manejo de ecossistemas por pescadores: o conhecimento ... · problemas e conflitos ambientais ......

15
VII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental Rio Claro - SP, 07 a 10 de Julho de 2013 Realização: Unesp campus Rio Claro e campus Botucatu, USP Ribeirão Preto e UFSCar 1 Manejo de ecossistemas por pescadores: o conhecimento etnoecológico garante a participação? Alexandre Ferreira Lopes Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Três Rios Departamento de Ciências Administrativas e do Ambiente [email protected] Reinaldo Luiz Bozelli Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Biologia Departamento de Ecologia, Laboratório de Limnologia [email protected] Resumo: Os pescadores historicamente acumularam conhecimentos importantes para a manutenção de sua prática, que em suma representa os primórdios do manejo da lagoa de Saquarema. Atualmente a gestão da lagoa não é atribuída a esse grupo e está ligada a um espaço coletivo de participação. Esta pesquisa teve o objetivo de compreender as relações estabelecidas entre os atores sociais envolvidos no manejo desta lagoa, bem como verificar se o nível de conhecimento dos pescadores sobre a lagoa é proporcional à participação destes nas decisões sobre o manejo. Os resultados mostraram que o conhecimento dos pescadores, demonstra correspondência em vários aspectos com estudos científicos por intermédio da abordagem etnoecológica. A participação dos pescadores no manejo da lagoa está em processo, mas ainda é discreta. Deve-se buscar o fortalecimento pelos próprios pescadores e por órgãos que apresentem a esses as formas e instrumentos para o controle social e a valorização cultural. Palavras-chave: Pescadores, Participação, Etnoconhecimento. Abstract: The fishermen have accumulated over the years important knowledge to maintain their practice, which represents the beginnings of management of Saquarema lagoon. Nowadays the lagoon management is performed by a collective. This research aimed to understand the relationship between the social actors involved in managing this lagoon, as well as verify that the level of knowledge of fishermen is proportional to their participation in decisions about the management. The results reveal that fishermen's knowledge, shows in correspondence with various aspects scientific studies through ethnoecological approach. The participation of fishermen in the management of the lagoon is in process, but it stills superficial. To increase the fishermen participation they have to reach that by themselves and by organizations that come up with these forms and instruments for social control and cultural appreciation. Keywords: Fishermen, Participation and Ethnoknowledge.

Upload: buithuan

Post on 10-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

VII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental Rio Claro - SP, 07 a 10 de Julho de 2013

Realização: Unesp campus Rio Claro e campus Botucatu, USP Ribeirão Preto e UFSCar

1

Manejo de ecossistemas por pescadores: o conhecimento etnoecológico

garante a participação?

Alexandre Ferreira Lopes Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Três Rios

Departamento de Ciências Administrativas e do Ambiente

[email protected]

Reinaldo Luiz Bozelli Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Biologia

Departamento de Ecologia, Laboratório de Limnologia

[email protected]

Resumo:

Os pescadores historicamente acumularam conhecimentos importantes para a

manutenção de sua prática, que em suma representa os primórdios do manejo da lagoa

de Saquarema. Atualmente a gestão da lagoa não é atribuída a esse grupo e está ligada a

um espaço coletivo de participação. Esta pesquisa teve o objetivo de compreender as

relações estabelecidas entre os atores sociais envolvidos no manejo desta lagoa, bem

como verificar se o nível de conhecimento dos pescadores sobre a lagoa é proporcional

à participação destes nas decisões sobre o manejo. Os resultados mostraram que o

conhecimento dos pescadores, demonstra correspondência em vários aspectos com

estudos científicos por intermédio da abordagem etnoecológica. A participação dos

pescadores no manejo da lagoa está em processo, mas ainda é discreta. Deve-se buscar o

fortalecimento pelos próprios pescadores e por órgãos que apresentem a esses as formas

e instrumentos para o controle social e a valorização cultural.

Palavras-chave: Pescadores, Participação, Etnoconhecimento.

Abstract:

The fishermen have accumulated over the years important knowledge to maintain their

practice, which represents the beginnings of management of Saquarema lagoon.

Nowadays the lagoon management is performed by a collective. This research aimed to

understand the relationship between the social actors involved in managing this lagoon,

as well as verify that the level of knowledge of fishermen is proportional to their

participation in decisions about the management. The results reveal that fishermen's

knowledge, shows in correspondence with various aspects scientific studies through

ethnoecological approach. The participation of fishermen in the management of the

lagoon is in process, but it stills superficial. To increase the fishermen participation they

have to reach that by themselves and by organizations that come up with these forms

and instruments for social control and cultural appreciation.

Keywords: Fishermen, Participation and Ethnoknowledge.

2

Introdução

Problemas e conflitos ambientais

Historicamente, os seres humanos estabelecem relações sociais e por meio delas

atribuem significados à natureza (econômico, estético, sagrado, lúdico, entre outros) e

agem sobre o meio físico-natural instituindo práticas e, alterando suas propriedades,

garantem a reprodução social de sua existência. Essas relações (dos seres humanos entre

si e com o meio físico-natural) ocorrem nas diferentes esferas da vida societária

(econômica, política, religiosa, jurídica, afetiva, étnica, etc.) e assumem características

específicas decorrentes dos contextos sociais e histórico onde acontecem (Quintas,

2007). Somado a isso, quando nos defrontamos com a problemática ambiental,

verificamos quanto a nossa herança filosófica e científica é limitada, apesar da crença

em contrário. Hoje sabemos que a problemática ambiental não é exclusivamente natural

ou exclusivamente social ou cultural. O profundo fosso estabelecido entre as chamadas

ciências humanas e as da natureza mostra todo seu limite. A reflexão acerca da questão

ambiental requer contribuição de ambas, uma vez que nenhuma das ciências, mesmo

com todo o conhecimento que acumulou, dá conta da questão ambiental (Porto-

Gonçalves, 2002). Dessa maneira, ao agirem sobre um mesmo local, recurso, ou no caso

um ecossistema os atores têm diferentes compreensões de quais devem ser os

encaminhamentos para o mesmo e são nestas discordâncias que surgem os “conflitos

ambientais”.

A pesca artesanal

A pesca artesanal pode ser definida como sendo aquela em que os pescadores

autônomos, sozinhos ou em parcerias, participam diretamente da captura, usando

instrumentos relativamente simples, onde a remuneração é feita pelo sistema de

“partes”, sendo o produto destinado preponderantemente ao mercado. Da pesca retiram

a maior parte de sua renda, ainda que sazonalmente possam exercer atividades

complementares (Diegues, 1988). Os pescadores de lagoa podem ser considerados como

populações tradicionais, de acordo com algumas características propostas por Diegues

& Nogara (1994). Entre os estudos realizados com populações tradicionais, destacamos

aqueles ligados as etnociências, cujos objetivos são: compreender como esses grupos

sistematizam seus conhecimentos e se tais conhecimentos podem ser válidos para ações

de manejo dos ecossistemas em que vivem. Outra abordagem, que contribui para a

discussão, é a sociologia ambiental, que discute a validade de outras formas de

conhecimento além dos científicos e a participação de populações em questões de

manejo. Essas linhas de pesquisa possuem abordagens e origens distintas, mas podem

ser complementares.

A Lagoa de Saquarema

A lagoa de Saquarema possui uma área superficial de 21,2 km² com uma

profundidade média de 1,15 m e é composta por quatro compartimentos (Mombaça,

Jardim, Boqueirão e lagoa de Fora). A bacia de drenagem possui 215 km² (Wasserman,

2000) e está localizada próxima ao mar, separada por uma barra de areia, no município

de Saquarema. A história da lagoa está diretamente ligada ao município de Saquarema,

que tinha como principais atividades econômicas até a década de 60 a pesca, a

agricultura e a citricultura. A mudança desse quadro pode ser atribuída pela conclusão

da obra da Ponte Rio-Niterói que potencializou a vocação de Saquarema para o

veraneio. Esta mudança gerou um pulso imobiliário que provocou mudanças

3

importantes na paisagem do entorno da lagoa, passando a abrigar residências que por

sua vez despejam esgoto in natura nesse ecossistema, além do restante do esgoto de

outros distritos que também são levados principalmente à lagoa de Fora (Azevedo,

2005).

A solução paliativa para esse problema ambiental em lagoas costeiras, em geral

é a realização de uma ligação direta entre a lagoa e o mar para escoar a água poluída da

lagoa e permitir a entrada de água do mar. Tal intervenção é chamada de Abertura de

barra. Sobre a questão esta questão, Knoppers et al. (1999) afirmam que até 1920 havia

uma abertura permanente da barra mantida pelos pescadores. A abertura se tornou rara e

a lagoa passou a exibir períodos sem comunicação com o mar e as aberturas passaram a

depender basicamente do regime pluviométrico que nas estações chuvosas, geravam

pressão na barra provocando aberturas. Esse fato é ressaltado no documento do

Consórcio Intermunicipal Lagos São João:

A lagoa de Saquarema abria periodicamente sua barra junto ao Morro do

Nazareth, nos locais conhecidos como “Barra Nova” e “Barra Velha”. O

relatório do DNOS, escrito em 1934, cita que “na época das grandes chuvas, que

tombam das serras que lhe ficam ao norte, transborda, alargando as margens”. A

abertura era um processo natural que ocorria nos períodos de fortes chuvas,

quando a elevação do nível da água aumentava a pressão sobre a faixa de areia

que acabava cedendo. As correntes de marés mantinham a barra aberta por um

período relativamente curto. O funcionamento da abertura da barra teve seu

equilíbrio rompido e nos últimos anos apenas com o emprego de máquinas isto

era possível. As águas do mar, ao entrarem para lagoa de Fora pelo canal

efêmero, rapidamente misturavam-se com as águas da lagoa. (CILSJ, 2009a)

Essas mudanças provocaram alterações em aspectos físicos, variáveis abióticas e

comunidades biológicas levando a Serla (Superintendência Estadual de Rios e Lagos) a

propor e a iniciar as obras em 2004, juntamente com a prefeitura do município, para a

abertura permanente da barra da lagoa de Saquarema, conhecida como a Barra Franca.

Nesse contexto, esta pesquisa teve o objetivo de compreender as relações estabelecidas

entre os atores sociais envolvidos no manejo desta lagoa, bem como verificar se o nível

de conhecimento dos pescadores em relação ao funcionamento deste ecossistema é

proporcional à participação deste grupo nas decisões sobre o manejo.

Metodologia

Esta pesquisa foi realizada em duas fases, a primeira consistiu em caracterizar a

lagoa de Saquarema e expor as relações dos usuários da mesma, em torno do problema

ambiental destacado, a abertura permanente da barra, para tal, foi utilizada a

metodologia de estudo de caso, proposto por Quintas (2005). A segunda etapa da

pesquisa consistiu na investigação sobre o conhecimento construído pelos pescadores

em relação a esta lagoa, bem como, a investigação sobre o nível de participação dos

mesmos nas decisões sobre as questões ambientais relacionadas a esse ecossistema, para

isso, foram realizadas entrevistas semiestruturas com pescadores da colônia Z 24.

Ambos os procedimentos estão detalhados a seguir:

Estudo de Caso

A caracterização dos atores sociais e suas relações e influências perante o

conflito ambiental “aberturas de barra” nas lagoas foi realizado de acordo com a

4

proposta de “Estudo de Caso” (Quintas, 2005; 2007). Com isso, como proposto por este

autor, foram realizadas visitas, entrevistas e pesquisa documental (documentos oficiais

e/ou repercussão na imprensa) na região a estudada. Desse modo, visitas e entrevistas

foram realizadas de forma sistemática, ao longo do desenvolvimento desta pesquisa,

possibilitando acompanhar reuniões ordinárias e extraordinárias de espaços coletivos

relacionados à lagoa. Durante todos esses eventos foram produzidos diários de campo e

realizadas entrevistas livres (Mello, 1995), que se caracterizam por momentos de

conversa informais, que além de informações, geraram subsídios para a formulação do

roteiro de perguntas utilizado com pescadores na segunda fase das entrevistas, bem

como, foram essenciais para a escolha dos entrevistados.

As pesquisas documentais sobre a lagoa de Saquarema concentraram-se no

Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental da Barra Franca da

lagoa de Saquarema, somados a notas na imprensa e documentos do comitê de bacias.

Os atores sociais envolvidos diretamente foram identificados e agrupados de

acordo com sua origem institucional (estatal e não-estatal) e posteriormente

classificados segundo sua posição quanto à destinação do bem natural (cada uma das

lagoas) e a conduta de cada um desses frente ao conflito (as aberturas ou não da barra),

montando um quadro de representações. Para os quadros foram considerados somente

os atores principais envolvidos com a questão da abertura de barra; os demais foram

mencionados, mas não foi elaborada a descrição sobre posição e conduta.

Investigação sobre o conhecimento dos pescadores e o nível de participação

A obtenção dos dados que subsidiam a discussão desta etapa foi realizada

considerando os aspectos da pesquisa qualitativa, que consiste em um conjunto de

práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo. Para a obtenção dos

dados foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que apesar de apresentarem um

roteiro direcionado, permitem entre as perguntas o surgimento de informações

adicionais espontâneas (Mello, 1995). O tempo total de cada entrevista variou de 30 a

70 minutos, variando de acordo com a disposição de cada entrevistado para falar. As

entrevistas foram gravadas, totalizando 10 horas de gravação, as quais estão

armazenadas nos arquivos do laboratório de Limnologia de Universidade Federal do

Rio de Janeiro.

O contato com os pescadores foi iniciado a partir de um primeiro contato com o

então presidente da Colônia de Pescadores Z 24. Posteriormente foram entrevistados

mais dois, indicados por outros pescadores da Colônia, por serem mais experientes na

opinião deles, e por fim mais cinco, indicados pelos dois anteriores, totalizando oito

pescadores. Esse número é semelhante ao alcançado por Costa-Neto et al. (2002);

Costa-Neto (2000) e Begossi (2006) em pesquisas etnoictiológicas.

As gravações foram analisadas, considerando aspectos estritamente qualitativos,

por meio da interpretação do discurso dos entrevistados, buscando, sempre que possível,

justapor o modelo percebido (conhecimento etnoecológico) ao modelo operacional

(conhecimento científico) (Mourão & Nordi, 2003). Os pescadores entrevistados

tiveram sua identidade preservada. Dessa maneira, os pescadores foram identificados

com códigos no qual, a letra inicial representa a lagoa em que os mesmos atuam,

seguida de um número, relacionado à ordem das entrevistas. Com isso, os pescadores

serão indicados da seguinte maneira: S1, S2, S3, S4, S5, S6, S7 e S8;

5

Resultados e discussão

A lagoa e os atores sociais envolvidos na abertura de barra: Estudo de Caso

Os pescadores apoiavam a perenização do canal proposta pelo poder público,

mas apresentaram descontentamento com a forma com que esse seria feito. Após a

execução da obra surgiram outros questionamentos como é possível observar na matéria

divulgada na imprensa local em 2006. Nessa matéria consta a divulgação de uma

denúncia feita junto ao Ministério Público pelo Instituto Lagoa Prateada, e à divulgação

da formação do “Comitê Salve a Lagoa” com cerca de dez entidades contanto com

ambientalistas, surfistas e políticos que promoveu uma manifestação contra a obra. De

acordo com a matéria, a denúncia do Instituto Lagoa Prateada dizia: “Em nenhum

momento, esta obra foi ecologicamente viável, socialmente justa, desenvolvida em

bases seguras, visando harmonizar os interesses nesta sociedade.” (Pinto, 2006). Sobre a

formação do Comitê Salve a Lagoa a matéria informava:

“Uma coisa é que o que foi apresentado, outra é o que foi feito”, diz sua

assessora de Meio Ambiente, Alba Simon, para quem a Barra Franca é

equivocada. “O EIA/Rima foi feito em dois meses, com levantamentos

secundários, totalmente imprecisos quanto aos resultados da obra”, analisa ela.

"É superficial, com incertezas científicas, o que não poderia jamais acontecer

num empreendimento dessa magnitude", completa Alba, lembrando que o rio

Bacaxá ainda leva para a lagoa uma “quantidade enorme de esgotos”. Ou seja,

um investimento basilar em saneamento não foi concretizado. A Fundação

Superintendência Estadual de Rios e Lagoas – Serla, órgão gestor dos recursos

hídricos do Estado do Rio de Janeiro, afirma, por intermédio de sua Assessoria

de Comunicação, não ter conhecimento de qualquer manifestação ou de erro na

obra do canal da Barra Franca, “que tem aprovação unânime da comunidade.”

(Pinto, 2006)

Por outro lado, Azevedo (2005) afirma que o insucesso da efetivação da Barra

Franca tem sua razão ligada à execução da obra e não à proposta original contida no

EIA. “Em relação à Barra Franca, estava prevista a construção de um piso de 3 metros

de largura no topo do guia correntes que serviria como local para passeios e pescaria. O

guia corrente seguiria o contorno do costão rochoso existente, de maneira que o canal

formado tivesse largura de 80 m. Esta conformação objetivava modificar o menos

possível a forma da costa. A construção do guia correntes era essencial para duas

funções: 1) assegurar a estabilidade hidráulico-sedimentológica do canal da barra e 2)

funcionar como molhe de proteção, garantindo que durante as ressacas não houvesse

propagação de ondas de grande energia para o recinto interno, evitando danos à cidade

de Saquarema. A dragagem do novo canal proporcionaria uma área hidráulica mínima

de 160 m2. Infelizmente, o guia correntes foi construído menor que o previsto.

(Azevedo, 2005)

Com essas informações contraditórias percebemos a complexidade da proposta e

das relações estabelecidas entre os atores e, nesse momento, resgatamos o objetivo

primordial deste trabalho, revelar os principais atores e suas relações. Posteriormente a

esses eventos, obtivemos, em visitas à Colônia Z24 e a partir da leitura de atas de

reuniões do Subcomitê da Bacia Hidrográfica da Lagoa de Saquarema (CILSJ, 2009b),

a informação de que atualmente a obra está sendo revista no sentido de promover a

6

correção da primeira intervenção. A partir dessas informações formamos o quadro 1 que

demonstra como se estabelece o conflito entre os principais atores levantados:

Quadro 1: Atores sociais envolvidos com a abertura permanente da barra da lagoa Saquarema

Atores sociais Origem Posição quanto à abertura Conduta

Colônia de Pescadores Z24 Sociedade civil Defensor do uso do bem

natural para subsistência Contestadora

Instituto Lagoa Prateada Sociedade civil

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Contestadora

Comitê Salve a Lagoa Sociedade civil

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Contestadora

Ministério Público Público

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Investigadora

Prefeitura Municipal de Saquarema Público

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Geradora

Serla – Superintendência Estadual de

Rios e Lagos Público

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Geradora

Corpo técnico do EIA Privado

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Geradora

Subcomitê da Bacia Hidrográfica da

Lagoa de Saquarema Público

Defensor da destinação do

bem natural para uso

comum

Mediadora

Cabe ressaltar que, tanto nas visitas ao município quanto na pesquisa

documental, a obra da Barra Franca não apresentava grande resistência, o ponto crucial

da contestação centrava-se na condução da apreciação da proposta pela população.

Além disso, alguns pescadores explicaram que a contestação era principalmente

relacionada ao modo com que a obra estava sendo realizada, segundo eles, haveria outra

maneira de realizá-la de modo a produzir melhores resultados relacionados à pesca.

O caso analisado fez referência a um episódio pontual, mas extremamente

relevante, uma vez que, a mudança sugerida leva a alteração considerável da dinâmica

do ecossistema, e como visto, apesar de acreditarem haver outra possibilidade de

realizar a obra, esta não foi analisada, mas ao observar o quadro 1, percebemos quão era

frágil a posição contrária frente ao grupo formado por atores sociais das esferas

municipais, estaduais e pelo corpo técnico da obra.

O conhecimento dos pescadores sobre a lagoa e sua relevância para o

manejo

Algumas características da pesca e dos pescadores

Segundo dados obtidos durante as entrevistas, na Colônia Z 24 atualmente são

300 pescadores com alguma atividade ligada à lagoa. O grupo de pescadores

entrevistados tem como características em comum a pesca em lagoas costeiras e a

experiência com eventos de abertura de barra. Esses pescadores apresentam idade entre

40 e 82 anos e experiência na atividade pesqueira que varia entre 10 e 54 anos.

7

Conhecimento Etnoecológico dos pescadores

Os pescadores demonstraram conhecimento de uma série de informações a

respeito da ecologia da lagoa. Esse conhecimento foi construído principalmente pelas

práticas que a atividade pesqueira proporciona e dessa forma se diferencia do

conhecimento científico no que diz respeito a sua origem e critérios de validação.

Diante disso, e baseados em uma abordagem etnoecológica (Diegues, 2002),

apresentamos o conjunto de conhecimentos dos pescadores e discutimos suas

similaridades e divergências com o conhecimento científico disponível.

Sincronia entre as aberturas e a reprodução marinha

O conhecimento dos pescadores sobre o ciclo de vida dos peixes estuarinos

aponta para outros conceitos complexos destacados na literatura científica, como o

relatado por Harrison & Whitfield (1995) que descrevem a sincronização do ciclo

reprodutivo de espécies de peixes com aberturas sazonais de barras de areia. Nos

trechos a seguir, dois pescadores ressaltam a importância da abertura da barra,

justificando-a para além da questão pluviométrica. Nesse caso, os pescadores descrevem

a importância da abertura ser realizada no momento de reprodução das espécies

marinhas que colonizam a lagoa. Sem mencionar o período do ano, o pescador S3

destaca a importância da abertura associada à reprodução dos peixes.

O que acontecia, abria na época da Tainha que dava muita coisa, no

começo eu tinha uns 18, 20 anos e tinha muita raça de peixe. O que acontecia, o

peixe ficava preso e o mar via em cima e tapava. Nós pescava oito meses um

ano direto aqui dentro e dava muito Acará, muita Traíra, a criação toda que

entrava, criava e ficava pro povo se manter. S3

Utilizando-se de uma metáfora, que segundo Berkes et al. (1998) é um recurso

comum entre os representantes do conhecimento tradicional, o pescador se refere à

abertura de barra como “piracema”. Como a maioria dos peixes marinhos da lagoa não

completam o seu ciclo de vida nesse ecossistema, esse pescador associa o período de

reprodução dos peixes marinhos ao período de reprodução para a lagoa. Considera a

importância para a lagoa dessa interação com o ambiente marinho na época de

reprodução dos peixes. Em outras palavras, no seu entendimento, o período de

reprodução das espécies marinhas é também o período de recrutamento das lagoas.

Aspectos físico-químicos da água

Os peixes marinhos representam o foco principal dos pescadores, mas eles

também demonstram compreensão sobre outros aspectos relacionados ao ecossistema

como um todo, com relação às mudanças físicas e químicas das lagoas destacam-se os

trechos a seguir a respeito da salinidade:

Aqui nesse primeiro lago está com 35 de grau de salinidade.

Praticamente 35, igual ao mar. No Boqueirão, 30, a última pesquisa que nós

fizemos, e lá na ponta do urubu, lá na Mombaça tá 25. Faltam 10 pra chegar a

salinidade igual a do mar. S1

Hoje ela tá mais salgada, tá com mais salina. S2

8

Nos dois trechos os pescadores fazem referência à lagoa de Saquarema. O

pescador S1 menciona dados de salinidade que são corroborados por Wasserman (2000)

e Azevedo (2005). O primeiro autor demonstrou que as lagoas mais interiores

(Boqueirão e Mombaça) do complexo lagunar de Saquarema apresentam valores de

salinidade inferiores aos observados na lagoa de Fora e a segunda, afirma que após a

abertura permanente da barra a salinidade apresentada na lagoa de Fora tem valores

muito próximos ao oceano.

Conhecimento histórico da lagoa

Com relação às atividades anteriores na lagoa de Saquarema os pescadores

entrevistados afirmam que a abertura artificial da barra era feita nas épocas de cheia

pelos próprios pescadores, como é possível observar nos trechos a seguir:

A barra nossa era barra de chuva, no passado ela trabalhava com: chovia,

enchia a lagoa, aí tinha os pescadores que viam, ai dá a primeira chuva, da a

segunda. Tinha uns pescadores antigos até para trabalhar isso. Aí ia lá soltava a

água. S1

A gente só abria quando ela enchia demais, que não tinha recurso pra

água. A gente abria na enxada, na pá, pra água escoar. S3

Essas afirmações são semelhantes àquelas mencionadas por Knoppers et al.

(1999).

Desse período que tapava, dava-se muito peixe na lagoa. Porque a

criação ficava sem sair. Aí criava na lagoa. Mas também quando ficava muito

tempo sem seca, aí acabava aquele peixe a lagoa começava a (inaudível). Aí

começaram a jogar esgoto na lagoa, jogar essas coisas. Começou a vir a

mortandades de peixe. Tem até fotos de mortandade de peixe. S1

Questionado se havia algum tipo de paralisação da pesca após a abertura da

barra o pescador S1 respondeu “(...) a gente paralisava, mas era mais organização.

Agora, chegava o mês da Tainha. A gente parava 30 dias. Mas tinha Tainha, juntava

Tainha na boca da barra para entrar. Né, então a gente se programava com os

pescadores. Vamos parar? Vamos! Tem peixe pra entrar. Parava 15 dias, 20 dias”

(S1). A existência de um controle dos pescadores é corroborada por outro pescador,

como descrito nos trechos a seguir:

Quando a barra era governada pelo povo é que era assim, tinha

tranquilidade. Peixe era largado aí dentro. Camarão cinza, ele entrava pra lagoa a

maré fechava, ele crescia, se matava. Eu pesquei muito com meu irmão, de

matar 30, 40 kg, aquilo dava era dinheiro, hoje, o Camarão não vale quinze,

vinte contos. Hoje ele entra, com quinze dias não tem mais nada, porque foi tudo

embora, não cria nada aqui dentro. S3

(...) o peixe não tinha como ir embora. Entendeu bem? Então o que

acontecia, o cara, dava tempo de todo mundo pescar, 4, 5 e 6 meses arrumava

dinheiro, tem gente que tem casa boa lá dentro e vive lá hoje, até lá dentro. Já ta

com idade de cinqüenta e poucos anos. S3

9

As modificações mais marcantes na lagoa de Saquarema estão ligadas a questão

sanitária devido à urbanização (Carmouze et al. 2001) e no caso específico dessa lagoa,

também a abertura permanente da barra (Azevedo, 2005). Apesar de alguns relatos

mencionando melhorias nas questões sanitárias e no retorno de algumas espécies,

aumentando a variedade de peixes na lagoa, o argumento contra a abertura permanente

se baseia na não permanência dos indivíduos na lagoa.

A relevância do Etnoconhecimento

O conjunto de conhecimentos apresentado nos itens anteriores, pelo seu valor

histórico, exibe o que podemos chamar de relevância inata, ou como afirmam Berkes et

al. (1995) “por si próprio e pelo valor sociocultural”. Além disso, deve-se levar em

consideração que estes conhecimentos “garantem através de gerações o sustento de

populações humanas através da utilização de recursos naturais” e com um fator

indispensável a essa discussão, muitas das áreas protegidas atualmente, mantiveram-se

conservadas e com alta biodiversidade sendo habitadas e manejadas por populações

tradicionais (Diegues, 2004).

Quando analisados pelo prisma das etnociências, as informações cedidas pelos

pescadores apontam para elevada correspondência com o conhecimento científico, da

mesma maneira que observado em várias regiões do Brasil por Costa-Neto (2000);

Costa-Neto & Marques (2000); Silvano et al. (2006); Costa-Neto et al. (2002); Mourão

& Nordi (2003); Thé (2003); Silvano & Begossi (2005); Rosa et al. (2005); Mourão &

Nordi (2006); Grando (2006); Moura & Marques (2007); Ramires et al. (2007), entre

outros. Este fato confere aos pescadores, segundos esses autores, o status de parceiro

imprescindível no estudo e no manejo dos ecossistemas do qual fazem parte, como

afirmam Berkes et al. (1998).

Na verdade, dentro da etnoecologia, muitos trabalhos já apresentam resultados

práticos não só da qualidade do conhecimento de pescadores e outras populações

tradicionais, mas também do manejo compartilhado, no qual o conhecimento científico

e o tradicional contribuem para o entendimento e manejo de ecossistemas. Begossi

(2008) propõe a formulação de um terceiro sistema de conhecimento a partir da

contribuição do conhecimento científico e tradicional, considerando a partir deste

último, informações sobre a área e usos pelos locais além da ecologia e comportamento

das espécies. Outros autores propõem algo semelhante, como o manejo de fauna e

estudos de populações e ressaltam aspectos em que cada uma das formas de

conhecimento pode contribuir. No caso do conhecimento tradicional, destacam-se as

observações de longo prazo, a incorporação de grandes amostragens e os custos baixos;

já a ciência contribui oferecendo melhores testes das potenciais causas das mudanças

populacionais através de pesquisas em maiores escalas espaciais, quantificação precisa e

avaliação das mudanças onde não há populações tradicionais presentes (Moller et al.

2004). Diante desse quadro, nos reportamos à Gadgil & Berkes (1991) que propõem

repensar e reconstruir uma nova ciência para o manejo de ecossistemas, melhor

adaptada a servir as necessidades da sustentabilidade ecológica e das pessoas que

utilizam os recursos. Para fazer isso, há necessidade de conservar tanto a diversidade

biológica quanto a cultural, que estão juntas, além de conservar a diversidade das

práticas e sistemas de manejo tradicional dos recursos.

10

Participação no manejo

Considerando a realidade da lagoa de Saquarema, a participação desses atores,

detentores do conhecimento tradicional, se mostra incipiente, o que reflete a não

legitimação dessa forma de acumulação de conhecimento por parte dos gestores, que

baseiam suas decisões unicamente em resultados produzidos pelo meio científico. Isso

ocorre apesar dos pescadores demonstrarem conhecimentos necessários, histórico de

intervenções, transmissão de conhecimento para seus pares e, uma potencial capacidade

de manejo das lagoas baseados em experiências anteriores. Dessa maneira, apesar de

reconhecermos os importantes resultados e encaminhamentos propostos pelas

etnociências, fica evidenciada a necessidade de discutir a participação dos pescadores

nos espaços decisórios. A constatação da incipiente participação fica em evidência

quando confrontamos as conceituações de “participação” feitas por Loureiro (2004a;

2004b) com alguns relatos dos pescadores.

Participar trata-se de um processo que gera a interação entre diferentes

atores sociais na definição do espaço comum e do destino coletivo. Em tais

interações, ocorrem relações de poder que incidem e se manifestam em níveis

distintos em função dos interesses, valores e percepções dos envolvidos.

Participar é promover a cidadania, entendida como realização do “sujeito

histórico” oprimido. (Loureiro, 2004a).

Participar é compartilhar poder, respeitar o outro, assegurar igualdade na

decisão, propiciar acesso justo aos bens socialmente produzidos, de modo a

garantir a todos a possibilidade de fazer a sua história no planeta, de nos

realizarmos em comunhão. Participação significa o exercício da autonomia com

responsabilidade, com a convicção de que a nossa individualidade se completa

na relação com o outro no mundo, em que a liberdade individual passa pela

liberdade coletiva. (Loureiro, 2004b)

No relato a seguir os pescadores comentam sobre como entendem algumas

decisões relacionadas às aberturas de barra. “Quem tem mais sabedoria que a gente? Eu

não sei.” S3

Essa afirmação revela a posição conflituosa dos pescadores em relação ao

conhecimento científico, e não ao Estado, isto reflete a prática utilizada pelo poder

público para respaldar suas decisões, em outras palavras, o argumento baseado em

dados científicos é o determinante para as ações, o que gerou seguidas exclusões em

processos decisórios. Por outro lado, não há um contentamento com essa situação, o que

há na verdade, é o reconhecimento da importância de sua cultura como geradora de

conhecimento, indicando a busca pela afirmação, que em última instância pode garantir

a participação nas decisões.

Além disso, entendemos que já existe entre as instituições representadas pelos

pescadores envolvidos nesta pesquisa elementos importantes que podem levá-los a

“definição do espaço comum e do destino coletivo” como mencionado por Loureiro

(2004). Isto porque, segundo Guivant & Jacobi (2003) a implementação de práticas

participativas depende, entre outros fatores, de que a população deixe para trás a noção

de que os administradores e peritos sempre conhecem exatamente tudo, ou pelo menos

melhor, sobre o que é recomendável para todos.

Em um processo que se afirme como emancipatório, as relações sociais

se pautam pela igualdade e justiça social, pelo respeito à diversidade cultural,

pela participação e pela autogestão. A prática emancipatória se define pela ação

e construção dialógica com o outro e não pelo outro, para o outro ou sem o

11

outro; em que este outro se coloca e, de fato, está em condições igualitárias de

conhecer, falar, se posicionar, decidir e ter o justo acesso ao patrimônio cultural

que a humanidade gerou até aqui (Loureiro, 2007).

Todos os pescadores entrevistados afirmaram terem participado de espaços de

discussão relacionados. Nos relatos a seguir, são dados exemplos de passagens que

caracterizam a participação deles nos espaços e momentos decisórios em relação às

lagoas que reafirmam a distância da proposta de Loureiro (2007). A Colônia Z24

questionou a concepção da obra, mas demonstrou apoio pela perenização do contato da

lagoa com o mar. Porém, seus pescadores quando questionados sobre a participação na

decisão sobre a abertura permanente da barra deixam claro que foi uma decisão da Serla

e município de Saquarema, sem qualquer representação legitimada dos pescadores.

Gostaria que os pescadores fossem pelo menos consultados. S8

Deveríamos ser consultados e participar da decisão. S6

Isso aí não foi feito por pescador. O pessoal quando soube disso aí

ficaram tudo doido porque sabia que ia acontecer isso. S3

Esses relatos fazem menção a não participação dos pescadores na elaboração da

proposta de abertura permanente. Como não houve tal participação, o pescador S3

afirma que na última reunião do Subcomitê de Bacias, antes da decisão final sobre a

obra, pediu a palavra para deixar registrado que não concordava com a proposta, o que

não gerou resultados efetivos e a obra foi feita de acordo com a proposta original.

Posteriormente com a obra já realizada, se discutia a realização de uma nova

obra para retificar a primeira, que de fato não atendeu as necessidades da lagoa como

alertaram os pescadores. A diferença marcante dessa discussão para a anterior foi a

participação dos pescadores, representados pela Colônia Z24. No trecho a seguir, o

representante dos pescadores demonstra a concordância com a abertura permanente,

mas demonstra um ponto de vista que defende a ampla participação em um momento de

decisão como este:

É a proposta foi a prefeitura que fez. Inclusive o engenheiro até daqui. E

eu acho que você pra fazer uma barra franca dessa aqui, com o mar aberto desse

daqui. Não é dizer que a pessoa que venho não é capacitada. (...) Sentar com os

pescadores, até porque quem tá acostumado a fazer encarar esse mar brabo aqui

é o pescador. Pescador que está acostumado, pescador, meu pai sabe se ventar

sudoeste, sabe quando vai dar mar brabo, sabe quando o mar vai subir, quando o

mar vai secar. Sabe quando vai vir água leste, água sul. S1

Se por um lado, há que se exaltar o avanço a credibilidade dada aos pescadores

para corrigir um erro na proposta inicial, há que se questionar o custo de R$

3.000.000,00 (divulgado no RIMA da obra, porém segundo a homepage da prefeitura do

município foram investidos dez milhões de reais) de recursos públicos e o impacto

ambiental gerado para que esse avanço ocorresse. Esse questionamento baseia-se na

possibilidade da primeira tentativa para a consolidação da Barra Franca ter considerado

a opinião dos pescadores, o que poderia ter evitado a correção de uma obra tão

impactante e recente.

Esse ponto de vista converge com algumas reflexões feitas por Morin (2005;

2006) e ganha força por se tratarem de reflexões que discutem não especificamente os

espaços de participação, mas a ciência de um modo mais amplo e sua relação com a

12

verdade e com a certeza do conhecimento. Segundo este autor, é preciso deixar de

sonhar com uma ciência pura, uma ciência libertada de toda ideologia, uma ciência cuja

verdade seria tão absoluta como a verdade “2 + 2 = 4”, isto é, uma ciência “verdadeira”

de uma vez por todas, pelo contrário, é preciso que haja conflitos de ideias, no interior

da ciência, e a ciência comporta ideologia. Acrescentamos às considerações de Morin,

onde ele menciona a necessidade de haver conflitos no interior da ciência, que os

conflitos devem existir, fora delas também, entre cientistas e os “simples cidadãos”

justamente porque a ciência comporta ideologias. Mais uma vez buscamos nas reflexões

Morin, algo que se materializou nos episódios descritos na lagoa de Saquarema. “O

conhecimento é, pois, uma aventura incerta que comporta em si mesma,

permanentemente, o risco de ilusão e de erro. Entretanto, é nas certezas doutrinárias,

dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores ilusões; ao contrário, a consciência

do caráter incerto do ato cognitivo constitui a oportunidade de chegar ao conhecimento

pertinente, o que pede exames, verificações e convergência dos indícios”. (Morin,

2006).

Ao tomar decisões baseados em “certezas doutrinárias” as “piores ilusões”

foram reveladas com erros no manejo a serem corrigidos e com a insatisfação de outros

atores envolvidos questionando as decisões tomadas baseadas principalmente no

conhecimento técnico. Diante disso, não só devem ser tomadas decisões, mas também

devem ser restabelecidas as regras e as bases em que se tomam tais decisões: abrindo-se

o diálogo e o processo decisório, fundamentalmente a partir do reconhecimento da

ambiguidade e a ambivalência dos processos sociais como inevitáveis, sem se procurar

soluções definitivas ou rigidamente impostas à população (Guivant & Jacobi, 2003).

Essa proposta de abertura da participação apesar de causar insegurança em alguns

setores da sociedade, não pode ser entendida como algo necessariamente nocivo, pelo

contrário, como afirma Morin (2005) não estamos totalmente desarmados enquanto

dispusermos de fontes contraditórias de informações nesses domínios. Há que saber que

fazemos essas escolhas, mas devemos saber também, nesse momento, que a verdade

normativa, ética, política não é da mesma natureza que a que constata que uma mesa é

uma mesa.

Portanto, para garantir uma participação mais abrangente da sociedade civil na

gestão dos recursos hídricos, faz-se necessária tal desmonopolização do conhecimento

perito. Obviamente, isto significa uma redefinição do papel de poder em que se situam

os peritos em relação aos leigos, e não só um questionamento das relações de poder

econômico ou uma abertura de maior espaço para a sociedade civil nos processos

decisórios. Neste processo requere-se autocrítica do papel convencional que os sistemas

peritos ocupam em relação aos leigos, aceitando que no cotidiano das práticas de

implementação da legislação possam configurar redes sociais diversas para coletar

informações, formar opiniões, legitimar pontos de vista, que inevitavelmente implicam

redefinições das relações de poder (Guivant & Jacobi, 2003).

Propomos uma reflexão sobre os possíveis caminhos que envolvem os três

principais atores mencionados nesta pesquisa: o poder público; os pescadores e; os

cientistas. Para isso, destacamos a proposta de Jacobi (2006) que afirma que a

participação cidadã associada a um projeto de ampliação da esfera pública, depende da

capacidade de cada sociedade para ampliar a institucionalidade e fortalecer a

comunidade cívica.

Desta maneira, de acordo com Quintas (2004) cabe ao Estado criar condições

para transformar o espaço “técnico” da “gestão ambiental” em espaço público. E dessa

13

forma, evitar que os consensos sejam construídos apenas entre atores sociais com

grande visibilidade e influência na sociedade em detrimento de outros, que em muitos

casos são os mais impactados negativamente por atos do próprio poder público. Apesar

de conhecerem profundamente os ecossistemas em que vivem na maioria dos casos, por

não possuírem as capacidades necessárias no campo cognitivo e organizativo, para

intervirem no processo de gestão ambiental, não conseguem fazer valer seus direitos.

Em outras palavras, trazer para o processo decisório todos os atores sociais nele

implicados, como determina a Constituição Federal e não apenas fazer a sua

publicidade. Portanto, trata-se de garantir o controle social da gestão ambiental,

incorporando a participação de amplos setores da sociedade nos processos decisórios

sobre a destinação dos recursos ambientais e, assim, torná-los, além de transparentes, de

melhor qualidade (Quintas, 2004).

Referências bibliográficas

Azevedo, F. B. B. (2005) Modelagem da capacidade de suporte da laguna de Saquarema

– RJ após a abertura de uma conexão permanente com o mar. Dissertação de

mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da

Universidade Federal Fluminense.

Begossi, A. (2008) Local knowledge and training towards management. Env Dev

Sustain. V. 10:591–603.

Begossi, A. (2006) Temporal stability in fishing spots: conservation and co-

management in Brazilian artisanal coastal fisheries. Ecology and Society. 11(1):

5. [online] URL: http://www.ecologyandsociety.org/vol11/iss1/art5/

Berkes, F.; Kislalioglu, M.; Folke, C. & Gadgil, M. (1998) Exploring the Basic

Ecological Unit: Ecosystem-like Concepts in Traditional Societies. Ecosystems.

V. 1(5): 409-415.

Berkes, F.; Folke, C. & Gadgil, M. (1995) Traditional ecological knowledge,

biodiversity, resilience and susteinability. In: Perrings, C. S.; Müler, K. G.;

Folke, C.; Holling, C. S. & Jansson, B. O. (Eds.). Biodiversity conservation:

problems and policies. Dordrecht, Kluwer Academic.

Carmouze, J. P.; Knoppers, B. &Vasconcelos, P. (1991) Metabolism of a subtropical

Brazilian lagoon. Biogeochemistry. V 14(2): 129-148.

CILSJ (2009a) Disponível em <http://www.lagossaojoao.org.br/index-cilsj.html>

Acesso em 24 de janeiro de 2009.

CILSJ (2009b) Disponível em < http://www.lagossaojoao.org.br/index-comite.html >

Acesso em 24 de janeiro de 2009.

Costa-Neto, E. M. (2000) Sustainable development and traditional knowledge: a case

study in a brazilian artisanal fishermen’s community. Sustainable Development.

V. 8: 89–95.

Costa-Neto, E. M.; Dias, C. V. & Melo, M. N. (2002) O conhecimento ictiológico

tradicional dos pescadores da cidade de Barra, região do médio São Francisco,

Estado da Bahia, Brasil. Acta Scentiarun. V. 34 (11): 561-573.

Costa-Neto, E. M. & Marques, J. G. W. (2000) Etnoictiologia dos pescadores artesanais

de Siribinha, município de Conde (Bahia): aspectos relacionados com a etologia

dos peixes. Acta Scientiarum. V. 22(2):553-560.

Diegues, A. C. (2002) Traditional Fisheries Knowledge and Social Appropriation of

Marine Resources in Brazil. Mare Conference: People And The Sea,

Amsterdam.

14

Diegues, A.C. (1988) A pesca artesanal no Litoral Brasileiro: cenários e estratégias para

sua sobrevivência. Proposta. V. 38: 2-35.

Diegues, A. C.; & Viana, V. M. (2004) Comunidade tradicionais e manejo dos recursos

naturais na mata atlântica. 2ª Ed. Hucitec: NUPAUB. São Paulo. 273 p.

Diegues, A. C. & Nogara, P. J. (1994) O nosso lar virou parque: estudo sócio-

ambiental. 2ª Ed. Hucitec: NUPAUB. São Paulo. 165 p.

Gadgil, M. & Berkes, F. (1991) Traditional resource management systems. Resource

management and optimization. V. 8(3-4): 127-141.

Grando, R. O. (2006) Conhecimento Etnoecológico de Pescadores da Praia do Forte,

Litoral Norte - BA: Um Saber Ameaçado. Enciclopédia Biosfera, N.02.

Guivant. J. S. & Jacobi, P. (2003) Da hidro-técnica à hidro-política: novos rumos para a

regulação e gestão dos riscos ambientais no Brasil. Cadernos de

Desenvolvimento e Meio Ambiente, nº1.

Harrison, T. & Whitfield, A. (1995) Fish community structure in three temporarily

open/closed estuaries on the Natal coast. Ichthyological bulletin. 64. [online]

<http://www.bioline.org.br/request?fb95003>

Jacobi, P. (2006) Participação. Emancipação. In Ferraro Junior, L. A. (Org) Encontros e

caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e coletivos educadores.

MMA. Brasília. 358 p.

Knoppers, B. A.; Carmouze, J. P. & Moreira-Turcq, P. F (1999) Nutrient dynamics,

primary production and eutrophication of coastal lagoons of the eastern Rio de

Janeiro coast. In: Knoppers, B.; Bidone, E.; Abrão, J. J. (Orgs.). Environmental

geochemistry of coastal lagoon systems, state of Rio de Janeiro, Brazil. Niterói:

Universidade Federal Fluminense. V. 1: 100-132

Loureiro, C. F. B. (2007) Emancipação. In: Ferraro Junior, L. A. (Org) Encontros e

caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e coletivos educadores. V. 2

Brasília, MMA. 352 p.

Loureiro, C. F. B. (2004a) Educação Ambiental emancipatória. In: Layrargues, P. P.

(coord.) Identidades da educação ambiental brasileira. MMA. Brasília 156p.

Loureiro, C. F. B. (2004b) Educar, participar e transformar em educação ambiental.

Revista Brasileira de Educação Ambiental. Brasília. V.1, n. 00.

Mello, L. G. (1995) Antropologia Cultural: iniciação, teoria e temas. Vozes. Petrópolis /

RJ.

Moller, H.; Berkes, F.; Lyver, P. O. & Kislalioglu, M. (2004) Combining science and

traditional ecological knowledge: monitoring populations for co-management.

Ecology and Society. V. 9(3)

Morin, E. (2006) Os sete saberes necessários à educação do futuro. Cortez, São Paulo.

UNESCO. Brasília. 11ª ed. 118p.

Morin, E. (2005) Ciência com consciência. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 9ª Ed 350p.

Moura, F. B. P. & Marques, J. G. W. (2007) Conhecimento de pescadores tradicionais

sobre a dinâmica espaço-temporal de recursos naturais na Chapada Diamantina,

Bahia. Biota Neotrop. V 7(3): 119-126.

Mourão, J. S. & Nordi, N. (2006) Pescadores, peixes, espaço e tempo: uma abordagem

etnoecológica. Interciencia (Caracas). V. 31: 358-363.

Mourão, J. S. & Nordi, N. (2003) Etnoictiologia de pescadores artesanais do estuário do

rio Mamanguape, Paraíba, Brasil. B. Inst. Pesca, São Paulo. V. 29(1): 9-17.

Pinto, M. (2006) Questionamento sobre obra na Lagoa de Saquarema (RJ) chega ao

Ministério Público Estadual. Disponível em

15

<http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=25812> Acesso em 24 de

janeiro de 2009.

Porto-Gonçalves, C. W. (2002) Um pouco de filosofia no meio ambiente. In: Quintas, J.

S. (Org) Pensando e praticando a Educação Ambiental na gestão do meio

ambiente. 2ª Ed. Ibama. Brasília. 204 p.

Quintas, J. S. (2007) Educação na gestão ambiental pública. . In Ferraro Junior, L. A.

(Org) Encontros e caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e coletivos

educadores. Vol. 2 Brasília, MMA. 352 p.

Quintas, J. S. (2005) Introdução à gestão ambiental pública. Ibama. Brasília. 132 p.

Quintas, J. S. (2004) Educação no processo de gestão ambiental: uma proposta de

educação ambiental transformadora e emancipatória. In: Layrargues, P. P.

(coord.) Identidades da educação ambiental brasileira. MMA Brasília 156p.

Ramires, M.; Molina, S. M. G.; Hanazaki, N. (2007) Etnoecologia caiçara: o

conhecimento dos pescadores artesanais sobre aspectos ecológicos da pesca

Biotemas. V.20 (1): 101-113.

Rosa, I. M. L.; Alves, R. R. N.; Bonifácio, K. M.; Mourão, J. S.; Osório, F. M.;

Oliveira, T. P. R. & Nottingham, M. C. (2005) Fishers' knowledge and seahorse

conservation in Brazil. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine. V.1: 1-12

Sánchez-Botero, J. I.; Caramaschi, E. P., & Garcez, D. S. (2008) Spatiotemporal

variation in fish assemblage in a coastal lagoon without direct contact with the

sea (southeastern Brazil). Journal of Coastal Research. V. 24(4C): 225–238.

West Palm Beach (Florida)

Silvano R. A. M (2001) Feeding habits and interspecific feeding associations of Caranx

latus (Carangidae) in a subtropical reef. Environmental Biology of Fishes. V. 60:

465–470.

Silvano, R. A. M.; MacCord, P. F. L.; Lima, R. V. & Begossi, A. (2006) When does this

fish spawn? Fishermen’s local knowledge of migration and reproduction of

Brazilian coastal fishes. Environ Biol Fish. V. 76: 371–386.

Silvano, R. A. M. & Begossi, A. (2005) Local knowledge on a cosmopolitan fish

Ethnoecology of Pomatomus saltatrix (Pomatomidae) in Brazil and Australia.

Fisheries Research. V. 71: 43–59.

Thé, A. P. G. (2003). Conhecimento Ecológico, Regras de uso e Manejo local dos

Recursos Naturais na Pesca do Alto-Médio São Francisco, MG. Tese de

Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais/

UFSCar. São Carlos, SP, Brasil.

Wasserman, J. C. (2000) Estudo do Impacto Ambiental da Barra Franca na Lagoa de

Saquarema/Relatório de Impacto Ambiental da Barra Franca na Lagoa de

Saquarema – RJ.