevante 

- Troca de experiências devida a partir da exposiçãode um convidado “amigo”do grupo de ajuda mútua- Espaço de informação

C) Síntese reflexiva daapresentação e do debateocorrido (15 minutos)

Término do momentoda apresentação e dodebate com as principaisinformações aprendidas, asconclusões, as sugestões epropostas tiradas no decorrer

da discussão

- Resumo do novo saber- Fixar os principais ganhosda reunião, mostrandoa importância do grupo,estimulando no grupo suacontinuidade e mobilização

emocional para garantir apresença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais, encerramento econfraternização (15 min.)

- Espaço para notíciasde interesse geral,encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo eelaboração do planejamentodas atividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

TABELA 6

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO “ESPAÇO PARA ESTUDO E DEBATE SEM CONVIDADOS”

 FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A1 – Recepção - Acolhimento geral, emespecial dos novos membros

A2 – Apresentaçã o - A pre sen tação de todos comou sem dinâmica de grupo

A) Acolhimento- Regras da reunião (10 a 15minutos)

A3 – Dinâmica simples dequebra-gelo (opcional)

- Estratégia para adescontração do grupo, atravésde uma dinâmica

A4 – Exposição dasregras básicas da reunião(obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para ofuncionamento da reunião

B) Debate e troca deexperiências a partir deestudo de textos escolhidospreviamente (cerca de 1hora)

- Reunião para estudoe discussão de texto oupublicação específica

- Espaço para estudo edebate sem convidados

C) Síntese reflexiva dodebate suscitado peloestudo dos textos ( 15minutos)

- Término do momentodo debate suscitado peloestudo de texto específicoentre os membros do grupo,depoimentos e resumodas principais aspectosaprendidos, as conclusões, assugestões e propostas tiradasno decorrer da discussão.

- Resumo do novo saber- Fixar os principais ganhosda reunião, mostrandoa importância do grupo,estimulando no grupo suacontinuidade e mobilizaçãoemocional para garantir apresença na reunião seguinte

D) Encaminhamentossociais, encerramento econfraternização (15 min.)

- Espaço para notíciasde interesse geral,encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo eelaboração do planejamentodas atividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

APÊNDICE APÊNDICE

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TABELA 7

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO: “ENCONTRO C OM MATERIAL DE AUDIOVISUAL COM OUSEM CONVIDADOS”

FASES DA R EUNIÃO DESC RIÇÃO / ETAPAS PALAV RAS-C HAV E

A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especial dosnovos membros

A2 – Apr esentação - Apresent aç ão de todos com ou semdinâmica de grupo

  A)Acolhimento

- Regras da reunião(10 a 15 minutos)

A3 – Dinâmica simples de

quebra-gelo (opcional)

- Estratégia para a descontração do

grupo, através de uma dinâmica

A4 – Exposição dasregras básicas da reunião(obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para o funcionamento dareunião

B) Debate e troca deexperiências apósapresentação defilmes (cerca de 1hora)

- Reunião para assistira filmes relevantes parao grupo, previamenteescolhidos, seguido dedebate

- Encontro com material deaudiovisual com ou semconvidados

C) Síntese reflexivado debate suscitadopelo filme (15minutos)

- Término do momento dodebate após a exibição dofilme

- Resumo do novo saber- Fixar os principais ganhos dareunião, mostrando a importânciado grupo, estimulando no grupo suacontinuidade e mobilização emocionalpara garantir a presença na reuniãoseguinte

D) Encaminhamentossociais,encerramento econfraternização (15min.)

- Espaço para notíciasde interesse geral,encaminhamentos sociais eadministrativos do grupo eelaboração do planejamentodas atividades futuras

- Datas comemorativas, aniversários eeventos comuns- Planejamentos da próxima reunião edas tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

TABELA 8

REUNIÃO DE DISCUSSÃO TEMÁTICA E PROPOSIÇÃO DE OUTRAS INICIATIVAS DE AJUDA ESUPORTE MÚTUOS

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especialdos novos membros

A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ousem dinâmica de grupo

A) Acolhimento

- Regras da reunião(10 a 15 minutos)

A3 – Dinâmica simples de quebra-

gelo (opcional)

- Estratégia para a descontração

do grupo, através de umadinâmica

A4 – Exposição das regras básicasda reunião (obrigatório em casosde pessoas novas na reunião)

- Contrato para o funcionamentoda reunião

B) Debate em tornode perspectivas desuporte mútuo (cercade 1 hora)

- Reuniões para discussãode temas que levem ainiciativas em direçõescomo: necessidades comunsdos participantes, direitos,iniciativas de luta, projetosde trabalho e moradia, entreoutros

- Transição entre ajudamútua e suporte mútuo (cominiciativas em horáriosdiferentes das reuniões deajuda mútua)

C) Síntese reflexivadas principaispropostas desuporte-mútuoveiculadas nareunião (15 minutos)

- Término do momento do debateem torno das propostas desuporte mútuo levantadas, como convite para outras reuniõesde organização das atividades ouprojetos.

- Fixar os principais ganhos dareunião, mostrando a importânciado grupo, estimulando no gruposua continuidade e mobilizaçãopara garantir a presença nareunião seguinte

D) Encaminhamentossociais,encerramentoe confraternização(15 min.)

- Espaço para notícias deinteresse geral, encaminhamentossociais e administrativos do grupoe elaboração do planejamento dasatividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

APÊNDICE APÊNDICE

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TABELA 9

REUNIÃO DE SUPORTE MÚTUO DO TIPO: “ATIVIDADE CONJUNTA DE LAZER, TURISMO EESPORTE”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE

A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especialdos novos membros

A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ousem dinâmica de grupo

A) Acolhimento- Regras da reunião

(10 a 15 minutos)

A3 – Dinâmica simples de quebra-gelo (opcional)

- Estratégia para a descontraçãodo grupo, através de uma

dinâmicaA4 – Exposição das regras básicasda Reunião (obrigatório em casos depessoas novas na reunião)

- Contrato para o funcionamentoda reunião

B) Conversaentre os membrosdo grupo para aorganização de umaatividade conjunta(cerca de1 hora)

- Organização entre osmembros do grupo de atividadesconjuntas, como: irem juntos acinema, jogos esportivos, festas,eventos públicos, viagens deférias, entre outras, se preciso,buscando apoio de serviços eprogramas de saúde mental ououtras organizações sociais- Aberta para a participaçãode pessoas portadoras ou não detranstorno mental.

- Encontro do grupo paracombinar atividadesculturais e de lazer

C) Síntese reflexivadas principaispropostas desuporte-mútuoveiculadas nareunião (15 minutos)

- Término do momento daconversa em torno das propostas desuporte mútuo levantadas, com aopção por uma das atividades- Divisão de tarefas

- Fixar os principais ganhos dareunião, mostrando a importânciado grupo, estimulando no gruposua continuidade e mobilizaçãopara garantir a presença nareunião seguinte

D) Encaminhamentossociais,encerramento econfraternização (15min.)

- Espaço para notícias de interessegeral, encaminhamentos sociaise administrativos do grupo eelaboração do planejamento dasatividades futuras

- Datas comemorativas,aniversários e eventos comuns- Planejamentos da próximareunião e das tarefas do grupo- Confraternização com lanche,musicas e poesias

APÊNDICE APÊNDICE

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Apêndice 2

PLANO E CARTÃO DE CRISE

O “Plano de Crise” constitui um conjunto deinformações importantes para auxiliar profissionaise amigos a tomarem as iniciativas necessárias parao bem-estar da pessoa, em caso de surgimentode uma crise mental. Além disso, estabelece asprovidências que a pessoa avalia como importantese necessárias para que sua vida não se desorganize,identificando a(s) pessoa(s) de confiança quepoderão tomá-las. Ele é preenchido quando a

pessoa está bem e lúcida, e deve ser discutido juntocom o(s) profissional(is) mais próximo(s) e com a(s)pessoa(s) de confiança, e deverá ficar guardado noserviço no qual a pessoa frequenta regularmente.

Por sua vez, o “Cartão de Crise”, apresentadoabaixo, tem apenas poucos dados, mas anuncia ondese encontra o plano de crise, para informações maisdetalhadas. O cartão deve ser levado o tempo todo

I) Plano de Crise holandês

A declaração neste cartão foi por mim executada de livre vontade. Queira proceder com discrição econfidencialidade quando fizer uso dos dados aqui apresentados.

Área de residência:

O meu nome:

Endereço (não incluído na proposta brasileira):

Telefone:

Data de nascimento:

Plano de saúde:

Número do plano de saúde:

1. De que forma ocorre uma crise no meu caso?

- acontece algo que me faz sentir confuso ou que me faz sentir pressionado.

- durmo mal: troco o dia pela noite.

- alimento-me menos.

- ouço vozes que me abordam.

- isolo-me, não atendo o telefone nem abro a porta de casa.

- causo ferimentos a mim próprio.

- sou verbalmente agressivo.

2. Como devo ser tratado numa situação de crise?

- não me toquem. Se i sso for necessário, avisem-me antes de o fazerem.

- prefiro ter uma pessoa de contato fixa.

- telefonem à minha pessoa de contato e peçam que venha ter comigo: a sua presença faz-

me sentir mais calmo.

- sou grande, (e por i sso) pareço forte e perigoso, mas nunca fui violento; não é necessário

 que me tentem dominar, uma abordagem baseada na cooperação funciona melhor comigo.

pela pessoa, junto aos documentos pessoais. Emcaso de se estar em um município que já implantouo Cartão SUS, o cartão de crise pode ser inseridonele, devendo informar em código reconhecível

pelo sistema a condição de pessoa com transtornomental e a existência do Plano de Crise.

A melhor forma de discutir e implementar oPlano e o Cartão de Crise é fazer ao mesmotempo a discussão do “Plano pessoal de açãopara o bem-estar e a recuperação”, que estáno Apêndice 1 da cartilha. Na verdade, o plano e o

cartão são medidas para situações mais extremas,

mas antes de chegar até elas é possível tomarmuitas iniciativas para prevenir e atenuar umaeventual piora da qualidade de nossas vidas, que

pode levar mais tarde a uma crise.

O primeiro exemplo de Plano de Crise inseridoem cartão de identificação apresentado abaixo é

utilizado na Holanda, e está disponível no site daBasisberaad Rijnmond (www.crisiskaart-rijnmond.nl), uma importante organização de defesa dosdireitos dos usuários do campo da saúde mental. Atradução para o português foi realizada por Claudia

de Freitas, doutoranda da Universidade de Utrechtde origem portuguesa e que em 2007 realizoupesquisa para sua tese no Rio de Janeiro, sob aorientação do Prof. Eduardo Vasconcelos.

A segunda versão que expomos a seguir é a mesmaque consta da cartilha dos participantes integradaa este manual. Constitui uma primeira adaptação

para o contexto brasileiro, sem qualquer pretensão

de ser definitiva, sistematizada pela equipe queestá desenvolvendo este projeto de forma pioneirano Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, na cidadedo mesmo nome. Recomendamos fortemente que

cada projeto de implantação deva avaliar as suasnecessidades e fazer as modificações consideradasnecessárias, para sintetizar o modelo mais adequadopara sua realidade.

APÊNDICE APÊNDICE

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3. Problemas de saúde:

- dores de cabeça.

Medicação usada:

- Fevarin: 2 x 1 comprimidos de 100mg às 10h e 17h.

- Seresta: 1 comprimido de 10mg quando necessário.

Medicação a usar no caso de internação:

- tenho experiências negativas com Aldol e por isso prefiro outro tipo de medicação. G ostaria que me fossedada informação relativa aos efeitos colaterais e qualquer outro tipo de informação relevante. Se eu ficarconfuso, poderão consultar a minha pessoa de contato.

4. Entrego-lhe este cartão porque posso passar por uma situação de crise. Se desdobrar estecartão, poderá encontrar mais dados sobre as providências a tomar.

Os dados, desejos e acordos não poderão ser alterados por apenas uma das partes. Este cartão estáassociado a um Plano de Crise que pode ser consultado através do: [contato da(s) pessoa(s)].

5. Em caso de necessidade de internação:

- gostaria de ser internado em: (contato do serviço).

Na eventualidade de uma crise psiquiátrica, queira contatar a seguinte pessoa de contato:

(nome e endereço/telefone da pessoa).

6. Tarefas da pessoa de contato:

- verificar se a minha casa ficou bem fechada, porque, por vezes, quando estou confuso,

esqueço-me de a fechar.

- telefonar para o meu trabalho e informar sobre a minha ausência.

- tomar as providências necessárias para que eu não perca o meu subsídio por motivo de doença.

- receber o correio e regar as plantas.

7. Dados do médico de família:

(nome e endereço/telefone).

Dados dos cuidadores/técnicos:

(nome e endereço/telefone).

8. Todas as pessoas aqui mencionadas estão informadas sobre o meu Plano de Crise.

Em caso de crise, permito através deste cartão que requisitem e consultem o meu Plano de Crise através de:(contato do serviço/entidade onde este se encontra disponível).

Localidade, data

Assinatura:

II) Primeira versão de um Plano de Crise brasileiro (Rio de Janeiro)

A) Plano de Crise

Serviço em que o plano está registrado:

Área de residência: Área programática de saúde (AP):

1) Dados pessoais:

Nome:

Endereço:

Telefone:

Celular:

E-mail:

Data de nascimento :

Carteira de identidade: nº: Órgão expedidor:

APÊNDICE APÊNDICE

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Plano de saúde:

 

2) Dados sobre saúde, saúde mental e crise:

2.1) No meu caso, a crise costuma ocorrer:

( ) quando algo me faz sentir confuso.

( ) quando sou pressionado ou tensionado.

( ) quando durmo mal ou quando troco o dia pela noite.

( ) quando estou me alimentando menos.

( ) quando estou ouvindo vozes que me abordam.

( ) quando me i solo dos ambientes, ou deixo de atender ao telefone, ou nem abro a porta de casa.

( ) quando faço ferimentos em mim mesmo.

( ) quando fico agressivo verbalmente por coisas simples ou sem motivo real.

( ) quando fico agitado, angustiado.

( ) quando falo compulsivamente.

( ) quando perco a memória.

( ) quando gasto além da conta.

( ) quando gritam muito comigo.

( ) quando sofro violência ou segregação.

( ) OU:

2.2) Como gosto de ser tratado em situação de crise :

( ) não me toque, converse comigo.

( ) avise ________________________________ (nome e tel.) , ele(a) me faz sentir mais calmo(a).

( ) não s ou violento, uma conduta baseada na cooperação funciona melhor comigo.

( ) me deixe quieto(a).

( ) OU :

2.3) Problemas de saúde e medicações que costumo usar :

( ) dor de cabeça.

( ) diabetes.

( ) hipertensão.

( ) epilepsia.

( ) asma (lembrar que pode ser confundido com ataque de ansiedade).

( ) lúpus.

( ) intoxicação por álcool e/ou droga.

( ) OU:

- Tipo sanguíneo:

- Alergias:

- Doenças existentes:

- Limitações e deficiências:

- Medicações clínicas diárias e doses:

- Medicamentos e substâncias que não posso tomar: (ex.: anti-histamínico, remédios para enjoos, tiposespecíficos de analgésicos).

2.4) Medicação psiquiátrica que costumo usar atualmente e dosagem (data de registro: ___/___/____):

2.5) Medicações psiquiátricas que não posso usar e seus efeitos danosos:

2.6) Em caso de necessidade de internação:

a) Serviço de referência e contatos:

b) Profissionais de referência e contatos:

c) Nos casos de não internação, gostaria de ficar com: (nome e local da pessoa de contato).

APÊNDICE APÊNDICE

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d) Em caso de uma eventual crise psiquiátrica, queira entrar em contato com:

Nome:

Endereço:

Telefones:

Nome:

Endereço:

Telefones:

Nome:

Endereço:

Telefones:

e) Tarefas da pessoa de contato (marcar e, ou acrescentar):

( ) avisar a minha família e apoiá-la.

( ) avisar as demais pessoas mais íntimas (amigos, colegas, vizinhos, outros parentes), sugerindo que venhamme visitar.

( ) verificar se a minha casa ficou bem fechada, pois quando não estou bem, às vezes, esqueço dessa tarefa.

( ) telefonar para o meu trabalho e informar sobre a minha ausência: (nome e telefone).

( ) tomar as providências necessárias para que eu não perca os meus direitos sociais e previdenciários pormotivo de doença.

( ) pagar minhas c ontas e depois combinamos como irei pagá-las.

( ) receber minha correspondência, regar minhas plantas e cuidar de meu animal de estimação.

( ) outra:

f) Informações clínicas:

- Tipo sanguíneo:

- Alergias:

- Doenças existentes:

- Medicações clínicas diárias e doses:

Todas as pessoas aqui mencionadas foram informadas e autorizaram que seus nomes e forma de contatofossem citadas no meu Plano de Crise. E, em caso de crise, permito que consultem o meu Plano de Crise.

Data:

Assinatura:

1.7.2) Cartão de Crise:

 

O Cartão de Crise tem como objetivo ajudar ao seu portador em situação de crise, facilitando aqueles que oacolhem a fazer o melhor encaminhamento, com mais rapidez e eficiência, e para isto é fundamental estarguardado junto ao documento de identidade do usuário, no dia a dia. O cartão está associado ao Plano deCrise que está disponível no serviço de saúde mental de referência do portador.

Nome: AP:

Telefones:

Profissionais de referência e contato:

Serviço de referência: (endereço e telefone).

Pessoa(s) de contato no serviço: (nome e telefone).

Medicação psiquiátrica de uso regular:

Medicação psiquiátrica contraindicada no meu caso:

Para maiores informações, recorrer ao Plano de Crise disponível no serviço de referência acima.

APÊNDICE APÊNDICE

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Apêndice 3

RELATÓRIO MENSAL DE ATIVIDADE DE GRUPO DE AJUDA MÚTUA

Instruções:

1) Preencher um relatório mensal para cada grupo regular de ajuda mútua.

2) A tabela abaixo, com espaços reduzidos, é apenas uma base para indicar o tipo de informação requerida. Assim, use o verso dafolha para complementar registros, numerando-os de acordo.

3) Emita 5 vias ou cópias: uma para cada facilitador; uma para o apoiador local, outra para o supervisor, e uma para o gestor doprograma.

4) Em caso de comunicado para tomada de providências, anexe este relatório, mesmo que incompleto, e preencha um outro completo

no final do mês.

Dupla:

Local de reunião:

Dia da semana e horário:

Apoiador e serviço de base:

Data reuniãoN.opartic.

E ve nt os e sp ec ia is ? O bse rva çõ es e p ro vid ên cia s a t om ar

1a) 1b)

2a) 2b)

3a) 3b)

4a) 4b)

Apêndice 4

COMUNICADO PARA TOMADA DE PROVIDÊNCIAS

Instruções:

1) Em caso de qualquer evento ou fenômeno que exija providência imediata do apoiador local, do supervisor

ou do gestor , preencha este comunicado e o entregue imediatamente ao apoiador local, avaliando o ocorrido

e discutindo as providências cabíveis.

2) Emita 3 vias ou cópias: uma para cada facilitador, e a terceira para o apoiador local.

3) Anexe a este comunicado o Relatório Mensal de Atividades do respectivo grupo, mesmo que o mês não

tenha finalizado.

4) Acompanhe o desenvolvimento das providências a serem tomadas com as pessoas envolvidas.

À ____________________________________ (Nome do profissional)

____________________________________ (Nome do Serviço Local de Referência)

Vimos informar e pedir providências acerca do grupo de ajuda mútua ............... ..................... ........................

......................................................................................................................., realizado no local ........................

....................................................................................., nas (dia de semana) ................................., de (horário)

................... às ................. h.

Apêndice 4

COMUNICADO PARA TOMADA DE PROVIDÊNCIAS

Instruções:

1) Em caso de qualquer evento ou fenômeno que exija providência imediata do apoiador local, do supervisor ou do gestor , preenchaeste comunicado e o entregue imediatamente ao apoiador local, avaliando o ocorrido e discutindo as providências cabíveis.

2) Emita 3 vias ou cópias: uma para cada facilitador, e a terceira para o apoiador local.

3) Anexe a este comunicado o Relatório Mensal de Atividades do respectivo grupo, mesmo que o mês não tenha finalizado.

4) Acompanhe o desenvolvimento das providências a serem tomadas com as pessoas envolvidas.

 

À

(Nome do profissional)

(Nome do Serviço Local de Referência)

 Vimos informar e pedir providências acerca do grupo de ajuda mútua ............... ................... .. ................. .............................................................................................................................., realizado no local ............................................................................................................., nas (dia de semana) ................................., de(horário) ................... às ................. h.

Constatamos que neste grupo está acontecendo:

( ) não preenchimento do número ideal mínimode participantes;

( ) diminuição significativa e crescente do número de participantes;

( ) variação muito intensa do número de participantes, com idas e vindas dos membros;

( ) outro(s) fenômeno(s). Explicar:

Nossa(s) hipótese(s) para o que está ocorrendo é ( são) a(s) seguinte(s):

Solicitamos um contato imediato para discutirmos o ocorrido e temarmos providências cabíveis para a superação dos

problemas indicados.

  (município) / / (data).

Assinatura e nome dos bolsistas:

APÊNDICE APÊNDICE

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Constatamos que neste grupo está acontecendo:

( ) não preenchimento do número ideal mínimo de participantes;

( ) diminuição significativa e crescente do numero de participantes;

( ) variação muito intensa no número de participantes, com idas e vindas dos membros;

( ) outro(s) fenômeno(s). Explicar:

Nossa(s) hipótese(s) para o que está ocorrendo é(são) a(s) seguinte(s):

Solicitamos um contato imediato para discutirmos o ocorrido e tomarmos providências cabíveis para a superação dos

problemas indicados.

........................................., / / .

  (município) (data)

Assinatura e nome dos bolsistas:

ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES

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