maingueneau, d. - a propósito do ethos

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  • 7/29/2019 Maingueneau, D. - A propsito do ethos

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    A propsito do ethosDominique Maingueneau

    Quando comecei a refletir sobre ethos, no incio dos anos 1980, no imaginava queessa noo chegaria a ter tanta repercusso. Curiosamente, o reaparecimento dessa noono se deu, de sada, dentro do quadro da retrica, mas sobretudo por meio das

    problemticas relativas aos discursos. Enquanto o interesse renovado por parte da retricaj vai longe (foi em 1958 que surgiram as obras fundadoras de Ch. Perelman e de S.Toulmin), foi s nos anos 1980 que o ethos assumiu primeiro plano. No que dizrespeito Frana, s em 1984 se comeou a explorar o ethos em termos pragmticos ediscursivos: em O. Ducrot, que integrou o ethos a uma conceituao enunciativa (1984:201), e mesmo no meu trabalho, em que propus uma teoria dentro do quadro daanlise do discurso (1984, 1987).

    Parece claro que esse interesse crescente pelo ethos est ligado a uma evoluo das

    condies do exerccio da palavra publicamente proferida, particularmente com a pressodas mdias audiovisuais e da publicidade. O foco de interesse dos analistas dacomunicao se deslocou, das doutrinas e dos aparelhos aos quais relacionavam umaapresentao de si, para o look. E essa evoluo seguiu pari passuo enraizamento detodo processo de persuaso numa certa determinao do corpo em movimento; o quefica especialmente claro no domnio da publicidade, em que passamos do mundo dapropaganda ao da publicidade: a propaganda desenvolvia argumentos para valorizaro produto, a publicidade pe em primeiro plano o corpo imaginrio da marca quesupostamente est na origem do enunciado publicitrio.

    No prosseguirei nessa direo, pois me proponho aqui a fazer um certo nmerode observaes com vistas a compreender melhor o que, para as problemticas do discurso,est em jogo nessa noo de ethos. Uma viso mais rica, para alm da anlise do discurso,

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    Ethos discursivo

    pode ser encontrada no volume editado por R. Amossy (1999*). Aqui, comeareilembrando as principais caractersticas do ethos retrico, tal como se apresenta desde aproblemtica aristotlica; evocarei, em seguida, um certo nmero de dificuldades quese pem quando se quer estabilizar essa noo, e apresentarei, por fim, minha prpria

    concepo de ethos, que ilustrarei com diversos exemplos.Um dos maiores obstculos com que deparamos quando queremos trabalhar com

    a noo de ethos o fato de ela ser muito intuitiva. A idia de que, ao falar, umlocutor ativa em seus destinatrios uma certa representao de si mesmo, procurandocontrol-la, particularmente simples, at trivial. Portanto, com freqncia somostentados a recorrer a essa noo de ethos, dado que ela constitui uma dimenso detodo ato de enunciao. Como escreveu A. Auchlin, ainda que visando principalmentes interaes conversacionais:

    a noo de ethos uma noo com interesse essencialmente prtico, e no um conceitoterico claro () Em nossa prtica ordinria da fala, o ethos responde a questes empricasefetivas, que tm como particularidade serem mais ou menos co-extensivas ao nosso prprioser, relativas a uma zona ntima e pouco explorada de nossa relao com a linguagem, ondenossa identificao tal que se acionam estratgias de proteo (2001: 93).

    Nessas condies, se quisermos de fato explor-la, torn-la operacional, somosobrigados a inscrev-la numa problemtica precisa, privilegiando esta ou aquela faceta,em funo, ao mesmo tempo, do corpusque nos propomos a analisar e dos objetivos dapesquisa que conduzimos, mas tambm da disciplina, isto , do que corrente no

    interior da disciplina em que se insere a pesquisa. Uma anlise do discurso como a quepratico no pode apreender o ethos da mesma maneira que uma teoria da conversaoou uma anlise do discurso de inspirao psico-sociolgica. O importante, quandosomos confrontados com essa noo, definir por qual disciplina ela mobilizada, nointerior de que rede conceitual e com que olhar.

    ETHOSRETRICO

    Toda vez que se recorre a essa noo de ethos, costuma-se fazer um longo caminho ata retrica antiga, mais precisamente Retricade Aristteles, primeiro autor em queencontramos uma elaborao conceitual ou, pelo menos, cuja concepo chegou at ns.

    Nosso propsito aqui no outro seno atribuir uma interpretao ao conjunto deempregos do ethos em Aristteles. O que nos interessa sobretudo saber em quemedida essa categoria interessa a um determinado setor das cincias humanascontemporneas, como ocorre com o estudo do discurso. No vivemos no mesmomundo da retrica antiga, e a palavra no est mais condicionada pelos mesmosdispositivos; o que era uma disciplina nica a retrica reverbera hoje em diferentes

    * Nota do Tradutor (N.T.): No Brasil, Imagens de si no discurso: a construo do ethos. So Paulo: Contexto, 2005 (trad.Fabiana Komesu, Dilson Ferreira da Cruz, Srio Possenti).

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    A propsito do ethos

    disciplinas tericas e prticas, que tm interesses distintos e captam o ethos sob facetasdiversas. De todo modo, no possvel estabilizar definitivamente uma noo dessetipo, que parece melhor apreendermos como um n gerador de mltiplosdesenvolvimentos possveis. H, por exemplo, longe dos esforos de M. Dascal para

    integrar o ethos a uma retrica cognitiva fundada numa pragmtica filosfica (Dascal,1999), as perspectivas dos cultural studies, nas quais o ethos associado a questes dediferenas sexuais e tnicas (Baumlin; Baumlin, 1994).

    Escrevendo suaRetrica,Aristteles pretendia apresentar uma techncujo objetivono examinar o que persuasivo para tal ou qual indivduo, mas para tal ou qualtipo de indivduos (1356b: 32-33 cito a edio de M. Dufour). A prova pelo ethosconsiste em causar boa impresso pela forma como se constri o discurso, a dar umaimagem de si capaz de convencer o auditrio, ganhando sua confiana. O destinatriodeve, ento, atribuir certas propriedades instncia que posta como fonte doacontecimento enunciativo.

    Esse ethos est ligado prpria enunciao, e no a um saber extra-discursivosobre o locutor. Eis o ponto essencial:

    persuade-se pelo carter [= ethos] quando o discurso tem uma natureza que confere aoorador a condio de digno de f; pois as pessoas honestas nos inspiram uma grande epronta confiana sobre as questes em geral, e inteira confiana sobre as que no comportamde nenhum modo certeza, deixando lugar dvida. Mas preciso que essa confiana sejaefeito do discurso, no uma previso sobre o carter do orador (1356a: 5-6).

    Para dar essa imagem positiva de si mesmo, o orador pode se valer de trs qualidadesfundamentais: aphronesis, ou prudncia, aaret, ou virtude, e aeunoia, ou benevolncia.Aristteles as expe logo no incio do segundo livro daRetrica:

    Quanto aos oradores, eles inspiram confiana por trs razes; as que efetivamente, parte as demonstraes, determinam nossa crena: a prudncia (phronesis), a virtude(aret) e a benevolncia (eunoia). Se, de fato, os oradores alteram a verdade sobre o quedizem enquanto falam ou aconselham, por causa de todas essas coisas de uma s vez oude uma dentre elas: ou bem, por falta de prudncia, eles no so razoveis; ou, sendo

    razoveis, eles calam suas opinies por desonestidade; ou, prudentes e honestos, no sobenevolentes; por isso que podem, mesmo conhecendo o melhor caminho a seguir, noo aconselhar (1378a: 6-14).

    R. Barthes precisa: So os traos de carter que o orador devemostrarao auditrio(pouco importa sua sinceridade) para dar uma boa impresso (...) O orador enunciauma informao e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, no aquilo l (1970: 212).A eficcia do ethos reside no fato de ele se imiscuir em qualquer enunciao sem serexplicitamente enunciado.

    Ducrot, por sua vez, conceituou esse ethos retrico por meio de sua distino entrelocutor-L [= o locutor apreendido como enunciador] e locutor-lambda [= o locutorapreendido como ser do mundo], que atravessa a distino dos pragmaticistas entremostraredizer: o ethos se mostra no ato de enunciao, ele no dito no enunciado.

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    Ethos discursivo

    Ele permanece, por sua natureza, no segundo plano da enunciao, ele deve ser percebido,mas no deve ser o objeto do discurso:

    No se trata de afirmaes que o autor pode fazer a respeito de sua pessoa no contedo doseu discurso afirmaes que, ao contrrio, correm o risco de chocar o auditrio , masda aparncia que lhe conferem a cadncia, a entonao, calorosa ou severa, a escolha daspalavras, dos argumentos... Em minha terminologia, direi que o ethos est associado a L,o locutor como tal: na medida em que fonte da enunciao que ele se v revestido decertos caracteres que, em conseqncia, tornam essa enunciao aceitvel ourefutvel (1984: 201).

    V-se que o ethos distinto dos atributos reais do locutor. Embora seja associadoao locutor, na medida em que ele a fonte da enunciao, do exterior que o ethoscaracteriza esse locutor. O destinatrio atribui a um locutor inscrito no mundo extra-

    discursivo traos que so em realidade intradiscursivos, j que so associados a umaforma de dizer. Mais exatamente, no se trata de traos estritamente intradiscursivosporque, como vimos, tambm intervm, em sua elaborao, dados exteriores falapropriamente dita (mmicas, trajes...). A prova pelo ethos mobiliza efetivamente

    tudo o que, na enunciao discursiva, contribui para destinar a imagem do orador a umdado auditrio. Tom de voz, fluxo da fala, escolha das palavras e dos argumentos, gestos,mmicas, olhar, postura, aparncia etc., todos signos, de elocuo e de oratria,indumentrios ou simblicos, pelos quais o orador d de si mesmo uma imagem psicolgicae sociolgica (Declercq, 1992: 48).

    No se trata de uma representao esttica e bem delimitada, mas, antes, de uma formadinmica, construda pelo destinatrio atravs do movimento da prpria fala do locutor.O ethos no age no primeiro plano, mas de maneira lateral; ele implica uma experinciasensvel do discurso, mobiliza a afetividade do destinatrio. Para retomar uma frmula deGibert (sculo XVIII), que resume o tringulo da retrica antiga, instrui-se pelosargumentos; comove-se pelas paixes; insinua-se pelas condutas: os argumentoscorrespondem ao logos, as paixes ao pathos, as condutas ao ethos. Compreende-se,assim, que na tradio retrica o ethos tenha sido freqentemente considerado com

    suspeio: apresentado como to eficaz quanto o logos s vezes at como mais eficaz doque ologos, os argumentos propriamente ditos , desconfia-se, inevitavelmente, que invertaa hierarquia moral entre o inteligvel e o sensvel, e tambm entre o ser e o parecer, uma vezque o orador pode mostrar no discurso um ethos mentiroso.

    Percebemos essa hesitao no De oratorede Ccero, redigido em 55 a.C. O autorinsiste no fato de ser necessrio que o ethos no seja um fingimento e, sim, umaconstruo simultnea do enunciador e da pessoa fora do discurso:

    Importa muito para o sucesso da causa que sejam postos favoravelmente luz costumes,

    princpios, fatos e gestos, a conduta do orador e de seu cliente; inversamente, em exposiodesfavorvel o que concerne ao adversrio, de modo a inclinar o quanto possvel asdisposies dos juzes para uma benevolncia em relao a si mesmo e quele que se estdefendendo. Ora, o que nos garante a benevolncia a dignidade de nosso carter, so

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    A propsito do ethos

    nossas aes louvveis, a considerao que nossa vida inspira: todas essas coisas fceis deexaltar quando existem, difceis de fingir quando no existem. Outras qualidades do oradorsomam-se ao efeito produzido: a doura da voz, o ar do semblante, a amenidade da fala, aimpresso de que, se ele se deixa levar por um ataque inflamado, contra sua vontade.

    muito fcil dar a ver as marcas de um humor dcil, de uma alma generosa, boa, sensvel,acolhedora, protegida contra os desejos cobiosos. Tudo o que indica a lisura, a modstia,um carter isento de amargura e de furor, inimigo dos litgios e das controvrsias, atrai abenevolncia e indispe contra os que no tm essas qualidades (Livro II, XLII: 182).

    De fato, esse termo ethos de resto, no mais que sua traduo moresem latim no tem um valor unvoco em grego. H um sentido pouco especificado que se prestaa mltiplos investimentos: na retrica, na moral, na poltica, na msica... Mesmo ques consideremos os textos de Aristteles, constatamos que o ethos objeto de diferentestratamentos na Polticae na Retrica. Na tica a Nicmanoou na Poltica, trata-se

    efetivamente doethoscaracterstico de um grupo, de seus traos de carter, suas disposiesestveis. J naRetrica, o ethos no tem um sentido estvel, ele no se reduz ao ethosdiscursivo; serve tambm para designar disposies estveis que so apresentadas dedois pontos de vista complementares:

    O ponto de vista poltico: o captulo 8 do livro I, que leva em conta as diferentesconstituies polticas, insiste na necessidade de o orador no manter um mesmo discursodiante de gente afeita monarquia e de um auditrio convencido das idias democrticas.Aristteles fala, ento, do carter [= ethos] das constituties. Os homens que vivem

    sob uma certa constituio poltica (aristocrtica, democrtica) tm um certo tipo decarter, e a argumentao do orador deve levar isso em conta. O ponto de vista da idade e da fortuna: nos captulos 12 a 17 do livro II, Aristteles

    descreve os traos de carter particulares dos homens em funo de sua idade (juventude,maturidade, velhice) e de sua fortuna (na ordem em que se apresentam: a nobreza, ariqueza, o poder e a sorte). Aristteles descreve, ento, os diferentes caracteres que oorador pode encontrar em um auditrio: cabe a ele escolher as diferentes paixes quedever suscitar. Como a virtude no considerada da mesma maneira em todos oslugares por todas pessoas, em funo de seu auditrio que o orador se construir umaimagem, conforme o que considerado virtude. A persuaso no se cria se o auditriono puder ver no orador um homem que tem o mesmo ethos que ele: persuadir consistirem fazer passar pelo discurso um ethos caracterstico do auditrio, para lhe dar a impressode que um dos seus que ali est.

    ALGUMASDIFICULDADESLIGADASNOOO ethos est crucialmente ligado ao ato de enunciao, mas no se pode ignorar

    que o pblico constri tambm representaes do ethos do enunciador antesmesmoque ele fale. Parece necessrio, ento, estabelecer uma distino entre ethos discursivoeethos pr-discursivo.Certamente existem tipos de discurso ou de circunstncias para as

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    Ethos discursivo

    quais no se espera que o destinatrio disponha de representaes prvias do ethos dolocutor: assim quando lemos um texto de um autor desconhecido. Mas isso funcionade outro modo no domnio poltico ou na imprensa de celebridades, por exemplo, emque a maior parte dos locutores, constantemente presentes na cena miditica, associada

    a um tipo de ethos no-discursivo que cada enunciao pode confirmar ou infirmar.Uma outra srie de problemas advm do fato de que, na elaborao do ethos,

    interagem fenmenos de ordens muito diversas: os ndices sobre os quais se apia ointrprete vo desde a escolha do registro da lngua e das palavras at o planejamentotextual, passando pelo ritmo e a modulao... O ethos se elabora, assim, por meio de umapercepo complexa, mobilizadora da afetividade do intrprete, que tira suas informaesdo material lingstico e do ambiente. H ainda algo mais grave: se se diz que o ethos um efeito de discurso, supe-se que podemos delimitar o que decorre do discurso; mas

    isso muito mais evidente para um texto escrito do que numa situao de interao oral.H sempre elementos contingentes num ato de comunicao, em relao aos quais difcil dizer se fazem ou no parte do discurso, mas que influenciam a construo do ethospelo destinatrio. , em ltima instncia, uma deciso terica: saber se se deve relacionaro ethos ao material propriamente verbal, atribuir poder s palavras, ou se se devemintegrar a ele e em quais propores elementos como as roupas do locutor, seus gestos,ou seja, o conjunto do quadro da comunicao. O problema por demais delicado, postoque o ethos, por natureza, um comportamentoque, como tal, articula verbal e no-verbal, provocando nos destinatrios efeitos multi-sensoriais.

    Alm disso, a noo de ethos remete a coisas muito diferentes conforme sejaconsiderada do ponto de vista do locutor ou do destinatrio: o ethos visado no necessariamente o ethos produzido. Um professor que queira passar uma imagem desrio pode ser percebido como montono; um poltico que queira suscitar a imagem deum indivduo aberto e simptico pode ser percebido como um demagogo. Os fracassosem matria de ethos so moeda corrente.

    A prpria concepo de ethos est suscetvel a amplas zonas de variao. Auchlinassinala algumas:

    O ethos pode ser concebido comomais ou menos carnal, concretooumais ou menosabstrato. Tudo depende, antes de qualquer outra coisa, do modo como se traduz o termoethos:carter, retrato moral, imagem, costumes oratrios, feies, ar, tom Pode-se privilegiara dimenso visual (retrato) ou a musical (tom), a psicologia vulgarizada (carter)

    O ethos pode ser concebido como mais ou menos saliente, manifesto, singular vscoletivo, parti lhado, implcitoevisvel. Alguns, como C. Kerbrat-Orecchioni, associama noo de ethos aos hbitos locucionais partilhados por membros de uma comunidade.Tal ethos coletivo constitui, para os locutores que o partilham, um quadro invisvele imperceptvel.

    muito razovel supor que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidadeobedecem a uma certa coerncia profunda e, ento, esperar que sua descrio sistemticapermita distinguir o perfil comunicativo, ou ethos, dessa comunidade (ou seja, a sua

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    maneira de se comportar e de se apresentar nas interaes mais ou menos caloroso oufrio, prximo ou distante, modesto ou imodesto, sem constrangimentos ou respeitosodo territrio alheio, suscetvel ou indiferente ofensa etc.) (1996: 78).

    O ethos pode ser concebido como mais ou menos fixo, convencional vs ousado,singular. evidente que existem, para um dado grupo social, ethe fixados, que sorelativamente estveis, convencionais. Mas no menos evidente que existe tambm apossibilidade de jogar com esses ethe convencionais. Se a publicidade tende a recorreraos ethe mais estereotpicos, com a literatura, por exemplo, acontece outra coisa, comoveremos mais adiante.

    Podemos, contudo, estar de acordo sobre alguns princpios mnimos, sem prejulgar omodo como eles podem eventualmente ser explorados nas diversas problemticas de ethos:

    o ethos uma noo discursiva, ele se constri atravs do discurso, no uma

    imagem do locutor exterior a sua fala; o ethos fundamentalmente um processo interativode influncia sobre o outro; uma noo fundamentalmentehbrida(scio-discursiva), um comportamento

    socialmente avaliado, que no pode ser apreendido fora de uma situao de comunicaoprecisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura scio-histrica.

    Isso posto, a concepo de ethos que proponho se inscreve num quadro da anlisedo discurso. Mesmo que esse quadro seja bem diferente do da retrica antiga, pareceque no chega a ser essencialmente infiel s linhas de fora da concepo aristotlica.

    Fui levado a trabalhar essa noo de ethos no quadro da anlise do discurso e sobre

    corporade gneros institudos, que oponho aos gneros conversacionais. A perspectivaque defendo ultrapassa em muito o domnio da argumentao. Para alm da persuasopor meio de argumentos, essa noo de ethos permite refletir sobre o processo maisgeral de adesodos sujeitos a um certo discurso. Fenmeno particularmente evidentequando se trata de discursos como a publicidade, a filosofia, a poltica etc., que diferentemente dos discursos que relevam de gneros funcionais, como os formulriosadministrativos e os manuais de instruo devem ganhar um pblico que est nodireito de ignor-los ou recus-los.

    O FIADORA meu ver, a noo de ethos, que mantm um lao crucial com a reflexividade

    enunciativa, permite articular corpo e discurso para alm de uma oposio empricaentre oral e escrito. A instncia subjetiva que se manifesta no discurso no se deixaconceber apenas como um estatuto (professor, profeta, amigo) associado a uma cenagenrica ou a uma cenografia, mas como uma voz indissocivel de um corpo enunciantehistoricamente especificado. A retrica tradicional ligou estreitamente o ethos eloqncia, oralidade em situao de fala pblica (assemblia, tribunal), mas cremosque, em vez de reserv-la para a oralidade, solene ou no, prefervel alargar seu alcance,abarcando todo tipo de texto, tanto os orais como os escritos. Todo texto escrito, mesmo

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    Ethos discursivo

    que o negue, tem uma vocalidade que pode se manifestar numa multiplicidade detons, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterizao do corpo do enunciador(e, bem entendido, no do corpo do locutor extradiscursivo), a um fiador,construdopelo destinatrio a partir de ndicesliberados na enunciao. O termo tom tem a

    vantagem de valer tanto para o escrito como para o oral.Com essa perspectiva, optamos, ento, por uma concepo encarnada do ethos,

    para retomar os termos de Auchlin. Esse ethos recobre no s a dimenso verbal, mastambm o conjunto de determinaes fsicas e psquicas ligados ao fiador pelasrepresentaes coletivas estereotpicas. Assim, atribui-se a ele um carter e umacorporalidade, cujos graus de preciso variam segundo os textos. O cartercorresponde a um feixe de traos psicolgicos. Quanto corporalidade, ela est associadaa uma compleio fsica e a uma maneira de vestir-se. Mais alm, o ethos implica uma

    maneira de se mover no espao social, uma disciplina tcita do corpo apreendida atravsde um comportamento. O destinatrio a identifica apoiando-se num conjunto difusode representaes sociais avaliadas positiva ou negativamente, em esteretipos que aenunciao contribui para confrontar ou transformar: o velho sbio, o jovem executivodinmico, a mocinha romntica

    De fato, o fiador implica ele mesmo um mundo tico do qual ele parte pregnantee ao qual ele d acesso. Esse mundo tico ativado pela leitura subsume um certonmero de situaes estereotpicas associadas a comportamentos; a publicidadecontempornea se apia massivamente sobre tais esteretipos: o mundo tico dos

    executivos dinmicos, o dos ricos emergentes, o das celebridades etc. O mundo ticodas estrelas de cinema, por exemplo, inclui cenas como a subida dos degraus do palciodo Festival de Cannes, sees de filmagem, entrevistas imprensa, sees de maquiagemetc. No domnio da msica, vemos que a simples participao de um cantor numvideoclipe tem como efeito inserir o fiador num mundo tico peculiar.

    Propus designar com o termo incorporao a maneira como o intrprete audinciaou leitor se apropria desse ethos. Convocando de maneira pouco ortodoxa a etimologia,podemos fazer render essa incorporao sob trs registros:

    a enunciao da obra confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dcorpo; o destinatrio incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem auma maneira especfica de se remeter ao mundo habitando seu prprio corpo;

    essas duas primeiras incorporaes permitem a constituio de um corpodacomunidade imaginria dos que aderem ao mesmo discurso.

    O ethos de um discurso resulta da interao de diversos fatores: ethos pr-discursivo,ethos discursivo (ethos mostrado), mas tambm os fragmentos do texto nos quais oenunciador evoca sua prpria enunciao (ethosdito) diretamente ( um amigo quelhes fala) ou indiretamente, por meio de metforas ou de aluses a outras cenas de fala,por exemplo.A distino entre ethosditoemostradose inscreve nos extremos de umalinha contnua, uma vez que impossvel definir uma fronteira ntida entre o ditosugerido e o puramente mostrado pela enunciao. O ethos efetivo, construdo por tal

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    A propsito do ethos

    ou qual destinatrio, resulta da interao dessas diversas instncias. As flechas duplasdo esquema abaixo indicam que h interao.

    ethos efetivo

    ethos pr-discursivo ethos discursivo

    ethos dito ethos mostrado

    esteretipos ligados aos mundos ticos

    Como cada conjuntura histrica se caracteriza por um regime especfico de ethe, aleitura de muitos dos textos que no pertencem ao nosso ambiente cultural (no tempoe no espao) freqentemente dificultada no pelas lacunas graves de nosso saberenciclopdico, mas porque se perdem os ethe que sustentavam tacitamente suaenunciao. Quando vemos as coplas daCano de Rolandodispostas sobre uma folhade papel, fica muito difcil restituir o ethos da oralidade pica que as sustentava. Sem ir

    to longe, a prosa poltica do sculo XIX indissocivel de ethe ligados a prticasdiscursivas, a situaes de comunicao que desapareceram. Alm disso, de uma pocaa outra ou de um lugar a outro, no so as mesmas zonas de produo semitica quepropem modelos para as maneiras de ser e falar, as que do o tom. Os esteretipos decomportamento foram outrora acessveis s elites sobretudo por meio do teatro e daleitura de textos literrios. Isso claro nos sculos XVII e XVIII, quando o discursoliterrio era inseparvel dos valores associados a certos modos de vida. Os numerosostextos que derivam da corrente galante, por exemplo, so inseparveis de um ethosdiscursivo especfico que participa do mundo tico da galanteria: ethos do natural, dajovialidade Hoje, diferentemente, esse papel creditado s produes audiovisuais,em particular publicidade.

    UMTEXTOPUBLICITRIODe maneira geral, o discurso publicitrio contemporneo mantm, por natureza,

    uma ligao privilegiada com o ethos; ele busca efetivamente persuadir ao associar osprodutos que promove a um corpo em movimento, a uma maneira de habitar o mundo.Em sua prpria enunciao, a publicidade pode, apoiando-se em esteretipos validados,encarnar o que prescreve. Consideremos esta publicidade de uma mquina fotogrfica,veiculada numa revista:

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    Ethos discursivo

    Reproduzimos o texto da parte superior da pgina do anncio:IXUS II Descubra o prazer do puro metal. Ixus II um mini-bloco de ao de acabamento

    acetinado e polido em que cada elemento foi pensado para uma ergonomia exemplar emuma compacidade mxima. A qualidade da imagem assegurada por um novo micro-zoom 2x com lente esfrica dupla, um auto-foco de preciso de 108 planos, um obturadorde 1/900o que dispara em tempo real todas as funes PQI para cpias de qualidade. Kit

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    A propsito do ethos

    de lanamento com estojo prtico em couro cinza e caixa com divisrias para 12 cassetesAPS: 2000F. (traduo de Srio Possenti).

    Embaixo, h um slogan associado ao nome da marca:

    Canon

    Mostre do que voc capazO fiador desse texto no designado nem visvel nessa imagem. Mas o texto o mostra

    na sua maneira de dizer: pela leitura, somos chamados a entrar em um mundo tico viril,de destreza tecnolgica e esprito de aventura. Mais precisamente, esse mundo tico oque exemplifica o exrcito norte-americano. Canon homnimo do nome que designa,em ingls, uma pea de artilharia; Full metal jacket se refere a um clebre filme norte-americano sobre a guerra do Vietn; a tira que aparece embaixo tem as cores da camuflagemmilitar. Quanto ao slogan Mostre do que voc capaz, um enunciado tpico de umoficial a motivar seus homens. Aqui, no preciso dar a ver o corpo do fiador; a ativaodo mundo tico se faz com base em todos os esteretipos que a cultura de massa veiculasobre o exrcito norte-americano, eficaz porque dotado de uma tecnologia de ponta. Note-se que o recurso a esse mundo tico militar no tem nada de surpreendente, pois freqentea associao entre o disparo das armas e o das cmeras fotogrficas; em francs, diz-secomumente que os jornalistas metralharam com flashes tal ou qual celebridade.

    UMETHOSFILOSFICO

    Em geral, a maneira como a publicidade explora o ethos particularmente simples,mas quando nos vemos diante de outros tipos de discurso, as coisas podem ser maissutis. o caso das obras filosficas, que no podem se contentar em ativar esteretiposde mundos ticos largamente difundidos.

    Observemos o comeo da obra maior de Althusser, Ler O Capital1. Esta passagemnos interessa precisamente porque o autor registra, com muitos rodeios, uma reflexosobre seu prprio ethos discursivo.

    As exposies aqui reunidas foram proferidas ao longo de um Seminrio de estudosconsagrado a O Capitalnos primeiros meses de 1965, na Ecole Normale. Elas tm asmarcas dessas circunstncias: no s na sua composio, seu ritmo, no aspecto didtico oufalado de sua expresso, mas tambm, e sobretudo, na sua diversidade, nas repeties, nashesitaes e nos riscos de seus percursos. Decerto, pudramos t-las retomado com odevido tempo, corrigindo-nos uns aos outros, reduzindo a margem de variaes, afinandoao mximo a terminologia, as hipteses e as concluses, expondo as matrias numa ordemsistemtica de um s discurso, enfim, tentando compor uma obra acabada. Todavia, sempretender que fossem uma certa coisa pr-definida, preferimos d-las a pblico comoesto: textos inacabados, simples incio de uma leitura.

    1.Decerto, todos pudemos ler, todos lemosO Capital. Desde quase um sculo j, ns podemosler, a cada dia, claramente, nos dramas e nos sonhos de nossa histria, em seus debates e

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    conflitos, nos fracassos e nas vitrias do movimento operrio, que nossa nica esperanae destino. Desde que viemos ao mundo, no cessamos de ler O Capitalnos escritos e nosdiscursos dos que o leram para ns, bem ou mal, os mortos e os vivos, Engels, Kautsky,Plekhanov, Lnin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Stalin, Gramsci, os dirigentes das organizaes

    operrias, seus partidrios ou seus adversrios: filsofos, economistas, polticos (1968: 9). a primeira parte dessa passagem que trata obliquamente do ethos; ela figura antes

    da entrada na exposio doutrinal propriamente dita, cuja fronteira est assinalada pelo1. Ela est assim apresentada porque costuma-se admitir que a filosofia , antes detudo, uma arquitetura conceitual e, portanto, as consideraes de ordem estilstica sojulgadas perifricas. Nessas primeiras linhas, o autor sublinha seu afastamento do contratogenrico da exposio filosfica escrita (pudramos t-las retomado com o devidotempo... uma obra acabada). Mas, de fato, sua enunciao pretende anular esseafastamento, fazendo o leitor entrar progressivamente num mundo onde essa maneirade dizer aparece comoamaneira legtima de dizer a filosofia, um mundo onde a hesitaoe o inacabamento so indcios de verdade. Nessa apresentao que se diz hesitante einacabada, mas que, na realidade, bastante engenhosa, trata-se, por parte do autor, deapresentar um propsito que uma escolha deliberada, com significado filosfico, noum atestado de impotncia; e ele faz isso em dois nveis complementares:

    explicitamente, pela polifonia do movimento concessivo (Decerto...) quepermite esclarecer o ponto de vista dos partidrios de uma exposio filosficacannica, mostrando que o locutor se recusa a aderir a isso;

    implicitamente, (a) produzindo uma srie de frases que mostram seu cartertateante, repetitivo, a recusa a ir direto ao ponto, uma srie encerrada por umconectivo reformulador (enfim); (b) empregando uma forma verbal que, emfrancs, vem de uma sobrenorma (pudramos *): com isso, o autor mostraque, se quisesse, poderia ter escrito de maneira cannica, pois manobra bemum francs mais sofisticado.

    A anlise do texto de Althusser em termos de ethos implica uma competnciainterpretativa especfica de seus leitores, que devem identificar de que modo ele combina

    as marcas lingsticas. A noo de padro discursivo pode ser, aqui, de alguma ajuda.G. Philippe entende por esse termo os feixes de traos lingsticos que so associados demaneira estereotpica a representaes imaginrias dos tipos de produo linguageira.O leitor distribui as marcas linguageiras do texto segundo o modo como elas se ligama este ou quele padro, isto , segundo uma competncia particular, mas tambmsegundo escolhas interpretativas pontuais (Maingueneau; Philippe, 2002: 365). Nessetexto de Althusser, podemos identificar trs desses padres discursivos, dos quais doisso categorizados pelo prprio autor: um padro didtico, um padro falado e um

    padro que diramos psicanaltico.* N.T.: Em francs, eussions pu primeira pessoa do plural no tempo referido comopass2e formedo modoconditionnel,

    flexo caracterstica de grande formalidade escrita, marcadamente literria.

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    O falado no o oral, mas ele caracteriza os textos fundamentalmente escritosque exibem marcas de oralidade. Nesse texto de Althusser, o carter falado se justifica,num primeiro nvel, pelo fato de se tratar da restituio do esprito de um seminrio deestudos; num segundo nvel, permite legitimar a reflexo mostrando o pensamento

    em trabalho, no um produto acabado. A empresa de renovao filosfica que Althusserpretende para esse livro supe que esteja em cena uma conscincia vivaz.

    O padro didtico pode ser justificado pela situao de comunicao (esse livroderiva de um curso da Ecole Normale Suprieure). Mas, aqui, seu uso pe em relevoalgumas dificuldades. O locutor obrigado a negociar um delicado equilbrio entre asposies hierrquicas implicadas numa situao didtica e a relao simtrica que pretendeinstaurar com seu auditrio; o que perceptvel, por exemplo, no fato de que o nsrefere tanto o autor soberano (pudramos t-las retomado..., preferimos) quanto uma

    comunidade (Decerto, todos pudemos ler, todos lemosO Capital ) cuja multiplicidade amenizada por um ns... todos. A tenso entre o lugar de professor e o de camaradaresolve-se imaginariamente nesse ethos de hesitao, de busca, de retomada, que permiteconciliar a existncia de um ponto de vista professoral dominante com a partilha daresponsabilidade pelo ponto de vista do auditrio. Pondo em cena o movimento debusca, inscrevendo seu texto numa obra coletiva (Ler O Capital uma obra coletiva),o mestre atenua os desnveis didticos, j um tanto abrandados pela categorizaoseminrio de estudos, preferida ao termo curso.

    Podemos identificar um terceiro padro discursivo sobre o qual se desenvolve a

    enunciao de Althusser: o do psicanalista. Este ltimo historicamente especificadopela predominncia, na segunda metade dos anos 1960, de um ethos bem caracterizado(e no raro caricaturado) dos lacanianos, cujo propsito misturava o cmulo da abstraocom um recurso sistemtico a um padro falado. E tal ethos tem sentido em relao aoque se opunha: o ethos cientfico acadmico que tomava como modelo a prosa freudiana.Mas e nisso bem diferentemente do ethos proftico de Lacan Althusser adota umethos de simplicidade que procura encarnar uma espcie de tica da palavra fraternaligada a um ns. Esse ethos do falado, ao mesmo tempo sbio e tateante, mantm

    uma relao orgnica com os elementos doutrinais. A seqncia do texto pe em cenauma teoria da leitura que emprestada justamente da psicanlise, uma leitura que peno centro o lapso ou o equvoco (p. 17), que nutre o trabalhodo dizer do trabalhodifcildo inconsciente. Teoria segundo a qual Marx pensador um leitor, e sua teoria dahistria uma nova teoria do ler (p. 15). Somos levados, pouco a pouco, a identificaras relaes entre o psicanalista e a palavra dos analisandos, entre Marx e os-textos-que-Marx-l, entre Althusser e os-textos-do-Marx-leitor-que-Althusser-l.

    V-se que o ethos permite ao leitor aceder prontamente ao que dever ser validadono desenvolvimento da exposio doutrinal ulterior, que, digamos, mergulha num dado

    ethos conforme os contedos doutrinais. O ethos do homem que se bate com o quetem a dizer, que mostra a emergncia de seu pensamento, procura integrar o leitor nomundo tico das lutas operrias do qual esse livro se v como partcipe. A leitura como

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    trabalho do leitor a incorporao a uma comunidade apresentada como nossa nica es-perana e destino. O que nos conduz ao ttulo Ler O Capital, cujo verbo no infinitivo nem assertivo, nem terminado pode ser interpretado, ao mesmo tempo, como injuno,tarefa a cumprir e processo no delimitado, precisamente o processo em que o leitor se

    encontra enquanto l.Percebe-se, desse modo, o que aproxima e o que distingue o ethos dos textos

    publicitrios desse de Althusser. Em todo caso, a adeso do leitor se opera numescoramento recproco entre a cena de enunciao e o contedo desenvolvido, conformesque so um ao outro. Mas as modalidades de incorporao diferem sensivelmente,assim como a natureza da comunidade de incorporao imaginria. No caso dapublicidade, a comunidade necessariamente um pblico-alvo construdo pelas tcnicasde marketing; de outro lado, em textos como esse de Althusser, essa comunidade nopreexiste enunciao. Essa comunidade parece ser o ponto de partida (o ns dos queparticipam do movimento operrio), mas trata-se, na realidade, de uma refundaoque lhe d novos contornos por meio de uma prtica terica cujo princpio precisamente o queLer O Capitalquer legitimar.

    Numa obra singular, em particular se ela pe em relevo discursos constituintes,o autor no se contenta em incorporar seu leitor projetando para ele um estere-tipo qualquer, antes, ele joga com esses esteretipos para definir um ethos singular.Enquanto o ethos publicitrio habitual concebido para ser imediatamente reconhecido,o ethos de uma enunciao como a de Althusser no pode ser verdadeiramente apreen-

    dido seno com a prpria leitura do texto, entrando progressivamente no universo queele configura.

    ALGUNSETHEQUEIMPEMPROBLEMASO texto de Althusser nos mostra um ethos que podemos chamar de hbrido, uma

    vez que ele mistura ethe. Mas o discurso publicitrio tambm faz uso de ethe hbridos. o caso, por exemplo, de um folheto destinado promoo de uma festival organizado

    pela associao Culture la ferme*

    :

    * N.T. sobre a nota do autor: Esse nome poderia ser traduzido como Cultura na fazenda. Trata-se do festival Les comiquesagricoles, que aconteceu em julho de 1999 em Beauquesne, na Picardia, regio do norte da Frana.

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    Eis o texto que est na coluna direita da imagem:O festival um momento, uma emoo, um s olhar absorto na cena, a concentrao do temponum espao reduzido. E, alm do mais, tem tudo o que est em volta. que em Beauquesne oespetculo acontece no estbulo da fazenda. Ento, em volta tem a abegoaria e tem o pasto. Naabegoaria, a gente pode visitar exposies: fotos do festival, imagens de pessoas, imagens de

    momentos. No pasto, a gente fica bebendo com os amigos, tem janta antes do espetculo, edepois pode ficar pra ceia, em vez de ir embora logo. A gente fica ali, conversando sobre osespetculos que foram vistos e os que ainda sero. Muitas lembranas vo sendo contadas a cadaano. s vezes, a gente fica cantando e at mesmo toca alguma coisa. Enfim, a gente segue vivendo.

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    Um ethos como esse surpreendente para um leitor francfono. Ele misturaostensivamente traos que relevam do ethos de um profissional da produo cultural comtraos de um ethos rural. Certos fragmentos parecem sair do prospecto de uma exposiode arte moderna: O festival um momento, uma emoo, um s olhar absorto na cena,

    a concentrao do tempo num espao reduzido, fotos do festival, imagens de pessoas,imagens de momentos Outros fragmentos ostentam uma oralidade algo desajeitadaou um lxico campons arcaizante (a abegoaria, a ceia). Trata-se de um padrodiscursivo, da representao estereotipada da fala de um campons, no de um dialetoespecfico da regio em que acontece o festival. Associando a meditao intelectual simplicidade camponesa, o ritmo lento da enunciao incorpora o leitor a um universosossegado, imemorial, algo que evoca a cadncia indolente das vacas na imagem ao lado.

    Tal ethos hbrido no corresponde diretamente a uma realidade social: difcil imaginar

    que locutores poderiam se exprimir espontaneamente com essa combinao de falacamponesa e fala sofisticada. Mas, como no texto de Althusser citado acima, esse ethosartificial no to arbitrrio: ele d consistncia ao que se pretende para esse festival (culturana fazenda), que visa misturar o mundo rural tradicional com a cultura citadina. Pormeio de um processo de incorporao, o ethos dessa publicidade permite dar umaconsistncia imaginria a essa associao improvvel da elegncia urbana com um retornoao mundo campons posto como autntico. Trata-se de, pelo discurso, ultrapassar aoposio cidade/campo numa nova unidade, como ocorre, num outro nvel, com o achadofrancs rurbain (rural + urbain), que designa os citadinos que, cada vez mais

    numerosos, moram no campo sem pertencer ao universo rural tradicional.Seja no texto de Althusser ou nesse folheto publicitrio, vemos a capacidade do

    discurso de criar ethe que no remetem a modos de dizer socialmente atestados, e que,no entanto, tm eficcia social, uma vez que permitem definir cenas de enunciao nasquais os atores sociais do sentido a suas atividades.

    Evoquemos, agora, o problema posto pelos textos nos quais o ethos s tem existnciaintertextual. o caso, por exemplo, do trabalho do filsofo francs de origem romenaCioran, que escreveu um certo nmero de obras nas quais ele adota um ethos moralista.

    Moralista, aqui, no s algum que critica a moral de seus contemporneos, mas algumque o faz por meio de uma escritura bem identificada, dentro da tradio de autores francesesdos sculos XVII e XVIII, tais como La Rochefoucault, Chamfort, Vauvenargues etc.,associados de maneira privilegiada ao gnero da mxima. A seguir, uma passagemcaracterstica da escritura de Cioran, as primeiras linhas de sua obraA queda no tempo:

    No bom para o homem lembrar-se a cada instante de que ele homem. Dobrar-se sobresi j ruim; dobrar-se sobre a espcie, com o zelo de um obcecado, ainda pior: conferirs misrias arbitrrias da introspeco um fundamento objetivo e uma justificao filosfica.Tanto se rumina sobre o prprio eu, que possvel dizer que, afinal, cede-se a um capricho;e, ento, todos os eus se tornam o centro de um interminvel remoimento e, num dessesvolteios, acabam generalizadas as inconvenincias dessa condio, o acidente pessoal erige-se em norma, em caso universal (1964: 9).

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    Aqui, o mundo tico que a leitura ativa no corresponde a um universo decomportamento social atribuvel: nenhum esteretipo da vida social responde a um talethos, mas, sim, uma atitude de escritura associada a uma corrente da tradio literria.

    Registrarei, enfim, o problema posto pelos textos de que parece no emergir nenhum

    ethos, nos quais parece que ningum fala, para retomar a clebre formulao deBenveniste, ou seja, enunciados desprovidos de marcas de subjetividade enunciativa. Comopode haver um ethos num enunciado (jurdico, cientfico, narrativo, histrico,administrativo...) que no mostra a presena de um enunciador?De fato, quando se trabalhasobre textos desse tipo, o apagamento do enunciador no impede de caracterizar a fonteenunciativa em termos de ethos de um fiador . No caso de textos cientficos ou jurdicos,por exemplo, os fiadores, para alm dos seres empricos que produzem materialmente ostextos, so entidades coletivas (os sbios, os homens da lei), elas mesmas representantes

    de entidades abstratas (a Cincia, a Lei) cujos membros esto autorizados a assumir opoder quando tomam a palavra. Considerando que em qualquer sociedade toda palavra socialmente encarnada e avaliada, vemos que a palavra cientfica ou jurdica inseparvelde mundos ticos bem caracterizados (sbios com jalecos brancos em laboratriosimaculados, juzes austeros num tribunal), nos quais o ethos assume, segundo cadacaso, as cores da neutralidade, da objetividade, da imparcialidade etc.

    ETHOSEDISCURSOINDIRETOLIVREPara terminar, gostaria de sublinhar a relao interessante que se estabelece entre

    discurso indireto livre e ethos. Um dos interesses do discurso indireto livre que elepermite, atravs do ritmo, do lxico, da sintaxe, que ethe sejam percebidos pelosleitores sem que lhes sejam reconstitudos os propsitos exatos dos locutores citados.Podemos ilustrar isso com os romances naturalistas de E. Zola. Em A Taberna(1877),por exemplo, ele no se atm a contar uma histria que se passa no universo dos operriosparisienses, ele se esfora para restituir suas maneiras de falar, seu ethos discursivo. Estapassagem, muito caracterstica, um excerto da descrio de uma refeio festiva*:

    Mais Coupeau se fcha et servit un haut de cuisse Virginie, criant que, tonnerre deDieu! si elle ne le dcrottait pas, elle ntait pas une femme. Est-ce que loie avait jamaisfait du mal quelquun?Au contraire, loie gurissait les maladies de rate. On croquait asans pain, comme un dessert. Lui, en aurait bouff toute la nuit, sans tre incommod; et,pour crner, il senfonait un pilon entier dans la bouche. Cependant, Clmence achevaitson croupion, le suait avec un gloussement des lvres, en se tordant de rire sur sa chaise, cause de Boche qui lui disait tout bas des indcences. Ah! nom de Dieu! oui, on senflanqua une bosse! Quand on y est, on y est, nest-ce pas, et si lon ne se paie quungueuleton par-ci, par-l, on serait joliment godiche de ne pas sen fourrer jusquaux oreilles.

    * N.T.: Dadas as caractersticas desse excerto literrio de Zola, especialmente do jogo de tempos verbais de que se vale,para melhor proveito da anlise, optamos por manter a passagem em francs.

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    Vrai, on voyait les bedons se gonfler mesure. Les dames taient grosses. Ils ptaient dansleur peau, les sacrs goinfres! La bouche ouverte, le menton barbouill de graisse, ils avaientdes faces pareilles des derrires, et si rouges, quon aurait dit des derrires de gens richescrevant de prosprit (captulo 7).

    Esse texto mostra uma grande unidade do ponto de vista do ethos, apesar dadiversidade enunciativa. Quando olhamos detalhadamente para ele, de fato pareceheterogneo, passando constantemente de um plano de enunciao a outro. A primeirafrase, por exemplo, uma hibridao enunciativa:

    Mais Coupeau se fcha et servit un haut de cuisse Virginie, criant que, tonnerre deDieu! si elle ne le dcrottait pas, elle ntait pas une femme.

    A frase globalmente assumida pelo narrador naturalista, cujo ethos legitimadocomo neutro, conforme o padro discursivo da narrao literria tradicional na 3 pessoa

    e no passsimple. Mas o discurso indireto (criant que...) remexe dentro do discursoindireto livre, reconhecvel na construo com si, na presena do imparfaite de termosou falas marcados como populares (dcrottait, elle ntait pas une femme). Podemosconsiderar a praga rogada tonnerre de Dieu! como pertencente ao discurso indiretolivre ou podemos ver a uma i lhota enunciativa,posta na juntura da narrao no-embreada com o discurso indireto livre, que aparece logo depois:

    Est-ce que loie avait jamais fait du mal quelquun? Au contraire, loie gurissait lesmaladies de rate. On croquait a sans pain, comme un dessert. Lui, en aurait bouff toutela nuit, sans tre incommod.

    O discurso indireto livre mistura marcas atribuveis voz do narrador distanciado (no-pessoa e imparfait, em particular) e outras voz de Coupeau (interrogao, vocabulriopopular, frase deslocada). Mas, para alm de tal ou qual trao, o ethos do operrioparisiense que posto em foco, relegando a segundo plano a voz do narrador zero.

    A narrao evita tanto a oralidade pura do discurso direto quanto a tomada de distnciado puro discurso indireto, que teria absorvido as palavras das personagens nas do narrador,apagando a alteridade linguageira dos operrios. O autor tomou partido ao recorrer a formashbridas que garantem um ethos relativamente homogneo, reforado pela onipresena

    do imparfaitque cobre tanto os fragmentos do narrador distanciado quanto as seqnciasem que outras vozes esto implicadas. que o projeto naturalista de Zola no consiste sem descrever do exterior um determinado mundo, ele busca, mais alm, dar acesso scategorizaes implicadas nos comportamentos daqueles que participam desse mundo.Assim, nesse excerto, trata-se, antes de tudo, de provocar a empatia do leitor, de torn-losensvel, por meio do ethos discursivo, a uma maneira popular de habitar o corpo.

    As personagens dessa cena de banquete partilham uma mesma maneira de estar nomundo. Nessa festa do corpo, convergem um ethos discursivo fortemente caracterizado eum enredamento em que se inscreve um processo de incorporao: porque os convivascomem, porque seus propsitos tm a ver diretamente com essa comida, porque dessemodo eles formam um corpo, revigoram sua comunidade. O leitor, na sua prpria leitura, convidado a participar, ele tambm, dessa refeio, a compor esse corpo com os operrios.

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    CONCLUSOA problemtica do ethos pede que no se reduza a interpretao dos enunciados a

    uma simples decodificao; alguma coisa da ordem da experincia sensvel se pe na

    comunicao verbal. As idias suscitam a adeso por meio de umamaneira de dizerque tambm umamaneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e invisvel, o co-enunciador faz mais que decifrar contedos: ele participa do mundo configurado pelaenunciao, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada, permitindo eleprprio que um fiador encarne. O poder de persuaso de um discurso deve-se, emparte, ao fato de ele constranger o destinatrio a se identificar com o movimento de umcorpo, seja ele esquemtico ou investido de valores historicamente especificados.

    Com isso, tambm tomamos distncia de uma concepo do discurso que se faz verem noes como procedimento ou estratgia, para a qual os contedos seriam

    independentes da cena de enunciao que deles se encarregam. Afinal, cremos que aadeso do destinatrio se opera por um escoramento recproco entre a cena de enunciao,da qual o ethos participa, e o contedo nela desdobrado.

    (Traduo: Luciana Salgado)

    NOTA1 Trata-se, na verdade, de uma obra coletiva; na verso de 1968, ela contm, alm do texto de Althusser, exposies de

    Balibar, Rancire, Establet, Macherey. Cito aqui a edio abrandada (frmula de Althusser) de 1971, que contm

    contribuies de Althusser e de Balibar.

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