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MANIFESTAÇÕES DE PROFESSORAS SOBRE ESCOLHAS METODOLÓGICAS PARA ALFABETIZAÇÃO EM ESCOLAS DA REDE DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Tamara Fresia Mantovani de Oliveira PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo A questão dos métodos de ensino na alfabetização escolar se insere no contexto da relação entre cultura e escola, cujas dificuldades não são características das escolas públicas brasileiras somente, nem são específicas de nossa época, o que indica a necessidade de compreender essa relação em perspectiva histórica. Não é possível discutir essa questão sem considerar o duplo papel que a alfabetização vem desempenhando na história da educação escolar: ao mesmo tempo em que tem um papel decisivo na distribuição e na legitimação da cultura simbolicamente dominante possui a função de selecionar quem deve ou não deve ter acesso à cultura socialmente valorizada. O debate educacional na alfabetização vem sendo, historicamente, marcado pela centralidade metodológica; no entanto, a partir das últimas décadas do século XX, observa-se um crescente processo de crescente problematização sobre os métodos para a alfabetização escolar, um dos nossos problemas cruciais. A presente pesquisa buscou uma aproximação junto às professoras alfabetizadoras acerca das possibilidades de utilização metodológica no ensino em alfabetização. Na elaboração do artigo, tomei como base teórica contribuições de estudiosos dedicados à análise da centralidade metodológica no debate sobre alfabetização escolar, os conceitos sobre processos de desinvenção e desmetodização da alfabetização escolar e sobre os conceitos de ecletismo e diversidade metodológica. Neste artigo abordo as manifestações obtidas por meio de um instrumento utilizado com onze professoras de quatro escolas da rede de ensino do município de São Paulo. Foram utilizados questionários com escala simples permitindo a escolha de resposta das professoras de modo positivo ou negativo em face de onze expressões relativas a métodos de alfabetização .Os resultados permitiram obter indícios dos efeitos do esforço de construção da hegemonia do construtivismo no campo educacional, ao mesmo tempo indícios da disposição das professoras para o ecletismo e para a diversidade metodológicas. Palavras chave: ensino fundamental; alfabetização; métodos de alfabetização Introdução A pesquisa apresentada neste artigo foi desenvolvida com professoras alfabetizadoras da rede do município de São Paulo buscando focalizar suas manifestações acerca da presença ou ausência de diferentes orientações metodológicas em sua prática docente, no contexto de uma politica educacional empenhada na construção da hegemonia do construtivismo nestas escolas. Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 02777

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MANIFESTAÇÕES DE PROFESSORAS SOBRE ESCOLHAS

METODOLÓGICAS PARA ALFABETIZAÇÃO EM ESCOLAS DA REDE DO

MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Tamara Fresia Mantovani de Oliveira

PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo

A questão dos métodos de ensino na alfabetização escolar se insere no contexto da

relação entre cultura e escola, cujas dificuldades não são características das escolas

públicas brasileiras somente, nem são específicas de nossa época, o que indica a

necessidade de compreender essa relação em perspectiva histórica. Não é possível discutir

essa questão sem considerar o duplo papel que a alfabetização vem desempenhando na

história da educação escolar: ao mesmo tempo em que tem um papel decisivo na

distribuição e na legitimação da cultura simbolicamente dominante possui a função de

selecionar quem deve ou não deve ter acesso à cultura socialmente valorizada. O debate

educacional na alfabetização vem sendo, historicamente, marcado pela centralidade

metodológica; no entanto, a partir das últimas décadas do século XX, observa-se um

crescente processo de crescente problematização sobre os métodos para a alfabetização

escolar, um dos nossos problemas cruciais. A presente pesquisa buscou uma aproximação

junto às professoras alfabetizadoras acerca das possibilidades de utilização metodológica

no ensino em alfabetização. Na elaboração do artigo, tomei como base teórica

contribuições de estudiosos dedicados à análise da centralidade metodológica no debate

sobre alfabetização escolar, os conceitos sobre processos de desinvenção e desmetodização

da alfabetização escolar e sobre os conceitos de ecletismo e diversidade metodológica.

Neste artigo abordo as manifestações obtidas por meio de um instrumento utilizado com

onze professoras de quatro escolas da rede de ensino do município de São Paulo. Foram

utilizados questionários com escala simples permitindo a escolha de resposta das

professoras de modo positivo ou negativo em face de onze expressões relativas a métodos

de alfabetização .Os resultados permitiram obter indícios dos efeitos do esforço de

construção da hegemonia do construtivismo no campo educacional, ao mesmo tempo

indícios da disposição das professoras para o ecletismo e para a diversidade metodológicas.

Palavras chave: ensino fundamental; alfabetização; métodos de alfabetização

Introdução

A pesquisa apresentada neste artigo foi desenvolvida com professoras

alfabetizadoras da rede do município de São Paulo buscando focalizar suas manifestações

acerca da presença ou ausência de diferentes orientações metodológicas em sua prática

docente, no contexto de uma politica educacional empenhada na construção da hegemonia

do construtivismo nestas escolas.

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A questão dos métodos de ensino na alfabetização escolar se insere no contexto da

relação entre cultura e escola, cujas dificuldades não são características das escolas

públicas brasileiras somente, nem são específicas de nossa época, o que indica a

necessidade de compreender essa relação em perspectiva histórica.

Não é possível discutir essa questão sem considerar o duplo papel que a

alfabetização vem desempenhando na história da educação escolar: ao mesmo tempo em

que tem um papel decisivo na distribuição e na legitimação da cultura simbolicamente

dominante possui a função de selecionar quem deve ou não deve ter acesso à cultura

socialmente valorizada (WILLIAMS, 2000; BOURDIEU, 1982).

Desse modo, o debate educacional na alfabetização vem sendo, historicamente,

marcado pela busca do método mais eficaz para possibilitar a ampliação do acesso à

cultura escrita, um dos nossos problemas educacionais cruciais. Ao mesmo tempo, esse

debate tem sido acompanhado por um discurso modernizador que vem impondo a

desqualificação de práticas educacionais tradicionais como ultrapassadas e autoritárias

(MORTATTI, 2000a, 2000b, BRASLAVSKY, 1971; CARVALHO, 2000).

No entanto, uma aproximação rumo às práticas de alfabetização no contexto escolar

possibilita identificar muitos indícios de que os métodos de ensino permanecem, ainda que

muitas vezes de forma não discutida e não explicitada no caldo de cultura de escola.

Com o objetivo de contribuir para a compreensão da utilização de possibilidades

metodológicas na alfabetização escolar, esta pesquisa buscou uma aproximação rumo a aos

indícios desta utilização, por meio das manifestações das professoras alfabetizadoras

consultadas.

Apresentam-se, assim, alguns conceitos básicos, de modo sintético, nessa área, para depois

relatar a coleta das informações e análise dos dados.

Bases teóricas

Para o desenvolvimento desta pesquisa tomei como base estudos voltados à

abordagem histórica da centralidade metodológica no debate sobre alfabetização escolar e

a busca de desmetodização da alfabetização que predominou nesse debate, no momento

contemporâneo.

A primeira modalidade de método sintético indicada por Braslavsky (1971, p.46)

como um marco inicial da consolidação da relação entre método e estudo de leitura foi o

método alfabético, ainda na antiguidade. O uso exclusivo do método sintético estendeu-se

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até meados do século XVIII quando surgiram, no cenário educacional, propostas de

inovações, como os métodos fonéticos e silábicos, empregando-se sílabas como unidades-

chave, as quais eram depois combinadas em palavras e frases, buscando-se assim resolver

dificuldades que criavam a inexatidão da pronúncia de consoantes isoladas

(BRASLAVKY, 1971, p.55)

Das críticas aos métodos da marcha sintética nasceram as reflexões que

fundamentam a abordagem analítica provocando uma ruptura com a concepção vigente,

priorizando a leitura em detrimento da decifração e o sentido em detrimento do som do

texto, e opondo-se à ideia da necessidade que os alunos primeiro dominassem um razoável

capital de palavras apreendidas globalmente para, numa etapa bem posterior, proceder à

análise dessas palavras.

Os debates entre os métodos sintéticos e analíticos culminaram numa mistura entre

eles, com o nascimento do método eclético ou analítico-sintético, ou seja, um “método

sintético com ponto de partida global” (BRASLAVSKY, 1971, p. 65).

A crítica à busca de um método seguro de alfabetização, segundo a mesma autora,

começou a ser feita com a emergência da Escola Nova, momento radical de

questionamento da Pedagogia Tradicional, tendo como base estudos que concebiam a

criança como “sujeito de aprendizagem”, deslocando o foco do ensino para a

aprendizagem.

Os estudos dessa autora possibilitaram compreender os conceitos dos métodos de

marcha sintética e analítica de forma contextualizada, e a polarização entre eles como uma

polarização entre o tradicional, ultrapassado, e o novo, científico. A pesquisadora mostrou

também como, dos embates entre esses métodos, nasceu o método analítico-sintético ou

misto, cuja supremacia teórica teria sido reconhecida por uma pesquisa internacional

realizada pela UNESCO coordenada por William Gray em 1995, e a obra Problemas e

Métodos no Ensino de Leitura, escrita em 1962, teria ratificado tal supremacia

(BRASLAVSKY, 1971, p.49)

No Brasil, no entanto, a centralidade metodológica na alfabetização escolar se

estenderia até aproximadamente o final da década de 1970, quando teve inicio o processo

caracterizado por Mortatti (2006, p. 10) como “construtivismo e desmetodização”, em que

as novas urgências políticas e sociais, que demandavam novas propostas no campo

educacional apontaram para a busca de resposta para o fracasso escolar no pensamento

construtivista.

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Com o deslocamento das discussões dos métodos de ensino para o processo de

aprendizagem da criança, a mudança apontava não para um novo método e sim para uma

revolução conceitual, que desencadeou um crescente abandono das teorias e práticas

tradicionais, com o fenômeno da desmetodização do processo de alfabetização e o

questionamento do seu principal instrumento, a cartilha.

O documento do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Brasil, 2007) retoma,

no momento contemporâneo, o significado dessa supremacia, mostrando como os métodos

ecléticos buscaram superar os problemas dos métodos sintéticos e dos métodos analíticos.

Segundo esse documento, no caso dos métodos sintéticos, era necessário enfrentar a

descontextualização da escrita, reconsiderando seus usos e funções, pois quando o foco

recai somente nas letras, sílabas e palavras sem considerar a unidade de sentido do texto, a

escrita tende a esvaziar suas funções comunicativas. Já no caso dos métodos analíticos, era

necessário enfrentar a falta de orientação para a decodificação e a falta de entendimento de

que as palavras são compostas de unidades menores como sílaba, letra ou sufixos. Na

direção do diálogo entre as marchas sintéticas e analíticas, os métodos mistos buscavam

tanto propiciar a compreensão do sentido, a rapidez da fluência da leitura e produção da

escrita, como a aprendizagem da decodificação, que possibilita a compreensão do principio

de organização do sistema ortográfico da escrita e confere ao aluno a possibilidade de ler e

escrever palavras novas, tendo como referência a identificação de relações convencionais e

arbitrárias entre fonemas e grafemas.

Nessa mesma direção histórica, Mortatti (2000b) permitiu focalizar aspectos dessa

história no Brasil e compreender como entre nós a disputa entre os defensores dos métodos

de alfabetização sintético, analítico e eclético, esteve presente desde as origens da instrução

pública no final do século XIX, até meados do século XX, situação que há décadas vem

impondo a desqualificação das práticas tradicionais como “ultrapassadas” e “autoritárias”,

contribuindo para deslocamento do foco do ensino para a aprendizagem do aluno.

A contribuição de Soares (2004) possibilitou ampliar essa compreensão trazendo o

que chama de desinvenção da alfabetização, que estaria relacionada a uma tendência

presente nas últimas décadas, oriunda de uma interpretação equivocada da perspectiva

construtivista, que teria resultado num descompromisso da escola para com a questão da

aquisição dos códigos de leitura e escrita pelos alunos, parte importante do processo de

alfabetização. Com tais contribuições, ficou clara, portanto, a necessidade da reinvenção da

alfabetização, com uma didática da alfabetização, que possibilitem a instrução direta,

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explícita e sistemática do sistema da escrita. Também ficou clara a necessidade de que a

escola ensine, por meio de métodos de ensino diversos, as relações entre o sistema

fonológico e o sistema alfabético. Segundo a autora, educar é um processo de transformar

pessoas, portanto, um processo dirigido a objetivos, que exige discutir os melhores

caminhos e essa é uma discussão metodológica.

A pesquisa, seus procedimentos de coleta e de análise, alguns resultados.

Na busca por compreender a força das tradições presentes na alfabetização escolar,

elaborei um instrumento de pesquisa que possibilitasse, entre outras coisas, identificar

indícios da presença de métodos pedagógicos no ensino ministrado por essas professoras

alfabetizadoras consultadas durante o processo de alfabetização.

Para elaborar o instrumento mencionado, realizei um estudo exploratório junto a

duas professoras alfabetizadoras, ao longo de um semestre, em duas classes de 1º ano do

ensino fundamental de duas escolas públicas de São Paulo. Busquei também selecionar

uma proposta pedagógica que possibilitasse uma ampliação das reflexões que o estudo

exploratório possibilitava. O critério para essa seleção foi o fato de que a mesma abarcava

diversas tradições metodológicas para a alfabetização escolar.

Desse modo, optei por tomar como referência fundamental as orientações

presentes no documento da proposta para alfabetização da Secretaria de Educação de

Minas Gerais elaborada pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), da

Faculdade de Educação da Universidade de Minas Gerais, por trazerem informações

pertinentes para dialogar com as práticas. Tal opção se deveu ao fato de que tais

orientações foram construídas em parceria com professores da rede pública e ao fato de

terem como pressuposto a diversidade metodológica bem como a necessidade de dialogar

com as práticas escolares e pedagógicas construídas historicamente.

O contato com esse material contribuiu para que, ao longo das observações das

aulas das professoras alfabetizadores, eu pudesse delinear aspectos das dimensões

envolvidas no processo de alfabetização, que até então me pareciam bastante abstratos.

Tendo como referência as reflexões e análises desenvolvidas no estudo

exploratório, à luz dos estudos sobre alfabetização escolar, planejei um instrumento que

me permitisse refletir sobre a presença da utilização de diferentes possibilidades

metodológicas no contexto do esforço de construção de hegemonia do construtivismo.

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Com base nesses pressupostos e nessas orientações foi construído um questionário amplo

com escala de três alternativas de resposta, sendo uma a possibilidade de não resposta.

Diante de expressões relativas a métodos de alfabetização as professoras se manifestaram

sobre sua concordância ou discordância em face de suas ações reais.

Para a apresentação das informações obtidas com o instrumento, procurei indicar as

respostas das professoras alfabetizadoras em quadro que permitisse visualizar suas

escolhas. Assim, relacionei cada professora alfabetizadora das onze participantes a uma

sequência de “P”de1a11. Portanto, na descrição das informações pesquisadas as

professoras posteriormente serão identificadas pelo “P” relacionado a cada uma delas.

Os dados coletados foram sistematizados no Quadro 1 anexo. Para este texto foram

selecionadas onze expressões do total, selecionadas por serem as questões específicas

sobre “métodos”, objeto deste texto. As professoras foram situadas nas diferentes caselas

do Quadro 1 segundo o critério a seguir exposto.

Cada casela do quadro representa o cruzamento da informação entre uma expressão

sobre métodos e a afirmativa, negativa ou ausência de resposta escolhida pela professora

representada por seu respectivo código. Na 1ª coluna, à esquerda, estão as onze expressões

relativas aos métodos de alfabetização. Na 2ª coluna estão as respostas afirmativas

relativas ao que elas fazem e na 3ª coluna estão as respostas negativas face às ações que

elas desempenham

Alguns resultados

Antes de abordar os dados apresentados propriamente, considero necessário

lembrar que, sendo o material empírico desta pesquisa o que se pode considerar como um

conjunto de manifestações dos professores alfabetizadores, este não pode ser tratado como

“espelho da realidade” desses professores ou das escolas em que trabalham. Como alerta

Gimeno (1999) há diferenças significativas entre o que dizem os professores que devem

ensinar, aquilo que eles próprios dizem que ensinam e aquilo que os alunos realmente

aprendem. Para ele, esses três “espelhos” trazem algo sobre a realidade, sendo que algumas

imagens são mais fictícias do que outras. No caso dos dados relatados, em que as questões

foram previamente formuladas para que as professoras manifestassem ou não sua

identificação com cada uma delas, a possibilidade de imagens fictícias é ainda maior.

Entretanto, como elas não foram identificadas, o anonimato sempre se afigura como

possibilidade maior de poder dizer algo mais próximo do real.

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No que se refere aos dados presentes no Quadro 1, num primeiro momento, chama

atenção o fato de todas as professoras afirmarem utilizar o método construtivista ou

interacionista (9ª expressão cruzada com resposta afirmativa) e oito professoras afirmarem

utilizar o método sócio interacionista (10º linha cruzada com resposta afirmativa da

segunda coluna), expressão que vem sendo incorporada ao discurso pedagógico como um

prolongamento do método construtivista. Todas as professoras que responderam afirmaram

não utilizar os métodos tradicional ou sintético (conforme 3ª coluna, 8ª linha); oito

professoras afirmaram não utilizar o método fonético, e cinco professoras indicaram

utilizar o método global em suas práticas cotidianas (2ª coluna, 6ª linha).

Entendo que esses dados gerais dão indícios do alcance do esforço de construção de

hegemonia do construtivismo no campo educacional, nas últimas décadas, uma vez que as

professoras afirmam maciçamente que utilizam os método construtivista e o método

interacionista que vem sendo incorporado ao discurso pedagógico como um

prolongamento do construtivismo. Ao mesmo tempo quase unanimidade na negação em

relação aos métodos considerados tradicionais, sugere uma resistência das professoras para

se identificarem com métodos considerados tradicionais, pois ainda que as nomenclaturas

“sintético” e “fonético” estejam em desuso no cenário educacional, as descrições que os

acompanhavam nos instrumentos colaboraram para que as professoras compreendessem o

significado do que querem dizer. Provavelmente foi por esta descrição que quase metade

das professoras afirmou que utiliza o método global, que tem visíveis afinidades com o

método construtivista.

A tendência para uma identificação com orientações metodológicas consideradas

modernas e a rejeição em relação a orientações consideradas ultrapassadas, em certo

sentido, eram esperadas, já que, no contexto que estamos discutindo, a proposta

construtivista vem sendo apresentada a essas professoras como caminho de salvação para

os problemas da educação escolar. O poder mágico que lhe é atribuído não se deve

somente à sua origem acadêmica: emergindo como a única abordagem que considera as

necessidades de aprendizagem e os conhecimentos prévios do aluno, sua defesa passa a

representar, no contexto escolar, um compromisso ético e politico para com a possível

emancipação dos alunos.

No entanto, outras manifestações presentes no mesmo quadro indicam que o o

alcance do esforço de convencimento construtivista não se sustentou quando as professoras

consultadas se viram diante de outras formas de indagar suas escolhas metodológicas.

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Como se pode observar no Quadro 1, na 1ª linha e 3ª coluna, dez professoras

discordaram da ideia de não se apoiarem em métodos de ensino, por considerarem

qualquer interferência no ritmo de aprendizagem arbitrária e prejudicial ao processo de

construção do conhecimento pelo aluno, ou seja, significa que elas, de fato, se apoiam, pois

a dupla negação, pela lógica, é a afirmação. Ao mesmo tempo, na segunda expressão

presente na segunda linha, oito delas (e mais a P3) reafirmaram que sim (conforme 2ª

coluna) embora manifestando que não seguiam um método único, eram ecléticas,

procurando em cada método o que é útil para o seu trabalho, deixando de lado o que não

ajuda seu trabalho. Mantiveram a negativa, nessa linha, duas professoras da1ª linha: a P6 e

a P9 presentes na 3ª coluna.

Nessas duas questões ficou claro que a maior parte das professoras valoriza o

ecletismo metodológico inclinação que parece ser reforçada pelo fato de oito professoras

terem afirmado que utilizavam o método Paulo Freire, que é uma variação de método

misto ou analítico-sintético, conforme respostas dadas à 11ª expressão em relação à 2ª

coluna.

Alguns dados sugerem que essa busca pelo ecletismo metodológico pode estar

relacionada a certa autonomia das professoras consultadas para recorrer às orientações

metodológicas nos embates do ensino na alfabetização escolar . Considero como pistas

nessa direção o fato de nove professoras concordarem que desenvolveram suas próprias

metodologias para enfrentar os problemas que encontram em suas práticas cotidianas

(conforme se verifica na 3ª expressão em relação à 2ª coluna) e o fato de nove professoras (

as da 5ª expressão e 2ª coluna) concordarem que não existe método de alfabetização

incorreto, mas práticas de alfabetização que poder ser melhores ou piores.

Cabe ressaltar algumas incongruências que precisam ser discutidas. É possível que

as professores consultadas utilizem, ao mesmo tempo, o método construtivista, o método

sócio interacionista e o método Paulo Freire? É possível que elas estejam sempre

atualizadas em relação aos diferentes métodos de ensino, num cenário educacional em que

os métodos de ensino vêm sendo considerados ultrapassados e que somente o

construtivismo, mais conhecido como um antimétodo, vem sendo a única alternativa

metodológica considerada legítima para a educação escolar?

Considero que as respostas das professoras indicaram, mais do que o modo como

pensam e praticam as escolhas metodológicas, sua disposição para realizar essas escolhas.

E considero que essas disposições vão ao encontro de perspectivas que defendem o

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ecletismo e a diversidade metodológica, como os estudos de Braslavky (1971) e Soares

(1998, 2003, 2004) e dos estudos que fundamentaram a proposta de alfabetização do

CEALE.

Sabemos que são bem remotas as possibilidades de que estas professoras tenham

tido, nas formações iniciais e continuadas, acesso a estudos dessas pesquisadoras ou outros

estudos nesse gênero.

Desse modo, uma pergunta se torna inevitável: o que teria possibilitado que em

suas manifestações, apesar de uma visível identificação com a perspectiva construtivista

dominante no campo educacional, as professoras consultadas indicassem uma maior

aproximação com a perspectiva de estudos que valorizam o ecletismo e a diversidade

metodológica, aos quais não tiveram acesso?

Entendo que para compreender essa questão é importante lembrar, com Gimeno

(1999), que as motivações ou intenções que movem as ações dos professores não são

estáticas ou imutáveis e que não podem ser compreendidas fora do contexto do jogo das

interações em que se dão as relações humanas. As transformações observadas no decorrer

das interações, que muitas vezes as desviam do seu sentido original, podem estar, em

certos momentos, relacionadas à incoerência pessoal, mas também à descoberta de novos

significados no caminho, conforme a percepção do que vai ocorrendo em um mundo de

interrelações complexas. Impulsionariam o professor muitas vezes em direção ao

enfrentamento de situações incertas e desconhecidas, que o leva a elaborar e modificar as

rotinas diárias, experimentar novas hipóteses de trabalho, novas técnicas, instrumentos e

materiais pedagógicos, inventando estratégias, procedimentos, tarefas, recursos.

No ideário pedagógico atual a não filiação ao construtivismo representar um

retrocesso a um passado autoritário e não o diálogo com as tradições historicamente

construídas nas práticas educativas. Ao mesmo tempo, no momento em que se viam diante

alternativas mais abrangentes, as professoras, provavelmente motivadas pelo mesmo

compromisso com a aprendizagem efetiva de seus alunos, escolheram as alternativas mais

abrangentes, que abarcavam um número maior de possibilidades para assegurar a

aprendizagem dos alunos.

Considerações finais

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A proposta construtivista, pelo modo como foi implementada na educação pública

durante décadas, contribui para reproduzir a lógica que rege a organização do trabalho

escolar, separando supostos teóricos de supostos práticos e impondo um caminho único,

como o caminho de salvação para a alfabetização escolar que se apresenta problemática há

décadas.

Ao reforçar a presença marcante do salvacionismo científico moderno que busca

esvaziar a escola no que diz respeito às tradições e aos saberes populares, o esforço de

convencimento construtivista vem contribuindo, nas ultimas décadas, para a imposição de

limitações à diversidade e ao pluralismo de ideias necessários à reflexão e a produção de

alternativas para o enfrentamento dos problemas vividos no ensino na alfabetização

escolar. Reconhecer a importância da diversidade no debate sobre alfabetização e do

diálogo com o professor para a construção dos caminhos para o ensino, não implica a

sacralização de suas ações e práticas, porém, indica a necessidade de assegurar as

condições para que o professor possa beber na fonte do legado deixado pelas gerações

anteriores, a partir do diálogo com as diferentes tradições metodológicas que sobrevivem

na escola.

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WILLIAMS, R.2000. Cultura. São Paulo. Paz e Terra.

Anexos

QUADRO 1.Manifestações de professoras em face de expressões sobre métodos de

alfabetização

Expressões abordando métodos

de alfabetização Professoras que consideraram

corresponder à sua prática Professoras que consideraram Não não corresponder à sua prática

Não respondeu

1)Não me apóio em

métodos de ensino pois

considero

qualquer interferência no

ritmo de aprendizagem

arbitrária e prejudicial ao

P1, P2, P4, P5, P6, P7, P8,

P9, P10, P11 P3

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

EdUECE- Livro 102787

Page 12: MANIFESTAÇÕES DE PROFESSORAS SOBRE ESCOLHAS METODOLÓGICAS ... MANIFESTAÇÕES DE... · O critério para essa seleção foi o fato de que a mesma abarcava diversas tradições metodológicas

processo de construção do

conhecimento pelo aluno 2)Não sigo um método único, sou eclética e procuro “pegar” de

cada método o que é útil para o

meu trabalho, deixando de lado o que não me ajuda

P1, P2, P3, P4, P5, P7, P8, P10, P11

P6, P9

3)Desenvolvi minha própria

metodologia para poder dar conta dos problemas que encontro na

prática diária

P1, P2, P3, P4, P5, P7, P8, P9, P10

P6, P11

4)Estou sempre atualizada sobre

os diferentes métodos de ensino para poder aplicá-los na sala de

aula, nas atividades com os

alunos

P1, P2, P3, P4, P6, P7, P9, P8, P11

P

5, P10

5)Não existe, em minha opinião,

um método de alfabetização

incorreto, mas as práticas de alfabetização podem ser

melhores ou piores para o

aprendizado do aluno

P1, P2, P3, P4, P5, P7, P9,

P10, P11 P6 P8

6)Trabalho com o “método global” ou “analítico”, pois

entendo que é na presença de

frases ou palavras que a criança espontaneamente / naturalmente

irá se alfabetizar

P1, P4, P7, P8, P9,

P2, P5, P6, P10, P11 P3

7)Trabalho com o método fonético ou “fônico”, ensinando

os diferentes fonemas para,

gradualmente, as crianças reconhecerem as diferentes

combinações entre os sons das

letras e identificá-las com a escrita das palavras, frases e

orações

P9, P3

P1, P2, P4, P5, P6, P7, P8,

P11

P3

8)Trabalho com o método alfabético tradicional ou

“sintético”, ensino aos alunos as

letras e suas combinações com

exercícios e treinos de soletração

e reconhecimento das sílabas

P1, P2, P4, P5, P6, P7, P9, P10, P11

P3

9)Trabalho com o “método construtivista ou interacionista” (Piaget, Emilia Ferreiro, etc.)

P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7,

P8, P9, P10, P11

10)Trabalho com o

“método sócio-

interacionista” (Vygotsky,

Leontiev, etc.)

P1, P2, P4, P6, P7, P9, P10,

P11

P5 P3, P8

11)Trabalho com o “método

Paulo Freire”.

P1, P2, P4, P7, P8, P9, P10, P11

P5, P6 P3

Fonte: elaboração pela autora a partir das manifestações das professoras

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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