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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA SOCIAL MAILSON GUSMÃO MELO UM SUJEITO HISTÓRICO, VÁRIOS PERSONAGENS: representações historiográficas sobre Manuel Beckman São Luís 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA SOCIAL

MAILSON GUSMÃO MELO

UM SUJEITO HISTÓRICO, VÁRIOS PERSONAGENS:

representações historiográficas sobre Manuel Beckman

São Luís

2014

Page 2: MAILSON GUSMÃO MELO - ppghis.ufma.br€¦ · Brasil 4. Memória Melo, Mailson Gusmão Um sujeito histórico, vários personagens: representações historiográficas sobre Manuel

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MAILSON GUSMÃO MELO

UM SUJEITO HISTÓRICO, VÁRIOS PERSONAGENS:

representações historiográficas sobre Manuel Beckman

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História Social (Mestrado

Acadêmico) da Universidade Federal do

Maranhão, como requisito para a obtenção do

grau de Mestre em História Social.

Orientador: Prof. Dr. João Batista Bitencourt.

São Luís

2014

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Melo, Mailson Gusmão

Um sujeito histórico, vários personagens: representações historiográficas

sobre Manuel Beckman/ Mailson Gusmão Melo. – 2014.

116 f.

Impresso por computador (Fotocópia).

Orientador: João Batista Bitencourt.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de

Pós-Graduação em História Social, 2014.

1. Historiografia – Maranhão 2. Manuel Beckman 3. Historiografia –

Brasil 4. Memória

I. Título

CDU 82 – 94 (812.1)

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MAILSON GUSMÃO MELO

UM SUJEITO HISTÓRICO, VÁRIOS PERSONAGENS:

representações historiográficas sobre Manuel Beckman

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História Social (Mestrado

Acadêmico) da Universidade Federal do

Maranhão, como requisito para a obtenção do

grau de Mestre em História Social.

Aprovada em: 30/09/2014.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof. Dr. João Batista Bitencourt (Orientador)

Universidade Federal do Maranhão

_________________________________________

Prof. Dr. Alirio Carvalho Cardoso

Universidade Federal do Maranhão

___________________________________________

Prof. Dr. Rafael Ivan Chambouleyron

Universidade Federal do Pará

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Dedico este trabalho a minha mãe

Ana Maria Almeida.

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5

AGRADEÇO

A Deus por nos ajudar a chegar até aqui.

A meu orientador, João Batista Bitencourt, que acompanhou e orientou a tecitura da

dissertação, e a quem só tenho a agradecer.

À minha mãe, Ana Maria, pelo seu apoio incondicional.

À minha avó, Eulália Gusmão, pelo carinho de sempre.

A meu pai, José Ribamar.

Aos meus irmãos, José, Elizângela, Ana Paula, Jailson e Luiza.

Aos meus sobrinhos(as), Anderson, Wanderson, Akilles, Rafael, Heitor, Sara, Andreina e

Accla.

Aos meus tios(as) e primos(as), não citarei nomes, pois correria o risco de esquecer alguém.

Ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMA, que nos possilbilitou essa grande

conquista.

Aos professores do mestrado, pelo trabalho exemplar ao ministrarem suas respectivas

disciplinas.

Aos professores da graduação, que nos forneceram as bases para os novos passos na vida

acadêmica.

À FAPEMA, que financiou nossa pesquisa.

Aos colegas do mestrado, turma 2012.

Aos colegas da graduação, turma 2006.2.

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RESUMO

Trata-se de uma pesquisa a respeito de representações historiográficas sobre Manuel

Beckman, líder do motim ocorrido no Maranhão em 1684, para a qual utilizamos seis

obras principais. São trabalhos que se dedicaram de forma mais centrada a respeito de

Manuel Beckman e seu motim. Analisamos: Relação histórica e política dos tumultos

que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão com os sucessos mais notáveis que

nele aconteceram, de Francisco Teixeira de Moraes (1692); Crônica da missão dos

padres da Companhia de Jesus no estado do Maranhão, de João Filipe Bettendorff

(escrita entre 1669 e 1698); Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo

Pereira de Berredo (1749); História do Brasil, de Robert Southey (1810); Jornal de

Timon: Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à História do Maranhão,

de João Francisco Lisboa (1852-54); História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de

Varnhagen (1854-1857). Os autores citados acima contemplam Beckman em obras

gerais sobre o Maranhão e o Brasil, porém, a importância dada ao acontecimento varia

de obra para obra. Os autores ocupam lugares de destaque dentro da discussão

historiográfica maranhense e nacional, principalmente João Lisboa, Francisco Adolfo de

Varnhagen e Robert Southey. Esses trabalhos constituem nossas principais fontes, nos

quais, procuramos observar como Beckman aparece em cada obra e a forma como os

autores constroem em suas narrativas este personagem e a revolta por ele liderada, se

adequando aos vários momentos da história local e nacional. Assim como o lugar da

produção e os elementos da escrita em cada autor. Estudamos, ainda, a fabricação e a

celebração de alguns eventos e monumentos dedicados a memória dele, assim como um

tipo específico de representação historiográfica a partir de João Francisco Lisboa.

Palavras-Chave: Manuel Beckman. Historiografia brasileira e maranhense.

Representação. Memória.

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RÉSUMÉ

Il s'agit d'une enquête sur les représentations historiographiques sur Manuel Beckman,

chef du soulèvement survenu dans Maranhão en 1684, pour lequel nous utilisons six

œuvres majeures. Ces travaux ont été consacrés à de façon plus ciblée sur Manuel

Beckman et sa révolte. Analysé: Relação histórica e política dos tumultos que

sucederam na cidade de São Luís do Maranhão com os sucessos mais notáveis que nele

aconteceram, de Francisco Teixeira de Moraes (1692); Crônica da missão dos padres

da Companhia de Jesus no estado do Maranhão, de João Filipe Bettendorff (escrita

entre 1669 e 1698); Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de

Berredo (1749); História do Brasil, de Robert Southey (1810); Jornal de Timon:

Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à História do Maranhão, de João

Francisco Lisboa (1852-54); História Geral do Brasil, de Adolfo de Varnhagen (1854-

1857). Les auteurs cités ci-dessus comprennent Beckman dans des ouvrages généraux

sur le Maranhão et le Brésil, mais l'importance accordée à l'événement varie de travail

pour travailler. Les auteurs occupent des postes importants dans le débat

historiographique Maranhão et national, notamment João Lisboa, Adolfo de Varnhagen

et Robert Southey. Ces œuvres sont nos principales sources. Dans lequel nous

cherchons à observer comment Beckman apparaît dans chaque œuvre et comment les

auteurs construisent leurs récits dans ce personnage et la révolte menée par lui, s'adapter

aux différents moments de l'histoire locale et nationale. Comme le lieu de production et

les éléments de l'écriture dans chaque auteur. Également étudié la production et la

célébration de certains événements et monuments dédiés à la même mémoire ainsi que

d'un type spécifique de la représentation historiographique de João Francisco Lisboa.

Mots-Clés: Manuel Beckman. Bresilienne et Maranhense Historiographie.

Représentation. Mémoire.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................... 11

1 QUAL O SIGNIFICADO DO LUGAR DO HISTORIADOR E DA

OBRA NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA? O mundo da

produção historiográfica em Teixeira de Moraes, Filipe Bettendorff,

Bernardo de Berredo, Robert Southey, Francisco Adolfo de Varnhagen

e João Lisboa ...........................................................................................

18

1.1 TEIXEIRA DE MORAES: uma história moralizante ............................. 20

1.2 JOÃO FILIPE BETTENDORFF: um religioso humanista ..................... 22

1.3 BERNARDO DE BERREDO: do campo de batalha ao campo da

História ....................................................................................................

26

1.4 ROBERT SOUTHEY: poeta e historiador .............................................. 30

1.5 FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN: um modelo para a

história nacional ......................................................................................

35

1.6 JOÃO FRANCISCO LISBOA: o Tímon maranhense? .......................... 41

1.7 O MOTIVADOR NA PESQUISA: que procura o historiador? ............ 49

2 O CALEIDOSCÓPIO MANUEL BECKMAN: um sujeito histórico,

múltiplos olhares .....................................................................................

52

2.1 O OLHAR SOBRE BECKMAN ANTES DA INDEPENDÊNCIA .... 55

2.1.1 Na visão dos contemporâneos: Teixeira de Moraes e Filipe Bettendorff 55

2.1.2 Uma visão posterior aos contemporâneos: Bernardo de Berredo e

Robert Southey ........................................................................................

62

2.2 O OLHAR SOBRE BECKMAN NO PÓS-INDEPENDÊNCIA:

Francisco Adolfo de Varnhagen e João Lisboa .......................................

67

2.3 O QUE MUDA E POR QUE MUDA? .................................................. 72

3 HISTÓRIA E MEMÓRIA: o caso Manuel Beckman .......................... 78

3.1 A CRISTALIZAÇÃO DE UM TIPO DE TRADIÇÃO

HISTORIOGRÁFICA SOBRE MANUEL BECKMAN: a partir de

João Francisco Lisboa .............................................................................

78

3.1.1 César Marques ......................................................................................... 79

3.1.2 Barbosa de Godóis ................................................................................... 82

3.1.3 Jerônimo de Viveiros ............................................................................... 84

3.1.4 Mário Meireles ........................................................................................ 86

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3.1.5 Maria Liberman ....................................................................................... 90

3.1.6 Milson Coutinho ...................................................................................... 94

3.2 MEMÓRIA HISTÓRICA: Embates por uma memória consistente de

Manuel Beckman .....................................................................................

98

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 108

BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 110

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O passado chega ao presente em ruínas, aos pedaços,

em fragmentos, pela ação erosiva do tempo: prédios,

templos, imagens humanas e sagradas, livros, ideias,

rituais, palavras, estórias, histórias, cemitérios,

ícones, instrumentos, técnicas, artes etc. Em geral

chegam cortados, amputados, desviados, quebrados,

incompletos, alterados, semidestruídos, mesmo

(sobretudo) quando reconstruídos (REIS, 2006, p.

191).

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INTRODUÇÃO

O objeto da pesquisa centra-se em uma investigação acerca das representações que

diferentes autores, ao longo do tempo, construíram sobre Manuel Beckman, líder do motim

que leva seu nome, ocorrido no Maranhão no ano de 1684. O trabalho é realizado a partir de

representações, pelo fato conhecido de que o historiador não tem com chegar ao passado de

forma clara e concreta, uma vez que o passado já não é. O fato passado continua o mesmo

sem alterações, o que se torna múltiplo são os olhares sobre tal acontecimento, uma vez que

cada geração busca respostas para questões do seu próprio presente.

Mas, qual a importância de discutir certa historiografia acerca de Manuel Beckman

nos dias atuais? A simples tarefa de estudar produções de caráter historiográfico, distribuídas

ao longo das épocas, trazendo estas do passado para uma discussão no presente, já podemos

considerar uma atividade de grande valor. É de fundamental importância de tempos em

tempos rastrear o que se tem produzido de importante sobre uma temática ou, como em nosso

caso, especificamente sobre um sujeito. Podemos trabalhar questões como a relevância da

obra, o contexto histórico e, até mesmo, apresentar certas obras ao público para não caírem

em esquecimento.1

Manuel Beckman tem sido constantemente lembrado, uma vez que, temos bairro,

avenida, rua, cidade, estátua, escola, praça, monumento, medalha de honra ao mérito e até

mesmo o prédio da Assembleia Legislativa do Maranhão chama-se Palácio Manuel Beckman.

Ao que se percebe, mesmo com todo o investimento em promover Beckman, não vemos um

grande fortalecimento de uma memória coletiva em torno do personagem, ao contrário do

investimento de uma minoria, formada por intelectuais e principalmente por políticos, que

buscam incansavelmente construir uma memória sólida dele.

Manuel Beckman nasceu em Lisboa em 1630, em dia e mês ainda não identificados,

filho de pai teuto e mãe portuguesa. Chegou ao Maranhão com 32 anos de idade, mais

precisamente no ano de 1662; dois anos depois se casou com Maria de Almeida e Cáceres.

Sua primeira aparição na vida pública no Maranhão ocorreu em 1668, quando se tornou

vereador de São Luís. Anos mais tarde, foi a vez de seu irmão Tomás Beckman, desembarcar

em São Luís, casando-se com Helena de Cáceres. Beckman levou uma vida bastante agitada,

sendo preso por duas vezes antes do motim de 1684. A primeira em 1670, quando um

funcionário de sua fazenda foi encontrado morto nas matas da propriedade; a vítima era o

1 SILVA, 2001, p. 13.

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português Manuel Correia. Além dos irmãos Beckman foram arrolados no processo o feitor

Francisco de Barros e o cunhado dos dois primeiros, José de Cáceres. Beckman foi posto em

liberdade em 1672, uma vez que não foi comprovada sua participação no crime, porém o

feitor de sua fazenda foi condenado à forca e a ser esquartejado, sendo que a única prova para

sua condenação consistiu num depoimento de uma mulher que teria encontrado sangue em

sua camisa. Já a segunda ocorre em 1678, no governo de Inácio Coelho da Silva, quando

Beckman reagiu à nomeação de Vital Maciel Parente, filho do ex-governador Bento Maciel,

para o governo do Maranhão, pois Coelho iria retirar-se para o Grão-Pará (Belém). Manuel

Beckman alegou que no Maranhão teriam pessoas capacitadas para dirigir a Capitania. Foi

posto em liberdade dois anos depois, em 1680, segundo Maria Liberman,2 graças uma carta

escrita por Beckman e enviada ao rei de Portugal. E por ser considerado o líder do motim de

1684, terminou sendo executado no dia 10 de novembro de 1685. Deixou esposa e duas filhas.

Contra a família de Beckman pesava também a questão da ascendência judaica.

Maria Liberman escreveu que a Inquisição no Maranhão, na qual os irmãos Beckman foram

arrolados como hereges, aconteceu entre os anos de 1678 e 1680. Contra os irmãos

apareceram cinco testemunhas, porém, uma chama a atenção: Vital Maciel Parente, motivo da

segunda prisão de Manuel Beckman. As testemunhas de forma unânime teriam confirmado a

participação deles em práticas heréticas; por outro lado, nenhum deles presenciou tais rituais,

sendo assim as acusações se resumiram a “ouvi dizer”.3 A família Cáceres à qual Beckman

pertencia por parte do matrimônio também era de origem judaica, sendo conhecidos em

Portugal desde o século XVI; em autos de fé realizados na América foram penitenciados

membros da família; foram alguns condenados pela Inquisição de Lisboa no século XVII.4

Na noite do dia 24 de fevereiro de 1684, eclodiu o motim do Maranhão; os líderes

aproveitaram que era a Semana Santa, e por esse motivo muitas famílias se deslocavam para

suas casas em São Luís, e quanto mais pessoas estivessem envolvidas com a causa, mais

tinham garantia de sucesso. Os alvos dos moradores eram os jesuítas, a autoridade do próprio

governador, que havia se instalado em Belém do Pará, e também um monopólio de comércio,

denominado de estanco. Os amotinados, em número aproximado de cem pessoas, tomaram a

cidade, rendendo a guarda, em seguida marcharam em direção à residência do capitão-mor

Baltasar de Sousa Fernandes para efetuar sua prisão. Formaram uma junta de governo,

representada por três estados: o clero (os padres Inácio da Fonseca e Inácio da Assunção), a

2 LIBERMAN, 1983, p.74 3 Id. Ibid., p. 77-79. 4 Id. Ibid., p.70.

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nobreza (Manuel Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão) e o povo (Francisco Dias Deiró e

Belchior Gonçalves), os amotinados decretaram a abolição do estanco, a expulsão dos

jesuítas, a prisão do capitão-mor do Maranhão e a negação da obediência ao governador.

Após tomar a cidade, os amotinados tentaram convencer as capitanias vizinhas, como

Tapuitapera e Pará, a aderir ao motim. Entretanto, as Câmaras e os habitantes das demais

regiões do Estado não se juntaram aos de São Luís.

Autores de renome, como João Francisco Lisboa, caracterizam o motim de 1684

como uma revolução, que visava à proclamação de uma república em terras maranhenses.

Segundo Rafael Chambouleyron, o movimento não foi revolucionário, já que não contestava a

ordem estabelecida. A contestação se deu contra políticas específicas da coroa portuguesa; os

“furiosos” queriam resolver a situação de “miséria” da qual o Maranhão estava acometido.5

Não é por acaso que desde o início do motim, Tomás Beckman foi escolhido como

procurador do povo, para representar os amotinados na metrópole perante o rei, sendo assim o

motim nunca teve a pretensão de romper os laços coloniais com Portugal.

A Companhia de Comércio do Estado do Maranhão ou Estanco fazia parte da

política econômica mercantilista; era uma forma de Portugal proteger suas colônias da

concorrência estrangeira. A instituição das Companhias foi uma forma pensada para

desenvolver novas terras, em que os recursos individuais não eram suficientes para garantir o

desenvolvimento comercial. O estanco foi legalizado em Lisboa entre a coroa portuguesa e

um grupo de negociantes – essa era uma situação muito comum se a metrópole não tivesse os

recursos necessários para a colonização, entregava à iniciativa privada – cuja diretoria era

composta por seis membros: Manuel Pinto Valdez, Pedro Álvares, Antônio Rodrigues

Marques, Antônio da Gama de Pádua, Luís Correia de Paz e Pascoal Pereira Jansen – este

veio para o Maranhão com a missão de implantar e gerenciar o monopólio. O novo

empreendimento foi confirmado pelo alvará de 12 de fevereiro de 1682. A partir desse

momento, o comércio foi proibido aos colonos, tendo eles um prazo de dois anos para

resolver questões comerciais firmadas anteriormente. Os jesuítas, que eram também donos de

algumas fazendas, foram isentos do domínio do estanco, pela provisão de 8 de junho de 1682;

também foram isentos os padres da missão de Santo Antônio, estes pela provisão de 28 de

janeiro de 1683.6 A implantação do estanco implicou o privilégio exclusivo do comércio de

toda a capitania do Maranhão e Grão-Pará por um período de vinte anos. A Companhia teria

sido instituída com a finalidade de desenvolver o Maranhão e o Amazonas, assim como todo

5 CHAMBOULEYRON, 2006, p. 159-178. 6 VIVEIROS, 1992, p. 49-50.

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o Norte do Brasil e amenizar os conflitos entre os colonos e a coroa portuguesa. Francisco Sá

e Meneses foi o governador responsável pelo estabelecimento do estanco. Sá e Meneses era

doutor em Direito Civil, quando foi escolhido para o cargo de Governador e Capitão-General

do Maranhão ocupava o cargo de vereador na câmara municipal de Lisboa. A Companhia de

Comércio tinha por obrigação enviar dez mil africanos ao Maranhão, sendo quinhentos por

ano, era responsável também por enviar gêneros para o consumo dos moradores. Pelos termos

do estanco, seus administradores eram obrigados a mandar ao menos um navio por ano ao

Maranhão e outro ao Pará, só seria permitida a entrada de navios estrangeiros se o

comandante e a maioria da tripulação fossem portugueses, e os navios deveriam partir de

Portugal e seu retorno deveria ser para o mesmo lugar da partida. Os administradores do

estanco tinham acesso livre ao interior do território, e que nem mesmo o governador poderia

impedi-los, sob pena de indenizar qualquer dano; poderiam estabelecer feitorias se caso

tivessem interesses. Poderiam ter no Maranhão, assim como no Pará, até cem casais de índios

por administração, para a fabricação de farinha e outros mantimentos. Tinham direito a um

sacerdote em suas propriedades para catequizar e administrar os sacramentos para os

indígenas. Além do mais, deveriam receber casas para moradia, armazéns, e o que mais fosse

necessário para melhor administração do monopólio, assim como os mesmos privilégios dos

administradores do Alentejo.7

Se observarmos com atenção a historiografia sobre o Maranhão colonial,

perceberemos como tal período é marcado por instabilidade governamental, sendo recorrentes

os tumultos ou motins, a exemplo dos ocorridos nos anos de 1618, 1622, 1653, 1655 e 1661,8

contudo, o mais importante deles ocorreu 1684. Conforme atesta certa historiografia,9 o

motim de Beckman eclodiu em contestação aos desmandos dos governadores, contra a

miséria do povo e a falta de mão de obra para a lavoura. Entretanto, o movimento, como

explicamos anteriormente, nunca pretendeu a separação entre colônia e metrópole, uma vez

que os amotinados sempre buscavam conciliação com a coroa portuguesa.

7 Alvará de 12 de fevereiro de 1682 de confirmação do assento do estanco do Maranhão e Pará juntamente com o

contrato de Cacheu feito com Manuel Pinto Valdez, Pedro Álvares, Antônio da Gama de Pádua, Pascoal Pereira

Jansen, Antônio Rodrigues Marques e Luís Correia da Paz (LISBOA, 1990, p. 188-190). 8 Os tumultos citados acima se referem principalmente às intrigas sobre as questões indígenas que envolveram

religiosos, colonos e administradores. No motim de 1661, ocorreu a primeira expulsão dos jesuítas. Sobre tais

tumultos ver: COUTINHO, 2004. 9 Anais Históricos do Estado do Maranhão, 1749, de Bernardo Pereira de Berredo; A Revolta de Bequimão,

1984, de Milson Coutinho; História do Maranhão, 1904, de Barbosa de Godóis; O Levante do Maranhão “judeu

cabeça de motim”: Manoel Beckman, 1983, de Maria Liberman; Jornal de Tímon. Tomo II: apontamentos,

notícias e observações para servirem à história do Maranhão, 1852-54, de João Lisboa; História do Maranhão,

1960, de Mário Meireles; História do Brasil. IV vol., 1810, de Robert Southey; e a História Geral do Brasil.

Tomo III, 1854-57, de Francisco Adolfo de Varnhagen.

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Em 1685, temos a retomada do poder pela metrópole na figura do novo governador

Gomes Freire de Andrada. Este, não encontrando nenhuma resistência por parte dos

amotinados, assumiu o poder logo após o desembarque e, em seguida, decretou a prisão dos

principais líderes do motim e restabeleceu o funcionamento do estanco, que foi abolido

tempos depois. Freire de Andrada foi Tenente-General de Cavalaria da Província da Beira.

O motim de 1684 ou “revolta do estanco”, ou simplesmente de “Beckman”, seria o

movimento que se mostrou mais forte frente aos desmandos dos administradores coloniais,

sendo também aquele que sofreu maior repressão, culminando com a pena capital para dois

dos seus principais líderes: Manuel Beckman e Jorge Sampaio.

Ao começarmos a rastrear a historiografia que trata da figura de Beckman,

percebemos que os personagens que surgem a partir daquele sujeito histórico começaram a ser

forjados ainda entre seus contemporâneos, a exemplo de: Francisco Teixeira de Moraes,

Relação histórica e política dos tumultos que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão

com os sucessos mais notáveis que nele aconteceram, de 1692; e do Padre João Filipe

Bettendorff, Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão,

escrita entre 1669 e 1698. Daí em diante, quase todos os trabalhos locais ou regionais sobre

história colonial ou geral reservam algumas páginas para tratar da revolta do estanco e de seus

“Beckmans”, vejamos: Bernardo de Berredo, Anais Históricos do Estado do Maranhão, de

1749; Frei Domingos Teixeira, Extratos da vida de Gomes Freire de Andrade na parte

relativa ao motim de Manoel Beckman, de 1797; Robert Southey, História do Brasil, de 1810;

João Francisco Lisboa, Jornal de Timon: Apontamentos, Notícias e Observações para

servirem à História do Maranhão, de 1852-1854; Francisco Adolfo de Varnhagen, História

Geral do Brasil, de 1854-1857; César Augusto Marques, Dicionário histórico-geográfico da

Província do Maranhão, de 1870; Domingos Joaquim da Fonseca, Manoel Beckman: drama

histórico em verso e em seis atos, de 1888; Antônio Batista Barbosa de Godóis, História do

Maranhão, de 1904; Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial, de 1907; Clodoaldo

Freitas, O Bequimão: esquisso de um romance, de 1908; José Ribeiro do Amaral, O

Maranhão histórico, artigos publicados entre 1911 e 1912;10 Fran Paxeco, O Maranhão:

subsídios históricos e corográficos, de 1912; Jerônimo de Viveiros, História do comércio do

Maranhão, de 1954; Mario Martins Meireles, História do Maranhão, de 1960; Bernardo

Coelho de Almeida, O Bequimão (romance), de 1978; Stela Leonardos, Romanceiro do 10 A obra O Maranhão histórico é constituída por artigos publicados entre 1911 e 1912 no Diário Oficial do

Estado do Maranhão, jornal até então dirigido por Domingos Barbosa. Os artigos foram reunidos por Luiz de

Mello e publicados pelo Instituto Geia, na Coleção Geia de Temas Maranhense em 2003. O artigo que trata de

Beckman traz como título “Bequimão e seus descendentes”.

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Bequimão, de 1979; Maria Liberman, O levante do Maranhão “judeu cabeça do motim”: Manoel

Beckman, de 1983; Milson Coutinho, A revolta de Bequimão, de 1984; Carlos de Lima,

História do Maranhão: a colônia, de 1981. São trabalhos produzidos ao longo de quatro

séculos, que envolve produções representantes do romance, do teatro e principalmente de

caráter historiográfico.

Para este estudo, utilizamos seis obras, nossas principais fontes. São trabalhos que se

dedicaram de forma mais centrada a respeito de Manuel Beckman e seu motim. Analisamos:

Relação histórica e política dos tumultos que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão,

com os sucessos mais notáveis que nele aconteceram, de Francisco Teixeira de Moraes;

Crônica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, de João

Filipe Bettendorff; Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de

Berredo; História do Brasil, de Robert Southey; História Geral do Brasil, de Francisco

Adolfo de Varnhagen; Jornal de Timon: Apontamentos, Notícias e Observações para

servirem à História do Maranhão, de João Francisco Lisboa. Os seis autores contemplam

Beckman em obras gerais sobre o Maranhão e o Brasil, mas a importância dada ao

acontecimento varia de obra para obra. Eles ocupam lugares de destaque dentro da discussão

historiográfica maranhense e nacional, principalmente João Lisboa, Francisco Adolfo de

Varnhagen e Robert Southey. Devemos salientar que a grafia dos textos mais antigos, nas

citações, foi atualizada.

Para melhor organizar nosso trabalho, dividimos o texto em três capítulos, numa

sequência que acreditamos ser a mais lógica para a interpretação.

No primeiro capítulo, dissertamos sobre os seis autores selecionados, no sentido de

ter certa compreensão do mundo do autor e do lugar da produção, aquilo que Michel de

Certeau chamou de lugar teórico e institucional do discurso historiográfico, já que todo

historiador fala de um lugar e de um tempo determinado, questões essas que irão influenciar

diretamente seu olhar sobre um determinado assunto.

O segundo capítulo está dividido em três partes, nas quais dissertamos sobre os

sentidos, ou melhor, os significados que são atribuídos a Manuel Beckman e seu motim, uma

narrativa colonial – dividida em dois momentos, uma dos contemporâneos (Teixeira de

Moraes e Filipe Bettendorff) e a outra mais afastada dos acontecimentos (Bernardo de

Berredo e Robert Southey) –, e outra imperial (Francisco Adolfo de Varnhagen e João

Lisboa). Devemos salientar que os sentidos e significados atribuídos a Beckman estão ligados

a dois momentos, os negativos são típicos do Brasil na condição de colônia, já os positivos

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17

aparecem no Brasil na condição de nação. Por esse motivo, trabalhamos autores do pré e pós-

independência. Optamos por esses autores pelo fato de suas obras serem de grande valor sobre

a temática, e também pelo motivo de nos possibilitar confrontar narrativas tão distintas entre

si, quanto aos significados atribuídos a Manuel Beckman, além da escolha pessoal do

pesquisador.

E, por fim, o terceiro capítulo, que dividimos em duas partes: dissertamos sobre

questões relativas à história em relação à memória, na primeira parte; analisamos a

cristalização de um tipo de tradição historiográfica sobre Beckman, a partir do trabalho de

João Francisco Lisboa, em autores como César Augusto Marques, Antônio Barbosa de

Godóis, Jerônimo José de Viveiros, Mário Martins Meireles, Maria Liberman e Milson

Coutinho. Já na segunda, discutimos a procura por lugares e discursos, nos quais a memória

de Beckman é celebrada.

De modo geral, o que objetivamos nesta dissertação foi visualizar as “fabricações” de

personagens, a partir de um sujeito histórico, Manuel Beckman, ao longo do tempo. No

decorrer da leitura dos três capítulos seguintes, veremos um arcabouço – no sentido que a

história está sempre em construção, sem fórmula pronta para ser utilizada – que nos levará a

entender como os sujeitos tendem a ser forjados no processo historiográfico.

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18

1 QUAL O SIGNIFICADO DO LUGAR DO HISTORIADOR E DA OBRA NA

PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA? O mundo da produção historiográfica em Teixeira de

Moraes, Filipe Bettendorff, Bernardo de Berredo, Robert Southey, Francisco Adolfo de

Varnhagen e João Lisboa.

Os trabalhos que tratam das representações de Beckman são inúmeros. A

representação é o meio pelo qual o ausente se faz presente, só que essa presença é moldada e

ajustada a uma dada sociedade, mesmo que de uma forma geral busquem transparecer um

consenso universal, em sua maioria se restringem a um grupo específico, a exemplo de uma

instituição. De maneira genérica, o passado que se torna história pelo trabalho do historiador,

que contempla tanto as práticas quanto as representações que os agentes sociais formularam

na compreensão de si de seu mundo social.11

Para este estudo, como já salientamos, utilizamos seis obras. São trabalhos que se

dedicaram de forma mais centrada a respeito de Manuel Beckman e seu motim. Analisamos:

Relação histórica e política dos tumultos que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão,

com os sucessos mais notáveis que nele aconteceram, de Francisco Teixeira de Moraes;

Crônica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, de João

Filipe Bettendorff; Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de

Berredo; História do Brasil, de Robert Southey; História Geral do Brasil, de Francisco

Adolfo de Varnhagen; Jornal de Timon: Apontamentos, Notícias e Observações para

servirem à História do Maranhão, de João Francisco Lisboa. Os autores contemplam

Beckman em obras gerais sobre o Maranhão e o Brasil. Esses trabalhos constituem nossas

principais fontes.

Quando trabalhamos com esse tipo de fonte, vez ou outra surgem comentários a

respeito da falta de documentos externos ao texto analisado. Para muitos historiadores, o

terreno seguro a se trilhar continua sendo os “documentos nos arquivos”. Por esse viés

aqueles que trabalham com o livro de história como fonte principal são percebidos como

aqueles que abandonaram aquilo que é primordial para o historiador, o trabalho com

documentos. Na verdade, o pesquisador em história deve ter em mente que aquilo que

denominamos de fonte apresenta-se sob infinitas formas e categorias. Segundo relata Julio

Aróstegui,

fonte histórica seria, em princípio, todo aquele material, instrumento ou

ferramenta, símbolo ou discurso intelectual, que procede da criatividade

11 CHARTIER, 1990.

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19

humana, através do qual se pode inferir algo acerca de uma determinada

situação social no tempo.12

A história é forjada a partir de eventos humanos. Segundo Johann Gustav Droysen,

“somente o que o espírito humano e a mão humana modelou, cunhou, tocou, somente esses

traços produzidos pelo homem se iluminam novamente para nós.”13 A iluminação desses

eventos aconteceria a partir da pesquisa histórica que, segundo o autor, retira tais

acontecimentos da escuridão vazia do passado. Ainda segundo Droysen: “os dados da

pesquisa histórica não são as coisas passadas (porque essas coisas são do passado), mas o que

está ainda preservado no aqui-e-agora, sejam lembranças do que era e aconteceu, sejam os

vestígios do que foi e chegou de outrora”.14

A luz que se acende sobre os eventos humanos de que trata Droysen é, em grande

medida, dependente das evidências que restaram e possibilitam ao historiador o contato com o

passado. Porém, as fontes históricas iluminam o passado de maneira parcial e polarizada, nos

permitindo perceber apenas algumas de suas inúmeras facetas.

Nosso objetivo primordial é discutir o fazer história, o próprio métier do historiador,

sua fabricação. Mesmo que sutilmente, buscamos apresentar o “atelier” desses artesãos, o

lugar onde esses buscam tecer significações para o passado, que se apresenta como “fios”

soltos antes da intervenção do historiador. Não pretendemos apenas contemplar a beleza do

“vaso pronto”, mas também os elementos presentes em sua criação, a argila utilizada, o lugar

do artesão, seu talento e habilidade no manejo da argila, a finalidade primeira do vaso, se foi

um produto encomendado ou se foi concebido de forma “livre” pelo seu artífice.

Quando se trabalha com esse tipo de fonte, ou seja, trabalhos de caráter

historiográfico, a partir da análise do discurso, é de suma importância realizar a leitura do

autor na mesma proporção, sempre que possível, da do texto. Já há algum tempo as discussões

acerca da “função autor” faz-se presente principalmente dentro da metodologia da análise do

discurso; mesmo que de forma indireta, o autor, ao assinar uma obra, faz uma representação

de si e de seu mundo, numa época e num local determinado.15

Michel de Certeau, em sua “Operação historiográfica”, diz-nos que toda pesquisa em

história se articula com um lugar de produção social, econômico, político e cultural; de modo

geral, pertence a uma instituição histórica do saber. O resultado do trabalho em história é

12 ARÓSTEGUI, 2006, p. 491. 13 DROYSEN, 2009, p. 38. 14 Id. Ibid., p. 37. 15 MAINGUENEAU, 2010, p. 139-156.

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produto de um lugar específico. Sendo assim, ao estudarmos uma obra, devemos entender

também a sociedade onde foi produzida, pois o lugar opera uma dupla função, permite

algumas coisas e proíbe outras.16

José D’Assunção Barros nos apresenta três dimensões fundamentais que devem ser

contempladas na análise de um discurso: o “intratexto” – aspectos internos do texto –, o

“intertexto” – relacionamento de um texto com outros textos –, e o “contexto” –

relacionamento do texto com o lugar de produção.17 São essas algumas das questões que

envolvem o trabalho historiográfico que buscamos discutir neste primeiro capítulo, no qual

fizemos a contextualização das obras e dos autores.

1.1 TEIXEIRA DE MORAES: uma história moralizante.

Escrevi o motim do Maranhão por exemplo aos bons para que não prevariquem,

antes na bondade se melhorem e qualifiquem; aos maus, porque não empiorem,

antes em sua malicia retrocedam e contra ela animosos conspirem...

Elegi o estilo, mediando entre vulgar e esquisito, por não ser minha intenção

historiar para os muitos, senão para os melhores, não por jactância, porém por

mais decência.18

Francisco Teixeira de Moraes, natural da Vila de Alenquer (Portugal), pertencente ao

Distrito de Lisboa e cidadão da cidade de São Luís, foi provedor da Fazenda Real no

Maranhão, além de ocupar um cargo na administração pública, e era também fazendeiro.

Moraes tornou-se conhecido por ser o autor da obra, Relação histórica e política dos

tumultos que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão, com os sucessos mais notáveis

que nele aconteceram: sua descrição geográfica; seu descobrimento, conquista, guerras com

franceses intrusos e índios naturais; invasão dos holandeses, sua expulsão; e exata narração

do tumulto que na dita cidade se levantou, e a quietação dele com a vinda de Gomes Freire

de Andrada, e o exemplar governo dele, e de outros governadores, até o de Francisco de Sá e

Menezes. Escrita em 1692 e dedicada ao Sr. Roque Monteiro Paim, do conselho de Sua

Majestade, seu secretário e presidente do Tribunal da inconfidência.

Neste estudo, tomamos para análise a edição da Revista Trimestral do Instituto

Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, corresponde ao tomo 40, de 1877. O

manuscrito foi oferecido ao Instituto Histórico pelo sócio Antônio Henriques Leal,

manuscrito este pertence à Academia Real das Ciências de Lisboa. A Relação histórica e

16 CERTEAU, 2008a, p. 65-106. 17 BARROS, 2010, p. 132-145. 18 MORAES, 1877, p. 69.

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política encontra-se dividida em duas partes; tanto a primeira parte quanto a segunda são

compostas por quatorze capítulos cada. O autor analisou Beckman e seu motim na segunda

parte da obra. Moraes apresenta em seu trabalho quase todos os acontecimentos comuns ao

motim; é, sem dúvida, o trabalho mais rico em detalhes sobre a temática e talvez aquele que

mais se empenhou em criar uma imagem extremamente negativa de Beckman.

O trabalho de Teixeira de Moraes é constantemente citado, tornando-se referência

básica sobre o motim; podemos perceber também que ele é criticado por muitos que citaram a

sua obra. Milson Coutinho, um dos maiores reprovadores do autor, qualificando-o como

pedante, parece ainda se alegrar com a substituição do provedor da Fazenda, afirmando que

ele foi “sumariamente demitido por Gomes Freire”;19 como, tanto Teixeira de Moraes, quanto

Domingos Teixeira (este em especial), fazem vários elogios a Gomes Freire, foram taxados

como comparsas, no sentido negativo da palavra. Além do mais, o autor da Relação histórica

e política foi o primeiro a avisar o capitão-mor Baltasar Fernandes do perigo na inquietação

do povo. Explicita Coutinho que:

O retrato que dele (Beckman) nos deixou o apoucado provedor Teixeira,

inspirado no ódio e no desejo ufano de agradar aos governantes da época e aos

que depois decerto viriam, em vez de infamá-lo, apenas conseguiu atestar a

extraordinária superioridade de Bequimão, se confrontando com a insânia do

autor da Relação.20

João Francisco Lisboa, ao criticar Teixeira de Moraes, o faz da mesma forma que

Coutinho, ou melhor, os adjetivos em ambos os trabalhos são quase os mesmos. Segundo

Bernardo de Berredo, Teixeira de Moraes fala de Beckman com um desprezo tão apaixonado,

que é visto como escandaloso.21 Porém, Teixeira de Moraes, ao se reportar ao seu trabalho

escreveu:

E afirmo, porquanto pode asseverar-se, que nele outra cousa não afetei mais que

a verdade sincera em narração lacônica, sem ódio ou afeição de nada que

houvesse de constranger-me a equivocá-la, quanto mais desmenti-la ou rebuçá-

la por abonar ou ofender alguém injustamente.22

O objetivo principal do autor da Relação histórica e política centra-se nos

acontecimentos do motim de Manuel Beckman, segundo o próprio Moraes em nota ao leitor,

dizendo ter sido forçado a escrever sobre o descobrimento, o território, as conquistas e as

19 COUTINHO, 2004, p. 266. 20 Id. Ibid., p.178. 21 BERREDO, 1998, p. 337. 22 MORAES, 1877, p. 70.

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outras guerras. Ele só teria tratado desses assuntos, porque reconhecia que o motim de

Beckman estava ligado a acontecimentos antecedentes, muito antigos.

A narrativa do Provedor da Fazenda é carregada por um moralismo exacerbado:

utiliza o motim de Beckman como exemplo daquilo que os homens maus fazem e que

consequentemente são condenados pela justiça divina. A construção do enredo de Moraes nos

chama a atenção, ao longo de todo o texto, pois ele utilizou exemplos de várias nações,

principalmente de capítulos da história romana, comparando com a situação maranhense.

1.2 JOÃO FILIPE BETTENDORFF: um religioso humanista.

A terceira finalmente é que se por alguma circunstância vos parecer que a

escrevi com menos acerto, não me condeneis logo, porque pode ser que erreis

vós, e que acerte eu, porque além de me governar eu assim pelo que vi com

meus olhos, e pelo que soube pelas diligentes informações tomadas dos mais

antigos e mais acertados, sempre sigo o que acho mais provável, quando não

posso descobrir a verdade manifesta, o que acontece muitas vezes pelas

fraquezas das memórias humanas, como vós mesmo conheceis; sigo as

informações dos mais antigos e atendo o que viram com os seus olhos, e

ouviram todos que bem o sabiam ou obraram aquilo de que se trata.23

Johannes Philippus Bettendorff nasceu no dia 25 de agosto de 1625 em Lintgen, um

vilarejo no vale do Alzette, no então Ducado de Luxemburgo. Filho de Matthieu Andreæ e

Marguerite Reinerts, teve um irmão mais velho, Nicolas, que se tornou frade franciscano, e

uma meia-irmã, Susanne, filha do segundo casamento do pai com Madeleine Hedinger.24 No

Instituto Histórico e Geográfico Maranhense é patrono da cadeira n.º 08.

Em 1644, graduou-se em artes na Universidade de Tréveris e estudou Direito Civil

na Universidade de Cuneo (atual Itália); já em 1647, entrou na Companhia de Jesus como

noviço, na Província Galo-Belga. Em novembro de 1648, esteve na Casa de Provação

Tornacensis, em Tournai (hoje na Bélgica), como noviço destinado ao sacerdócio, onde

permaneceu até 1649; nesse mesmo ano, aparece como estudante de Filosofia no Colégio

Duacense na cidade de Douai (França); em 6 de outubro fez seu primeiro voto em Tournai.

Aparece como professor de Letras em 1651, no Colégio Dinantense, em Dinant, atualmente

parte da Bélgica. Em outubro de 1653, tornou-se professor de sintaxe no Colégio de

Luxemburgo; no ano seguinte, ainda em Luxemburgo, fez pedido aos superiores para

participar da missão ao Japão, declarando que já tinha lecionado por mais de três anos nos

23 BETTENDORFF, 2010 (Advertência ao leitor). 24 ARENZ, 2010, p. 27.

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colégios da Companhia; logo depois, reforçou o pedido mostrando também interesse para a

Índia, mas tal pedido foi negado pelo padre-geral. Os jovens padres buscavam uma colocação

nas missões ultramarinas, principalmente para o Oriente (Japão, Índia e China), objetivando

entrar em contato com o suposto nível avançado da cultura asiática. Nesse mesmo período,

aparece como professor de Humanidades do Colégio Namurcense, em Namur (Bélgica), e no

ano seguinte como professor de poesia no mesmo colégio. Entre 1656 e 1659, estudou

Teologia no Colégio Duacense, onde já apareceu como sacerdote. Foi ordenado sacerdote

pelo Geral, Arcebispo e Príncipe de Cambrai, Gaspard Nemius. Na primavera de 1659, ele foi

escolhido para a Missão do Maranhão. A nomeação deveu-se a uma carta do padre Antônio

Vieira, que – superior do Maranhão – havia insistido junto ao Superior Geral que enviasse

urgentemente missionários para a Amazônia Portuguesa. Chegou a Lisboa em dezembro do

mesmo ano, onde começou logo a estudar o idioma português.25

Por pertencer a uma família abastada, Bettendorff recebeu uma formação humanista

privilegiada, se considerarmos que ele é oriundo de uma época marcada por traços feudais. E

por estar em contato como várias regiões da Europa, falava fluentemente seis línguas: alemão,

francês, italiano, flamengo, espanhol e latim.26

João Filipe Bettendorff foi, ao lado do padre Luís Figueira (1575-1643) e do padre

Antônio Vieira (1608-1697), uma figura central da Missão do Maranhão no século XVII.

Bettendorff escreveu um trabalho fundamental a respeito do Maranhão e do Pará, e sem

sombra de dúvida o reconhecimento do autor está ligado diretamente à sua obra Crônica da

Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão (escrita entre 1669 e

1698).

Neste estudo, utilizamos a edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, que corresponde ao tomo 72, de 1909. A Crônica da Missão, com seiscentas e

noventa e sete páginas, encontra-se dividida em dez livros. Analisamos principalmente o

sétimo livro, já que é nele que o autor narrou os acontecimentos relativos a 1684, intitulado

“Do levantamento do povo do Maranhão, expulsão e restituição dos padres missionários da

Companhia de Jesus”; este por sua vez é formado por vinte e seis capítulos. Bettendorff

narrou os acontecimentos a partir da movimentação dos padres; em quase todos os títulos dos

capítulos ele se reporta a um religioso. Nessa edição, a obra foi impressa na íntegra,

aproveitando uma cópia existente na Torre do Tombo, adquirida pelo maranhense Gonçalves

Dias.

25 BETTENDORFF, 2010, p. 35-72; 779-783. 26 ARENZ, 2010, p. 27.

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No Rio de Janeiro, em 1910, a obra foi publica pela editora J. Leite. Em 1990, a

Crônica da Missão saiu em nova edição pela Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves:

Secretaria do Estado da Cultura. Temos uma edição da Editora Ética, de Imperatriz no

Maranhão, e a mais recente saiu com o selo Edições do Senado Federal, em 2010.

Filipe Bettendorff ofereceu sua obra a Nossa Senhora da Luz, assim como o nome de

um colégio, na cidade de São Luís. Em nota ao leitor, salienta que não deva estranhar, uma

vez que vai sempre narrando os assuntos espirituais junto com os temporais. O autor não teria

realizado tal trabalho por sua própria vontade, e sim, para atender ao desejo do padre Bento de

Oliveira (na ocasião superior da missão) e depois do padre José Ferreira, que se queixavam da

falta de notícias.

João Filipe Bettendorff chegou a Portugal em dezembro de 1659; logo se dedicou a

aprender o português, como falamos anteriormente, assim como se familiarizar com a língua

tupi, na gramática do padre Luís Figueira. Visitou os combatentes feridos e inválidos da

Batalha de Elvas, de 1659. Em novembro de 1660, embarcou junto com seu amigo e

compatriota Gaspar Misch, com destino a São Luís do Maranhão. Chegaram a seu destino no

dia 20 de Janeiro de 1661. Encontraram-se com o Superior da Missão, Antônio Vieira, em

Belém. Depois do encontro com o Superior da Missão, os compatriotas seguiram para

destinos diferentes. Misch foi destinado a um aldeamento ao lado do forte de Gurupá, e

Bettendorff ficou na fazenda de Mortigura em torno de Belém, na qual recebeu ensinamentos

básicos de nheengatu e em troca ensinou as crianças a ler e escrever.

Na primeira missão, que consistia em subir o Amazonas rumo à foz do Tapajós para

montar as bases para um futuro aldeamento (Santarém, hoje Bettendorff é um dos vultos

históricos do município); não foi bem sucedido, em decorrência do estado de saúde de seu

companheiro de viagem, Sebastião Teixeira, tendo ambos voltado para Belém. Missão essa

que seria interrompida uma segunda vez, pois essa experiência missionária coincidiu com a

primeira revolta dos colonos no Maranhão e Grão-Pará contra os jesuítas, em 1661, motim

esse que marcou a primeira expulsão dos religiosos da Companhia Jesus. Bettendorff e seu

amigo Gaspar Misch, diferentemente de outros religiosos, conseguiram escapar da expulsão,

pois ao serem informados do motim se esconderam na floresta.

Em 1662, Bettendorff foi escolhido como superior da casa jesuíta em Belém. A partir

dessa data, ele exerceu altos cargos administrativos na Missão, foi escolhido como Superior

da Missão, em três ocasiões, a primeira entre 1668-1671, a segunda de 1671-1674 e a terceira

de 1690-1693. Quando não ocupava o cargo de Superior da Missão, ocupava o cargo de

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25

superior local em Belém e em São Luís. Foi como superior local que transformou as casas dos

jesuítas em Colégios, que foram cruciais para o desenvolvimento da Missão.27

Em 1684, vemos explodir no Maranhão o Motim de Beckman, a qual tinha como

uma das principais medidas a expulsão dos jesuítas. Bettendorff se encontrava nessa situação

pela segunda vez, porém, com final diferente, os religiosos foram expulsos em número de

vinte e sete, incluindo o luxemburguês. Depois de passarem no Ceará, chegaram à cidade de

Recife no dia 20 de maio de 1684, ficando decidido que Bettendorff e Pedrosa deveriam

seguir viagem até a Bahia para consultar o Superior Provincial Alexandre Gusmão. Com a

ausência deste, os religiosos se reuniram com Antônio Vieira, decidindo-se que Bettendorff

deveria ir à metrópole defender a causa jesuítica da Amazônia. Bettendorff escreveu que teria

avisado a Beckman que sua ação “não havia de parar em o Maranhão, mas havia de ir a El-

Rei, o qual, dando-se por muito mal servido, poderia mandar um governador que dissesse:

enforquem Manuel Beckman”...28 Talvez não imaginasse que seria o próprio mensageiro.

Algumas passagens ao longo do texto deixam transparecer certa proximidade entre

Bettendorff e Beckman. O luxemburguês chegou a Lisboa, em companhia do padre Marcos

Vieira, no dia 23 de outubro de 1684.

João Filipe Bettendorff, extremamente habilidoso, utilizou os três anos e meio em

que ficou na Europa para conseguir certas barganhas para a Companhia de Jesus. O capítulo

décimo, do sétimo livro, é formado apenas com os pedidos apresentados ao Rei; o capítulo

traz como título: “Memorial dos pontos apresentados a sua majestade para se lhes deferir,

sendo servido”. Bettendorff não nega que tivesse certo prestígio perante a coroa portuguesa.

Escreveu que Francisco Deiró (participante ativo do levante de 1684) recebeu o perdão por

que ele teria intercedido em seu favor, da mesma forma que conseguiu o perdão para os

religiosos que participaram do motim. Assim como a mudança da pena de Tomás Beckman,

que passou de enforcamento para desterro em Pernambuco.

A posição de prestígio da qual usufruía o luxemburguês era motivo para ciúmes entre

os próprios religiosos; a sua nomeação para Comissário do Santo Oficio da Inquisição causou

a revolta do Bispo do Maranhão, D. Gregório dos Anjos, que se sentiu desprestigiado e com

sua autoridade diminuída.29 Esse não foi, porém, um caso isolado, Bettendorff continuou a

enfrentar a desaprovação de alguns religiosos, mesmo porque a disputa entre os próprios

jesuítas não é algo estranho, o próprio Antônio Vieira foi denunciado por seus irmãos de fé.

27 Id. Ibid., p. 62. 28 BETTENDORFF, 1909, p. 368. 29 LIBERMAN, 1983, p. 111.

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26

Quando Bettendorff deixou o cargo de Superior da Missão, em 1693, mesmo com a idade

avançada, continuou bastante atuante, até o ano de sua morte, em 1698. Faleceu no dia 5 de

agosto, no Colégio do Pará.

1.3 BERNARDO DE BERREDO: do campo de batalha ao campo da História.

Berredo não é um verdadeiro historiador, é um simples cronista; não explica

expõe os fatos, enumera-os, classifica-os pelas datas e julga que nada mais lhe

resta a fazer. Justiça lhe seja feita, a exposição é quase sempre verdadeira, as

numerações são exatas, as classificações são justas; mas falta-lhes o movimento,

a cor, a vida, e por isso a sua obra é tantas vezes fastidiosa. Berredo não é

filosofo, é um simples literato, como literato estudou Tito Lívio e Tácito, estes

grandes historiadores da antiguidade, cujo estilo procurou imitar; mas não

escolheu bem os seus modelos, porque a magestade e a força daqueles grandes

escritores, sendo forçada e mal cabida em assuntos de tão pouca importância, a

imitação como que se converte em parodia.30

Bernardo Pereira de Berredo e Castro nasceu na Vila de Serpa, Alentejo, na segunda

metade do século XVII e faleceu em Lisboa, em 1748. Filho de Ambrósio Pereira de Berredo

e Joana de Menezes, foi cronista português e administrador colonial. Fidalgo da Casa Real,

Capitão de Cavalaria do Exército e pertenceu ao conselho de D. João V.31

Por Carta Régia de 21 de janeiro de 1718, Bernardo de Berredo foi nomeado

Governador e Capitão General do Estado do Maranhão e Grão-Pará, para o período de 1718 a

1722, ou até que chegasse seu sucessor. Jurou fidelidade e homenagem em Lisboa no dia 30

de março 1718. Berredo foi militar de formação e esteve em combate a serviço de Portugal,

em Moura – cidade portuguesa pertencente ao Distrito de Beja – e no principado da Catalunha

por um período de seis anos, de 18 de março de 1706 a 13 de março de 1712. Durante o

transcorrer desses seis anos, ocupou os postos de alferes, tenente e capitão de uma companhia

de cavalos. Foi ferido gravemente em Zaragoza. Por sua dedicação, respeito e serviço

prestado a Coroa, habilitou-se, segundo D. João V, a ser indicado ao cargo de governador.32

Chegou ao Maranhão no dia 14 de junho 1718 e tomou posse do governo no dia 18 do mesmo

mês, em frente à Câmara Municipal de São Luís, e no dia 1.º de agosto tomou posse perante a

Câmara do Pará, na qual recebeu o bastão de governo das mãos de seu antecessor. Entregou o

governo a seu sucessor, João da Maia da Gama, em São Luís no dia 19 de julho de 1722, e na

cidade de Belém em 1º de outubro do mesmo ano.

30 DIAS, 1849, p. 5. 31 BERREDO, 1998. Ver: <http://www.klickeducacao.com.br>. Acesso em: 22 out. 2012. 32 Carta Régia de 21 de janeiro de 1718 (MARQUES, 2008, p. 532).

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27

Berredo é autor da obra Anais Históricos do Estado do Maranhão, que busca dar

conta dos acontecimentos desde o “descobrimento” até o ano de 1718. Tendo a história do

Maranhão como pano de fundo, pretendia mostrar a expansão e o domínio português. A obra

oferecida ao monarca D. João V, é uma publicação póstuma, pois a primeira edição é

publicada em Lisboa em 1749, um ano depois da morte do autor, em um volume. A segunda

edição é de 1849, um século depois, em São Luís, pela Tipografia Maranhense. A terceira

edição saiu em 1905, em Florença, Itália, em dois volumes, com um estudo sobre a vida, a

época e os escritos do autor, pela Tipografia Barbera.33 A quarta edição é datada de 1998, pelo

Tipo Editor no Rio de Janeiro, sendo esta última publicação utilizada nesta análise.34

A quarta edição35 foi dividida em vinte livros (capítulos),36 com um total de trezentas

e nove páginas, dos quais os principais a serem analisados, por conterem informações sobre

Beckman, são os livros (capítulos) XVIII e XIX. Esses são formados por um total de trinta e

três páginas, de uma escrita bastante detalhista e muitas vezes rebuscada, marcada pelo

português arcaico. O motim de Beckman entra na sequência da obra obedecendo à ordem

temporal cronológica.

Iniciou a escrita no Maranhão, uma vez que, mesmo não sendo mais governador, foi

obrigado a permanecer até que chegasse uma embarcação de Portugal. Berredo afirma que

levou aproximadamente um ano para escrever os Anais e que, para entender os

acontecimentos do “descobrimento”, se serviu dos arquivos e inúmeros manuscritos deixados

pelos franceses, sob o comando de La Ravardière e do senhor de Razilly. Na construção da

narrativa, Berredo utiliza autores como: Antônio Galvão, João de Barros, Simão Estácio da

Silveira, Simão de Vasconcelos, D. Luís de Menezes, Francisco de Brito Freire, Sebastião da

Rocha Pita, Pedro de Magalhães, João José de Santa Teresa, Fr. Rafael de Jesus, Fr.

Domingos Teixeira, Fr. Cristóvão de Lisboa, Fr. Jerônimo de São Francisco, Francisco

Teixeira de Morais, Claude D’Abbeville, João de Laeth, Agostinho de Zárate, Francisco

Lopes de Gomara, Garcilaso de la Vega, Alonso de Ovalle, Manuel Rodrigues, Marcos de

Guadalajara, Bispo Montenegro, Bispo Pedraita, Padre Vargas, Padre João Filipe Bettendorff

e D. Sebastião Fernandes de Medrano. As obras dos autores citados não se apresentam como

simples referências, em muitos casos são utilizadas de forma explícita como se fosse do autor.

33 MIRANDA, 1905. 34 BERREDO, 1998. 35 Segundo Jomar Moraes nos informa em nota no dicionário escrito por César Marques, a quarta edição seria na

verdade a quinta. Pois houve uma edição em 1989, Iquitos (Peru): pelas Ediciones ABYA-AYALA

(MARQUES, 2008, p. 536). 36 A obra encontra-se dividida em livros, e não em capítulos com se faz corriqueiramente.

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Gonçalves Dias, na introdução da segunda edição da obra Anais Históricos do

Estado do Maranhão, caracteriza a produção de Bernardo Berredo como um trabalho menor

em relação àquilo que faz o historiador, ao falar que sua obra é uma simples crônica. A escrita

de Bernardo de Berredo segue um estilo minucioso de organização e detalhamento dos

acontecimentos. Logo no primeiro capítulo, quando narra a viagem dos franceses ao

Maranhão, o autor descreve o movimento, a hora, o dia e o mês em cada momento da

trajetória da expedição. Fala com precisão e segurança como se estivesse presente no decorrer

da viagem. Ao compararmos a narrativa de Berredo com a de Claude D’Abbeville,37 na obra

História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas,

percebe-se que o primeiro adota a descrição e as informações do segundo a respeito da

jornada dos franceses a São Luís, daí a riqueza e precisão da narrativa.

Grandes pensadores, como Georg Gottfried Gervinus, nos seus Fundamentos de

Teoria da História, colocam as crônicas como um estágio primeiro da transmissão da

História; por outro lado, é a forma fundamental de toda historiografia. De modo geral para

esse autor, a crônica ocupou um lugar de valor na historiografia; todavia, esse modelo não

deve ou não deveria ser reproduzido. Para ele, o enredo da crônica registra “dia a dia”, “ano a

ano”, um evento após o outro sem se preocupar com uma disposição agradável do texto.

Sobre a questão, escreveu Gervinus,

porém, onde muitas cabeças estiverem atuando, lá também se encontram muitas

mentes pobres, pois o extraordinário não existe em abundância em parte alguma.

Assim sendo, essa deficiência está aderida às obras de base e às primordiais de

toda a História, está inserida naquilo que, na Idade Média, denominou-se de

crônicas e, na atualidade, de jornais. Por serem necessárias, não são

condenáveis; não as recusamos, mas as toleramos. E justamente porque muitas

mentes medíocres estão atuando nisso de forma ativa ou passiva, escrevendo ou

lendo, assim perdemos facilmente de vista até mesmo as coisas pobres dos

cronistas e jornalistas. Assim, onde a crônica não quis ser nada além do que

crônica, não exigindo mais nada, então ela, embora seja pobre, não pode nem

mesmo ser condenável.38

37 Claude D’Abbeville chegou ao Maranhão em 1612, com a expedição de Daniel de La Touche, Senhor de

Lavardière; e do Senhor de Razilly. Além de D’Abbeville, vieram outros três religiosos: Arsène de Paris,

Ambrosine D’Amiens e Yves D’Évreux, este último como superior da missão. O ano de 1612 passou para a

história como o momento da fundação da cidade de São Luís, e um dos primeiros escritos sobre a Ilha é a obra

de D’Abbeville, mesmo tendo permanecido nesse local por apenas quatro meses. Narra desde os acontecimentos

do início da viagem até a sua volta à França. 38 GERVINUS, 2010, p. 37.

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Algumas crônicas podem não apresentar uma leitura atrativa para o seu leitor, porém,

a colocação de Gervinus beira o radicalismo, pois esse tipo de narrativa veio suprir as

necessidades de uma época.

Mesmo que a obra de Berredo tenha sido objeto de olhares atravessados, como o de

Gonçalves Dias, o autor se tornou bibliografia central na discussão a respeito do período

colonial, já que apresenta um grandioso corpo documental, e vários autores que trabalham

com o Maranhão e o Brasil colonial fazem referências a seu trabalho; a título de exemplo

podemos citar: José Ribeiro do Amaral, Fran Paxeco, Milson Coutinho, Maria Liberman,

Gonçalves Dias, João Lisboa, Robert Southey, César Marques, Barbosa de Godóis, Adolfo de

Varnhagen, Mário Meireles, Carlos de Lima, Maria Janotti, Vasco Mariz e Lucien Provençal.

Como Berredo narra as conquistas de Portugal, o português é sempre representado

como nobre, o índio como bárbaro e irracional, e o estrangeiro como herege (holandês) e

pirata (francês). O autor se comporta como um verdadeiro juiz: julga os acontecimentos ao

invés de analisá-los; ao se referir a La Ravardière, diz que ele seguia a errada seita de Lutero.

Tal olhar sobre a religião do outro é explicável em razão de Berredo estar envolto pelas

sinapses culturais do seu tempo, muito influenciado pelo catolicismo e sua missão

evangelizadora. Sabe-se que o animador da pesquisa é a relação de amor ou de ódio com a

temática, mas que o historiador não deve deixar transparecer, fato que não observamos na

narrativa examinada. Não estamos reivindicando neutralidade na história. Porém, como

lembra Peter Gay, “nem as fortes convicções éticas frustram necessariamente a tentativa do

historiador de tratar seu tema com justiça: um historiador pode acreditar que comer gente é

errado, e ainda assim tenta fazer justiça aos canibais”.39

Ao analisarmos o prólogo do trabalho de Berredo, percebemos que ele tem grande

gosto por escritores da antiguidade romana, como Tito Lívio e Tácito, com suas histórias de

guerras e conquistas, assim como as vidas dos imperadores. Tendo a história na antiguidade

forte caráter moralista e Berredo tomando os exemplos desses escritores, apontará Manuel

Beckman como alguém que corrompeu a ordem natural das coisas.

O principal compromisso de Berredo, com o leitor, seria construir uma narrativa com

temporalidade exata e com fatos verdadeiros. Sobre a veracidade de sua obra, afirma o autor:

“esta minha demarcação confiadamente posso asseverar, que é a verdadeira, por ser tirada dos

meus próprios exames, quando governei aquele Estado”.40 Quando narra algum

acontecimento e este se estende de um ano para o outro, o autor faz questão de comunicar ao

39 GAY, 2010, p. 149. 40 BERREDO, 1998, p. 31.

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leitor, assim como quando um personagem aparece em épocas diferentes, narra cada

acontecimento em seu devido momento, seguindo sua rigorosa cronologia. Sobre a questão,

explicita Berredo: “o deixarei até o ano, que se segue, por não alterar, na confusão dos

tempos, a prometida ordem das minhas memórias”.41

O autor é muito conhecido por criticar as autoridades e principalmente alguns

governadores, e durante seu governo esteve envolvido em algumas confusões. Ao mesmo

tempo em que acusava alguns de corrupção, a sua integridade como governador também era

posta em cheque. Segundo César Marques, o ouvidor-geral e provedor-mor da Fazenda,

Vicente Ripado, suposto inimigo de Berredo, em oficio à coroa portuguesa, teria afirmado que

o governador vivia com muita intimidade com Francisco Cavalcante, mesmo sendo este

acusado de roubos e descaminhos da Fazenda Real. Berredo era visto pelo ouvidor, ainda

segundo Marques, como alguém “que além de insolente, déspota e arbitrário, era tão vaidoso

a ponto de aspirar às honras de príncipe e dizer muitas vezes que era impossível errar, no seu

governo...”42

No Dicionário Histórico-Geográfico de César Marques, Bernardo de Berredo é

reverenciado como escritor e criticado como governador. O autor nos fala que João Lisboa, ao

afirmar que Berredo só compilou, e que teria compilado mal, taxando-o supostamente como

ignorante e de vista curta, teria agido com muito rigor ao não levar em conta que este foi o

primeiro cronista do Maranhão e as possíveis faltas que talvez tivesse cometido são comuns a

todos os escritores. Já suas ações como governador, César Marques as trata como recordações

infelizes e tristes. E teria sido punido por sua falta, uma vez que seu governo acabou no fim

do triênio (1718/1722).43 O simples fato de Berredo ter ficado por apenas três anos não nos

fornece elementos para garantir que isso foi uma punição, uma vez que muitos governadores

anteriores e posteriores a ele ficaram no governo por um período mais curto de tempo.

1.4 ROBERT SOUTHEY: poeta e historiador

Entre os escritores estrangeiros que para nós voltaram sua atenção e de nós se

ocuparam desde que temos história, nenhum possui mais justificados títulos a

admiração e gratidão nacionais do que Robert Southey, o bem conhecido autor,

afora diversos outros trabalhos relativos a Portugal e a América do Sul, de uma

História do Brasil, a mais conscienciosa, detalhada e exata antes da de

41 Id. Ibid., p.52. 42 MARQUES, 2008, p. 535. 43 Id. Ibid., p.536-537.

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Varnhagen, a mais literária, formosa e cativante mesmo depois da de

Varnhagen.44

Robert Southey foi historiador, poeta e prosador, escritor britânico da Escola

Romântica e “poeta laureado” desde 1813 até sua morte. Nasceu em Bristol, Inglaterra, no dia

12 de agosto de 1774, e faleceu em Londres, em 21 de março de 1843. Era filho de Thomas

Southey e de Margaret Hill. Após a morte do pai, ficou sob a tutela de um tio materno,

Herbert Hill. Estudou no Colégio Corstor, e aos 13 anos foi para o Westminster School, de

onde foi expulso por participar de um jornal satírico conhecido como “O Flagelante,” que

criticava os mestres e outros superiores da escola. Depois, ingressou na Universidade de

Oxford.

Robert Southey ocupa um lugar central na discussão historiográfica brasileira.

Southey é autor de uma das primeiras histórias gerais do Brasil, obra que leva o título de

História do Brasil. Publicada em Londres entre os anos de 1810-19, em três volumes (o

primeiro em 1810, o segundo em 1817, e o terceiro em 1819). Do primeiro foi tirada uma

segunda edição, em 1822. A primeira edição brasileira é de 1862, pela Livraria Garnier, Rio

de Janeiro, em seis volumes, sendo a tradução de Luís Joaquim de Oliveira e Castro e anotada

pelo Cônego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, 52 anos após a edição inglesa. Foi

impressa em Paris, na Tipografia de Simão Raçon e Soc.

A segunda edição brasileira foi publicada entre os anos de 1948 e 1954, pela Livraria

Progresso Editora, Bahia, edição em seis volumes, e segue a publicação da Garnier. Em 1965,

foi impressa a terceira edição brasileira, pela Editora Obelisco Ltda., em seis volumes, com a

mesma tradução do Dr. Luís Joaquim de Oliveira e Castro e anotada por J. C. Fernandes

Pinheiro, Brasil Bandecchi e Leonardo Arroyo. Esta edição foi a que utilizamos neste

trabalho, para sermos mais precisos, o capítulo VI do quarto volume. Em 2010, a obra foi

novamente editada em três volumes, em Brasília, pela editora do Senado Federal.

O conjunto da obra é composto por quarenta e quatro capítulos, sendo o quarto tomo

formado por sete capítulos, com um total de trezentas e vinte páginas, sendo destas, vinte e

três reservadas para falar do motim do Maranhão.

A obra busca dar conta de todo o período colonial até a chegada de D. João VI, em

1808. Segundo Jean Glénisson, os fatores que contribuíram para a composição da História do

Brasil por Southey seriam a facilidade de reunir documentos através de seu tio Herbert Hill, e

44 LIMA, 1907, p. 233

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pela importância adquirida pelo Brasil com a transferência da Família Real para a colônia.45

Não é por acaso que a História do Brasil foi dedicada a Hill, homenagem mais do que

merecida.

Na construção da narrativa, utiliza autores como: Bernardo Pereira de Berredo, Padre

Antônio Vieira, Charlevoix, Domingos Teixeira (biógrafo de Gomes Freire, governador que

sufocou a revolta de 1684), e Francisco Teixeira de Morais (provedor da fazenda no

Maranhão em 1684). O autor fala dos acontecimentos de forma extremamente segura, mesmo

sem nunca ter posto os pés no Brasil.

A narrativa é repleta de indicações no decorrer de todo o trabalho, página a página

apontando para o que está falando. O autor traça uma cronologia bem definida, construindo

sua narrativa do descobrimento para a chegada da Família Real portuguesa.

Afrânio Peixoto, em conferência realizada no Instituto Histórico no dia 21 de

dezembro de 1943, intitulada Southey e a História do Brasil, relatou que a obra do historiador

inglês é a primeira “grande História o Brasil”, uma vez que coloca as Histórias do Brasil de

Frei Vicente Salvador e Rocha Pita como trabalhos menores e que a segunda grande História

do Brasil pertence a Varnhagen. Trabalhos como o de Gândavo, Hans Staden, Thevet, Lery,

Gabriel Soares, Ives D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Antonil são

considerados precursores menores. Ainda segundo Peixoto, a posição de Southey como poeta

sofria controvérsias entre os críticos; Edmundo Gosse teria afirmado: “Southey não era, em

sentido algum, um poeta”. Contudo, em 1813, ele foi convidado para ocupar o lugar de poeta-

laureado; a posição, porém, foi oferecida primeiro a Walter Scott, que recusou tal oferta. Já

Lord Byron teria dito ironicamente que “a prosa de Southey é perfeita”.46 Byron criticou

Southey por considerar que ele, ao aceitar o cargo, teria traído seus princípios políticos por

dinheiro. Em 1821, Southey teria uma discussão com Lord Byron sobre um de seus

poemas. Em seu prefácio a Uma visão do Juízo (1821), que tinha sido escrito em honra de

George III, rei da Inglaterra, ele atacou os escritos de Byron. Em 1822, Byron criou uma

paródia crítica ao poema original de Southey, intitulada de The Vision of Judgement.

Atestou Oliveira Lima que o poeta inglês incorporou um tipo de verdadeiro homem

de letras, valorizando o trabalho pelo único prazer do trabalho. Mas teria faltado “o poder

lírico de Byron, a maestria de Coleridge... a vibração de Wordsworth. Foi um poeta de

segunda ordem, posto que fluente, correto e atraente. Tampouco foi um prosador insigne, se

45 GLÉNISSON, 1979, p. 254. 46 PEIXOTO, 1943, p. 87-100.

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bem que tivesse sido um escritor terso, elegante e com ideias”.47 Ainda segundo Lima,

Southey, na condição de poeta, possuía a qualidade fundamental da emoção, haveria nele algo

capaz de estimular e aquecer os escritos poéticos. A sua poesia retratava a transformação do

gosto inglês na primeira metade do século XIX.

Southey é detentor de uma produção bem significativa, no campo da poesia, da

biografia e da historiografia; o último o tornou conhecido e respeitado no Brasil. Começou a

escrever muito cedo; com a idade de 15 anos já tinha escrito poemas épicos ambiciosos. São

algumas de suas obras: Vida de Horatio Nelson; Vida de Wesley; Joana d’Arc (1796) – obra

influenciada diretamente pelos acontecimentos que inflamavam a Europa, consequências da

Revolução Francesa; Poesias (1797); Cartas de Espanha e de Portugal (1797) – essa é a

primeira obra em que ele aborda assuntos referentes à Península Ibérica, escrita aos 22 anos,

foi reeditada em 1799 e saiu em terceira edição em 1808; Palmerim de Inglaterra (1807);

Cartas de Espriello (1807); Maldição de Keama (1811); Poemas para os Soberanos Aliados

(1814); Rodrigo, o Último dos Godos (1814); Sir Thomas More, Colóquios de Estado e da

Sociedade (1832); As Vidas dos Almirantes Britânicos (1839); The Inchcape Rocha e A

Batalha de Blenheim. Mesmo com uma vasta produção, a poesia de Southey vendeu mal, e

ele, para sobreviver, passou a receber por ano 160 libras esterlinas pagas por seu amigo

Charles Wynn.

Em Oxford, a família de Southey desejava que ele seguisse a carreira médica, mas

ele continuava a desprezar as atividades acadêmicas. No entanto, foi quando estudava na

Universidade de Oxford que ele iria se tornar amigo de alguém que se tornaria uma grande

figura literária, e também tornar-se um “poeta do lago”, Samuel Taylor Coleridge (1772-

1834). Juntos, eles tentariam formar uma comunidade igualitária utópica, no estado da

Pensilvânia, nos Estados Unidos. O projeto acabaria por falhar, mas os dois poetas se

mantiveram muito próximos, e carregavam a fama de rebeldes; juntos, escreveram a peça A

queda de Robespierre.

Southey fez sua primeira viagem à Península Ibérica entre dezembro de 1795 e julho

de 1796. Nesse mesmo período, casou-se com Edith Southey Fricker, cuja irmã mais velha,

Sara Fricker, era esposa de Samuel Taylor Coleridge. Envolvido em conflitos familiares, já

que sua mãe e seu tio queriam que ele se ordenasse. Segundo Rose Macaulay, em artigo

intitulado Southey em Portugal, teria Southey em carta a seu amigo Grosvenor Bedford

relatado o período difícil pelo qual passava, “onde pensais que os fados me condenaram a

47 LIMA, 1907, p. 236-37

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passar os próximos seis meses? Na Espanha e em Portugal! Teria recusado, mas sinto-me

fatigado de opor-me a todos os desejos da minha mãe...”48 Além do mais, ele teria

basicamente renunciado à lua de mel para seguir viagem, já que sua esposa ficou na

Inglaterra.

A arte de escrever cartas foi uma característica marcante ao logo da vida de Southey,

nas quais tratou de suas angústias e inquietações; descreveu os lugares onde esteve e também

comentários sobre suas próprias obras; várias cartas foram endereçadas para amigos,

correspondeu-se com figuras de destaque na vida cultural, política e religiosa na Grã-

Bretanha, Europa e América do Norte. Estima-se a existência de sete mil cartas, e destas pelo

menos três mil nunca foram publicadas. Basicamente ele escreveu uma autobiografia por

intermédio das cartas. A maioria de suas cartas sobreviventes está em inglês. No entanto,

temos um número considerável de cartas escritas em francês e português. Southey era fluente

em francês, espanhol e português, e capaz de ler alemão e holandês.

O poeta e historiador inglês fala de sua viagem à Península Ibérica com grande

angústia, e saudades da Inglaterra, pois mesmo não sendo um “Eldorado” a terra era firme,

diferentemente de Portugal, que tinha sido abalado por um terremoto. Na capital portuguesa,

Southey ficava entediado, já que a única coisa valorizada por seus habitantes eram os

negócios; de nenhuma forma Lisboa o animava, ao não ser a excelente biblioteca do tio.

Porém, a impressão negativa de Portugal por parte do autor foi modificada quando ele

conheceu Cintra, na qual seu tio possuía uma pequena vivenda; esse lugar teria fascinado

Southey.49

O tio de Southey, o Reverendo Hill, se estabelecera em Portugal como capelão da

feitoria inglesa. Esse ilustrado ministro anglicano, pelo seu gosto ao cultivo das letras, reunira

por prazer e curiosidade uma biblioteca rica em livros e, sobretudo, manuscritos relativos à

História de Portugal e Brasil. Passado algum tempo, o historiador retornou à Inglaterra,

decidido a não voltar a Portugal, mas nos anos seguintes sentiu o desejo de escrever uma

História de Portugal (obra incompleta), e, em 1800 estava de volta à pátria estrangeira, dessa

vez acompanhado pela esposa; já não via Lisboa com angústia, porém, passou logo para

Cintra. Em 1801, o casal retornou para a pátria inglesa e nunca mais voltariam a Portugal.

Southey, para voltar a Cintra, empreendeu um grande esforço para ser nomeado cônsul ou

secretário da embaixada em Lisboa, só que esses projetos resultaram em fracassos.50

48 MACAULAY, 1947, p. 117. 49 Id. Ibid., p. 117. 50 Id. Ibid., p. 117-118.

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Em 1810, foi oferecido um emprego a Southey com excelente remuneração, como

Secretário no Erário para a Irlanda. Ele exerceu o cargo em Dublim (capital da Irlanda) e em

Londres. Como a vida oficial não lhe oferecia o mesmo prazer da história e da literatura,

abandou o cargo, depois de exercido por um ano e alguns meses. Rejeitou mais tarde uma

cadeira que lhe fora oferecida na Câmara dos Comuns. Depois que abandonou o emprego se

estabeleceu por um tempo em Bristol e depois em Kaswick, onde estava Coleridge, e lá

organizou uma biblioteca muito rica com cerca de quatorze mil exemplares. Já com 61 anos

de idade, Southey, passou a receber uma pensão complementar de trezentas libras.

O centenário da morte de Robert Southey foi celebrado na casa onde ele morou,

“Greta Hall”, estavam presentes descendentes do autor e cultores de sua memória, parte das

homenagens aconteceram na sala que era a biblioteca. A semana começou com uma palestra

do professor de Oxford, Jack Simmons, sobre a vida e a obra do autor, já que ele tinha escrito

uma biografia do historiador. Na ocasião, foram oferecidas ao IHGB algumas cartas escritas

entre 1815 e 1819, devido à ligação do autor com o Brasil, já que ele foi eleito Sócio

Honorário do Instituto Histórico, logo no segundo ano de existência, 1939.51

1.5 FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN: um modelo para a história nacional.

Francisco Adolfo de Varnhagen sobrepujou, em sua época, como historiador,

todos os seus contemporâneos, e continua, desde 1878 – data de sua morte e do

elogio de Capistrano de Abreu – até hoje, como o historiador incomparável do

Brasil. Incomparável pela vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que

revelou; incomparável pela publicação de inéditos que promoveu; incomparável

pela perseverança com que caminhou pelos caminhos da história brasileira, até

então nunca palmilhados; incomparável pela obra preliminar que antecede sua

História do Brasil; incomparável por esta mesma História Geral, que

desconhecia antecessores nacionais; incomparável, ainda, pela própria obra

complementar que supre lacunas e amplia o horizonte do conhecimento;

incomparável, finalmente, porque a obra parcial, como a História dos Holandeses no Brasil ou a História da Independência, representa, na sua época,

um novo avanço historiográfico e uma nova aquisição da consciência nacional.52

Francisco Adolfo de Varnhagen, Barão e Visconde de Porto Seguro, nasceu em São

João do Ipanema (Sorocaba – SP), no dia 17 de fevereiro de 1816, e faleceu em Viena

(Áustria) no dia 26 de junho de 1878. Filho de Frederico Luís Guilherme de Varnhagen e de

Maria Flávia de Sá Magalhães.

51 LEÃO FILHO, 1947, p. 124-126. 52 RODRIGUES, 2008, p. 151.

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Frederico Luís Guilherme de Varnhagen era teuto, natural da cidade de Arolsen, no

principado independente de Waldeck. Foi contratado para trabalhar nas fundições, com a

incumbência de dirigir um grupo especializado de operários alemães, por um período de dez

anos em Portugal, durante o reinado de D. Maria I. Ele havia se habilitado como cadete-

mineiro no ducado de Hasse-Cassel, e, uma vez em Portugal, começou a trabalhar na fábrica

de ferro Figueiró dos Vinhos. Em 1806, casou-se com a portuguesa Maria Flávia de Sá

Magalhães; no ano seguinte, nasceu o primeiro filho do casal, Timoteu, que, como o pai,

adotou a nacionalidade germânica. Após o término de suas obrigações em Portugal, Frederico

Varnhagen juntamente com outros técnicos teutos vieram para o Brasil, a partir de 1810; já no

posto de capitão do Corpo dos Engenheiros, começou a examinar as minas de ferro de

Ipanema, no mesmo ano do nascimento do terceiro filho. Com a pretensão do Príncipe

Regente de instalar uma fábrica de ferro em Ipanema, Varnhagen fixou residência em São

Paulo, período em que nasceram suas duas filhas e mais um filho. Foi promovido a sargento-

mor em 13 de maio de 1811, e por carta régia de 27 de setembro do mesmo ano, foi nomeado

diretor da fábrica de ferro. A partir desse momento, começou uma construção para melhorar o

espaço da fábrica, assim como sua casa de moradia, a qual terminou em 1815. Foi nessa casa

que, no ano seguinte, nasceu o sexto de sete filhos do sargento-mor, Francisco Adolfo de

Varnhagen.53

Frederico Varnhagen, tenente-coronel desde 28 de janeiro de 1818, desejava voltar à

Europa para cuidar da saúde debilitada e para rever os parentes, além de buscar melhor

educação para os filhos. O Ministro da Guerra Carlos Frederico de Caula cedeu licença datada

de 2 de junho de 1821; a partir desse momento, o tenente-coronel deixou o seu cargo e partiu

com a família para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 21 de dezembro do mesmo ano,

ficando, porém, por pouco tempo na capital do Reino do Brasil. Com uma licença por tempo

indeterminado do serviço régio, partiu para a Europa em um navio que tinha como destino

Hamburgo, no dia 1º de junho de 1822, mas sua família ficou no Rio de Janeiro. Em outubro

de 1823, a família de Frederico Varnhagen embarca para Portugal para encontrá-lo, e nesse

país ele obteve o cargo de administrador das matas nacionais, depois de visitar o território da

atual Alemanha e outros países do norte. O certo é que, com sete anos incompletos de idade,

teria Francisco Adolfo de Varnhagen deixado o Brasil.54

Em Portugal, Francisco Adolfo de Varnhagen entrou no Real Colégio da Luz, em

1825, seguindo o curso regularmente durante sete anos. Foi aprovado nos exames de latim,

53 LESSA, 1954, p. 82-297. 54 Id. Ibid., p. 82-297.

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francês, inglês, filosofia, retórica, geografia e história. Completou o segundo ano de estudos

militares e o primeiro ano matemático. Ao que tudo indica, a formação de Varnhagen foi

voltada para a vida militar, tendo aulas de estratégia, equitação, esgrima, desenho linear, mas

também arquitetura, paisagem, perspectiva e topografia, finalizando o curso em 1832.

Entre os anos de 1832-1833, frequentou a Academia da Marinha. Tornou-se Tenente

de artilharia do exército português e mestre em assuntos militares e de engenharia, serviu de

Santarém ao Alentejo. Habilitou-se em língua germânica no Colégio dos Nobres. Concluiu o

curso de Engenharia na Academia de Fortificação (chamada depois de Escola do Exército).

Na Escola Politécnica de Portugal, frequentou os cursos de Ciências Físicas e Naturais como a

Química, Física, Mineralogia, Zoologia e Botânica. Estudou ainda Paleografia e Diplomática,

habilidades técnicas indispensáveis para seu trabalho como historiador. Cursou Economia

Política na Associação Mercantil de Lisboa. Mesmo ambientado em Portugal desde cedo, o

historiador sorocabano se interessara por assuntos relacionados ao Brasil; em 1835, começou

a escrever uma monografia que foi apresentada em 1838 na Academia Real das Ciências, o

que garantiu a sua entrada nela; nesse mesmo ano, descobriu a localização do túmulo de

Pedro Álvares Cabral, na sacristia do convento da Graça. Colaborou em O Panorama,

dirigido pelo grande historiador português Alexandre Herculano. Em 1839, publicou uma

edição do Diário de Navegação de Pedro Lopes de Sousa em 1530-1532, financiada com os

recursos de um prêmio escolar recebido na Academia de Fortificação. Capistrano de Abreu

escreveu que o contato com o Diário de Pero Lopez fez que Varnhagen mudasse seu foco da

geografia para a história do Brasil.55

Nesse mesmo período, no Rio de Janeiro foi criado, por iniciativa do Cônego

Januário da Cunha Barbosa e do Marechal Raimundo José da Cunha Matos, o Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, saindo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Já

licenciado do exército português, tornou-se sócio correspondente do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, a partir de 18 de julho de 1840, onde ocupou cargos de primeiro

secretário e diretor da revista da entidade. No dia 24 de maio de 1840, partiu de Lisboa em

direção ao Brasil, e após cinquenta dias de viagem, desembarcou no Rio de Janeiro em 13 de

julho; no dia 18, pronunciava no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um discurso de

agradecimento pela eleição para sócio correspondente. Sua nacionalidade brasileira só foi

confirmada por decreto real, em 24 de setembro de 1841. Para Nilo Odália, a opção do

sorocabano pela nacionalidade brasileira não se explica simplesmente por um sentimento de

55 ABREU, 2003, p. 228.

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patriotismo, pois não existiam condições para isso, pois mesmo nascendo no Brasil, sua

formação ideológica está ligada às vivências em Portugal, nesse sentido a opção

corresponderia a uma necessidade intelectual.56 Se eventualmente essa foi a intenção de

Varnhagen, os frutos foram positivos, já que de alguma forma fora reconhecido pelos seus

contemporâneos.

Ligado ao Império, Varnhagen representou o Brasil em várias localidades do mundo

como diplomata, entre 1854 a 1858 serviu nas legações de Lisboa e Madri; de 1858 a 1860

nas legações do Paraguai. Tornou-se ministro residente do Brasil na Venezuela e responsável

pelas relações na Colômbia e Equador, entre os anos de 1861 e 1863. Em 1863, transferiu-se

para Lima e em 1868 aparece como ministro residente em Viena; ainda em Viena, em 1871,

ministro plenipotenciário do governo brasileiro. Em 1863, estava em missão em Cuba para

conhecer as condições técnicas do cultivo e beneficiamento do açúcar e tabaco. Em 1872,

representou o Brasil no Congresso Estatístico de São Petersburgo. Em 1877, percorreu o

interior das províncias de São Paulo, Goiás e Bahia, trabalho que culminou na idealização da

interiorização da capital do Brasil.57

A obra de Adolfo de Varnhagen situa-se num período em que se buscava forjar uma

matriz para a história nacional, um Brasil independente e a criação de um órgão para

organizar e preservar a memória da nação, no caso o IHGB. Atestou Jurandir Malerba que

nenhum assunto na historiografia brasileira foi tão estudado e pesquisado do que a

emancipação política do Brasil frente a Portugal. Varnhagen, além de um modelo para a

“história do Brasil”, nos forneceu ainda um modelo para a “história da independência”. Para

Malerba,

Nenhum outro autor ofereceu contribuição maior à história da independência no

século 19 do que Francisco Adolfo de Varnhagen, pois seu modelo

interpretativo do processo de emancipação política do Brasil vigeu por quase

dois séculos. Por isso, vou tomá-lo como referência para verificar como funções

“cognitiva” e “normativa” combinam-se nesta matriz fundadora da historiografia

brasileira.58

Em 1841, passou a integrar o Imperial Corpo de Engenharia do exército brasileiro,

dele afastando-se três anos depois. Foi nomeado adido cultural da missão do Brasil em

Portugal, e como Diplomata visitou vários países na América do Sul, além de um largo

56 ODÁLIA, 1979, p. 8. 57 Disponível em: <http://www.funag.gov.br/chdd/index.php?option=com_content&view=article&id=132:

francisco-adolfo-de-varnhagen-barao-e-visconde-de-porto-seguro&catid=53:personalidades-historicas&Itemid

=87>. Acesso em: 12 jan. 2014. 58 MALERBA, 2007, p. 355.

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conhecimento do território brasileiro. Foi também escolhido como patrono da cadeira de

número trinta e nove da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897.59

Francisco Adolfo de Varnhagen deixou uma obra de valor, além da clássica e

extremamente estudada História Geral do Brasil e da História da Independência do Brasil,

escreveu: O descobrimento do Brasil, 1840; Épicos brasileiros, 1843; As primeiras

negociações diplomáticas respectivas ao Brasil, 1843; Amador Bueno, 1847; Trovas cantares

de um códice do séc. XVI, 1849; Florilégio da poesia brasileira, 1850; Amador Bueno ou a

Coroa do Brasil em 1641, 1851; Sumé, 1855; Caramuru, 1859; Cartas ao Sr. L. F. da Veiga

acerca das Cartas Chilenas, 1867; Cancioneirinho de trovas antigas, 1870; História

completa das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654, 1871; Da literatura dos

livros de cavalarias, 1872; Tratado descritivo do Brasil em 1587.

Pela posição de destaque que ocupou e ocupa Francisco Adolfo de Varnhagen, é

periodicamente revisitado. Vejamos alguns exemplos: Clado Ribeiro de Lessa, Vida e Obra

de Varnhagen (essa é uma das principais biografias sobre o autor); José Honório Rodrigues,

Varnhagen, mestre da História geral do Brasil; Américo Jacobina Lacombe, As ideias

políticas de Varnhagen; Thiers Martins Moreira, Varnhagen e a História da Literatura

portuguesa e brasileira; Hélio Vianna, Sesquicentenário de Varnhagen; Pedro Calmon,

Varnhagen; José Honório Rodrigues, Varnhagen – o primeiro mestre da historiografia

brasileira; José Gomes Bezerra Câmara, Varnhagen – o homem e o historiador; Américo

Jacobina Lacombe, A construção da historiografia brasileira o IHGB e a obra de Varnhagen;

Hélio Vianna, Singularidade de um historiador; José Carlos Reis, Anos 1850: Varnhagen, o

elogio da colonização brasileira; Lucia Maria Paschoal Guimarães, Francisco Adolfo de

Varnhagen: História Geral do Brasil; Capistrano de Abreu, Sobre o visconde de Porto

Seguro; N. Odália (org.), Varnhagen; Capistrano de Abreu, Necrológio de Varnhagen. Muitos

desses trabalhos foram publicados pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Segundo Jurandir Malerba, historiadores importantes se voltaram para estudar a vida

e a obra do historiador sorocabano, em maior ou menor profundidade, porém, ele percebe um

problema comum nesses estudos, uma vez que a maior parte dos críticos fundamentou suas

análises quase exclusivamente na História Geral do Brasil, mesmo historiadores renomados

como: José Honório Rodrigues, Nilo Odália e José Carlos Reis.60

59 As informações biográficas sobre o autor foram colhidas em: ODÁLIA, 1979, p. 7; <http//pt.

shvoong.com/tags/francisco-adolfo-varnhagen>; < http//www.academia.org.br/abl/biografia>. 60 MALERBA, 2007, p. 355.

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Para José Honório Rodrigues, “ninguém pode graduar-se em História do Brasil, sem

ter lido Varnhagen”.61 Mas, mesmo com todos os elogios ao historiador sorocabano, ele

escreveu que Varnhagen foi injusto, sem generosidade com as minorias, os rebeldes e os

perseguidos; foi parcial, colocando-se ao lado dos poderosos. Escreveu Rodrigues, “o que em

Varnhagen admiro, embora dele divirja, é seu constante julgamento histórico. Ele julga tudo e

a todos, distribui galardões, faz menções honrosas, atribui qualificações, sem nenhum

embaraço”.62

Varnhagen é um dos grandes nomes da historiografia brasileira, e sua principal obra

é História Geral do Brasil, sendo ela escrita entre os anos 1854 e 1857; as duas primeiras

edições ocorrem ainda em vida do autor. Temos uma terceira edição somente do primeiro

tomo, por iniciativa de Capistrano de Abreu, em 1906.

Já a terceira edição integral pelas Edições Melhoramentos, o primeiro tomo data de

1927, o segundo de 1930, o terceiro de 1931, o quarto de 1934 e o quinto de 1936. A quarta

edição, também pela Melhoramentos, saiu de forma integral; os tomos I e II em 1949, os

tomos III, IV e V em 1952. A Melhoramentos é responsável também pela quinta edição, de

1956, a sexta de 1959, a sétima de 1962, e a oitava de 1975, sendo todas elas integrais.63

Utilizamos em nosso trabalho apenas o terceiro tomo de sua coleção, mais

precisamente a seção (capítulo) trinta e sete, intitulada “Desde o tratado de 1681 até o de

aliança em 1703”, no qual o autor reserva cinco páginas para descrever o levante de Beckman

de 1684. Esse tomo é composto por nove capítulos, começa com o trinta e um, “Revolução de

Pernambuco até a primeira ação dos Guararapes”, e termina com o capítulo trinta e nove,

“Fatos e sucessos desde 1703 a 1715, estranhos a Liga”.

O lugar ocupado por Varnhagen na administração imperial foi um fator crucial para o

desenvolvimento de seu trabalho. Com a nomeação de adido para Lisboa em 1841, com a

finalidade de pesquisar documentos sobre a história e a legislação referente ao Brasil, reuniu

um grande acervo documental nos arquivos do Brasil, Portugal, Espanha e Holanda.

Considerado por muitos como o “pai da historiografia brasileira”, Varnhagen faz

uma História Geral do Brasil extremamente densa. A obra foi dedicada a Sua Majestade

Imperial o Senhor Dom Pedro II, já que Varnhagen defendia um Brasil português; além do

mais, o imperador foi seu protetor, oferecendo os recursos para seu trabalho.64 O “Heródoto

61 RODRIGUES, 2008, p. 152. 62 Id. Ibid., p.172. 63 VARNHAGEN, 1975. 64 REIS, 2002, p. 25.

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do Brasil” era apoiado por um padrinho forte, contudo, foi um afilhado extremamente

talentoso, que soube aproveitar e retribuir as gentilezas com obras de grande valor.

Segundo João Miguel Teixeira de Godoy, com a fundação do IHGB e a partir de

1840 com a proposta de organização de uma história nacional feita pelo naturalista alemão

Karl Friedrich P. Von Martius, tínhamos as peças fundamentais para a confecção da história

do Brasil, como: um “contexto político e ideologicamente favorável, a existência de fontes

preservadas, minimamente organizadas e com uma articulação institucional prévia, e um

plano de trabalho e síntese”.65 Nessa ordem, o passo seguinte foi dado com a elaboração da

obra de Varnhagen, que superaria a crônica passando a ter um caráter historiográfico.

O autor comenta que, para escrever sobre o motim, teria recorrido às fontes mais

puras, vários ofícios de Gomes Freire e um parecer do Conselho Ultramarino, de 12 de

novembro de 1686, além das crônicas de Francisco Teixeira de Moraes, Frei Domingos

Teixeira e do padre João Filipe Bettendorff, todos contemporâneos do levante. A narrativa se

desenrola no sentido evolutivo de tempo, do descobrimento para o Império; deste modo, a

revolta de Beckman aparece na obra obedecendo ao sentido de tal cronologia.

Depois da morte de Adolfo de Varnhagen, sua esposa e filhos fixaram residência no

Chile. Como já foi dito, ele representou o Brasil em vários países da América do Sul,

inclusive no Chile, onde conheceu D. Carmen Ovalle, com quem se casou. Seus restos

mortais foram enviados para a nação chilena, porém, o seu desejo era repousar em terras

brasileiras. No entanto, sua vontade só foi atendida cem anos depois, pois seus restos mortais

foram colocados em uma praça da cidade de Sorocaba, graças ao esforço em conjunto da

Fundação Ubaldino do Amaral, do jornal Cruzeiro do Sul, do Instituto Histórico, Geográfico e

Genealógico de Sorocaba e da Prefeitura Municipal.66

1.6 JOÃO FRANCISCO LISBOA: o Tímon maranhense?

pois que Timon, saindo do seu obscuro retiro, ousa erguer a voz para censurar e

afiar o vício e o crime, fazer humildes advertências, e dar modestos conselhos

aos que paulatinamente nos arrastaram à situação deplorável e vergonhosa em

que atualmente nos achamos, pede à justiça que ele também por seu turno

compareça perante o tribunal, responda às acusações que lhe fazem, e dê razão

de sua pessoa, atos, palavras e doutrinas.67

65 GODOY, 2009, p. 71. 66 ODÁLIA, 1979, p. 11. 67 LISBOA, 2004, p. 265.

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João Francisco Lisboa, historiador, político, jornalista e escritor, patrono da cadeira

de número 18 na Academia Brasileira de Letras e da cadeira número 11 na Academia

Maranhense de Letras, nasceu em 22 de março de 1812 em Pirapemas, à margem do Rio

Itapecuru, no Maranhão. Filho de João Francisco de Melo Lisboa e de Gertrudes Rita

Gonçalves Nina, pertencia a uma família tradicional, porém, empobrecida, vinculada à

agricultura local.

Em 1827, aos 15 anos, empregou-se no comércio como caixeiro, mas abandonou a

profissão em 1829, voltando-se para os estudos; chegou a estudar latim com o professor

Francisco Sotero dos Reis. Em 1831, aos 19 anos, participou do Manifesto dos Brasileiros,

que tinha por objetivos oficializar a independência e a expulsão dos portugueses,

acontecimento conhecido como Setembrada. Nessa mesma época, fundou seu primeiro jornal,

O Brasileiro, com caráter nacionalista, em resposta ao fechamento do Farol Maranhense,

jornal de José Cândido de Morais e Silva. Em 1832, suspendeu as edições de seu jornal e

reapareceu com o Farol Maranhense após a morte de seu antigo proprietário, suspendendo

seus exemplares em 1833 com o número 352. No ano de 1834, fundou um novo jornal, o Eco

do Norte. Fundou o Crônica Maranhense, jornal de oposição que teria consumido toda a

herança paterna e no qual escreveu artigos que atacavam o governo, em 1838, período que

coincidiu com o advento da Balaiada. Lisboa foi acusado pelos cabanos de estar envolvido

com os revoltosos. Anos mais tarde, em 1842, fundou o Publicador Maranhense, que durou

três anos.

Em 25 de junho de 1852, apareceu em São Luís o primeiro fascículo do Jornal de

Tímon, que continha 100 páginas; continuou a sair pontualmente um exemplar todos os meses

até o quinto número. Em 1853, saiu um volume com 116 páginas, com os números de seis a

dez. Os números onze e doze foram editados em Portugal com 427 páginas, sendo o último

exemplar publicado em 1858.68

O Jornal de Tímon encontra-se dividido em quatro volumes: o primeiro trata das

Eleições na Antiguidade, na Idade Média, na Roma Católica, na Inglaterra, nos Estados

Unidos, na França, na Turquia, e sobre Partidos e eleições no Maranhão; no segundo e

terceiro, faz uma História geral do Maranhão; no quarto trata da vida do Padre Antônio

Vieira, Biografia de Manuel Odorico Mendes, A festa de Nossa Senhora dos Remédios,

Teatro São Luís, Discurso sobre a Anistia aos pernambucanos revoltosos, A festa dos mortos

ou a procissão dos ossos, e, por último, A Questão do Prata.

68 PEREGRINO, 1976, p. 21-34.

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Desse trabalho utilizamos o Tomo II, vol. 2, que traz como título Jornal de Tímon:

Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à História do Maranhão. Analisamos

principalmente os capítulos XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, e XX, da edição de 1990, feita

pela Editora Alhambra Ltda., de Brasília.

Os sete capítulos a serem analisados encontram-se na mesma disposição em uma

obra da Editora Vozes, em convênio com o Instituto Nacional do Livro do Ministério da

Educação e Cultura, de 1976, que reúne os dois volumes do segundo tomo do livro Jornal de

Tímon.69 Em 2004, foi novamente editado o primeiro tomo do Jornal de Tímon, em Brasília,

pelas edições do Senado Federal.

As informações utilizadas pelo autor na construção de sua narrativa são oriundas de

trabalhos dos cronistas João Filipe Bettendorff, Teixeira de Morais e Bernardo Pereira de

Berredo, e dos manuscritos de arquivos e bibliotecas de Lisboa e Évora e, ainda, mesmo que

em menor proporção, do arquivo da Câmara de São Luís no Maranhão.70 João Lisboa afirma

textualmente que o grosso de suas informações foram extraídas da obra de Bernardo de

Berredo. Apesar de ser considerado historiador, percebemos a atuação de Lisboa mais como

jornalista e político, uma vez que seus escritos de caráter historiográficos só aparecem com o

Jornal de Tímon. Entretanto, segundo Maria Lourdes Mônaco Janotti, ao analisar os escritos

de Lisboa: “o historiador se faz conhecer em tudo o que escreve, mesmo numa

correspondência particular ou numa colaboração esporádica à desconhecida revista”.71 Seus

ideais são frutos de uma época marcada pela transição entre um Brasil colônia e um país

independente.

O Tímon é um narrador fictício, que João Francisco Lisboa utiliza para narrar sua

história sobre as eleições, marcado pelo “moralismo” e pela “ironia”. Tímon tece críticas

ferrenhas ao sistema político maranhense e contesta a falta de ânimo do povo que, segundo o

autor, estava de braços cruzados à espera de um novo Moisés para operar o “milagre da

regeneração”. Porém, estaria fadado a ficar perdido no deserto e nunca alcançar a “terra

prometida”.

Tímon não se interessava em se associar aos partidos políticos maranhenses por

estarem acometidos pela corrupção. Ele reconhece que nem todos os homens são envolvidos

69 LISBOA, 1976. 70 Id. Ibid., p. 8. 71 JANOTTI, 1977, p. 48.

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pelo desregramento, mas que por outro lado “ninguém pode respirar impunemente a

atmosfera corrupta dos partidos”.72

Tímon acreditava que o mal dos partidos não afeta o pudor e as virtudes de forma

instantânea, mas que o sujeito era envolvido pela degradação de forma lenta e contínua:

primeiro passaria por cima de um princípio, depois de outro, quando percebesse estaria

violando os princípios mais sagrados da vida. Ele se coloca como alguém que está à espreita

apenas a observar o curso dos acontecimentos de um lugar seguro, acima do rio da corrupção

movido pela ambição incontrolável dos políticos. Pois queria manter intacta a única coisa

importante que possui, “a integridade de seu caráter”. Segundo Lisboa, aquilo que ele

escreveu sobre o Maranhão pode ser aplicado ao Brasil todo.

João Francisco Lisboa foi eleito deputado para Assembleia Provincial em duas

ocasiões: 1834 e 1848. Tímon, com seu humor satírico, fala aos seus leitores que ninguém

consegue escapar aos maus costumes da política maranhense. Sendo assim, o mais ilustre dos

escritores do Maranhão também teria sido acometido pela corrupção provincial?

Antes de voltar à Assembleia em 1848, foi chamado para ocupar um cargo público,

assumindo a Secretaria de Governo no mandato do presidente da província Antônio Prado da

Costa Ferreira, futuro Barão de Pindaré; no entanto, teria abandonado o cargo em virtude do

assassinato do chefe liberal Raimundo Teixeira Mendes, alegando que as autoridades não se

interessaram em apurar o caso. Lisboa tentou voltar à Assembleia em 1840, mas retirou sua

candidatura, supostamente por manobras de outros políticos. Segundo a historiadora Maria de

Lourdes Mônaco Janotti, João Lisboa, em texto no Publicador Maranhense, demonstrou

grande desilusão e desligamento com os partidos do Maranhão; Janotti, porém, não viu

seriedade em suas palavras, já que ele voltou à política em 1847. Mesmo na sua escrita

tentando mostrar-se superior as “mesquinharias” locais, o autor representa o estereótipo de

político provinciano de sua época, só que com mais talento em relação aos outros.73

A relação de João Lisboa com os partidos maranhenses dá-se por uma mescla de

amor e ódio. Fala-nos dos vícios da política e seu poder de corromper até mesmo homens de

bem, por outro, lado tenta várias vezes fazer parte dela. Pode-se pensar que, de certa forma, a

indignação de Lisboa não é tanto pela corrupção e sim por não ocupar um papel de destaque

na política local.

Seria João Lisboa o próprio Tímon? Tímon foi um filosofo grego conhecido por seu

estilo cético e satírico, teve que largar os estudos para trabalhar como sofista para criar seus

72 LISBOA, 2004, p. 266. 73 JANOTTI, 1977, p. 27.

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filhos. Já João Lisboa, em 1834, casou-se com Violeta Luisa da Cunha, contudo, não tiveram

filhos, pois ele era estéril. Segundo Janotti, o pseudônimo Tímon foi uma escolha moral e

consciente de Lisboa, que não envolve represálias políticas, como afirma Luís Costa Lima,

pois se tivesse que sofrer represálias, não seria em 1852, quando começou a publicar o Jornal

de Tímon, mas sim em 1839, quando as disputas políticas eram mais acaloradas.

Segundo o historiador Flávio Soares, João Lisboa queixava-se da falta de

reconhecimento na província, em decorrência de alguns fracassos eleitorais; o reconhecimento

tão almejado por Lisboa veio principalmente em seus últimos oito anos de vida.74 Mesmo

começando suas atividades como intelectual muito cedo, só em 1855 saiu da província do

Maranhão, foi para o Rio de Janeiro com 43 anos de idade, e depois foi viver em Lisboa. Em

Portugal, foi convidado a colaborar no Jornal do Comércio e no Correio Mercantil e passou a

integrar a Academia Real das Ciências de Lisboa. No Brasil, o Imperador lhe concedeu a

Ordem de Cristo e tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Por

influência de Adolfo de Varnhagen e indicação do poeta Gonçalves Dias, recebeu do governo

um convite para substituir o segundo na comissão de pesquisa em Portugal, que tinha por

objetivo recolher documentos que servissem à História do Brasil.75 Mas sem sombra de

dúvida, João Lisboa começa a ser imortalizado no Maranhão e também em outras partes do

Brasil, em 1863; o ano de sua morte, em Portugal aos 51 anos de idade.

Logo após sua morte, Antônio Henriques Leal, em parceria com Luiz Carlos Pereira

de Castro, editou e publicou em quatro volumes, pela tipografia Berlamino de Mattos, as

Obras Completas de João Lisboa, entre 1864 e 65. Até hoje, essa prática de utilizar a morte

para valorizar os trabalhos dos autores é muito comum.

Após sua morte Lisboa, tornou-se temática comum entre os historiadores; suas obras

têm sido utilizadas como fonte, objeto de estudo ou simples citação. Citamos a seguir, a título

ilustrativo, alguns autores que fazem referência a seus trabalhos: Francisco Adolfo de

Varnhagen, César Augusto Marques, Antônio Gonçalves Dias, Candido Mendes, Graça

Aranha, Nelson Werneck Sodré, Capistrano de Abreu, Silvio Romero, José Veríssimo, João

Lúcio de Azevedo, Ribeiro do Amaral, Fran Paxeco, Pedro Lessa, Viriato Corrêa, Carlota

Carvalho, Barbosa de Godóis, Antônio Lobo, Nascimento de Morais, Alfredo Bosi, Jomar

Moraes, Ângela de Castro Gomes, Lucia Maria Paschoal Guimarães, José Murilo de

Carvalho. Percebe-se que, desde seus contemporâneos até a atualidade, João Lisboa vem

ocupando lugar de destaque entre os intelectuais brasileiros. Mesmo com todas as referências

74 SOARES, 2008, p. 183. 75 PEREGRINO, 1976, p. 21-34.

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citadas, segundo afirma Graça Aranha, exceto no Maranhão, João Lisboa é quase ignorado.

Para Aranha, “alguns letrados envelhecidos ainda o recordam, mas não o leem. Alguns

políticos declamadores invocam o seu discurso sobre anistia e citam trechos sarcásticos do

Jornal de Timon sobre as eternamente incorrigíveis eleições brasileiras”.76 Porém, segundo

sua avaliação, ele foi o maior escritor brasileiro de sua época, que teria pensado a história

como um romance. Afirma Aranha:

quando narra à revolta de Bequimão, o senso artístico de João Lisboa desperta

vivaz e o historiador se eclipsa por um instante, para surgir o romancista que

esboça um esplendido plano do romance complexo, ardente, colorido, que seria

o drama dessa revolta.77

Sobre as narrativas que buscaram compreender o autor e sua obra, podemos destacar

duas: Pantheon Maranhense: ensaios biográficos dos maranhenses ilustres já falecidos pelo

Dr. Antônio Henriques Leal, de Antônio Henriques Leal, e a obra João Francisco Lisboa:

jornalista e historiador, de Maria de Lourdes Mônaco Janotti. São os dois trabalhos de maior

referência sobre o autor; além disso, Henriques Leal é considerado o biógrafo de Lisboa e

também seu contemporâneo. Além das duas primeiras, podemos apontar uma terceira obra, na

verdade uma tese de doutorado, intitulada No avesso da forma: apontamentos para uma

Genealogia da Província do Maranhão, de Flávio Soares.

O historiador Flávio Soares nos apresenta um estudo muito rico sobre João Francisco

Lisboa, analisando a história da transmissão cultural em suas obras, correspondente a

momentos da construção de sua memória, sendo quase todos marcados por acontecimentos

com facetas simbólicas. O autor nos apresenta três momentos cruciais para a construção da

imagem de Lisboa: O primeiro marcado pela cerimônia do enterro em São Luís, em 1864; o

segundo, pelas cerimônias em torno da estátua, que o autor subdivide em dois momentos: a) a

transferência dos restos mortais da Igreja do Carmo, para o local onde seria erguida sua

estátua, em 1911; b) representado pelo levantamento da estátua, em 1918. O terceiro

momento foi marcado pela cerimônia do centenário do falecimento, que ocorreu em São Luís

em 1963.78

Maria de Lourdes Mônaco Janotti, ao analisar a obra de Lisboa, procurou

compreender alguns aspectos da historiografia do século XIX, atentando para alguns pontos

como o desenvolvimento cultural, político, econômico, social, jornalístico e histórico.

76 ARANHA, 1976, p. 46-51. 77 Id. Ibid., p. 50-51. 78 SOARES, 2008, p. 178-297.

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Segundo a historiadora, “o estudo das condições ambientais em que viveu o historiador é tão

importante quanto as citações bibliográficas contidas em sua obra. E estas bem podem ser o

resultado daquelas”.79 De maneira geral, João Francisco Lisboa e o conjunto de sua obra, no

estudo de Janotti, funcionam como um termômetro para a compreensão daquele período.

No dia primeiro de janeiro de 1918, a cerimônia em torno da inauguração da estátua

de Lisboa, deixada sobre a responsabilidade da Academia Maranhense de Letras pelo então

governador do Maranhão Antônio Bricio de Araújo, reuniu várias figuras ilustres que a ele

renderam homenagem.80 O projeto de eternizar João Lisboa em estátua surgiu com advento do

primeiro centenário de seu nascimento no ano de 1912. A obra foi encomendada ao artista

francês Jean Magrou, por Luís Antônio Domingues da Silva, então governador do

Maranhão.81

Após os discursos, foi executado o Hino a João Lisboa, letra de Alfredo de Assis e

música de Adelman Corrêa:

Seja sempre o teu nome, que tanto

Nos orgulha, nos enche de glória,

Como as notas supremas de um canto

Dos que soem levar a vitória.

Sempre nele vejamos de um templo

Consagrado ao trabalho e ao saber,

Valoroso, bem vivido exemplo

Que nos faça querer e poder.

Pela pureza do brilho

Do teu vulto de eleição,

Salve! Salve! Egrégio filho

Da terra do Maranhão.

A existência passaste-a lutando

Pelas causas mais nobres e belas,

Nem de leve jamais te importando

Tempestades e rudes procelas.

Desenganos, tristezas da vida

Recalcá-los soubeste no peito,

79 JANOTTI, 1977, p. 10. 80 Estavam presentes nomes como: D. Francisco de Paula e Silva, bispo diocesano; Valente de Figueiredo;

presidente do Superior Tribunal de Justiça; Carneiro de Freitas, presidente interino do congresso do estado;

Araújo Costa, presidente da câmara municipal; Vicente Galvão, vigário geral do bispado; Agripino Azevedo,

deputado federal; Tavares de Holanda e Raimundo Vinhaes, juízes de direito da capital; Jose Barreto, deputado

estadual; M. Fran Paxeco, cônsul de Portugal; Cecil A. Scarth, vice-cônsul da Inglaterra; Paulo Tosi, agente

consular da Itália; Eduardo Saulnier de Pierrelevée, agente consular da França; Antônio Rodrigues Martins,

cônsul da Espanha; José Pedro Ribeiro, cônsul da Noruega; Alberto Marques Pinheiro, cônsul do Paraguai;

Alberto Moutinho, capitão do porto; José Maria Magalhães de Almeida; Artur Almeida, administrador dos

correios; Euclides Marinho Aranha, inspetor da alfândega; Manoel Joaquim de Albuquerque; Domingos de

Castro Perdigão, diretor da Biblioteca pública; Alfredo de Assis; Domingos Barboza; Ribeiro do Amaral; Maria

Lisboa Airlie, filha adotiva de João Lisboa. A imprensa voltou sua atenção para o acontecimento, estavam

presentes: Diário Oficial, Pacotilha, Jornal O Estado, Revista Maranhense, Ateniense e Postal. 81 Estátua de João Lisboa, documento digitalizado da Biblioteca Pública Benedito Leite, acervo digital.

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Sem parar um momento na lida

Em que foste valente e perfeito.

Refrão

Pena de oiro (ouro) fazendo de clava

De templário sem par no valor

Foi-te a pena, que mais se ilustrava

Quanto mais se entregava ao labor.

E as grandezas que dela extraíste

Nos ficaram da Pátria no altar,

Como o oiro que ao tempo resiste,

Sempre novo e sonoro a brilhar.

Refrão

Tens por isso da Pátria o gigante

Coração desbordando de amor,

A louvar, ufanoso e constante,

Do que foste o sereno esplendor,

A dizer o teu nome ao presente,

A levar o teu nome ao porvir,

Como um fecho de luz refulgente

Nos caminhos da vida a seguir!

Refrão

João Lisboa não foi o único nem o primeiro a receber um hino em sua homenagem:

em 1912, Benedito Leite foi lembrado com uma composição desse tipo, com versos de

Barbosa de Godóis e música do mesmo Adelman Corrêa.82

A Academia Maranhense de Letras sempre se fez presente nos momentos de

comemoração da memória de João Lisboa e, em 2012, para lembrar o seu segundo centenário

de nascimento, a entidade mandou colocar uma placa na base da estátua, com a seguinte

inscrição: “A João Francisco Lisboa o Maranhão”. A cerimônia continuou com a palestra do

acadêmico Sálvio Dino sobre a vida e a obra de João Lisboa, encerrando a noite com a

distribuição de medalhas comemorativas.83

Alfredo Bosi nos fala que no período do Romantismo brasileiro, visto por muitos

como uma uniformidade de amor à pátria, na realidade existiram grupos diversos, com

destaque para: o grupo fluminense, o grupo paulista, o grupo pernambucano e o grupo

maranhense. O maranhense existiu “paralelo aos anteriores, mas liberal no espírito, ilustrado

na cultura e ainda clássico na linguagem”;84 este grupo deu origem posteriormente à alcunha

de “Atenas Brasileira” à cidade de São Luís. Aquilo que se convencionou chamar de Atenas

Brasileira é resultado de um período, século XIX, marcado por grande efervescência na

82 Estátua de Benedito Leite, documento digitalizado da Biblioteca Pública Benedito Leite, acervo digital. 83 <http://globotv.globo.com/tv-mirante/jmtv-1a-edicao/v/imortais-da-academia-maranhense-de-letras-homenag

eiam-bicentenario-de-joao-lisboa/2269928/>. Acesso em: 15 dez. 2012. 84 BOSI, 2008, p. 154-155.

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poesia, na prosa, no jornalismo e também na historiografia. Com destaque para Gonçalves

Dias, João Francisco Lisboa, Cândido Mendes, Sotero dos Reis, Odorico Mendes,

Sousândrade, entres outros. Sendo que estes membros da Atenas ainda hoje servem como

referência para a história e para a literatura maranhense e brasileira.

A noção de história em Lisboa, como ele coloca no prólogo de seu trabalho, nos

remete para uma equação que dominou por muito tempo o entendimento do fazer

historiográfico, onde “estudando o seu passado, aprendemos a conformar-nos com o presente,

e a esperar melhor do futuro”.85 Em relação às fontes, João Lisboa concebe o documento

como sinônimo de verdade, e não como um campo de possíveis interpretações, que variam de

um olhar para outro.

João Lisboa com seus sete capítulos sobre o motim de Beckman inaugurou um novo

momento da historiografia sobre os acontecimentos de 1684. Apesar de ser uma obra que

busca dar conta de vários acontecimentos, dará grande destaque para o motim de Manuel

Beckman. Mesmo com apoio nas fontes, ao falar de Beckman, sua narrativa ganha certo

caráter de romance, devido a tantas qualidades e feitos atribuídos ao personagem.

Na construção da narrativa, Lisboa reúne grandes habilidades como escritor que

realmente o era, com seu estilo erudito e uma escrita de fácil compreensão. Segundo Flávio

Soares, as análises de comparação entre Lisboa e Varnhagen, dois historiadores do império,

colocam o segundo como o maior historiador do império, a exemplo de José Honório

Rodrigues,86 ao afirmar que, apesar da capacidade, conhecimento, domínio da língua e da

exposição, João Lisboa não apresentou resultados gerais positivos como o historiador

paulista. Por outro lado, ainda segundo Soares, o historiador maranhense, “pelo seu domínio

superior da escrita, visão e espírito crítico mais apurado, seria potencialmente o verdadeiro

sucessor de Robert Southey”.87 Já Fran Paxeco colocou o maranhense como o maior

historiador entre aqueles que dissertaram a respeito do Brasil colonial.88

1.7 O MOTIVADOR NA PESQUISA: que procura o historiador?

Como já mencionamos anteriormente, nosso objetivo neste capítulo consiste em

localizar as seis obras selecionadas para análise no sentido de ter certa compreensão do

85 LISBOA, 1990, p. 9. 86 RODRIGUES, 2008, p. 152. 87 SOARES, 2008, p. 189. 88 PAXECO, 2008, p. 45.

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mundo do autor e do mundo da produção. Tendo noção desses dois mundos que se

intercruzam, podemos ter uma compreensão dos “porquês” e dos “comos” que envolvem a

representação histórica de dado autor. Assim como das posições assumidas pelos autores em

suas respectivas obras.

As obras de Teixeira de Moraes, Filipe Bettendorff, Bernardo de Berredo e Robert

Southey são oriundas do período em que o Brasil era colônia. Berredo na condição de

Governador era o representante máximo da Coroa no Maranhão e Grão-Pará; Moraes, por sua

vez, era provedor da Fazenda Real no Maranhão. As obras de João Lisboa e Francisco Adolfo

de Varnhagen foram forjadas na década de 1850, fase em que o país estava consolidando o

Império, patenteando a mudança na sua condição de colônia para nação independente. Porém,

a noção que temos sobre as obras nos dias atuais pode não corresponder à noção do momento

em que foram forjadas, uma vez que o lugar do autor é diferente do lugar do leitor; a recepção

atribui novos sentidos à obra, no entanto, quase sempre não opera de forma intencional. Para

Roger Chartier,

as obras não têm sentido estável, universal, congelado. Elas são investidas de

significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição

e uma recepção, no encontro entre as formas e motivos que lhes dão sua

estrutura e as competências ou expectativas dos públicos que delas se

apoderam.89

Ao analisarmos as seis obras, percebemos que o fator motivador é diferente em cada

pesquisa. Segundo Keith Jenkins, o mesmo objeto de investigação, ou em nosso caso o

personagem, terá tantas interpretações quanto forem os discursos sobre ele, pois cada um

desses discursos representa o olhar de um lugar e de um tempo singular.90Ao que parece, o

interesse de Teixeira Moraes ao estudar o personagem é de tentar moralizar aquela sociedade,

a fim de evitar outros motins, que viessem a corromper a “ordem natural das coisas”. A obra

de Filipe Bettendorff teria por finalidade registrar notícias sobre as atividades dos religiosos

deste lado do mundo.

Na obra de Bernardo de Berredo, a revolta surge obedecendo à minuciosa cronologia

do autor, que narra de forma organizada os acontecimentos desde o descobrimento até o ano

de 1718. Em Robert Southey, o motim aparecerá obedecendo à ordem cronológica do enredo,

assim como em Adolfo de Varnhagen. Quanto aos interesses de João Francisco Lisboa,

atentamos para suas próprias palavras no prólogo do Jornal de Tímon,

89 CHARTIER, 1994, p. 107. 90 JENKINS, 2001, p. 27.

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dentre os muitos episódios que a cada passo nos depara o estudo dos tempos

coloniais, escolhemos o do Bequimão que, a bem dizer, ainda não havia sido

tratado, e é todavia um dos mais interessantes de toda a história do Brasil –

dupla circunstância que determinou a nossa escolha. A indicação sumária dos

acontecimentos anteriores à revolução, e uma ideia geral do sistema colonial,

nos pareceram indispensáveis para que fosse mais bem compreendida a mesma

revolução, que tão evidentemente se filia a todo esse passado.91

Sendo os interesses por Manuel Beckman diferentes para cada autor, as

representações sobre o caráter do personagem e as características do motim também serão

construídas sob a ótica de múltiplos olhares, uma vez que, segundo Marc Bloch, “o passado é,

por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma

coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”.92 Mesmo as narrativas

tendo elementos bem próximos uns dos outros, os interesses e posicionamentos dos autores,

bem como a contingência de sua escrituração e do “lugar” de onde parte seu discurso fazem

suscitar inúmeras diferenças.

91 LISBOA, 1990, p. 7. 92 BLOCH, 2001, p. 75.

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2 O CALEIDOSCÓPIO MANUEL BECKMAN: um sujeito histórico, múltiplos olhares.

O conjunto da história substitui um bibelô bizarro, o povo-criança, por um outro

bibelô, também bizarro, mas de um modo diferente; esse caleidoscópio não se

assemelha às figuras sucessivas de um desenvolvimento dialético, não se explica

por um progresso da consciência, nem, aliás, por um declínio, nem pela luta de

dois princípios, o desejo e a repressão: cada bibelô deve sua forma bizarra ao

lugar que lhe deixaram as práticas contemporâneas entre as quais se moldou.93

O trabalho do historiador é forjado a partir de práticas e representações da realidade,

que emergem dos deslocamentos de visões de mundo. Segundo atestou Chartier, a

representação se reporta a uma ausência, mas que busca mostrar uma presença, a exibição

pública de uma coisa ou pessoa.94 Sobre o questão discorreu Ginzburg: “a ‘representação’ faz

as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a

realidade representada e, portanto, sugere a presença”.95

Os olhares de cada época sobre um documento ou contexto de determinado tempo

estão ligados a um lugar, que são as implicações do presente na narrativa histórica, sendo isso

possível por termos consciência que o fazer do historiador é sempre produto do presente, ao

mesmo tempo em que seu objeto de estudo se localiza no tempo pretérito. Nesse sentido, a

escrita da história se dá em um espaço de fronteira, localizado entre um presente e um

passado. Porém, isso não se resume a invocar simples opiniões sobre um determinado tema, o

que legitima o “bibelô bizarro” substituto é a apresentação de uma pesquisa consistente, que

mesmo assim pode ser submetida a críticas pelos seus pares; além do mais, um historiador

busca que sua obra seja lida e ao mesmo tempo seja avaliada como uma produção pautada na

verdade. O trabalho é realizado a partir de representações, pelo fato conhecido que o

historiador não tem como chegar ao passado de forma clara e definitiva; ele parece estar

constantemente envolto por um nevoeiro, que muitas vezes permite identificar alguns objetos

a sua volta, em outras ocasiões se mostra mais denso, reduzindo ainda mais o campo da visão

do investigador sobre os fatos passados da humanidade, uma vez que o passado já não é. O

fato passado continua o mesmo sem alterações, embora já múltiplo nas representações em sua

própria época, o que se torna variável são os olhares sobre tal acontecimento, uma vez que

cada geração busca formular respostas para questões do seu próprio presente. Segundo

afirmativa de Keith Jenkins, a história é produzida por operários chamados historiadores, e

93 VEYNE, 1998, p. 263-264. 94 CHARTIER, 2002, p. 61-79. 95 GINZBURG, 2001, p. 85.

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que, quando vão trabalhar, “levam a si mesmos: seus valores, posições, perspectivas

ideológicas”.96

Segundo Paul Veyne, o historiador tem por objetivo falar quais foram as realidades

de outros períodos de tempo; todavia, ele não se interessa em compartilhar os sentimentos

próprios de um povo, como ignorâncias e ilusões que cada sociedade tem sobre si próprias.

De um modo geral, não alcançaria a essência, aquilo o que veio a ser aquele povo. O

historiador, para resolver a questão, cria modelos sobre a suposta realidade de representações.

Sobre essas questões, observemos o que escreveu Veyne,

um historiador não faz falarem os romanos, os tibetanos ou os nhambiquaras: ele

fala em seu lugar, fala-nos deles, e conta-nos quais foram as realidades e as

ideologias desses povos; fala sua própria língua, não a deles; sob as aparências e

mistificações, vê a realidade. Quando nos falar do século XX, pretenderá estar

dizendo a verdade sobre ele e não compartilhar seus engodos; não fala a

linguagem errônea de seus heróis, fala-nos deles através de uma metalinguagem,

a verdade científica. Os romanos falam da grandeza de Roma, dos costumes dos

ancestrais, da sabedoria do Senado; o historiador traduz isto na metalinguagem

trans-histórica das Ciências Políticas; interpreta o texto e reconhece aí as

constantes: imperialismo ou isolacionismo, cobertura ideológica, dominação de

classe. Não compartilha a linguagem errônea dos romanos: explica-nos os

romanos falando a língua da verdade científica, fazendo afluir os mecanismos e

as realidades da História romana e tornando-a inteligível.97

A questão relativa ao ponto de vista foi muito discutida pelo historiador Reinhart

Koselleck, que percebe esse fator como um impasse para a historiografia, uma vez que se a

história operar dessa forma, todo o saber produzido é relativo, pois cada historiador observa o

mundo a partir do seu próprio ângulo de visão. A tríade lugar, tempo e pessoa molda o

trabalho enquanto tal e se modificado algum desses elementos a obra já não é a mesma. O

historiador passou a habitar dois mundos até pouco tempo vistos como antagônicos, opera

com afirmações “verdadeiras” e ao mesmo tempo, pelo menos em tese, deve admitir a

relatividade delas.98

De acordo com Keith Jenkins, o passado como aconteceu é inalcançável, os vestígios

que chegaram aos historiadores são ilimitados; ainda assim a maior parte das informações não

foi registrada. Nesse sentido, a história que busca totalidade, a garante pela capacidade de

ocultar as lacunas daquilo que não recebeu registro. As coisas passadas são “acontecimentos”

e não um relato; por sua vez, a história se faz como relato/narrativa, e a construção da

96 JENKINS, 2001, p. 45. 97 VEYNE, 1983, p. 20-21. 98 KOSELLECK, 2006, p. 161-188.

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narrativa obedece a um autor. Dessa forma, a história é um constructo “pessoal” de cada

historiador: “as fontes impedem a liberdade total do historiador e, ao mesmo tempo, não

fixam as coisas de tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações”.99 A liberdade

da qual usufrui o historiador, ainda que controlada, e não determinante, ajuda a oxigenar a

própria diversidade da produção historiográfica. Assim escreveu Keith Jenkins,

Porque, se fosse possível saber de uma vez por todas, hoje e sempre, então não

haveria mais necessidade de escrever história, pois qual seria o propósito de um

sem-número de historiadores ficarem repetindo a mesmíssima coisa da

mesmíssima maneira o tempo todo? A história (os constructos históricos, e não

o “passado e/ou futuro”) pararia.100

Em cada livro de história, os fatos narrados ganham diferentes aspectos, valorizando

ou desprezando acontecimentos, por meios de seus critérios, que definem o que é ou não

relevante. Um historiador pode descrever um evento em poucas páginas, ao passo que outro

historiador para falar hipoteticamente do mesmo evento sinta a necessidade de dedicar-lhe um

livro inteiro. O mesmo pode acontecer com o caráter negativo/positivo atribuído aos eventos e

aos sujeitos no ato de escrita da história.

Essas e outras questões nos ajudam a compreender as inúmeras representações sobre

Manuel Beckman. Vejamos alguns adjetivos: sentinela da liberdade, cão judeu, querido e

venerado, infiel, caráter nobre e elevado, caudilho popular, homem superior, criminoso,

verdadeiro cristão, demagogo, generosidade e sacrifício, diabólica hipocrisia, sentimentalismo

fantasioso, espírito maligno, honrado procedimento, miserável judeu, estadista, dissimulado,

espírito altaneiro, herege ambicioso, herói, judeu cabeça do motim. Essas representações são

frutos de inúmeras obras, que começaram a ser criadas entre os próprios contemporâneos de

Beckman. O historiador sempre pertence a uma época, atestou René Rémond, sendo assim

seu afeiçoamento é produto de uma “ideologia dominante”, e que até mesmo a recusa se

determina em referência ao saber de um tempo específico.101

Os adjetivos atribuídos a Beckman foram se modificando de uma obra para outra.

Entretanto, a paisagem do cenário montado para o motim continua basicamente a mesma para

os diversos autores; apresentado resumidamente como um período da história muito

conturbado. Regime político corrompido, tendo por base o poder abusivo dos governadores; a

ação dos jesuítas que não permitiam a escravização dos indígenas, culminado com a falta de

99 JENKINS, 2001, p. 33. 100 Id. Ibid., p. 31. 101 RÉMOND, 2003, p. 13.

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mão de obra para as lavouras dos colonos maranhenses; e a implantação do estanco,

considerado a gota d’água para o início do motim do Maranhão.

Mudam os autores, mudam os adjetivos; mas as narrativas conservam a grande

maioria dos acontecimentos, trazem-nos quase sempre de forma ordenada. De forma geral, as

narrativas sobre Beckman e seu motim obedecem a um “modelo”, com eventos bem

definidos. Vejamos: os pasquins contra o estanco; a participação de alguns religiosos; o

deslocamento dos amotinados pelas ruas; a tentativa de participação dos estudantes; a

assinatura em círculo, a fim de evitar a identificação dos líderes; a traição de Lázaro de Melo;

a condenação dos líderes; o embarque dos jesuítas; a prisão de Baltazar Fernandes; o

fechamento do estanco; o caráter nobre de Gomes Freyre de Andrada; entre outras questões.

Para demonstrarmos como as representações e os sentidos vão se metamorfoseando

ao longo das épocas e obras, apresentaremos esses acontecimentos em dois tipos diferentes de

escritos quanto ao período: a) uma narrativa colonial – dividida em dois momentos, uma dos

contemporâneos (Teixeira de Moraes e Filipe Bettendorff) e a outra mais afastada dos

acontecimentos (Bernardo de Berredo e Robert Southey); e b) outra imperial (Francisco

Adolfo de Varnhagen e João Lisboa).

2.1 O OLHAR SOBRE BECKMAN ANTES DA INDEPENDÊNCIA

2.1.1 Na visão dos contemporâneos: Teixeira de Moraes e Filipe Bettendorff.

Amigo de novidades (Beckman), aborrecia o sossego, anelava a discórdia e

sedição.102

O principal deles era Manoel de Beckman, por ter gênio apto para motim.103

A obra Relação histórica e política, assim como a Crônica da missão dos padres da

Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, foram escritas por pessoas que estiveram no

calor dos acontecimentos; mas tal posição de aproximação com os fatos estudados não tornam

suas informações mais verossímeis em detrimento dos posteriores, sendo que todo olhar é um

filtro do real.

Esses trabalhos irão nos fornecer um “modelo geral” – acontecimentos comuns a

quase todas as narrativas –, que foram absorvidos pelos demais historiadores que se voltaram

a analisar o motim do Maranhão de 1684. Além dos trabalhos de João Filipe Bettendorff e

102 MORAES, 1877, p. 316. 103 BETTENDORFF, 1909, p. 363.

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Francisco Teixeira de Moraes, dialogaremos, ainda que em menor grau, com outro

contemporâneo do motim, Domingos Teixeira, que escreveu Extratos da vida de Gomes

Freire de Andrada (impressa em 1797). Existem acontecimentos padrões para a descrição do

motim, fatos esses que foram ganhando novas roupagens e sentidos ao longo do tempo e das

narrativas.

Ambos os trabalhos apresentam elementos de desaprovação do motim e do próprio

Manuel Beckman. Diante da ação de Beckman, Teixeira de Moraes afirmou que ele só foi

capaz de tal infidelidade com o príncipe pelo fato de não ser português legítimo, além do

mais,

era este homem de espírito inquieto, extravagante e vario em seus ditames; já se

ostentava subtil, astucioso e discursivo; já pouco menos que mentecapto; amigo

de novidades, aborrecia o sossego, anelava a discórdia e sedição.104

Novidade nesse período era uma atitude negativa, o que se primava era a manutenção

dos costumes tradicionais. Domingos Teixeira também adjetiva o personagem como um

homem de “espíritos inquietos”. Para Bettendorff, Beckman assumiu logo o comando, já que

tinha o “gênio apto para motim”.

Na narrativa de Domingos Teixeira, o personagem aparece com alguma autoridade

com o povo, já que fingia se importar com a classe, quando na verdade fazia sua ambição

parecer virtudes e se valendo da ignorância da plebe conseguiu trazê-la para sua causa.105

Moraes pinta um Maranhão como palco propício para o motim: “os moradores, geralmente

muito pobres, e por isso de si mesmos aborrecidos, e pela experiência dos antecedentes

sucessos, de por via ordinária conseguir o remédio, já desconfiados”.106 Acredita-se que os

antecedentes dos quais o autor fala é da primeira expulsão dos religiosos do Maranhão no ano

de 1661. O autor da Crônica da missão relata que o que levou o povo a aderir ao movimento

de forma cega foi a promessa feita por Manuel Beckman, que fomentava a esperança de

obtenção de muitos escravos. Ainda segundo o autor, Beckman era “ouvido com mais

concurso e gosto que um famoso pregador da palavra de Deus Nosso Senhor”.107 Para

Bettendorff:

porque como o diabo estava ao que parecia, em o coração deste mais cruel

homem e lhe falava pela boca, tinham tanta eficácia suas palavras para com o

104 MORAES, 1877, p. 31. 105 TEIXEIRA, 1881, p. 190. 106 MORAES, 1877, p. 306. 107 BETTENDORFF, 1909, p. 364.

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povo todo, que tudo quanto dizia lhe parecia oragos do Céu. Para pois

assegurarem mais a sua sacrílega e infernal obra que principiado, grudaram

umas folhas de papel entre si, descrevendo ali um grande círculo, e em o meio

deste escreveram o seu levantamento com as causas dele, obrigando-se a si e

seus filhos com pena de maldição de Deus de nunca mais admitir os padres da

Companhia de Jesus, e ao redor do círculo que continha este seu danado

proposito, fizeram subscrever-se todos, de sorte que, postos os nomes ao redor

dele, se não pudesse nunca vir em conhecimento quem era cabeça desse motim;

e a este papel chamavam a roda dos altos coces.108

Bettendorff salienta que descrever tais acontecimentos aborrecia sua pena, porém,

seria bom que se soubesse. O autor, por estar envolvido nos acontecimentos, tomou

posicionamento em defesa dos religiosos. O suposto esquema da assinatura em círculo, para a

não identificação do líder do motim, não funcionou, já que as narrativas dos contemporâneos

do movimento até aqui analisadas apontam Manuel Beckman como principal líder. Moraes

também fala a respeito das assinaturas em círculo e das ofensas contra os religiosos, e que

seria essa invenção fruto da astúcia de Beckman e de Jorge Sampaio. Diz ainda que todo o

povo assinou: “os iníquos alegremente de vontade, os bons da necessidade violentados, e do

futuro tímidos [...]”.109

O autor da Relação histórica e política deixa transparecer três acontecimentos

imediatos para a amotinação do povo do Maranhão. O primeiro consiste no aparecimento de

pasquins em locais públicos que incitavam a população contra o estanco e contra os padres da

companhia; o segundo, na participação dos religiosos que pregavam contra o estanco,

alegando ser esta instituição a responsável pela miséria das fazendas e pela falta de liberdade

dos colonos. Em sua pregação, o suposto religioso teria dito que o povo não esperasse

milagres, pois o remédio estava em suas próprias mãos. O terceiro motivo seria a passividade

do capitão-mor Baltazar Fernandes, que, vendo o motim ganhar corpo, “de nada lançou mão,

de todo remédio desistiu, desconfiado ou tímido, o que lhe não sucedeu, a ser da inteligência

sabia instruído, pois uma só costuma atar as mãos de muitos”.110 Bettendorff entende os

acontecimentos de forma parecida: os pasquins incitaram os homens turbulentos, somando-se

a isto a pouca importância dada pelo capitão-mor, o motim tornou-se possível.

João Filipe Bettendorff desaprovou a participação de alguns religiosos no motim.

Segundo ele,

108 Id. Ibid., p. 366. 109 MORAES, 1877, p. 341. 110 Id. Ibid., p. 314.

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Não faltou quem atiçasse o fogo dos ânimos alterados do povo, entrando em isso

não só alguns clérigos do habito de Cristo, mas também, que pior é, religiosos

de várias religiões, e chegou a cousa a tal ponto que até dos púlpitos declaravam

os pregadores seus apaixonados ânimos contra o estanque, picando em os

inocentes missionários da Companhia de Jesus, do que já deram conta a Deus,

justo e reto juiz.111

Francisco Teixeira de Moraes relatou que o motim de Manuel Beckman foi

precedido por fenômenos que representavam a indignação de Deus e a sua ira contra os

pecadores, numa espécie de juízo final maranhense,

Várias vezes costuma Deus, Senhor nosso, avisar-nos das disposições da sua

divina justiça, para os nossos castigos, porque recorramos com a penitencia a

captar sua misericórdia, e nos falta, como diz Euzébio Nieremberg, por meio de

monstruosidades e de outros prodigiosos casos sucedidos, os quais, inda que

nocivos por si mesmos, são anúncios de se multiplicarem semelhantes ou

maiores.112

Como um sinal do céu teria ocorrido no Maranhão dois anos de infertilidade em

relação aos frutos, sucedida pela fome, da mesma forma que sentiu Roma em tempo do

Império de Cláudio. Lembremos que Moraes explica os acontecimentos do Maranhão tendo

por base exemplos relacionados principalmente à história de Roma. Como suposta profecia, o

estado teria sido palco de um incêndio que consumiu vinte casas, que ficavam em um bairro

onde se iniciou a organização do tumulto; o incêndio começou a partir da casa mais próxima

ao lugar da reunião e se espalhou pelo mesmo caminho tomado pelos amotinados.113

Para Moraes, um motim na atual Alemanha (sedição dos rústicos em Alemanha) foi

precedido por um incêndio e que, nas guerras civis em tempo de Carlos V, o sinal veio com o

nascimento de um menino monstruoso, com uma faca de ponta aguda no ventre. Voltando ao

motim do Maranhão, o autor, relata-nos que em sua fazenda nasceram animais deformados,

alguns sem mãos, outros sem orelhas, entre outros defeitos. Na vila de Santo Antônio de

Alcântara, capitania de Tapuitapera, teria nascido um menino de cabeça monstruosa, que

viveu em torno de um ano, pois o corpo não teria suportado. Em 1683 teria acontecido um

eclipse, que entre outros males, prognosticava a alteração do povo.114

Em Moraes, o motim começou a ser organizado quando Manuel Beckman chamou

alguns cidadãos com pretextos fictícios para se reunirem em sua propriedade no Mearim.

Durante a refeição, o personagem revelou o real motivo do encontro, e os convidados 111 BETTENDORFF, 1909, p. 360. 112 MORAES, 1877, p. 310. 113 Id. Ibid., p. 311. 114 Id. Ibid., p. 311-312.

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louvaram o “ditador”. Mediante a aceitação, enviaram as notícias por escrito, escondidas

dentro de queijos. Quando ele retornou do Mearim, tratou logo de difundir a “peste da

sedição”, e através do demônio encontrava facilidade para persuadir e perverter a população;

além do mais os moradores do Maranhão são taxados em sua maioria como ociosos, o que

ofereceria um ambiente propício para amotinados. Quando da reunião final para dar início ao

motim, Beckman teria decidido que para a liberdade do Maranhão era necessário fechar o

estanco, prender o representante do governador e expulsar os religiosos. Um dos presentes na

reunião colocou-se contra a expulsão dos padres, fato que trouxe para si, a ira do líder do

motim, o qual teria deixado claro que qualquer um que traísse o motim pagaria com a própria

vida. Ainda segundo o autor, para acalmar os ânimos, interferiu Tomás Beckman (o autor o

chama de Beckman menor), apesar de não ter melhores intenções; era mais astuto e falou que

esse tipo de desavença não convinha a ninguém.115 Logo que o motim ganhou corpo, tomaram

a cidade e prenderam Baltazar Fernandes e deixaram como carcereira sua esposa em sua

própria casa. Depois voltaram à Sé para entoar um santíssimo hino, de forma que o motim

parecesse bom e não o início de vários males. Sobre o hino, Bettendorff exclamou:

se foram para a Sé tão satisfeitos como se tivessem acabado uma obra de grande

serviço de Deus, em ação de graças pelo bom sucesso mandaram cantar o Te

Deum Laudamos,como si Deus Nosso Senhor os tivesse ajudado, e não o diabo,

autor de seu motim.116

O autor da Relação histórica e política afirma que os amotinados saíram às ruas com

estranho ruído de armas e vozes, gritando que morressem os traidores; “proferiram mil

sentenças, de morte todas: qual chamava que sem matar a muitos traidores contra o povo, não

deviam dar-se deles por seguros; qual se oferecia para tirar ao governador a vida”...117

Beckman, por conveniência, queria matar os bons, os quais temia, e seus bens seriam

distribuídos entre as pessoas que asseguravam tal ato.118

Moraes afirma que a tentativa de expansão do motim para Tapuitapera não obteve

sucesso, de modo que ele ficou restrito a São Luís. Nesse meio tempo, os jesuítas foram

forçados a embarcar para Pernambuco em dois navios. A partir desse momento, por alguns

motivos, o movimento começou a definhar e a autoridade de Beckman passou a ser

contestada. As principais causas citadas pelo autor foram o inverno prolongado e a falta de

115 Id. Ibid., p. 328. 116 BETTENDORFF, 1909, p. 363. 117 MORAES, 1877, p. 340. 118 Id. Ibid., p. 344.

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habilidades para o serviço militar dos civis que se aborreciam com muita facilidade.

Beckman, ao proibir o uso de fitas por todos e manto de seda pelas mamelucas, atraiu contra

sua pessoa a revolta do povo, que, ao encontrarem-no na rua, gritou: “descortesia ao senhor

do povo: queime-se este cão, judeu infame!”119 No trabalho da Maria Liberman, essa

passagem aparece citada como se fosse retirada do texto de Bettendorff. Essa questão da

origem judaica da família Beckman é mencionada de forma bem sutil por João Lisboa e

aprofundada no trabalho de Maria Liberman, que, tendo Beckman e o motim como pano de

fundo, procurou entender a participação social de cristão novos e judeus na Amazônia.

Para Teixeira de Moraes, Beckman para assegurar o sucesso do motim tinha a

esperança da ajuda de João de Lima, pirata foragido de Portugal, ajuda essa que nunca

chegou; porém, Beckman teria confessado tal envolvimento quando tentou conseguir

munições em Pernambuco. Esse suposto envolvimento com piratas, Milson Coutinho chamou

de acusação infundada, que seria desmentida quando confrontada com a documentação

examinada. Segundo Coutinho:

Alguns historiadores, se não menos isentos, pelo menos pouco informados,

aventaram a possibilidade de Bequimão ter procurado apoio entre piratas que

infestavam os mares de nossa costa, com o que, sem embargo, garantiria a posse

definitiva do Governo, mesmo que tivesse de empenhar o Maranhão a uma

potência estrangeira.120

Para sufocar o motim e como novo governador do Maranhão foi escolhido Gomes

Freire de Andrada – tenente-general de cavalaria do exército português; segundo Teixeira de

Moraes, Gomes Freire era comparado em essência e valor militar a Júlio César. Para o autor, a

tentativa de Beckman para impedir o desembarque do novo governador, foi sem sucesso, já

que ele assumiu o governo de imediato. Não tardou muito até que fossem presos os primeiros

líderes do motim: Jorge Sampaio e Eugenio Ribeiro Maranhão, e Tomás Beckman, que veio

preso de Portugal.

Teixeira de Moraes afirmou que o governador se compadeceu com a possibilidade de

justiçar dois irmãos (Manuel e Tomás), ambos casados e com muitos filhos, por isso fez vista

grossa para que Manuel Beckman desaparecesse; em vez disso, o personagem com um grupo

armado tentou libertar os prisioneiros e seu irmão. A partir desse momento, a cabeça de

Beckman foi posta a prêmio, e qualquer pessoa que o favorecesse seria penalizada. Ele teria

119 Id. Ibid., p. 365. 120 COUTINHO, 2004, p. 245.

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pedido a seus antigos companheiros, mas só conseguiu ajuda de uma viúva, que lhe forneceu

uma canoa e escravos para sua fuga, mas a ajuda veio por temor e não por afeto.121 Os

próprios escravos indicaram o local onde deixaram o personagem. Para a captura, encarregou-

se um moço que, além de amigo de Beckman, foi ele participante ativo do motim. Da mesma

forma que Moraes, Domingos Teixeira relata a traição, mas não cita o nome do traidor,

afirmando que “advertidamente calarão nossas memorias”.122 Teixeira se encontrava numa

posição de desconforto, já que relatava acontecimentos contemporâneos e, além disso, de

certa forma traumáticos para aquele Estado. O nome do suposto traidor é revelado na Crônica

da missão: Lázaro de Melo chegou à propriedade de Manuel Beckman como amigo antigo, de

forma dissimulada, para prendê-lo de forma traiçoeira. De acordo com Bettendorff,

Lázaro de Melo descobriu e entregou Manuel Beckman, ao qual foi prender em

seu engenho, sob capa de compadre, e o trouxe para a cidade; porém não houve

quem lhe aprovasse a ação, e parece que até o Céu a levou em mal e a não quis

deixar sem algum castigo ao menos nesta vida, porque, estando ele em sua roça,

encomendando-se à Virgem do Rosário com as contas à mão, querendo

desimpedir não sei que empecilho da moenda de sua engenhoca, foram correndo

os bois de tal maneira que o pobre foi apanhado pela cabeça entre dois paus

atravessados, onde sem nenhum remédio ficou enforcado e miseravelmente

morto, mas com sinais de sua salvação por estar com o santo rosário as mãos.123

Depois de traído e capturado, ficou na cadeia até o dia do enforcamento, que,

segundo Moraes, recebeu a morte catolicamente animoso e teria dito do alto do patíbulo “que

morria satisfeito de dar pelo povo do Maranhão a vida.”124 Ainda segundo o autor, o

governador que era supostamente uma pessoa muito querida pelo povo, assinou a sentença de

Manuel Beckman com grande constrangimento e mágoa no coração. Domingos Teixeira

escreveu que até o braço lhe tremeu, demonstrando sua piedade. De acordo com Bettendorff,

mesmo não estando presente no momento do enforcamento, disse que, segundo o informaram,

Beckman morreu bem, e depois dos castigos exemplares ficou quieto o Maranhão.

Conforme Domingos Teixeira, a esposa e as duas filhas de Manuel Beckman foram

pedir ajuda a Gomes Freire; Maria Almeida e Cáceres pediu que o governador mandasse as

duas filhas dela para o reino para servir à mulher do governador e suas filhas, pois sendo

filhas de um enforcado ficariam muito arriscadas naquele estado, seriam herdeiras da pena do

pai. Depois que mãe e filhas saíram, teria o governador mandado, através de terceiros,

121 MORAES, 1877, p. 398-399. 122 TEIXEIRA, 1881, p. 214. 123 BETTENDORFF, 1909, p. 408. 124 MORAES, 1877, p. 402.

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arrematar na praça todos os bens do enforcado, para serem entregues para o dote das duas

filhas de Manuel Beckman.125

Para Teixeira, o enforcamento foi um prêmio merecido, por castigo de suas

maldades. Beckman pediu perdão a todos, e que a população deveria obedecer ao governador,

pois ele era revestido de auxílio superior. O personagem teria confessado que por duas vezes

na praia tentou atirar à queima-roupa no governador; na primeira tentativa a pistola não pegou

fogo, e na segunda, ele perdeu a resistência no braço.126

As obras analisadas apresentam um forte teor religioso, os acontecimentos

relacionados ao motim transitam entre o plano terreno e o celestial. De forma geral, vemos as

bênçãos e os castigos divinos entre os homens. A partir do caráter religioso intrínseco nas

narrativas, vemos uma luta constante entre o bem e o mal; a título de ilustração, percebemos

essa dualidade explícita no momento em que Filipe Bettendorff narra a partida dos religiosos:

“levantaram-se as ancoras e demos a vela, á vista de todo o povo amotinado, alegrando-se os

maus e chorando os bons, os quais, como tementes de Deus, abominavam aquele motim e

alaridos [...]”.127 Manuel Beckman é visto como aquele que corrompeu os fiéis do príncipe e

de Deus.

2.1.2 Uma visão posterior aos contemporâneos: Bernardo de Berredo e Robert Southey

[...] O Beckman de toda a sua indústria, revestida de zelo: porém acabando de

conhecer as frouxidões da sua autoridade nas particulares atenções dos

sediciosos [...].128

Entre estes últimos o mais hábil e o mais ambicioso era um certo Manuel

Beckman, natural de Lisboa, mas de origem estrangeira, homem distinto em São

Luís pela influência, talentos e turbulência.129

Robert Southey e Bernardo de Berredo adjetivam Manuel Beckman como uma figura

perversa e dissimulada.

Em Berredo, percebemos que o principal motivo para o motim do povo do Maranhão

foi a implantação do estanco. No governo de Francisco de Sá de Meneses, o monopólio teria

sido estabelecido sem a contradição do povo, que estava animado com tantas novidades. Os

125 TEIXEIRA, 1881, p. 219-220. 126 Id. Ibid., p. 220-221. 127 BETTENDORFF, 1909, p. 371. 128 BERREDO, 1998, p. 330. 129 SOUTHEY, 1965, p. 241.

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possíveis danos da prática ambiciosa dos administradores do estanco passaram despercebidos.

Southey também escreveu que o monopólio foi admitido sem oposição pública,

diferentemente de Belém, que imediatamente percebeu que o estanco lesaria os interesses

individuais e coletivos. Sobre a situação, escreveu Berredo:

Contudo, sem alteração, que se temesse como perigosa, entrou o novo ano de

1683; mas já se ouviram os clamores dos povos pela escandalosa contravenção

das condições do assento; porque a ambição dos contratadores, para melhor

encher as suas medidas, não vendia gênero pela pauta dos preços, que se não

achasse falsificado com gravíssimo dano dos compradores, e de quinhentos

negros da costa de África, pela taxa ajustada de cem mil-réis cada cabeça, que

haviam prometido meter todos os anos em uma, e outra capitania, caminhando já

para o segundo, nenhum até então se tinha visto nelas, [...].130

Conforme atestou Berredo, para piorar a situação, no ano de 1684 passou a governar

a capitania do Maranhão Baltasar Fernandes, que cuidava mais da conservação do emprego

do que o desempenho de suas obrigações. Mesmo sendo informado com antecedência das

práticas mal intencionadas dos moradores, não procurou nenhuma solução.131 Para Robert

Southey, o povo do Maranhão estava propenso a se amotinar, devido à impunidade de

insurreições anteriores, somada ao estado de timidez e inércia de Baltasar Fernandes.

Relatou Berredo que, em meio a todos esses acontecimentos, estava Manuel

Beckman à espreita, esperando a oportunidade para melhorar sua situação financeira, que foi

desorganizada no governo anterior (Inácio Coelho) e também não estaria satisfeito com o

atual (Francisco de Sá de Meneses). Para o autor, o personagem esperava melhorar sua

fortuna pela comoção do povo, e para colocar seu plano em prática teria convidado de forma

dissimulada alguns moradores para uma reunião em seu engenho no rio Mearim, onde revelou

os primeiros passos para o motim.132

O historiador inglês entende o motim como uma grande farsa montada por Manuel

Beckman, cuja autoridade, logo após o embarque dos religiosos, começou a enfraquecer.

Conforme escreveu Southey, “achava-se o caudilho popular já nessa miserável condição em

que mais cedo ou mais tarde caem todos os demagogos, passada a primeira embriaguez do

triunfo.”133 Além de caudilho demagogo, teria Beckman descido mais baixo, ao tentar fazer

uma aliança com D. João de Lima, fidalgo português de alta linhagem, mas que se tornou um

criminoso, e que teria chegado ao topo da infâmia ao tornar-se pirata. Atividade essa que

130 BERREDO, 1998, p. 318. 131 Id. Ibid., p. 318. 132 Id. Ibid., p. 319. 133 SOUTHEY, 1965, p. 247.

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infestava os mares da América e fazia guerra contra a humanidade. Ainda segundo o autor,

Beckman, em troca de proteção, teria oferecido o Maranhão como um local para o pirata

depositar seus roubos e formar um poder paralelo a Portugal, ou qualquer outra nação.134

O autor dos Anais Históricos, com sua escrita carregada de elementos religiosos,

escreveu que o povo foi introduzido num “diabólico magistério”. Além do mais, teria ajudado

no projeto de Beckman a paixão cega de um religioso, que se esqueceu de suas obrigações

com o estado, e de uma catedral pregou,

com expressões tão vivas no ódio do estanco, que até chegou a proferir, que

sendo sem dúvida a principal origem das enfermidades, que padeciam todos

aqueles povos, não deviam eles esperar milagres para o seu remédio, quando o

tinham nas suas próprias mãos; e acrescentou outros termos tão fortes, que ao

mesmo tempo, que persuadia uma sublevação, parecia também que se oferecia

já a governá-la na frente das bandeiras.135

O suposto envolvimento de alguns religiosos nos mostra o quanto a situação da

província do Maranhão era precária no período.

De modo geral, Beckman se colocava com modéstia e virtude perante os

acontecimentos diante do povo, mas isso seria apenas “vício da sua diabólica hipocrisia”.136

Escreveu Berredo que, quando o “monstruoso corpo daquela desordem” tomou as ruas e

cheios de ódio e considerando inimigas dos interesses públicos todas as famílias que não

aderiram ao motim, “foram menos as mortes, do que os insultos de outra natureza”.137 Sobre a

questão relativa aos supostos assassinatos, o autor da História do Brasil descreve de forma

bem parecida. O autor dos Anais, que descreveu Manuel Beckman como um indivíduo

dissimulado, muda os adjetivos, porém, quando o personagem defendeu o juiz dos órfãos e

Antônio de Sousa, da fúria popular; ele escreve “que se a piedade, ou a fina política do

mesmo Beckman os não amparasse, perderiam as vidas”.138

Segundo atestou Bernardo Pereira de Berredo, uma das atitudes mais bárbaras de

Beckman foi a expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus de modo escandaloso, porque

foi no dia de Ramos, e os padres saíram do colégio com palmas sobre os ombros, que

representavam os símbolos do cruel martírio. Para o historiador inglês, de todas as situações

os jesuítas sabiam tirar vantagem, buscavam honra mesmo onde não era possível tirar, se

134 Id.Ibid., p. 249. 135 BERREDO, 1998, p. 320. 136 Id. Ibid., p. 321. 137 Id. Ibid., p. 322. 138 Id. Ibid., p. 324.

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portando com aparente dignidade mesmo nas condições adversas: “saíram do colégio cada um

com seu ramo de palmeira na mão, a um tempo mostrando a sua observância da festividade, e

exibindo o prêmio emblemático do martírio”.139

A partir do embarque dos religiosos, percebemos que o motim cai em franco declínio

e a autoridade do líder começa a ser questionada. Para o autor, Beckman via crescer o número

de descontentes, e o evidente risco que levaria à divisão dos amotinados,

já pouco menos que comovido, necessitou bem o Beckman de toda a sua

indústria, revestida de zelo: porém acabando de conhecer as frouxidões da sua

autoridade nas particulares atenções dos sediciosos; porque desenganada a sua

cegueira, seguiam quase todos o mesmo desatino só como forçados da

desesperação, em que os tinha posto a do perdão dele.140

Para Berredo, todos os lavradores começaram a partir para suas fazendas, e,

Beckman ficou desarmado, e nada que fizesse poderia conseguir o respeito do povo, já que ele

também se encontrava abatido. Nesse meio tempo, chegaram a São Luís Hilário de Sousa de

Azevedo e Miguel Belo da Costa, que ofereceram um suborno de quatro mil cruzados a

Beckman e perdão geral para os amotinados; o líder, todavia, recusou tal oferta, atitude essa

vista como mais uma infâmia articulada pelo personagem, buscando para si uma natural

elevação de espírito.141 Na História do Brasil, sobre o suposto suborno, o autor condena

duplamente a atitude do governador Francisco de Sá de Meneses: se o governador tinha a

intenção de cumprir as promessas, “era miserável estadista”; se pretendia apenas fazer uma

armadilha para Manuel Beckman, era “homem perverso”. O personagem teria exclamado que

só obedecia às ordens do rei. Nessa passagem, percebemos certa flexibilidade do autor, já que

escreveu que o suborno foi recusado com orgulho real, ou fingido. “O único resultado fora

realçar o caráter de Beckman, que assim ficou com o crédito de um ato de desinteresse e

magnanimidade”.142 Em outra passagem, onde o autor relatou a prisão de Beckman por

Lázaro de Melo, o personagem é percebido como alguém com alguma honra, pois o traidor

confiou na honra dele, depois de atraiçoá-lo: Beckman pediu que soltasse as amarras de seu

corpo, e que não tentaria fugir, e que, atendido no seu pedido, teria ele honrado a palavra

dada.143

139 SOUTHEY, 1965, p. 247. 140 BERREDO, 1998, p. 330. 141 Id. Ibid., p. 330. 142 SOUTHEY, 1965, p. 248. 143 Id. Ibid., p. 259.

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Quando o novo governador chegou ao Maranhão, logo assumiu o comando da cidade

e colocou os antigos funcionários nos seus respectivos postos. Como Beckman se retirou para

sua fazenda no Mearim, Gomes Freire passou a oferecer um prêmio pela prisão e gravíssimas

penas a quem o ocultasse.

Robert Southey descreveu a pessoa do novo governador como um sujeito de grande

honra, lealdade e bravura, um soldado único para aceitar um desafio tão grande no Amazonas,

que, segundo o autor, suspeitava-se de ser uma nova tentativa de ocupação dos franceses nas

terras maranhenses. Quando Freire de Andrada foi chamado perante o rei, ele já contava com

quarenta e oito anos de idade, e uma longa experiência no campo de batalha. O rei teria

deixado a sua escolha ir para Goa assumir o comando, ou vir para uma tarefa mais árdua,

menos honrosa e menos lucrativa para silenciar o motim do Maranhão. Escolhera o Maranhão

por que lá poderia melhor servir seu país, mesmo na situação que se encontrava com negócios

particulares e a saúde arruinada.144 Ainda segundo o historiador inglês, quando o governador

assinou a sentença de Beckman a sua mão teria tremido, e que em nada se aproximava seu

autógrafo com sua letra de costume. Em mais uma atitude de bom cristão, teria Gomes Freire

comprado os bens do condenado, que foram confiscados, com seus próprios recursos e

devolvendo os bens para as filhas para seus respectivos dotes.145

Conforme atestou o autor dos Anais, para a captura de Beckman se apresentou um

moço de pouca honra, que contava com os privilégios de cidadão da cidade de São Luís e era

ainda pupilo e afilhado do atraiçoado: Lázaro de Melo, o traidor. Ele recebeu como

recompensa por capturar seu padrinho a patente de capitão da companhia da nobreza, porém,

no dia de sua suposta posse, não teve nenhum homem que se alistasse. Lázaro passou a viver

afastado da cidade até o dia de sua morte, que ocorreu de forma parecida com a do padrinho:

“se enforcou por desgraça, depois de alguns anos, em uma engenhoca de fazer aguardente,

acabando a vida também de garrote, e muito mais violento, principalmente para as disposições

da imortalidade”.146 Para Robert Southey, a morte do traidor de forma parecida com de

Beckman levou as pessoas a acreditarem que seria um juízo do céu, conclusão essa que o

autor chamou de presunçosa, mas vinha de boa fonte, mesmo não revelando de onde teria

retirado tal informação; acreditamos ser oriunda da crônica de João Filipe Bettendorff.

Berredo, ao falar do enforcamento de Beckman, diz que pelo seu orgulho mereceu o fatal

castigo.

144 Id. Ibid., p. 249-251. 145 Id. Ibid., p. 260-261. 146 BERREDO, 1998, p. 337-338.

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2.2 O OLHAR SOBRE BECKMAN NO PÓS-INDEPENDÊNCIA: Francisco Adolfo de

Varnhagen e João Lisboa.

O Bequimão, deposta aquela coragem ativa, que brilha principalmente na luta e

na resistência, conservava todavia a da firmeza e da resignação que só uma fé

viva e pura na bondade da sua causa pode dar ao homem traído pelo destino.147

Manoel Bequimão subiu ao patíbulo como verdadeiro herói.148

João Francisco Lisboa e Francisco Adolfo de Varnhagen despontam nos dias atuais

como nomes consagrados na historiografia brasileira. O historiador sorocabano, com sua

História Geral do Brasil, assim com a História da Independência do Brasil, nos forneceu um

modelo para a história nacional; a grandiosidade de seu trabalho é inegável, mas para sua

consagração recebeu grande ajuda do historiador e mestre da historiografia José Honório

Rodrigues, já que este, durante algum tempo, foi uma voz autorizada sobre o que seria um

trabalho de valor entre os historiadores. Rodrigues apontava Varnhagen como o intelectual

brasileiro que teria alcançado mais pontos positivos na escrita da história. Por outro lado, João

Francisco Lisboa também deixou uma obra de grande valor, mas que, ao que parece, é

percebida como um modelo, só que de uma história local. Ainda em vida, João Lisboa

queixava-se da falta de reconhecimento.

A situação econômica, política e social da colônia maranhense é retratada de forma

bastante bizarra por João Francisco Lisboa, que nos apresenta a um quadro apocalíptico, o

Maranhão como palco da barbárie instaurada,

leis confusas, incompletas, contraditórias, opressivas, contendo algumas boas

disposições parciais, de resto impotentes para obviar à influência perniciosa dos

princípios gerais dominantes, falsos e viciosos; a sua anarquia intrínseca,

singularmente alimentada na execução, pelas infrações incessantes e

permanentes que a ignorância, a prepotência, e a corrupção impeliam os

governadores; as câmaras e os magistrados ociosos, enchendo o tempo com

manejos e intrigas políticas e particulares, e associando-se ao sistema geral de

opressão e tirania, bem que ordinariamente avessos entre si e em direção oposta

à dos governadores, em vez de manterem a dignidade própria, e os foros dos

cidadãos; – poderes rivais e relutantes, inúteis para a fiscalização e o equilíbrio,

admiráveis e eficacíssimos para os conflitos, os tumultos, e as revoltas; os frades

e eclesiásticos em geral, sem exceção dos príncipes e dignidades da Igreja,

fomentando por todos os meios a sedição e a discórdia, e violando na prática os

princípios de liberdade que no ardor das lutas pelo predomínio apregoavam a

favor dos índios; a imolação ora lenta e gradual, ora instantânea e fulminante

desta raça infeliz; as guerras estrangeiras; as capitanias reunidas, separadas,

147 LISBOA, 1990, p. 118. 148 VARNHAGEN, 1975, p. 252.

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outra vez reunidas; a residência dos governadores enfim transferida

continuamente de uma para outra capital; eis aí, por uma das suas faces, os

acidentes ordinários dessa vida mesquinha e tormentosa, que nos propusemos a

esboçar.149

As autoridades da terra só se interessavam em aumentar suas riquezas, e o faziam por

meios ilícitos; uma vez que só honravam a ociosidade, as guerras, as matanças e as

espoliações, o trabalho era visto como atividade degenerada destinada a escravos.150

Lisboa escreveu que a educação e a instrução civil e moral do povo não existiam, e a

dos nobres era quase inexistente; as raríssimas escolas na colônia pertenciam aos jesuítas. O

Maranhão passava por um momento de economia de subsistência, na qual os processos

manufatureiros e agrícolas eram desenvolvidos a partir de técnicas grosseiras, e seus frutos

eram quase nulos. Os gêneros alimentícios eram escassos e caros, a caça e a pesca passaram a

ser o meio de sobrevivência da população local, já que a carne de gado só era possível aos

sábados, além disso, insuficiente para abastecer o açougue. Ainda segundo João Francisco

Lisboa, a situação era tão lamentável que em certas ocasiões até a missa estava ameaçada por

falta do vinho e do trigo – usado para fabricação das hóstias –, que vinham de Portugal, assim

como o sal. Era comum se passarem dois anos sem chegar nenhum navio ao porto; a moeda

nessas terras eram o fio e o pano grosso de algodão. Chega a dizer que o soldo da tropa era

pago com peixe seco e farinha. Sobre a urbanização, se é que podemos utilizar tal termo,

vemos aspectos caóticos, como a presença de casas de taipa e cobertas de palha, as ruas não

eram calçadas e se apresentavam cheias de escavações, a cidade se agrupava em torno dos

conventos; numa avaliação geral do autor, a cidade apresentava todos os sinais de

decrepitude.151

Vemos como principal causa para o motim do Maranhão a implantação do estanco

pela Companhia de Comércio. Pois os responsáveis pelo monopólio não teriam cumprido suas

obrigações. Os lavradores se queixavam constantemente da falta de mão de obra, dos altos

preços e das péssimas qualidades dos produtos enviados pela Companhia de Comércio para a

colônia e dos baixos valores taxados aos artigos produzidos pela colônia oriundos da

agricultura.

João Lisboa relata que o monopólio foi posto em prática contra a vontade do povo, e

sob fortes ameaças do Governador, que, segundo ele, para tal tarefa trazia ordens diretas do

rei. Desse jeito, não precisava da aprovação dos colonos, e aqueles que fizessem oposição

149 LISBOA, 1990, p. 75. 150 Id. Ibid., p. 75-76. 151 Id. Ibid., p. 76-77.

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seriam presos e remetidos a Portugal para tomarem satisfação diretamente com Sua

Majestade. O autor critica Bernardo de Berredo sobre a suposta aceitação do povo, afirmando

que tal informação não passava de uma falsidade desmentida por todos os documentos

contemporâneos, e que nem mesmo Sá e Menezes, apesar de interessado, não ousou fazer

similar afirmação.152 Francisco Adolfo de Varnhagen, sucintamente, diz que a implantação do

monopólio foi acompanhada de “dolos e abusos”.153

Ainda segundo o historiador sorocabano, o clamor contra o estanco era geral, as

reclamações vinham até dos púlpitos: um pregador dizia que os remédios para aquela situação

estavam nas mãos do povo.154

Relata-nos João Lisboa que os pesos e as medidas dos quais se utilizavam no estanco

eram falsificados. Além dos produtos serem de péssimas qualidades e com preços abusivos,

eram insuficientes para abastecer a colônia. Segundo o autor, a primeira remessa de escravos

foi vendida a cento e dez, e a cento e vinte mil réis, cada um, quando pelos termos do estanco

o preço do escravo não deveria ultrapassar a quantia de cem mil réis. Entretanto, Pascoal

Jansen teria alegado que os escravos não pertenciam ao estanco, mas a seu negócio particular.

Além do mais, o monopólio só aceitava cravo e pano como pagamento; os lavradores, para

não perderem sua produção de açúcar, cacau, tabaco e couros, se obrigavam a vendê-los a

preços baixos para os mesmos agentes do estanco disfarçados. De forma geral, o monopólio

passou a fazer concorrência aos lavradores, uma vez que eles tinham aldeias onde os

indígenas produziam farinha e outros gêneros que eram colocados à venda. Lisboa conclui

afirmando que tantos abusos resultaram em prejuízos incalculáveis, e muitos engenhos

ficaram completamente arruinados. Sobre a política do estanco, escreveu João Lisboa:

o governador, os seus familiares e os feitores do mesmo estanco, aproveitaram-

se da noite imediatamente anterior ao dia em que deverá começar o

carregamento dos particulares (recebido já o do estanco, que tinha a primazia)

para meterem a bordo todo o cravo que tinham prevenido; por maneira que

quando, ao amanhecer, os moradores acudiram com os seus gêneros, acharam já

o navio quase abarrotado; e apenas puderam embarcar alguma pequena

quantidade os que fizeram avenças onerosíssimas com o capitão e

marinheiros.155

João Lisboa denuncia que o governador e Pascoal Pereira Jansen utilizavam o

estanco para armazenar e transportar seus produtos particulares; o cravo do governador

152 Id. Ibid., p. 83. 153 VARNHAGEN, 1975, p. 249. 154 Id. Ibid., p. 250. 155 LISBOA, 1990:86.

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embarcava como se fosse do estanco. Os navios, quando chegavam ao porto de São Luís,

muitas vezes eram abarrotados apenas com a mercadoria do governador, trazendo sérios

prejuízos à população.

Lisboa, quando fala de Beckman, critica autores como Bernardo Pereira Berredo e

Teixeira de Moraes, uma vez que as informações encontradas nas obras desses autores seriam

desmentidas pelos documentos contemporâneos analisados por ele. No Jornal de Tímon, o

personagem é percebido de forma bastante positiva. Segundo Lisboa:

os elementos de grandeza, desinteresse, generosidade e sacrifício, que reunidos a uma

certa propensão para o sentimentalismo fantasioso, constituíam a base principal do seu

caráter nobre e elevado, explicam de um modo tão plausível a posição eminente, e a

parte ativa que ele tomou nos acontecimentos, que não será necessário interpretá-las pela

existência de paixões criminosas e baixas, aliás, incompatíveis com tudo quanto sabemos

da sua vida. 156

O personagem é construído a partir de elementos nobres e elevados, pois, além de

lutar por seus interesses, o fazia, sobretudo, contra a miséria do povo. É visto como um bom

cristão que carregaria sobre seus ombros a dor de toda uma população aprisionada por

governantes corruptos.

Varnhagen escreveu que a história não pode deixar de simpatizar com almas

generosas como a do líder do motim. De forma similar a João Lisboa, construiu um herói

revestido de certa divindade. Sendo assim, escreveu:

Se com um e outro os homens estiveram demasiado rigorosos, se curtas miras de

vinganças por interesses ofendidos influíram na final sentença, mais do que as

razões de Estado, e se eles eram bons e queriam o bem, a justiça divina, superior

a todos e a tudo, os terá por certo galardoado sempiternamente. A história por

sua parte não pode, em todo caso, deixar de simpatizar com estas almas

generosas, tratadas tão cruelmente. Manuel Bequimão subiu ao patíbulo como

verdadeiro herói. Com toda a serenidade, declarou nos últimos instantes que

“pelo Maranhão dava satisfeito a vida”. Palavras solenes que eternamente

encontrarão eco e simpatia, não só entre os maranhenses, como em todos os

corações bem formados!157

Para o historiador maranhense, com a partida dos padres terminou a fase ascendente

do motim, pois logo a população começou a esfriar dos seus planos primeiros. A coragem do

povo maranhense é muito contestada pelo autor; sobre tal classe, comenta Lisboa: “frouxos,

156 Id. Ibid., p. 90. 157VARNHAGEN, 1975, p. 252.

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tíbios e remissos, começaram todos a murmurar da disciplina militar a que não andavam

afeitos, e não menos do peso do serviço, agravado então pelos rigores de um prolongado

inverno”.158

Vendo o enfraquecimento do motim, o Governador Sá e Meneses, símbolo da

incapacidade e da corrupção, tentou acalmar o povo do Maranhão por meios obscuros, que

eram natural da sua índole; para isso, mandou Hilário de Sousa oferecer um suborno de

“quatro mil cruzados em dinheiro, as honras e postos mais elevados da capitania, e o perdão

pessoal do seu crime”.159 João Lisboa afirma que Beckman não podia trair a causa que ele

havia esposado, e que não aceitaria benefícios de que não participassem todos os seus

companheiros de luta.

Atestou o historiador maranhense que quando Gomes Freire de Andrada chegou ao

Maranhão, logo tratou de assumir o controle da cidade, porém, Manuel Beckman continuava a

aparecer publicamente, e quando Tomás Beckman chegou à cidade, seu irmão tentou arrancá-

lo da prisão. A partir desse momento, o novo governador prometeu recompensas a quem

prendesse Manuel Beckman, e castigaria aqueles que de algum modo o ajudassem; o terror se

tornaria geral e todos os moradores se recusaram a ajudá-lo, exceto uma viúva que lhe

ofereceu uma canoa para o transporte até o Mearim. As recompensas levaram Lázaro de Melo

a caçar seu antigo benfeitor de forma infame; o afilhado teria chegado como amigo para

distraí-lo, enquanto de seus capangas o capturavam traiçoeiramente. Nos primeiros

momentos, Beckman demonstrou indignação, mas depois pediu apenas que as cordas fossem

retiradas do seu corpo, pois não aproveitaria a liberdade para fugir. “E tal era o respeito e

confiança que inspirava o caráter deste homem raro, que o mesmo miserável que naquele

instante acabava de atraiçoa-lo, não duvidou anuir ao seu pedido [...]”.160 Na História Geral

do Brasil, vemos que, em meio ao vale de lágrimas em decorrência da perseguição à pessoa

de Beckman, apareceram os malvados e ingratos, no caso Lázaro de Melo.161 O autor mostra

uma rejeição ao suposto traidor de forma bem acentuada, ao afirmar que,

Quanto ao miserável delator Lázaro de Melo, depois de ser enquanto vivo de

todos desprezado, veio a morrer garroteando-se em um engenho; e mais

afrontadora do que essa morte é a vida, com que vive e viverá sua memória, na

província, no Brasil e no Universo.162

158 LISBOA, 1990, p. 104. 159 Id. Ibid., p. 106. 160 Id. Ibid., p. 116-117. 161 VARNHAGEN, 1975, p. 252. 162 Id. Ibid., p. 252.

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O autor do Jornal de Tímon diz que Beckman subiu ao patíbulo com verdadeiro

cristão, pediu perdão se acaso tivesse ofendido alguém, declarando que pelo povo do

Maranhão morria feliz. Beckman, como sempre se apresentou com coragem ativa na luta e

resistência, mesmo traído pelo destino, era de uma “fé viva e pura bondade”. Liderou um

movimento com honestidade e moderação que serviram de glória para aqueles tempos.

Beckman, todavia, teria vivido numa época de ignorância, egoísmo e corrupção que não

condiz com sua pessoa.163

2.3 O QUE MUDA E POR QUE MUDA?

Num plano geral, percebemos que as narrativas sobre Manuel Beckman são

marcadas pelo maniqueísmo, com descrições que apresentam expressões de caráter religioso.

O caráter de Beckman foi sofrendo metamorfoses de uma obra para outra, passa de judeu

infiel para cristão nobre; de demagogo a herói.

Há uma demarcação de tempo bem acentuada sobre a questão no que tange às

diferentes representações de Beckman. Depois de analisarmos os autores propostos e

dispensadas as singularidades de cada trabalho, percebemos, de modo geral, duas formas

distintas de representações sobre Manuel Beckman. Na visão dos autores que escreveram

durante o Brasil colonial, o personagem é descrito como desordeiro, criminoso, pirata e

dissimulado; já para aqueles do pós-Independência, Beckman é apontado como

revolucionário, herói e até mesmo um santo. Essas mudanças são passíveis de explicação,

uma vez que cada autor representa os interesses de sua época e de seu lugar, assim como a

instituição à qual pertence. O historiador molda e ao mesmo tempo é moldado pelo seu tempo

e sociedade, influencia e é influenciado pelos diversos fatores de uma época; a relação entre

historiador e o lugar do seu labor é marcada pelo dinamismo cultural.

Não é de se estranhar a posição contrária dos autores contemporâneos em relação a

Beckman e seu motim. Francisco Teixeira de Moraes era Provedor da Fazenda Real no

Maranhão; por sua vez, Domingos Teixeira era biógrafo de Gomes Freire. Mesmo João Felipe

Bettendorff não sendo português, ele foi penalizado juntamente com os outros religiosos.

Ainda que certa passagem na obra de Bettendorff nos leve a entender que o religioso era

amigo de Beckman, quando chegou o momento do embarque dos padres, o líder do motim

deu um abraço no religioso e com lágrimas nos olhos pediu que ele ficasse em sua casa. De

163 LISBOA, 1990, p. 118.

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uma forma geral, todos estão ligados à coroa portuguesa. Não é por acaso que Moraes relatou

que Beckman só foi capaz de tal ato porque não era português legítimo.

Bernardo Pereira de Berredo escreveu Anais Históricos do Estado do Maranhão em

1749, período no qual o Brasil era apenas uma colônia de Portugal; somado a isso, Berredo

era o representante máximo da coroa portuguesa no Maranhão, pois foi governador e capitão

general. O autor, como vimos anteriormente, acusa os governantes de corrupção e denuncia o

estado miserável da colônia; por outro lado, desqualifica o motim de Manuel Beckman. Essa

questão pode ser explicada pelo fato de Bernardo Berredo ocupar um lugar como

representante dos interesses portugueses e não do Maranhão e Grão-Pará. Percebemos um

verdadeiro embate entre o bem e o mal, sendo Beckman e seu levante obras do demônio, já

por outro lado, era bom aquilo que representava a coroa portuguesa. Nesse sentido, outro

momento marcante da obra é a interpretação sobre a expulsão dos jesuítas, atitude associada a

elementos “bárbaros” e à falta de respeito à fé católica, uma vez que a expulsão ocorreu

justamente no Domingo de Ramos, primeiro dia da Semana Santa. A Semana Santa,

principalmente a Sexta-Feira Santa, é a época do ano na qual os católicos relembram o

sacrifício de Jesus Cristo em prol da humanidade; deveria ser uma semana de reflexão e

silêncio em respeito à dor do Salvador perante a crucificação. Robert Southey, em sua

História Brasil, de 1810, tendo Berredo como uma de suas principais referências, também

condenou o motim do Maranhão. Segundo o autor, o povo do Maranhão estava propenso a se

amotinar devido à impunidade de outras insurreições ocorridas anteriormente. Fala-nos que o

papel dos jesuítas era defender os índios contra a avareza dos colonos, sendo que o mais

ambicioso era Manuel Beckman, que precisava de mão de obra para a manutenção do

engenho Santa Cruz, nas proximidades do Rio Mearim. Southey era inglês, mas se

especializou em História de Portugal e do Brasil.

Com o Jornal de Tímon, João Francisco Lisboa deu uma guinada radical nas

representações de Manuel Beckman; a partir desse período, o personagem é revestido de

características nobres irretocáveis: o homem de melhor caráter de toda a colônia, que teria se

sacrificado pelo povo do Maranhão. São tantos os elogios que, somando-se todos, Beckman é

percebido como uma mistura de revolucionário, de herói e até mesmo de um santo. Francisco

Adolfo de Varnhagen, na obra História geral do Brasil, também contribuiu para a criação do

herói nacional; no seu trabalho, percebe-se a presença de uma escrita de teor religioso.

Afirmou que Manuel Beckman receberia a glória ou recompensa infinita, já que era bom e foi

sentenciado por vinganças particulares.

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As obras de João Francisco Lisboa e Francisco Adolfo de Varnhagen são

contemporâneas: o Jornal de Tímon foi escrito entre os anos de 1852 e 1854; a História geral

do Brasil, entre os anos de 1854 e 1857. Apesar dessas datas não se explicarem em si, nos

levam a entender um contexto mais amplo. Notemos que esses trabalhos se dão no pós-

Independência, quando juridicamente o Brasil já era um Estado autônomo. No novo status, os

intelectuais buscavam forjar uma história nacional com sua galeria de heróis; daí surgiu um

Beckman libertador, sentinela da liberdade, homem superior, verdadeiro cristão e um espírito

altaneiro. Além do mais, ambos os autores estavam ligados ao IHGB, instituição que tinha por

finalidade localizar documentos e escrever uma história nacional.

A priori, Beckman é apenas um sujeito histórico envolvido em sua trama social.

Conforme Deleuze, quando se utilizou da metáfora “caixa de ferramentas”, ela em si mesmo

não tem significante, precisa-se que ela funcione.164 Da mesma forma, o caráter de Beckman,

negativo ou positivo, não está em si ou em 1684, mas no significado que cada intelectual ou

cada época atribuiu a ele. A heroicização ou a banalização de um personagem na história são

frutos das visões do intelectual, pois, apesar de geralmente buscá-lo no passado, seu uso é

destinado a responder questões do presente.

As mudanças nas representações de Beckman explicam-se em parte a partir da noção

de pertencer a um povo e a uma nação. Os diversos autores, ao falarem de Beckman e de seu

motim, falam hipoteticamente, a respeito do ano de 1684 e de um espaço geográfico que é o

Maranhão. Porém, Berredo, culturalmente, estava ligado a Portugal; João Lisboa, pertence por

sua vez ao Brasil como nação. Pertencer a esta ou àquela nação faz toda diferença, porque é a

partir disto que o personagem será amado ou odiado. Os Estados nacionais, que só ganham

sentido como comunidades imaginadas,165 têm o poder de despertarem uma identificação

extremada entre seus membros. E essa identificação se dá a partir de uma origem em comum

(uma convenção), que é forjada para dar sentido a uma comunidade.

Essa relação de identificação entre sujeito e instituição, aparentemente espontânea, é

marcada por um jogo de poder, no campo simbólico, que passa quase despercebido pelos

sujeitos, uma vez que os símbolos e signos são próprios para cada sociedade que se dão de

forma particular. Segundo Cornelius Castoriadis, “a sociedade constitui seu simbolismo, mas

não dentro de uma liberdade total”.166 Castoriadis afirma que,

164 FOUCAULT, 2012, p. 132. 165 ANDERSON, 2008. 166 CASTORIADIS, 1982, p. 152.

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é preciso, portanto, que essa imaginação radical dos seres humanos seja domada,

canalizada, regulada, adequando-se à vida em sociedade e também ao que

chamamos de “realidade”. Isso se faz por intermédio de sua socialização,

durante a qual eles absorvem a instituição da sociedade e suas significações,

interiorizam-nas, aprendem a linguagem, a categorização das coisas, o que é

justo ou injusto, o que se pode fazer e o que não se deve fazer, o que se deve

adorar e o que se deve odiar.167

Para ilustrar a discussão acima, citaremos alguns exemplos que nos ajudaram a

entender na prática como essas invenções vão forjando as realidades sociais. Já falamos que

hipoteticamente existe um Beckman nas narrativas coloniais, muito diferente das narrativas

do pós-Independência. Entre os escritores coloniais, em sua maioria, Tomás Beckman é

percebido como um indivíduo de melhor caráter em relação ao irmão; já nos escritos a partir

de Lisboa e Varnhagen, apesar dos talentos dele, nem de longe se aproximava da

grandiosidade de Manuel Beckman. Percebe-se que Tomás Beckman ocupa um lugar central

na revolta, apesar de aparentemente estar na sombra do irmão; ele aparece como um

mediador, um conciliador entre o povo e o líder do motim, que pelo uso adequado das

palavras conseguia que as pessoas continuassem a acreditar na vitória.

O suposto suborno oferecido a Beckman também ganhará conotações diferentes

entre os trabalhos. João Lisboa afirma que Beckman recusou o suborno porque não poderia

trair a causa que ele havia esposado, e que não aceitaria benefícios de que não participassem

todos os seus companheiros de luta. Bernardo de Berredo escreveu que a recusa foi uma

forma encontrada para demonstrar uma elevação de espírito, ato visto como mais uma infâmia

do personagem. Southey fala sobre o acontecimento de forma desconfiada, ao relatar que tal

ato foi uma atitude real ou apenas fingimento.

Teixeira de Moraes narra a ocorrência de um incêndio de várias casas, evento esse

associado pelo autor como um sinal do castigo divino sobre os infiéis. João Lisboa também se

reporta a esse acontecimento, porém, compreende a tragédia como mais um motivo para

inflamar o povo contra a situação de miséria do Maranhão. Nas narrativas coloniais, o estanco

teria sido bem recebido, já nos escritos do pós-Independência o novo monopólio foi imposto

ao povo contra a vontade deste.

De uma obra para outra, alguns acontecimentos são maximizados ou minimizados de

acordo com os interesses do historiador. Nos trabalhos de Teixeira de Moraes, Bernardo

Berredo e Robert Southey, há uma supervalorização do envolvimento do personagem com

piratas e que no motim do Maranhão ocorreram algumas sentenças de morte por parte dos

167 Id., 2004, p. 132.

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amotinados; posteriormente, essas informações são silenciadas e quando aparecem em algum

trabalho é para serem desmentidas. Por outro lado, a já célebre frase atribuída a Beckman,

“que pelo povo do Maranhão dava a vida feliz”, localizamo-na pela primeira vez no trabalho

de Teixeira de Moraes, depois foi silenciada, retornando com grande expressividade nas obras

de Lisboa e Varnhagen; a partir desse momento, a frase torna-se um elemento comum às

diversas narrativas.

Tanto as narrativas coloniais quanto as demais têm em comum a descrição negativa

de Lázaro de Melo; autores como Berredo e Southey, mesmo achando que o castigo de

Beckman foi merecido, descreveram o suposto traidor como uma alma perversa. Outro ponto

comum às narrativas é aquele que se refere à pessoa do Governador Gomes Freire, adjetivado

com grandes qualidades, como não é de se estranhar os elogios mais contundentes aparecem

nas obras coloniais. Se por seu lado Gomes Freire é bem descrito nas narrativas, o mesmo não

acontece com Baltasar Fernandes, já que é descrito como alguém sem ânimo.

A partir das obras de João Lisboa e Adolfo de Varnhagen, dos trabalhos até aqui

analisados apenas um desqualifica o motim de Manuel Beckman: o historiador João Lúcio de

Azevedo compartilha da situação difícil pela qual passava a colônia, porém, percebe a ação

dos amotinados como um excesso, na qual não se contentaram a expulsar os jesuítas, mas

também desacataram a autoridade régia na pessoa do sargento-mor do Maranhão. Para

Azevedo, os meses de autonomia maranhense não trouxeram nenhuma mudança, já que o

Maranhão ficou isolado de Portugal – de onde vinham recursos –, do Pará, que não aderiu ao

motim; faltou também o socorro anunciado de um pirata. Gomes Freire teria sido acolhido

pelo povo como um libertador, já que para o motim de Beckman faltava o “prestigio da

legalidade”. 168 Acredita-se que esse posicionamento contrário se deva em grande parte ao fato

do historiador ser de nacionalidade portuguesa.

A título de informação, vale ressaltar que nem todos os trabalhos se inserem na

dicotomia de um Manuel Beckman bom ou mal. Frei Francisco de Nossa Senhora dos

Prazeres Maranhão, autor da Poranduba Maranhense ou Relação Histórica da Província do

Maranhão, se reporta a Beckman e seu motim nos capítulos XVII, XVIII e XIX, sem,

contudo, atribuir adjetivos negativos ou positivos, simplesmente narrando os principais

acontecimentos. O único que foi julgado pelo Frei foi Lázaro de Melo, a quem o autor se

reportou como um maranhense de pouca honra e outro Judas.169 O nome de batismo do autor

da Poranduba Maranhense, era Francisco Fernandes Pereira, nascido na Vila de Favaios,

168 AZEVEDO, 1901. 169 MARANHÃO, 2012, p. 115.

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comarca de Alijó, no dia 8 de julho de 1790. Em 3 de maio de 1812, recebeu o hábito de

franciscano no Convento de Santo Antônio, na cidade do Porto. Nesse período, partiu para o

Maranhão, terminando sua obra no Pará. O IHGB lhe concedeu o título de sócio, no dia 14 de

março de 1845. Faleceu no ano de 1852, em Alijó.

Em suma os sujeitos e os acontecimentos na história são forjados a partir de um

plano simbólico que se arquiteta através da linguagem e das instituições construídas e

legitimadas pela fala autorizada e competente de um lugar de poder. Como atesta Bourdieu, é

a partir do “poder simbólico” que se forja a construção da realidade e se estabelece a ordem

social, poder esse que opera de forma invisível, e, que por ser naturalizado e ignorado

consegue ser exercido, onde aquilo que é imposto por um grupo específico, seja absorvido

como algo natural pela sociedade de modo geral.170

170 BOURDIEU, 2010.

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3 HISTÓRIA E MEMÓRIA: o caso Manuel Beckman

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está

em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,

inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e

manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A

história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe

mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno

presente; a história, uma representação do passado.171

3.1 A CRISTALIZAÇÃO DE UM TIPO DE TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE

MANUEL BECKMAN: a partir de João Francisco Lisboa.

Neste capítulo, analisamos alguns elementos utilizados pelos intelectuais para

construir um tipo de memória de Manuel Beckman, assim com a cristalização de um tipo de

representação historiográfica a respeito do personagem desde o trabalho de João Francisco

Lisboa.

João Francisco Lisboa ocupa um lugar de destaque no meio acadêmico e seus

trabalhos tornaram-se referência para estudos sobre o Maranhão. Lisboa buscou romper com

as crônicas coloniais, dando a sua obra um caráter historiográfico, acentuando a transição da

crônica para a historiografia. Estudar João Lisboa e sua obra é buscar compreender a

dinâmica, o sentido, assim como a noção de história, que se buscava alcançar a partir da

segunda metade do século XIX no Maranhão, porém, não devemos entender João Lisboa

como alguém descolado da sociedade provincial, apesar de uma síntese na escrita superior à

da grande maioria dos seus contemporâneos. Seus ideais são frutos de uma época marcada

pela transição entre um Brasil colônia e um país independente.

Em Jornal de Tímon: Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à

História do Maranhão, no vol. 2, do t. II, João Francisco Lisboa realizou um dos principais

estudos sobre Manuel Beckman e seu motim, dedicando-lhe sete capítulos para tratar da

temática. Além do mais, a partir de seus escritos, em todos os trabalhos conhecidos até agora,

com exceção do português João Lúcio de Azevedo, Manuel Beckman é concebido com

elementos positivos, que apontam para uma figura nobre de espírito.

E, para demonstrarmos essa cristalização de um Beckman revestido de todo

heroísmo e nobreza a partir do Jornal de Tímon, selecionamos seis autores: César Augusto

171 NORA, 1993, p. 9.

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Marques, Dicionário Histórico-geográfico da província do Maranhão; Antônio Batista

Barbosa de Godóis, História do Maranhão: para uso dos alunos da Escola Normal; Jerônimo

José de Viveiros, História do Comércio do Maranhão, v. 1; Mário Martins Meireles, História

do Maranhão; Maria Liberman, O levante do Maranhão “judeu cabeça do motim”: Manoel

Beckman; Milson Coutinho, A revolta de Bequimão.

O trabalho de Lisboa é tão fundamental a respeito da temática, que alguns

intelectuais, além de utilizá-lo como principal interlocutor, fizeram de seus trabalhos uma

quase compilação do de João Francisco Lisboa.

Os autores analisados, de alguma forma, fazem parte de um grupo de maranhenses,

que conquistaram um lugar de destaque entre os intelectuais, ligados às instituições de

memória do Maranhão, como a Academia Maranhense de Letras e o Instituto Histórico e

Geográfico Maranhense. Com exceção da historiadora Maria Liberman, que não está situada

no cenário maranhense.

3.1.1 César Marques

César Augusto Marques nasceu na cidade de Caxias, no Largo do Poço, no dia 12 de

dezembro de 1826, e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de outubro de 1900. Filho de

Augusto José Marques e Feliciana Maria Marques. Pertenceu ao Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, assim como aos Institutos Históricos do Rio Grande do Sul, da Bahia,

de Alagoas, de Pernambuco, à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, ao Ateneu

Maranhense, ao Ateneu Paraense, à Academia de Medicina do Rio de Janeiro, ao

Conservatório Dramático da Bahia e à Sociedade de Ciências da Saúde. É patrono da Cadeira

de n.º 35, da Academia Maranhense de Letras.

Em São Luís, fez o curso primário no colégio dirigido por Antônio Joaquim Gomes

Braga e o curso secundário no colégio de Nossa Senhora dos Remédios, este dirigido pelo Dr.

Domingos Feliciano Marques Perdigão. Em 1844, embarcou para Coimbra, com a intenção de

cursar a Faculdade de Medicina, onde foi aceito depois de ser aprovado nos exames, no

entanto, interrompeu os estudos por causa da Revolução Maria da Fonte, também conhecida

como Revolução do Minho, que foi uma revolta popular ocorrida na primavera de 1846 contra

o governo cartista. De volta ao Brasil, iniciou o Curso de Medicina na Bahia, em 1849,

formando-se em 1854.

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Em 1859, casou-se com Maria Joaquina Régis, descendente de uma família

tradicional da Bahia, filha de João Honorato Francisco Régis. Depois de formado, foi

nomeado pelo Imperador Pedro II para o cargo de alferes do Corpo de Saúde, prestando

serviço nas guarnições do Amazonas, Pará, Piauí e Maranhão. Lecionou Matemática, em

Manaus.

De Volta ao Maranhão, em 1857, trabalhou ao mesmo tempo no seu cargo no

Exército (pediu exoneração do serviço militar em 1861), e como provedor da saúde do porto e

Secretário da Comissão de Higiene Pública. Depois de trabalhar em várias partes do Brasil,

fixou-se em São Luís, passando a exercer a Medicina Civil e dedicando mais tempo aos

estudos da História.

César Marques foi um sujeito envolvido com a coisa pública, tanto como médico

quanto como educador, trabalhou como médico da Casa dos Educandos Artífices, médico da

Província, cirurgião da Guarda Nacional, comissário vacinador e médico da Companhia de

Aprendizes Marinheiros, lecionou História Universal no Seminário de Nossa Senhora das

Mercês, mordomo da Casa dos Expostos e delegado literário da freguesia de Nossa Senhora

da Vitória. Foi diretor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. O caxiense recebeu a

condecoração de cavaleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Portugal;

comendador da Ordem Espanhola de Isabel, a Católica, e da de Carlos III; comendador da

Ordem da Conceição de Vila Viçosa; oficial da Imperial Ordem da Rosa, do Brasil; oficial da

Instrução Pública de França; recebeu ainda a medalha de Simon Bolívar, o Libertador, da

Venezuela.172

César Augusto Marques é dono de uma obra muito vasta, vejamos algumas: Breve

memória sobre o clima e moléstias mais frequentes da Província do Maranhão (tese de

Doutorado); Almanaque histórico de lembranças brasileiras coordenadas e escritas por

César Augusto Marques; Biografia do Exmo. Sr. D. Manuel Joaquim da Silveira, Arcebispo

da Bahia; Apontamentos para o Dicionário histórico, geográfico, topográfico e estatístico da

Província do Maranhão; Breve memória sobre a introdução da vacina em Maranhão;

Dicionário histórico, geográfico e estatístico da Província do Espírito Santo; Breve memória

publicada por ordem do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas; Vida e feitos

de Dom Freire Miguel de Bulhões e Sousa, 3.º bispo do Grão-Pará. O autor traduziu várias

obras e realizou diversos trabalhos em jornais e periódicos.

172 As informações biográficas sobre o autor foram colhidas em: MARQUES, 2008, p. 929-930.

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A grande obra de Marques, pelo menos aquela que o tornou conhecido entre os

historiadores, e na qual descreve o motim de Manuel Beckman, foi editada pela primeira vez

em 1870, pela Tipografia Frias, o Dicionário histórico-geográfico da Província do

Maranhão, com 609 páginas, dedicado ao Imperador D. Pedro II. A segunda edição saiu no

Rio de Janeiro, pela Editora Fon-Fon e Seleta, em 1970, com 677 páginas. Esta edição foi

patrocinada pela SUDEMA. A terceira edição, a qual analisamos neste trabalho, foi editada

pelas Edições AML, em 2008, com 1.028 páginas, a obra foi revisada e ampliada. A presente

edição integrou a coleção Documentos Maranhenses, da Academia Maranhense de Letras,

dirigida pelo Acadêmico Jomar Moraes e patrocinada pelo Consórcio de Alumínio do

Maranhão – ALUMAR.

O motim de Manuel Beckman aparece no Dicionário histórico-geográfico da

Província do Maranhão, no vocábulo os “governadores do Maranhão colonial”, mais

precisamente nos governos de Francisco Sá de Meneses e Gomes Freire de Andrada.

Sobre a organização do Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão,

César Marques relatou que gastou quatro anos, numa tarefa árdua, fatigante, e solitária.

Acreditava que seria uma tarefa muito pesada para os ombros de uma só pessoa, pela falta de

recursos e tempo (escrevia nas horas de folga e na madrugada). Marques criticou seus

conterrâneos, escrevendo que numa terra onde brilha tantas inteligências nenhuma tenha se

lembrado de compor uma obra da natureza da sua. Segundo o autor, “nem os anos, nem as

luzes da ciência, nem o interesse da História, e nem o amor do solo natal puderam ainda

destruir em muitos esta falta de curiosidade ou de amor pelas velhas coisas da pátria”.173

Reclamava ainda da falta de reconhecimentos na Província do Maranhão, já que quando

tentou publicar sua obra, a Assembleia Provincial alegou não dispor de verbas para tal fim. O

autor teria lamentado por que o trabalho final não saíra de acordo com sua vontade; por outro

lado, sentia-se satisfeito por ter sido o primeiro a aceitar a empreitada de um trabalho tão

árduo. Segundo sua avaliação, buscou escrever uma obra exata, mas com a impossibilidade de

examinar tudo pessoalmente, pois teria transcrito coisas que apenas lhe foram comunicadas

por outros.174

Pelo estilo da descrição de Beckman e de seu motim, percebemos que essa foi uma

das informações que o autor colheu em outras obras,175 pois a construção do enredo e os

173 MARQUES, 2008:62. 174 Id. Ibid., p. 61-66. 175 O próprio Marques, escreveu que para a construção de seu artigo sobre o motim de 1684, teria retirado as

informações do Jornal de Tímon. Relatou ainda que, a seu turno, João Lisboa teria feito um resumo das obras

dos seguintes autores: Francisco Teixeira de Moraes e João Filipe Bettendorff.

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adjetivos são os mesmos da obra de João Lisboa, até mesmo a grafia de alguns parágrafos.

Segundo Marques: “à frente dos descontentes avultava Manuel Beckman, ou Bequimão, como

todos o chamavam, e ele mesmo escrevia, aportuguesando o nome de origem estrangeira

[...]”.176 Em João Lisboa: “à frente de todos... deparamos logo com Manuel Beckman ou

Bequimão, como todos então lhe chamavam, e ele mesmo escrevia, aportuguesando o nome

de origem estrangeira”.177 Da mesma forma que Lisboa, Marques escreveu que o personagem

era de honrado procedimento. Mesmo na hora do enforcamento, o personagem teria

conservado toda a firmeza e resignação, pedindo perdão aos seus inimigos e desejando votos

de felicidade ao povo do Maranhão.

3.1.2 Barbosa de Godóis

Antônio Batista Barbosa de Godóis nasceu em São Luís, no dia 10 de novembro de

1860, e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 4 de setembro de 1923. Bacharel em Direito pela

Faculdade de Recife, na qual colou grau no ano de 1884. Exerceu funções de procurador de

Justiça Federal do Maranhão. Foi Deputado Estadual e Vice-Presidente do Estado do

Maranhão. É um dos doze fundadores da Academia Maranhense de Letras, onde ocupou a

cadeira de n.º 1, sendo também aquele que compôs a letra do Hino Maranhense.

Porém, o grande trabalho de Barbosa de Godóis foi no campo da educação: publicou

obras como Instrução Cívica (resumo didático), de 1900; Escrita Rudimentar, de 1904; À

memória do Doutor Benedito Pereira Leite, de 1905; O mestre e a escola, de 1911; Higiene

pedagógica, de 1914; e Os ramos da educação na Escola Primária, de 1914. Exerceu o

magistério lecionando as cadeiras de História do Maranhão e Instrução Cívica. Trabalhou na

escola Normal do Estado do Maranhão, na Escola Modelo “Benedito Leite,” e no Liceu

Maranhense.178

Neste trabalho, analisamos a obra História do Maranhão: para uso dos alunos da

Escola Normal. O autor afirmou na introdução de seu trabalho que, por ser educador, a obra

História do Maranhão é resultado das aulas ministradas a partir de 1899 na cadeira de

Instrução Cívica da Escola Normal, e continuada na disciplina de História do Maranhão em

1902, pois nesse mesmo ano, com a reforma do ensino da Escola Normal, a cadeira de

História do Maranhão deveria ser ministrada separadamente da cadeira de História do Brasil.

176 MARQUES, 2008, p. 523. 177 LISBOA, 1990, p. 89. 178 As informações biográficas sobre o autor foram colhidas em: GODÓIS, 2008.

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Pelo fato do autor perceber a inexistência de material didático sobre o assunto, uma vez que as

publicações sobre o Maranhão não atendiam aos interesses dos alunos da escola normal, o seu

trabalho aparece como o mais acessível para aquele público.179

A primeira edição da História do Maranhão (em dois tomos) foi publicada em 1904,

pela Editora Ramos d’Almeida e Cia, em São Luís. A segunda edição foi oferecida ao público

em 2008, exatamente um século depois, em virtude das comemorações do primeiro centenário

da Academia Maranhense de Letras, edição da AML, em parceria com a editora da UEMA,

acrescida de 23 ilustrações do álbum Maranhão ilustrado de 1899, nas Publicações do

Centenário: série fundadores.180 Utilizamos a segunda edição para análise, mais

especificamente o capítulo XXV, “O Beckman e a revolução de 1684”, com vinte páginas.

Segundo Godóis, sua obra deve ser percebida como um livro didático do período,

talvez o único. O trabalho surge a partir das necessidades do autor que, ao se deparar com

uma disciplina que não lhe oferecia suporte para ser desenvolvida, começou a buscar em

outros trabalhos informações para escrever seu livro. Entretanto, percebemos que, da forma

como ele escreve, não estaria meramente escrevendo para os alunos das escolas normais, mas

para seus pares. Sua obra tinha dois objetivos principais, servir como material didático para os

alunos da escola normal e para ser um guia de História do Maranhão para futuras gerações.

Ainda segundo o autor, ele não se pretendia um erudito, daí o fato de não citar as fontes e sua

obra não conter referências bibliográficas. Não se colocar como um erudito é mais modéstia

de que fato; talvez pretendesse que outro intelectual o colocasse como tal a posteriori. No

posto de professor, pertencia à intelectualidade maranhense. Formalmente, foi o primeiro

professor de História do Maranhão como cadeira independente da tradicional História do

Brasil.

Godóis escreveu num período de grandes transformações na estrutura do país, na

passagem da Monarquia para a República. Sua obra segue uma cronologia que vai do período

colonial, passa pelo império e termina com a república, mas sua atenção é marcadamente

voltada para a colônia, com seus vários capítulos. O motim de Beckman entra na obra

obedecendo ao recorte temporal.

Em Godóis, Beckman é elevado ao patamar de primeiro herói a lutar pela liberdade

dos brasileiros, ou seja, o “protomártir” da liberdade no Brasil. Além do mais, Beckman teria

“corporificado em si a alma da revolução”.181

179 GODÓIS, 2008. 180 Id. Ibid. 181 Id. Ibid., p. 227.

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O motim seria do povo, mas se materializou em uma única pessoa, considerada pelo

autor como a de maior caráter e honradez do período colonial. Na narrativa de Godóis,

Manuel Beckman, com seu suposto caráter nobre e elevado, foi revestido de uma dignidade

acima dos outros homens. Escreve o autor: “possuía dotes morais elevados e conhecimentos

um tanto avantajados para o tempo e meio em que viveu, não podia, diante do que se passava

na Colônia, manter-se no platonismo das murmurações e lamentações sem consequências”.182

Sendo assim, Beckman apareceria na história como o homem de maior caráter dos tempos

coloniais; uma tragédia foi seu nascimento numa época marcada pela tirania dos

governadores.

O autor, por não trabalhar com documentos de época, cria seu personagem sob a

influência das narrativas de outros autores, sendo proeminentes os trabalhos que se

aproximam da construção de João Lisboa.

3.1.3 Jerônimo de Viveiros

Jerônimo José de Viveiros nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 11 de agosto de

1884, filho de Jerônimo José Viveiros e Maria Francisca. Em 24 de fevereiro de 1950, tornou-

se membro da Academia Maranhense de Letras, ocupando a cadeira de n.º 8, cujo patrono é

Gomes de Sousa, sendo recepcionado por Ruben Almeida. Tornou-se membro do Instituto

Histórico e Geográfico do Maranhão, substituindo Antônio Lopes. Fez parte do Diretório

Regional de Geografia do Maranhão, além de professor da antiga Faculdade de Filosofia de

São Luís.

A família de Viveiros era de origem espanhola, os primeiros chegaram ao Maranhão

por volta de 1780, se estabeleceram em Alcântara e tornaram-se bastante influentes; seu

bisavô ocupou o cargo de Senador do Império e seu avô, Francisco Mariano de Viveiros

Sobrinho – Barão de São Bento –, tornou-se deputado provincial e geral, foi fidalgo e

cavaleiro da Casa Imperial, além de chefe do Partido Conservador. Começou os estudos por

intermédio de professores particulares em São Luís, estudou no Colégio Nossa Senhora da

Glória e no Liceu Maranhense; para ingressar no Liceu estudou com Antônio Lobo e com o

Professor Domingos Afonso Machado. Começou o curso de Direito no Rio de Janeiro, o qual

abandou no terceiro ano e retornou ao Maranhão.

182 Id. Ibid., p. 227.

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De volta ao Maranhão, nesse momento com vinte e dois anos, Jerônimo de Viveiros

começou sua carreira como professor, lecionando no Liceu Maranhense as disciplinas de

História Universal e do Brasil; destacou-se na Imprensa Oficial do Estado, foi ainda diretor da

Instrução Pública, fundou e dirigiu o Instituto Viveiros, instituição essa que se tornou

referência para História da Educação maranhense. Por questões políticas, foi afastado das

funções públicas e, sem meios para se manter em sua terra, teve de ir mais uma vez ao Rio de

Janeiro, no qual demoraria cerca de dez anos; nesse intervalo foi professor do Colégio Pedro

II.

História do Comércio do Maranhão é uma das grandes obras sobre a história deste

Estado, encomendada que foi ao historiador Jerônimo de Viveiros, com a finalidade de

comemorar, em 1954, o primeiro centenário de fundação da Associação Comercial do

Maranhão. A obra encontra-se dividida em três volumes: o primeiro e o segundo, que relatam

o espaço temporal entre 1612 a 1895, foram publicados em 1954. O terceiro volume, que trata

do período entre 1896 a 1934, só foi editado em 1964. A distância temporal entre os dois

primeiros volumes e o terceiro explica-se pelo fato do autor buscar certo distanciamento para

melhor interpretar um período que ele mesmo viveu em parte, como testemunha presencial.

Sem sombra de dúvida, esse distanciamento do período estudado dá certa sensação de

conforto para o historiador, pois falar do seu próprio tempo e de pessoas vivas requer certos

cuidados.

Neste trabalho, analisamos o vol. 1 da História do Comércio do Maranhão, reedição

fac-similar de 1992 da Associação Comercial do Maranhão. O volume encontra-se dividido

em vinte e três capítulos, com um total de trezentas e nove páginas. Atemo-nos como mais

atenção ao sexto capítulo, intitulado “Os estancos. A Companhia de Pascoal Jansen e a reação

dos colonos”, por ser nesse capítulo que Viveiros tratou das questões relativas a Manuel

Beckman.

A leitura da obra de Jerônimo de Viveiros é extremamente fácil e agradável, sem se

tornar cansativa, pois o autor construiu parágrafos e capítulos curtos e que atraem o leitor.

A respeito do motim do Maranhão, Jerônimo de Viveiros apontou os mesmos

motivos que os outros autores. Quando se voltou a falar do caráter de Manuel Beckman – a

quem ele adjetiva de homem invulgar –, lançou mão dos mesmos adjetivos que João Lisboa,

ao colocar o personagem como detentor de um “espírito independente e altivo”, assim como

dono de “sentimentos de justiça e de generosidade”.

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Viveiros escreveu que depois que Beckman regressou da prisão no governo de Inácio

Coelho, estava com a alma aberta para os sentimentos de revolução, já que estava ulcerado

pela perseguição e injustiça, com sua fazenda em ruína pela longa ausência.183 Essa passagem

também foi retirada do trabalho de João Francisco Lisboa, que escreveu “o coração do

proscrito, ulcerado pela perseguição e pela injustiça”.184

Para o autor, o motim de Beckman não teve outro significado a não ser uma

revolução econômico-comercial.

3.1.4 Mário Meireles

Mário Martins Meireles nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 8 de março de

1915, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Mulatos, e faleceu na mesma cidade,

no dia 10 de maio 2003. Filho de Vertiniano Parga Leite Meireles e de dona Maria Martins

Meireles, ambos maranhenses. Em 1948, tornou-se membro da Academia Maranhense Letras.

Colaborou no processo de criação da Faculdade de Filosofia de São Luís, na qual criou a

cátedra de História da América para o curso de História e Geografia da recém criada

Faculdade. Foi professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão

até 1990, onde criou o Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica e Geográfica. Foi

também membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, IHGM. Recebeu em vida

o título de cidadão de Caxias (MA), foi agraciado com diversas honrarias, dentre as quais a

“Medalha do Mérito Timbira”, “Medalha Sousândrade do Mérito Universitário”, “Ordem do

Rio Branco”, “Ordem dos Timbiras”, dentre outras.

Seu pai foi funcionário público da Instituição da Fazenda e exerceu alguns cargos

fora do Maranhão. Mário Meireles iniciou seus estudos no Jardim de Infância do Liceu

Feminino Santista, em Santos - SP (1920/1921); começou o curso primário no Grupo Escolar

Barão do Rio Branco, em Manaus - AM (1922/1924); na sua vida escolar foram adicionadas

aulas de piano. Estudou também no Grupo Escolar Ester Pedreira de Melo, no Rio de Janeiro

- RJ (1925) e terminou na Escola Modelo Benedito Leite, em São Luís - MA (1926). Em

1927, iniciou o curso secundário no Instituto Raimundo Cerveira, prosseguindo no Instituto

Viveiros, do professor Jerônimo de Viveiros (1928/1931), ambos situados em São Luís. A

família planejava uma carreira diplomática para Meireles, sonho interrompido em decorrência

do falecimento do pai. Após a morte do pai, em 1925, a família passou por um processo de

183 VIVEIROS, 1992, p. 53. 184 LISBOA, 1990, p. 90.

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empobrecimento; a partir daí, a sua vida como estudante tornou-se muito difícil. Ingressou no

Instituto Viveiros (escola particular) graças a laços de parentescos. Mário Meireles receberá

fortes influências do historiador Jerônimo de Viveiros, que, além de ser seu professor na

escola secundária, torna-se seu amigo. Em 1923, iniciou o curso de Direito, mas não o

concluiu, abandonando-o em 1934, tendo em vista que fora admitido como funcionário do

Serviço do Imposto de Renda, pois o horário das aulas coincidia com o do expediente. Assim,

continuou sua formação como autodidata. Como funcionário do Ministério da Fazenda, serviu

na Bahia, no antigo Distrito Federal e em Minas Gerais. Foi Delegado Regional no Maranhão

(1939/1940 e 1946/1965) e Delegado Seccional em Juiz de Fora (1942/44).185

Participou do I (Rio, 1952) e do II (Rio, 1953) Congresso Nacional de Arrecadação,

da I Reunião de Rendas Internas, em Brasília, 1961; foi membro da Junta de Presidentes da I

Convenção Nacional de Agentes Fiscais do Imposto de Renda, em São Paulo, 1960.

Aposentou-se em 1965, no cargo de Agente Fiscal dos Tributos Federais. Depois de

aposentado, foi Diretor-Secretário do Banco do Maranhão, integrou o Secretariado do

Governador Pedro Neiva de Santana como chefe da Casa Civil (1972/1975). Ingressou no

magistério em 1940, lecionando a disciplina de História Universal e Brasil no curso ginasial

do Colégio Cysne, em São Luís. Representou a Universidade Federal do Maranhão no I

Encontro Nacional de Planejamento da Educação, em Manaus, 1967; no IV Seminário de

Administração Universitária, em Belém, 1967; integrou o corpo de professores convidados

pela Universidade Federal de Pernambuco e foi convidado para o ciclo de conferências sobre

a Independência do Nordeste, em Recife, 1972.186

A historiadora Regina Faria apontou quatro momentos chaves para a aproximação de

Mário Meireles com a ciência de Clio. O primeiro está ligado a seu hábito pela leitura, por

influência do pai, que era dono de uma razoável biblioteca, que, após sua morte, foi reduzida

a poucos exemplares. Com situação financeira bem delicada, a única forma de diversão que

do jovem Meireles poderia se dar ao luxo era a leitura dos poucos exemplares que restaram. O

segundo se deu em decorrência da gratidão, admiração e principalmente pela convivência com

seu benfeitor, mestre e amigo Jerônimo de Viveiros. Por ser bolsista, Meireles sentia-se na

obrigação de ser um dos melhores alunos, principalmente nas disciplinas ministradas por

Viveiros, e em especial a de História. O terceiro veio com o convite de Arymatéia Cysne, para

ministrar aulas no Colégio Cysne, nas disciplinas de História Universal e do Brasil. O quarto 185 SILVA, 2008, p. 49-55. 186 MEIRELES, 2008.

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veio quando o historiador já ocupava um lugar de destaque entre os intelectuais maranhenses

e com uma situação financeira aparentemente estável, além do mais ocupava a cadeira de n.º 9

na Academia Maranhense de Letras; para coroar esse momento e renovar a aproximação com

a História, foi indicado para a cadeira de História da América na Faculdade de Filosofia, a

qual oferecia quatro cursos: Filosofia, Geografia, Línguas Neolatinas e História.187

A primeira edição da História do Maranhão, de Mário Meireles, saiu em 1960, no

Rio de Janeiro, pela DASP. Composta por 30 capítulos, nos quais contemplava desde o

período anterior ao Descobrimento (1499), até a República. Dividia-se em três partes: Colônia

(1499/1823), com 18 capítulos; Império (1823/1889), com 6 capítulos; República

(1889/1957), com 6 capítulos. A segunda edição pertence à FUNCMA, editada em São Luís,

em 1980; a terceira saiu em 2001, em São Paulo, pela Editora Siciliano.

Neste trabalho, analisamos a quarta edição, feita pela Editora Ética, de Imperatriz -

MA, 2008. Com 37 capítulos e 379 páginas, dividida em três partes: a primeira trata do

Maranhão Colônia (1439/1823), com 18 capítulos; a segunda do Império (1823/1889), com 6

capítulos; e a terceira da República (1889/2000), agora com 13 capítulos. A diferença da

quantidade de capítulos se dá em virtude do próprio autor, ao longo das edições, ter escrito

capítulos complementares. Tomamos como foco principal o capítulo onze, “O governo de

Francisco de Sá e Meneses, o estanco, a Revolta de Bequimão, Gomes Freyre de Andrade”.

Mário Meireles, com certa modéstia, diz em nota preliminar de seu trabalho que ao

escrever uma história geral do Maranhão não pretendia ser considerado historiador, mas

simplesmente deixar uma fonte de pesquisa para as novas gerações, já que as existentes eram

muito raras, a exemplo da História do Maranhão, de Barbosa de Godóis; Anais Históricos da

Província do Maranhão, de Bernardo de Berredo; e a Poranduba Maranhense, do Frei Nossa

Senhora dos Prazeres, que iam até o advento da República. Foi oferecida pelo autor aos

alunos do Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia de São Luís. Meireles, ao

falar que não se considerava um historiador e que seu trabalho tinha como única função servir

de material de pesquisa para as futuras gerações, o faz da mesma forma que Barbosa de

Godóis algumas décadas antes.

Segundo Ana Ládia Conceição, a escrita do autor é marcada “pelo estilo rebuscado

de escrever e por um excessivo rigor ‘anedótico’ revelado na importância dada aos detalhes

para a construção da narrativa histórica”.188 Atestou Regina Faria que a maneira de fabricação

da história em Meireles é marcada por um estilo erudito típico dos historiadores do século

187 FARIA, 2005, p. 1-6. 188 SILVA, 2008, p. 152 (dissertação de mestrado apresentada na USP).

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XIX, com um estilo de escrita rebuscado, que primava mais pela informação do que pela

interpretação, uma formação cultural que valorizava, sobretudo, questões políticas e

administrativas.189

Apesar de Meireles ser influenciado por Jerônimo de Viveiros, os estilos das escritas

são bem diferentes, pois Viveiros constrói sua narrativa com períodos curtos e de forma

limpa. Henrique Borralho, ao pensar o estilo narrativo do autor, escreveu que ele

confeccionou uma História do Maranhão extremamente rica e densa, resultado de sua

preocupação com a erudição, além do mais seu trabalho tornou-se referência primordial para

qualquer historiador que se interessar pelas múltiplas facetas da história do Maranhão nos dias

atuais.190 Meireles escreveu: História da Independência do Maranhão; O Maranhão e a

República; França Equinocial; Holandeses no Maranhão; Melo e Póvoas, governador e

capitão general do Maranhão.

Ainda sobre a produção de Meireles, salientou a historiadora Regina Faria que, com

certa frequência, esse autor é apontado como o maior historiador do Maranhão. Essa

colocação se deve em parte ao fato dele ter uma obra mais volumosa, além disso, acreditamos

que o lugar que ocupou dentro da Universidade Federal do Maranhão, mesmo sem ter

formação, de certa maneira lhe deu mais legitimidade em relação aos outros grandes vultos da

historiografia maranhense, acredita-se que seja o mais conhecido, depois de João Francisco

Lisboa.

O capítulo em que o autor fala de Manuel Beckman encontra-se dividido em quatro

tópicos: I - Francisco Sá de Meneses; II - O Estanco; III - A Revolta de Bequimão; e IV -

Gomes Freire de Andrade, com um total de nove páginas.

Beckman, “o altivo chefe revolucionário,” é visto por Meireles como aquele que veio

lutar pelas causas do povo, percebido como um verdadeiro herói. No momento do surgimento

do herói, vemos surgir simultaneamente a figura do vilão na pessoa de Lázaro de Melo,

afilhado de Beckman e seu amigo, que teria por ambição traído seu benfeitor, gesto esse que

teria lhe rendido o desprezo de todo o povo do Maranhão. Para o autor, o personagem até no

momento de sua morte mantém a firmeza de sempre, e numa atitude digna dos santos, pede

perdão pelas suas ofensas.

Na busca do engrandecimento de seu herói, Meireles nos fala da dignidade de

Beckman na recusa do suborno e do perdão oferecido por Francisco de Sá e Meneses, mesmo

já sabendo da ruína inevitável do motim. Já com a chegada do novo governador, Gomes

189 FARIA, 2005, p. 7. 190 BORRALHO, 2003, p. 4.

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Freyre, a maioria da população teria fugido só ficando o líder para acompanhar a sua chegada

com a altivez de sempre.

Depois do restabelecimento do estanco com a chegada de Gomes Freyre, os

vereadores das câmaras do Grão-Pará e do Maranhão se reúnem para abolir definitivamente o

monopólio. Segundo Meireles, essa foi uma vitória moral do motim, fruto do sacrifício de

Manuel Beckman.

3.1.5 Maria Liberman

Maria Liberman nasceu em São Paulo. É bacharel e licenciada em História pela

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, desde o

ano de 1974. Nessa instituição concluiu o curso de mestrado, do programa de pós-graduação

na área de História Social, sob a orientação da Dra. Anita Waingort Novinsky. A historiadora

Anita Novinsky, nascida na Polônia e naturalizada brasileira, apesar de ser graduada em

Filosofia, tem sua atuação voltada para a História, atuando principalmente nos seguintes

temas: Brasil Colônia, Cristão Novo, História, História do Brasil, Holocausto e Identidade.

Ela é hoje umas das principais pesquisadoras sobre a questão judaica no Brasil, com

publicações bastante conhecidas, a exemplo de títulos como: Inquisição: prisioneiros do

Brasil; A inquisição; Cristãos Novos na Bahia: a Inquisição no Brasil; Os Judeus no Brasil; e

O Santo Ofício da Inquisição no Maranhão.

Durante os anos de 1968/1969, Liberman cursou na Universidade da Califórnia, nos

Estados Unidos, a cadeira de História Americana. Completou o curso de Hebraico do

Departamento de Linguística e Línguas Orientais, mais uma vez na Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas. Em 1990, concluiu o doutorado com a tese intitulada Judeus na

Amazônia Brasileira: séculos XIX e XX, na área de História Social do Brasil, pela

Universidade de São Paulo.191

O levante do Maranhão “judeu cabeça do motim”: Manoel Beckman, de Maria

Liberman, é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida no dia 18 de junho de 1982. Foi

editada pela FFLCH/USP e Centro de Estudos Judaicos, em São Paulo, 1983.

A obra encontra-se dividida em nove capítulos com 164 páginas: no primeiro temos

uma introdução à história do Maranhão; o restante do livro narra os acontecimentos desde o

ano de 1661, primeira expulsão dos Jesuítas, até o ano de 1684, ano do motim. A publicação

191 As informações sobre a autora foram retiradas do seguinte trabalho: LIBERMAN, 1983.

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da obra ocorreu um ano antes do tricentenário do motim de Beckman, que aconteceu em

1984. Esta publicação foi a primeira da Série Judaica Brasil. A obra aparentemente não teve

uma grande aceitação, uma vez que, já decorridos trinta anos de sua publicação, ainda se

encontra em primeira edição. Sempre que vemos alguma citação dos trabalhos de Liberman, é

mais recorrente os pesquisadores se referirem ao seu trabalho de doutorado e não ao trabalho

sobre Beckman.

Alguns trabalhos fazem referência à suposta ascendência judaica de Manuel

Beckman, porém, com Maria Liberman a temática ganha maior relevo, despontando como um

dos principais problemas a serem analisados na obra. Segundo João Francisco Lisboa, os seus

inimigos falavam que ele era de origem judaica apenas para macular sua imagem de homem

honrado.192

A historiadora explicita que a origem judaica dos irmãos Beckman é mencionada em

várias ocasiões nos documentos do período, não só pelas autoridades, mas também pelo povo.

Ela se refere a uma carta escrita por Francisco Sá de Menezes, correspondência essa

localizada na Biblioteca da Ajuda, em Portugal, na qual os irmãos são tratados como judeus

responsáveis pelo motim. Na suposta carta, o governador transpareceu grande ódio pelos

irmãos Beckman.

Se João Lisboa nega a ascendência judaica dos Beckman, Maria Liberman vai se

empenhar em provar tal ligação. Segundo ela, muitas das informações sobre o líder do motim

do Maranhão se perderam no tempo, contudo, afirma que os dois irmãos eram sobrinhos de

João Nunes de Santarém, conhecido como cristão novo, figura que se destacou nas

negociações com os holandeses. Outro fato importante foi o casamento dos irmãos Beckman

com as irmãs Cáceres. A família Cáceres era conhecida em Portugal, Inglaterra, Holanda,

Quito e Peru, sendo que vários membros da família foram arrolados em autos de fé.193

O casamento entre os Cáceres e os Beckman é mais um indício que a segunda família

era de ascendência judaica, pois as pessoas casavam entre seus iguais, neste caso entre

cristãos novos. Mesmo os colonos estando longe de Portugal e alguns cristãos novos serem

grandes proprietários rurais, o estatuto de pureza de sangue impedia a união entre cristãos

velhos e novos.

Mesmo a autora colocando Beckman e seu motim em destaque, percebe-se ao longo

do texto que seu interesse é discutir questões relacionadas aos cristãos novos e judeus no

Brasil. A História do Maranhão serve como pano de fundo e Manuel Beckman e seu motim

192 LISBOA, 1990, p. 89. 193 LIBERMAN, 1983, p. 70.

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são o fio condutor para o desenvolvimento da narrativa. Liberman analisou também a ação da

Inquisição naquele território, além das duas expulsões dos jesuítas em 1661 e 1684.

Surge ao longo da narrativa um mapeamento dos religiosos que chegaram ao

Maranhão, salientando as intrigas e disputas de religiosos contra religiosos, de religiosos

contra colonos e de religiosos contra o governo, com destaque para a ação do padre Antônio

Vieira que, sendo um personagem de reconhecimento e influências, foi denunciado à

Inquisição, segundo Liberman, pelos próprios religiosos. Destaca também a ação do padre

João Filipe Bettendorff, este expulso em 1684, e do Frei Cristóvão de Lisboa que, em 1624,

esteve no Maranhão como visitador do Santo Oficio, fator que levou a autora a perceber a

existência de uma população não ortodoxa.

A obra surge vinculada ao Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da USP. Dentro de seu programa de língua hebraica, de literatura

e cultura judaica, de história e estudos bíblicos, buscando compreender a atuação dos judeus

nos movimentos sociais e políticos, assim como sua participação na literatura e na arte

nacional. Segundo Rifka Berezin, diretora do centro de estudos judaicos, o projeto de

publicações tem ainda por finalidade tentar suprir a falta de material bibliográfico sobre

judaísmo no Brasil e em português, tão necessário ao desenvolvimento de pesquisas sobre a

temática.194

A criação do Centro de Estudos Judaicos data de 1969, quando foi instituído pelo

executivo da Federação Israelita do Estado de São Paulo e por uma comissão composta por

professores da USP, membros do centro complementar do Departamento de Letras Orientais

da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com o propósito de divulgar o legado

da cultura e da ética judaica no meio acadêmico e na sociedade.

Em 1989, foi criado o Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e

Cultura Judaica (Mestrado reconhecido pela CAPES em 1989 e Doutorado em 1996), seguido

da criação, em 1993, dos Programas de Literatura e Cultura Russa (Mestrado e Doutorado

reconhecido pela CAPES) e de Língua, Literatura e Cultura Árabe (Mestrado reconhecido

pela CAPES) e, em 1995, o de Língua, Literatura e Cultura Japonesa (mestrado reconhecido

pela CAPES em 1996).

Na introdução do trabalho de Maria Liberman, Anita Novinsky afirma que Manuel

Beckman e Tomás Beckman deviam possuir alguma cultura letrada, pois entre seus bens

194 BEREZIN, 1983, p. 1.

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confiscados encontram-se livros nos quais estudavam sobre revoluções. Essa questão dos

livros também é encontrada na obra de João Francisco Lisboa.

A autora tem grande gosto pelo inédito, sempre que apresenta um documento, como

a carta de Manuel Beckman ao rei de Portugal ou as correspondências de Francisco de Sá

Menezes com autoridades de Portugal, o faz com grande satisfação, ao ter a convicção de que

seria a primeira pesquisadora a trabalhar com esses documentos. Esta é uma das poucas obras

que se volta diretamente à questão do motim de Beckman, mesmo que seu principal objetivo

seja entender a questão judaica no Maranhão. A estrutura da narrativa se estabelece de forma

cronológica no sentido evolutivo de tempo.

As fontes utilizadas pela autora são oriundas da Biblioteca da Ajuda (Lisboa),

Arquivo do Conselho Ultramarino, Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), Arquivo Nacional da

Torre do Tombo (Lisboa), Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, além dos

Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (impressos). Utiliza igualmente alguns

autores como: Manoel Guedes Aranha, João Lúcio de Azevedo, Bernardo Pereira de Berredo,

João Filipe Bettendorff, Hernani Cidade e Antônio Sérgio, Claude D’Abbeville, Antônio

Gonçalves Dias, Bento Fonseca, Francisco Teixeira de Moraes, Frei Domingos Teixeira, e

principalmente João Francisco Lisboa.

De forma geral, as produções de Maria Liberman até agora conhecidas por nós

trazem a questão judaica como problema central a ser discutido; além da dissertação e da tese,

localizamos um artigo mais recente, onde ela trabalha com os imigrantes marroquinos no

século XIX, durante o “Ciclo da borracha”, com o título “Os ‘hebraicos’ na Amazônia”.195

Ao longo do trabalho, percebeu-se que as pesquisas realizadas nos arquivos já

citados irão compor as informações sobre a ascendência dos Beckman e a questão referente ao

trabalho do Santo Ofício no Maranhão. Por outro lado, as questões a respeito do caráter de

Manuel Beckman são baseadas principalmente nas informações de João Francisco Lisboa.

Atestou Maria Liberman que, quando o motim foi silenciado, Beckman teria

assumido sozinho a autoria do movimento. Foi adjetivado como um autêntico revolucionário.

Pois quando organizou o motim, além de tentar salvar sua própria propriedade, ele o fazia

principalmente para combater a situação vergonhosa e miserável à qual estavam acometidos

os moradores do Maranhão. Porém, diferentemente de alguns autores, ele não é percebido

como um inconfidente, uma vez que seus objetivos eram unicamente combater as injustiças

locais e pontuais.

195 Boletim do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, n. 44, jun. 2011.

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Para a autora, Manuel Beckman foi vítima de vários insultos e perseguições, mas

estaria disposto a sacrificar sua vida pelo povo, tendo sido, ele e seu irmão, taxados como

judeus hereges, termos bastante ofensivos para aquela sociedade colonial. Para Liberman,

Beckman estava disposto a mudar a situação do Maranhão com suas próprias mãos, disse que

daria a vida pelo povo e o teria feito uma vez que foi enforcado.

A criação da imagem de Manuel Beckman como herói, em Liberman, percebe-se que

não tem a mesma finalidade dos outros autores, ou seja, a criação de um herói maranhense, e

sim de um herói que representasse a luta do povo judeu.

3.1.6 Milson Coutinho

Milson Coutinho tem sua trajetória ligada às instituições do Estado do Maranhão,

sejam elas políticas, judiciais ou culturais. Ao longo do tempo, vem ocupando vários cargos

de destaque, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão desde 1972,

ingressou na magistratura em 1994. Exerceu o cargo de Procurador em diversos municípios

do Estado do Maranhão e cumulou a advocacia com a carreira de Procurador do Estado,

chegando ao mais alto posto da carreira, Procurador-Geral Adjunto. Foi ainda Procurador-

Geral da Câmara Municipal de São Luís e assessor constituinte da Constituição do Estado de

1989. Ingressou no Egrégio Tribunal de Justiça do Maranhão pelo Quinto Constitucional.

Presidiu o Tribunal Regional Eleitoral no biênio 1998/1999. Ex-Professor Universitário de

Direito Penal e Processo Penal, atuou principalmente no Direito Eleitoral e

Municipal, exercendo a advocacia junto ao Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Eleitoral e

Tribunais Superiores. É sócio da OAB e nela exerceu por três mandatos o cargo de

conselheiro.

Foi eleito presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão para os anos 2004/2005.

Teve sua gestão marcada pela realização do primeiro concurso público para servidores do

Judiciário maranhense, em 192 anos de história do Tribunal. Antes só haviam sido

organizados concursos para juízes, oficiais e escrivães. Aposentou-se do Tribunal às vésperas

de completar setenta anos de idade, após quinze anos de serviço prestado.196

Nascido em Coelho Neto, no Maranhão, Coutinho é cidadão honorário de vários

municípios, inclusive da capital. Foi premiado com diversas medalhas, dentre elas a do

“Mérito Timbira”, pelo Governo do Estado; a da “Ordem do Rio Branco”, pelo Ministério das

196 COUTINHO, 2004.

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Relações Exteriores; a do “Mérito Judiciário Velloso de Oliveira”, pelo Judiciário estadual; e

a do Mérito Judiciário Trabalhista “Ordem dos Timbiras”, pelo TRT do Maranhão. Foi

redator de periódicos e estações de rádio de São Luís e diretor do Arquivo Público do Estado.

É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e da Academia

Maranhense de Letras, na qual ocupa a cadeira de n.º 15, que tem como patrono Odorico

Mendes. São duas instituições ligadas à preservação e também à fabricação das memórias

maranhenses. Sendo membro da Academia há vinte e oito anos, foi eleito seu presidente para

os anos de 2010/2012, assumindo o mandato no dia 4 de fevereiro de 2010 aos setenta anos de

idade. Porém, apresentou um pedido de renúncia no dia 30 de novembro de 2010, justificado

por problemas de saúde.197

Além de ocupar inúmeros cargos de destaque, Milson Coutinho é, na atualidade, um

dos escritores de maior produção bibliográfica no Estado, pesquisando principalmente

questões relacionadas às áreas do Direito e da História, assim como o gênero biográfico.

Citemos algumas de suas obras: Subsídios para a História do Maranhão, 1978; Cidade de

Coelho Neto na História do Maranhão, 1986; História do Tribunal de Justiça-1619/1999,

1999; Apontamentos para História Judiciária do Maranhão, 1979; Caxienses ilustres –

elementos biográficos, 2002; Ouvidores-gerais e Juízes de Fora: livro negro da justiça

colonial do Maranhão-1612/1812, 2008; Caxias das Aldeias Altas: subsídios para a sua

história, 1980; O Poder Legislativo do Maranhão, 1981; O Maranhão no Senado, 1986;

Memórias dos cento e oitenta anos do Tribunal de Justiça-1813/1993, 1993; Fidalgos e

barões: uma história da nobiliarquia luso-maranhense, 2005; entre outros.

Uma das obras mais conhecidas do autor e a que utilizamos nesta análise é A Revolta

de Bequimão, editada em 1984. A obra nasceu vinculada ao governo do Estado do Maranhão,

durante o mandato do Governador Luís Rocha. Foi encomendada pelo Estado em virtude das

comemorações do tricentenário do motim de Beckman ocorrida no Maranhão em 1684. As

sociedades voltam às suas memórias principalmente nos momentos de comemorações de um

episódio que objetiva ser comum a uma dada sociedade e que, em geral, tendem a servir de

exemplo para o presente ou legitimador de poderes estabelecidos. Essa procura por um

passado heroico e memorável, que busca justificar relações do presente ao longo do tempo já

vivido, tem em diferentes momentos empregado visibilidade à figura de Manuel Beckman.

197 <http://imirante.globo.com/noticias/pagina230910.shtml>. Acesso em: 12 jan. 2013; <http://imirante.globo

.com/noticias/2009/02/27/pagina192259.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2013; <http://oredemoinho.blogspot.com.br

/2011/03/milson-coutinho-renuncia-presidencia-da.html>. Acesso em: 20 jan. 2013.

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Já é sabido há muito tempo pelos historiadores que toda produção é forjada por

interesses de grupos ou instituições, os quais podem se apresentar de inúmeras maneiras

possíveis, mesmo que em muitos trabalhos detectar esses interesses seja uma tarefa árdua, a

obra de Coutinho nos poupa esse trabalho, uma vez que, encomendada pela instituição estatal,

deve atender aos anseios dela ou, ao menos, deveria.

A Revolta de Bequimão tem sua primeira edição em 1984, pela Secretária de

Comunicação - SECOM e pela Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão - SECMA. Obra

com 217 páginas, divide-se em quatro partes: a primeira fala dos tumultos e motins anteriores

a 1684; a segunda reúne informações sobre a vida de Beckman; a terceira trata da revolta; e a

quarta da repressão. Ao final do livro, temos um apêndice contendo documentos e

iconografias.

A segunda edição saiu vinte anos depois pelo Instituto Geia em 2004, constitui o

volume IV da “Coleção Geia de Temas Maranhenses”, edição revisada, agora com 332

páginas, só que a disposição do livro permanece a mesma. No final do livro, temos um

apêndice contendo a transcrição da carta escrita por Manuel Beckman ao Rei de Portugal em

13 de junho de 1679, quando de sua prisão no Forte do Gurupá, na qual pedia ordem régia

para sair da prisão.

Coutinho, em seu trabalho sobre Beckman, acaba fazendo uma história dos tumultos

ocorridos no Maranhão, do motim de 1618 ao de 1684. Na sua descrição cronológica dos

acontecimentos, o autor dará grande destaque a certos governadores. Diferentemente de

outros autores que falam de Beckman somente no Maranhão, Coutinho faz um rastreamento

desde seu nascimento em dia e mês não identificados na cidade de Lisboa até a morte dele em

São Luís. A maneira como o autor narra a infância dos irmãos Beckman é bem curiosa; pela

falta de informações sobre eles, ele faz uma história de especulações e de generalizações. A

história do personagem é desenvolvida a partir de elementos genéricos e comuns à infância

junto à família.

Milson Coutinho obteve manuscritos de várias instituições, como, por exemplo, do

Arquivo da Biblioteca da Ajuda, Lisboa (entre os vários documentos localizou a carta de

Beckman), Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Atas das Câmaras

Municipais de São Luís e Belém), Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), Arquivo Nacional

da Torre do Tombo (Lisboa), Biblioteca Eborense (Évora, Portugal) e Anais da Biblioteca

Nacional (Livro Grosso do Maranhão).

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Os manuscritos consultados pelo autor na construção da narrativa sobre Beckman

foram usados de forma pontual, a exemplo das informações sobre a infância dele, ou para

indicar a morte do personagem no dia dez e não dois de novembro de 1685, como colocam os

outros autores. Quando fala do motim ou da repressão, segue a mesma linha dos autores que

escrevem a partir de João Francisco Lisboa. O trabalho de Milson Coutinho é repleto de

transcrições de documentos de época e de citações de autores consultados na construção de

sua narrativa ao longo do corpo do texto. Sempre que fala de um acontecimento, coloca uma

citação ou trechos de algum documento; acreditamos que o faz para mostrar sua pesquisa, do

trabalho na condição de “historiador”.

Se Francisco Teixeira de Moraes foi aquele que mais se empenhou em construir uma

imagem negativa de Manuel Beckman, Milson Coutinho é, sem sombra de dúvidas, aquele

que investiu maiores esforços para revestir o personagem de grande heroísmo.

Para Milson Coutinho, o caráter heroico de Manuel Beckman foi se moldando ainda

na infância em Portugal, pois ele cresceu sob forte clima de opressão por um lado e o desejo

de liberdade por outro, que o iriam acompanhar por toda a vida, em lutas gloriosas em busca

de liberdade. O personagem e seu irmão embarcaram para o novo mundo para “vencer na

vida” e manter uma batalha constante contra os opressores e tiranos, já que ele é considerado

“sentinela da liberdade”. Para Coutinho, “o horror à injustiça, que nessa idade vai assentando

bases na psicologia do adolescente, terá operado em Bequimão os primeiros lampejos de

sentinela da liberdade, e aquelas reações normais e entendíveis contra o cativeiro, a opressão e

a injustiça social”..198

“Na luta pela liberdade no Continente Americano, Manuel Beckman se antecipou a

Jefferson, Tiradentes e Bolívar”. Sempre buscando elementos para legitimar seu herói,

Coutinho coloca Beckman na vanguarda das lutas pela liberdade do povo, não só entre os

brasileiros, mas também do continente americano. Segundo o autor, Beckman tinha grande

identificação com o Brasil, quando assinava seu nome utilizava a grafia aportuguesada, ou

seja, Bequimão. Estando no Maranhão jamais saiu, “a não ser para as gloriosas páginas da

História e para a solene e definitiva recomendação da posteridade”.199

198 COUTINHO, 2004, p. 116. 199 Id. Ibid., p. 119.

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3.2 MEMÓRIA HISTÓRICA: Embates por uma memória consistente de Manuel Beckman

ontem e hoje digno (Beckman) do respeito e da estima gerais, e cuja memória,

para a reflexão da posteridade, precisa ser urgentemente erigida em bronze e

mármore.200

Nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como a nossa,

não somente pelo volume que a sociedade moderna espontaneamente produz,

não somente pelos meios técnicos de reprodução e de conservação de que

dispõe, mas pela superstição e pelo respeito ao vestígio. À medida em que

desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular

religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais

visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se

tornar prova em não se sabe que tribunal da história.201

Os trabalhos relacionados à oralidade, à história do tempo presente e principalmente

à memória, anteriormente eram vistos com desconfiança pelos historiadores que primavam

pelos documentos escritos, na medida em que a memória era considerada uma fonte

secundária, sendo assim só teria respaldo se existissem documentos para legitimá-la. A

memória funcionava como um apêndice, que de forma independente não se sustentava.

Essa situação começou a se modificar com a chamada crise das ciências sociais, que

foi fundamental para a renovação historiográfica; com essa mudança de paradigmas, as

abordagens históricas que ficavam em segundo plano, começaram a ganhar espaço entre os

historiadores. Sobre a égide dos novos paradigmas, as temáticas historiográficas se

multiplicaram e os tipos de fontes aceitas no trabalho com a história se ampliaram. Na atual

fase, as fontes históricas podem ser escritas, orais, sonoras e iconográficas; elas também

podem ser oficiais ou simplesmente fazer parte da intimidade de um sujeito, a exemplo dos

diários pessoais. Essas mudanças tornaram a disciplina história mais dinâmica.

Memória e história durante muito tempo se colocaram em lados opostos nas

trincheiras das ciências sociais, quando na realidade a história cresce na memória, e por sua

vez a história alimenta a memória.202Até mesmo porque Clio (História) é filha de Mnemosine

(Memória). A memória é a presença do passado, por meio das lembranças, e de alguma forma

a história nos diz o que deve ser lembrado, o memorável em uma dada sociedade. O lembrar,

visto como um ato individual, é fruto da memória social, instituído por um lugar de poder.

Para Durval Albuquerque,

200 COUTINHO, 2004, p. 178. 201 NORA, 1993:15 202 Ver LE GOFF, 1990.

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O historiador quase sempre está manipulando memórias. Sejam escritas

(autobiografias, cartas, etc.) ou orais, as memórias individuais ou coletivas têm

se transformado numa das fontes cada vez de maior importância para o trabalho

de gestação da História.203

A memória está ligada diretamente à identidade social, e a função primordial da

memória é preservar a própria memória. Sobre a memória afirmou Henry Rousso,

Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir

à alteridade, ao ‘tempo que muda’, às rupturas que são o destino de toda vida

humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial

da identidade, da percepção de si e dos outros.204

Falar de memória para estudar um determinado objeto dentro do campo

historiográfico, a priori, se configura como um esforço de buscar estabelecer de qual tipo de

memória se estar a falar. A memória entendida como tal, como pertencente ao indivíduo e ao

social que dá sentido de pertencimento a uma comunidade determinada, que os historiadores

em sua maioria colocam como oposto a história, essa memória que acompanha a vida do

sujeito em sociedade, ou melhor, que se dá na vivência dos indivíduos. Porém, não é apenas

esse tipo de memória que buscamos compreender neste estudo, isso não quer dizer que não

possam existir diálogos entre os tipos de memórias.

A memória que trabalhamos, principalmente, é aquela feita pelos intelectuais,

historiadores ou não; não é uma memória coletiva, e sim uma memória histórica, que busca

ser coletiva. A memória coletiva se dá na relação de objetos presentes com o passado tido

como algo natural, já a memória histórica é nos apresentada como um ato técnico ou

mecânico, mas nem a memória coletiva nem a histórica se dão de forma natural, ambas são

resultado do processo de “refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as

experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”.205 Nesse sentido, o ato

lembrar-se de um determinado momento da vida particular ou de um acontecimento político,

não deve ser tido como um “reviver” e se com um tipo de trabalho seletivo e contínuo da

memória, até porque os estímulos de memória são recebidos e utilizados de formas distintas

por cada indivíduo. Quando várias pessoas falam de um mesmo acontecimento, cada

indivíduo vai lembrar a sua maneira e de um ponto de vista singular. Essas memórias ao

serem sopradas para a superfície em uma determinada época tendem a se adequar a questões

203 ALBUQUERQUE, 2007, p. 199. 204 ROUSSO, 2000, p. 94-95. 205 BOSI, 1987, p. 17.

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próprias do momento presente, são constantemente ressignificadas por um discurso que quer

se fazer competente. Para Maurice Halbwachs,206 a memória histórica é mais abrangente que a

coletiva e representa o passado sob forma resumida e esquemática, sem necessariamente se

preocupar com uma continuidade, e esse tipo de memória influencia diretamente a memória

coletiva. A memória histórica acaba funcionando como uma forma de evitar o esquecimento.

A partir dessas questões, estudamos algumas investidas para criar uma memória de herói

sobre Manuel Beckman.

A memória histórica tem por função dar novas roupagens ao passado, é marcada pela

diferença e pela descontinuidade; nesse sentido, trabalha de forma oposta à memória coletiva

que almeja uma continuidade para buscar legitimação, já que se quer natural. Para Durval

Muniz de Albuquerque, “a ‘memória histórica’ reinventa o passado, reconstrói-o a partir de

dados fornecidos pelo presente e que são projetados neste novo tempo que é passado”.207 O

historiador Marcelo Cherche Galves nos apresenta um bom exemplo para tentarmos explicar

tal ideia, ao colocar que Manuel Beckman, a partir de seu martírio, teria sido apropriado pelas

lutas de independência do Maranhão (em decorrência das comemorações dos 150 anos da

independência), uma visão bem diferente daquela do momento em que viveu.208 A partir da

Independência, os intelectuais buscavam forjar alguns heróis para representar o novo

momento, sendo vários deles pinçados de períodos anteriores à Independência; no Maranhão

foi escolhido Beckman, e em termos de Brasil o herói da Inconfidência Mineira tornou-se o

símbolo das lutas pela independência da nação. Nos escritos de João Francisco Lisboa e

Francisco Adolfo de Varnhagen, a figura de Manuel Beckman é retratada não apenas como

um herói local, mas como um representante da luta pela liberdade do Brasil, na qualidade de

herói nacional.

Em capítulo denominado de “Tiradentes: um herói para a República”, José Murilo de

Carvalho escreveu o quanto é difícil construir um herói para um determinado regime, uma vez

que tal personagem deve corresponder a um modelo que seja valorizado pela aspiração

coletiva, e, que sem essa interação todos os esforços serão infrutíferos, e o aspirante a herói

será esquecido ou, na pior das hipóteses, ridicularizado. Para Carvalho,

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de

referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes

para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de

206 HALBWACHS, 2006. 207 ALBUQUERQUE, 2007, p. 204-205. 208 GALVES, 2010, p. 13-34.

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regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não

possua seu panteão cívico. Em alguns, os heróis surgiram quase

espontaneamente das lutas que precederam a nova ordem das coisas. Em outros,

de menor profundidade popular, foi necessário maior esforço na escolha e na

promoção da figura do herói.209

Com o objetivo de manter viva a memória de Beckman, foi construída uma estátua

no bairro que também leva o nome de Bequimão. Entretanto, o monumento que seria para

reforçar a memória em torno do personagem, para a angústia de muitos intelectuais não

alcançou o que se pretendia, uma vez que “Manuel Beckman virou Roque Santeiro”. Roque

Santeiro é uma telenovela brasileira produzida pela Rede Globo exibida entre os anos de 1985

e 1986, em cujo enredo a estátua de Roque Santeiro ocupa um lugar de destaque. A figura de

Beckman não ecoa com tanta força na sociedade maranhense, logo a memória coletiva sempre

tão seletiva fez que o monumento a Beckman viesse a tornar-se Roque Santeiro, e o herói

maranhense ainda continua sua jornada contra o esquecimento. O certo é que até os dias

atuais o lugar reservado a lembrar da memória de Beckman, o “retorno do Bequimão”, a cada

dia torna-se cada vez mais “retorno Roque Santeiro.” O monumento a Manuel Beckman foi

demolido anos atrás pela prefeitura devido às obras para melhorias no trânsito.

A antiga aldeia de Tapuitininga, pela lei Estadual n.º 801, de 22 de abril de 1918,

tornou-se o município de Santo Antônio e Almas. Depois, pelo Decreto n.º 1, de 31 de

dezembro de 1923, Santo Antônio e Almas passou a ser denominada de Godofredo Viana.210

E, enfim, pelo Decreto Federal n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, o município de

Godofredo Viana passou a denominar-se Bequimão. Com a homenagem a Manuel Beckman,

segundo o intelectual local, Domingos de Jesus Costa Pereira, os habitantes sofreram violação

de seus direitos, em favor de interesses particulares de políticos; a nova denominação da

cidade teria sido percebida como uma punição à memória dos povos indígenas, já que

Beckman teria explorado o trabalho escravo indígena em seu engenho Vera Cruz. Segundo o

mesmo Domingos Pereira,

Não se questiona se o senhor Manuel Beckman foi herói ou impostor. Todo

povo tem etnicidade, história, herói e o direito de escolher o nome de sua cidade

livremente, que represente sua terra natal e seus ancestrais com dignidade.

Enfim, que fique como legado às gerações futuras e que possam se orgulhar,

honrar e respeitar suas origens de homens heróis.211

209 CARVALHO, 1990, p. 55. 210 Godofredo Mendes Viana, intelectual, jurista e parlamentar, governou o Maranhão entre 1922 e 1926. 211 PEREIRA, 2012, p. 166.

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Apesar de o autor tentar suavizar, fica bem claro que Beckman está mais para

impostor do que para herói. Domingos Pereira afirmou que os guerreiros indígenas que

lutaram para defender suas terras ficaram no anonimato por interesses políticos dos

colonizadores.212 Muitas vezes para a memória se tornar “legítima” para uma comunidade é

necessário que aspectos que destoam sejam esquecidos ou pelo menos silenciados. Nesse

sentido, o esquecimento torna-se indispensável para a memória, esquecimento que pode ser

voluntário ou involuntário. Sobre a questão de Beckman como senhor de escravo, Milson

Coutinho, na sua busca de perpetuar uma imagem positiva do personagem, não podendo negar

tal informação, procurou elementos que minimizasse o papel da escravidão em seu engenho.

Segundo escreveu Coutinho, os irmãos Beckman não utilizavam a mão de obra indígena com

a mesma impiedade dos outros colonos, pagando-lhes os salários pelos seus serviços, por esse

motivo teriam conseguido a amizade, o respeito e a fidelidade dos indígenas, a justificativa

para tal informação seria a falta de revoltas contra os patrões. Além do mais, nos processos a

que Beckman esteve submetido, nenhum faz menção a maus-tratos ou morte contra os

nativos.213

Na luta pela elevação de um personagem, nem mesmo os detalhes pequenos podem

ser desprezados, mesmo que pareçam ínfimos, a memória tende a se apoiar em ninharias para

se legitimar, não é por acaso que os enaltecedores de Manuel Beckman fazem tanta questão

de dizer que ele assinava seu nome na forma aportuguesada, ou seja, Bequimão, assim, o

personagem supostamente deixaria de ser visto como um estrangeiro.

Ainda que certos monumentos não respondam aos anseios de seus idealizadores,

cada vez mais vemos a construção desses locais reservados à cristalização de memórias que

aspirem a um elemento comum e “natural” para uma determinada sociedade. O prédio da

Assembleia Legislativa do Maranhão foi denominado de Palácio Manuel Beckman, a casa

permaneceu durante 123 anos (1885-2008) em um edifício localizado na Rua do Egito, no

Centro Histórico de São Luís. Na nova sede no Sítio do Rangedor, Cohafuma, continua a se

chamar da mesma forma. Além do mais, a maior honraria da Assembleia Legislativa é a

“Medalha Manoel Bequimão”.

Ao que se percebe, mesmo com todo o investimento em promover Beckman, não

vemos um grande fortalecimento de uma memória coletiva em torno do personagem, ao

contrário do investimento de uma minoria, formada por intelectuais e principalmente por

212 Essa busca de um herói indígena em detrimento de Manuel Beckman, tem suas raízes postas no trabalho

realizado pelo bequimãoense com indígenas na região Amazônica e quilombos de Alcântara. 213 COUTINHO, 2004, p. 122.

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políticos, que buscam incansavelmente construir uma memória sólida desse personagem. É

muito comum Beckman ser apropriado pelos discursos para homenagear algum indivíduo que

de alguma maneira se destacou no seio da sociedade maranhense. Em artigo no Jornal

Pequeno, o historiador Anderson Lago, ao fazer uma homenagem a Jackson Lago, que foi

prefeito de São Luís e governador do Estado do Maranhão, o colocou no mesmo patamar de

Beckman, alegando que os dois lutaram pela liberdade do povo e foram vítimas de

perseguições políticas. Explicita Lago:

esse homem é Manuel Beckman. Sua luta ficou conhecida como o primeiro

movimento nativista do Brasil. E o Maranhão o primeiro Estado a lutar pela sua

liberdade. Isso, há 325 anos, mais de três séculos. Hoje, a história se repete de

forma muito parecida. O Maranhão, o primeiro Estado a lutar por sua liberdade

por ironia do destino fora o último a conquistá-la. E quando achávamos que

havíamos conseguido, tentam-nos usurpá-la. É lamentável, é triste. Mas a luta

continua! Nosso líder está vivo! Manuel Beckman foi executado em praça

pública. Sua última frase foi: “Morro feliz pelo povo do Maranhão”. Nosso líder

vive! Viva Manuel Beckman! Viva Jackson Lago!214

Outro exemplo dessa apropriação é bem visível no artigo de José Sarney “O fim do

fim”, no qual José Reinaldo Tavares – ex-governador do Maranhão –, após sair da aliança da

família Sarney, foi chamado de Lázaro de Melo.215 Ao colocar seu adversário como o traidor,

José Sarney, mesmo que de forma indireta, seria o próprio Manuel Beckman. Segundo

Sarney, “daqui a cem anos este artigo será lido e meu nome estará onde sempre esteve na

história do Maranhão, enquanto esse malandro entrará como Lázaro de Melo: réprobo,

renegado, exemplo de traição e crapulice”.216 Em resposta ao artigo de Sarney, José Reinaldo

Tavares publicou o artigo “O começo do começo: Quem José Sarney pensa que é?” Depois de

tecer inúmeras críticas a seu adversário Tavares conclui dizendo que:

o Lázaro de Melo ainda está vivo e tem endereço na suntuosa mansão do

Calhau. Talvez o povo, um dia, lave o seu piso – este, sim – com sal grosso. O

“leão da Metro” vai continuar rugindo nas páginas do seu jornal e na tela da sua

TV. Ele não assusta mais. Agora, como o da Metro, já não tem mais dentes.217

O Estado do Maranhão empreende esforços para legitimar a figura de Beckman, e

utilizá-la para buscar uma unidade, uma origem de glória para os maranhenses num processo

214 LAGO, 2009 (Acesso em: 31 jul. 2012). 215 Lázaro de Melo era afilhado de Manuel Beckman e, mesmo assim, o teria traído. 216 SARNEY, 31 dez. 2006 e 1 jan. 2007 (acervo particular de Wagner Cabral da Costa). 217 TAVARES, (acervo particular de Wagner Cabral da Costa)

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típico de invenção de tradições; o livro A Revolta de Bequimão, de Milson Coutinho, foi

encomendado pelo Governo do Estado do Maranhão – durante o mandato do Governador Luís

Rocha – em virtude das comemorações do tricentenário do motim de Beckman. Milson

Coutinho coloca no início de seu trabalho que “na luta pela liberdade no continente

americano, Manuel Beckman se antecipou a Jefferson, Tiradentes e Bolívar.” O autor coloca

o personagem como o primeiro herói não só do Brasil, mas do continente americano.

As sociedades voltam às suas memórias principalmente nos momentos de

comemorações de um episódio que objetiva ser comum a uma dada sociedade e que, em geral,

tendem a servir de exemplo para o presente ou legitimador de poderes estabelecidos. Essa

procura por um passado heroico e memorável, que busca justificar relações do presente ao

longo do tempo já vivido, tem em diferentes momentos empregado visibilidade à figura de

Manuel Beckman.

Milson Coutinho coloca que Beckman foi e é digno do respeito de todos. E a

memória, “para a reflexão da posterioridade, precisa ser urgentemente erigida em bronze e

mármore”.218 Milson Coutinho pede que se imortalize a memória de Beckman através de

materiais sólidos que suportam a ação do tempo. Jacques Revel nos fala de uma sociedade

museógrafa e arquivista que procura conservar o que é agora, para a posterioridade. “Hoje

tudo é, tudo pode ser, tudo pode se tornar um dia lugar de memória”.219

A comemoração dos trezentos anos do motim de 1684 foi lembrada e celebrada pelo

Instituto Histórico e Geográfico Maranhense, em uma de suas sessões cívicas prevista para o

ano de 1984. Membros do IHGM e os membros da Loja Maçônica Beckman se reuniram com

jornalistas e estudantes do Colégio Conceição de Maria, assim como o presidente do Tribunal

de Justiça, Alcebíades Vieira Chaves. O evento foi realizado em frente à pirâmide que faz

homenagem a Beckman, com presença da Banda Marcial da Polícia Militar, às 17 horas, do

dia 24 de fevereiro; deu início aos trabalhos o presidente do IHGM, José Ribamar Seguins,

que depois passou a palavra a Milson Coutinho. Às 20 horas, as homenagens continuaram em

sessão magna no Templo da Loja Maçônica, na Praça São João, n.º 22.

O jornal O Imparcial dedicou a edição do dia 25 de fevereiro ao suposto herói do

primeiro grito de independência, no caso Manuel Beckman. Os jornais O Imparcial e O

Estado do Maranhão, no dia 25 de fevereiro, trouxeram respectivamente as seguintes

chamadas, “Instituto Histórico lembra enforcamento de ‘Bequimão’” e “IHGM e Maçonaria

vão à praça reverenciar a memória de M. Beckman”. O Jornal Pequeno do dia 24 de fevereiro

218 COUTINHO, 2004. 219 REVEL, 2010, p. 253.

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faz sua homenagem com um artigo de Eyder Paes, “Bequimão nosso, grande homenageado”,

iniciou o artigo com o seguinte parágrafo: “Bequimão estava esquecido. A figura do

revolucionário emerge da noite do ostracismo para a aurora da glorificação.” E finaliza com a

frase: “Só os heróis ficam na História”.220

Em decorrência dos duzentos e vinte e seis anos da morte de Manuel Beckman, no

dia 3 de novembro de 1911, o intelectual José Ribeiro do Amaral, no Diário Oficial do Estado

do Maranhão, publicou um artigo que tinha como título “Bequimão e seus descendentes”, o

artigo compõe um dos capítulos da obra O Maranhão Histórico. Ribeiro Amaral lembrou e

celebrou o aniversário da morte daquele que para ele era o um grande patriota, cujas últimas

palavras foram de afeto e amor pelo Maranhão. Escreveu Amaral: “assim procedendo,

julgamos prestar ao Grande Supliciado de 1685 a maior e melhor de todas as nossas

homenagens, contribuindo, de nossa parte, para que de sorte alguma se possa extinguir a

memória de seu nome”.221

Em 1910, foi erguido um monumento em forma de pirâmide no chamado Largo

Quinze de Novembro, para lembrar que naquele local (na chamada Praia do Armazém ou

Praia Pequena) foi executado Manuel Beckman, “o protomártir das lutas pelas franquias e

interesses do povo do Maranhão e do Brasil”.222 Segundo César Marques, a base da pirâmide

era uma pedra de pelourinho da cidade que teria sido quebrada após a Proclamação da

República. Simbolicamente, a construção da pirâmide sobre a pedra de pelourinho representa

a vitória da liberdade sobre a escravidão, ou a vitória de Beckman sobre a opressão.

Segundo Jacques Le Goff, a memória foi se transformando com o tempo no sentido

oralidade-inscrição-monumentos. No mundo antigo teríamos a multiplicação dos

monumentos, a exemplo das estelas e dos obeliscos que tinham por objetivo imortalizar os

feitos de um rei ou de um povo. Esses monumentos seriam comuns aos acádios, babilônicos,

egípcios, israelitas e aos persas, porém, é com os gregos e romanos que vemos mais

explicitamente a importância dos monumentos e das inscrições, daí o autor chamá-las de uma

civilização da epigrafia. Segundo o autor:

nos templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades, ao longo das estradas até

‘o mais profundo da montanha, na grande solidão’, as inscrições acumulavam-se

e obrigavam o mundo greco-romano a um esforço extraordinário de

comemoração e de perpetuação da lembrança. A pedra e o mármore serviam, na

maioria das vezes, de suporte a uma sobrecarga de memória. Os ‘arquivos de

220 JORNAL PEQUENO, 24 fev. 1984. 221 AMARAL, 2003, p. 23. 222 MARQUES, 2008, p. 648.

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pedra’ acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos um caráter de

publicidade insistente, apostando na ostentação e na durabilidade dessa memória

lapidar e marmórea.223

Nas sociedades contemporâneas, ao que parece, as memórias são deslocadas para

segundo plano devido à nova dinâmica social. Essa sociedade pós-moderna e ligada ao

“progresso” não tem sua funcionalidade atrelada às experiências dos ancestrais, mais sim às

expectativas. Segundo Reinhart Koselleck, “isso foi plausível enquanto as experiências

anteriores não eram suficientes para fundamentar as expectativas geradas por um mundo que

se transformava tecnicamente”.224

Por outro lado é justamente nesse período que as instituições ligadas à preservação

da memória como bibliotecas, arquivos e museus aparecerão com mais força. Vivemos numa

sociedade que não é totalmente guiada pela tradição, mas que ao mesmo tempo luta para

conservar sua memória.

As sociedades voltam as suas memórias principalmente nos momentos de

comemorações de um episódio que busca ser comum a uma dada sociedade: “a comemoração,

a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável”225

A partir dos estudos de Michael Pollak, vemos que a memória histórica se apoia

tanto na produção de discursos sobre um determinado tema, ou, como em nosso caso, sobre

um personagem, como também objetos materiais. Para Pollak:

além de uma produção de discursos em torno de acontecimentos e de grandes

personagens, os rastros desse trabalho de enquadramento são os objetos

materiais: monumentos, museus, bibliotecas etc. A memória é assim guardada e

solidificada nas pedras: as pirâmides, os vestígios arqueológicos, as catedrais da

Idade Média, os grandes teatros, as óperas da época burguesa do século XIX e,

atualmente, os edifícios dos grandes bancos. Quando vemos esses pontos de

referência de uma época longínqua, frequentemente os integramos em nossos

próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são

progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade.226

Ao que parece, a solidificação da memória se dá de duas formas distintas, sendo uma

indireta e outra direta. No primeiro caso, utilizando-se do exemplo das “catedrais da Idade

Média”, essa era uma construção que tinha por finalidade mostrar o poder da Igreja Católica,

mas que com o passar dos séculos tornou-se um lugar de memória de um povo. No segundo

223 LE GOFF, 1990, p. 428. 224 KOSELLECK, 2006, p. 326. 225 LE GOFF, 1990, p. 427. 226 POLLAK, 1989, pp. 8-9.

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caso, podemos utilizar o exemplo da “medalha de honra ao mérito Manoel Bequimão”, que é

constantemente utilizada para homenagear os maranhenses e os brasileiros que de alguma

forma se destacaram por algum feito; a medalha traz em si a finalidade de manter viva a

memória de Manuel Beckman.

A memória cada vez mais precisa de lugares para sua cristalização e permanência nas

sociedades. Pierre Nora fala que “há locais de memória porque não há mais meios de

memória”.227 Esses locais são indispensáveis para manter minimamente o foco em algum

evento de destaque, mas mesmo esses locais precisam ser animados de tempos em tempos

para não cair no esquecimento, algo tão comum nas sociedades atuais. Por esse motivo, “as

pedras da cidade”228 são tão importantes, no caso o bairro, a avenida, a rua, a cidade, a

estátua, a escola, a praça, o monumento, a medalha de honra ao mérito e o prédio da

Assembleia Legislativa do Maranhão. São esses locais que em tese deveriam animar a

memória de Beckman, mas vimos que nem sempre funciona da forma desejada.

227 NORA, 1993, p. 7. 228 BOSI, 1987, p. 362.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, no decorrer da dissertação, percebemos que a temática sobre

Manuel Beckman é frequentemente discutida, e constitui um dos principais eventos sobre a

história do Maranhão, e como vimos ao longo do trabalho, as obras sobre o personagem

começaram a serem forjadas no século XVII e continuam a ser trabalhadas até os dias atuais.

Como já salientamos ao longo do trabalho, para analisarmos as “fabricações” sobre

Manuel Beckman, utilizamos as seguintes obras e autores: Relação histórica e política dos

tumultos que sucederam na cidade de São Luís do Maranhão, com os sucessos mais notáveis

que nele aconteceram, de Francisco Teixeira de Moraes; Crônica da Missão dos padres da

Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, de João Filipe Bettendorff; Anais Históricos

do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de Berredo; História do Brasil, de Robert

Southey; História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen; Jornal de Tímon:

Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à História do Maranhão, de João

Francisco Lisboa. Onde pudemos verificar o lugar e a época da escrituração da obra, assim

com os sentidos atribuídos a Beckman e seu motim.

Manuel Beckman e o motim por ele liderado, em 1684, foi estudado por intelectuais

maranhenses e brasileiros consagrados. Por outro lado, a temática é geralmente trabalhada em

obras gerais sobre o Maranhão e o Brasil, com exceção dos trabalhos de Milson Coutinho e de

Maria Liberman. Ainda que o principal interesse da historiadora Maria Liberman, ao estudar o

personagem, seja discutir as questões ligadas aos judeus e cristãos-novos em movimentos

sociais, políticos e culturais no Brasil. Já a obra de Milson Coutinho é forjada de forma

direcionada às comemorações do terceiro centenário do motim, tendo por objetivo principal

manter viva a memória de Manuel Beckman.

A partir de João Francisco Lisboa, os escritos sobre Beckman ganharam uma

dimensão extremamente positiva; os trabalhos posteriores ao Jornal de Tímon irão forjar uma

espécie de tradição historiográfica, quanto à forma de se trabalhar como a temática em

questão. João Lisboa é, indubitavelmente, um dos intelectuais mais conceituados no universo

intelectual maranhense, e boa parte da sua produção é conhecida nacionalmente, além do mais

sua memória é constantemente celebrada em homenagens na Academia Maranhense de

Letras.

Por sua vez, o governo Estado do Maranhão em alguns momentos procurou reforçar

a memória em torno do personagem, dedicando-lhe algumas homenagens, através de

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monumentos e discursos. Assim como de suas instituições ligadas à criação e preservação da

memória, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico Maranhense.

Uma questão marcante sobre a historiografia a respeito de Manuel Beckman constitui

o caráter dualista nas narrativas. Nos trabalhos até aqui analisados, em sua grande maioria, o

personagem ou é bom ou é mau, tendo a Independência como referência: os trabalhos forjados

no Brasil colonial fabricaram um Beckman perverso, já as narrativas no Império e na

República conceberam um Beckman como aquele que deu a própria vida pela liberdade do

povo. Acreditamos que esse tipo de narrativa seja um reflexo da posição ocupada pelos

autores, se observarmos com atenção quase todos estão vinculados ao estado, seja a Portugal

ou ao Brasil. Mesmo o historiador sendo um sujeito do seu tempo e constantemente

influenciado pela dinâmica social e cultural, deve evitar ser o juiz da história; o ideal seria

entender os sujeitos históricos a partir das suas próprias amarras sociais, ou, melhor, tentar

entender Manuel Beckman e seu motim sem lhe atribuir elementos que não sejam comuns

àquele tempo; mas, por outro lado, a história é fabricada no presente do historiador, que fala

de um passado que chegou até ele em pedaços.

Segundo escreveu Georges Duby sobre Bouvines, “um acontecimento se faz e se

desfaz, já que, afinal, ele só existe pelo que dele se diz, pois é fabricado por aqueles que

difundem a sua notoriedade”.229 O acontecimento é o que se diz dele, por outro lado, o

historiador não pode ou pelo menos não poderia dizer qualquer coisa sobre ele, já que a

liberdade do historiador não é total, uma vez que o profissional da história tem seu trabalho

atrelado às fontes por ele utilizadas, ainda que, as fontes trabalhadas também sejam criadas

por ele.

Nestas últimas linhas, devemos relatar que ao estudarmos as representações sobre

Manuel Beckman, pudemos perceber o quanto o estudo da historiografia é dinâmico, e como

as maneiras de se escrever a história sofrem mudanças ao longo do tempo e como algumas

tradições são criadas e outras silenciadas. Ao longo desses dois anos, tivemos contato com

uma literatura historiográfica, oriunda dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, tendo Beckman e

seu motim como ponto central de orientação de nossa pesquisa, observamos a finalidade, o

sentido e a noção de história, na visão de intelectuais da colônia, império e república.

229 DUBY, 1993, p. 11-12.

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