magna veritas - tiago josé moreira
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TIAGO JOSÉ “DEICIDE” GALVÃO MOREIRA
ANJO: A SALVAÇÃO – DEMÔNIO: O PREÇO DO PODER
MagnaMagna VeritasVeritas
CHEGA-SE A UM MOMENTO
EM QUE NÃO SE PODE ESCAPAR DA VERDADE
UM PRESENTE ESPECIAL A TODOS QUE ACOMPANHARAM E GOSTARAM
DE MEU TRABALHO
Anjo: A Salvação e Demônio: O Preço do Poder, seus Cleros, personagens, Reinos, Cidades, situações, eventos e todas as criações relacionadas são obra de Tiago José Galvão Moreira. Todos os
Direitos Autorais de Magna Veritas pertencem a Tiago José Galvão Moreira. Não reproduza ou redistribua sem permissão.
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O FIM DE TUDO...
Diziam que o mundo ia acabar na virada do milênio. Profetas do
apocalipse surgiam por aí, um clima milenarista se formou em nosso
mundo. Quanta gente não comemorou ou temeu a virada do milênio?
Porém, 2001 passou e as profecias foram sendo esquecidas. O mundo não
acabou. O Apocalipse não veio... Será que não?
O Apocalipse está acontecendo. Todos podem ver isso? Ninguém
pode ver isso? Vejam os humanos. Vejam as guerras que criaram, os
abusos que cometem, o sangue que derramam. Vejam o mundo. Não seria a
marca de Leviathan? O novo milênio começou em sangue e guerra. Ouçam
o choro da natureza. Ouçam os gritos de animais e o cair de centenas de
árvores. O novo milênio começou sobre a devastação iniciada no milênio
anterior. A humanidade cresceu? As pessoas evoluíram? Ou será que a
corrupção nelas também está maior? Não seria melhor uma humanidade
ignorante, porém pura em seu âmago? O novo milênio iniciou-se podre em
sua essência. Isso é o Apocalipse?
Não, não é. Nada disso realmente marca o começo. O momento em
que tudo começou foi quando os mistérios começaram a surgir. No
momento em que um Arcanjo teve sonhos de seu mestre desaparecido. No
momento em que o Decaído vislumbrou seu maior plano. No momento em
que os Grandes Lordes viram finalmente uma chance de libertarem-se da
corrente que os prende ao Inferno.
As perguntas foram feitas. Agora é a hora de respostas. Ou será que
elas devem ser realmente descobertas? Será que a Revelação deve ser feita?
É hora de escolher entre ignorância e conhecimento. Há um ser
neste mundo que escolheu conhecimento e vislumbrou as terríveis
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conseqüências do mesmo. É muito fácil viver na ignorância, imaginando o
mundo como algo que não é. Quando este ser descobriu isso, resolveu
esconder a verdade de nós para nos proteger. Infelizmente, ele próprio
tornou-se o símbolo da verdade e teve de ocultar-se de todos.
Será que devemos encontra-lo e pedir as respostas para tudo? Será
que devemos deixar a ignorância e ver a verdade?
Quando muitos pensam em Apocalipse, imaginam destruição, dor,
caos. Estão enganados. O Apocalipse trará isso com certeza, mas não é, em
sua essência, isso. O Apocalipse é aquilo que mais tememos, mas no fundo
mais desejamos. Talvez por não sermos capazes de imaginar que a verdade,
algo tão bom, trará todo o sofrimento. As perguntas foram feitas, agora
teremos de encarar as respostas. Você sabe o que o Apocalipse realmente
significa?
Significa REVELAÇÃO.
E então? Você ainda quer vislumbrar a verdade?
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ÍNDICE
CAPÍTULO 1: ECOS DO PASSADO
CAPÍTULO 2: OS SETE
CAPÍTULO 3: AS ENTRANHAS DE LIBRARIA
CAPÍTULO 4: O CONSELHO VERITAS
CAPÍTULO 5: SOMBRAS DO PASSADO
CAPÍTULO 6: O FANTASMA DE LEVIATHAN
CAPÍTULO 7: KHRAL-HARSHEK
CAPÍTULO 8: AS CHAMAS DE ZOROASTRO
CAPÍTULO 9: REFLEXÕES
CAPÍTULO 10: VIA CRUCIS
CAPÍTULO 11: HA’IL-KANZAB
CAPÍTULO 12: SHIVA, O DESTRUIDOR
CAPÍTULO 13: A CIDADE ETERNA
CAPÍTULO 14: A ESTRELA DA MANHÃ
CAPÍTULO 15: VERDADE SEJA DITA
CAPÍTULO 16: SOB OS BRAÇOS DE CRISTO
CAPÍTULO 17: A TEMPESTADE VINDOURA
CAPÍTULO 18: O POVO DAS SOMBRAS
CAPÍTULO 19: O MOMENTO MAIS SOMBRIO
CAPÍTULO 20: OS PRIMI SE REÚNEM
INTERLÚDIO PRIMEIRO: O OUTRO LADO
CAPÍTULO 21: TRINTA DIAS
INTERLÚDIO SEGUNDO: PRENÚNCIO DO FIM
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CAPÍTULO 22: AS SETE TROMBETAS
INTERLÚDIO TERCEIRO: O LORDE DAS MENTIRAS
CAPÍTULO 23: O LORDE DA DOR
INTERLÚDIO QUARTO: OS IRMÃOS SE REÚNEM
CAPÍTULO 24: A REVELAÇÃO
INTERLÚDIO QUINTO: O ARAUTO
CAPÍTULO 25: OS SETE, DIVIDIDOS
EPÍLOGO
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Capítulo 1: Ecos do Passado
Datas como esta realmente provocam alegria e esperança em
muitos. É o símbolo da passagem, o começo do novo, o fim do velho, a
chance de evitar repetir os erros do passado e buscar um novo e melhor
futuro. Embora o mundo seja divergente em tudo, há uma grande
quantidade de pessoas que, sem dúvida, estão comemorando hoje, nas mais
diferentes culturas e fusos horários. Posso imaginar os fogos de artifício
iluminando as metrópoles da Terra quando o relógio local atingir a meia-
noite. O ano de 2001, o primeiro deste milênio, terá acabado, e as
esperanças por um ano melhor e mais farto irão se acender. Faz parte da
natureza humana ter esperança e expressa-la com alegria. Isso é bom, é
algo louvável.
Embora em épocas passadas eu também me contagiasse com essa
alegria, a idade me tornou diferente. Ainda fico alegre pelas pessoas, mas
de certa forma... quando se vê o passar de um século diante de seus olhos, é
como se um ano fosse algo tão... irrelevante. Por isso, eu me mantive aqui,
empenhado em meus estudos. Tenho certeza que milhares dançam e
cantam nas avenidas de Libertatis, rezam e festejam ao som dos sinos de
Prístina ou se admiram com o céu iluminado por fogos em Tiaohe Damen.
Mesmo entre os celestes e as almas dos mortos há essa faísca de esperança,
de comemoração, provocada pela passagem de um ano e o começo de um
novo ciclo. Eles devem se perguntar. Será 2002 melhor que seu antecessor?
Mas por mais contagiante e vibrante que seja essa alegria, eu
prefiro me manter no silêncio esta noite. Mesmo nos dias mais tranqüilos, a
biblioteca de Sans Vidya, meu lar nas profundezas de Libraria, ecoa vozes
e passos, vindos da atividade constante de meus companheiros
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Perquiratores e de outros estudiosos, tanto imortais como mortos, que têm
o acesso a este centro de conhecimento. Hoje, porém, há um silêncio ainda
mais profundo que o normal, tornando minha percepção mais aguçada e
minha concentração mais recompensadora. Hoje, as profundezas de
Libraria estão esquecidas. O imenso conhecimento guardado nesta e em
outras bibliotecas tornou-se, por hora, supérfluo. A alegria contagiante é
mais importante neste momento de mudança. O silêncio não é absoluto,
porém, pois há pequenos sons que o perturbam. Os sons que vêm do
folhear de páginas e de pés cautelosos e calmos que percorrem os vastos
corredores de minha biblioteca.
Conforme folheio as páginas deste livro, noto quanto conhecimento
pude adquirir em meu século de vida. Embora dos mais de dez mil livros,
pergaminhos, tomos, documentos e cartas guardados neste templo de
conhecimento eu não tenha lido nem um décimo, a cada novo livro que me
disponho a estudar, já conheço pelo menos o básico sobre seu assunto.
Alguns me consideram um sábio, mas fico a imaginar o quanto podem
conhecer aqueles que me superam em idade e experiência. Se para mim o
mundo parece claro, como os olhos de um Arcanjo milenar podem observar
os acontecimentos? Se para mim, com um século, é fácil prever o que uma
pessoa pensa ou como reagirá a cada situação, o que podem predizer os
senhores de meu Clero, que se dedicam eternamente à busca do
conhecimento?
É em meio a essas indagações que os tímidos pés que percorrem
Sans Vidya chegam a mim. Ergo o rosto e recebo com um sorriso um de
meus ajudantes. Nicholas foi um cientista canadense em vida e, como eu,
dedicou-se ao conhecimento por toda a vida e até mesmo após ela. Ele não
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se tornou Celestial, porém, mas contentemente se dispôs a estudar todo o
conhecimento que pudesse ter em mãos. Foi por isso que aceitei que se
tornasse um dos bibliotecários de Sans Vidya.
“Senhor Nicodemus, não vai comemorar o ano-novo?”
“Estou velho para isso, Nick, velho demais”, respondo enquanto
fecho o livro, devidamente marcando a página na qual parei. “Fico alegre
pela data e estou comemorando à minha maneira, porém”. Levanto-me da
cadeira, ainda sorridente, enquanto coço meu queixo e meus dedos
encontram minha barba curta, porém grossa. Pego o livro que lia em mãos
e me aproximo de Nicholas, tocando seu ombro e continuando a conversa.
“E você? É jovem, tem bastante a comemorar. Por que não subiu a Prístina
ou Libertatis e se uniu à multidão festiva?”.
“Eu não acho que esteja velho para isso, Philipe.” Ele sorri,
sabendo que estou sendo sarcástico. Minha aparência é de meia idade sim,
mas também emana vigor. “Ainda tem vigor e muita força... Mas eu... Bem,
eu não sei. É meu primeiro ano-novo depois do acidente. Ainda é...
estranho... pensar em comemoração. Fico pensando em minha esposa e
meu filho, sabe? Ainda sinto muita, muita saudade...”.
Meu sorriso logo desaparece, meu rosto assume uma feição mais
séria, porém compreensiva. “Não tem sonhado com eles? Não tem orado
por eles, Nicholas?”.
“Sim, eu tenho”.
“Então confie em seus sonhos, acredite em suas orações. Enquanto
você os amar, saberá se estão bem. E se algo acontecer, lembre-se de onde
você está. Sempre haverá alguém a quem pedir ajuda”.
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Nicholas sorri de leve, meio envergonhado. “É verdade, desculpe-
me pela choradeira”.
Novamente sorrio, um pouco mais entusiasmado: “Desculpar-se
por se preocupar com alguém que ficou para trás? Não se culpe por isso.
Venha, já que está aqui em busca de conhecimento, vamos conversar e
fazer nosso próprio ano-novo!” Incrível como uma simples conversa pode
melhorar nossos ânimos. Mesmo com missões tão árduas e deveres tão
gigantescos, ainda podemos sorrir simplesmente por termos companhia.
Puxo uma cadeira para Nicholas e, mesmo antes que precise pedir, ele
senta-se. Enquanto volto à cadeira na qual estava originalmente sentado, ele
se dispõe a perguntar:
“Se não for me intrometer, senhor, posso perguntar que livro é este
que está lendo?”.
“É um velho manuscrito”, respondo. “Fiquei extremamente
surpreso ao encontra-lo. É um diário antigo escrito por um dos combatentes
da Primeira Grande Guerra, um Anjo chamado Neb-seshet, na época um
Trono dos Veritatis Perquiratores”.
“Já me explicaram sobre essas guerras, as Quatro Grandes Guerras.
Mas não as compreendo. Fico imaginando a visão de anjos e demônios
lutando, mas simplesmente não consigo visualizar algo assim. Como
poderiam guerrear? São como as guerras humanas?”.
“Eu infelizmente posso me apoiar apenas nos relatos, Nicholas,
pois sou jovem demais para ter participado de qualquer uma delas... Mas
tais batalhas mais pareceriam gigantescas guerras medievais. Os relatos de
Neb-seshet são impressionantes, suas descrições são vívidas... Estar numa
destas batalhas é como estar em um turbilhão de caos. Neb-seshet
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participou da guerra por mais de 700 anos. No começo, eram pequenas
guerrilhas, depois foram crescendo, até o clímax, a grande batalha que pôs
fim a tudo”.
“A morte de Leviathan”.
“Sim, este foi o marco que finalizou a guerra. Estou no momento
lendo as passagens que precedem a batalha de Dur Sharrukin, onde tudo
terminou. Neb-seshet descreve vividamente... Penso naqueles momentos.
Como seria saber que, em 30 dias, você estaria arriscando sua vida para
eliminar um mal ancestral?”.
“Leviathan era tão poderoso assim? Eu não entendo ao certo o que
significa esse ‘poder’”.
Fito os olhos de Nicholas por um breve instante... De fato, a
palavra “poder” parece tão efêmera. As pessoas pensam em poder e
imaginam dinheiro e influência. Para alguém que nunca viu um milagre ou
uma manifestação de poder celeste, a idéia do poder místico, da centelha
divina, pode parecer inacreditável. Estendo a mão sobre a mesa, abro-a com
a palma voltada para cima, e luzes e imagens começam a se formar,
mostrando tempestades e tormentas. Então, fechando meus olhos, respondo
a Nicholas: “É verdade, você nunca viu uma demonstração real do poder
que mesmo o menor dos Celestiais pode possuir. Imagine as grandes
lendas, Gabriel, Rafael, Fanuel... Imagine cada conto bíblico em que fogo
caiu dos céus ou os mares se abriram. Imagine tempestades torrenciais,
terremotos e batalhas que podem nivelar montanhas. Esse é o poder que
possuímos. Cada ‘poder divino’ das mais diversas lendas é de certa forma
possuído por nós, em menor ou maior grau. Agora pense nos Primi, que
possuem esse poder, essa centelha de divindade, tão imensa que ofusca
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qualquer um de nós. Sequer podemos compreender as capacidades de
um Primus. Leviathan, o Lorde do Sangue, Senhor da Guerra, o Grande
Dragão... Ele era como um Primus para o Inferno. Você pode imaginar
quanta destruição um único ser destes pode causar?”
Ao abrir os olhos, noto Nicholas impressionado e pensativo. “E
como enfrentaram tal ser?”. Ele mal conseguiu gaguejar a perguntar.
“Imagine a época, Nicholas. Era cerca de 330 antes de Cristo.
Roma mal engatinhava, os Persas dominavam o Egito e a Mesopotâmia. As
antigas glórias do passado haviam decaído. Estávamos em guerra há 1500
anos, o mundo estava coberto de sangue, tanto celeste como demoníaco.
Nós fizemos a Babilônia decair para destruir os cultos infernais, os
demônios contaminavam a Pérsia e corrompiam nossa influência sobre as
grandes religiões. Gerações após gerações de Celestiais renasceram neste
tempo, e nunca tinham conhecido nada além de guerra, caos, morte. Numa
tentativa de trazer nova luz ao mundo, o Éden influenciou e fortaleceu os
Macedônios, que então, através da conquista, trouxeram um pouco de união
e paz no mundo”.
Nicholas nada falou, continuou apenas a ouvir minha história. Eu
puxo as palavras da memória, tentando lembrar da lição que meu próprio
mentor me deu há cerca de um século. Estranhamente, as palavras são
claras na memória, e meus lábios não têm dificuldades em emiti-las:
“Foi nesta época que Uriel-chamado-Veritatis retornou de uma de
suas longas viagens, trazendo uma vez mais seu conhecimento para nós.
Foi ele quem desvendou os mistérios acerca dos pesadelos que todos
tiveram séculos antes. Foi então revelado que Leviathan, Lorde do Sangue,
estava no reino dos mortais e ocupava o corpo de Nabucodonosor. Ele
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estava escondido nos subterrâneos mais profundos de Dur Sharrukin, na
antiga Assíria, e ali reunia um exército de demônios, servos mortais e
magos, para realizar um rito que abriria as portas da Terra para o Inferno”.
Paro por um instante. Novamente observo a expressão de Nicholas,
cuja atenção está voltada inteiramente para mim. “Continue”, ele pede.
“Um plano então se formou”. Eu pego o livro e abro algumas
páginas antes de onde parei de lê-lo e, então, repito as palavras do Anjo
Neb-seshet, então Trono dos Veritatis Perquiratores:
“Desde que surgi no Éden, esta loucura tem acontecido. Guerra,
batalhas, luta, sangue, morte, dor... Eles dizem que isso perdura por 1500
anos, quando os infernais começaram a tomar toda a região entre o Tigre
e o Eufrates. Em vida, sempre disseram que minha nova vida seria de paz,
mas não é. Eu tenho lutado há 700 anos contra cultos demoníacos e
imperadores guiados pelas mãos infernais. Por isso, acima de meus
desejos pessoais, de meu sonho em saber e descobrir mais sobre o mundo,
tive de aprender a lutar e desenvolver habilidades em combate, pois nunca
saberia quando precisaria delas”.
“Os mais antigos, aqueles que respeito por demonstrarem estar
acima de tudo, pela faísca de esperança que têm em seus olhos, pela sua
sabedoria e seu imenso poder, dizem que nem sempre foi assim. Houve
uma época de relativa paz, em que as disputas entre Paraíso e Submundo
eram poucas, quando o objetivo não era matar o inimigo, mas guiar os
homens. Os Antigos sonham com o retorno desses tempos, com o fim desta
guerra insana que ocorre nas sombras do mundo”.
“Alguns se recordam dos pesadelos. Eu mesmo não consigo
esquece-los. Pesadelos que nos atormentaram há tanto tempo atrás, mas
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nunca deixaram minha memória. Sonhos de sangue e dor e gritos.
Diziam que algo estava caminhando entre os homens. Algo antigo e
maligno, terrivelmente poderoso, algo que nunca tínhamos enfrentado
antes. A guerra já ocorria naquela época, mas se intensificou, conforme
Trevas cobriram o mundo. Os cultos infernais proliferaram por Babel. E
houve ainda mais sangue derramado”.
“Muitos anos se passaram. Quantos? Duzentos? Trezentos anos?
Não consigo me lembrar. O fim de Babel não havia também terminado com
os cultos? Por que as guerras continuaram? E tudo tem sido assim.
Sangue, morte, dor, num ciclo interminável. Precisamos eliminar o Grande
Mal que caminha entre os homens”.
“Há pouco mais de um mês, porém, ele retornou, ou assim dizem.
O décimo Primus, Grande Uriel guiado pelas asas da sabedoria, senhor
d’Aqueles que Procuram a Verdade, finalmente voltou, trazendo consigo
ventos de esperança e sussurros de paz”.
“Ele trouxe o nome deste mal que contamina o mundo e inspira
guerra. O nome deste mal, deste Senhor do Sangue, é Leviathan, e ele se
esconde nas catacumbas de Dur Sharrukin, onde antes o povo de Ashur
tentou criar sua capital”.
Pulo algumas passagens, para ir mais diretamente ao assunto:
“Então, finalmente, as notícias começaram a chegar a nossos ouvidos.
Seja em Prístina, em Tiaohe Damen, em Sancta Turrim ou nas incontáveis
vilas e vilarejos, a grande notícia se espalha. Haverá 30 dias de silêncio, e
então as Trombetas tocarão. Nestes 30 dias, cada um que se voluntariar
deve se preparar. Em breve, despedirei-me de meus entes queridos e
resolverei minhas questões pendentes, pois talvez eu jamais retorne”.
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“O Portal está sendo criado, os preparativos estão sendo feitos.
Dizem que todos os Primi se reuniram, algo que só ocorreu quando o Éden
foi formado e quando o Amaldiçoado Decaiu. Serão 30 longos dias. Ao fim
deles, as Trombetas tocarão. E quando isso acontecer, virá uma grande
chuva, uma tempestade de água e trovões, sangue e o som do choque de
metal contra metal, lavando Dur Sharrukin e o mal que está lá. Esta será a
batalha que terminará com todas as guerras”.
“E, para os sobreviventes, começará uma nova era de paz”.
Há um silêncio prolongado, incômodo, assim que termino de ler.
Nicholas quer saber mais, enquanto eu fico pensativo... Como se imagens
do passado inundassem minha imaginação e tomassem todos os meus
pensamentos. O que seria saber que, em trinta dias, tudo mudaria? Eu me
viro para Nicholas, voltando a conversar:
“O plano celeste consistia num ataque repentino, ao mesmo tempo
em que a Macedônia atacaria Persépolis, capital da Pérsia, assim dividindo
as forças infernais e pegando seu líder de surpresa”.
“E como foi a batalha?”
“Ninguém foi obrigado a ir, Nicholas. Mas, segundo Neb-seshet,
dezenas de milhares compareceram ao final dos 30 dias. Eles se reuniram
em Prístina, na Cúpula Sancti, e ali foi aberto, ao som das sete trombetas,
um portal para os céus sobre Dur Sharrukin. Segundo o relato, uma grande
tempestade encobriu o portal, dando passagem livre para que o exército
divino o atravessasse. Logo em seguida, o exército descendeu dos céus, em
meio à tempestade... Nas palavras dele: ‘como se chovesse luz, fúria e
gritos de guerra, nós descemos em direção a uma grande montanha’”.
“Uma montanha? Mas Dur Sharrukin não era uma cidade?”.
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“Parece que a entrada para as catacumbas sob a cidade estava no
sopé desta montanha. Pelo menos é o que indica a passagem...”
Nicholas parece entusiasmado, impressionado, como se ouvisse um
conto épico. Não se contendo, ele me apressa em continuar: “E o que
ocorreu depois?”.
“Eu ainda não terminei de ler o relato”, respondo, folheando as
páginas que faltam do livro, cerca de um quarto do mesmo. “Mas sei que
eles confrontaram um exército demoníaco nas profundezas e, enquanto as
forças do Éden e do Inferno chocavam-se, Gabriel confrontou o dragão,
Leviathan, num embate que fez a terra tremer. O dragão foi decapitado e
seu grito ecoou... Dizem que, por semanas, pesadelos a respeito do ocorrido
se repetiram, atormentando mortais e imortais, mortos e vivos. Os urros do
Leviathan morto demoraram a cessar, mas no fim, o Éden prevaleceu.”
Nicholas leva mão ao rosto, um tanto descrente. “Isso é
inacreditável... Parece... tão irreal”.
“Conte isso àqueles que lutaram. Você ainda pensa como um
mortal, ainda quer respostas e soluções racionais para tudo. A idéia de um
exército se mobilizando e descendo dos céus para confrontar monstros nos
subterrâneos da Terra pode parecer absurda, mas para mim é assustadora.
Eu não sei se teria coragem de lutar numa guerra como esta”.
Nicholas se levanta, lentamente. “Você tem razão... É assustador.
Será que, após você ler esse livro, eu poderia toma-lo emprestado?”.
Com um leve sorriso, respondo-o: “Esse é o tipo de livro que abre
muitas perspectivas novas. Será um prazer empresta-lo!”.
“Obrigado, senhor. Com licença, irei procurar algo para ler. Sabe,
por um momento, tinha me esquecido que é ano-novo...”.
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“É verdade! Eu também tinha me esquecido!” Rio um pouco.
“Bem, vá lá... voltarei à minha leitura”.
Nicholas se afasta, enquanto meus olhos voltam a percorrer as
páginas do livro, buscando o ponto em que parei. Reinicio minha leitura,
atentamente acompanhando as passagens que narram o vasto salão
subterrâneo em que o primeiro choque entre Céu e Inferno se deu naquele
dia. Fico a imaginar dezenas de milhares lutando nas profundezas da terra,
num salão tão gigantesco. Prossigo lentamente, leio os relatos das hordas
de mortos, demônios e monstros, chocando-se contra a tropa celeste, a
queda de companheiros e o avanço das tropas pela escuridão.
Então, após algumas páginas de leitura, finalmente as tropas
alcançam os limites do salão, o imenso portão que leva a níveis ainda mais
profundos da imensidão negra de Dur Sharrukin. Ali, as tropas encontram
mais uma horda inimiga e Neb-seshet descreve como um único demônio,
um cavaleiro negro, montado sobre uma besta de olhos de fogo, chama-lhe
a atenção. “Atrás da coluna adversária, meus olhos encontraram um único
infernal, apenas observando o grande conflito. Um cavaleiro de armadura
negra, armado com uma poderosa espada tão comprida quanto a altura de
poderoso Gabriel, e portando um imenso escudo coberto por espinhos
pontiagudos, seu rosto escondido por um pesado elmo de osso e metal,
montado sobre um cavalo baio tão escuro quanto a noite, cujos olhos
emanam fogos que só podem vir do Inferno. Porém, mal a batalha começa,
ele recua, atravessando os grandes portões adiante. Ninguém o segue, mas
a horda sob seu comando avança urrando furiosamente.”
Mal termino essa passagem, sinto um cansaço repentino. Tento ler
adiante, mas minha concentração some por um instante. Os olhos piscam e
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de repente, sinto-me chamado por alguém. Minha consciência some e
então noto que, mesmo estando consciente, não há mais corpo. Estou
sonhando?
Então, na escuridão, eu tenho uma revelação. Um raio atrai minha
atenção, eu olho e vejo uma grande tempestade. Seus raios iluminam um
deserto árido. Uma voz de trovão ecoa: “Olhe o passado e o futuro”.
Então, diante de meus olhos, as nuvens da tempestade se abrem, e o
exército celeste desce rumo à montanha adiante, como uma chuva de luz
que ilumina a noite e afasta as trevas. Ouço tambores invisíveis de batalha e
vejo, no topo da montanha, o Cavaleiro Negro montado na besta de olhos
de fogo, observando silenciosamente o avanço do exército de luz.
Mas então, ouço gemidos de dor e gritos de ódio. Olho em outra
direção e vejo dois anjos aprisionados num deserto. Um é acorrentado pelas
mãos, sua corrente prendendo-o a um teto invisível. Ele não tem forças para
sequer manter-se em pé, sendo mantido erguido apenas pela corrente que o
segura. Suas asas estão dilaceradas, seu corpo inteiro sangra por grandes
marcas de tortura. Seu rosto cabisbaixo fita o solo, sem forças para erguer-
se, embora ele deseje falar algo.
Então olho o outro anjo, e o deserto sob seus pés agora é alto como
uma montanha. Suas asas negras e pútridas abrem-se e ele debate-se contra
as várias correntes que prendem sua cintura, braços e pernas ao chão. Ele
grita de raiva e frustração, mas ouço apenas urros animalescos.
Então, por fim, blasfêmias ecoam, trazidas pelo vento. Volto minha
visão para uma nova pessoa, um homem velho e cansado, vestindo trapos,
gritando em desespero. “Eu não pedi por isso”, ele repete. Trevas o cercam,
mas vejo-o claramente como se ele emanasse luz. Ouço então um novo
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rugido e viro-me uma vez mais. Sobre uma montanha, um tigre urra
furiosamente, trazendo consigo nuvens e trovões. Ele fita o velho indefeso,
que se contorce no chão, gritando novas blasfêmias. O tigre então avança,
pronto para devorar o velho. Eu grito para impedi-lo, mas não tenho corpo.
Não tenho braços para segura-lo, nem pernas para correr em auxílio do
homem indefeso. Nada posso fazer a não ser gritar... Gritos que se perdem
em meio aos trovões da tempestade.
Em desespero, vejo finalmente a última revelação. Em meio a fogo
e dor, anjos e demônios lutando, o sangue divino e profano caindo e
lavando a terra. E, neste momento, ouço mais um urro. Um urro de dragão,
que faz a Terra tremer e meu sangue ferver. É um urro de agonia e dor,
clamando por vingança, pedindo por guerra. O urro do Leviathan.
Acordo gritando. Noto que estou caído no chão, dezenas de livros
sobre mim. Luto para sair dali, removendo os livros com toda a força que
posso reunir. Levanto-me ofegante. Sinto agonia, desespero, como nunca
senti antes. Olho ao redor, as luzes emanadas pelas rochas de Sans Vidya
ajudam a minha visão. As prateleiras estão caídas, os livros espalhados, as
paredes estão rachadas. Estou sonhando? Ouço Nicholas pedir por auxílio e
corro em sua direção. Ele está soterrado por livros, preso por uma estante
que caiu. Mesmo não tendo as habilidades físicas de Celestiais mais
guerreiros, esforço-me para erguer a estante tempo o suficiente para que
Nicholas saia. Felizmente, ele não está ferido.
“Nicholas, o que aconteceu aqui?”.
“Eu não sei, senhor... Ouvi um urro e então o chão tremeu. Tudo
começou a desabar de repente. Quando menos percebi, estava caído”.
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O que pode ter acontecido? Seria o livro? Não, não há magia
alguma nele. Eu teria percebido. O livro é apenas uma coincidência.
Alguma coisa despertou. Sinto que há alguma coisa... em Libraria.
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Capítulo 2: Os Sete
Ela entrou timidamente, olhando ao redor à minha procura. Ao
invés de me encontrar, porém, seus olhos apenas viam a confusão causada
pelos tremores horas antes. Meus assistentes, chamados no último minuto,
tinham acabado de deixar as festividades de Ano Novo, e já estavam aqui,
reerguendo as estantes caídas e tentando organizar as centenas de livros
espalhados pelos corredores de Sans Vidya.
Acenei, da passarela que leva a meu escritório, um nível acima dos
corredores, onde costumo ficar para observar o movimento na biblioteca.
Os olhos verdes de Karina perceberam rapidamente, e ela acenou em
resposta, com um sorriso. Ela apressou o passo, percorrendo o mais rápido
possível os corredores, em direção ao escritório. Ao mesmo tempo, desci as
escadas que levam à passarela, para encontra-la ainda no corredor.
“Philipe”, ela disse, assim que estava próxima a mim, “o que
aconteceu aqui?” Novamente, seus olhos voltam-se para as pilhas de livros
caídos, as paredes rachadas e estantes quebradas.
“Tremores de terra”, respondo, enquanto pego em sua mão e vou
subindo novamente a escada, fazendo-a vir comigo. “Seis tremores, para
dizer a verdade. O primeiro foi o mais violento e nos pegou desprevenidos.
Pelo que andei vendo, a situação está parecida em toda a região inferior de
Libraria... Mas as porções superiores e a superfície nada sofreram. Mas não
é isso que você veio fazer aqui, não é?”.
“É. Aconteceu algo muito estranho esta noite. Um sonho”.
Olhei-a seriamente. Eu sabia o que ela falaria em seguida, então
preferi tomar a iniciativa: “Os anjos invadindo a montanha, os dois
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Celestiais aprisionados, o tigre e o velho louco. O urro do dragão. Eu
tive o mesmo sonho, Karina, apenas o final foi diferente”.
Karina assustou-se. “Como sabia que eu tinha sonhado a mesma
coisa, Philipe?”.
“Você não é a primeira a me procurar hoje.” Assim que chegamos
à passarela, abro a porta para o escritório, onde um homem espera sentado
à mesa, lendo um livro. Assim que entramos, o homem fita silenciosamente
Karina. “Karina, este é o Anjo Lo Wang, Virtuoso dos Kage. Wang, esta é
a Anjo Karina Ariel, Ofanim Supervivente”.
Wang levantou-se, ainda silencioso, e aproximou-se. Seu olhar era
frio, sua expressão, um tanto séria. Ele é um homem baixo, não mais alto
do que Karina, e de constituição ágil. Seus cabelos e olhos negros
combinam com a roupa negra que veste: trajes de cores escuras, um misto
de quimono e capuz. Então, abaixou a cabeça, em sinal de cumprimento à
recém-chegada. “É um prazer conhece-la, srta. Ariel”. Karina retribuiu com
um sorriso.
Pedi que os dois se sentassem, e então virei-me para Karina:
“Wang chegou há algumas horas, relatou o mesmo sonho que eu e você
tivemos, mas o sonho dele terminava diferente do meu. Após o urro do
dragão, Metatron apareceu num céu escuro, diante da imagem de Cristo de
braços abertos. E o Guardião pediu que Wang me procurasse.”
Karina balançou positivamente a cabeça enquanto se sentava. “Sim,
isso mesmo. Era um Guardião diferente dos outros. Tinha asas de fogo e
uma coroa sobre a cabeça, e sua voz era indescritível. Acho que era
Metatron. Não sei com certeza, pois só tinha ouvido falar dele, nunca o
tinha visto”.
21
Wang, já sentado, abaixou a cabeça. Apoiando os cotovelos na
mesa, colocou as mãos unidas diante do rosto, sussurrando. “Eu também
jamais vira Ele em meus sonhos. Mas pude reconhece-lo como o Rei dos
Cheng-huang. Eu sabia que precisava procurar Philipe Nicodemus.
Demorei a chegar aqui, pois nunca tinha ouvido o seu nome antes,
Arcanjo”.
“E nisso há algo interessante”, respondi. “Você diz que demorou a
me encontrar, mas chegou aqui menos de meia hora após eu ter o sonho.
Karina provavelmente veio imediatamente, mas chegou uma hora após
você”.
Karina não parecia entender meu raciocínio. “Bem, sim, eu vim
imediatamente. Apenas arrumei minhas coisas, pus tudo na mochila e vim
correndo para cá. Eu estava numa vila próxima a Nairóbi, no Quênia.
Acabei caindo no sono, acordei à meia-noite por causa do sonho”.
“Imagino que outros virão me procurar”, disse. “Os sonhos estão
ocorrendo na passagem do ano, mas isso está acontecendo em momentos
diferentes, de acordo com os vários fusos horários. Acredito que Wang teve
o sonho antes mesmo de mim”.
Wang, sem me fitar diretamente, perguntou, novamente falando
baixo e friamente: “O que acha que isso significa?”.
“Algo grande. O quê exatamente, nós temos que descobrir. Mas
estes tremores de terra não são coincidência”.
Karina tirou a mochila das costas e a colocou sobre a mesa. “Já
sabe o que faremos agora?”.
“É melhor esperarmos que outros cheguem. Tenho certeza de que
virão mais”.
22
“Eu acho que deveríamos encontrar a fonte dos tremores”, Wang
murmurou, ainda de cabeça baixa.
“Prefiro esperar que pelo menos mais dois ou três cheguem”,
respondi. Se no Quênia o ano novo acabou de ocorrer, então faltam cerca
de 14 horas para que ano novo ocorra em todo o mundo. Vamos esperar 18
horas para que os outros tenham tempo de me encontrar. Façam o que
quiserem neste período e então retornem aqui. Assim que todos estiverem
reunidos, vamos procurar a origem dos tremores”.
“Dê-me algo para ler”, disse Lo Wang, levantando-se. “Não tenho
nada a fazer neste tempo”.
Karina também se levantou. “Também não tenho muito o que fazer.
Queria tomar um banho e trocar minhas roupas, depois devo ficar aqui na
biblioteca, talvez dormir um pouco...”
Apontei para a porta dos fundos do escritório. “Ali ficam meus
aposentos, mas acho que você já conhece bem o lugar, não? Sinta-se em
casa, Karina”.
Karina sorriu e se afastou, enquanto Lo Wang se afastou, descendo
de volta à biblioteca. Eu mesmo me sentei, tentando juntar as peças deste
quebra-cabeças, mas a verdade é que sequer tinha pistas suficientes para
monta-lo. Algo tinha causado os sonhos. Algo perigoso o suficiente para
fazer Metatron, Rei dos Guardiões, se manifestar nos sonhos de muitos,
para que me procurassem. Por que eu? Serei eu o centro disso tudo? E
aquilo que causou os sonhos... Seria a mesma presença que senti em
Libraria, no momento do tremor?
As horas foram passando e novas faces adentraram minha
biblioteca, todas trazidas pelo sonho. Alguns eram antigos conhecidos,
23
como a doce e cheia de vida Karina, outros eram desconhecidos, que
chegaram a mim graças à minha fama entre os Perquiratores.
O primeiro surgiu menos de uma hora após Karina me procurar.
Um homem forte e vigoroso, de barba grossa e cabelos negros como a
noite. Seus olhos brilhavam com sabedoria e suas roupas, num claro estilo
árabe, denunciavam sua filiação aos Malaki. “Malaki Adb Al-Malik,
Hashmal Bin Bayt’Namus Al’lah”, como ele se apresentou, ou Anjo Abd
Al-Malik, Trono dos Cuique Suum, como nós o chamaríamos na Corte
Ocidental. Um homem de fé, no qual pude sentir uma força que ia além de
seu poder físico.
Al-Malik descreveu seu sonho, idêntico aos dos demais, e sua
certeza de que uma grande tragédia se aproximava. Oferecendo sua
sabedoria e força, ele concordou em esperar que outros viessem até mim
antes que agíssemos.
Horas mais tarde, um homem jovem, saudável, de cabelos louros e
olhos azuis, adentrou Sans Vidya, vestindo roupas ocidentais. “Anjo
Achille Absolon, Abençoado entre os Princeps”, foi como ele se
apresentou. Notei certo receio nele, talvez devido a ser tão jovem, mas
também pude perceber o desejo de desvendar aquele mistério.
Como os que vieram antes dele, Achille ofereceu sua ajuda
incondicional. Ele revelou seus medos e sua incerteza quanto a seu papel,
mas disse que precisava saber o que estava acontecendo, e me seguiria
aonde quer que fosse preciso.
Então, um velho conhecido adentrou. “Mestre Nicodemus, uma vez
mais nos encontramos”, disse meu velho amigo, ajoelhando-se em posição
de respeito. O Anjo Armin Ansgar, Elohim dos Venatores, então ergueu-se,
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empunhando sua espada, e oferecendo-a a mim para a jornada que
iríamos percorrer juntos. O imenso homem, de cabelos ruivos de tonalidade
escura e barba por fazer, então pôs-se a esperar, como os demais.
Por fim, uma mulher de aparência jovem, bela como Karina, mas
com cabelos negros e pele morena, vestindo roupas simples ocidentais,
adentrou Sans Vidya, quase no fim do prazo. “Fabrizia, Filha Virtuosa de
Ilyap’a”. Logo reconheci o nome como sendo uma das muitas alcunhas que
os Xamãs carregam. Apesar de jovem, notei uma determinação fora do
normal naquela moça.
Por mais algumas horas esperamos. Ninguém mais veio e, por fim,
determinamos que era hora de começar a fazer as perguntas e procurar
respostas. Os sete se reuniram em meu lar em Sans Vidya, em torno de uma
grande mesa. Ali buscamos finalmente um sentido para tudo aquilo.
“Caros amigos”, eu disse, já com todos reunidos à mesa. “Já
conversei individualmente com cada um de vocês, conforme vieram me
procurar. É fato que todos tivemos o mesmo pesadelo, as mesmas visões. A
diferença é que Metatron, a Voz do Lorde Sábio, pediu a vocês para me
procurar. Sei que muitos vieram aqui para me pedir respostas, mas
infelizmente não as tenho. Acredito que isso é uma busca a que estamos
destinados”.
Eles se entreolharam. Tanto o jovem Absolon como a silencioso Lo
Wang permaneceram calados e pensativos, enquanto os demais se
arriscaram a falar. Ansgar, o Venator, ergueu a voz para se destacar: “Será
que fomos apenas nós sete que realmente tivemos esse sonho?”.
“Talvez não, mas não podemos esperar mais. Enquanto
esperávamos, procurei alguns amigos em Libraria. Parece que muitos
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outros tiveram sonhos esta noite, pedaços das visões que tivemos, mas
aparentemente só nós tivemos todas as visões. Somente vocês foram
avisados para me procurar. Talvez haja outros, mas não chegaram ainda e
não podemos esperar mais”.
Karina baixou a cabeça, pensou um pouco, então fitou-me: “O que
você acha que pode ser tudo isso?”
Voltando-se para Karina, Al-Malik respondeu por mim: “Segundo
os Antigos, sonhos ocorreram antes de cada grande evento. Alá envia sua
voz, porém, apenas quando algo terrível está por acontecer. As visões
possuem significados que nós devemos desvendar para nos prepararmos
para o pior. Temos uma missão”.
Eu complementei: “Se outros tiveram fragmentos do sonho,
significa que isso afetará a todos. Porém, nós estaremos no centro de tudo”.
Karina pareceu assustada. Ela nunca foi uma guerreira, dedicou
seus dez anos como Celestial apenas a viajar e a ajudar as pessoas de forma
pacífica. Ela baixa a cabeça, murmurando: “Não devíamos procurar os
Primi e os Arcanjos?”.
“Eles também devem ter sido avisados de alguma forma”, respondi.
“Além do mais, não sou eu um Arcanjo? Sei que sou jovem demais para ter
tal Coro e tanto destaque, e temo que minhas decisões venham a pesar
tanto, mas não podemos procurar os Primi ou os grandes Arcanjos, sem
antes termos pelo menos algo a mostrar a eles. Não sabemos o que virá
daqui em diante. Precisamos descobrir, e só então buscar ajuda.”
Al-Malik mais uma vez falou: “Se fomos escolhidos por Alá, então
é porque nossas habilidades serão as mais indicadas. Também tenho medo,
mas Alá estará conosco e irá nos proteger nesta busca”.
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“Provavelmente, cada um foi escolhido por ter um papel nesta
missão”, refletiu Ansgar. “Minha espada e minha força estará a sua
disposição, pois é lutar o que sei fazer melhor”.
“E temos uma guia na forma de você, Supervivente”, disse, pela
primeira vez em voz alta, Lo Wang, erguendo a cabeça e fitando Karina. “É
por isso que você está aqui. Provavelmente, seu papel será fundamental,
como o de cada um aqui reunido”.
Karina engoliu em seco, então calou-se.
“Mas o que pode significar o sonho?” A pergunta veio de Absolon.
“Temos que pensar nos fragmentos. Cada um deve ter um sentido”,
respondi. “Lembro-me de ver um exército de anjos descendo rumo a uma
grande montanha, em um dia tempestuoso”.
“A tempestade não era natural, mas criada para protege-los”, disse
Fabrizia, a Xamã. Todos a olharam. “Sei disso porque pude sentir. Era tão
real, que pude perceber isso”.
“Um exército de Celestiais...”, murmurou Al-Malik.
“A primeira Grande Guerra. A batalha de Dur Sharrukin,” eu disse.
“Quando o Éden desceu das nuvens tempestuosas, rumo ao templo
subterrâneo onde Leviathan, Lorde do Sangue, se encontrava. Li nos livros,
vi diários de guerreiros do passado e pude compreender claramente quando
vi a cena”.
“A voz que anunciou o sonho disse que iríamos ver o passado e o
futuro”, lembrou Achille Absolon, falando baixo. “Provavelmente, você
está certo, Nicodemus”.
“Ainda é cedo para dizer”, interrompeu Al-Malik, “Mas é nossa
melhor pista”.
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“E também tinha um cavaleiro, todo em negro, montado sobre
um cavalo cujos olhos eram fogo”, disse Ansgar. “Quem poderia ser ele?”.
Nenhum de nós soube responder. “Ainda é cedo para dizer”,
respondi. “Vamos nos concentrar naquilo que sabemos”.
“E depois os dois anjos acorrentados”, murmurou Karina, baixando
a cabeça, e cobrindo os olhos com a mão direita. “A dor e o desespero eram
tão reais que eu quase pude sentir. Foi assustador”.
“Lembro-me que o segundo urrava como um animal e se debatia,
como se estivesse furioso, fora de controle, e não ferido”, Lo Wang
acrescentou. “As asas dele não eram asas de Tenshi, mas de Gakido. Ele
não era um ‘anjo’. A cena foi rápida, mas pude perceber claramente”.
“Isso me lembra Azazel”, eu disse. Todos me olharam. Fabrizia
pediu que eu explicasse, então eu continuei: “É uma lenda. O primeiro
entre os Luciferite. Foi um traidor que tentou matar o Arcanjo Rafael, mas
foi aprisionado no Inferno por sua afronta. Se tivéssemos um Sancti entre
nós, ele poderia explicar melhor”.
“Mais uma vez, isso é apenas uma suposição”, interrompeu Al-
Malik. “E não explica sobre o primeiro aprisionado”.
“E havia um velho depois. E ele gritava coisas sem sentido”,
Ansgar disse, sendo complementado por Karina: “Ele estava desesperado,
fora de si. Tive dó dele. Era como se sofresse”.
Lo Wang me fitou, dizendo: “Lembro claramente:tudo ficou escuro
de repente, mas era como se ele próprio se destacasse nas trevas”.
“Talvez ele seja um Abdal”, revelou Al-Malik. “Um homem santo,
e o objetivo de nosso inimigo é encontra-lo. Um tigre veio busca-lo,
quando caía uma tempestade”.
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“O tigre não era um tigre”, disse Karina, falando muito baixo,
como se sentisse medo.
“E a tempestade não era natural, era algo maligno”, completou
Fabrizia, observando Karina.
Nos entreolhamos. “Alguns Perquiratores, eu inclusive, sonharam,
em meados de 1999, com um tigre. Havia uma tempestade de fogo. O tigre
surgiu das chamas. Foi um pesadelo profético, mas jamais encontramos um
sentido para ele”.
“E, por fim, houve guerra”, respondeu Ansgar. “Eu lutei na Quarta
Grande Guerra, e aquele conflito no sonho me lembra as batalhas pelas
quais passei. Foi o único momento do sonho em que tive medo”.
“Para mim, nada me assustou mais do que o urro”, Absolon.
Lo Wang, eu e Fabrizia concordamos com Absolon. Então, eu
disse: “Esse não foi um urro qualquer. Eu tenho certeza... era o urro de um
dragão. O urro de Leviathan”.
Todos me observaram. Al-Malik perguntou: “Como pode ter
certeza?”.
“Mesma forma que Fabrizia pôde sentir algo na tempestade e
Karina soube que o tigre não era um tigre. Eu simplesmente sei. Para vocês,
o urro pode ter ecoado no sonho, mas para mim é como se Leviathan
estivesse ao meu lado enquanto eu dormia. Imagens da primeira guerra,
imagens de sangue derramado e o uivo. Tudo nos leva a Leviathan”.
Ansgar perguntou: “E a imagem de Cristo?”.
“Não sei”, respondi, “apenas vocês tiveram essa visão, eu não.
Talvez seja outra pista que ainda tenhamos que encontrar. Mas no
momento, acho que precisamos investigar Libraria”.
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Al-Malik me interrompeu novamente. “Por que acha isso?”.
“Não ouviu o que eu disse? Para mim, era como se o urro viesse de
algo ao meu lado, algo tão próximo que eu pude sentir sua respiração. E,
quando aquilo urrou, Libraria tremeu”.
Todos novamente me olharam. Eu completei meu discurso:
“Conversei com outros Perquiratores. As profundezas de Libraria sofreram
mais com os tremores. E eu pude sentir, por um instante, enquanto dormia.
Há algo lá. Algo vivo e pulsante, urrando com tanta força que fez o chão
tremer”.
“Então, o que faremos?”, perguntou Absolon, um tanto
preocupado.
“Vamos descer às profundezas de Libraria”, respondi. “Vamos
encontrar a fonte dos nossos pesadelos”.
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Capítulo 3: As Entranhas de Libraria
Talvez fosse a primeira vez em séculos que o som de tantos passos
ecoava por aqueles corredores. Ao contrário das passagens superiores, as
profundezas de Libraria possuem corredores mais estreitos e grosseiros,
pouco iluminados e mal ventilados. Nós sete descíamos aquelas
profundezas, que pouco a pouco pareciam mais cavernosas. A
luminosidade tornava-se mínima. Não demorou para que Karina pegasse
uma lanterna, enquanto os olhos dos demais, com exceção de Fabrizia e
Absolon, brilhavam sutilmente, demonstrando que viam perfeitamente
mesmo na escuridão.
“Você pode ver na escuridão, Karina, disso eu sei. Por que usar
uma lanterna?”, perguntei.
“Não me sinto confortável, não é natural. Prefiro uma luz de
verdade. Confio mais assim”. Fabrizia, ouvindo aquilo, imediatamente
concordou. Ainda que a lanterna pudesse nos denunciar para o que quer
que pudesse habitar aquelas profundezas, resolvi não contraria-la. Sua
pureza de alguma forma me era confortável.
Lo Wang ia à frente, alguns metros adiante do resto do grupo. O
resto do grupo mantinha-se unido, mas na frente iam Ansgar e Al-Malik.
Eu, Karina e Fabrizia estávamos no meio, enquanto Absolon permaneceu
atrás. Seus olhos sem brilho indicavam que era o que menos percebia as
coisas na escuridão, tendo que se guiar pela lanterna de Karina. Por isso,
ele manteve-se sempre próximo a ela.
“Tem certeza que é aqui que devemos começar a busca?”,
perguntou Al-Malik. “Libraria é um reino gigantesco, cujas profundezas
não devem ter fim. Por que começar por aqui?”.
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“Instinto, meu caro Malaki”, respondi, “Pois o urro estava
próximo de mim, e apenas através da biblioteca de Sans Vidya poderíamos
chegar a esta parte das catacumbas. Se vocês todos foram enviados a mim,
então imaginei que a solução seria o caminho ao qual leva Sans Vidya”.
“Um pensamento perspicaz”, murmurou Al-Malik. Pude notar que
ele estava um tanto ansioso.
Quase uma hora tinha se passado desde que deixamos meu lar para
trás. Não sabia o quanto tínhamos descido nas profundezas de Libraria, mas
finalmente chegávamos às porções mais grosseiras da Cidade de Rocha. Os
ladrilhos e corredores bem talhados tinham ficado para trás, o que estava à
nossa frente era apenas um vasto complexo de cavernas e túneis escuros. E,
naquele ambiente, eu pude sentir algo pulsar. Algo fraco, distante, mas que
trazia calafrios à minha espinha.
“Eu não gosto deste lugar”, murmurou Absolon, cruzando seus
braços, nervoso, “isto faz mesmo parte de Libraria?”.
“Tecnicamente não”, respondi, “Sans Vidya é uma das bibliotecas
mais profundas. Os corredores que atravessamos são considerados o fim de
Libraria. Estas cavernas, dizem, espalham-se pelas profundezas de toda
Libraria, mas não fazem parte dela”.
Ansgar, com sua espada em mãos, riscou a parede, talvez para
aliviar um pouco a tensão distraindo-se com algo. “Por que Veritatis criaria
este lugar?”, ele perguntou.
“Talvez estas cavernas sejam os restos de Libraria que jamais
foram aproveitados. Ou talvez elas sustentem toda a cidade”, respondeu
Ansgar.
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“Ou talvez estas cavernas tenham sido construídas para abrigar
algo”, disse Fabrizia, alertando para uma possibilidade que eu mesmo não
gostaria de considerar. Ela olhava ao redor, seus olhos começaram a brilhar
num tímido tom azulado, para também ver na escuridão. “Há algo aqui
embaixo. Não sei o que, mas me sinto... desconfortável”.
Olhávamos ao redor, caminhando lentamente. Os caminhos se
dividiam, tornando mais difícil a busca. Voltei-me para Karina: “Você pode
indicar o caminho?”.
“Eu nem sei o que estamos procurando”, Ela me fitou por um
instante, incerta de sua habilidade. “Mas acho que é por ali”, disse,
apontando uma das muitas cavernas. Por ali prosseguimos.
Lo Wang prosseguiu na frente. Estávamos em silêncio, pude sentir
minhas mãos frias devido à tensão. Caminhamos por um longo corredor de
rocha que descia ainda mais nas entranhas da terra quando, por um instante,
pude ouvir o eco de um rosnado, um som muito baixo, mas inconfundível.
Naquele instante, Wang, à frente de todos sacou a espada, uma lâmina
negra e curva que carregava em sua cintura, abaixou-se e olhou ao redor,
murmurando: “Ouvi o som de passos”.
Ansgar também ergueu sua espada, incendiando-a em Chamas
Celestiais. A forte luz azulada inundou o túnel em seguida. Al-Malik puxou
sua arma, uma cimitarra, mas se contentou em permanecer atrás do
Venator. Karina e Absolon estavam nervosos e assustados, permanecendo
próximos a mim. Eu mesmo estava hesitante. Fabrizia, também nervosa,
parecia concentrar sua energia celestial.
Permanecemos parados, silenciosos, esperando que algo surgisse à
nossa frente. O rosnado repetiu-se. Como antes, era um som extremamente
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baixo, abafado como se tivesse sido emitido a quilômetros de distância.
Mas então, ouvimos em seguida passos tímidos e calmos. Sons de sapatos
tocando o chão de pedra, ecoando pelos túneis subterrâneos.
Então, adiante, vimos uma luz, inicialmente tímida, mas cuja
intensidade aumentava pouco a pouco, conforme os passos pareciam mais
próximos. Vindo da escuridão e portando um lampião, notamos um
homem. Ele vestia um manto cinzento, de barba curta e cabelos lisos e
compridos, totalmente brancos. O rosto, ofuscado pelas sombras do
formadas da luz do lampião, me era familiar, mas não pude reconhece-lo de
imediato. “Quem é você?”, Ansgar, o Venator, interrogou gritando,
enquanto Lo Wang apenas permanecia imóvel, empunhando a arma como
um animal próximo a dar seu bote.
Eu mal pude notar devido a meu próprio nervosismo, mas o homem
era um Celestial, maior do que qualquer um de nós ali presentes. Al-Malik,
porém, notou o Coro do recém-chegado e, imediatamente, ajoelhou-se no
chão, guardando sua arma. “Senhor, pedimos desculpas por termos
erguidos nossas armas a você”.
“Não se preocupem, vocês têm razão por estarem tão assustados”,
ele disse enquanto se aproximava. Sua voz era calma e até mesmo
reconfortante. “Eu mesmo estou assustado”, ele completou. Quando se
aproximou o suficiente, passando por Lo Wang, que ainda o olhava
desconfiadamente, pude finalmente ter a certeza de quem era. Não
contendo minha surpresa, apenas deixei escapar seu nome: “Senhor
Urias!”.
Todos se voltaram a mim, mas foi Absolon quem primeiro
indagou: “Você o conhece, Senhor Nicodemus?”.
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“Sim, eu o conheço. Ele é um Antigo que vive próximo a Sans
Vidya, mas ainda mais profundamente em Libraria do que minha própria
biblioteca. Seu lar também pode ser usado para chegar a estes túneis”.
“Eu sou o Arcanjo Urias, Serafim Primordial, e amigo pessoal de
alguns dos membros do Conselho Veritas. Conheço o Arcanjo Nicodemus
há alguns anos. Meu lar está nos limites de Libraria, próximo a estas
cavernas. Depois dos tremores, não pude deixar de tentar descobrir o que
houve. Perdoem-me, não era meu desejo assusta-los”.
“Não há problema algum”, disse Karina. “Sinto-me mais tranqüila
com mais um Arcanjo nos acompanhando”. Absolon e Ansgar
concordaram. Lo Wang aproximou-se, guardando sua espada, e abaixando
a cabeça em sinal de respeito, perguntou: “Com todo o perdão, honrado
ancestral, mas há algo que tenha encontrado nestas profundezas?”.
“Venham comigo”, disse Urias, tomando a frente do grupo. Seu
lampião iluminando o caminho, continuamos a percorrer as cavernas.
Conforme a presença e a sensação de medo aumentavam, Urias falava:
“Tenho sentido isto há anos, até mesmo relatei isto a um amigo entre os
Veritas. Sempre houve algo oculto nas profundezas de Libraria... mas
nunca foi tão forte”.
“Tem idéia do que seja?”, perguntei.
“Não”, respondeu Urias, “mas às vezes ouvia seus rosnados ou
urros distantes, atormentando meus momentos de sono ou meditação. Mas
sempre foram sons distantes demais. Um dos motivos pelos quais
permaneci nessas profundezas foi para vigia-las. Sempre tive medo do dia
em que isto poderia escapar”.
“Escapar?”, perguntei.
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“Não nota? Os urros são de frustração, desespero. O que quer
que exista nessas profundezas está sofrendo muito”.
“Eu notei isso também”, disse Karina, timidamente. “Mas ainda
assim tenho medo. Não é algo natural”.
“Não, não é. Venham, é aqui”, Urias disse, quando chegamos a
uma câmara um pouco mais espaçosa, com paredes de rocha sólida, na
mais absoluta escuridão. As luzes da lanterna e do lampião criavam
sombras assustadoras eram um alívio neste lugar de trevas. Ali, diante de
nós, a parede estava rachada, revelando uma abertura. Diversas rochas
espalhavam-se pelo chão, como se algo tivesse explodido, abrindo a
rachadura e expelindo pedaços de rocha para a câmara. Urias continuou:
“Por muitos anos, eu percorri essas cavernas, sei me guiar perfeitamente
por elas. Mas esta câmara é nova. A presença é mais forte ali. Tentei
adentrar mais, mas é labiríntico, temi me perder. Estava retornando, quando
os encontrei”.
Karina, ainda que assustada, tomou um passo à frente. “Eu acho
que posso guiar-nos”. Ela me olhou, insegura, mas Absolon então tocou seu
ombro, dizendo: “Não se preocupe, você irá conseguir. Aonde disser que
precisamos ir, nós iremos”. Ansgar e Al-Malik confirmaram. Ela sorriu
agradecida, mas sem esconder seu nervosismo. Ansgar, Al-Malik e Wang
uma vez mais desembainharam suas armas. Novamente, Fogo Celestial
iluminou a lâmina do Venator, adicionando uma luz pura ao local.
Timidamente, Karina adentrou a fenda, seguida de perto pelos três
guerreiros, enquanto os demais foram logo em seguida, junto comigo.
Passo a passo, caminhávamos agora por terreno totalmente
desconhecido, passagens apertadas que, muitas vezes, permitiam que
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apenas um passasse por vez. O terreno era ainda mais irregular,
descendo constantemente, dando voltas. Agora, até mesmo Urias
permanecia silencioso. E, ao conforme descíamos ainda mais nas
profundezas, eu podia sentir aquilo se tornar mais forte.
O ar tornava-se mais seco e mais denso. Sentíamos oprimidos,
como se as paredes e o próprio ar nos pressionassem. Minha respiração
parecia mais pesada, e a visão era obscurecida, como se as trevas se
recusassem a recuar diante das luzes. Mesmo meus poderes não podiam
penetrar profundamente na escuridão. O som de nossos passos ecoava, mas
então foi abruptamente interrompido por um rosnado baixo mas duradouro.
Por um instante, podíamos ouvir o som de respiração. Eu suava frio, notei
que Karina tremia e Absolon olhava nervosamente para tudo ao redor. Al-
Malik murmurava orações de proteção, enquanto Lo Wang permanecia
sempre próximo a Karina, empunhando a arma para protege-la como se a
qualquer momento algo pudesse ataca-los. Fabrizia permanecia próxima a
mim, como se buscasse proteção, e Urias constante e lentamente mudava a
posição do lampião, para que a luz pudesse alcançar todos os pontos ao
redor.
Então ocorreu um leve tremor. Sentimos pó cair do teto, mas era
como se ele desabasse. Karina gritou naquele instante, quando, junto ao
tremor, ouvimos o urro, mais alto do que jamais tínhamos ouvido-o antes.
E um calor anormal, junto a uma presença claramente infernal, inundou os
túneis. O ar que veio das profundezas, impulsionado pelo urro, apagou as
chamas celestes. Eu me sentia apavorado, pude sentir meu coração
disparar, uma sensação que há décadas não experimentava.
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Karina olhou para trás. Estava quase a ponto de desesperar, seus
olhos lacrimejavam. Fabrizia correu até ela e a abraçou. “Calma,” ela disse,
“tenha calma”. Absolon também se aproximou delas. “Melhor vocês
ficarem atrás da coluna, junto a Urias e Nicodemus.” Ele também estava
amedrontado, mas esforçava-se para manter o controle. Ansgar tomou a
dianteira, reacendendo as chamas celestes. “Se me atacarem e for algo
grande demais para que possamos parar, não hesitem em me abandonar
aqui”. Ele estava ofegante, mas sua bravura vencia o medo. Ele continuou o
caminho. Al-Malik não hesitou em segui-lo de perto, mas também
sussurrou: “Que Deus nos proteja”. Lo Wang chamou-nos para
prosseguirmos. Com os três bravos guerreiros à nossa frente, sabíamos que
deveríamos continuar.
E, a cada passo, o ar opressivo parecia tornar-se mais forte. Pude
ouvir novamente aquela respiração. Olhei então para o lado espiritual, e
notei uma névoa densa e negra nos cercando. Trevas espirituais, que se
dissipavam nas proximidades da espada flamejante de Ansgar.
Então, o estreito corredor de rocha encontrou uma câmara, menor
do que a anterior, mas grande o suficiente para que o grupo pudesse
adentra-la. Karina, Absolon e Fabrizia permaneceram na entrada da
câmara, enquanto os demais começaram a observa-la. As luzes da lanterna,
das chamas e do lampião iluminaram suas paredes e pudemos ver escritos
fabuláricos. No centro do câmara, um pequeno altar, sobre o mesmo um
antigo jarro de barro, um pouco rachado. E aquela presença inconfundível
se tornava mais forte do que nunca. Não havia mais caminho algum a
seguir, mas podíamos sentir aquela respiração, aquele rosnar. Um rosnar
não físico, mas espiritual, emanado do jarro.
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Intrigados, caminhamos pela câmara. Eu observei as paredes,
preenchidas por palavras fabuláricas de poder, formando um cântico: um
rito de aprisionamento. Urias parecia espantado. Então, Al-Malik se
aproximou do jarro, lendo uma inscrição no altar em que ele se encontrava:
“Aquele que aqui chegar, peço humildemente que não mova esta jarra, pois
as essências do sangue, da guerra e da morte nela estão guardadas”.
Observei o reino dos espíritos, e vi a névoa negra escapar pelas
rachaduras do jarro. Nas proximidades do mesmo, a névoa às vezes tomava
formas e se retorcia, às vezes formando bocas e olhos. Olhos que nos
observavam. Bocas que respiravam e rosnavam. Tão perturbadora era a
visão, que decidi voltar a ver apenas a região física do local. Aproximei-me
do jarro, corajosamente tocando-o. Ouvi Urias tentar me impedir, mas era
tarde. Algo invadiu meus pensamentos.
Gritei. Frustração, dor, urros. Senti minha pele queimar por um
instante e afastei imediatamente minha mão daquele objeto profano. E
todos ouvimos o urro ecoar novamente. Caí de joelhos, respirando
ofegante, e abri os olhos, apavorado. Urias e Al-Malik correram até mim.
Todos os demais voltaram suas atenções para mim. “O que houve?”,
perguntou Urias.
“É ele”, respondi, tendo respostas inundarem minha mente.
“Ele quem?”, perguntou Al-Malik, enquanto Urias calou-se
imediatamente, como se soubesse de quem eu falava.
“Sempre me disseram que Libraria foi inspirada em Alexandria, na
grande biblioteca. Isto é uma mentira”, respondi.
“Não estou entendendo”, Al-Malik disse. “Explique isso melhor”,
pediu Ansgar.
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Urias foi quem respondeu: “Libraria foi criada após a Primeira
Grande Guerra”. Então, completei: “Libraria foi criada para ser uma
prisão”, disse, levantando-me e fitando aquele jarro. “A prisão de
Leviathan”.
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Capítulo 4: O Conselho Veritas
Retornar aos corredores iluminados de Libraria era como uma
benção, após aqueles momentos na escuridão. Ainda abalados pela
experiência, nós agora buscávamos o conforto de Sans Vidya. As faces de
todos demonstravam preocupação. Até mesmo o sempre calmo olhar do
Arcanjo Urias estava diferente, distante. Estávamos silenciosos, cada um
perdido em seus próprios pensamentos. Eu mesmo me perguntava o que
fazer a seguir.
“Gostaria que permanecessem em Sans Vidya um pouco mais,
meus amigos”, eu disse, assim que chegamos à biblioteca. “Eu preciso
conversar com meus superiores. As descobertas que fizemos hoje foram
graves. Por favor, descansem e tentem relaxar”.
“Vai conversar com o Conselho Veritas, Nicodemus?”, perguntou
Urias. Eu balancei a cabeça positivamente. “Então, esperarei aqui, pois
quero muito saber qual será a decisão deles”, continuou.
Karina sentou-se numa cadeira assim que chegamos a meu
escritório. Olhando-me, ainda abalada pelo medo que sentira nas entranhas
de Libraria, perguntou-me: “O que é esse Conselho Veritas, Philipe?”.
“São os líderes dos Veritatis Perquiratores, moça”, respondeu
Ansgar, que também parecia um tanto abalado. Eu continuei a explicação
de Ansgar: “São quatro dos aprendizes de Grande Veritatis em pessoa.
Cada um representa uma estação do ano, e são os homens e mulheres mais
sábios que conheci em toda a minha vida. Eles saberão nos guiar”. Então,
voltando-me a todos, disse: “Por isso, esperem-me aqui. Sintam-se em casa,
tentem relaxar. Devo demorar um pouco para voltar”.
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Adentrei meus aposentos em Sans Vidya, caminhando pelos
salões subterrâneos, ricamente adornados e amplamente iluminados. Em
comparação à claustrofóbica escuridão das profundezas, estar aqui era
como estar seguro e protegido. As rachaduras e objetos quebrados pelos
tremores, porém, eram um anúncio de que talvez essa escuridão possa vir a
engolir até mesmo meu refúgio.
Então, ao chegar a meu quarto, abri a arca na qual guardo meus
pertences mais valiosos. Ali, peguei uma túnica cinzenta, adornada com
símbolos fabuláricos de conhecimento e sabedoria. Vestindo-a e cobrindo-
me também com uma capa e capuz negros, dirigi-me à sala escura, que
normalmente mantenho trancada. A sala de ritos.
Fechando a porta atrás de mim, permaneci na escuridão. “Como
uma benção divina, que afasta as trevas e invoca a luz, invoco a chama do
conhecimento. Eterno e sagrado protetor, guiai-me os passos que me
levarão à divindade”, proclamei, então com o dedo indicador da mão
direita, fiz o símbolo do fogo, para que as velas do círculo se acendessem, e
foi o que fizeram. O círculo de transporte foi exposto nas trevas, revelando
suas formas e símbolos. Cautelosamente, para que as chamas não tocassem
a túnica, adentrei o círculo. Fechando meus olhos, proclamei: “Leve-me
àqueles que me mostrarão o caminho”.
Ao abrir os olhos, vi-me novamente no círculo delimitado por
chamas, mas este era maior, quatro ou cinco vezes maior do que aquele em
meu lar. As chamas iluminavam grandes estátuas de anjos com suas asas
abertas. Suas faces rochosas, obscurecidas por mantos pesados, fitavam o
centro do círculo. Diante de mim, estava o caminho e o grande portão.
Caminhei, passo a passo, rumo a ele, e então, segurando a argola de metal
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na boca do gárgula ali esculpido, bati na porta três vezes. Os sons das
batidas ecoaram.
“Apresente-se”, disse a voz que ecoou. “Sou o Arcanjo Philipe
Nicodemus, Guardião e Administrador da Biblioteca do Conhecimento
Cristalino de Sans Vidya, Querubim entre os Veritatis Perquiratores”,
respondi em voz alta e com firmeza. Os portões se abriram e, além dos
mesmos, um Arcanjo me esperava, vestindo uma túnica dourada e negra.
O grande corredor adiante era iluminado por milhares de velas,
presas às paredes e às grandes colunas. Pude notar as sombras de vários
outros encapuzados caminhando por aqueles corredores, alguns carregando
pilhas de livros, entrando e saindo pelas várias portas laterais. “Eu sou o
Arcanjo Evaniel Onísofos, Guardião da Biblioteca de Cristal, Serafim entre
os Veritatis Perquiratores”, apresentou-se o Arcanjo. “O que desejas aqui,
Philipe Nicodemus?”, perguntou.
“Vim falar com o Conselho Veritas ou com pelo menos um dos
Veritas, pois trago notícias das mais graves”, respondi.
“Os Veritas estão de fato reunidos, prezado irmão, mas não
desejam receber ninguém”.
“Diga-lhes, pois, que encontrei aquilo que fez Libraria tremer”.
Os olhos do Arcanjo Evaniel arregalaram-se. “Venha, Philipe
Nicodemus”, ele disse, “eles estão esperando você”. Dando as costas para
mim, Evaniel prosseguiu pelo longo corredor. Eu o segui de perto e, pelo
caminho, pude notar que projetávamos centenas de sombras, devido às
múltiplas velas. Caminhávamos pelo corredor das trevas da dúvida e da luz
do conhecimento, até alcançarmos o portal cinzento. Dois guardas, trajando
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armaduras negras e grandes lanças, que se cruzavam à nossa frente e
barravam nosso caminho.
“Quem deseja encontrar o Conselho?”, perguntou um dos guardas.
“Ele é Philipe Nicodemus. Helammelak o espera”, respondeu
Evaniel. Os guardas ergueram suas lanças, permitindo a minha passagem.
Assim que me aproximei do portal cinzento, o mesmo abriu-se. Evaniel
permaneceu onde estava. Adentrei na sala obscurecida do Conselho.
Ali, apenas duas velas eram fontes de luz. Permaneci entre as
mesmas, tentando fitar, a olhos nus, os limites do aposento. Nada havia
senão escuridão eterna, representando todos os mistérios que precisam ser
compreendidos. Então, ouvi passos, e mais velas acenderam-se, iluminando
um altar adiante, e sobre o altar uma bancada. A pouca luz fazia parecer
que eu e o altar estávamos flutuando num vazio eterno de escuridão.
Sentados à bancada, diante de mim, fitando-me, estavam os quatro
conselheiros, em suas Formas Angelicais. Quatro seres de aparência frágil e
idosa, mas cujas Formas Angelicais emanavam luz com vigor e
intensidade. Eles vestiam mantos brancos, e a luz que emitiam os destacava
nas trevas.
Primeira entre eles era Melkel, Arcanjo da Primavera e da
Sabedoria, sorrindo gentilmente, seus olhos cheios de vida, contrastando
com a aparência idosa.
O segundo dos Veritas era Helammelak, Arcanjo do Verão e das
Profecias. Com as mãos unidas, os cotovelos apoiados na bancada, e um
olhar sério, que parecia analisar-me.
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Em terceiro, vi Meleyal, Arcanjo do Outono e das Lembranças.
Em seus olhos, vi preocupação, e notei que se perdia em pensamentos
distantes.
Por último, fitei Narel, Arcanjo do Inverno e da Comunhão. A
única que não me fitava diretamente, Narel ao invés disso mantinha-se
cabisbaixa.
Helammelak levantou-se, abrindo suas asas. “Arcanjo Philipe
Nicodemus”, ele disse, “tu vieste a nós para trazer-nos uma notícia.
Humildemente peço, por favor, que compartilhe seu conhecimento
conosco”.
E assim comecei a descrever tudo: o sonho, o tremor, as sensações
de medo e angústia nas profundezas, o encontro com Urias e, finalmente, a
câmara nas entranhas de Libraria e o mal que havíamos encontrado ali. E,
enquanto relatava tudo, os quatro Veritas fitavam-me e analisavam-me. “Eu
estou certo do que vi ali, quando toquei o jarro. O dragão, Leviathan, está
aprisionado lá. Por algum motivo, Veritatis o trouxe para o Éden, e
construiu Libraria para aprisiona-lo”, revelei.
“É ainda cedo para chegar a tal conclusão”, discordou Meleyal,
continuando: “O que você sentiu não pode ser Leviathan. O Lorde do
Sangue está morto. O demônio foi destruído há dois milênios, vítima de
Gabriel em pessoa”.
“Eu tenho certeza do que senti, Senhor Meleyal”, respondi.
“E você já viu Leviathan antes, Arcanjo Nicodemus?”, perguntou
Narel. “Como pode ter certeza, se sequer conhece Leviathan, a não ser
através de seus sonhos? Como pode afirmar algo que não sabe? É ainda
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cedo para tirar conclusões. Poderoso Gabriel afirma ter destruído a
essência de Leviathan, como podemos negar a afirmação de um Primus?”.
Percebendo minha própria tolice, abaixei minha cabeça. Eles
estavam certos: eu fui precipitado em minhas conclusões. Pelos sonhos,
liguei o rugido e a imagem do dragão a Leviathan. Mas se não for ele?
Então, Helammelak uma vez mais falou: “Acredito estarmos diante
de um momento crucial de nossa história, caro Nicodemus. Teus sonhos e
teu destino podem vir a decidir o destino de todos nós. Por isso, também
não sejas tão rápido em abandonar suas afirmações. Embora não possamos
crer que seja Leviathan a presença que encontraste, não podemos afirmar
que não haja uma ligação entre o Lorde do Sangue e este jarro. Isto é algo
que ainda precisamos investigar”.
Erguendo novamente minha face e fitando-os, vi Narel levantar-se.
“Nicodemus, precisamos de tempo para investigar os acontecimentos. Dê-
nos sete dias. Dentro de sete dias, retorne aqui e traga todos os seus
companheiros, pois apresentaremos uma conclusão”.
“Sim, minha senhora. Ficarei honrado se puderem nos revelar o que
quer que descubram. Estamos todos ansiosos para compreender esses
acontecimentos”, respondi.
“Atenção, porém, Nicodemus”, disse Narel, com uma voz
preocupada, “Talvez nós apenas não cheguemos à verdade. Avise seus
companheiros que, provavelmente, a missão de vocês ainda não chegou ao
fim”.
“E peça-lhes que mantenham segredo sobre tudo o que viram, por
favor, pelo menos até que tenhamos chegado a uma conclusão”,
acrescentou Meleyal.
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“Sim, senhores. Que o conhecimento de Veritatis ilumine nossos
caminhos”, respondi, e pus-me a sair dali. Com a mente cheia de dúvidas,
agora tentando descobrir o que realmente estava aprisionado naquele jarro,
retornei pelo corredor de luz e sombras, rumo ao círculo de transporte.
Assim que retornei a Sans Vidya, trouxe aos demais o pedido dos
Conselheiros. Pedi que nos reuníssemos dali a sete dias. Urias, porém, disse
que não poderia vir, pois não havia sido escolhido pelos Guardiões. Ele
disse que estaria conosco, mas que não visitaria o Conselho. Por outro lado,
todos os demais concordaram em voltar em uma semana.
E assim passaram-se os dias. Sem ver nenhum dos outros seis por
este período, eu ainda tentava decifrar os sonhos e responder as questões.
Procurei por livros que pudessem iluminar minhas idéias, mas infelizmente
nada pude encontrar. Nenhum sábio e nenhum tomo puderam elucidar
essas questões. Nada jamais trazia a possibilidade de que algo estava
aprisionado nas profundezas de Libraria. E, da mesma forma, nada poderia
tirar de minha mente a idéia de que Grande Veritatis em pessoa construiu
essa cidade para ser uma prisão.
Ao fim do sexto dia, embora meu corpo celestial ainda estivesse
cheio de vigor, minha mente estava cansada. Seis dias sem dormir,
buscando respostas e convivendo com as lembranças dos sonhos que
vivenciei e das sensações que senti nas profundezas, haviam deixado-me
exausto. Sabendo do importante encontro que se seguiria no dia seguinte,
dei-me o luxo de descansar pela primeira vez desde que tudo isso começou.
Meus sonhos, porém, não me trouxeram conforto.
No momento de inconsciência, uma vez mais senti algo tocar
minha mente. Vi uma grande praça, em uma imensa cidade cheia de
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mesquitas e esplendor. E ecoaram, trazidos pelo vento, gritos de dor.
Pessoas estavam sofrendo. Um rosnado inconfundível se seguiu, um rosnar
de tigre. E vi paredes de pedra manchadas com sangue. Um tigre feroz
matando pessoas, uma a uma; suas garras e presas dilacerando carne e
partindo ossos; gritos de morte e horror. Então, o tigre correu por um
imenso deserto, raios e trovões o seguiam, e sua sombra projetava uma
escuridão ilimitada.
A passos rápidos, o animal atravessou a vastidão árida, rumo a uma
grande montanha. Como se visse através dos olhos do animal, o vi escalar
aquela montanha, sem que nenhum obstáculo pudesse desacelerar seu
progresso. E, do alto da montanha, contemplei uma cidade cujas glórias do
passado já haviam se extinguido, em cujas ruas dois irmãos atacavam-se
com paus e pedras. E senti pulsar nos subterrâneos daquela cidade um mal
muito grande, que inspirava a violência nas ruas. E vi ali uma via
manchada com sangue. E vi sombras do passado percorrendo-a, homens
carregando cruzes nas costas e espinhos na cabeça, sob a vigília de oficiais
romanos e diante de uma multidão feroz, que se deliciava e se horrorizava
com a visão dos condenados à crucificação.
Raios e trovões seguiram-se, conforme a cidade de antigas glórias
foi encoberta por nuvens escuras. E o tigre rugiu, fitando o horizonte. E vi,
além do horizonte, além do mar, Cristo de braços abertos, sob seus pés um
velho caído e fraco, o mesmo velho insano e desesperado de meu primeiro
sonho. Ele gritava, pedia para que afastassem dele aquele animal. O tigre
urrou novamente. O velho gritou em desespero.
Então, Cristo ardeu em chamas, das chamas nasceu Metatron, em
sua forma dourada, com suas asas flamejantes abertas e seus braços
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estendidos como se desejasse proteger aquele homem. E sua voz ecoou
em minha mente uma centena de vezes: “Este homem possui todas as
respostas. Este homem deve ser protegido”.
Despertei. Com a mensagem de Metatron ainda repetindo-se em
minha mente, levantei-me da cama, ofegante. Eu conheço aquelas cidades.
Já estive em ambas. O que é esse tigre? Quem é ele? Porque ele procura o
velho? E que respostas aquele velho pode nos dar?
Foi com esses pensamentos em mente que passei as horas enquanto
esperava que os demais chegassem. Lo Wang. Karina Ariel. Adb Al-Malik.
Achille Absolon. Armin Ansgar. Fabrizia. Um a um, todos vieram. Nas
faces de todos, pude notar o misto de curiosidade e medo, desejo de
encontrar respostas e temor do que pode estar acontecendo. Nisso, as
angústias e desejos deles se misturavam aos meus.
Levei-os aos meus aposentos, onde lhes entreguei túnicas e mantos
como os que eu usara para encontrar o Conselho. “Vistam isso, por favor”,
eu pedi, “os Veritas prezam formalidade”. Fabrizia e Karina deixaram o
quarto para vestirem-se em outro cômodo, enquanto o resto de trocou de
roupa ali mesmo. Quando todos estávamos prontos, encaminhei-os à sala
escura, onde repeti todo o ritual para que fôssemos levados ao Conselho.
“É preciso mesmo isso tudo?”, perguntou Fabrizia, enquanto eu
recitava as palavras no círculo de transporte.
“Não o desconcentre”, pediu Absolon. “Não entendo nada de
magia, mas se ele acha preciso, então é preciso”.
“Fechem os olhos”, pedi ao fim das palavras, e assim todos os
fizeram. “Abram-nos”, pedi novamente, e, ao olharem em volta, todos
estranharam surgir às portas da Biblioteca de Cristal, entre as estátuas
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encapuzadas, diante do grande portão. Pus-me à frente do grupo e bati à
porta. Desta vez, esta abriu-se sem que fosse preciso me identificar.
Arcanjo Evaniel Onísofos nos esperava.
Caminhamos uma vez mais pelo corredor do conhecimento e da
dúvida, que estava estranhamente silencioso naquele dia. Guiados por
Evaniel, nós sete caminhávamos silenciosamente. O silencio fora quebrado
pelo sussurro de Ansgar: “Que tipo de lugar é esse?”.
“Os corredores da dúvida e do conhecimento”, respondi. “O centro
da Grande Biblioteca de Cristal. Além desses corredores, estão as maiores
bibliotecas conhecidas. São centros de luz e conhecimento, mas os
corredores que as envolvem representam a dúvida. Pois é pela dúvida que
se busca respostas”.
“Aqueles do Bayt’Umma Al-Shabah sempre gostaram de
simbologia”, comentou Al-Malik, referindo-se à facção Malaki dos
Perquiratores. “Eles acreditam que os símbolos são uma forma fácil de se
compreender as criações de Alá”.
“A escrita e a linguagem são formados por símbolos”, acrescentou
Evaniel, até então calado, “e da mesma forma, toda magia e toda crença se
baseiam em símbolos. Nossa própria visão simboliza a realidade de forma
que possamos compreende-la. Por isso, Grande Veritatis valorizava o
simbolismo. ‘Tudo que não possui um significado não tem razão de
existir’, dizia ele, segundo os velhos escritos”.
Então, diante do portão cinzento, Evaniel parou. “É aqui”, ele disse
aos demais. Os guardas já estavam preparados para nossa vinda e deram-
nos passagem. Os portões cinzentos abriram-se conforme caminhamos em
direção aos mesmos.
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Conforme entrávamos no salão de trevas do conselho, ouvi os
comentários de meus companheiros. Desta vez, já sentados à nossa espera,
estavam os quatro Veritas, em suas formas celestiais, adiante.
Os portões cinzentos fecharam-se atrás de nós e nos posicionamos
em meio a um conjunto de 14 velas. Frente a frente com o Conselho, tomei
a iniciativa de apresenta-los a meus companheiros: “Meus amigos, estes
são o Conselho Veritas, aprendizes de Grande Veritatis e coordenadores
dos esforços de meu Clero”.
“É um grande prazer e uma grande honra”, disse Ansgar,
ajoelhando-se. Al-Malik também se pôs de joelhos, sussurrando:
“Agradeço a Alá pela oportunidade de conhecer Arcanjos de tão grande
sabedoria”. Lo Wang abaixou a cabeça em sinal de respeito e também
preparou-se para ajoelhar-se. Os demais se entreolharam e estavam prestes
a repetir o ato, porém Meleyal os interrompeu: “Não precisam se ajoelhar,
aqui, embora nos coloquemos num altar, apenas simbolizamos guias, não
mestres ou senhores. Coloquem-se em pé, e falem conosco de igual para
igual”. Imediatamente os três se levantaram, e os demais passaram a fitar o
Conselho de cabeça erguida.
Dei um passo à frente, questionando os Veritas: “Quais foram as
descobertas que fizeram? Foi elucidada a natureza daquilo que está preso
em Libraria?”.
“Terríveis descobertas fizemos, caro Nicodemus”, respondeu
Helammelak, “pois seus instintos mostraram-se verdadeiros, ao menos em
parte”.
Senti um frio percorrendo minha espinha e fitei os demais. Todos
demonstravam preocupação em suas faces. Voltando-me ao Conselho,
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perguntei: “Então, é mesmo Leviathan que está aprisionado naquele
jarro?”.
“Nada se encontra aprisionado naquele jarro, Nicodemus, nem
sequer trata-se de Leviathan”, respondeu Helammelak, “Como nossas
suspeitas indicavam, Leviathan está morto, tendo encontrado a Obliteração
nas mãos do Arcanjo Gabriel. Por isso, torna-se ainda mais grave a nossa
descoberta”.
“Não entendi”, disse Al-Malik, a princípio timidamente, mas então
erguendo a voz para falar de igual para igual com os conselheiros: “Se não
é Leviathan, então o que é? O que foram os urros, idênticos aos que
ouvimos em nossos sonhos? O que significa tudo isso?”.
A anciã Melkel levantou-se, fitando Al-Malik. “Assim como o
sangue percorre a corpo e nutre a carne, a essência percorre o espírito e
nutre a alma”.
Narel completou o que sua companheira começou a explicar: “Não
se trata da alma de Leviathan, mas de parte de sua essência. Como se o
jarro tivesse coletado o sangue de sua alma. Estão ali lembranças e as
últimas sensações de Leviathan. Todo o ódio, angústia e dor que ele sentiu
ao ser destruído estão naquele jarro, mas ali também está uma grande
parcela de seu poder”.
“E isso pode ser uma ameaça?”, perguntou Ansgar.
“Não”, respondeu Narel, “não há consciência ou malícia naquela
forma. Porém, algo de fato despertou a essência dormente, fazendo-a reagir
e explodir em fúria, causando os tremores. Acreditamos que ela está
reagindo a acontecimentos no reino dos vivos”.
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“Mas, se essa porção de Leviathan não pode fazer nada, porque
está aprisionada no jarro?”, perguntou Lo Wang. “Porque aprisionar algo
que não representa ameaça?”.
“O jarro é a morada dessa essência”, respondeu Melkel,
continuando: “é a única coisa que dá unidade a ela. Sem o jarro, ela se
dissiparia. Mas graças a ele, essa essência se dissipa e retorna, emitindo
partículas de alma que depois se reagrupam no jarro. O jarro é a razão
dessa essência ainda existir, ao invés de tocar e contaminar formas no plano
físico”.
“Mas há um rito de aprisionamento ali!”, interrompi, “Eu vi as
inscrições nas paredes. Há algo aprisionado, não apenas mantido ali!”,
“Sim, há”, confirmou Helammelak, “mas estudamos com afinco a
natureza desse rito. E lá dizia: ‘que aqueles que ferem com o fogo sejam
feridos com o fogo, que a arma de seu irmão seja voltada contra eles, que
nesta câmara esteja a chave e o selo da prisão, que os ossos de um morto
sejam as armas pelos quais serão abatidos os reis das trevas’. Há de fato um
rito, Nicodemus, mas este não afeta o jarro, nem nada que esteja naquela
câmara”.
“Então, o jarro é uma arma?”, perguntou Karina.
“Não, é um selo”, respondeu Helammelak.
“Não compreendo”, disse Fabrizia.
“Nem nós”, acrescentou mais uma vez Helammelak. “Mas algo
compreendemos: durante a Quarta Guerra, as forças do Inferno tentaram
invadir Libraria. Até então, jamais pudemos compreender a razão. Agora,
estamos convencidos de que desejavam este jarro”. O Arcanjo então se
virou para mim: “Libraria não é uma prisão, caro Nicodemus, e sim um
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cofre. Ela foi erguida para proteger o conteúdo deste jarro e o selo que
ele representa. Resta agora saber o sentido disso tudo: o significado do
selo”.
“E como saberemos?”, perguntei.
“Vocês descobrirão”, disse Melkel. Nos entreolhamos, notei que
Karina, Absolon e até mesmo Ansgar estranharam aquela resposta. Então,
Melkel continuou: “É hora de voltarmos à origem de tudo. Tudo isso
começou nas profundezas de Dur Sharrukin, quando Gabriel, Veritatis e
Miguel estiveram face a face com o Lorde do Sangue e o derrotaram. É em
Dur Sharrukin que encontraremos as respostas. É lá que vocês devem
procura-las”.
“Nós?”, perguntou Al-Malik. “Somos simples Celestiais, de todos
nós apenas um é um Arcanjo! O que somos nós para entrarmos naquele
lugar?”. Notei pavor em sua voz, nunca o vira tão abalado, nem mesmo nas
profundezas de Libraria. “Eu não venho daquela região, mas já ouvi as
histórias das maldições e perigos que habitam aquele lugar! Não seria
melhor que Arcanjos ou mesmo os Primi tomassem a dianteira?”.
Ansgar disse então: “Talvez possamos ir, mas precisamos de ajuda
de alguém maior, alguém mais experiente, por favor!”.
Os quatro Veritas levantaram-se em conjunto, mas Helammelak foi
o único que falou algo: “Nós Perquiratores acreditamos nos símbolos, nos
sentidos ocultos em cada movimento da tapeçaria que forma a criação.
Vocês foram escolhidos e, mesmo que não pareçam, são os mais adequados
a esta missão”.
“O que é Dur Sharrukin exatamente?”, perguntou Karina, assustada
após ver a reação dos demais membros do grupo.
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“A fortaleza de Leviathan, aonde as tropas do Éden e do Inferno
chocaram-se na Primeira Grande Guerra. Há lendas que contam que algo
ainda existe lá, o fantasma de Leviathan, que ainda assombra aquelas ruínas
subterrâneas”, respondi, também perturbado com a grandiosidade de nossa
missão.
“As lendas sobre o fantasma podem ser mais do que lendas”,
revelou Meleyal. “Embora suas aparições sejam contos exagerados,
acreditamos que algo de fato sobrevive lá. Se for verdade, o fantasma é a
chave do mistério”.
Fabrizia e Lo Wang permaneceram calados, mas notei que tinham
medo, muito medo. Mesmo o tão frio Tenshi mostrava-se introspectivo
demais, preocupado. Ele fitava o chão, como se tentasse reunir forças para
aceitar seu destino. Absolon falou por eles: “Não acho que sejamos assim
tão capazes quanto vocês dizem”.
“Não?”, perguntou Helammelak. “Não é o que vejo”.
“Vocês têm medo porque não conhecem o que há de grandioso
dentro de vocês”, disse Melkel, sorrindo e estendendo a mão na direção de
Karina. “Karina Ariel, por mais que tema se ferir e por mais que se julgue
um peso para os demais, você é quem poderá guia-los quando estiverem
perdidos”. Então, voltando-se a Absolon, Melkel continuou: “Achille
Absolon, você não se julga capaz de liderar ou mesmo acompanhar
Celestiais mais velhos e poderosos do que você, mas no final, sua coragem
e seu senso de dever poderão vir a destaca-lo sobre todos os do grupo.
Quando o momento decisivo vier, você vai descobrir sua verdadeira força”.
Helammelak tomou a palavra, voltando-se para Al-Malik: “Servo
do Rei, tua capacidade em ver através das mentiras e ilusões é necessária
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nesta jornada. Busca a verdade, pois apenas ti pode vê-la”. Fitando
Ansgar, Helammelak então disse: “Armin Ansgar, tu és movido pela tua
honra e teu respeito pelos demais. Em ti estarás a chama que irá fortalecer a
todos ao seu redor. Não é o poder de um Primus que irá definir uma
batalha, mas a coragem de um homem”.
Meleyal voltou-se para os demais: “Fabrizia, Filha de Ilyap’a, não é
o poder de criar tempestades ou manipular os ventos que irá leva-los à
vitória, mas sim aquilo que você não acredita ter: a força para mudar o
mundo. Tem estado calada até agora, é hora de agir”. Então, os olhos azuis
de Meleyal se encontraram com os frios e negros olhos de Lo Wang: “Lo
Wang, você sabe qual a força que tem dentro de você, e foi capaz de
ensinar lições mesmo àqueles que estavam acima de você. Não subestime
sua habilidade, lute com todas as forças, e isto será suficiente”.
Por fim, Narel me observou, também sorrindo: “Philipe
Nicodemus, já não é a primeira vez que vemos grandeza em você. É um
dos mais jovens entre os aqui reunidos, e ainda assim, de todos os seus
companheiros está em mais elevado Coro. Não o tornamos Arcanjo e
Querubim por compaixão ou simpatia, mas por sua capacidade. Confie em
seus instintos e guie todos rumo à verdade”.
“Não podemos obriga-los”, disse Helammelak, “por isso
gostaríamos que aceitassem sua missão”.
Dei um passo à frente. “Eu irei”, disse, “e chegarei às respostas
para tudo isso”.
Karina tocou meu ombro. “Acho melhor eu ir também, ou você
pode acabar se perdendo naquele lugar”.
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“Podem precisar de proteção”, disse Ansgar, “então minha
espada estará a seu serviço”.
“Se irão entrar na escuridão, então é melhor que eu os acompanhe.
Não quero ter a consciência pesada depois”, disse Lo Wang, estranhamente
sorrindo.
“Não pensem que irão sem mim”, murmurou Fabrizia.
Al-Malik fechou seus punhos e falou em voz alta: “E eu estarei lá
também. Alá estará conosco”.
Então, olhamos todos para Absolon, que ainda estava pensativo.
“Você irá?”, perguntei. “Claro que irei”, ele disse, ainda receoso, “jamais
abandonaria meus companheiros”.
Sentando-se, os Veritas sorriam. “Voltem em duas horas, quando
será noite densa naquela região. Venham vestidos para guerra”, disse
Helammelak.
Enquanto saíamos, Narel chamou-me. Paramos e nos viramos para
os conselheiros, e ela me disse: “Mas ouçam, talvez Dur Sharrukin seja
apenas o começo. Por algum motivo, acreditamos que o tigre em seus
sonhos tenha mais importância do que Leviathan”.
“Eu sonhei com o tigre esta noite”, revelei, “e vi duas cidades”.
“Então, Philipe Nicodemus, siga seus sonhos”.
Eu esperava que os Veritas me perguntassem mais sobre o sonho,
mas ao invés disso levantaram-se e saíram. Então, eu e meus companheiros
continuamos a andar, de volta ao corredor da dúvida e do conhecimento.
Apesar da súbita coragem que nos contagiou, estávamos novamente
temerosos. “Venham vestidos para guerra”, Helammelak disse, indicando
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que não seria uma tarefa fácil ou inofensiva. Foi com este medo nos
incomodando que retornamos a meus aposentos, em Sans Vidya.
Assim que retornamos, nos despedimos novamente. Cada um partiu
para se preparar, tanto física como psicologicamente, para o que estava por
vir. Tomei um banho e, em seguida, apenas vesti roupas mortais: uma calça
marrom, botas e uma camisa branca, de manga curta. Coloquei um
sobretudo e um chapéu, também marrons. O resultado pareceu uma roupa
de detetive, bem diferente dos mantos que costumo vestir no Éden. Embora
eu prefira minhas roupas celestes, achava que aquele traje mortal seria útil,
pois Dur Sharrukin seria apenas nossa primeira parada naquela noite.
Então, esperei pelos demais em meu escritório. Karina foi a
primeira a chegar. Estava de cabelo preso em um rabo de cavalo, vestindo
calças jeans e camiseta branca, com uma jaqueta negra por cima, notei que
surpreendentemente carregava uma pistola num coldre sob a jaqueta, e
levava uma mochila nas costas. “Nunca a vi armada antes, Karina”, eu
comentei.
“Só sei usar armas de fogo, e sou muito ruim mesmo nisso. Só
usarei se achar que realmente preciso”, ela disse.
“E o que tem na mochila?”, perguntei.
“Roupas e outras coisas que sempre carrego. Sou uma eterna
viajante, lembra?”, ela respondeu, sentando-se ao meu lado. “Não vai se
armar, Philipe?”, perguntou, fitando-me nos olhos.
“Este velho não sabe usar armas, minha querida. Porém, os
espíritos obedecem meu chamado e os elementos erguem-se para me
proteger. Nunca fui um combatente, então eles serão minhas únicas armas,
se é que precisarei usa-los”.
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“Espero que não precisemos”, confessou.
“Eu também, Karina... eu também...”, desabafei, murmurando.
Ansgar chegou em seguida, silencioso e pensativo. Vestindo
camiseta negra, botas e calça militar, ele carregava sua espada embainhada
na cintura. Também carregava uma sacola nas costas.
Absolon veio depois, vestindo-se de forma parecida com Karina,
vestindo tênis, calça jeans e camiseta negra de alguma banda de heavy
metal. Quando perguntei que armas trouxera, ele respondeu-me: “Na
mochila, tenho uma espingarda, uma bela calibre 12. Não sei o que mais
vou precisar. Só sei que não sou guerreiro”.
Fabrizia, também de sobretudo, vestindo roupas negras por baixo,
tinha prendido o longo cabelo escuro numa trança única. Também usava
uma bandana branca na cabeça, portava uma longa faca de combate na
cintura e uma espingarda nas costas, presa à mochila que portava.
Lo Wang veio em seguida, usando roupas totalmente negras,
incluindo luvas e um capuz. Sua espada negra estava embainhada às suas
costas. No cinto e pela roupa, notei vários bolsos, quase imperceptíveis,
que sem dúvida portariam mais armas. Por fim, sob o braço direito, ele
porta uma sacola, cuja alça passa pelo ombro esquerdo. Silenciosamente,
ele une-se ao grupo.
Abd Al-Malik foi o último. A cabeça estava enfaixada em panos,
formando um turbante branco, e ele vestia roupas pesadas árabes, em tom
pastel, lembrando as figuras de beduínos, com o corpo todo, salvo mãos e
rosto, cobertos pela roupa. Uma cimitarra, maior e mais bela que a sua
arma original, está em sua cintura, e às costas traz uma sacola.
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“Estamos todos prontos?”, perguntei. Todos disseram que sim.
Então, resolvi dar um último alerta: “Estamos indo a um lugar em que
nenhum outro Celestial pisou em dois mil anos. Há lendas e boatos sobre
Dur Sharrukin, todos envolvendo sombras do passado. Grande Veritatis em
pessoa proibiu que qualquer um voltasse àquele lugar e as entradas
conhecidas foram lacradas. Uma vez lá, estaremos sozinhos. Esta é a última
chance, para quem quiser desistir”.
Nos entreolhamos, notei que alguns hesitavam. Então, vinda da
porta do escritório, veio uma voz: “Não os assuste tanto, Nicodemus”.
Senhor Urias estava entrando, vestindo um manto branco.
“Apenas estou dizendo a verdade, Senhor Urias. Jamais iria querer
que um deles me acompanhasse sem consciência dos perigos que podemos
encontrar”.
“Ainda bem que os encontrei antes que forrem a Dur Sharrukin.
Precisava falar algo a vocês”, Urias disse.
Absolon então falou “Irá conosco, senhor? Seria uma honra. Mas
como sabia que íamos a este lugar?”.
“Eu conheço bem dois dos Veritas e ajudei-os a chegar à câmara
onde está o jarro. E não, caro Absolon, eu não irei com vocês, embora
deposite minhas esperanças em sua busca. Infelizmente, permanecerei aqui.
Com as descobertas feitas, sinto-me mais do que nunca na obrigação de
vigiar os túneis, e preciso avisar alguns companheiros sobre os
acontecimentos”.
Ao notarem que o Arcanjo recusara-se a nos acompanhar, notei que
meus companheiros novamente perdiam a esperança e se entreolhavam,
temerosos. Mas então Urias pediu nossa atenção. “Sei que estão com
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medo”, disse o Arcanjo, “sei o que sentem e o que pensam. ‘Como
podem os Arcanjos nos abandonar agora?’, não é? Pois há algo que vim
dizer a vocês”.
Urias aproximou-se antes de continuar. “Vocês foram escolhidos
para uma missão. E se um Guardião os escolheu, é porque esta é um peso
que devem carregar por si mesmos. Por outro lado, saibam: é assim que
nascem os heróis e as lendas. Vocês estão destinados a grandes feitos.
Pensem bem... Um dia, cada grande Arcanjo foi como vocês. Eles se
tornaram lendas enfrentando o desconhecido. Não são os grandes Arcanjos
que definem o rumo da história, mas vocês. Os Primi não ganhariam
nenhuma guerra se não houvesse milhares de Celestiais lutando por eles.
Enquanto vocês relacionam poder a importância, lembrem-se sobre quem
está o verdadeiro peso das decisões: os humanos. Nós apenas os guiamos.
Da mesma forma, os Arcanjos apenas estão guiando vocês, mas serão
vocês quem definirão os resultados de sua missão. Não vou mentir: talvez
vocês enfrentem situações duras. Mas não pensem que estão sozinhos. Se
vocês foram escolhidos, então quem os escolheu estará olhando por vocês.
Vocês, mais do que ninguém, deveriam saber que milagres de fato
acontecem. Por isso, eu irei passar apenas uma mensagem, e quero que a
lembrem quando chegar o momento”. Então, Urias afastou-se um pouco,
olhou cada um de nós, vendo todos os nossos medos, e disse: “Quando
chegar o mais desesperador dos momentos, acontecerão maravilhas. E,
neste momento, vocês verão que não estão sozinhos”.
Um silêncio seguiu-se. Urias então saiu, calmamente, da sala.
Antes de fechar a porta, desejou-nos boa sorte. Então, nos olhamos
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novamente. Era hora de encontrar o Conselho. Ele nos indicaria o
caminho para Dur Sharrukin, e lá esperávamos encontrar todas as respostas.
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Capítulo 5: Sombras do Passado
Quando as lendas começam?
É no momento em que seus protagonistas aceitaram sua missão?
Se sim, nossa história começou naquele momento em que
estávamos diante do Conselho Veritas pela última vez? Ali nós sete
estávamos, ouvindo as palavras de Narel Veritas.
“Vocês irão agora para Dur Sharrukin, a ‘Fortaleza de Sargon’.
Mas antes, precisam entender a localização de seu destino. A verdadeira
Dur Sharrukin foi uma cidade erguida pelos Assírios em tempos antigos.
Dur Sharrukin se localiza na vila de Khorsabad, 20 quilômetros ao nordeste
de Mossul, no Iraque. Porém, o templo de Dur Sharrukin, que foi o local da
batalha final da Primeira Grande Guerra, se localiza sob a cidade assíria.
Suas únicas entradas conhecidas se davam pelas montanhas próximas, mas
estas entradas foram fechadas”.
“E como entraremos?”, perguntei.
Narel continuou: “Apenas os mais poderosos ritos podem levar ao
interior do templo, mas tais ritos são evitados, pois não se sabe quais
efeitos colaterais podem causar naquele lugar. Por isso, vocês entrarão por
uma passagem há muito escondida. Em meados de 1850 da Era Cristã, uma
expedição francesa foi enviada às ruínas da cidade assíria de Dur Sharrukin
para realizar escavações. Os Malaki não julgaram que a expedição fosse
capaz de encontrar o templo subterrâneo, visto que está a mais de cem
metros sob o solo. Porém, para a nossa surpresa, haviam galerias de
cavernas naturais no solo entre o templo e a cidade”.
Uma vez mais a interrompi com uma pergunta: “Então, os
franceses encontraram uma passagem?”.
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“Houve um desabamento nessas cavernas, abrindo uma
passagem sob a cidade assíria. Em 1855, investigaram essas cavernas. Para
nosso desespero, abriram uma passagem para o templo. Nenhum dos
exploradores que adentrou aquele lugar conseguiu retornar. Como medida
de segurança, tomamos o cuidado de selar a entrada para as cavernas e
enviamos Arcanjos, que se revezavam anualmente, para vigiar o local e
impedir que a humanidade encontrasse aquele lugar infernal. Assim,
mantivemos o templo de Dur Sharrukin oculto pelos últimos 150 anos”.
Helammelak tomou a palavra então, levantando-se: “O Arcanjo
guardião de Dur Sharrukin deste ano irá levar-vos a esta passagem oculta.
Porém, ele irá acompanhar-vos apenas até a entrada das cavernas. Uma vez
lá, vós estareis por sua própria conta”.
As palavras de Helammelak não ajudavam a nos tranqüilizar. Eu
buscava não pensar muito nisso, tentava acreditar que tudo ficaria bem.
Narel tomou novamente a palavra: “Dur Sharrukin, o templo infernal, é
uma fortaleza subterrânea dividida em três grandes níveis. Acreditem em
mim quando lhes digo que aquele lugar é uma vastidão subterrânea como
nenhum de vocês jamais viu. Construída com arquitetura e magia infernal,
há uma escuridão densa ali, e as dimensões daquele lugar o fazem parecer
infinito. O primeiro nível é um imenso salão, com quilômetros e
quilômetros de extensão, mantido por milhares de colunas maciças. Foi ali
o primeiro campo de batalha naquele dia...”.
Narel pigarreou antes de continuar. “O segundo nível é um
gigantesco labirinto, no qual se instalavam as tropas mortais e demoníacas
de Leviathan. Quando a batalha chegou àquele lugar, o labirinto foi usado
para dividir as tropas celestes. Naqueles corredores, centenas caíram
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vítimas de armadilhas mortais. Por fim, o terceiro nível leva a um salão
semelhante ao do primeiro nível. Ali ocorreu a maior das batalhas naquele
dia, quando finalmente a elite de Leviathan chocou-se com nossas tropas.
Além do grande salão, está a câmara em que ocorreu a batalha entre
Gabriel e o Lorde do Sangue. Esta câmara está selada e é ela o objetivo de
vocês. Estão preparados?”.
“Que tipo de perigos poderemos encontrar ali?”, Ansgar perguntou.
“Não é possível dizer”, respondeu Meleyal, “mas a princípio aquele
lugar está abandonado e deserto. Por milênios ele foi lacrado. Porém, é um
local impregnado de memórias de dor e violência, e certamente vocês irão
confrontar imagens do passado ali. É por isso que acreditamos que lá
encontrarão respostas”.
Observei meus companheiros, um a um. Ansgar, Karina, Wang, Al-
Malik, Absolon, Fabrizia. Então, retruquei: “Estamos prontos para ir”.
O portão cinzento atrás de nós abriu-se e um Arcanjo silencioso
entrou, vestindo um manto cinzento, com um capuz que cobria-lhe a
cabeça. Ao aproximar-se, o Arcanjo baixou o capuz, revelando um rosto de
pele escura e cabelos negros. “Eu sou o Arcanjo Adonijah, Serafim dos
Veritatis Perquiratores”, disse ele. “Eu os guiarei aos portões de Dur
Sharrukin”.
“Estamos prontos”, eu disse. O Arcanjo me fitou, então virou seu
olhar para um espaço vazio. Ali, o ar tremeu e ondulou, assumindo um leve
brilho azulado. Eu pude sentir o poder celeste manifestando-se na forma de
um portal. Então, as costas das roupas do Arcanjo rasgaram-se, liberando
suas grandes asas. Seu corpo emitia uma leve luz azulada. “Venham em
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Forma Celeste, pois o portal leva aos céus do Iraque”, ele disse,
adentrando a passagem que abrira.
Como que por medo, hesitamos todos a princípio, mas então, para
minha surpresa, Absolon tomou a frente. Segurando nas mãos a mochila
que carregava, sua camisa rasgou-se nas costas, seu corpo emitiu um brilho
dourado, de forma que seus cabelos louros brilhavam como se fossem
chamas celestes. Seis pares de faixas luminosas, as asas de Princeps,
nasceram de suas costas. Seus olhos azuis também brilhavam intensamente.
Silenciosamente, ele atravessou o portal.
Lo Wang foi o segundo. De suas costas, nasceram duas asas negras
e ligeiramente vítreas, como se fossem de pura obsidiana. Ao invés de luz,
ele parecia emitir sombras, pois a luz das velas pareceu enfraquecer-se ao
seu redor. Seu rosto tornara-se assustador, encoberto por sombras que
disfarçavam um pouco suas feições.
Al-Malik então liberou suas asas, que nasceram violentamente. Seu
corpo brilhava intensamente, emitindo luz branca, mas a luz era tão forte
nas asas que se dava impressão que elas eram feitas puramente de luz.
Então, a passos firmes e decididos, ele transpôs o portal.
Ansgar deu alguns passos em direção ao portal. Suas asas nasceram
lentamente, rasgando as costas de sua roupa. As asas prateadas, de penas
pontiagudas, liberavam uma aura levemente azul. Seus olhos, brilhando
com a mesma cor, nos fitaram brevemente antes que ele prosseguisse
através do portal.
Karina deu um passo à frente, então me observou, como se
esperasse por mim. Notei que ainda estava receosa, então esforcei-me para
sorrir. Retirando o sobretudo para que não se rasgasse, deixei que minhas
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asas se abrissem. Meu corpo emitiu um brilho levemente azul. Karina,
então, retirou a mochila e a jaqueta e liberou suas asas. Seu corpo brilhava
dourado. Demos as mãos e atravessamos juntos.
Por um instante, era como se transpuséssemos uma cachoeira.
Então, perdemos a sensação de estarmos nos apoiando no solo. Um vento
gelado soprava e estávamos encobertos por uma grande nuvem. Era noite, e
a lua e as estrelas brilhavam forte acima. Abaixo, vimos poucas luzes,
numa vastidão negra. Estávamos no céu, lado a lado com nossos
companheiros, todos à nossa espera. Larguei a mão de Karina e ambos nos
afastamos do portal, dando passagem à Fabrizia, que veio logo depois, suas
asas marrons e seu corpo emitiam um brilho vermelho, e em Forma
Angelical Fabrizia parecia mais forte e decidida. Na verdade, todos nós
parecíamos.
O Arcanjo Adonijah, cobrindo o rosto com o capuz novamente,
então disse: “Dur Sharrukin está adiante. Voemos baixo, pois esta é uma
região perigosa, e se radares americanos nos captarem, podemos criar uma
crise internacional na Terra”.
Então, o portal fechou-se, e o Arcanjo mergulhou em direção ao
solo. Nós sete o seguimos, alcançando grande velocidade. Com o vento
gélido em meu rosto, aquela sensação de voar pelos céus, após tanto tempo
estudando no confinamento de Libraria, era para mim como sentir de novo
toda a minha capacidade.
Então, com os poderes celestes, pude ver na escuridão da noite, as
vastidões que percorríamos, naquela velocidade, até ver, adiante um
vilarejo: Khorsabad. Estávamos próximos. Elevamos a altitude, para evitar
sermos vistos, mas sem perder velocidade. Ainda rasgando a noite, não
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descansamos até que Adonijah parasse. Então, descemos lentamente
rumo ao solo. Conforme descíamos, pude ver a fortaleza construída por
Sargon há 2700 anos: Dur Sharrukin.
As ruínas eram de fato impressionantes. Cercada por muralhas
maciças, cujas sete entradas eram guardadas por estátuas de touros alados
com rostos humanos. Sua glória hoje extinta, da cidade assíria de Dur
Sharrukin só restavam ruínas de antigos prédios e casas. Ainda flutuando
no ar, Adonijah dirigiu-se aos restos de uma cidadela fortificada na muralha
noroeste da cidade.
Então, quando nossos pés finalmente tocaram o solo, recolhemos
todos nossas asas, assumindo o aspecto mortal. Coloquei novamente meu
sobretudo, enquanto os que portavam mochilas colocaram-nas em suas
costas. Adonijah nos olhou, pedindo que o seguíssemos. Adentramos nas
ruínas da cidadela, percorrendo alguns poucos corredores até chegarmos a
uma escada que levava a uma espécie de porão. Tanto Karina quanto
Absolon pegaram lanternas que traziam em suas mochilas, ajudando a
iluminar o caminho. Os demais, porém, viam perfeitamente na escuridão.
Caminhamos por um corredor apertado, até chegarmos a um ponto
em que Adonijah parou. “É aqui”, ele disse, tocando uma parede, que
empurrou com força. Esta deslocou-se, mas havia apenas rocha sólida na
passagem que abrira-se. Adonijah fez um sinal, e a rocha dissipou-se,
revelando ser uma ilusão. Além da falsa rocha, estendia-se uma caverna.
“Daqui em diante, prosseguirão sozinhos”, o Arcanjo disse. “Desejo-lhes
sorte e sucesso”.
Agradeci e, como líder do grupo, tomei a dianteira. Um a um,
atravessamos a passagem. O caminho era único, e descia abruptamente,
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exigindo calma e cuidado para prosseguirmos. Infelizmente, era apertado
demais para que simplesmente assumíssemos a Forma Angelical e
planássemos até as profundezas.
Cuidadosamente, descemos por aquela caverna, o caminho então se
dividia, mas antes que eu precisasse perguntar, Karina apontou-me a
direção a seguir. Estava um silencio perturbador, mas pelo menos eu não
pressentia nada. Era como se fôssemos os únicos naquele local, e isso me
deixava tranqüilo. Prosseguimos, e fomos descendo mais e mais nas
profundezas. O tempo todo, tudo estava silencioso.
Então, após descermos nas profundezas, chegamos a uma passagem
no chão, onde acabava a caverna. Imediatamente, senti um arrepio na
espinha. Abaixei-me, olhando o pequeno buraco adiante. E, mais de oito
metros abaixo, notei que o chão era pavimentado, com rochas
cuidadosamente lascadas. Não pude precisar as dimensões, mas notei que a
câmara abaixo era gigantesca. Meu coração disparou, então murmurei:
“Chegamos”.
Fora os murmúrios de meus companheiros, estava silencioso. “O
solo está distante e o buraco é pequeno demais para que usemos a Forma
Angelical”, sussurrei. “Precisamos, um de cada vez, saltar, e assumir a
Forma Angelical durante a queda para amortecermos o impacto”.
Lo Wang tocou meu ombro. “Eu serei o arauto. Vou me certificar
de que é seguro descermos”, ele disse. Eu concordei. Wang abaixou-se, na
borda da passagem. Seus olhos, emitindo um leve brilho vermelho, fitaram
o solo abaixo, tão distante. Então, sem temor, jogou-se pela passagem. Em
plena queda, suas asas abriram. O ar movido fez um som fraco, mas que
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ecoou pela vastidão da câmara abaixo. Então, suavemente, Wang tocou o
solo, abaixando-se e retornando à Forma Humana imediatamente.
Ele permaneceu ali, olhando ao redor em silencio, por alguns
instantes. Então, olhou-me, fazendo sinal para que eu descesse. Fechei os
olhos, me concentrando. Precisaria me transformar rápido, ou iria me
machucar na queda. Dando um passo à frente, deixei-me cair, mas
felizmente, a transformação foi imediata. Conforme minhas asas abriam-se
e meu brilho inundava de luz o chão abaixo, pude ver então o lugar aonde
chegávamos: o primeiro nível de Dur Sharrukin.
Conforme os outros desciam, um a um, eu comecei a analisar o
ambiente ao redor. Fora o teto, a nove metros de altura, e o solo, não
haviam outros limites até onde minha visão, mesmo aumentada com meus
poderes, alcançava. Como se a câmara tivesse quilômetros e quilômetros de
extensão. O teto era sustentado por centenas, talvez milhares de colunas,
cada uma com cinco ou mais metros de espessura, e separadas no mínimo
quinze metros umas das outras. Os sons de nossos passos e até de nossa
respiração ecoavam. O ar estava frio. Estávamos totalmente sozinhos
naquela imensidão tenebrosa. Mas a mais impressionante visão, sem
dúvida, era a da quantidade de objetos no chão: armas, ossadas e restos de
armaduras espalhados, demonstrando a magnitude da batalha que ocorrera
aqui há tanto tempo atrás. Entre as ossadas, muitas delas eram totalmente
inumanas.
“Meu Deus do céu!”, Karina murmurou. Sua voz ecoou, forçando
Wang a repreende-la, sussurrando: “Fale baixo! Qualquer som aqui ecoará
centenas de vezes antes que desapareça”. Todos estávamos impressionados
com aquela vastidão. Como tal obra pôde ser erguida nas profundezas da
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Terra? Eu olhei para o mundo dos espíritos, tentando descobrir que
influências espirituais poderiam existir neste lugar. Para minha surpresa, o
reino espiritual estava totalmente vazio, encoberto por uma névoa negra
ainda mais densa que as trevas do mundo físico.
Ansgar, afastando-se um pouco do grupo, abaixou-se para tocar
uma espada no chão. Dezenas de ossadas pequenas e monstruosas de
criaturas aladas estavam próximas. “Não consigo imaginar como seria estar
aqui naquela época”, ele sussurrou para si mesmo.
“Por onde devemos seguir?”, perguntou Al-Malik, enrolando os
panos em sua cabeça também em torno da boca, deixando apenas os olhos
brilhantes expostos. Karina olhou ao redor, ainda boquiaberta com as
dimensões do local. A luz de sua lanterna se perdia na imensidão escura,
sem nunca alcançar uma parede. Então, ela voltou-se para o lado oposto ao
qual o grupo fitava, apontando para o infinito adiante. “Por ali”.
Al-Malik e Ansgar sacaram suas espadas, e Absolon pegou a
espingarda que levava na mochila. Então, prosseguimos, com Karina e
Wang à frente. Mesmo pisando cautelosamente e desviando dos objetos no
chão, o som dos passos ecoava mais e mais. Foi então que vi surgir adiante
uma área que sofreu desmoronamento, como se uma das colunas tivesse
sido derrubada. Conforme nos aproximávamos daquele ponto, pude notar
mais e mais ossadas e restos de armas, bem como partes do solo quebradas
por explosões e colunas rachadas.
De repente, ouvimos um som distante. Minha espinha sentiu um
calafrio repentino e tive a nítida sensação de que algo nos observava.
Paramos, formando um círculo. “O que foi isso?”, perguntou Absolon.
“Passos”, respondeu Fabrizia.
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“Mas não são poucos”, alertou Wang, conforme o som tornava-
se mais forte. “É... um exército marchando”. O som estava se aproximando.
Olhando ao redor, notamos luzes na direção de onde viemos, perfurando o
véu de escuridão. “O que é isso?”, Karina perguntou. “O que está
acontecendo”.
“Olhem ao redor”, disse Al-Malik. Foi então que percebi. As
ossadas e restos no chão tinham desaparecido, a coluna derrubada estava
em pé uma vez mais. E o som de passos também começou a vir da direção
para a qual originalmente seguíamos.
“Estamos cercados?”, indagou ferozmente Ansgar, empunhando
sua arma e iluminando-a com a luz azulada intensa dos Fogos Celestiais.
Imediatamente, ele assumiu a Forma Angelical, liberando suas asas
cortantes.
“Acalmem-se todos!”, pedi em voz alta, conforme as luzes dream
lugar a um exército marchando, empunhando armas, escudos e tochas. Um
exército de Celestiais, alguns em sua Forma Angelical, que então parou a
uns vinte metros de nós. “São imagens! Imagens do passado!”, eu disse,
conforme, vindo da outra dimensão, caminhando sem a ajuda de luz nas
trevas, veio um segundo exército, desta vez de abominações. Mortos que
andam, diabretes e outros seres indescritíveis junto a demônios usando
armaduras grosseiras e empunhando armas com múltiplas lâminas e pontas.
Dois exércitos, um de trevas, um de luz, totalizando dezenas de milhares de
guerreiros, encarando-se nas profundezas da Terra. E, entre eles, estávamos
nós. “Meu Deus”, exclamou Ansgar, mal acreditando em seus olhos.
“Fiquem todos juntos!”, pediu Absolon em voz alta.
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Então, por alguns segundos, houve um silencio mortal, quebrado
apenas pela respiração de meus companheiros. Notei o vapor no ar formado
pela respiração, devido ao frio que fazia. Então, rosnados ecoaram, vindos
do exército demoníaco à nossa frente. E um grito solitário na tropa celeste
foi então seguido por um coro de guerra, gritando, enquanto o exército
celeste avançava, correndo, em direção ao grupo inimigo. A legião
monstruosa urrou, também avançando. E então, luz e trevas chocaram-se
violentamente.
“Juntos! Fiquem juntos!”, repetiu aos gritos Absolon, puxando a
mim e Karina. Um Celestial caía, coberto por dezenas diabretes, cujos
dentes e garras afiadas rasgavam-lhe a pele. Atrás de mim, ouvi um
estrondo, conforme a espada de um Arcanjo cortou um demônio ao meio,
como se sua armadura de metal não oferecesse resistência ao poderoso
golpe. Acima, chamas celestes e infernais cortavam o ar, caindo e
incendiando dezenas ao redor.
“Precisamos avançar!”, gritei. Absolon e Al-Malik ouviram-me, e
começaram a puxar os demais. “Vamos, vamos!”, gritava Absolon. E o
caos ao redor aumentava, conforme ouvíamos trovões ecoarem e o som
interminável de metal contra metal e gritos de dor. Guerreiros celestes e
infernais caíam às dezenas, mas as forças infernais eram menores,
compostas principalmente por mortos-vivos e criaturas infernais menores.
Avançamos. Atrás de nós, ouvi uma explosão e me virei para ver o
que tinha ocorrido. O verde das chamas infernais brilhava, conforme a
coluna rachava-se e caía, derrubando toneladas de terra e rocha sobre
dezenas de combatentes. Então, Al-Malik me puxou. “Venha, Senhor
Nicodemus, não percamos tempo!”.
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Então, conforme avançávamos, mais e mais adentrávamos no
exército demoníaco. Para minha surpresa, alguns grupos de Celestiais,
liderados por Arcanjos, conseguiam penetrar entre as forças adversárias,
atacando-os e avançando sem pausa. No meio de um desses grupos, notei
um jovem cuja face me era estranhamente familiar. Sua espada brilhando
em chamas celestes, lutando lado a lado com outros dois companheiros, ele
avançava com dificuldade, mas pouco a pouco derrubava dezenas de
inimigos. Mas quem era ele? Como seu rosto poderia ser tão familiar para
mim?
Foi então que, adiante, finalmente pudemos ver algo além de
trevas. Vimos pela primeira vez uma parede, cheia de estátuas, faces e
figuras demoníacas esculpidas em sua superfície. E também vi um grande
portão, com pelo menos 7 metros de altura e dez de largura, feito de pura
rocha. “Para o portão! Para o portão!”, eu repetia. Karina, Al-Malik e
Absolon estavam à minha frente, enquanto Fabrizia, Ansgar e Wang
estavam atrás.
Então, o exército demoníaco ficou para trás e restava apenas o
portão à frente. Podíamos ouvir o som da batalha, ocorrendo tão perto de
nós, mas fitávamos apenas o portão e aquele que o guardava. Ali, diante da
passagem, estava um cavaleiro, montado num corcel negro com olhos
flamejantes, vestindo uma armadura de metal tão escuro quanto a noite,
numa mão empunhando um gigantesco escudo com a imagem da face de
um dragão, e na outra levava uma espada longa de quase dois metros de
comprimento. O animal sobre o qual montava relinchava monstruosamente,
e das frestas do elmo negro, o brilho vermelho de seus olhos fitava a
batalha que ocorria diante dele.
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“O cavaleiro do sonho!”, exclamou Ansgar.
Então, notei uma forma tênue ao redor do cavaleiro, uma forma
gasosa e serpentina, imensa, cuja ponta então se moveu como se fosse uma
boca, sussurrando nos ouvidos do cavaleiro. Os outros pareciam não poder
vê-la, mas então todos ouvimos o que ela sussurrava. E sua voz era como
um trovão que fazia nossos corações arderem, como se fossem penetrados
por lanças. “Khral-Harshek”, a voz disse, “eu preciso de você em meu
aposento”. O cavaleiro imediatamente fez sua montaria dar meia-volta, e
então partiu para a escuridão além dos portões. Logo em seguida, tudo
ficou silencioso.
Olhamos ao redor. Estávamos sozinhos. Atrás de nós, apenas os
espólios da batalha. À nossa frente, o portão ainda estava lá, aberto,
esperando por nossa passagem. Estávamos ofegantes, todos de olhos
arregalados, sentindo os corações apertados por causa daquela voz. Ansgar
retornou ao Aspecto Humano e me olhou. “Meu Deus, Nicodemus. Eu
jamais pude imaginar algo assim”.
Os outros ainda se recuperavam da experiência, quando eu ordenei
em voz alta: “Vamos continuar, rápido! O portão nos levará ao segundo
nível de Dur Sharrukin!”. Minha voz ecoou e, mais uma vez, reparei no
vapor que se formou devido à minha respiração. Estava frio... Frio demais.
“Calma, Philipe”, pediu Karina, “precisamos de mais tempo”. Os
demais concordaram.
“Vocês não entendem, não é?”, eu retruquei em voz alta,
claramente demonstrando meu nervosismo. “Memórias não surgem assim.
Não é este lugar que as está gerando! Sintam o frio! Não percebem?”. Eles
me olharam sem entender, com exceção de Wang e Al-Malik, que
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demonstraram compreender o que eu queria dizer. Então, resolvi
esclarecer tudo: “Imagens do passado não surgem do nada. Este lugar é
assombrado. Vamos, rápido!”.
Eles imediatamente vieram comigo, apressando o passo. Então,
conforme eu atravessei aquele grande portão, ouvimos ecoar o som de
cascos batendo na rocha, num galopar lento e distante. Todos olharam para
a escuridão pela qual havíamos passado e, mais uma vez, não conseguimos
ver nada além de trevas. Mas em seguida ecoou um relinchar, certamente
emitido por um cavalo infernal.
“Estes sons não são ecos do passado”, murmurou Al-Malik. “Que
Alá nos proteja”.
“Vamos logo, por favor”, eu retruquei. Então, juntos continuamos
além do portão, rumo às regiões mais profundas de Dur Sharrukin.
76
Capítulo 6: O Fantasma de Leviathan
O som de nossos passos ecoava conforme descíamos aquelas
gigantescas escadarias em espiral, de degraus grandes o suficiente para que
mesmo criaturas imensas pudessem subi-las ou desce-las. Os sinais de
batalha desapareceram. “Os Infernais não seriam tolos de lutar aqui”, disse
Lo Wang, fitando a escuridão abaixo, para a qual nos dirigíamos, “pois
quem quer que viesse por cima teria vantagem na batalha”.
Devíamos estar descendo aquelas escadas há uns cinco minutos. O
silêncio só era quebrado por nossos passos e por um comentário ou outro.
O ar estava estagnado, incrivelmente frio. Nossa respiração emitia nuvens
de vapor, que se dissipavam rapidamente. “O que acha que há ali
embaixo?”, perguntou-me Fabrizia.
“O segundo nível de Dur Sharrukin, como os Veritas nos
disseram”, respondi.
“Este lugar me é inconcebível. Jamais senti tanto medo em toda a
minha vida”, confessou Ansgar.
“Pensei que já estivesse acostumado a situações assim. É um
guerreiro, não é?”, perguntou Fabrizia.
“Não me entenda mal”, respondeu o ruivo. “Lutei em muitas
batalhas, tanto em vida como na morte. Defendi o Éden na Terceira e na
Quarta Guerras. Batalhei contra muitos na Terra e nos reinos dos mortos.
Mas a batalha que vi agora há pouco... foi diferente de tudo o que já vi”.
“Também eu lutei na Quarta Guerra. E realmente foi diferente. Lá,
lutávamos para proteger nosso lar. Mas aqui, estamos no lar do inimigo.
Avançar é como... buscar a própria morte. Por isso oro para que Alá esteja
conosco, mesmo nessa escuridão esquecida pelo Criador”, disse Al-Malik.
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“Lutou nas últimas duas Grandes Guerras?”, perguntou Karina a
Ansgar, com bastante interesse. “Tenho um amigo que também lutou. Seu
nome é Samuel. Qual é a sua história, Armin?”.
Houve um breve silêncio antes que Ansgar respondesse. Ele fitou
Karina, notou o interesse em seus olhos verdes, então respondeu: “Em vida,
eu servi o Imperador Henry V do Sacro Império Romano Germânico. Eu
morri lutando na Saxônia, por volta de nove séculos atrás. Fui um homem
leal a meu rei e minhas obrigações, e ainda me recordo dos rostos de minha
família, com a qual não tive mais contato desde então”.
“Eles não renasceram no Éden?”, perguntou Karina, tocando o
ombro de Ansgar.
“Sim, minha mulher e um de meus filhos sim. O outro, jamais, mas
pelo que soube, ele jamais foi um homem correto. Mas eu não tive a
coragem de encarar minha família. Parti para estudar sozinho os caminhos
da guerra”.
“Não entendo”, Karina murmurou. “O que leva alguém a querer
lutar assim?”.
“O que a leva a querer viajar, Karina?”, perguntei, interrompendo a
conversa.
“Não sei. É o que gosto de fazer. Quero me sentir livre, conhecer
pessoas e lugares, aprender cada dia mais, acho”, ela respondeu.
Continuei a argúi-la: “Pois cada pessoa tem um desejo. Você julga
que um guerreiro quer apenas ser forte e lutar, mas nunca estudou as
filosofias da guerra, não é?”.
“Tem razão”, Karina admitiu.
“Ser um guerreiro é mais do que participar de batalhas”, eu disse.
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“Acha que luto para me sentir forte, para provar minhas
habilidades?”, perguntou Ansgar a Karina. Antes que ela pudesse
responder, o Venator prosseguiu: “Não. Eu luto pelas pessoas, não por
mim. Quando morri, descobri que minha vida tinha sido vazia,
impulsionada por objetivos políticos e por uma moral duvidosa. Como
homem, fui um nobre sanguinário, que achava que podia matar em nome de
Cristo e de meu Rei. Eu justificava cada ato bárbaro que cometi me
convencendo de que seguia a vontade de Deus. E depois, ao renascer, era
como ver o quanto de minha vida desperdicei. Tudo o que eu sabia fazer
era lutar e nada mais. Então, meu Mentor me ensinou o que é realmente ser
um guerreiro”.
“Esta história... realmente lembra a de Samuel”, murmurou Karina.
Sacando sua espada e fitando-a, Ansgar parou. “Há os sábios que
ensinam caminhos melhores e os corajosos que ajudam diretamente as
pessoas, mas também há inimigos que pensam apenas em violência, morte
e dor. Eu existo para proteger, para poder servir, com a minha vida e a
minha espada, àqueles que não podem se defender sozinhos. É isso o que
sou, o que tenho de fazer. É isso que significa ser um guerreiro”.
“Eu também compreendo bem o que é ser guerreiro”, murmurou
Wang, que caminhava à frente do grupo. “É querer morrer pelos outros”.
“E é por isso que nada me assustou mais do que o que vi ali em
cima”, murmurou Ansgar, então elevando seu tom de voz. “Eles lutavam
desesperadamente, sabendo que provavelmente não retornariam para o
Paraíso intactos. Não haviam inocentes lá, e à frente não havia nada a não
ser a chance de morrer. É o extremo da ideologia de um guerreiro. Eu não
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tenho certeza se teria a coragem de prosseguir, se estivesse no meio
daqueles guerreiros. Por isso tive medo”.
“Medo de falhar”, disse Al-Malik. “Todos nós temos esse medo.
Não sou guerreiro, mas porto uma espada, e conheço os perigos de
empunha-la. Se soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde,
teríamos a coragem de puxar nossas espadas e avançar, sem medo da
morte?”.
“Acho que eu não teria coragem de enfrentar algo maior do que eu.
Acho que não sirvo para guerreiro”, Absolon murmurou para si mesmo.
“Espero não ter de fazer esta escolha”, sussurrou Ansgar. Al-Malik
concordou, mas Wang apenas permaneceu calado.
“Entendi”, disse Karina. “Me desculpe por questionar tanto”.
“Apenas quem não questiona deve pedir desculpas, pois quem não
busca respostas jamais irá tê-las”, eu disse. “É um velho provérbio entre os
Perquiratores”.
Foi então que deparamos com o segundo portão, tão grande quanto
o primeiro, indicando o fim da grande escadaria. “Finalmente”, murmurou
Absolon.
E, quando, atravessamos o portão, nos deparamos com o que nos
esperava. “É como os Veritas disseram”, eu disse aos demais, ao fitar um
salão do qual partiam seis grandes corredores, cada um com cerca de três
metros de altura e dois de largura. “Daqui em diante, há um número
inimaginável de corredores, formando um imenso labirinto”.
Wang, aproximando-se de um dos corredores e analisando-o,
acrescentou: “Estes são corredores da morte. No primeiro nível, os
infernais prepararam uma batalha para enfraquecer as forças celestes. Mas
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aqui, eles quiseram dividi-las. Os corredores são pequenos demais em
largura para ocorrerem grandes batalhas, e há buracos na parte superior das
paredes, que levam a pequenos túneis nos quais criaturas infernais
poderiam se esconder para atacar de surpresa os grupos separados de
Celestiais. Creio que há armadilhas em toda parte neste labirinto”.
“Acha que essas armadilhas ainda podem funcionar?”, Fabrizia
perguntou, aproximando-se de Wang.
“Não sei. A ruiva pode nos guiar, mas eu precisarei tomar a
dianteira do grupo, para tentar encontrar sinais de armadilhas”, disse Wang.
Karina também se aproximou do Kage, prontificando-se a guiar o grupo.
“Qual dos corredores?”, perguntei a Karina.
“Este”, ela disse, apontando o segundo corredor, da esquerda para a
direita. Wang foi à frente, Karina e Fabrizia em seguida, e os demais logo
após. Absolon apressou o passo para ficar próximo às garotas.
Íamos a passos lentos, pois Wang precisava verificar o caminho.
Novamente, os sinais de batalha começavam a surgir. Armas caídas,
ossadas, corpos há muito apodrecidos empalados nas paredes ou em lanças
que saltavam do chão, paredes manchadas com sangue há muito
ressequido. Nenhuma das armadilhas parecia funcionar mais. Conforme
chegávamos a bifurcações ou cruzamentos entre corredores, Karina
apontava o caminho a seguir.
Eu me mantinha atento, tanto ao mundo físico quanto ao mundo
dos espíritos. Ambos mantinham-se extremamente silenciosos. O frio
continuava intenso. Por mais que tentasse, não sentia nenhuma presença
além de nossas próprias. Por mais de uma hora caminhamos naquela
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escuridão, sempre acompanhados por nada mais do que restos de
batalhas sangrentas espalhados pelo chão ou presos por lanças às paredes.
Foi então que Wang parou repentinamente. “Silêncio!”, ele pediu,
sussurrando. Todos paramos. Sem os sons de nossos passos, o ambiente
tornou-se absolutamente silencioso. Esperamos, por quase um minuto, sem
nada ouvir. Então, perguntei, em voz baixa: “O que houve, Wang?”.
“Pensei ter visto algo”, ele respondeu.
“O quê?”, perguntei.
“Algo serpentino, movendo-se na escuridão no salão adiante”,
Wang disse. Seu tom de voz parecia estranhamente assustado para alguém
normalmente tão frio. Fitei o salão e não pude ver nada anormal no mesmo.
Foi quando ouvi o som de metal deslizar rapidamente. Virei-me e vi Al-
Malik, o último do grupo, removendo sua cimitarra e olhando assustado
para trás. “Não ouviram isso?”, o Malaki perguntou.
“Não”, disse Ansgar. “O que você ouviu?”.
“Era como se algo respirasse logo atrás de nós. Pude até mesmo
sentir um bafo quente tocar minha nuca”, Al-Malik respondeu. “Há algo
aqui, conosco”.
Foi então que minha espinha tremeu. Karina cruzou os braços,
como se quisesse se aquecer. “É impressão minha, ou está mais frio?”, ela
disse.
“Não é impressão”, eu disse, olhando ao redor, podendo sentir
claramente que algo que nos observava. Permanecemos ali parados naquele
corredor por mais uns instante, todos assustados. Então, olhando para trás,
pude também notar algo serpentino, como uma cauda, mover-se na
escuridão, logo além de onde minha visão alcançava. Sussurrei, ofegante:
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“Vamos em frente”. Quando demos os primeiros passos, porém,
ouvimos um rosnado baixo e calmo ecoar, vindo aparentemente de toda
parte, fazendo com que poeira caísse do teto e das paredes.
“Oh, meu Deus!”, Karina exclamou, mostrando-se extremamente
assustada.
“Eu não sei quanto a vocês”, disse Absolon, também assustado,
“mas eu voto por correr”.
Ansgar puxou Al-Malik para trás de si, ficando por último na fila.
Empunhando sua espada, o Venator então ordenou, ainda que disfarçando
muito mal o seu medo: “Vão em frente. Eu vou logo em seguida!”. Foi o
que fizemos. Corremos através do corredor, e o Venator nos seguiu,
mantendo-se sempre por último. Mas, quando apressamos o passo, ouvimos
então um rugido ecoar pelos corredores, fazendo tudo tremer: o urro do
Leviathan. Karina gritou de susto, mas não parou de correr. Nenhum de nós
parou. Sentimos passos pesados nos seguir, mas por mais que eu olhasse
para trás, nada via, a não ser formas indistintas logo além de onde o olho
alcança. Então, mesmo tentando controlar-me, acabo liberando um apelo
desesperado: “Corram! Por favor, corram e não parem!”.
Então, deixando o corredor, chegamos a um grande salão. Assim
que entrou no local, porém, Al-Malik tropeçou em uma peça de armadura
caída no chão, tombando. “Al-Malik!”, gritou Absolon, que parou e voltou
para ajuda-lo. Ao ouvir o grito do Princeps, eu mesmo parei e me virei. Foi
quando vi Ansgar chegar ao salão que fitei aquilo que nos perseguia...
Nada.
Os demais pararam, quando notaram que eu, Absolon, Al-Malik e
Ansgar ficamos para trás. Todos, ofegantes e assustados, olhávamos ao
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redor, tentando entender o que acontecera. Quase chorando, Karina
perguntou: “O que foi isso?”.
“Uma ilusão, eu acho”, respondeu Wang.
“Não”, eu discordei, “isso é bem real”.
Foi ouvimos uma respiração pesada ecoar pelos túneis que
chegavam ao salão no qual nos encontrávamos. Um rosnado seguiu-se. A
sala era vasta, de formato quadricular, com talvez dez ou doze metros de
comprimento em cada uma das quatro paredes. Cada parede possuía uma
única passagem, que levava a corredores como aquele pelo qual chegamos.
“Por onde iremos agora?”, perguntou Wang, tentando acalmar-se.
Karina apontou a passagem. “Pela direita”, disse. Quando fitei o
corredor, notei novamente algo indistinto passar pela escuridão densa numa
outra sala adiante. Algo grande, descomunal, maior do que qualquer coisa
que caberia nesses túneis e corredores. “Ele está lá”, eu disse. Um rosnado
ecoou pela passagem.
“O que é isso?”, disse, tremendo, Absolon.
“Um fantasma”, respondeu Al-Malik.
“O fantasma de Leviathan”, completei.
“Demônios não deixam fantasmas ao serem Obliterados”, disse Lo
Wang. “E reencarnam caso não tenham a alma consumida. Não pode ser
Leviathan”.
Então, tudo ficou silencioso. “Parece ter sumido”, resmungou
Fabrizia.
“Não”, murmurei, ainda sentindo que estava sendo observado.
Senti um novo calafrio e fiquei paralisado de medo. “Ele está aqui”, disse,
vendo no mundo espiritual uma forma indistinta, gasosa, percorrer o salão
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em que estávamos, seus olhos provavelmente fitando minhas costas.
Pude senti seu respirar quente. “CORRAM!”, gritei em desespero.
Todos começaram a correr, em direção ao túnel que Karina
indicara. Eu mesmo tentei dar todo o impulso possível às minhas pernas
que mal me obedecia. Foi quando novamente o urro ecoou, vindo de
poucos centímetros atrás de mim. Enquanto corria, nada podia tirar e minha
mente a idéia de que iria morrer ali. Mas se eu precisasse morrer, então não
deixaria que meus companheiros ficassem à mercê daquele espírito.
Enquanto sentia aquela essência negra me tocar, continuei a correr,
e busquei me concentrar. O desespero atrapalhava, mas eu precisava tentar,
canalizando as energias divinas que percorriam meu corpo. Então, parando
repentinamente, liberei todo o poder que pude acumular, e virei-me para
fitar o espírito. A forma gasosa parou repentinamente, diante da barreira
espiritual que ergui. Pude sentir sua ferocidade, enquanto rugia e rosnava,
forçando a barreira. Eu tentava vence-lo com minha força de vontade, mas
era como se eu tentasse parar uma locomotiva com minhas próprias mãos.
Foi quando senti uma mão tocar minhas costas, agarrando-me pelo
sobretudo, e puxando-me com força. Era Wang. “Vamos!”. Continuamos a
correr, até chegarmos à sala adiante, desta vez um salão redondo, com dez
passagens. Karina já indicava o caminho, gritando: “Por aqui, rápido!”.
Ansgar esperava ao lado dela, para protege-la. Os outros já prosseguiam na
frente, correndo.
Pegamos o corredor que Karina indicara. Mas eu notei que o
espírito já não estava mais no corredor anterior. Fora nossas respirações
desesperadas e nossos passos apressados, novamente o silêncio reinava
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naqueles túneis. Foi quando chegamos a mais um salão, mas este era
diferente.
Desta vez, este salão levava a outros, os quais pareciam
alojamentos. Armas penduradas em paredes, círculos ritualísticos, camas,
tochas agora apagadas... Aparentemente, aqui seriam os aposentos dos
magos negros e Infernalistas a serviço de Leviathan. Segundo os velhos
tomos, esses feiticeiros ajudaram a unir Terra e Inferno, e a passagem entre
os reinos estaria nas profundezas de Dur Sharrukin. No fundo, eu queria
investigar mais aqueles aposentos, mas Karina, quase tomada pelo
desespero, insistia para que prosseguíssemos. Tomamos então um novo
corredor, de volta ao labirinto. Voltamos a andar com mais cuidado, mas
nenhum de nós estava calmo ou tranqüilo.
Este novo corredor era excepcionalmente longo. Quando estávamos
nos aproximando de mais um salão, porém, ouvimos novamente os
rosnados ecoando do caminho adiante. “Estamos perdidos”, murmurou
Ansgar. Novamente, senti que estávamos sendo observados.
“Corram”, eu murmurei, ofegante. “Corram sem olhar, sem
hesitar”.
Ansgar questionou-me: “O quê? Você enlouqueceu, Nicodemus?”.
“Confiem em mim”, eu disse, tomando a dianteira, mesmo com
todo o medo que sentia. Eu suava frio, como se ainda fosse mortal. Se
pensar bem, eu de fato contemplava a morte naquele momento. Então,
corri. Os demais também apressaram o passo, mesmo hesitando. O urro
seguinte ecoou com força, fazendo as paredes tremerem. Assim que
adentrei aquele salão, parei, gritando aos demais: “Vão, vão!”. Eles
continuaram correndo. Karina gritou para pegarem a primeira passagem à
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esquerda. Mesmo não podendo ver, senti os olhos de Leviathan me
encararem e pude perceber sua mandíbula se abrindo.
Os demais continuaram correr, mas Absolon, o último da fila,
parou assim que chegou à entrada do próximo corredor. “Nicodemus!”, ele
gritou. Eu tentei correr, mas então parei. Absolon gritou por mim
novamente, esperando que eu corresse em direção a ele. Ao invés disso,
senti a mandíbula de Leviathan fechar-se ao meu redor. Por um instante,
senti uma dor agonizante e perdi minhas forças, caindo no chão. Em
seguida, tudo ficou silencioso...
Ouvi passos apressados. Absolon corria, não para fugir, mas em
minha direção. Pude senti-lo tocar meu ombro. Eu tremia de medo, sentia
muito frio, mas tudo estava silencioso. Ouvi um rosnado distante, ecoando
pelos túneis pelos quais viemos. Então, apoiei minhas mãos no solo frio de
pedra e me levantei, com a ajuda de Absolon. “Senhor Nicodemus, você
está bem?”, ele repetia sem parar.
Assim que me levantei, fitei o túnel adiante. “Estou bem, Achille”,
eu respondi a Absolon, “muito obrigado. Você é mais corajoso que parece”.
“Eu não sou”, ele disse, repetindo logo em seguida: “não sou”.
Então, Absolon gritou para os outros: “Estamos bem! Esperem por nós!”.
Eu ainda estava meio zonzo, meu corpo ainda doía devido à experiência e,
por isso, precisei da ajuda de Absolon para prosseguir.
Os demais nos esperavam no salão seguinte. Assim que nos viram,
correram em nossa direção. O urro do Leviathan ecoou forte, emitido de
corredores distantes, mas ainda assim fez com que poeira se levantasse. “O
que aconteceu?”, perguntou Al-Malik. Um pouco melhor, dispensei a ajuda
de Absolon e disse: “Vamos prosseguir, vou explicar no caminho”.
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E assim prosseguimos, constantemente ouvindo os rosnados,
passos e uivos distantes. E pelo caminho, expliquei aquilo que pude
concluir:
“Como Wang disse, um demônio... ou um Celestial... ou é
Obliterado ou reencarna. Isso é verdade, não há o que discutir. Porém,
Leviathan não é um caso típico”.
“Por ser poderoso demais?”, perguntou Wang.
“Não. Não notaram que este espírito não possui inteligência? Esta
coisa é puro instinto. Nós, Perquiratores, graças a Grande Veritatis, somos
estudiosos do reino dos espíritos. A alma contém todas as nossas
essências... Inteligência, instinto, poder, vontade, moral e até nossos
pensamentos mais sombrios”.
“Aonde quer chegar?”, perguntou Al-Malik.
“Por milênios, pensamos que Gabriel Obliterou Leviathan. Mas
agora encontramos parte de sua essência no Éden. E encontramos este
fantasma. Isto não é uma alma”.
“E o que é?”, o Malaki questionou novamente.
“Um fragmento. No passado, a consciência de Leviathan vigiou
esses túneis. Após a morte, este fragmento continuou a percorrer os túneis
que guardava. E também são essas memórias de Leviathan que se
manifestaram na forma das visões que tivemos antes”.
Absolon arriscou então uma teoria: “Quer dizer que a alma de
Leviathan se fragmentou em duas partes? Uma está em Libraria, a outra
aqui? E o que acontece se juntarmos as duas?”.
“Eu não sei. As respostas estão adiante. Precisamos continuar...”.
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Absolon, porém, me interrompeu: “Mas como você sobreviveu
ao fantasma?”.
“Ele tentou me possuir, mas, por eu ser Celestial, pude resistir.
Essa criatura não tem inteligência, apenas segue instintivamente o
propósito de vigiar estes túneis. Ele não tem poder real, é apenas um
fragmento”.
“Foi loucura você se sacrificar daquela forma”, Karina disse.
“Eu sentia que devia fazer aquilo. Como o Arcanjo deste grupo, era
meu dever”, respondi. “Vamos continuar, por favor”.
E assim, por algum tempo continuamos a percorrer aquele
labirinto. Urros e rosnados nos acompanhavam à distância, e às vezes eu
podia sentir o olhar de Leviathan nos focalizando, deixando nossos nervos
à flor da pele. Após muito caminhar, no frio e na escuridão, a lanterna de
Karina apontou para um novo grande portão. À frente, uma nova escadaria.
“Finalmente”, resmungou Ansgar, “eu ficaria louco se
continuássemos a caminhar por estes túneis por mais tempo. Vamos descer,
por favor”. Notava-se a ansiedade e o medo em sua voz.
Caminhamos em direção às escadas. Os últimos rosnados pareciam
cada vez mais distantes, sendo deixados para trás naquele labirinto. Porém,
quando começamos a descer as escadas, Wang parou e olhou para trás.
“O que foi, Wang?”, perguntou Al-Malik.
“Silêncio! Ouçam isso”, ele respondeu.
Ficamos em silêncio. Então, além dos rosnados distantes, pudemos
discernir um outro som ecoando. Baixo, também distante, mas contínuo. O
som de cascos de cavalo batendo em rocha.
“O que é isso?”, perguntou Ansgar.
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“Há mais alguém aqui além de nós”, respondeu Wang.
“Devemos ficar para descobrir o que é?”, Ansgar novamente
questionou.
“Não”, eu disse. “Vamos continuar”.
Ansgar não escondia o medo. Concordou imediatamente comigo.
Então, prosseguimos, descendo as novas escadarias, que também se
dispunham em espiral, com grandes degraus. Os sinais de batalha pareciam
desaparecer. Passo a passo, continuamos rumo ao centro de Dur Sharrukin,
onde provavelmente encontraríamos o local em que Gabriel e Leviathan
travaram uma batalha de vida ou morte, dois mil anos atrás.
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Capítulo 7: Khral-Harshek
“O próximo portão está logo adiante”, murmurou Wang, cuja voz
ecoou pelas escadarias. Ele ia à frente do grupo, seguido de perto por
Absolon e Karina. Eu e Fabrizia permanecíamos no meio, e Al-Malik e
Ansgar guardavam nossa retaguarda. Finalmente, após vários minutos
descendo aquelas escadarias, alcançávamos o terceiro e último nível de Dur
Sharrukin. As respostas que buscávamos certamente estavam adiante.
“Continua frio”, murmurou Karina, soprando as próprias mãos para
ver o vapor de água formando-se. “Acha que o fantasma de Leviathan
ainda está próximo, Philipe?”.
“A essência de Leviathan impregna toda essa fortaleza, Karina.
Não importa onde estejamos, ele estará perto. Porém, em cada nível, ele
parece manifestar-se de forma diferente”.
“E quanto aos sons de cavalo?”, perguntou Ansgar, sempre atento
caso algo venha descendo as escadas atrás de nós.
“Eu ainda não sei. Mas tanto no sonho quanto nas memórias deste
lugar, vimos um cavaleiro”, respondi.
“Seria ele, depois de mais de dois mil anos?”, Al-Malik
resmungou. “Não creio nisto”.
“Ainda é cedo demais para concluirmos qualquer coisa, mas você
tem de concordar que o cavaleiro dos sonhos e das visões é nossa única
pista”, argumentei.
“Silêncio”, pediu Wang, enquanto forçava o grande portão à frente,
o primeiro que encontramos fechado. Ansgar e Al-Malik dispuseram-se a
ajuda-lo a empurrar as pesadas portas de pedra. Lentamente, o portão se
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abriu, fazendo um forte barulho que ecoou pela imensidão de Dur
Sharrukin. Então, eu fitei a câmara adiante, e nada consegui ver.
Trevas. Embora uma treva sobrenatural percorra toda Dur
Sharrukin, limitando o alcance de nossa visão mesmo com a ajuda de
Poderes Celestiais, a câmara adiante era impregnada por uma essência
negra. O ar estava ainda mais frio e mesmo as luzes das lanternas de Karina
e Absolon pouco conseguiam penetrar naquele ambiente negro.
“Que lugar é esse?”, murmurou Fabrizia.
Wang, à frente, deu alguns passos na escuridão. “Não há um piso
ou paredes trabalhados aqui. É uma caverna, pura e simplesmente. Até o
chão é irregular”.
“Não se afaste, Wang”, pediu Karina. “Ou vamos nos perder uns
dos outros”.
Wang retornou. “Se o segundo nível foi feito para dividir o exército
celeste em muitos grupos, esta passagem tenebrosa foi feita para dividir os
grupos”.
“Talvez”, eu disse. “Ansgar, incendeie sua espada local com Fogo
Celestial”. Assim ele o fez e, para a surpresa de todos, a luz das chamas
celestes espantava, ainda que de forma limitada, a escuridão. “Como
pensei. A energia celeste nega a escuridão infernal”, murmurei, então
erguendo a voz: “Karina, Ansgar e Wang, vocês irão à frente. Os demais
ficam juntos de mim e dão-se as mãos. Nos guiaremos pela luz de Ansgar”.
“Boa idéia”, murmurou Al-Malik.
E assim, começamos a percorrer aquela caverna de paredes
irregulares e grandes dimensões. Prosseguimos lentamente, com cuidado
para não tropeçarmos nos diversos obstáculos pelo caminho. Após um ou
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dois minutos percorrendo aquelas câmaras, Karina assustou-se com algo.
Ansgar então disse em voz alta: “Venham aqui! Encontramos algo”.
Aproximamo-nos de nossos companheiros e vi Wang abaixado, analisando
uma ossada no chão. Ossos de pessoas e animais.
“Este seria um local de sacrifícios?”, perguntou Al-Malik.
“Não, as ossadas não estão completas”, disse Wang.
“Na verdade, acho que esses são os ossos do guardião deste local”,
eu interrompi.
Karina, assustada, perguntou: “Como assim, Philipe?”.
“Eles usaram restos humanos e animais para construir mortos-
vivos. Veja como as ossadas se completam, formando criaturas com
múltiplas cabeças e membros. Já ouvi falar sobre essas... coisas... mas
nunca tinha visto algo assim. Golens de Carne”.
“Golens de Carne?”, perguntou Absolon.
“Sim. Agora sua carne já desapareceu, mas são mortos-vivos. São
incrivelmente fortes, dizem. Acredito que deviam haver dezenas, talvez
centenas deles defendendo essas cavernas”.
“Provavelmente, serviam para atrasar e ferir ainda mais os
guerreiros que chegavam a este local”, disse Wang.
“Pode ainda haver mais dessas abominações aqui?”, perguntou,
assustada, Fabrizia.
“Não”, respondi. “Após a guerra, Dur Sharrukin foi expurgado.
Qualquer demônio ou ser infernal que não tenha fugido foi destruído.
Proteções foram criadas para impedir que voltassem. Pelo menos, é o que
os livros contam”.
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Ouvimos então um relinchar distante, vindo das escadas que há
algum tempo tínhamos deixado para trás. “Vamos sair logo daqui”, pediu
Karina. Todos concordaram, então prosseguimos. Após mais alguns
minutos caminhando naquela densa escuridão, notamos um novo portão à
frente, desta vez aberto. “É ali”, avisou Karina. Além do portão, as trevas
densas dissipavam, de forma que pudemos apressar o passo para deixar
aquelas câmaras escuras.
Assim que atravessamos o segundo portão, chegamos a um novo
salão, novamente com piso, teto e paredes trabalhados. O ambiente era
praticamente idêntico ao primeiro nível de Dur Sharrukin: um salão
gigantesco, suspenso por grandes colunas, e de dimensões tão grandes que
não podíamos ver seus limites. “Basta seguirmos em frente”, disse Karina.
Então, prosseguimos, olhando o ambiente tão familiar. “Porque
repetir a estrutura do primeiro nível?”, perguntou Absolon, enquanto
analisava o ambiente ao redor. Novamente, notávamos as marcas de
batalha, desta vez muito mais violentas: chão rachado, armaduras caídas,
ossadas, muralhas desabadas...
“Para que aqui pudesse ocorrer uma grande batalha”, sussurrou
Wang. “Não entendeu? O primeiro nível era uma distração, para forçar os
Celestiais a usarem suas energias. O segundo, para separa-los e feri-los. A
câmara negra, para que os que chegassem a esse nível demorassem a
alcançar as tropas que estivessem mais avançadas. Tenho certeza de que
aqui, esperando pelos Celestiais cansados e divididos, estava o verdadeiro
exército infernal”.
“Então, aqui ocorreu a verdadeira batalha”, murmurou Ansgar.
94
Foi quando ouvimos um som forte ecoar. O mesmo som que foi
emitido pelo primeiro portão ao ser aberto. Olhamos para trás, e vimos o
portão pelo qual acabáramos de passar sendo aberto. “Mas o portão não
estava aberto quando chegamos?”, perguntou Karina.
“Estamos vendo o passado novamente”, disse Al-Malik.
Assim que o portão se abriu, adentraram vários Celestiais, todos
sujos de sangue e suor, com as faces cansadas, mostrando todo o medo e,
ainda assim, toda a determinação de alcançar o centro de Dur Sharrukin.
Era um grupo de quinze ou vinte, à sua frente estava o Arcanjo que vi
antes, de face incrivelmente familiar, empunhando uma espada que
brilhava com chamas celestiais. Lentamente, mesmo cheios de temores,
eles avançaram. Aos poucos, outros Celestiais, em duplas ou trios,
conseguiam atravessar a câmara escura e se juntavam ao grupo que tomava
a dianteira.
“Vamos acompanha-los”, gritei aos meus companheiros, referindo-
me aos Celestiais que avançavam. Eles avançavam, sempre
cautelosamente, todos armados e vestindo couraças que lhes protegiam o
peito. Alguns portavam elmos. Todos, sem exceção, tinham feridas ou
marcas de sangue no corpo. Então, mal o portão de entrada sumiu nas
trevas atrás de nós, a pequena tropa de Celestiais, na maioria Arcanjos,
parou. Na escuridão além, via-se acender chamas demoníacas, tanto o Fogo
Negro como o Infernal. E então, começou a ecoar o som de um exército
marchando. Várias centenas, talvez milhares marchando, gritando e
urrando, em direção a uma tropa que não tinha nem cinqüenta guerreiros
celestiais.
95
Então, das trevas adiante, começaram a surgir os demônios.
Alguns confiavam em sua armadura e armas naturais, enquanto outros se
protegiam com metal e espadas. Alguns montavam grandes dragões, outros
abriam suas asas de couro para voar por sobre o exército demoníaco. As
primeiras chamas negras saltavam do exército inimigo, explodindo nas
proximidades de onde o pequeno grupo de Celestiais estava. Mas era como
se um mar de demônios avançasse.
O líder dos Celestiais abriu suas asas, grandes e metálicas,
levemente enegrecidas, mas ainda refletindo a poderosa luz azul que seu
corpo emitia. “Preparem-se! Protejam-se!”, ele gritou, batendo sua espada
no chão e criando uma grande muralha de chamas celestiais à frente. Ao
mesmo tempo, um outro Arcanjo do grupo emitiu um grito, e o chão
tremeu. A rocha sob o solo ergueu-se, criando um muro por trás das
chamas celestes. Tal muro, com cerca de quatro metros de altura e ligando
duas colunas, forçaria os Infernais a darem a volta para atacar pelo chão.
Erguendo-se no ar, um terceiro Arcanjo empunhou sua espada para lutar
contra as dezenas de demônios que vinham voando. Os demais Celestiais
do grupo começaram a preparar-se, empunhando armas, erguendo barreiras
de chamas celestiais, concentrando suas energias para ganharem força e
velocidade, ou simplesmente orando. E, então, Céu e Inferno chocaram-se.
O Arcanjo líder lutava bravamente, usando tanto espada quanto
asas para atacar seus oponentes e mantê-los à distância. Demônios menores
foram os primeiros a chegar. Podíamos ver demônios serem decapitados,
mas também Celestiais caíam, um a um, diante da horda demoníaca. Karina
gritou ao ver um demônio gigantesco derrubar um Arcanjo, arrancando-lhe
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a cabeça. “Recuem!”, repetia aos gritos o líder. As tropas Celestiais
começavam a recuar, incapazes de segurar um exército tão numeroso.
Da escuridão atrás, de repente, mais Celestiais começaram a
avançar, fazendo Fogo Celestial explodir e o chão se rachar e se abrir. Os
dragões desferiam golpes com as caudas e patas que incapacitavam dezenas
de ambos os lados sem distinção. Relâmpagos, fogo e luz eram usados para
tentar conter o avanço dos demônios, e mais e mais Celestiais juntavam-se
à batalha, conforme chegavam ao grande salão. Porém, conforme mais
chegavam, mais Celestiais caíam. Em maior número, os Infernais
avançavam, como se cada baixa entre os demônios de nada significasse.
Foi então que senti uma força como nunca senti antes, mesmo
estando apenas observando o passado. Pude sentir uma aura majestosa, de
coragem e força, contagiando a cada Celestial ali presente. Então, veio uma
luz, tão forte e majestosa que removeu toda a escuridão de Dur Sharrukin,
iluminando todo o campo de batalha. Gritos de guerra ecoaram, conforme
centenas de Celestiais agora se juntavam à batalha, tornando-a mais igual.
Mas nada se comparava à visão daquele que flutuava sobre o exército
Celestial. Brilhando dourado como um sol, estendendo suas faixas de luz
por dezenas de metros, o Arcanjo Miguel fitava a horda infernal adiante.
Em sua mão direita, uma espada de fogo. Em seu corpo, uma armadura
dourada, que ampliava ainda mais o brilho de seu corpo.
E bastou aquela presença para que os rumos da batalha fossem
mudados. Os infernais começavam a recuar, conforme centenas de
Arcanjos derrotavam suas forças. Foi então que vimos duas figuras aladas
sobrevoarem o campo de batalha, passando por Miguel e prosseguindo.
Alguns Celestiais, incluindo o líder do pequeno grupo que resistiu
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bravamente ao exército Infernal, também ergueram vôo para
acompanhar aqueles dois Primi, um de grandes asas metálicas e prateadas,
outro com asas cinzentas: Gabriel e Veritatis.
Então, a visão terminou.
Olhávamos ao redor, tudo estava silencioso novamente. À frente,
víamos os restos destruídos da muralha que um dos Arcanjos tinha elevado.
Estávamos paralisados de medo e admiração. Absolon balbuciava: “Era
Miguel. O Arcanjo. Meu Primus”.
“Isso é algo que nunca imaginei que veria em minha vida”,
sussurrou Ansgar. “Algo ainda mais grandioso e terrível do que a batalha
que vimos no primeiro nível desta fortaleza”.
“Mas... por que a visão parou?”, perguntou Fabrizia, ainda
boquiaberta.
“Talvez porque Leviathan deixou de observar quando os Primi
interferiram”, supôs Al-Malik.
“Vamos em frente”, pedi, me recompondo. “Estamos muito
próximos agora”. Tomei a frente, os demais me seguiram. Ainda assim,
comentavam os eventos que acabáramos de ver. Eu mesmo estava
totalmente impressionado com a coragem daqueles Celestiais e
maravilhado com a presença de um Primus em uma batalha.
Assim, continuamos a caminhar por aquele gigantesco salão, indo
sempre em frente, usando as colunas para nos guiarmos. Então, após cerca
de vinte minutos de caminhada, chegamos a um último portão fechado.
Novamente, Al-Malik, Ansgar e Wang forçaram-no para abri-lo. O som do
portão de pedra sendo aberto ecoou pela imensidão subterrânea. À frente,
um corredor, pelo qual prosseguimos. Não havia mais múltiplos caminhos,
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apenas um único a seguir. Chegamos então a um salão, no qual
encontramos os restos de uma pequena batalha. Uma armadura negra
estava caída, partida por golpes poderosos de espada. Porém, ao analisa-la,
notei que não era a mesma armadura que o cavaleiro usava em nossos
sonhos.
“Vejam isso”, disse Karina, apontando para a passagem adiante:
uma caverna, com cerca de três metros e meio de altura por dois de largura.
As paredes eram naturais, sem o acabamento do resto do templo. Porém,
mal este caminho começava, ele era abruptamente interrompido por uma
barreira de rocha.
“Chegamos, finalmente”, murmurei, sentindo um arrepio percorrer
minha espinha. “Eu já li relatos. Adiante, estava a câmara de Leviathan e a
passagem para o Inferno. Este local foi lacrado depois que a passagem para
o Inferno se fechou. Precisamos arrumar um meio de abrir a passagem”.
Ansgar se prontificou a tentar remover as rochas. Porém, mesmo
com a força dele, o esforço era grande e levaria muito tempo. “Não corre o
risco do túnel desabar se removermos as pedras?”, perguntou Absolon.
“Não. As pedras foram colocadas para tampar o túnel e não
sustenta-lo. O túnel não desabou, e sim foi tapado. Por isso, se as
removermos, não haverá risco algum”, respondi.
“Afastem-se”, pediu Fabrizia. “Vou tentar algo”. Obedecemos e
saímos do túnel. Então, Fabrizia concentrou-se. Pude sentir sua energia
divina manifestar-se e, então, pouco a pouco, o solo sob as rochas abria-se
para engoli-las.
“Muito bem!”, eu murmurei. O esforço para ela era grande e
levaria tempo até que todo o túnel fosse desobstruído, então Ansgar e Al-
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Malik começaram a ajuda-la removendo parte das pedras, assim
reduzindo o trabalho de Fabrizia. Pouco a pouco, avançamos, até que, cerca
de trinta minutos depois, a passagem estava aberta. Por ela continuamos,
até finalmente chegarmos ao centro de Dur Sharrukin.
E ali estávamos. Era uma gigantesca câmara, provavelmente com
mais de vinte metros de altura e cinqüenta ou mais de largura, de forma
irregular, escavada em rocha maciça. A cerca de setenta metros de
distância, estava a parede oposta à da entrada, na qual víamos um outro
túnel que foi tapado por um desabamento. “A passagem para o Inferno era
ali!”, murmurei.
Absolon chamou-me: “Nicodemus, veja isso!”. Então apontou para
as paredes, que estavam totalmente preenchidas por escritas fabuláricas.
Tentei ler, mas o texto estava desorganizado e deformado. Os demais
permaneceram próximos à entrada, eu me aproximei das paredes, toquei
aquela escrita. “O que é isso?”, indaguei-me. Notava que havia grandes
buracos e rachaduras nas paredes, causados por impactos muito fortes.
Ainda assim, a escrita preenchia até mesmo estes buracos e ignorava as
rachaduras. No chão da câmara, haviam canais, preenchidos por rocha
enegrecida. “O que aconteceu aqui?”, perguntei.
Foi quando um som distante ecoou, vindo do túnel de entrada. Sons
de uma batalha distante. Com o susto, todos se viraram para a entrada. Eu,
porém, reparei que a escrita havia desaparecido. Um calor repentino e uma
luz avermelhada inundaram o local. Karina gritou assustada. Voltamo-nos
para o centro da grande câmara, e ali, parado, em pé, um homem nos
observava, calado, imóvel. Ele vestia um manto negro, com um capuz que
lhe cobria a cabeça. O ar crepitava ao seu redor, e os canais que
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atravessavam a câmara agora eram preenchidos por rios de magma
fervente. Pontes de rocha permitiam atravessar os rios em segurança. O
rosto do homem era cinzento, seus olhos pareciam sem vida, sua face era
envelhecida e ressequida. Atrás dele, a passagem para o Inferno estava
aberta, levando a túneis iluminados pela luz vermelha do magma.
Ansgar sacou sua espada, gritando ao homem: “Quem é você? O
que quer?”. Al-Malik, porém, o segurou, dizendo: “É outra visão”. Foi
então que entendi aquele momento. Veríamos a batalha final. Estávamos
diante de Leviathan, que possuía o corpo de Nabucodonosor II, filho de
Nabopolassar, rei da Babilônia. Eu podia sentir as energias infernais
fluírem dos túneis adiante, preenchendo a câmara com a essência do
próprio Inferno.
Por alguns minutos, aquele homem permaneceu absolutamente
imóvel, enquanto os rios de magma da câmara emitiam estrondos e furiosos
jatos incandescentes. Então, destacando-se dos sons da batalha que crescia
feroz à distância, ouvimos os sons de um cavalo em corrida, cujos cascos
batiam furiosamente contra a rocha. Mal nos viramos para ver quem vinha,
o cavaleiro negro emergiu do túnel, passando, como se fosse um fantasma,
diretamente por nós. Seu corcel demoníaco parou um pouco adiante do
homem no centro da câmara, emitindo um feroz rosnado em seguido.
“Meu Senhor”, disse o cavaleiro com uma voz demoníaca, “nossos
inimigos atravessaram todos os níveis de vossa fortaleza e agora
confrontam seu mais leal e poderoso exército. Eles em breve estarão diante
de seus portões. O que deve ser feito?”.
O homem, sem mudar a expressão fria de seu rosto, fitou o
cavaleiro. Sua voz ecoou em seguida, inundando tanto nossos ouvidos
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como mentes. Era como um trovão e fazia com que nossos corações
ardessem em desespero. “Khral-Harshek, o Caçador, Marechal de Æternus
Ignis, tu foste meu mais fiel cavaleiro. Desde teu renascimento, serviste-me
como a teu pai, e seguiste minhas palavras não importasse os riscos. Por
muitos séculos, preparei-te para este dia. Agora, é a hora do acerto de
contas entre trevas e luz. Em breve, o inimigo invadirá este santuário, e
então começará minha mais difícil contenda”.
“Sim, meu Senhor”, respondeu o cavaleiro, “estou agora pronto
para morrer por ti”.
“Não, tu não estás”, disse o Grande Lorde, erguendo a voz.
Tamanha foi a força de sua voz que perdi o equilíbrio e as dores em meu
peito aumentaram. Apoiei-me na parede, enquanto Karina e Absolon não
suportaram e caíram de joelhos. Os demais conseguiram manter seu
equilíbrio. Então, Leviathan prosseguiu: “Retorna ao nosso lar e aguarda
minha volta, meu fiel servo. Porém, caso eu caia perante o inimigo, saibas
que terás uma última missão a realizar em meu nome”.
“Sim, meu senhor”, respondeu o cavaleiro, sua voz infernal abafada
pelo elmo negro. “Diga-me o que deve ser feito”.
Novamente, ouvimos a terrível voz do Lorde do Sangue: “Caso
ouças meu grito de morte, deixa Æternus Ignis e parte para Gehenna.
Então, segue para o sul, para além das terras inférteis. Siga as sombras de
meu pai, através das montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a
voz que ecoará em tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que,
quando encontrar o vale no qual a única caverna é guardada por um dragão,
terás encontrado o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o
102
Primogênito. E, feito isso, terá cumprido tua última missão. Em
pagamento, receberás vida eterna”.
O que significaria isso? Que tipo de missão era essa? Eu não
conseguia entender. Porém, o cavaleiro, sem hesitar, pôs-se a cavalgar,
atravessando as pontes sobre o magma, rumo aos túneis que o levariam ao
Inferno. Então, o Lorde do Sangue esperou, uma vez mais imóvel, no
centro daquela câmara.
Ouvimos então um som e, de repente, veio pelo túnel de entrada
uma criatura baixa e esguia, de pele escamosa e pequenas asas vestigiais,
vestindo trapos. Era um demônio e, em sua face, mostrava pavor. Ele
buscava fugir de algo ou alguém e, em desespero, adentrara a câmara.
Então, pela última vez, ouvimos a voz de Leviathan: “Covarde tolo. Tu
serás privilegiado. Fique. Veja. Assista a História sendo feita”. Quase
nocauteado pela voz de Leviathan, o pequeno demônio parou por um
instante, mas em seguida voltou a correr, passando pelo Grande Lorde e
prosseguindo em direção às cavernas que levavam ao Inferno.
Mal a criatura alcançava os túneis além, meus companheiros
arregalaram os olhos, vendo aqueles que em seguida pelo túnel de entrada.
Sentimos suas presenças e, instintivamente, demos passagem para eles,
mesmo sendo apenas imagens do passado. Primeiro Gabriel, com seus dois
metros de altura, trajando uma armadura peitoral de couro negra, por baixo
da mesma vestia trajes brancos, e na mão direita, segurava uma grande
espada de larga lâmina, cujo comprimento rivalizava o do próprio Primus.
Em seguida, adentrou Veritatis. Embora eu jamais o tenha visto em
minha vida, pude reconhece-lo de imediato. Ele era baixo, com cabelos
castanhos e barba grossa, mas não comprida. Em seus olhos negros e
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serenos, refletia-se a imagem do oponente à frente. Ele vestia uma
armadura semelhante à de Gabriel, mas por baixo vestia um longo manto
cinzento.
Mal adentraram a câmara, os dois Primi tomaram direções
diferentes. Gabriel parou um pouco à frente da entrada, fitando o
adversário, enquanto Veritatis virou à esquerda da entrada, caminhou
alguns metros e então ajoelhou-se, começando a orar algo que eu não podia
compreender. As asas cinzentas de Veritatis abriram-se, rasgando seu
manto, mas sem danificar a armadura devido à abertura que ela possuía nas
costas. Então, as asas fecharam-se em volta do Primus, como se fossem
protege-lo.
Então, houve um silêncio perturbador. Gabriel empunhou sua arma
com ambas as mãos e, passo a passo, lentamente, caminhou em direção ao
inimigo. Suas asas surgiram, como grandes lâminas prateadas, e seu corpo
brilhou. E então Leviathan urrou, liberando um rugido de raiva mais
poderoso do que todos os rugidos que já tínhamos ouvido desde que
começamos esta busca. As paredes tremeram e o magma agitou-se, e então
a pele do corpo mortal que Leviathan usava rachou-se, sangrando. Seu
corpo cresceu, rasgando o corpo mortal e roupas, e ele caiu de quatro,
crescendo, arrebentando numa explosão de sangue a casca mortal que
usava. Assumindo a forma de um grande dragão, com mais de quinze
metros de comprimento, sem contar a longa cauda, ele abriu as imensas
asas, e urrou mais uma vez, mostrando suas grandes presas e vomitando
sangue fétido. Seus olhos ardiam em chamas, fitando o inimigo à frente:
Gabriel. Então, a espada e as asas de Gabriel arderam em chamas celestiais.
104
Em minha mente, pude ouvi-lo murmurar, assim que pisou na ponte
sobre o primeiro rio de magma: “Lorde Sábio, dai-me proteção”.
Então, começou. Como se seu tamanho descomunal nada fosse,
Leviathan avançou, atacando com as garras da pata dianteira. Gabriel voou
para o alto, enquanto a ponte foi destroçada pelo golpe. Leviathan urrou,
vomitando chamas negras sobre o Primus, mas este atacou com a espada,
gerando uma onda de chamas celestiais para protege-lo. Num movimento
tão rápido que mal pude acompanhar, Leviathan jogou o corpo para o lado ,
atingindo Gabriel em cheio com sua asa, arremessando o Primus contra a
parede com tamanha força que o impacto pareceu uma explosão, abrindo
uma grande cratera e erguendo poeira.
Novamente, mal o impacto ocorrera, o grande dragão já avançava
em direção à poeira erguida, urrando, deixando pequenas crateras a cada
passo. O Lorde do Sangue atacou em meio à poeira, mas Gabriel saltou,
também numa velocidade incrível, escapando da mordida letal do monstro,
e usando a asa cortante para rasgar o pescoço do demônio. Antes que
Gabriel reagisse, porém, a cauda de Leviathan acertou-lhe um golpe
certeiro. O corpo do Primus foi arremessado como um boneco de pano, e
pude ver suas asas sumirem, conforme ele retornava ao Aspecto Humano.
Mal Gabriel caíra, rolando pelo chão, Leviathan já avançava
rapidamente, suas passadas fazendo a terra tremer. Gabriel, num
movimento rápido, ergueu-se, mas a mandíbula do dragão já estava sobre
ele. As mandíbulas já fechavam-se, obrigando o Primus a largar sua espada
para segurar as mandíbulas com as mãos, impedindo-as de fecharem-se.
As mãos do Primus sangravam, penetradas pelas presas pontiagudas do
monstro, e eu podia sentir Gabriel fraquejar, frente à força de Leviathan.
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Mas então, Gabriel gritou, liberando chamas celestes, incendiando toda
a cabeça do Lorde do Sangue. O demônio urrou e balançou com fúria a
cabeça. Gabriel largou as mandíbulas sendo jogado à distância.
O Primus caiu violentamente no chão, rolando no mesmo, rumo à
borda da vala pela qual passava um dos rios de magma. Enquanto isso, todo
o Leviathan incendiou-se em chamas negras, apagando os fogos de Gabriel,
e procurou seu adversário, tendo perdido-o de vista por um instante.
Gabriel despencou pela borda da vala, mas conseguiu agarrar-se,
impedindo a queda sobre o magma. Leviathan avançou urrando, deixando
um rastro de chamas profanas, preparado para abocanhar o Primus.
Assim que Leviathan estava prestes a alcançar Gabriel, este
impulsionou-se para a frente, escalando a borda na qual se segurava e, no
exato instante em que o dragão deu seu bote, o Primus rolou pelo chão,
logo abaixo da mandíbula do monstro. Ficando sob o pescoço de Leviathan
e fitando sua espada uns dez metros atrás do monstro, Gabriel correu, por
entre as patas e por sob o ventre do demônio. Assim que passava sob o
peito da criatura, o Arcanjo liberou suas asas, que saíram de suas costas
como lâminas afiadas, rasgando a barriga do demônio. Urros de dor se
seguiram, conforme as tripas de Leviathan caíam, jorrando seu sangue
fétido. Mas, assim que passou pelas patas traseiras do demônio, Gabriel
tentou erguer vôo, apenas para ser atingido num golpe certeiro da cauda.
Espantados diante de uma batalha que fazia a terra tremer,
olhávamos impotentes, sentindo-nos minúsculos diante daquilo. Ainda
assim, eu notava que Leviathan estava em constante vantagem, devido às
energias que fluíam do Inferno e inundavam aquela câmara. Nos milésimos
106
de segundo nos quais Gabriel estava sendo arremessado pelo golpe da
cauda, eu me virei para fitar Veritatis.
E ali, como se a batalha não o afetasse, Grande Veritatis mantinha-
se orando. Foi quando percebi, com espanto, o jarro entre suas mãos, e nas
paredes formavam-se runas fabuláricas, que a partir de Veritatis iam
surgindo, aos poucos se espalhando por toda a câmara. Um ritual. Veritatis
fazia ali um ritual!
Então, os estrondos que se sucederam me forçaram a olhar
novamente a batalha. O primeiro estrondo fora causado pelo impacto de
Gabriel contra uma parede. Os demais, pelos passos do Leviathan. Quando
meu olhar encontrou os combatentes, Leviathan desferia um golpe com a
pata dianteira, tentando esmagar Gabriel contra a parede. O Primus
recolheu suas asas, provavelmente para não danifica-las, e então amorteceu
o impacto usando ambos os braços e uma das pernas. O corpo de Gabriel
iluminou-se com chamas celestiais, para que não fosse queimado pelo Fogo
Negro que Leviathan emitia. O demônio pressionava-o mais e mais,
fazendo a parede rachar, mas sem conseguir esmagar o Arcanjo. A pressão
tornou-se tamanha que a rachadura chegou ao teto, fazendo parte da parede
ruir, e o teto desabou sobre ambos, soterrando-os sob toneladas de rocha.
Por alguns segundos, houve silêncio. Notei que magma corria por
entre as fendas do desabamento. Então, Gabriel ergueu-se voando,
removendo rocha em sua passagem. Ele brilhava, totalmente coberto por
chamas celestes, em sua Forma Angelical. Uma explosão seguiu-se,
anunciando Leviathan, que saía violentamente dos escombros, coberto de
magma, mas sem as chamas negras que antes o protegiam.
107
Os dois combatentes encararam-se. Leviathan seguia o Primus,
que flutuava, ardendo em chamas celestiais, vários metros acima. Gabriel
estava ferido e sentia dores, era possível notar. Já Leviathan, mesmo tendo
recebido golpes cortantes, não parecia sentir qualquer um de seus
ferimentos. Ainda assim, o Primus, fez com que as chamas de seu corpo
migrassem para suas mãos, formando duas grandes lâminas de Fogo
Celestial. Ele então avançou, mergulhando contra o demônio, desferindo
um golpe com uma das lâminas de fogo, atingindo a face do demônio, que
se incendiava. Enquanto Leviathan urrava, Gabriel pousou, tentando
degolar o infernal com um golpe de sua asa esquerda. A asa cortou a
traquéia do dragão, mas este então atacou rapidamente, mordendo a asa,
penetrando suas mandíbulas na mesma. Gabriel gritou de dor, e suas
espadas flamejantes desapareceram.
Segurando o Arcanjo pela asa, o Grande Lorde ergue a cabeça e
começou a balança-la, dilacerando ainda mais a asa do Primus. Então, a asa
rasgou-se, arremessando Gabriel mais uma vez a uma grande distância. O
Arcanjo caiu violentamente no chão, e Leviathan avançou. O Primus se
levantou a tempo de, mais uma vez, escapar de uma mordida certeira. Num
golpe poderoso, a mandíbula de Leviathan perfurou e esmagou a rocha do
solo, enquanto Gabriel escapava com um salto.
Gabriel notou então sua espada, caída a alguns metros de distância.
Porém, Leviathan ergueu a cabeça, cuspindo a terra em sua boca, e fitou o
Primus. Ambos se encararam, como se o próximo golpe fosse o último.
Mas Gabriel estava em desvantagem.
Foi quando senti novamente aquela aura de vigor que sentira antes,
no campo de batalha. Uma luz dourada inundou o túnel de entrada à
108
câmara. Por um instante, Leviathan distraiu-se, e Gabriel correu em
direção à sua espada. Ao mesmo tempo, o Arcanjo Miguel adentrava,
trazendo consigo a força que igualaria a batalha. Outros o acompanhavam,
entre eles, novamente aquele Arcanjo que liderou bravamente os Celestiais,
e que eu achava tão familiar. Mas Leviathan então começou a perseguir
Gabriel, fazendo uma vez mais a terra tremer. Seu urro ecoou e, num salto,
o Primus dos Venatores agarrou sua espada, rolou no chão, parando
abaixado, de costas para o adversário. Leviathan abriu sua boca, saltando
no ar, pronto para o golpe final. E o Arcanjo Gabriel então abriu por
completo suas asas, deixou seu corpo brilhar intensamente em luz branca e,
impulsionando-se com as pernas saltou na direção do Grande Lorde. Com a
ajuda das asas, Gabriel virou-se no ar, encarando seu adversário, e a
bocarra de Leviathan fechou-se sobre a segunda asa de Gabriel, mas era
tarde demais para o demônio. Tudo o que vi em seguida foi o rastro de
chamas de celestiais deixadas pela espada do Arcanjo atravessando o
pescoço do Grande Lorde. A asa do Arcanjo estava arrebentada, tendo sido
arrancada pelo golpe do demônio, mas então jorrou o sangue fétido, e a
cabeça decapitada de Leviathan caiu, seu corpo tombando em seguida.
Gabriel caiu de joelhos assim que pousou no chão, após aquele
último salto. Seu corpo estava ferido, uma asa mutilada, a outra arrancada,
e o sangue divino escorria de seus ferimentos. Mas ele ergueu-se triunfante,
enquanto o urro de agonia de Leviathan começou a ecoar. Todos fitavam
Gabriel, que então se concentrou. E pudemos sentir o poder de Leviathan
escoar, seus urros repetindo-se, seu espírito tentando possuir aqueles que ali
estavam presentes. Podíamos perceber o poder daquela criatura, que
109
parecia ilimitada, invulnerável, rosnando e tentando sobreviver. Mas a
força de vontade de Gabriel lutava para conter aquela monstruosidade.
Mas eu me lembrei de minha visão, e naquele momento fitei o
reino espiritual. E vi a essência de Leviathan lutar, debatendo-se, mas
também vi os escritos fabuláricos nas paredes brilharem, formando uma
rede que segurava o demônio. Então, sendo puxado por duas fontes, a
essência do Grande Lorde. Senti uma explosão no mundo espiritual e fechei
os olhos. Assim que os abri, notei apenas uma fumaça negra, que se
dissipava, como se absorvida pelas paredes de Dur Sharrukin.
Veritatis então levantou-se, e os Celestiais ali presentes correram
para acudir Gabriel. Fitei Veritatis, por um instante vi o jarro, mas então o
mesmo desaparecera. Ninguém mais o vira naquele dia. As visões por fim
terminaram. Estávamos uma vez mais ali, solitários, na câmara agora fria.
Ficamos em silêncio. Al-Malik caiu de joelhos e pôs-se a orar.
Ansgar sentou-se no chão, maravilhado com a visão daquela batalha.
Karina apoiou-se na parede, respirando ofegante, quase chorando. Fabrizia
abraçou Absolon. Wang permaneceu em silêncio. E eu fiquei ali parado,
fitando o local em que Veritatis permanecera realizando o ritual.
“Gabriel de fato Obliterou Leviathan”, murmurou Ansgar. “Então,
como pode existir o jarro ou o fantasma?”.
“A alma de Leviathan partiu-se em três”, respondi. “Veritatis
interferiu na Obliteração. A maior parte foi de fato destruída por Gabriel.
Mas não tudo: sua essência, contendo parte de seu poder e memórias, foi
aprisionada no jarro por Veritatis. O pouco que escapou impregnou-se em
Dur Sharrukin, dando origem ao fantasma”.
“Como sabe?”, perguntou Al-Malik.
110
“Eu vi. Era o que eu vim ver, nosso propósito aqui. E eu vi”.
Foi então que ouvimos o som do galopar de um cavalo, vindo
através do túnel de entrada da câmara. Ansgar levantou-se imediatamente,
sacando sua espada. O mesmo fizeram Al-Malik e Lo Wang. Os demais se
afastaram, mas todos estavam preparados para lutar. Karina, Fabrizia e
Absolon pegaram suas armas de fogo.
Então, pelo túnel, entrou o cavaleiro negro, montado em sua
montaria infernal. Através de seu elmo negro, pude fitar seus olhos
vermelhos, que brilhavam intensamente. O cavalo, cuja boca exibia presas
afiadas, relinchou.
Eu, notando que o demônio manteve sua espada embainhada e
ficou à distância, dei um passo à frente, chamando-lhe a atenção: “Khral-
Harshek, eu presumo”. Ele consentiu com a cabeça. “O que deseja?”,
perguntei.
“Eu sou o Guardião de Leviathan, mesmo após sua morte continuo
leal a meu Senhor. Vocês vieram em busca de respostas, eu permiti que as
tivessem, para que soubessem que o ser que tanto idolatram, Uriel-
chamado-Veritatis, mentiu, e nisso não só prolongou o sofrimento de meu
senhor, como trouxe graves conseqüências a vocês. Agora, saiam”.
“Espere”, eu interrompi. “Ainda quero algumas respostas. Que
missão Leviathan lhe deu? O que significa cavalgar sessenta anos para o
sul?”.
“O Lorde do Sangue escolheu Khral-Harshek para guardar seu
legado. Assim, Khral-Harshek seguiu a busca que Leviathan lhe incumbira.
Por sessenta anos, Khral-Harshek viajou pelos Reinos Infernais, e onde seu
mestre dissera, ele encontrou a Sombra”.
111
“A Sombra?”, sussurrou Karina.
“O primogênito, primeiro entre as Crias de Ialdabaoth. Ali, as
memórias que Leviathan dera a Khral-Harshek despertaram. Ali, Khral-
Harshek mudou, se tornou algo mais e algo menos do que era. Os limites de
Khral-Harshek desapareceram, mas também sua mente mudou, e, assim,
Khral-Harshek foi chamado pela sombra de ‘irmão’ e proclamado o 13o.
Filho”.
“Mas você não é Khral-Harshek? Por que se refere a ele como
outra pessoa?”, perguntei.
“Não, eu sou Khral-Harshek. O 13o. Filho ainda tinha as memórias
de sua antiga vida e, como recompensa pela minha lealdade, deu a essas
lembranças forma física. Como prometido, sou imortal, visto que o 13o.
Filho pode me recriar caso minha morte venha. Assim, retornei a Dur
Sharrukin, para novamente servir meu senhor. Tenho sido seu guardião
desde então”.
Eu não conseguia compreender totalmente. Ele falava de Khral-
Harshek como se fosse outra pessoa... outra vida, mesmo sendo ele próprio.
Desejando pensar nisto mais tarde, fiz uma nova pergunta: “Por que essas
coisas estão acontecendo agora? Por que só agora a essência de Leviathan
parece ter despertado no Éden?”.
“Seus irmãos o chamam. Ele ouviu seu chamado”, o cavaleiro
respondeu.
“Eu não entendo. Qual o sentido disso tudo? Qual a razão do vazo
existir?”, perguntou Al-Malik.
O cavaleiro então deu meia-volta. Antes de partir, disse: “Eu não
sei. Tudo o que sei, é que os Filhos de Ialdabaoth estão se erguendo.
112
Pergunte ao causador disso tudo, aquele que chamam de verdade, mas
criou apenas mentiras. Encontrem a verdade, se quiserem respostas”.
Então, o cavaleiro pôs-se a cavalgar, desaparecendo na escuridão além do
túnel.
Eu e meus companheiros nos observamos. “Acho que nossa missão
terminou, não?”, disse Absolon. “Descobrimos o que aconteceu a
Leviathan”. Eu, porém, apenas disse: “Vamos sair daqui”.
E assim, retornamos. Uma vez mais atravessamos o grande salão, a
câmara negra, as escadarias, o labirinto e o primeiro nível. Por todo o
caminho, estávamos em silêncio, e eu permaneci pensando, tentando ligar
os fatos e encontrar as respostas. Alcançamos finalmente as cavernas que
nos levariam à superfície. Então conforme chegamos às ruínas da cidade
Assíria de Dur Sharrukin, encontramos o Arcanjo Adonijah, que nos
esperava ansioso.
“Eu estava preocupado com vocês”, disse Adonijah. “Felizmente,
noto que nada sofreram, pelo menos fisicamente. Encontraram as respostas
que procuravam?”.
“Sim”, disse Fabrizia.
“Não”, interrompi. “Encontramos peças do quebra-cabeça, mas
ainda não pudemos monta-lo”. Os outros me olharam, confusos.
“É melhor falarem com o Conselho, Nicodemus”, disse o Arcanjo.
“Não, eu não irei”, eu respondi seriamente. “Diga-lhes que é de
fato parte de Leviathan que está no jarro. Diga que nosso Primus, Grande
Veritatis, impediu que a alma do Grande Lorde fosse totalmente destruída.
Diga-lhes que ele planejou isso tudo”.
113
Adonijah arregalou os olhos como se eu tivesse falado uma
heresia. Na posição dele, eu faria o mesmo. Então, acrescentei: “Porém,
ainda não sabemos o porquê. Ainda não sabemos qual o propósito do jarro,
nem o que realmente está acontecendo”.
Virei-me então para meus companheiros, mostrando-me
determinado. “Ainda não sabemos quem são os anjos aprisionados, nem
encontramos o sentido para o velho louco que grita em desespero. E não
sabemos o que o tigre significa. Nossa missão não acabou. Nós passamos
por muito, e acho que isso é apenas o começo. De certa forma, tudo o que
vimos... acho que foi para nos preparar. Isso significa que será perigoso, e
por isso cada um pode escolher desistir, mas eu quero continuar. Gostaria
que tomassem a decisão que fosse mais segura para vocês”.
“Está brincando, certo?”, perguntou Absolon. “Começamos isso
juntos, vamos terminar juntos”. Os demais concordaram. Acabei esboçando
um sorriso.
“Por onde continuarão essa busca?”, perguntou Adonijah.
Calei-me por um instante, lembrando-me do pesadelo que tivera na
noite anterior. Lembrei-me do tigre e dos locais mostrados na visão. Então,
respondi: “Em meu último sonho, vi o tigre matando inocentes em uma
cidade e depois se dirigir para outra. Na primeira cidade, tive a visão de um
local no qual eu já estive. Tenho certeza de que sei qual é essa cidade. É lá
que iremos começar”.
“Que lugar é esse que você viu?”, perguntou Al-Malik.
“Uma praça belíssima... Eu a reconheci como Maidan-i-Shah”,
respondi.
114
Al-Malik imediatamente arregalou os olhos. Eu sabia que ele
conheceria o local. “A praça real de Isfahan!”, exclamou.
“Isfahan?”, perguntou Absolon.
“Eu também já estive lá!”, disse Karina, “É a segunda maior cidade
do Irã! É um lugar lindo”.
Virei-me então para Adonijah: “Por favor, Senhor Adonijah, vá e
avise o Conselho de nossa decisão”. O Arcanjo concordou e deixou nossa
presença. Voltando-me a meus companheiros, disse-lhes: “Vamos a
Isfahan. Quero descobrir mais sobre esse tigre”.
115
Capítulo 8: As Chamas de Zoroastro
O céu estava coberto por nuvens negras e pesadas, mas chuva
alguma caía. No horizonte distante, a oeste, podíamos ver pesados raios, e o
vento frio soprava do leste. Mesmo podendo ver perfeitamente na escuridão
da noite, as nuvens se estendiam de horizonte a horizonte, enegrecendo o
céu por completo, impedindo que a Lua ou as estrelas iluminassem a noite.
Prosseguíamos, voando baixo, rumo ao norte, rumo a Isfahan.
“Por que não abriu seu portal já na cidade?”, perguntou Ansgar,
falando em voz alta por causa do uivo forte do vento. Abaixo, nuvens de
areia erguiam-se. Era como se um vendaval se aproximasse.
“Faz anos que não a visito, não pude pensar em nenhum lugar bom
para abrir o portal sem que ninguém pudesse nos ver”, respondi. “Por isso,
abri o portal alguns quilômetros ao sul da cidade. Voando, chegaremos lá
em poucos minutos”.
“Espero chegar logo”, gritou Fabrizia. “Essa tempestade não é
natural”. Ela estava certa... Na verdade, apesar da imensidão das nuvens
negras, estávamos distantes do centro da tormenta. Mas ainda assim, havia
uma presença estranha no ambiente, algo que me deixava ansioso e
assustado.
Quando a luzes da cidade de Isfahan surgiram adiante, eu gritei aos
demais: “Temos que ocultar nossa presença! As pessoas podem nos ver!
Contenham a sua aura!”. Assim foi feito, uma a uma, as auras luminosas de
nossas formas celestes foram se apagando. Menos de um minuto depois,
sobrevoávamos a grande cidade de Isfahan.
116
“Parece que houve um vendaval forte, o que é atípico”,
murmurou Al-Malik, assim que diminuíamos nossa velocidade, planando
por sobre a cidade.
“Não houve chuva alguma, apenas vento e trovão”, disse Fabrizia.
“E há algo neste lugar que me dá medo”, completa Ansgar.
“Não é o local, isto eu garanto”, disse Al-Malik. “Isfahan é um
local de fé e conhecimento”.
“Mas algo esteve aqui hoje”, falei em voz alta. “Precisamos seguir
ao local que vi em meu sonho. Maidan-i-Shah, a Praça Real”.
“Por ali”, apontou Karina, tomando a dianteira. Seguindo-a,
passamos por rios e magníficas pontes, sobrevoamos grandes mesquitas e,
finalmente, após passarmos pela mesquita real de Masjid-i-Shah, chegamos
à grande praça, uma das maiores do mundo. Era madrugada, provavelmente
ainda restariam cerca de três horas antes que o Sol nascesse, e não víamos
ninguém nas ruas. Ainda assim, pedi: “Seria melhor que nos ocultássemos
para descer. Eu posso ocultar a mim mesmo, mas e quanto a vocês?”.
“Não se preocupe”, murmurou Wang, fitando-me. “Cuidarei para
ninguém possa ver o grupo”. Agradeci, então descemos. E então meus
companheiros puderam melhor fitar a beleza da Praça Real. Cercada por
bazares e galerias de lojas, a imensa praça tinha 500 metros de
comprimento por 150 de largura. Ao sul, estava a belíssima mesquita real,
imponente. Pousamos próximos a um grande chafariz, no centro da praça.
“Falem baixo”, murmurou Wang assim que tocamos o chão e
retornamos a nossas formas humanas, “e não façam nada brusco, ou a
ilusão que nos cobre será quebrada”. Concordamos. Ansgar, Fabrizia e
Absolon observavam maravilhados o local ao redor, enquanto Karina e Al-
117
Malik permaneceram quietos, visto que já conheciam o local. Wang
continuou com sua fachada de aparente indiferença.
Me afastei um pouco do grupo, olhando ao redor. O local estava
calmo, desértico. Provavelmente, guardas o vigiavam dos bazares ou
mesquitas. Era como se nada tivesse ocorrido ali. Mas ainda assim, eu
sentia uma presença vestigial, como se algo tivesse passado por esta cidade.
Algo negro, maior do que qualquer outra coisa que eu sentira em toda a
minha vida. Al-Malik aproximou-se: “Encontrou algo, Nicodemus?”.
“Não”, respondi. “Algo ocorreu nesta cidade, mas não aqui, neste
lugar. Provavelmente, os Guardiões me mostraram a Praça porque assim eu
poderia reconhecer a cidade em meus sonhos”.
“E o que faremos?”, perguntou Wang, sentado próximo ao chafariz,
mas prestando atenção em nossa conversa.
“Eu sou um Perquirator. Os espíritos me dirão. Esperem-me aqui”.
Tendo dito aquilo, fechei os olhos e concentrei-me. Esquecer o material e
sentir a essência, buscar o fluir da vida e o vácuo da morte, encontrar a
própria alma: esse é o caminho para o mundo espiritual. E, tendo feito isso,
abri meus olhos para vislumbrar a essência de Maidan-i-Shah. E aqui, sua
beleza brilhava, iluminando a noite. A vegetação decorativa brilhava e
pulsava com vida, tamanha era o poder da fé islâmica, que raios de luz
penetravam as nuvens negras acima e iluminavam toda a extensão da praça,
das mesquitas e dos bazares ao meu redor.
Então, dei meus primeiros passos naquela paisagem espiritual,
assumindo minha Forma Angelical. Levantando vôo, elevei-me nos céus
turbulentos e pude ver que pouco restava da tempestade no mundo
espiritual. Porém, fitando para o horizonte a oeste, notei-o vermelho
118
sangue, e uma tempestade, tão furiosa quanto um furacão, parecia estar
se formando lá. Seja o que for que passou por Isfahan, agora estava distante
e se dirigia para o ocidente, trazendo consigo uma tormenta de energias
infernais. Por um instante, perguntei-me se realmente queria seguir esse
rastro de destruição, mas sabia que havia apenas uma atitude a tomar.
Então, abrindo meus braços, gritei: “Guardiões dos ventos,
espíritos do ar, crias da tempestade, venham! Vossa ajuda é requisitada!”.
Imediatamente, pressenti a presença dos mesmos. Senti um sopro gentil,
seguido de sussurros, e correntes de vento espiralavam ao meu redor,
carregando folhas e poeira. E um murmúrio gentil ecoou em meus ouvidos:
“Em que podemos ser úteis?”.
“Vim para descobrir as causas da tempestade que traz caos a seus
protetorados”, falei em voz alta aos elementais que me cercavam. “Pois sei
que uma presença negra percorre o mundo dos vivos. Vi em meus sonhos
que esta presença derramou sangue nestas terras. Gostaria que me
dissessem o que é este ser que deixa pegadas de tempestade, e onde tal
criatura derramou o sangue do homem”.
Os espíritos conversaram entre si, mas tudo o que eu podia ouvir
era o soprar do vento. Então, as correntes de ar se espalharam, formando
uma forte ventania, poderosa e cheia de vida. “O tigre traz tempestade”,
sussurraram os ventos. “O tigre é a morte”. Então, fitei novamente o
horizonte vermelho a oeste. Vermelho fogo. Vermelho sangue. Por algum
motivo que desconheço, uma citação bíblica veio-me à mente: “Olhei e vi
um cavalo baio e quem nele montava tinha por nome Morte e o inferno o
seguia”.
119
“E quem foram suas vítimas? Aonde o sangue foi derramado?”,
perguntei aos elementais.
“Não sabemos”, responderam.
“Então, perguntem para a terra e as águas, por favor. Digam-lhes
que caço esta criatura que veio para trazer destruição”. Os ventos
atenderam meu pedido: pude sentir a ventania desaparecer, conforme os
elementais ao meu redor se separavam e se afastavam. Ali permaneci,
esperando uma resposta e fitando aquele distante céu vermelho. Após cerca
de quinze ou vinte minutos de espera, percebi um ponto em especial no
oeste. Mesmo estando a vários quilômetros de distância, pude discernir
uma aglomeração de vultos enegrecidos e uma névoa cinzenta sobre uma
colina. Olhando aquele ponto, tive uma sensação de tristeza e senti um frio
repentino... Um sinal de morte.
Fiquei fitando aquele ponto, quando os ventos sussurraram
novamente: “a terra bebeu sangue de homens a noite passada”.
“Onde?”, perguntei.
“Atashgah, o local do fogo”, eles responderam. Era o ponto que eu
fitava. Agradeci aos espíritos e pousei. Então, recolhendo minhas asas,
concentrei-me para retornar ao mundo da carne. Assim que meus
companheiros me fitaram, não pude esconder minha expressão de
preocupação.
“O que descobriu, Nicodemus?”, perguntaram-me.
“Abram suas asas, temos que nos apressar”, respondi,
imediatamente assumindo a Forma Angelical. Confusos, os demais me
imitaram, e parti na frente, em direção aos céus. O grupo estava logo atrás
120
de mim. Notando meu estado, Karina aproximou-se. “O que está
havendo, Philipe?”, ela me perguntou.
“Estamos indo para o oeste. Sete quilômetros além da cidade, na
verdade. O local se chama Atashgah, o ‘Local do Fogo’. É um local em que
os antigos zoroástricos adoravam a Deus”.
“Eu já estive em Atashgah. Há uma vista linda de Isfahan de lá.
Mas o que aconteceu ali?”, ela perguntou.
“Há câmaras secretas no local, construídas pelos antigos magos
zoroástricos. Este local é um dos mais importantes templos do Círculo de
Uriel. Foi lá que ocorreram as mortes que vi em meus sonhos”.
Não demorou para que alcançássemos o topo da colina na qual
estava Atashgah. Fui o primeiro a pousar, próximo à pira na qual um dia as
chamas de Zoroastro foram mantidas constantemente acessas. As ruínas de
antigas muralhas nos cercavam e, à frente, estavam os restos, ainda em pé,
de uma estrutura circular. A leste, víamos as luzes de Isfahan. A oeste,
notávamos a tempestade se distanciando mais e mais.
“O que viemos fazer aqui?”, perguntou Absolon.
“Este lugar é Atashgah, não é?”, perguntou Al-Malik. “Foi um
templo zoroástrico no passado”.
“Foi aqui que ocorreram as mortes que Nicodemus viu no sonho”,
respondeu-lhes Karina.
“Temos de descer. A entrada está mais abaixo na colina”, eu disse a
todos. Como ainda estávamos na Forma Angelical, ergui-me no ar e, tomei
a frente, flutuando enquanto descia a colina. Os demais me seguiram. Foi
quando revolvi contar-lhes um pouco mais sobre a importância deste lugar.
“Algum de vocês já ouviu falar no Círculo de Uriel?”, perguntei.
121
“Eu sim”, respondeu Al-Malik. “Não é uma ordem cabalística
dedicada a estudar as criaturas da noite?”.
“Sim. Embora eu não conheça suas origens, é dito que o fundador
do Círculo teve uma visita de Grande Veritatis em pessoa. Desde seu
começo, o Círculo tem sido protegido pelos Veritatis Perquiratores, e os
mais altos membros da ordem são Acólitos que conhecem a nossa
existência. O Círculo tem o papel de estudar o sobrenatural e vigiar
quaisquer eventos que tenham alguma importância mística. São nossos
olhos entre os mortais”.
“Há alguma relação entre o Círculo de Uriel e este local?”,
perguntou Absolon.
“Sim”, respondi. “Nesta colina, há séculos, magos zoroástricos
criaram um templo subterrâneo. Após o fim da ordem, o Círculo de Uriel
redescobriu as ruínas subterrâneas e as ocultou, tornando-as uma de suas
bibliotecas e centros. Como Isfahan era o centro da Pérsia naquela época,
este se tornou um dos mais importantes templos urielitas na Ásia”.
Foi quando chegamos à face da colina na qual estava a entrada do
templo. Escondida atrás de uma grande rocha, havia uma passagem pela
qual um ser humano poderia passar, abaixado. “É aqui”, avisei, retornando
à forma humana. Os demais fizeram o mesmo.
“Deixe-me tomar a frente”, pediu Wang, cobrindo a cabeça com o
capuz. Abaixando-se e esgueirando-se pelo buraco, ele adentrou primeiro.
Fui em seguida. À frente, um pequeno túnel escavado na rocha, no qual
podíamos ficar em pé. Ansgar veio logo atrás de mim. Nossos olhares
brilhavam na escuridão, e pude perceber que à porta à frente, camuflada
para se parecer com a rocha, estava aberta.
122
Além da porta adiante, estavam corredores antiqüíssimos
escavados na rocha. Senti um cheio ruim, uma mistura de queimado e
sangue. Karina, que vinha após Ansgar, ligou a lanterna, iluminando o
salão à frente. Caminhamos pelos salões, todos pequenos com alguns
móveis, sem luxo algum. As velas que iluminavam o local estavam todas
totalmente consumidas. Wang retrucou: “Esse cheiro... eu sugiro que não
avancem”.
“Eu preciso”, respondi. Tomando a frente, caminhei em direção à
sala adiante. O cheiro era de carniça e se tornava mais forte a cada passo.
Quando cheguei à entrada da sala, parei para observar uma cena grotesca.
Karina estava logo atrás de mim, e assustou-se quando sua lanterna
iluminou aquele lugar. “Pelo amor de Deus”, ela murmurou.
À nossa frente, estavam uma grande mesa quebrada, diversas
cadeiras destruídas e, mais impressionante, os restos mortais de um homem
espalhados pela sala. Marcas de sangue manchavam as paredes, o chão e
todo o teto, e o corpo estava tão mutilado e despedaçado que mal lembrava
um ser humano. Karina não agüentou fitar aquela cena por muito tempo,
fechando os olhos e virando o rosto. Absolon, que entrara por último do
grupo, foi até ela e, segurando sua mão, pediu que ela voltasse.
Eu, porém, caminhei à frente. O cheiro forte e pútrido da morte me
deixava enjoado, sentia meu estômago revirar, mas comecei a avaliar o
local. Wang adentrou também, assim como Al-Malik. “Pegadas”, apontou
Wang. Observei as marcas deixadas no sangue: pegadas de um felino.
“Vamos para a próxima sala, peça aos outros que permaneçam na
entrada”, pedi aos dois que me acompanhavam. Wang permaneceu comigo,
enquanto Al-Malik foi avisar os demais, para em seguida retornar. Juntos,
123
os três prosseguimos, apenas para ver mais carnificina. As salas adiante
tinham sido consumidas por chamas, e encontrávamos corpos carbonizados
e mutilados. Eu pude contar pelo menos oito corpos. Provavelmente, eles
estavam reunindo-se quando o ataque aconteceu. A biblioteca foi
totalmente destruída. E, por toda parte, marcas de garras que rasgavam a
rocha ou sinais e patas no sangue seco que incrustava o chão. “Não houve
qualquer piedade aqui”, murmurou Wang. “A criatura adentrou sem hesitar.
Há anos não via algo assim”. Pude notar que Wang não parecia mais tão
frio, estava desconfortável naquele lugar.
“Por quê este lugar?”, perguntou Al-Malik, observando um corpo
carbonizado. “O que o demônio buscava aqui?”.
“Eu não sei”, sussurrei. Então, parei no meio da biblioteca, fitando
as paredes manchadas de fumaça e sangue. “Talvez eu veja as respostas no
passado”.
“Tentarei o mesmo”, disse Al-Malik.
Fechei os olhos assim que vi Al-Malik concentrar-se. Desejei ver
aquele momento, canalizei minhas energias e, então, ao ouvir gritos de dor
e rosnados furiosos, abri meus olhos e encarei o passado.
E, naquele momento do passado, as luzes elétricas, alimentadas por
um gerador movido a querosene, estavam acesas, e vi três homens,
desesperados, tentando refugiar-se na biblioteca. Eles tentavam barrar a
porta, mas as batidas violentas da criatura os empurraram, derrubando dois.
O terceiro correu para os fundos. Antes que um deles levantasse, o tigre
avançou, mordendo com força sua cabeça. O outro se levantou e também
correu para os fundos. A sala anterior estava em chamas. Balançando o
124
homem que segurava com as mandíbulas, o tigre o decapitou
esmagando o crânio com as mandíbulas.
O rosnado do tigre seguiu-se, e bastou aquele som para que os
livros todos se incendiassem. As luzes estouraram e algumas prateleiras
desabaram, espalhando chamas por toda a parte. Um dos homens fora
soterrado sob os destroços flamejantes. O tigre avançou sobre o terceiro,
que se encontrava encurralado contra a parede. “O que você quer?”, repetia
aos prantos o homem. Nenhuma resposta. O tigre avançou sobre ele,
derrubando-o e dilacerando-o com as garras. O sangue espalhava-se pela
parede, enquanto o fogo estendia-se sobre os dois, consumindo apenas o
homem. Diante daquela crueldade, sufocado pelo cheiro de fumaça, eu
desejava parar de observar. Mas esforcei-me para manter minha vigília. O
fogo e fumaça tomavam todo o salão. O tigre rosnou novamente, e então
correu em direção à porta pela qual tinha entrado.
Despertei de meu transe. Al-Malik já estava à minha frente,
esperando que eu terminasse de ver aquela cena. “O tigre não queria nada
nesta biblioteca”, ele disse.
“Realmente”, murmurei. “Vamos observar mais”. E assim fizemos.
Porém, logo tínhamos investigado todos os quartos, salões e corredores
daquele pequeno templo. Tudo fora destruído. Dez corpos, nenhuma pista
que nos levasse ao motivo pelo qual o tigre fizera aquilo. Então, nós três
saímos daquele local e encontramos nossos companheiros na saída.
Ali, sob aquelas nuvens pesadas, sentei-me sobre uma rocha,
pensativo. Os demais perguntavam o que tínhamos descoberto. “Nada”,
respondeu Wang. “O tigre de nossos sonhos esteve aqui, mas não sabemos
porquê, nem sabemos nada sobre ele”.
125
“Seja o que for, este tigre de alguma forma está relacionado a
Leviathan, senão ele não estaria em nossos sonhos”, disse Al-Malik.
“Como os eventos se encaixam, eu não tenho idéia”.
“Então, o que temos?”, perguntou Fabrizia.
Absolon dispôs-se a responder: “Leviathan, Veritatis, o Círculo de
Uriel, o tigre. Se encontrarmos o que os liga, talvez saibamos o que fazer”.
“Veritatis aprisiona, por motivos desconhecidos, parte de Leviathan
num jarro”, eu murmuro, continuando: “E agora, um tigre... ou melhor, um
demônio em forma de tigre surge destruindo um templo da ordem de
estudiosos que Veritatis fundou”.
“O tigre persegue o velho”, disse Karina. “Pelo menos foi assim em
nossos sonhos”.
“É verdade... mas não sabemos nada sobre o velho”, eu falei.
“Talvez devamos investigar o Círculo de Uriel, então”, sugeriu Al-
Malik. “O tigre não pode ter vindo aqui por nada”.
Ouvindo a sugestão de Al-Malik, imagens começaram a vir em
minha mente. O segundo sonho! Agora me lembro da segunda cidade! “Al-
Malik, talvez você tenha razão!”, disse em voz alta, enquanto me levantava.
“Eu me lembro de meu segundo sonho! A cidade na qual dois irmãos se
apunhalavam! O caminho pelo qual homens carregaram cruzes sob o olhar
de romanos!”.
Al-Malik parecia compreender. “A Via Crucis em Jerusalém?”.
“Sim. Outro dos importantes centros dos urielitas está na velha
cidade de Jerusalém! Após a chacina em Isfahan, o tigre se dirigia para lá!
Mas havia ainda um segundo mal, que pulsava sob a cidade”.
“Então, vamos a Jerusalém?”, perguntou Absolon.
126
“Não”, respondi e, sem seguida, fitei o oeste, vendo a tormenta
além. “O tigre ainda deve demorar a chegar lá. Quero aproveitar o tempo e
saber qual a ligação do Círculo de Uriel com isso. Nós vamos a Chak-
chak”. Assim que falei, assumi novamente o Aspecto Celeste, liberando
toda a minha aura luminosa.
“Chak-chak?”, perguntaram, quase juntos, Ansgar e Absolon.
“É um dos mais antigos templos zoroástricos ainda ativos. É dito
que as chamas do templo estão acesas continuamente há mais de dois
milênios. Espero que aquele local ainda esteja inteiro, que o tigre não tenha
passado por lá, mas lá está um dos mais sábios e antigos magos urielitas”.
Fitei então meus companheiros. “Vamos nos apressar. Temos que
prosseguir para o leste. Temos que atravessar o deserto de Lut antes que
amanheça”.
“Se você diz”, sorriu Absolon, abrindo suas asas em forma de
faixas de luz, “quero conhecer este local”. Os demais também assumiram
suas formas celestes e, finalmente, partimos.
E assim voamos pelos céus do Irã, atravessando regiões
montanhosas, passando por cidades e vilas. Pouco a pouco, as nuvens sobre
nós dissipavam-se e o céu tornava-se claro, conforme prosseguíamos para o
leste em grande velocidade. Logo, o grande Deserto de Lut estendia-se
sobre nós. A oeste, víamos o horizonte negro, adiante, o horizonte era
vermelho, indicando que o Sol nasceria em breve. Singrávamos a escuridão
do céu, como se fôssemos sete estrelas cadentes. Provavelmente viajantes
ou habitantes de vilarejos nos viam e teriam histórias para contar sobre
“objetos estranhos no céu”, mas aquilo não importava. O que importava era
que chegássemos antes que o Sol escaldante subisse aos céus.
127
Horas tinham se passado desde que deixamos Atashgah, em
Isfahan. O Sol finalmente nascera, mas estávamos próximos. “Logo além
daquele vale”, gritei, “vamos descer!”. Assim fizemos.
Este é um lugar sagrado para zoroástricos de todo o mundo. É um
lugar de peregrinação, perdido no meio do deserto no Irã. Podíamos sentir a
aura de paz próxima, vinda do poderoso Nodo Celeste que estava logo além
do vale, alimentado pela fé de milhares. Continuamos a caminhar pelo vale,
eu coloquei novamente meu sobretudo, enquanto os outros guardavam ou
escondiam suas armas. Karina e Fabrizia soltaram seus cabelos, enquanto
Al-Malik desenrolou os panos que envolviam sua face. E então, ao fitar
aquele local, Absolon, Fabrizia, Ansgar e até mesmo Wang ficaram
maravilhados. O templo construído nas paredes de uma montanha, num
lugar isolado do mundo.
E, do templo, seus guardiões e os fiéis ali localizados fitavam
aquele estranho grupo... Sete pessoas: cinco homens e duas mulheres, das
mais diversas nacionalidades, sem meio algum de transporte, vindo
caminhando sob o Sol da manhã. O vento soprava com intensidade, e o céu
estava claro. Conforme nos aproximávamos, era como estarmos retornando
ao Éden, tamanha era a aura de paz que aquele local emanava. Felizmente,
o tigre não se atreveu a atacar este lugar.
Alguns homens vieram ao nosso encontro quando chegamos às
escadas de Chak-chak. Perguntavam se estávamos bem, preocupados com o
fato de não termos veículos. Absolon e Karina trataram de acalma-los.
Enquanto subíamos as escadas, meus companheiros observavam o deserto
pelo qual viemos. O silêncio era quebrado apenas pelo vento e pelo som de
orações. Um guardião aproximou-se de nós, pediu que lavássemos nossas
128
mãos e retirássemos nossos calçados. Assim fizemos. Então,
adentramos aquele local sagrado.
Caminhamos por um corredor e, logo adiante, um homem, um
senhor de idade, com uma longa barba e usando roupas típicas. “Eu estava
esperando por vocês”, o senhor disse. “Eu sou Jamshed, e há muito não via
aqueles como vocês”.
“Jamshed!”, eu murmurei, “você é um urielita. É você quem
viemos ver”.
“A mim? Não, há alguém esperando por vocês, amigos”, o homem
disse sorrindo. Lágrimas escorriam por seu rosto. “Perdoem-me pelas
lágrimas, mas para mim é especial conversar com vocês. Nunca vira tantos
reunidos! Algo excepcional deve está ocorrendo. Por favor, há alguém que
quer vê-los, sigam até a pira, na sala adiante!”. Então, Jamshed deu
passagem. Meio confuso, resolvi obedecer e prossegui, os outros vieram
logo atrás de mim.
E adentramos num salão escuro, iluminado apenas por dezenas,
talvez centenas de velas e pela pira que exibia o fogo sagrado, aceso há
mais de dois mil anos por Zoroastro em pessoa. E ali, em meio a sombras e
luzes, um homem rezava ajoelhado, dizendo palavras na língua farsi. E
olhei aquele homem, vestindo um manto cinzento, com o topo da cabeça
careca, e seus cabelos que restavam eram grisalhos.
“Deus, o que quer de nós?”, ele orava. “Louvor ou veneração? Fale
e declare se haverá recompensa a quem ouvir. Ora, já sabemos que só o que
quer de nós é justiça e a autonomia da Boa Mente e essa é a própria
recompensa. Deus, esse é o caminho da Boa Mente que Você tem me
mostrado. É a religião do bem fazer, do que, quando justo, leva à
129
felicidade. Essa é a recompensa prometida, vinda só do Sábio. A
recompensa é de fato, ó Sábio, fazer a escolha de servir verdadeiramente à
comunidade de todos os seres, com ações de boa mente, e promover seu
plano de sabedoria através do bem-estar comum”.
Então, ao terminar aquela oração, o homem nos fitou com seus
olhos negros e levantou-se, mostrando-se ter cerca de 1,70 metros de altura.
Porém, foi ao levantar-se que pude realmente perceber a grandeza daquele
homem, pois era o maior homem que eu podia fitar e, embora fosse apenas
um senhor de idade, irradiava poder que superava qualquer outro ali
presente. E seus passos em nossa direção eram como passos de gigante,
tamanha era a presença daquele homem.
E, aproximando-se de nós, deixando-nos paralisados de admiração
pela sua poderosa aura, o homem ajoelhou-se, abaixando humildemente sua
cabeça e saudando-nos:
“Eu sou o Arcanjo Asphael Veritas, Serafim dos Veritatis
Perquiratores. Eu estava a sua espera, jovens, e agora estou à sua
disposição”.
130
Capítulo 9: Reflexões
“Vocês passaram por muita coisa”, disse o Arcanjo Asphael,
pensativo, após ouvir toda a nossa história. A luz do Sol da manhã entrava
pelas janelas da sala em que nos encontrávamos. Estávamos ajoelhados ou
sentados sobre almofadas no chão. Ao centro, velas. Tínhamos contado
tudo a ele: as profundezas de Libraria, o jarro, as palavras do Conselho
Veritas e as revelações em Dur Sharrukin. Então, o grande Arcanjo fitou-
nos um a um, dizendo: “Sem dúvida, sobre seus ombros está um grande
peso. Foi muito bom encontra-los, pois eu também carrego um grande
fardo, e sinto que vocês serão aqueles que concluirão minha missão”.
“Senhor Asphael”, eu me intrometi enquanto ele falava, “como
sabia que viríamos aqui? Quando chegamos, Jamshed, o Guardião, nos
disse que nos esperava”.
“Porque os vi em meus sonhos, jovem Nicodemus”, ele respondeu,
fitando-me com aqueles olhos negros, que pareciam analisar minha alma.
“E, em meus sonhos, Metatron surgiu e disse-me: ‘vá e guie esses jovens’.
Por isso vim. E agora vejo que vocês serão de maior importância do que eu
poderia imaginar”.
“Perdão por intrometer-me, Senhor”, disse Al-Malik
educadamente. “Mas você disse algo sobre sua missão. Que missão é
esta?”.
“Encontrar meu mestre, jovem. Por muitos anos, eu estive ao lado
de Uriel-chamado-Veritatis, mas nem mesmo eu podia compreender todo o
conhecimento dele. Sempre fui fascinado pelos mistérios que meu mestre
representava. Como podia um homem tão simples ser tão grande? Eu aspiro
131
ser como ele, mesmo sabendo que nunca o serei. Quando desapareceu,
jurei encontra-lo”.
“Por isso abandonou o Éden?”, perguntei.
“Não, jovem. Por mais de um século e meio eu o procurei, mas
ainda chamava o Éden de lar. Há três anos, algo mudou. Tive sonhos,
sempre relacionados a meu mestre. Estes sonhos mais traziam perguntas do
que respostas, mas eram as primeiras pistas que eu tive desde que Grande
Veritatis desapareceu. Há um ano, porém, um sonho me levou a deixar meu
lar, pois podia sentir que meu mestre estava próximo a mim. Eu sabia que
ele estava entre os mortais, caminhava entre os vivos. Mas, acima de tudo,
eu tinha certeza de que ele sofria. Por isso deixei o Éden, pois sabia que
precisava encontra-lo o quanto antes”.
“Sonhos, você disse?”, perguntou Absolon.
“Sim... Dêem-se as mãos, e os mostrarei a vocês”, respondeu
Asphael.
Então, nos entreolhamos. Estendi minhas mãos para Karina e
Ansgar, que estavam ao meu lado. A partir de então, um a um, juntamos
nossas mãos, formando uma corrente, na qual Asphael, no lado oposto ao
meu no círculo, estava incluído. “Fechem os olhos”, pediu Asphael. Assim
o fizemos. E então vimos os pesadelos que levaram o Arcanjo Asphael a
exilar-se do Éden.
E o silêncio que se seguiu foi quebrado por um trovão. E a
escuridão que vi provinha de uma grande tempestade que cobria os céus, de
horizonte a horizonte. E veio um clarão, tão forte quanto o Sol, em meio
àquele turbilhão de ventos e chuva. Eu pude sentir uma escuridão como
132
nunca senti antes, uma força irresistível e implacável, cujo rugido
ecoava na tempestade. O rugido de um tigre.
E a visão tornou-se dúbia, conforme víamos imagens de um
homem vigoroso e determinado caminhando entre chamas e escuridão. E vi
algo que eu não pude compreender. Senti um olhar terrível e infinito, e uma
sombra cuja forma é indescritível. As trevas cercaram o homem, mas não
puderam toca-lo. E um grito desesperado seguiu-se, conforme as trevas
desapareciam e um velho, caído, nu e em posição fetal, gritava de dor e
sofrimento. Os urros do tigre, agora distantes, anunciavam que a escuridão
agora buscava aquele velho.
Mas então, as imagens partiram-se e transformaram-se. Um novo
sonho, uma nova visão, surgiu diante de mim. E agora, o Sol brilhava alto
no céu, e pássaros cantavam. E vi novamente o homem vigoroso
caminhando pelos campos verdejantes. Havia paz e uma sensação
confortável de calor. A brisa soprava gentil. E então reconheci o homem
vigoroso. Grande Veritatis. Uriel. O Anjo dos Mistérios e da Morte. A Luz
Divina. Magna Veritas. E ele fitou o nada, onde pude sentir um mal pulsar.
E num gesto e algumas palavras, ele fez o solo rachar-se, deformando o
símbolo ali feito séculos antes e partindo o selo que separava Éden e
Inferno. E dos lábios do Grande Arcanjo, ouvi um murmúrio: “Perdoem-me
pelo que eu precisarei fazer”.
Escuridão inundou toda a minha visão, anunciando um novo sonho
de Asphael. E ouvi passos ecoando por uma caverna há mais de dois mil
anos atrás. E, empunhando um lampião que emitia uma poderosa luz
branca, o Arcanjo Uriel, Grande Veritatis, caminhava pelas profundezas de
133
recém-criada Libraria. Sob seu braço, o jarro. Seguindo seus passos,
urros ínfimos. Os urros de Leviathan.
Mais um sonho invadiu minha mente. Os céus tornaram-se
vermelhos, anunciando uma chuva de fogo. E vi os Campos Elíseos
queimando, e as hostes celestes voando para enfrentar um exército de
pesadelos. E prédios de Prístina caíam, suas ruas eram consumidas por
chamas. Demônios e anjos confrontavam-se no Paraíso. E mais uma vez,
Grande Uriel caminhou por aqueles campos, agora cheios de chamas e
fumaça sufocante, e fitou o gigantesco portal vermelho que levava ao
Inferno. E, fitando o Abismo, Veritatis viu o Abismo fita-lo em retorno. Os
olhos do Grande Arcanjo encontraram-se com as órbitas vazias de um
velho raquítico, trajando mantos negros. E, ao sorrir, o velho mostrou sua
mandíbula cheia de presas afiadas, rindo em seguida. E aquela risada
apertou meu coração. Ao ver aquelas órbitas vazias, eu pude ver o Abismo,
a danação em sua mais pura forma.
As imagens desapareceram. Abri meus olhos, fitei Asphael, que
permanecia calmo, porém mais sério do que antes. Os demais, espantados
com as visões, ficaram calados quando Asphael começou a falar: “Foi
então que senti meu mestre. Como ignorar sonhos como estes? Eu precisei
deixar o Éden e procura-lo. Mas agora, com a vinda de vocês, descubro que
este tigre, que esteve adormecido por três anos, finalmente despertou. E, de
alguma forma, este tigre é a chave para encontrarmos meu mestre”.
“O que é o tigre?”, perguntou Ansgar, um tanto assustado.
“Uma sombra de pura escuridão”, respondeu Asphael, “criada para
um propósito que ainda desconhecemos”.
“Por que ele atacou o Círculo de Uriel em Isfahan?”, perguntei.
134
“Não apenas em Isfahan”, respondeu Asphael. “Eu
investiguei... Ele tem causado o mesmo no Paquistão, na Índia e onde
surgiu, em Bangladesh. Embora esteja neste mundo há pelo menos três
anos, parece que só agora começou esse massacre. Jamshed me informou
que, no último mês, quatro outros capítulos de extrema importância para o
Círculo foram destruídos desta forma. Cada local foi atacado em espaços de
tempo cada vez menores. O tigre agora avança para seu próximo alvo”.
“Jerusalém”, murmurei.
“Exatamente”, concordou Asphael.
“Precisamos ir para lá imediatamente, então”, disse Ansgar. Eu
concordei.
Antes que nos levantássemos, porém, Asphael nos impediu: “Não.
Não se preocupem. Vocês precisam descansar antes”.
Eu interferi: “Senhor, com todo o respeito, mas se não
corrermos...”.
Asphael me interrompeu: “Está estampado em suas faces o impacto
de tudo aquilo pelo que passaram. Vocês adentraram em Dur Sharrukin,
vivenciaram imagens de um passado que chocaria a qualquer um, seja um
jovem Celestial ou um antigo Arcanjo. Estão cansados, inquietos,
impacientes e vulneráveis. Precisam descansar suas mentes e se preparar,
de corpo e alma, para o que virá”.
Asphael estava certo. Desde que tudo começou, estamos cada vez
mais calados e assustados, tomados por stress e medo. “Não se
preocupem”, ele continuou, “o tigre não chegará tão cedo a Jerusalém. Ele
viaja encoberto pela tormenta, correndo numa velocidade demoníaca, mas
135
mesmo ele levará tempo para chegar a seu destino. Até lá,
descansemos. Precisam relaxar a mente e preparar seus corpos”.
Ainda que tivesse certeza de que Asphael estava totalmente certo,
eu olhava com insegurança para meus companheiros. Seus olhares
demonstravam que sentiam o mesmo. Então, não tive outra opção a não ser
concordar: “Está certo, vamos descansar”.
“Permaneçam aqui esta tarde”, Asphael pediu, “Vocês partirão
algumas horas após o anoitecer, quando a noite já estiver caindo sobre
Jerusalém. Chegarão lá ainda antes do tigre, isso posso afirmar com
absoluta certeza”.
Concordamos. Talvez fosse realmente bom descansar antes que
prosseguíssemos em nossa jornada. Desta forma, cada um decidiu dedicar-
se a alguma atividade para passar o tempo que nos restava. Ficamos ali por
um minuto ou dois, em silêncio, enquanto cada um esperava que o outro
tomasse a iniciativa de sair. Absolon, cansado de esperar pela atitude
alheia, então se levantou, pediu licença e saiu. Feito isso, os demais
perderam a desconfiança e foram deixando a sala, até que restaram apenas
eu e Asphael ali.
“Deseja ainda falar comigo, Mestre Nicodemus?”, perguntou
Asphael.
Eu, meio acanhado por ter sido chamado de “mestre” por um
Serafim tão antigo, respondi: “Não sei, senhor. Não tenho nada a perguntar
nem a dizer, mas por algum motivo acho que ainda há algo a ser dito”.
“No momento, nada há a ser dito, Nicodemus. Se meditar e pensar
no assunto, terá as respostas que quer. Mais tarde nos falaremos, no
136
momento eu também vou descansar”, disse Asphael, levantando-se e
deixando a sala logo depois.
Permaneci ali sozinho, pensativo. O que me atormentava? Medo?
De quê? Talvez de encontrar o tigre? Talvez de encontrar Veritatis? Talvez
medo de falhar. Sim, eu tinha medo. A presença de Asphael fez-me sentir
pequeno. Na verdade, todos os eventos, desde o princípio, fizeram-me
pequeno. Eu me sentia num conflito de deuses. Mistérios que duraram
milênios sem respostas estavam diante de mim. Por que fui escolhido para
esta tarefa? Foi então que percebi que não era diferente dos outros...
Absolon, Fabrizia, Karina, Ansgar, Al-Malik, Wang ou eu, todos
tínhamos dúvidas de nossa capacidade. E ainda assim, todos adentramos
Dur Sharrukin e superamos seus desafios. Cada um teve um papel, seja
grande ou pequeno, e juntos superamos as dificuldades. Talvez este seja o
segredo. Se é assim, vou aproveitar o tempo que tenho para me preparar
para os novos desafios que virão. Talvez eu não seja capaz de supera-los,
mas preciso tentar, não importa o quão grande seja esse medo que sinto.
“Se meditar e pensar no assunto, terá as respostas que quer”, foi o
que disse Asphael a mim. É isso que farei. Ainda sentado sobre minha
almofada, fechei meus olhos e me concentrei, tentando ouvir os sussurros
dos espíritos ao meu redor. E, ao me ligar ao reino dos espíritos, pude sentir
novamente aquela presença...
A princípio, houve silêncio. Eu estava ali sozinho, tentando ouvir
os lamentos e sussurros dos espíritos. Mas então, ouvi trovões. Os ventos
sussurravam, indicando que um grande mal se afastava em grande
velocidade. A terra gemia com seus passos, enquanto a criatura se
deslocava em grande velocidade, rumo ao ocidente. Ele estava há milhares
137
de quilômetros de Chak-chak e se afastando rapidamente, mas eu podia
sentir sua respiração, como se ela criasse ondas que se alastravam por todo
o mundo, ecoando e fazendo o reino dos espíritos tremer. E as dúvidas
repetiam-se em minha mente: “Quem é você? O que você quer?”. Para
minha surpresa, uma voz masculina e forte ecoou, trazida pelos ventos.
“Liberdade”, ela dizia. Mas não fora o tigre quem respondera. A voz veio
dos trovões acima.
Algo cavalgava a tempestade.
Abri meus olhos, perdendo o contato com o reino espiritual. Olhei
ao redor, e o silêncio tinha voltado. Além da janela, estava apenas o
deserto, e uma brisa soprava. Ouvia vozes distantes, vindas do templo. E
nada mais. Levantei-me lentamente, ainda pensativo. O que significava
“liberdade”? O que está aprisionado? Leviathan? O tigre de alguma forma
tem alguma relação com Leviathan? Foi quando a porta abriu-se. Jamshed,
o guardião urielita de Chak-chak, adentrava. “Perdão”, ele disse, fazendo
sinal que iria se retirar, “não sabia que você estava aqui, senhor”.
“Não se preocupe, Jamshed”, respondi, aproximando-me dele.
“Pode conseguir um quarto para eu descansar? Gostaria de dormir um
pouco”.
“Sim, senhor, seria uma honra”, respondeu Jamshed. “Venha
comigo”. Ele então me levou a um pequeno quarto, no qual estavam um
colchão, alguns lençóis e uma estante de madeira, cheia de papéis e livros
velhos. “Este é meu aposento, senhor. Descanse bem”.
“Obrigado, Jamshed”, respondi sorrindo. Então, toquei seu ombro e
fitei seus olhos: “É um homem muito bom, e tenho certeza de que Deus
admira sua retidão”. Jamshed sorriu, agradecendo, então saiu fechando a
138
porta do quarto. Caminhei até a janela e, pensativo, observei o deserto
além. Fechei então a janela de madeira, deixando o quarto às escuras, e,
após retirar o chapéu, o sobretudo e os sapatos, deitei-me.
Um sono confortante e tranqüilo se seguiu... Na escuridão e
silêncio daquele quarto, consegui finalmente descansar, após tantas horas
desperto. Melhor ainda, nada surgiu para incomodar meus sonhos.
Nenhuma visão, nenhuma voz, nenhuma mensagem. Como se me
desligasse do mundo, pude finalmente recompor minha mente. Finalmente,
um merecido descanso.
O tempo correu, as horas passaram. Renovado, abri meus olhos
lentamente. O quarto ainda escuro, o vento ainda soprando no deserto lá
fora. Estava mais quente do que antes. Abri a janela e vi que já era tarde, e
o sol estava alto no céu. Coloquei novamente os sapatos e sobretudo,
peguei meu chapéu, abri a porta e saí, procurando pelos demais. Minha
mente estava limpa e tranqüila, embora ainda tivesse memórias de tudo.
Asphael tinha razão, precisávamos descansar. Eu estava tenso, com idéias
fixas. Aquele descanso não só me deu energias novas, como me fez pensar
com mais clareza.
Caminhei pelo corredor que levava para fora do templo. Conforme
descia a escada externa, vi Jamshed, que cumprimentou-me com um aceno.
Ao seu lado, estava Asphael Veritas, que ao ver-me caminhou em minha
direção.
“Está melhor, Mestre Nicodemus?”, perguntou Asphael. Disse-lhe
que sim, e o Arcanjo sorriu satisfeito. “Por mais dura que seja a missão de
um Celestial, não podemos deixar o descanso de lado. Por mais resistente
139
que seja o corpo, a alma ainda é frágil”. Concordei, sorridente, e então
perguntei onde estavam os outros.
“Cada um está passando o tempo como melhor convém”,
respondeu Asphael. “Logo após descansar um pouco, a jovem chamada
Karina disse que gostaria de visitar Persépolis e voou para o oeste. Ela é
uma senhorita encantadora, não? Parece-me muito forte de espírito, embora
frágil em corpo”.
Persépolis... as ruínas da antiga capital Persa, destruída por
Alexandre, o Grande. Coincidentemente, a destruição da cidade ocorreu na
mesma época em que Leviathan foi derrotado. “Karina é um espírito livre,
nada a prende”, eu disse. “Ela tem viajado de lugar a lugar, conhecendo as
pessoas mais diferentes. Incrível como ela está sempre sorridente, apesar de
todas os males que já presenciou”.
“Mas ela ainda é jovem, Mestre Nicodemus”, respondeu Asphael.
“Ela deve conhecer a fome, a morte e a guerra, mas estes são males
humanos. Não duvido que, com a força do espírito, ela traga um pouco de
alívio para as pessoas. Mas não acho que esteja preparada para a guerra”.
“De fato, Lorde Asphael, ela não está. Apesar de poder se defender,
ela não está pronta para a crueldade dos infernais ou mesmo dos homens.
De todos que me acompanham, eu temo que ela é quem mais poderá ser
marcada pelas dificuldades pelas quais possamos passar”.
“Chamou-me ‘Lorde’ Asphael?”, estranhou o Arcanjo. “Não
necessito de tais formalidades, Mestre Nicodemus. Não sou mais um
membro do Conselho, embora ainda mantenha, com orgulho, o título de
Veritas. Aqui, somos todos iguais”.
“Então, pare de chamar-me de Mestre”, pedi-lhe.
140
“Chamo-o assim pois irá me mostrar o caminho, por isso é meu
mestre”, disse Asphael, deixando-me confuso. Então, retornou ao assunto
anterior: “Mas sobre a jovem, acredito que esta tenha sido exatamente a
razão dos Guardiões ao escolherem-na: está na hora dela acordar para o
verdadeiro mal do mundo. Até hoje, ela lutou para curar as conseqüências,
não para impedir as causas”.
“Não acho que Karina deva perder sua inocência, Lorde... digo,
senhor Asphael”, disse-lhe.
Asphael fitou meus olhos, seriamente. “Todos devemos crescer,
Mestre Nicodemus. É duro, mas é o caminho da vida e da sobrevivência.
Todo jovem se torna adulto. Todo Anjo se torna Arcanjo. Sabedoria vem
através de experiência e das agruras da vida. Karina, em seu íntimo, não
mudará. Ela continuará sendo Karina, a menos que se corrompa. Porém, ela
precisa entender melhor o mundo e se preparar para ele”.
“Entendo”, respondi, virando o rosto e fitando o deserto adiante. “E
quanto aos demais? Onde estão?”.
“Acredito que a jovem Fabrizia precise desabafar. Ela está naquela
montanha”, disse Asphael, apontando. “Parece ainda muito tensa. Já os
homens estavam conversando quando os vi, num local sombreado no vale à
frente”.
“Obrigado, senhor Asphael, vou procurar Fabrizia”, respondi. Em
seguida, continuei descendo a escada, cumprimentei Jamshed, e caminhei
em direção ao vale. Devido à presença de fiéis e viajantes em Chak-chak,
seria melhor eu me afastar antes de assumir a Forma Angelical em pleno
dia. Assim, caminhei por alguns minutos sob aquele forte Sol, até me
afastar o suficiente de Chak-chak para que as montanhas e rochas
141
pudessem ocultar minha transformação. Retirando o sobretudo, toquei
minhas costas, sentindo a roupa rasgada ali atrás. Fechei os olhos e deixei
minhas asas saírem e se abrirem. Meu corpo tornou-se leve e, um instante
após, eu já me dirigia para os céus.
Voei baixo o suficiente para poder identificar silhuetas no solo,
mas não alto o bastante para que algum observador distante pudesse me
ver. Não havia qualquer viajante pelo deserto, de forma que não precisei
me preocupar demais em manter-me oculto. Segurando meu chapéu para
que o vento não o levasse, acelerei. Abaixo, sob a sombra de uma grande
rocha, vi meus companheiros: Ansgar, Wang, Al-Malik e Absolon. O
Malaki e o Princeps estavam sentados sobre uma toalha na areia, enquanto
Ansgar e Wang empunhavam suas espadas e duelavam amistosamente.
Tive vontade de descer e conversar, mas preferi continuar a procurar
Fabrizia. Assim, continuei em direção à montanha que Asphael indicara.
Elevei meu vôo, buscando a mulher. Não precisei procurar muito,
pois logo vi uma mulher solitária, sentada sob a sombra de uma rocha.
Fabrizia fitava o horizonte a leste, além de Chak-chak. Aproximei-me,
pousando ao seu lado. Ela desviou o olhar para mim, enquanto minhas asas
recolhiam-se e desapareciam. “Posso me sentar?”, perguntei, sorrindo
discretamente. Ela afastou-se um pouco, dando lugar para mim sob a
sombra. Ali sentei. “Está preocupada, Fabrizia?”.
“Estou”, ela sussurrou.
“Todos estamos”, disse-lhe. “É por isso mesmo que precisamos
relaxar e nos preparar”.
“Mas preparar-nos para quê?”, ela perguntou. “Sinto-me inútil
perto dos outros! Al-Malik e Wang possuem mais de uma centena de anos.
142
Ansgar me disse ter uns oito séculos de vida! E você é tão antigo e
sábio... Me sinto tão...”.
“Pequena?”, perguntei, completando sua frase.
“É”, ela respondeu, fitando o horizonte. “Sabe, eu fazia parte de
uma Falange no México. Eram jovens como eu, nos dávamos bem. Era
bom viajar com eles, conversar com eles, mas aqui... me sinto tão
deslocada”.
“E você acha que os demais não se sentem assim? Já parou para
pensar em Absolon e Karina?”.
“É diferente. Todos vocês já passaram por tanta coisa”, ela disse.
“Sim, mas nenhum de nós se sente preparado para a tarefa que foi
confiada a nós. Acho que todos nós estamos aqui para descobrir nossa
capacidade”.
“E se eu for uma inútil? E se só atrapalhar os que são mais
capazes?”, ela perguntou, abraçando as próprias pernas, ainda olhando para
o além ao leste.
“Quando estávamos diante do Conselho, você disse: ‘não pensem
que irão sem mim’. Quando eu disse que iria a Isfahan, você não hesitou
em me seguir. Por que então fez isso, se tem tanto medo?”.
“Eu não sei”, ela disse. “Achei que estaria sendo covarde se só
abandonasse o grupo”.
Fitei-a: “Se você se sente tão inferior, porque veio?”. Ela calou-se.
“Eu sei porque veio, Fabrizia”, continuei, “você está aqui para provar a si
mesma que é capaz. Você não quer ficar para trás. Não quer ser inferior a
ninguém”.
143
Ela me olhou, só então notei que olhava o horizonte para que
eu não a visse chorando. Agora, porém, pude notar as lágrimas percorrendo
seu rosto. “Você não é pior ou melhor do que nenhum de nós. Pode ser
menos experiente, mas isso não importa. Enquanto quiser nos acompanhar,
vai estar dando o melhor de si. Experiência e sabedoria não vêm com a
idade, mas com as dificuldades que enfrentamos. Não desista agora, ou vai
continuar se sentindo inferior”.
“Tenho medo, senhor”, ela confessou.
“Eu também”, eu disse.
Ainda me fitando, Fabrizia desabafou: “No México, meus
companheiros foram mortos, Nicodemus. Aquela coisa que enfrentamos...
era muito poderosa... Eu nunca me senti tão inútil quanto naquele
momento. Até então, ser Celestial era um sonho. Mas vi o quanto eu era
pequena. Tenho medo que isso aconteça de novo... que eu seja incapaz de
fazer a diferença desta vez também”.
Toquei seu ombro, segurando-o com firmeza, e fitei seus olhos
seriamente: “Não se preocupe, Fabrizia. Nenhum de nós vai morrer”.
“Como sabe disso, senhor?”, perguntou Fabrizia.
Sorri, lembrando-me das palavras do senhor Urias, e disse a
Fabrizia: “Por que não estamos sozinhos”. Levantei-me em seguida, fitando
o horizonte que antes Fabrizia observava. “Vamos até os outros?”.
“Está bem”, ela respondeu, ainda segura. Levantou-se em seguida.
As asas de ambos abriram-se, e descemos graciosa e lentamente a
montanha, flutuando em direção ao deserto abaixo.
“Sente-se melhor?”, perguntei, enquanto descíamos.
144
“Não muito, mas você está certo”, ela confessou. É nestas
horas que eu gostaria que um Líber nos acompanhasse... Eles sempre são
capazes de elevar os ânimos dos outros. Tudo o que eu podia fazer era dizer
palavras de encorajamento, mas sei que nem sempre elas são suficientes
para superar o medo e a insegurança.
Assim que tocamos o chão, recolhi minhas asas e coloquei
novamente o sobretudo. O Sol escaldante com certeza poderia debilitar
uma pessoa, mas felizmente ele não incomoda muito a um Celestial.
Fabrizia, que vestia naquele momento blusa, bermuda e tênis, deixando os
cabelos soltos, estaria totalmente vulnerável ao sol se fosse uma mortal.
Caminhamos por alguns minutos, conversando. Ela me contou um pouco
mais sobre seus companheiros e sobre o demônio que atacaram, embora
não desse nenhum grande detalhe. Após pouco tempo, já víamos nossos
companheiros na sombra à frente.
Ansgar ergueu o braço, acenando para nos cumprimentar. Al-
Malik, sentado sobre a toalha no chão, sorriu quando nos aproximamos.
Wang nos acompanhava com o olhar, enquanto Absolon, segurando a
grande espada de Ansgar, pediu que nos juntássemos ao grupo. Fabrizia
sentou-se sobre uma das toalhas que estavam no chão, enquanto eu preferi
permanecer em pé. “O que estão fazendo?”, perguntei.
Absolon, sorridente, juntando forças para empunhar, com ambas as
mãos, a espada de Ansgar, respondeu: “Ansgar e Wang estavam treinando.
Resolvi aproveitar para aprender a manusear uma espada”.
Cruzando os braços e sorrindo, perguntei: “E como está se
saindo?”.
145
“Ainda nem comecei. Essa espada do Ansgar pesa demais”,
respondeu Absolon, esforçando-se para manter a espada erguida. A arma,
com quase dois metros de comprimento, lâmina com dois gumes e cabo de
metal e couro, ao estilo medieval europeu, parecia desajeitada nas mãos do
Princeps.
“Aprenda uma coisa, Absolon”, interrompeu Ansgar. “Embora
tanto a minha arma como a de Wang sejam espadas, elas são usadas de
forma bem diferente. A lâmina de Wang é curva, mais curta e leve, com um
único corte, permitindo ataques rápidos e mobilidade. Minha arma é mais
pesada, dificulta a mobilidade e, se um ataque falha, você perderá muito
tempo para colocar novamente a espada na posição de ataque, deixando sua
defesa aberta”.
Wang sorriu. “Com uma arma assim, você tem que se concentrar
em atingir no primeiro golpe. Se errar, você perde”. Wang em seguida
colocou sua espada negra à frente do corpo, empunhando-a usando ambas
as mãos. “Está pronto?”, perguntou.
“Estou”, respondeu Absolon, mantendo a espada à frente do corpo,
pendendo levemente para a direita.
“Então ataque!”, disse Wang, permanecendo parado.
Absolon emitiu um grito, então se arremeteu na direção de Wang.
Ansgar deu um riso discreto, balançando a cabeça negativamente. Absolon
primeiro jogou os braços para a sua direita, e então deu um golpe horizontal
para a esquerda. Wang pôde escapar simplesmente recuando, e então
ergueu sua arma acima da cabeça, avançou e desferiu um golpe que
atingiria o ombro direito, totalmente exposto, de Absolon. A espada de
146
Wang parou pouco antes de atingir o Princeps, que não tivera sequer
tempo para reagir.
Ofegante, Absolon fitou Wang. Ansgar riu, dizendo: “Não ouviu
nada do que eu disse? Sua arma é lenta, se errar, você perde. Mas para
piorar, você atacou antes de estar pronto!”.
“Não entendi”, disse Absolon, virando-se para Ansgar e baixando a
espada. “Achei que já estava pronto para atacar”.
“Você atacou sem estar preparado”, elucidou Ansgar. “Tanto que
manteve a arma à frente do corpo e só no instante do ataque preparou o
golpe horizontal. Isso deu tempo a Wang de escapar facilmente. Você só
deveria atirar-se contra o oponente quando o golpe já estivesse pronto,
quando nada mais a fazer a não ser atingi-lo. Só mantenha a espada à frente
do corpo caso queira se defender, entendeu?”.
“Tudo bem, desculpe”, disse Absolon, erguendo novamente a
espada, desta vez já colocando os braços para a direita, deixando a espada
pendendo horizontalmente, pronto para desferir um golpe semelhante ao
original. “Podemos ir novamente?”, o Princeps perguntou. Wang se
preparou também e confirmou que sim, balançando a cabeça.
Absolon emitiu o grito novamente, avançando contra Wang. Então,
quando aproximou-se o suficiente, desferiu o golpe para a esquerda. Porém,
antes que sua espada pudesse atingir o Tenshi, este jogou-se para a frente,
atingindo com o ombro o peito de Absolon, fazendo-o perder o equilíbrio e
cair, largando a espada. Ansgar riu novamente.
Wang, sorrindo discretamente, estendeu a mão ao seu oponente
caído, ajudando-o a se levantar. “O que fiz errado desta vez?”, perguntou.
147
Wang respondeu: “Sua arma é longa, você deveria ter desferido
o golpe antes. Foi bem melhor que o primeiro, se tivesse feito
corretamente, seria difícil escapar. Mas você se aproximou muito, me
permitiu avançar para ataca-lo. Entrei no seu espaço de ataque e desferi o
golpe antes de você. Se fosse uma luta de verdade, teria perfurando seu
peito com minha espada”.
“A arma é tão grande por um motivo, Achille”, disse Ansgar a
Absolon. “Ela serve para atacar mantendo o oponente longe. Toda arma
tem esse objetivo. Se você deixa o oponente entrar num espaço menor ao
do seu ataque, ele conseguirá atacar mais rápido”.
“Entendi”, disse Absolon, pegando a arma caída. “Posso usar meus
poderes desta vez?”, perguntou.
“Fique à vontade”, disse Wang. “Mas usarei os meus se achar que
está com vantagem demais”.
Novamente, os dois se afastaram e se fitaram. Desta vez, Absolon
ergueu a espada acima de sua cabeça. Seu braço a princípio tremia, devido
à força necessária para erguer aquela arma, mas em seguida senti sua
energia fluir. Uma brisa fresca soprou em pleno deserto, e a espada parou
de tremer, conforme Absolon tornava-se mais forte. Olhei sua aura e vi um
brilho amarelado circundar o Princeps. O olhar de Absolon parecia mais
determinado. Os dois oponentes fitaram-se. Wang, sorrindo levemente,
parecia ansioso pelo embate com o inexperiente Celestial.
Absolon avançou. Embora não estivesse mais rápido, pude
perceber que estava mais atento e preciso. O Princeps deferiu um golpe
vertical, de cima para baixo, parando a espada quando esta estava
perpendicular ao corpo, forçando Wang a jogar-se para a esquerda para
148
escapar. O Kage então desferiu um golpe horizontal, na altura do
ombro de Absolon. Por incrível que pareça, o Princeps reagiu a tempo,
girando o corpo para a esquerda e recolhendo a espada, de forma que
ambas as lâminas se chocaram. Ambos em seguida recuaram, afastando-se
e fitando-se. Wang sorria.
“Muito bom”, comentou Ansgar. “Ele reagiu rápido, e a força
adicional o ajudou a manipular a espada com mais precisão”.
Absolon estava ofegante, sorridente por ter feito um movimento tão
surpreendente. Wang sorria ainda mais, satisfeito com o resultado. Então, a
face do Kage tornou-se séria, ele fitou seu oponente, e arremeteu-se em sua
direção. Absolon pôs a espada verticalmente à frente do corpo para
defender-se, mas Wang foi mais rápido, atacando o ombro esquerdo do
Princeps com um golpe de perfuração, forçando-o a jogar-se para a direita.
O golpe do Kage erra, dando ao Princeps a chance de atingir as costas do
oponente. Assim que prepara o golpe, jogando os braços para a direita,
porém, Absolon cai no chão, perdendo o equilíbrio. Conforme Absolon
tenta se levantar, amaldiçoando-se por ser tão desajeitado, o Kage gira o
corpo, desferindo um golpe horizontal que pára pouco adiante da cabeça do
oponente caído.
“Você esqueceu que sua arma é grande e pesada, Absolon”, disse
seriamente o Kage, fitando os olhos do Princeps. “Ao se jogar para o lado,
já tinha perdido parte do seu equilíbrio. Ao tentar atacar tão rápido, nem
sua força foi suficiente para manter-se de pé. A espada serviu como um
peso, tirou todo o seu equilíbrio”.
Ansgar aproximou-se, pegando a espada que Absolon deixara cair.
“Com esta arma, você precisa dar ataques precisos e com segurança. Ela
149
não serve para contra-ataques rápidos. Se usasse uma arma leve e
menor, como a cimitarra de Al-Malik ou a espada de Wang, talvez tivesse
se saído bem”.
“Mas neste caso eu não teria feito o mesmo ataque”, disse Wang,
sorrindo sarcasticamente.
“Bom, desisto”, riu Absolon, levantando-se. Eu ri um pouco, vendo
todo aquele treino e pensando que eu não tinha a menor aptidão para
combate. Aproximei-me dos duelistas, congratulando Absolon pela
performance. Absolon agradeceu, e então virou-se para Wang,
perguntando: “Você usou seus poderes ao me atacar?”.
“Não”, respondeu Wang. “Não achei necessário”.
Absolon riu. “Assim você me humilha. Ainda tenho muito a
aprender”.
"Ele tem idade, experiência e perícia maiores, dificilmente você ia
vence-los, a menos que seus poderes ofensivos fossem mais
desenvolvidos", comentei.
Uma vez veio por trás de nós: “Lutou bem, Achille”. Era Karina,
que chegava, sorridente. Tinha uma bandana na cabeça, vestia jaqueta,
calça e blusa, e levava sua mochila nas costas.
“Oi, Karina”, cumprimentei-a. Absolon aproximou-se também,
perguntando como foi o passeio dela a Persépolis. “Ótimo, Achille. Você
devia ter vindo”.
“Que tal continuarmos o nosso treino?”, perguntou Ansgar. “Não
quer aprender a usar espada, Karina?”.
Karina riu. “Não, obrigada, não preciso disso. Não quero aprender
a usar. Sei me defender, acho”.
150
“Sabe lutar, Karina?”, perguntou Al-Malik. “Não sabia”.
“Bom, sei me defender um pouco. Quer dizer. Não sou boa em
nada relacionado a violência, mas sei defesa pessoal. Um pouco, pelo
menos”.
“Entendo”, respondeu Al-Malik.
Ansgar dirigiu-se ao Malaki então: “E quanto a você, Al-Malik?
Por que não treina conosco?”.
“Estou aprendendo ao observa-los, Ansgar”, respondeu Al-Malik.
“Talvez mais tarde eu participe. Por que agora não tenta empatar com Lo
Wang?”, perguntou.
“Empatar?”, questionei.
“Sim, Lo Wang e Armin Ansgar já duelaram três vezes hoje. O
Tenshi teve duas vitórias”, respondeu Al-Malik, rindo.
Ansgar empunhou sua espada e fitou Wang, que sorria
discretamente. “Por mim, tudo bem”, disse o Kage. Ansgar então aceitou o
desafio. Os dois se afastaram e então se fitaram. Ansgar, empunhando sua
espada com ambas as mãos, a ergueu um pouco acima do ombro direito.
Wang empunhou a espada à frente do corpo, em posição defensiva, mas
pendendo-a levemente para a direita, o que lhe permitiria armar um ataque
rapidamente, se necessário. Ambos permaneceram parados por alguns
instantes, cada um analisando seu oponente. Então, num movimento rápido,
Ansgar avançou, emitindo um urro de batalha.
Então, assim que chegara a uma distância adequada do oponente,
Ansgar atacou, desferindo um golpe em diagonal, da esquerda para a direita
e de cima para baixo. Wang reagiu rapidamente, dando um passo para trás
e curvando o corpo para evitar a lâmina do oponente. Ansgar lançou seu
151
ataque a uma distância exagerada, permitindo ao oponente recuar.
Wang lançou-se ao contra-ataque, mas então Ansgar sorriu, também
recuando e, ao mesmo tempo, desferindo um golpe contrário ao original, da
direita para a esquerda e de baixo para cima, contra o oponente que acabara
de entrar no alcance de sua lâmina. Notando que caíra na armadilha do
adversário, Wang tentou bloquear o ataque, e as lâminas chocaram-se.
Foi quando Lo Wang foi derrubado. A espada leve e ágil de Lo
Wang não conseguiu conter a força do golpe de Ansgar, fazendo com que o
Tenshi perdesse o equilíbrio e caísse. Ansgar recolheu a espada para a
esquerda de seu corpo, apontando-a para o adversário caído. Então, quando
Lo Wang se levantou, num salto, Ansgar avançou, deixando a ponta de sua
espada próxima à garganta do Tenshi.
Karina aplaudiu, e Absolon, Fabrizia, Al-Malik e eu o fizemos em
seguida. “Incrível”, disse Absolon.
“Ataquei-o a uma grande distância sabendo que o forçaria a recuar
para não ser atacado”, disse Ansgar. “Planejava exatamente atingi-lo no
contra-ataque. Minha espada é maior e mais pesada, e minha força também
supera a de Wang. Então, foi fácil derruba-lo”.
Wang estava sério, fitando o Venator mas logo começou a rir.
“Parabéns, você realmente me pegou”, disse Ansgar ao estender a mão ao
Tenshi, que o cumprimentou. Então, ouvi um aplauso lento e solitário.
Viramos e fitamos Lorde Asphael, que se aproximava, caminhando pelo
deserto. Estranho como ninguém tinha visto o Arcanjo aproximar-se e, de
repente, ele estava ao nosso lado.
“Foi uma bela demonstração”, disse Asphael.
152
“Obrigado, senhor”, disse Ansgar, abaixando a cabeça. Wang
fez o mesmo.
“Vim avisa-los que partirão à meia-noite”, disse Asphael. “Será
cerca de onze horas em Jerusalém. Acredito que ainda assim chegarão antes
do tigre”.
Agradeci pela informação. Ainda tínhamos várias horas pela frente,
o que era bom. Estava divertido passarmos este tempo juntos. Não tivemos
tempo antes para nos conhecermos melhor e adquirirmos qualquer laço
mais forte de companheirismo. Essas horas seriam fundamentais para que
eu e meus companheiros nos enturmássemos melhor.
Então, quando pensei que Asphael iria se retirar, ele aproximou-se
de Ansgar e Wang. “Gostaria de também participar deste treinamento”,
disse o Arcanjo. Todos o olharam espantados. “Posso?”, ele perguntou,
sorrindo gentilmente.
“Claro, senhor”, hesitantemente respondeu Ansgar.
Asphael voltou-se para Al-Malik: “Pode me emprestar sua
cimitarra, Mestre Al-Malik?”, perguntou. “Claro”, respondeu o Malaki,
meio sem jeito, que então levantou-se, sacou sua espada e entregou-a ao
Arcanjo.
Asphael afastou-se dos outros dois guerreiros, virou-se para eles e
empunhou a cimitarra com ambas as mãos, ereta diante do corpo. Ansgar
perguntou-lhe: “Com quem gostaria de duelar primeiro, senhor? Eu ou
Wang?”.
“Ambos”, respondeu Asphael. “Gostaria de saber se ambos são
capazes de agir em conjunto, pois já sei que são excelentes guerreiros”.
153
Todos os espectadores se entreolharam. Sendo um Arcanjo de
tão avançada idade, eu tinha certeza que este não era um blefe nem um
sinal de arrogância. Porém, Asphael Veritas sempre foi um grande
estudioso, nunca um guerreiro. Eu, como Perquirator, jamais vi a mim ou
outros de meu Clero como grandes lutadores. Talvez observar Asphael
pudesse ajudar-me a mudar esta visão limitada de meu Clero.
Ansgar e Wang se fitaram, então Wang deu um passo à frente,
segurou com ambas as mãos sua arma negra e começou a se aproximar
lentamente do Arcanjo à frente. Ansgar ergueu sua arma, também com
ambas as mãos, acima da cabeça, preparando-se para um poderoso golpe.
Pude notar tensão nos olhos de ambos, mas a face calma de Asphael
transmitia uma serenidade sem igual. Passo a passo, Wang avançava,
cautelosamente. Ansgar mantinha-se a certa distância, mas também deu
alguns passos à frente. Então, todos pararam repentinamente.
Um duelo silêncio se seguiu, tanto Wang como Asphael se
encarando, cada um analisando seu oponente. Ansgar deu mais passos à
frente, buscando dar a volta pela esquerda de Asphael. No momento em
que o olhar de Asphael desviou-se para o Venator, Wang avançou,
silenciosa e repentinamente.
As espadas chocaram-se, e Wang recuou um passo, então atacou
novamente. E mais uma vez as espadas chocaram-se. Um novo recuo do
oriental. Ao mesmo tempo, a cada defesa que realizava, Asphael movia-se
um pouco para a direita, de forma a deixar sempre Wang à frente de
Ansgar, impedindo um ataque do Venator. Asphael então recuou,
direcionou a espada à direita de seu corpo, e avançou, desferindo um golpe
horizontal, da direita para a esquerda. Wang tentou bloquear o ataque, mas
154
as lâminas chocaram-se com tamanha força que Wang foi empurrado
para a esquerda de Asphael, perdendo o equilíbrio, cambaleando e caindo.
Com Wang caído, Ansgar avançou, atacando repentinamente,
desferindo, com toda a força, um golpe vertical contra o ombro esquerdo de
Asphael. O Arcanjo, porém, ergueu sua espada, segurando-a
horizontalmente acima de sua cabeça, e apoiando as costas da lâmina com
sua mão esquerda. O estrondo do choque de metal com metal foi forte, e
notei que a lâmina da cimitarra estava danificada, quase se partindo, mas
Asphael bloqueara o golpe com sucesso, mesmo usando uma espada mais
leve e frágil. Wang se levantou num salto, enquanto Ansgar e Asphael
permaneceram na mesma posição. O Venator tentava forçar sua espada
contra a lâmina de Asphael, para mantê-lo um alvo fácil.
Então, no momento em que Wang preparou seu ataque, Asphael
ergueu ainda mais a mão direita, que empunhava a arma, e abaixou a mão
esquerda, que apoiava a lâmina, jogando o corpo para a direita. A própria
força que a espada de Ansgar exercia serviu para faze-la deslizar pela
lâmina curva de Asphael, permitindo que não só Asphael escapasse da
armadilha, como também que a lâmina de Ansgar entrasse no caminho do
ataque de Wang, forçando o oriental a adiar seu golpe.
A lâmina de Ansgar bateu violentamente contra o solo do deserto.
Não tendo tempo para ergue-la novamente, Ansgar foi surpreendido por um
ataque de Asphael, que girou o corpo e a lâmina, parando-a próxima ao
pescoço do Venator. Ansgar observou o Arcanjo, ainda sereno, e então caiu
de joelhos, sabendo que tinha sido derrotado. Asphael então voltou sua
atenção a Wang.
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Lo Wang permaneceu imóvel, nervosamente observando o
adversário. A serenidade de Asphael ainda era a mesma, o Arcanjo parecia
intocável, como se tivesse pleno controle da situação. Wang por um
instante observou os espectadores. Foi quando Asphael avançou, saltando
por cima da lâmina caída de Ansgar. As espadas chocaram-se. Wang tentou
recuar, mas Asphael atacou novamente. A cada ataque, o Arcanjo parecia
exercer mais força e se mover mais veloz, forçando Wang a reagir apenas
recuando e bloqueando os golpes incessantes. Não durou até que Wang
perdesse o equilíbrio e caísse no chão, após bloquear um golpe
extremamente forte. Asphael apontou sua lâmina para Wang, ainda sereno.
O Tenshi sabia que tinha perdido.
“Vocês se saíram muito bem”, disse Asphael, sorrindo
amistosamente. Em seguida, ele deu meia-volta e caminhou em direção a
Al-Malik. Enquanto se aproximava, o Arcanjo deslizou sua mão pela
lâmina da cimitarra, restaurando-a por completo, como se a arma tivesse
sido forjada há poucas horas. Então, entregou-a ao Malaki, agradecendo.
Wang e Ansgar levantaram-se e se aproximaram do resto do grupo.
Absolon comentou: “Gostei de usar a espada. Acho que vou tentar treinar
mais quando tiver a chance”.
“É uma boa escolha”, disse Asphael, “Mas não apenas a espada,
vocês devem todos expandir seus horizontes. Os guerreiros precisam
adquirir conhecimento, os sábios precisam se defender. Embora cada um
aqui tenha sua especialidade, é preciso estar preparado para tudo. Eu não
sou guerreiro, sou apenas um estudioso, mas a necessidade me fez aprender
muito sobre a arte da guerra”.
156
“Mas”, interrompeu Fabrizia, “e se precisarmos lutar agora? Eu
não sei nada sobre espadas... Tenho uma arma, mas duvido que seja tão
eficiente. O que vamos fazer?”.
Asphael a fitou seriamente. “Hoje tivemos um duelo de espadas,
mas isso não significa que espadas ou machados sejam armas reais. Elas
são apenas utensílios”. Então, um vento forte soprou, erguendo colunas de
areia, e os olhos de Asphael Veritas brilharam como o Sol. “Vocês são
armas. Cada uma de suas habilidades pode ser usada a favor do grupo.
Danificar o oponente não é sempre necessário. O que se busca é a vitória,
não obrigatoriamente morte. Você, jovem Fabrizia, tem toda a natureza
como arma. Eu jamais consideraria você como inofensiva, e você jamais
deveria se considerar desarmada”. O vento então cessou, Asphael fechou
seus olhos. “Agora, tudo o que precisam fazer é esperar. Conversem, riam,
treinem, discutam, conheçam-se, pois a união de vocês vai ser fundamental
se desejam agir em conjunto”.
Sorri, agradecendo pelos conselhos. Asphael então pediu licença e
retornou a Chak-chak. Pelas horas seguintes, permanecemos juntos.
Contamos histórias, assistimos a mais duelos e treinamos. As horas
passaram-se, o Sol se pôs. Então, cada um tomou seu rumo, para preparar a
retomada de nossa missão.
Encontramo-nos mais tarde, cada um já preparado. Cada um
novamente vestido para guerra. Armin Ansgar, Achille Absolon, Karina
Ariel, Fabrizia, Lo Wang, Abd Al-Malik e eu, Philipe Nicodemus, nos
reunimos ao redor do fogo sagrado e ali oramos, pedindo proteção e boa
sorte em nossa jornada.
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Por fim, quando caiu a meia-noite, descemos pelas escadarias
de Chak-chak. Todos sérios, mas mais tranqüilos do que quando tudo
começou. Ali, na base da escadaria, dois homens nos esperavam: Jamshed e
Asphael. Quando chegamos a eles, Asphael deu alguns passos à frente,
aproximando-se de mim. Notei que vestia um manto cinzento, parecido
com um sobretudo, e por baixo roupas árabes, de cores claras. Na mão,
portava uma grande espada, menor que a de Ansgar, com dois gumes,
lâmina firme e pesada e cabo prateado.
“Senhor Asphael, viemos agradecer-lhe por tudo o que fez por
nós”, eu disse em nome do grupo.
“Agradecer-me? Eu que os agradeço”, ele respondeu, cravando a
espada no chão, logo à minha frente. “Gostaria de fazer-lhes um pedido”.
“Sim, seria uma honra atender a um pedido seu”, disse-lhe.
Então, Asphael Veritas ajoelhou-se, abaixando a cabeça e
segurando o cabo da espada com ambas as mãos: “Mestre Nicodemus, eu
humildemente peço a honra de acompanhar-lhes em sua missão. Este servo
se põe a seu dispor”.
Por um instante, fitei meus companheiros, então olhei o Arcanjo
Asphael Veritas, Serafim entre os Veritatis Perquiratores, e respondi-lhe:
“Será uma honra lutar ao seu lado”.
Desta forma, Asphael Veritas uniu-se a nossa Falange.
158
Capítulo 10: Via Crucis
Assim que atravessei o portal de Asphael, um trovão saudou minha
chegada. O chão desapareceu sob meus pés e minhas asas me sustentaram.
Então, vendo o Arcanjo à minha frente distanciar-se, acelerei, planando em
sua direção. Um a um, nossos demais companheiros atravessaram o portal e
puseram-se a nos seguir pelos céus turbulentos. Assim que o último, Al-
Malik, atravessou a passagem, esta se fechou. O Arcanjo aumentou a
velocidade seu vôo, sua aura ampliou-se, tornando-se um brilho dourado
tão intenso que deixava um rastro de fogo espectral pelos céus de
Jerusalém.
Prosseguíamos por entre nuvens negras, sendo atingidos por
rajadas de vento intensas e ouvindo o som de milhares de trovões. Não
chovia, mas era como se uma tempestade de proporções catastróficas se
aproximasse da cidade santa. Abaixo, víamos as luzes da cidade, tão
distantes. Acima, apenas a negritude da noite. E, à frente, eu podia sentir
algo se aproximar. Algo negro e pútrido como nunca sentira antes. Apesar
de estar a quilômetros de distância, aproximava-se rápido. Chegaria esta
noite, acompanhando a tormenta. O tigre estava vindo. Eu podia ouvir seu
rosnar ecoando pelos reinos espirituais.
Então, Asphael elevou-se em vôo vertical, abrindo os braços e
girando. Senti um vento quente e poderoso formar-se, então girando e
ascendendo ao nosso redor, acompanhando o movimento do Arcanjo.
Quando Asphael parou, de braços abertos, a coluna de ar formada
continuou, abrindo um vão nas nuvens, uma área de calmaria em meio ao
céu tempestuoso. Fitando-me, Asphael falou tanto em nossos ouvidos como
mentes, com voz de trovão: “Meus amigos, chegamos agora a um ponto
159
crítico em nossa jornada. Ainda que eu tenha me juntado a vocês há
apenas algumas horas, posso afirmar que nada do que presenciaram pode se
comparar ao que talvez iremos ver agora”. O Serafim apontou para o leste.
“Só agora é possível perceber que há mais nesta criatura do que podíamos
imaginar. Nenhuma manifestação infernal teria tanto poder, a menos que
estivesse envolvida em uma missão de extrema importância. Quando decidi
me unir a vocês, eu sabia que algo de grandes dimensões estava para
ocorrer. Agora vejo que meu julgamento estava certo”.
“O que faremos?”, perguntou Karina, gritando para se fazer ouvir
em meio ao vento e aos trovões.
Asphael respondeu: “Estamos sobre a velha Jerusalém, a cidade
sagrada para três religiões, sobre cujas ruas foi derramado tanto o sangue
de um Messias como o de centenas de milhares de fiéis. O tigre busca algo
aqui, neste templo de fé. Acredito que uma pista importante para
encontrarmos o significado de seus sonhos está em algum lugar nesta
cidade. Precisamos impedir que o tigre chegue. Iremos ao seu encontro”.
“Espere!”, gritei. “Meus sonhos mostravam mais do que apenas o
tigre! Quando vi Jerusalém, também senti algo escondido aqui. Um mal
que alimentava a violência desta terra!”.
Os demais me olharam, e Asphael disse-me: “É verdade. E não
descarto que este mal seja exatamente a pista que procuramos. O tigre
procura o velho de seus sonhos, e este é o nosso objetivo também. Talvez
este mal tenha as respostas que desejamos. Nem nós nem o tigre fomos
atraídos para Jerusalém à toa”.
“Então iremos caçar o tigre e depois buscar esse mal?”, perguntou,
também aos gritos, Ansgar.
160
“Não”, disse-lhe Asphael. Então, sua voz tornou-se ainda mais
poderosa e seu brilho intensificou-se: “Eu proponho nos dividirmos. Eu irei
para o leste e procurarei pelo tigre. Vocês descerão à cidade sagrada e
buscarão o mal que permeia este templo”.
“Não pode nos deixar sozinhos agora!”, gritou Fabrizia.
“Precisamos de sua ajuda”.
“Vocês não estarão sozinhos, jovem Fabrizia”, respondeu Asphael.
“Estarei com vocês a cada instante. Retornarei assim que encontrar o tigre.
E, se vocês encontrarem o que buscam, eu também saberei. Confiem em
mim”.
“Vamos descer”, gritei aos demais. Então, pus-me à frente do
grupo, percorrendo o céu negro e reduzindo minha aura para não ser visto
por mortais. Os demais me seguiram. E, conforme descíamos rumo ao solo,
vi a redoma de tranqüilidade ser engolida pelas nuvens trovejantes, e o
Arcanjo Asphael rumou para o leste, deixando para trás apenas um grande
rastro luminoso.
As luzes abaixo nos guiavam. Cercada por muralhas seculares de
quase 12 metros de altura, exibindo arquitetura e construções que
sobreviveram ao tempo, estava nosso destino: Antiga Jerusalém, cidade
sagrada para as três grandes religiões monoteístas do mundo. Conforme
descíamos, pude sentir uma aura estranha, um resquício de santidade. O
mesmo sentimento de santuário que temos quando em um Nodo Celeste,
mas aqui algo contaminava tal pureza. O sangue derramado e o ódio racial
contaminam este local sagrado, assim como uma aura negra de violência.
Fui o primeiro a tocar o chão de pedra de uma das apertadas ruas da
cidade sagrada. Recolhi minhas asas e pus meu sobretudo e chapéu,
161
enquanto meus companheiros, um a um pousavam ali. Assim que
pousou, Al-Malik ajoelhou-se e beijou o solo, então se levantou e fitou-me.
“Há muito tempo não venho a Jerusalém”, ele disse a mim. Estávamos
numa ruela de pedra, estreita, sem calçadas. Diversas lojas se dispunham
pela extensão da rua, dando-lhe a aparência de uma galeria comercial. Os
prédios antigos e baixos faziam parecer que havíamos voltado no tempo.
“Estamos no Bairro Armênio”, disse a meus companheiros.
“Daqui, precisamos decidir aonde iremos e o que buscaremos”. Trovões
ecoaram, mostrando que o centro da tempestade estava cada vez mais
próximo. “Não temos muito tempo a perder”, acrescentei.
“Esta cidade não é segura”, disse Al-Malik, fitando-me. “Israel está
em estado de alerta. O número de atentados terroristas tem aumentado, as
forças de segurança israelenses estão paranóicas. Aos olhos deles, nós
seríamos apenas estrangeiros ilegais, sem identificação e armados”.
“Tem razão”, concordei. “Estamos próximos a uma biblioteca do
Círculo de Uriel. Tudo indica que este lugar será o alvo do tigre. Seria
melhor que fôssemos para lá e, após conversarmos com seus guardiões,
tomarmos as decisões do que precisamos fazer”.
“Sim”, respondeu-me Al-Malik. “Mas devo também alerta-los de
outra ameaça, muito maior do que as forças israelenses”.
“Como assim?”, perguntou Ansgar, tocando o ombro do Malaki.
Al-Malik virou-se para Ansgar. “Esta é a terra de Íblis Al-Qadim”,
respondeu. “Quando o Profeta trouxe união, paz e fé a estas terras, os
demônios e falsos deuses que antes eram adorados pelas tribos árabes
revoltaram-se, iniciando uma guerra. Os exércitos de Al-Jannah, liderados
por Gabriel-chamado-Jibril, desceram à Terra e lutaram com os demônios,
162
que foram expulsos. Assim, nasceu a Corte Malaki, para proteger estas
terras da ameaça dos Djinni, Ifriti, Shaitani e Maridi”.
“O quê significam estes nomes?”, perguntou Wang.
Al-Malik respondeu-lhe: “Djinni são os seres da noite, tanto
aqueles que mudam de forma como os que sugam o sangue do vivo, bem
como os monstros que espreitam nos desertos. Os Maridi são aqueles que
provém do Inferno e buscam a corrupção de almas. Shaitani são os
Decaídos que posavam de deuses e abusavam dos mortais que seguiam as
velhas crenças. E Ifriti são os Decaídos que se venderam ao Inferno”.
“Entendo”, disse Wang.
Al-Malik em seguida deu uma pausa, fitou pensativo os céus
turbulentos acima, e continuou: “Porém, os demônios e falsos deuses, que
antes lutavam entre si, foram reunidos pela maior das sombras: Íblis Al-
Qadim, Grande Lorde da Tirania. O demônio tornou-se um deus negro para
essas criaturas da noite, formando um exército de trevas para combater os
seguidores do Profeta”.
Acrescentei aquilo que eu conhecia: “As Cruzadas, a ocupação
Européia, as crises entre Judeus e Palestinos, o terrorismo alimentado pelo
fundamentalismo, os ditadores sangüinários, as ocupações e conflitos...
Tudo isso é alimentado por Íblis, não é?”.
“Exato, Nicodemus”, respondeu-me Al-Malik. “O deus negro dos
Shaitani não pode agir diretamente, então envia seus demônios e falsos
deuses para semear discórdia e conflito. E ele não é o único”.
“Como assim?”, perguntei.
“Também a Corte Negra de Lúcifer tem interesses nesta terra,
Nicodemus”, o Malaki acrescentou. “Por séculos, enviados de Lúcifer têm
163
combatido os Shaitani e Maridi, buscando estender a influência da
Corte Negra para o Oriente Médio”.
“Então, o que devemos fazer, sabendo de tudo isso?”, perguntou
Fabrizia.
“Vamos tentar passar despercebidos neste conflito”, respondi. “Não
quero que nos envolvamos nessas políticas conturbadas dos Impuros.
Vamos o quanto antes encontrar a biblioteca dos Urielitas”.
“Talvez seja melhor procurarmos o Principado de Jerusalém,
Nicodemus”, disse Al-Malik. “Eu o conheço há muitos anos Ele é um bom
homem, temente a Deus. Ele poderá nos dar informações mais precisas
sobre a cidade”.
“Iremos primeiro aos Urielitas”, insisti. “Precisamos nos reunir
num local seguro para decidir o que fazer. Depois procuraremos o
Principado. Acho melhor não envolvermos os Celestiais dessa terra em
nossa missão, pelo menos até termos uma idéia do que procuramos nesta
cidade”. Al-Malik concordou.
“Onde fica a biblioteca?”, perguntou Karina.
“É próxima à Igreja do Santo Sepulcro, no bairro cristão”,
respondi. Então, por curiosidade, perguntei: “Já esteve em Jerusalém,
Karina?”.
“Sim, já”, ela disse, “mas faz muito tempo...”.
Assim, percorremos as ruelas de Jerusalém, evitando as vias
principais. A cidade adormecida estava silenciosa, embora o som do vento
uivando percorria as ruas e becos. Os trovões acima me davam a impressão
de que os raios da tormenta caíam todos nas proximidades da Cidade
Velha.
164
Enquanto caminhávamos, Al-Malik parecia saudoso. Ansgar
aproximou-se do Malaki, perguntando: “Você nasceu nessas terras, Al-
Malik?”.
“Não, Ansgar. Venho de Medina, mas Jerusalém é uma terra
importante para mim. Na verdade, seja no Iraque, na Palestina ou na Arábia
Saudita, eu me sinto em casa e lembro-me, ao ver os seguidores do Profeta,
de minha vida passada”, respondeu o Malaki. “Eu já fui um Imã em
Medina e tenho muitas memórias daquela época”.
“Quando você viveu, Al-Malik?”, perguntou Fabrizia,
interessando-se pela conversa.
“Eu já sou um pouco velho, jovem Fabrizia”, Al-Malik disse. Ele
então coçou sua barba, calculando sua idade, e continuou: “Morri há um
século e trinta e três anos. Sou jovem demais para ter presenciado a Quarta
Grande Guerra, mas velho o suficiente para ter vivenciado muitos fatos e
muitas tristezas”.
“Deve ser incrível ter vivido tantas épocas”, comentou Fabrizia.
“Fico imaginando como deve ser viver tanto, aprender tanto...”.
“Realmente, é incrível. Aprendi tanto sobre as pessoas, os povos e
as religiões, que me sinto privilegiado”, respondeu Al-Malik, “mas ainda
sinto que há tanto diante de mim que não consigo perceber. No fundo, sou
tão inseguro quanto vocês mais jovens. Sempre há alguém acima de nós...
mais experiente, mais sábio, mais confiante e mais justo. Devemos nos
inspirar nestas pessoas”.
“Como os Primi?”, perguntou Absolon. Houve silêncio logo em
seguida, visto que ninguém realmente sabia como continuar a conversa.
Continuamos a percorrer as ruas de Jerusalém. Foi quando Absolon
165
continuou: “Fico imaginando... Os Primi podem tudo, são tão
superiores, tão poderosos... Por que então nós somos necessários? Digo...
um Arcanjo ou um Primi poderia resolver os problemas com muito mais
facilidade do que qualquer um de nós”.
“Porque nós também precisamos evoluir e atingir a grandeza”,
respondi. “É isso que percebo, visto que sou também um Arcanjo, ainda
que um tanto jovem e inseguro. Eu já sei muito, já conheço muito, já vivi
muito. E por isso mesmo, acho melhor que os mais jovens também
experimentem muito para evoluírem. Cada um precisa aprender a caminhar
com as próprias pernas, ao invés de ter de ser constantemente protegido e
guiado. Não é por isso que mantemos o Segredo? Os que ainda vivem
precisam evoluir por si mesmos, ao invés de ficarem esperando milagres ou
ajuda divina”.
Absolon, porém, ainda tinha uma dúvida: “Mas há certas
dificuldades que só eles podem vencer. Ainda assim, eles parecem jamais
se envolver diretamente com nada”.
Foi neste instante que senti um calafrio percorrendo minha espinha.
Fiz um sinal para que Absolon ficasse em silêncio por um instante. “O que
foi?”, sussurrou Wang.
“Senti algo estranho”, respondi, olhando ao redor, tentando
identificar formas invisíveis ou auras nas proximidades. Não havia nenhum
espírito notável, nem pude perceber qualquer ser oculto, porém. “Há perigo
por perto”, acrescentei.
Ficamos sem silêncio. Ansgar, Wang e Al-Malik sacaram suas
respectivas lâminas e cercaram o grupo, enquanto Fabrizia, Karina e
Absolon permaneceram no centro. Tomei a dianteira, cuidadosamente
166
analisando o ambiente ao redor. Nada, mas a sensação de perigo
permanecia. Era um mal estar sutil, como se algo nos observasse ou nos
espreitasse. “Vamos prosseguir com cuidado”, sugeri, “a biblioteca dos
Urielitas está logo na próxima rua”.
Dobrei a esquina, sendo seguido de perto por meus companheiros.
A rua à frente era estreita, com cerca de três metros e meio de largura. As
construções eram todas antigas, construídas em pedra há séculos atrás. Os
prédios, todos com dois a quatro andares, faziam com que a rua parecesse
um longo e alto corredor. A rua era irregular, feita em vários níveis, com
escadas de pequenos degraus ligando-os. Estava escuro e silencioso. Minha
visão percebeu uma forma humana à frente, escondida numa sombra. Um
relâmpago revelou ali um homem, vestindo um longo sobretudo e chapéu,
bem à frente da porta do local ao qual nos dirigíamos.
Encarei aquele homem, que permaneceu imóvel, mesmo sabendo
que tinha sido visto. Wang fez sinal de que iria avançar, mas eu pus o braço
à frente dele, forçando-o a ficar. Ansgar gritou, perguntando quem era ele,
exigindo que saísse das sombras. Eu pude sentir seu Coro. Era um
Celestial? Pude perceber ser bem poderoso, quase tanto quanto eu, mas
havia algo estranho... Algo podre. Foi quando a informação mais
importante foi-me dada por Al-Malik: “É um Caído. Posso ver a marca em
sua testa brilhando como se fosse fogo”.
“Fiquem preparados para tudo”, pedi, caminhando em direção
àquele homem, sabendo que aquilo poderia ser uma emboscada. O homem,
vendo que me aproximava, também caminhou em minha direção, com as
mãos nos bolsos do sobretudo. Caminhava tão perfeitamente em sincronia
comigo que suas roupas quase faziam parecer que eu olhava um espelho.
167
Então, quando ele estava próximo, fiz um movimento rápido com
minha mão esquerda, traçando um arco ascendente no ar, e um globo de luz
intensa surgiu entre nós. O homem, cegado pelo evento inesperado, virou o
rosto e cobriu os olhos. “Quem é você e o que quer?”, perguntei
serenamente, mas fitando-o seriamente. Estranhamente, eu não sentia medo
algum, mas uma confiança em minhas ações que era quase incomum.
Ansgar, com espada em punhos, aproximou-se, assim como Al-
Malik e Absolon. Os demais permaneceram um pouco mais atrás. “Não sou
seu inimigo aqui”, disse o homem, recuperando-se da cegueira temporária.
Era um homem alto, de cabelos compridos, negros, e olhos verdes. Sua
barba era mal feita, ele tinha um aspecto sujo. Sua face mostrava certo
desprezo por nós. “Eu sou Onesimus e, acredite se quiser, vim em seu
benefício”.
“E como podemos confiar em você, Impuro?”, perguntou Ansgar,
de forma claramente hostil.
“Ele diz a verdade”, murmurou Al-Malik.
“Bah”, disse o homem, “não me importo se acreditam em mim ou
não. O que importa é que eu entregue a mensagem a vocês. Vocês precisam
sair desta cidade imediatamente”.
“E por quê?”, perguntei.
“Vocês não vieram aqui à toa. Estão sendo manipulados e nem se
dão conta”, disse Onesimus. “Talvez não imaginam o que está
acontecendo, mas foram atraídos para cá. É uma armadilha, e vão perecer
aqui”.
168
Fitei Al-Malik, que fez um sinal positivo com a cabeça,
olhando-me seriamente, indicando que o Caído falava a verdade.
“Explique”, pedi a Onesimus.
“Aquele que me enviou não me deu detalhes, mas ele deseja
encontrar vocês. Eu preciso levar vocês a ele imediatamente”, ele disse.
“Levar a quem?”, perguntou Ansgar, mais uma vez hostil.
“Não devo revelar”, respondeu o Caído. “Mas ele me deu a palavra
de que não iria machuca-los. Ele sabe muito sobre o que está acontecendo e
está disposto a compartilhar tal conhecimento”.
“E você acha que iríamos abandonar nossa missão para nos
encontrarmos com alguém que sequer sabemos quem é?”, perguntou
Ansgar. “Você só deve estar louco ou tramando algo”.
“Nem uma mentira escapou-lhe da boca”, disse Al-Malik,
interrompendo o Venator.
“Não pensem que estou fazendo isso por simpatia a vocês”, disse
Onesimus, com um tom de desdém. “Eu preferiria deixa-los aqui para
morrer nas mãos dos Shaitani, mas tenho ordens expressas para alerta-los e
leva-los ao meu senhor”.
“Não iremos”, eu disse.
“O quê?”, perguntou ofendido Onesimus. “Deixe-me explicar algo
a você, Arcanjo. A Corte dos Shaitani foi alertada que vocês viriam, eles
estão à espera de vocês e virão ao seu encontro. Você sequer imagina o
quanto os Shaitani estão preocupados. A vinda de vocês foi mencionada em
uma profecia na qual eles acreditam”.
“Como sabe de tudo isso?”, perguntou Al-Malik.
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“Meu senhor possui relações com os Shaitani, mas também os
têm como inimigos. Ele sabe muito, inclusive sabe que alguém vários
pastores de Íblis estão espalhando boatos a respeito de vocês. A prova cabal
de que eu falo a verdade é o fato de que estou aqui, à sua espera. Venham
comigo”.
“Já disse que não iremos”, afirmei a ele. Então, fitei seus olhos e
ergui o tom de voz: “Não vamos abandonar uma missão em um momento
crítico como este. Se seu mestre deseja o nosso bem-estar, então que mande
anjos da guarda para nos ajudar, mas nós não iremos abandonar esta
missão”.
“Então espero que morram todos quando os Shaitani chegarem a
vocês”, disse Onesimus, dando-me as costas e se afastando. “Vocês são
Celestiais imbecis, que seguem sonhos obscuros e se sacrificam por coisas
que sequer compreendem. Espero que se arrependam dessa tolice quando
estiverem às portas da morte”.
Vendo-o se afastar, disse em voz alta. “Não vamos morrer”.
O Caído parou, virou-se lentamente e me fitou. “Olhem para o céu
e me digam se podem enfrentar o que está se aproximando desta cidade.
Têm certeza de que não irão morrer?”, ele perguntou.
“Sim, pois não estamos sozinhos”, respondi.
“Muito bem”, Onesimus retrucou, “meu trabalho aqui era leva-los a
meu mestre. Se sobreviverem, com certeza vocês terão diversas perguntas
que ele pode responder. Se vocês se arrependerem de sua tolice e mudarem
de idéia, ou se conseguirem sobreviver esta noite, vão a este local”. Em
seguida, ele retirou um cartão do bolso do sobretudo e o jogou no chão,
afastando-se logo após, até virar a esquina e sumir de nossa vista.
170
Aproximei-me do cartão deixado e, utilizando o globo de luz
que criei anteriormente, olhei seu conteúdo: um cartão postal. Li em voz
alta uma legenda presente sob a foto de uma ruína romana: “Domus Aurea,
Roma”. Atrás do cartão, escritas à mão, em Fabulare, estavam runas que
diziam “Passagem segura permitida pelo senhor desta casa”.
“O que significa isso?”, perguntou Al-Malik, aproximando-se de
mim.
“Significa que alguém muito poderoso entre os Caídos tem
interesses em nos ajudar... ou quer nos fazer desistir de nossa missão”,
respondi.
“Mas, segundo Al-Malik, o tal Onesimus disse a verdade o tempo
todo”, disse Ansgar. “Então, não poderia ser uma ajuda?”.
“O emissário apenas disse aquilo que acredita”, interrompeu Al-
Malik. “Isso não significa que seu mestre contou-lhe a verdade”.
Absolon fez um sinal para que os demais se aproximassem. Logo
em seguida, o Princeps voltou-se para mim: “O que faremos agora?”.
Virei-me para a porta adiante. “Vamos seguir o plano original”,
respondi. Então, bati na porta. Enquanto não vinha resposta, pedi que todos
guardassem suas armas e fui prontamente atendido. Bati uma vez mais na
porta, com mais força.
O visor na porta abriu-se, revelando um par de olhos negros e
cansados de um rosto envelhecido, com sobrancelhas brancas. “Quem está
aí?”, perguntou o homem atrás da porta.
“Meu nome é Philipe Nicodemus”, respondi. “Sou um viajante que
segue as asas negras do Arcanjo Uriel”.
“E o que o traz a esta humilde casa?”, o homem indagou.
171
“Busco o conhecimento dos séculos e os mistérios do mundo,
como nosso guia, Magna Veritas”, respondi.
A porta se abriu. Atrás dela, um homem velho e cansado, com cara
de sono, barba grossa, já branca, e o topo da cabeça careca. “Seja bem-
vindo, irmão. Eu sou Avram Ben Baruch, o mantenedor desta casa”. Ele
então deu passagem para que entrássemos. A sala adiante era pequena,
tinha um televisor, dois sofás e alguns quadros, e adiante estava um
corredor que continha duas portas: uma em seu fim, outra em sua extensão.
“De que Capítulo vem, Philipe Nicodemus?”, perguntou Avram.
“Sou um mensageiro dos Veritatis Perquiratores”, respondi.
Imediatamente, Avram arregalou os olhos. “Senhor! É uma honra,
uma sincera honra, tê-lo nesta casa! Deus com certeza abençoou-me no dia
em que o enviou a mim. O que deseja deste humilde servo?”.
“Informação, apenas, caro Avram. Gostaria de conversar sobre os
acontecimentos nesta cidade”, disse-lhe.
“Sim, senhor”, disse Avram, enquanto trancava a porta. “Venha
comigo. Vou leva-lo à nossa biblioteca, no subsolo. Os demais, se quiserem
descansar, fiquem à vontade”. Avram então se dirigiu ao corredor adiante.
Notei que Karina sentou-se para descansar, enquanto Absolon e Al-Malik
me seguiram, pedindo para ir comigo. Todos os demais ficaram para trás.
Assim que Avram abriu uma das portas no corredor, virei-me para meus
companheiros: “Permaneçam alertas”. Ansgar, que ficara na sala, fez um
sinal positivo com a cabeça. Assim que passamos a porta, Avram a fechou.
Nós entramos numa outra sala, uma espécie de escritório. Havia
uma escada para o andar superior, onde provavelmente ficavam os quartos,
172
assim como outra para o andar subterrâneo. “Há outros Urielitas
acordados?”, perguntei.
“Não”, respondeu Avram. “Estão todos descansando”. Em seguida,
o senhor de idade, começou a descer as escadas para o subsolo.
“Tem acontecido algum evento estranho na cidade ultimamente,
Avram?”, perguntei.
“Não, senhor, tem havido uma estranha calma, apesar de ser difícil
dizer com certeza. A Intifada tem deixado as forças de Israel em estado de
alerta, então está difícil separar a violência causada pelo conflito entre
palestinos e israelenses dos atos dos Djinni”.
Avram então chegou à base da escada, onde se localizava uma
porta de metal. Pegou uma chave de seu bolso e a abriu, adentrando e
acendendo as luzes. Naquele instante, aquela sensação de perigo iminente
voltou a me incomodar. No momento em que a porta se abriu, senti-me
ansioso, olhei ao redor, buscando sentir alguma presença... Avram deu
alguns passos à frente na sala seguinte, pediu que o seguíssemos. Foi
quando a sensação tornou-se insuportável. Absolon e Al-Malik
prosseguiram, mas então Al-Malik parou, me fitando. Ouvi em minha
mente sua voz. “Algo errado?”. Fiz sinal positivo com a cabeça. Absolon,
porém, prosseguiu, adentrando a sala adiante. Eu corri até ele. “Absolon,
espere!”, gritei, tocando em seu ombro. Porém, ambos já estávamos dentro
da sala.
“O que foi?”, perguntou Absolon, enquanto Avram parou
repentinamente, olhando-me sem entender. A sala já era a biblioteca, tinha
provavelmente uns quinze metros de comprimento por dez de largura, mas
173
não era possível ter certeza, visto que as estantes enfileiradas impediam
ter uma idéia exata de toda a sua extensão.
“Há algo errado aqui”, disse a Absolon. Nesse momento, a face de
Avram passou de uma expressão de surpresa para raiva, e o velho avançou
contra mim. Antes que eu reagisse, ele agarrou meu braço direito e meu
pescoço, puxando-me e jogando-me contra a estante à frente. Minhas costas
se chocaram contra a mesma com tamanha força que os livros nela
dispostos caíram sobre mim.
Absolon ficou imóvel, indeciso quanto ao que fazer. Demorou
demais para sacar a espingarda que levava nas costas, dando tempo a
Avram para agarrar a arma antes que fosse disparada, retira-la das mãos do
Princeps e empurra-lo com violência, derrubando-o no chão. Com a
espingarda em mãos, Avram a apontou para Al-Malik, que sacara sua
cimitarra, mas ainda estava nas escadas e não dentro da biblioteca.
“Entre”, disse o velho.
“Atire, se tiver coragem, discípulo de Íblis”, respondeu Al-Malik.
Percebi movimento na biblioteca, atrás de nós. Outros três homens
surgiram correndo, antes ocultos pelas estantes, todos com aparência idosa
ou de meia-idade. Dois deles se aproximaram de Absolon, agarrando-o
pelos braços e erguendo-o. Um deles retirou a mochila de Absolon, o outro
o algemou, com as mãos nas costas, e o imobilizou para que não se
mexesse. O terceiro dos homens aproximou-se de mim e também me
imobilizou, algemando-me. Apenas pude notar que a força dele não era
humana, embora o corpo fosse, então preferi não reagir.
174
“Shaitani”, disse Al-Malik, ainda encarando Avram. “Mesmo
quando tomam os corpos de homens inocentes, as marcas incandescentes
em suas testas me são muito bem visíveis”.
“É por isso mesmo que eu fui enviado para recepciona-los”, disse
Avram. “Como Ifrit, você não poderia me perceber dentro deste corpo”.
Então Avram ergueu a voz, ordenando: “Agora entre, Malaki, ou vai querer
ferir o corpo de um homem inocente?”.
“Como sempre, os vermes de Íblis utilizam estratagemas covardes
para atingir seus objetivos”, disse Al-Malik, adentrando a sala.
“Ora, que eu saiba, os covardes não seriam os seguidores do
Profeta, que vestem bombas no corpo e se suicidam matando pessoas
‘inocentes’?”, devolveu, num tom sarcástico, o monstro que controlava
Avram, ainda apontando a espingarda para o Malaki. Enquanto isso, um
dos homens forçou Al-Malik a largar a cimitarra, e em seguida também o
algemou com as mãos nas costas.
Avram fechou a porta de metal, trancando-a em seguida. Cada um
de nós três estava imobilizado por um dos homens possuídos. Fitei Avram,
indagando-o: “Se estão nos algemando e nos desarmando, é porque nos
querem vivos, não? Por quê?”.
“Apenas você, Arcanjo, deveria permanecer vivo. Há alguém que
deseja vê-lo, e fui incumbido de leva-lo a ele. Só você deveria me seguir.
Esses outros dois são lixo, só estão vivos por enquanto”, respondeu Avram,
afastando-se um pouco. “Sua vinda estava em nossas profecias. ‘Quando as
trevas cobrirem os céus da cidade sagrada, quando a serpente despertar de
seu sono, será a hora do rei erguer-se’. Nós queremos saber o que você
sabe, o que os sonhos contaram a você. E você dirá!”.
175
“Eu jamais diria algo a vocês”, respondi.
Em ira, Avram ergueu a mão, cujos dedos tornaram-se garras
peludas e quitinosas. Ele acertou-me a face, rasgando meu rosto. O sangue
escorreu, incomodando a visão de meu olho esquerdo. “Não dirá a mim,
nem precisa dizer. Mas não há nada que meu senhor não possa descobrir”.
“Nicodemus”, ouvi em minha mente, mais uma vez, a voz de Al-
Malik. “Temos de fazer algo”.
“Espere”, respondi, aproveitando o elo espiritual que o Malaki
havia criado. “Avise Absolon para esperar meu sinal”, disse-lhe. Ele
concordou.
“O que vai fazer com os estudiosos deste lugar?”, perguntei a
Avram.
“Eles morrerão, assim como vocês, quando não tiverem mais
utilidade. Esses tolos tomaram muito de nosso tempo para descobrirmos
onde se escondiam”, respondeu Avram.
Avram aproximou-se de mim, agarrando-me pelo pescoço e me
erguendo. A sensação de estar sendo sufocado, conforme ele me enforcava,
era insuportavelmente dolorosa, mas graças à minha natureza Celestial, não
era nada mais do que uma impressão, não danos reais. “Você virá comigo.
Os demais não têm valor”, ele disse.
“Acha que não sei porque não quis mata-los ainda?”, disse, com
dificuldade devido à falta de ar. “Você está com medo de atrair atenção dos
outros que estão lá em cima!”.
“Errado”, respondeu Avram. “Estou apenas esperando os outros
chegarem. O exército de Íblis está solto esta noite, e quer beber sangue
divino”.
176
Droga. Tínhamos pouco tempo para sair dali. Se há uma hora
para agir, a hora é esta. E, infelizmente, eu teria de ferir um homem
inocente para isso... Que Deus me perdoe... Fechei meus olhos, esqueci a
dor. Apenas concentrei todo o poder da minha alma. E liberei, para que os
bastardos soubessem que este Arcanjo não cairia facilmente em seu ardil.
Avram gritou de dor e recuou, me largando, ao sofrer o choque
causado por meu corpo, que brilhava como se a energia da tempestade nos
céus estivesse contida em mim. O outro que antes me segurava sofrera o
mesmo efeito, recuando.
Naquele exato momento, Al-Malik partiu as algemas que prendiam
seus pulsos. O homem que o segurava reagiu, golpeando-lhe a nuca e
fazendo-o cair no chão.
Absolon, porém, ainda estava indefeso. Aquele que o segurava
jogou-o contra o chão e correu para chutar Al-Malik, que estava indefeso.
O Princeps caiu, ainda incapaz de escapar das algemas. Já Al-Malik rolou
no chão com o impacto do chute.
“Idiotas, o que acham que conseguirão agindo assim?”, disse o
monstro no corpo de Avram. Empunhando a espingarda como se fosse um
bastão, ele desferiu um golpe em minha cabeça, me derrubando. Mesmo
atordoado, meu corpo ainda brilhava com faíscas elétricas da armadura
cintilante que eu gerara. Ele pretendia me deixar inconsciente para me
levar, e isso eu não poderia permitir. Quando ele preparou-se para me
golpear novamente, deixei mais uma vez a energia fluir. Tornei-me como
ar, uma forma fantasmagórica, deixando para trás as algemas e escapando
ileso do novo golpe. Então, flutuei no ar, atravessando a estante e
177
materializando-me, em pé, atrás dela, num corredor formado entre a
estante original e outra, também cheia de livros.
Avram praguejou. Pelos vãos entre os livros, vi que Al-Malik
estava sendo golpeado pelos três homens. Avram fitou-me através dos
livros, e notei uma névoa surgir de sua boca e olhos, atravessando a
prateleira e tomando forma à minha frente, revelando a verdadeira forma do
meu inimigo. O corpo inocente de Avram caiu inconsciente, agora livre do
demônio que o possuía.
O monstro me fitou. Embora sua forma fosse humana, suas feições
eram monstruosas. Seu corpo, encoberto por couro grosso, peludo e negro,
bem como seus membros finos e longos, davam-lhe uma aparência
insectóide. As mãos e pés possuíam garras longas e quitinosas, e a face
tinha seis olhos, bem como grandes presas, como as de um animal
carnívoro. Ele possuía asas, parecidas com as de morcego, que nasciam de
suas costas, e vestia uma túnica cinzenta, toda rasgada. “Você não irá
escapar”, disse, aproximando-se.
Foi quando uma treva repentina inundou a biblioteca, sufocando as
luzes, tornando-as globos fracos que deixavam tudo em penumbra. Foi
quando, silenciosa e precisa, uma sombra saltou por sobre a prateleira e,
antes que pousasse suavemente à minha frente, arremessou uma adaga
contra a testa do demônio. A sombra pousou, enquanto a criatura urrou de
dor, recuando alguns passos. Era Wang, com suas vestes negras e seu o
capuz cobrindo-lhe a cabeça. E, quando o demônio arrancou a adaga que
penetrava seu crânio, Wang avançou.
“Wang!,” gritei, enquanto o Kage perfurava sua lâmina no peito do
demônio, “Como chegou aqui?”. O demônio urrou novamente de dor, mas
178
então chamas espalharam-se a partir de seu corpo, formando um círculo
de fogo que atingiu o Kage em cheio. Wang, em chamas, recuou,
arrancando a espada que cravara no coração do inimigo. As chamas
infernais, que brilhavam num tom avermelhado, começaram a espalhar-se
pelas estantes e livros.
Wang, arrancando o manto em chamas, retrucou: “Vim por um
portal. Os outros já estão chegando”. Foi quando ouvi um impacto na porta
de metal da biblioteca.
“Não deixem que entrem aqui!”, ordenou o demônio aos três
homens. Pelos espaços entre os livros, vi que os três largaram Al-Malik,
ferido e caído e correrão para segurar a porta. Um outro impacto forte se
seguiu, arrebentando a tranca, mas os três forçavam a porta, para que não se
abrisse.
O demônio avançou rapidamente, deixando o círculo de chamas, e
agarrou o pescoço de Wang, batendo-o ferozmente contra a segunda estante
que formava o corredor em que estávamos. A estante caiu, derrubando as
que estavam atrás da mesma, numa reação em cadeia até a última estante
no fim da biblioteca. “Pare!”, gritei, erguendo a mão, fazendo com que uma
rajada de vento atingisse com grande força o monstro, forçando-o a recuar,
mas ele continuava a segurar Wang pelo pescoço.
Foi quando houve o terceiro impacto na porta de metal, desta vez
causando um estrondo. Quando me virei para fitar a porta, vi os três
homens sendo arremessados pelo ar, e a porta abrindo-se, distorcida pela
força com que fora golpeada. Por ali entrava Ansgar, com sua grande
espada em punhos. Os três homens caíram violentamente no chão, um
pouco afastados um do outro.
179
Enquanto isso, o demônio pressionava o pescoço de Wang,
fazendo-o sangrar enquanto as garras de sua mão direita cortavam-lhe a
pele. Então Wang tornou-se uma sombra imaterial e disforme, escapando
das mãos letais do monstro e descendo rapidamente ao solo, onde se
materializou. O demônio preparou-se para atacar com as garras da mão
esquerda, mas um tentáculo negro, quase invisível na penumbra da
biblioteca, agarrou o pulso do demônio, vindo da escuridão atrás do
monstro. Outro tentáculo surgiu em seguida, também vindo das sombras
além, agarrando o outro pulso. Ambos puxaram os braços do demônio para
trás, deixando seu peito desprotegido. Wang preparou-se para atacar, mas o
demônio vomitou chamas infernais, formando um cone de fogo tão
comprido que me forçou a jogar-me no chão para escapar. Wang, porém,
foi pego em cheio pela rajada de fogo.
Entrementes, Ansgar aproximou-se de um dos homens caídos. Um
outro, atrás de Ansgar, ergueu a cabeça, e uma névoa saiu de sua boca e
olhos. Sem que o Venator percebesse, uma forma humana se materializava
atrás dele, a partir da névoa. Um homem de túnica negra, armado com uma
espada longa e pesada, semelhante a, porém maior que, uma cimitarra, e
com uma pintura facial sob os olhos e boca, dando-lhe um aspecto sombrio.
O homem ergueu a arma, pronto para atingir Ansgar pelas costas. Mas
então um trovão ecoou, não vindo da tempestade lá fora, mas de dentro da
própria biblioteca. Fabrizia adentrava, alvejando o homem Anjo Caído
armado com um raio. Ansgar, alertado pelo disparo, virou-se, desferindo
um golpe horizontal contra o pescoço do Caído, decapitando-o. Seu corpo
tornou-se pó antes mesmo que atingisse o solo.
180
Wang ergueu-se, mesmo com suas roupas em chamas. As
chamas porém, cessavam rapidamente. O demônio arrebentou os tentáculos
que o prendiam, fazendo-os se desmaterializar. Wang estava seriamente
ferido, eu podia perceber que se mantinha em pé com dificuldade. Por isso,
ergui-me também. O demônio me fitou: “Esta batalha é inútil, Arcanjo. Em
breve, outros estarão aqui, não perderei mais meu tempo com vocês”.
Então, seu corpo começou a se distorcer, rapidamente assumindo uma
forma humana, de um homem forte e sadio, com feições egípcias e barba e
cabelos negros, compridos, ainda vestindo os mesmos trajes rasgados. “Eu
sou Ha’il-Kanzab, o Devorador de Sonhos. Guarde meu nome, pois ainda
esta noite virei mata-los”. Então, sua forma tornou-se pó, que rodopiou
como num redemoinho, desaparecendo por completo.
Ansgar agarrou um dos homens caídos. “Você vai ferir o corpo de
um homem inocente para me matar, Celestial?”, provocava o homem.
“Não”, respondeu Ansgar.
“Então o que fará?”, perguntou o homem, rindo, “Pois não sairei
deste corpo”.
“Pois quero que fique aí mesmo”, disse Ansgar, incendiando o
corpo do homem em Fogo Celestial. O homem gritou de dor e pânico,
desmaiando pouco depois. As chamas apagaram-se, seu corpo estava
intacto, porém livre do espírito do Anjo Caído que há pouco lhe possuía. O
homem, agora com a mente livre, olhou ao redor, vendo a biblioteca em
chamas. “O que aconteceu aqui?”, perguntou em desespero.
Eu me aproximava, ajudando Wang a caminhar. “Sugiro que saiam
deste lugar, ele não é mais seguro”.
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Ansgar colocou o homem no chão. Pedi que pegasse Avram,
que ainda estava inconsciente, bem como o outro que antes tinha um
espírito maligno controlando seus atos. Foi quando lembrei-me do terceiro
homem, que ainda restava. Fitei-o: estava inconsciente. Havia batido a
cabeça ao cair no chão. Ali perto, apoiado em uma parede, Al-Malik curava
suas feridas. “Al-Malik”, chamei-o, “pegue este homem. Se ele caiu
inconsciente antes que o possessor escapasse do corpo, significa que o
espírito está preso nele até que desperte”. Al-Malik concordou.
Fitei então a biblioteca atrás de nós, e levei a mão ao rosto, que
ainda sangrava graças às garras do Ifrit. Com certa tristeza, olhei os livros
sendo consumidos pelo fogo, que se espalhava rapidamente. “Ansgar”,
chamei, “pegue os outros dois homens inconscientes e vamos sair daqui
antes que o fogo se alastre ainda mais”.
Absolon, até a pouco caído ali perto, se levantou e aproximou-se.
“Nicodemus, me desculpe”, pediu. “Me desculpe mesmo, eu não consegui
fazer nada”.
“Não se preocupe, Absolon, você fez o que podia”, disse-lhe,
apoiando minha mão em seu ombro. O Princeps abaixou a cabeça, sem
ânimo e com o orgulho ferido. Ainda com as algemas prendendo seus
pulsos, eu as toquei e invoquei um encantamento simples para abri-las.
Então, pedi a Absolon: “Leve Wang lá para cima enquanto ele se
recupera”.
Então, virei-me às chamas que se espalhavam rapidamente pelos
livros. “Saiam daqui e levem essas pessoas”, pedi aos demais, e chamei
Fabrizia. “Fabrizia, crie uma névoa neste local, o mais úmida possível.
Tente então baixar a temperatura rapidamente”.
182
“Vou tentar”, Fabrizia disse, concentrando-se. Enquanto isso,
os outros saíam. Absolon, indo por último, pegou os objetos que os Caídos
haviam tomado de nós: sua mochila e espingarda, e a cimitarra de Al-
Malik. Assim que Absolon saiu, uma névoa densa e fria começou a tomar o
local.
“Continue assim, Fabrizia”, pedi. A temperatura caída mais e mais,
forçando as chamas a recuarem e molhando os livros que ainda não
estavam em combustão. Procurei extintores de incêndio nas paredes e,
como eu previa, os Urielitas tiveram o cuidado de deixa-los bem à vista.
Peguei então um dos extintores e procurei focos em que o fogo estava mais
forte, para apaga-lo. A temperatura continuava a cair. Após alguns minutos,
o fogo havia sido controlado.
“Obrigado”, agradeci a Fabrizia. Ela sorriu e logo após subimos as
escadas. Voltamos à sala onde estavam os sofás. Ali estavam os dois
homens inconscientes, incluindo Avram. O outro homem, ainda possuído
por um Anjo Caído, estava inconsciente, no ombro de Ansgar. Karina, que
permanecera na sala durante o combate, sorriu aliviada ao me ver. Wang
curava-se de suas feridas, lentamente. Al-Malik estava plenamente
recuperado. Porém, notei na face de Absolon uma frustração sem igual.
Aproximei-me do homem desperto e perguntei seu nome. “Sou
Yosef, um dos estudiosos deste lugar. Seus companheiros me contaram o
que se passou aqui, senhor Nicodemus. Teremos de nos mudar”.
“Sei que é difícil abandonar tudo para trás, mas a vida de vocês
corre perigo”, disse-lhe.
183
“Sim, eu sei. Assim que Avram e Amos despertarem, sairemos
daqui. Mas e quanto a Micah? Me disseram que um espírito ainda habita
seu corpo”, disse Yosef.
“Não se preocupe, nós iremos purifica-lo”, disse-lhe. Yosef
agradeceu. Então chamei meus companheiros: “Vamos para o terraço deste
prédio”. Tomei a frente, mas ao ver que Wang ainda tinha queimaduras
terríveis na face e andava com certa dificuldade, pedi que fossem na frente.
Caminhei até Wang, toquei-o e fiz fluir através de mim as energias do
mundo espiritual, para que curassem seu corpo. Embora o dispêndio de
energia fosse grande, eu me esforcei para deixar seu corpo plenamente
curado. Yosef, vendo aquela cena, fez o sinal da cruz.
“Obrigado, Nicodemus”, agradeceu Wang, murmurando. “Aquele
demônio era mais poderoso do que fazia parecer”.
“Eu sei”, disse-lhe, “você aplicou-lhe dois golpes mortais, mas ele
pôde continuar lutando como se nada tivesse acontecido. Normalmente,
demônios a serviço de ‘mestres’ são bem mais fracos. Fico imaginando
quem pode ser o senhor daquele ser”.
Em seguida, deixamos Yosef e subimos as escadas do prédio, até
chegarmos ao terraço, a quatro andares de altura. Ali, os demais esperavam.
Eu pedi: “Ansgar, segure nosso prisioneiro. Al-Malik, por favor, fique por
perto. Os demais se afastem e fiquem preparados para qualquer espécie de
resistência”.
Ansgar segurou o homem, que segundo Yosef chamava-se Micah.
Então, toquei sua testa, fechei meus olhos e invoquei um encantamento,
dando-lhe consciência. Seus olhos abriram-se repentinamente, assustado.
“Temos perguntas a fazer, Shaitan”, disse Al-Malik.
184
“Eu posso escapar”, ele resmungou.
“Não”, disse Al-Malik. “Agora que conheço a marca em sua testa,
posso encontra-lo aonde quer que seja”.
“Queremos saber quem o enviou”, eu disse.
O Caído começou a rir. “Quem me enviou? É só isso? O Ifrit que
os atacou chama-se Ha’il-Kanzab. Foi quem me deu a ordem de captura-
los. Ele é um dos grandes Sacerdotes de Íblis, seu poder nestas terras é
inquestionável. Dizem que a profecia está prestes a se concretizar e que
precisamos de você, Arcanjo, para que se torne verdade”.
“Que profecia?”, perguntei.
“O momento de nossa ascensão se aproxima!”, respondeu o
Shaitan. “Quando o Arcanjo da Verdade for capturado, a profecia se
concretizará! Vocês são a chave para encontrarmos o Arcanjo. É por isso
que Ha’il-Kanzab deseja vocês”.
“Ele disse que desejava me levar a alguém. Quem?”, perguntei.
“Eu não sei, mas o Sacerdote nos disse que, caso ele fosse
derrotado, deveríamos leva-lo a seu templo”, respondeu.
“Onde?”, perguntou Al-Malik.
“Eu não sei...”, respondeu, mas antes que terminasse de falar, sua
boca calou-se. Ele tentava dizer, mas não conseguia, como se fizesse um
esforço sobre-humano para falar.
“De sua boca sairão apenas verdades, exilado”, disse Al-Malik. “Eu
sou um filho da Casa da Lei Divina, sou um Anjo da Verdade. A mim,
nenhuma mentira pode enganar. Fale!”.
“Não direi!”, gritou o Caído.
185
“Então, por possuir o corpo de um homem de bem, eu o
condeno”, disse Al-Malik. O homem gritou em agonia, como se sua alma
fosse ferida pelas palavras do Malaki. “Fale, ou cada crime que já cometeu
se voltará contra você”.
“Eu não vou falar!”, insistiu o Caído.
“Então, por tentar nos matar, eu o condeno”, disse Al-Malik. O
Caído gritou em agonia novamente. “E por servir a demônios, eu o
condeno”. O homem contorcia-se em dores.
Foi então que me recordei mais uma vez do sonho que tive, dos
sinais que vi. Homens carregando cruzes e o mal que emanava do solo.
“Este lugar, fica sob a Via Crucis, não é?”, perguntei.
O Caído arregalou os olhos, notando que eu sabia. Tentou mentir,
negando, mas sua boca não conseguiu falar. “Onde, exatamente?”,
perguntei.
“Malditos”, o Caído resmungou. Então, abriu a boca, e dela e de
seus olhos saiu névoa. O Shaitan pretendia escapar, provavelmente
materializando-se o mais longe possível. Porém, concentrando meus
poderes sobre o mundo espiritual, eu golpeei a linha formada pela névoa
com meu punho, e era como se o atingisse em cheio. Ele materializou-se
diante de mim, sendo nocauteado pelo golpe. O Caído era um homem
magro, de pele escura e traços árabes.
“Eu sou Philipe Nicodemus, Querubim dos Veritatis Perquiratores.
Seus truques não são nada para mim”, ameacei. “Agora fale”. Ansgar
entregou o desacordado Micah nas mãos de Al-Malik, e então agarrou o
braço do Caído, puxando-o e imobilizando-o.
186
O Caído me fitou nos olhos. “Você pretende entrar lá esta
noite?”, perguntou.
“Sim”, respondi.
“Vão para a Via Dolorosa. Procurem o Mosteiro da Flagelação.
Com certeza encontrarão mais Shaitani. Muitos estão se reunindo ali. Eles
os levarão ao templo. É o plano deles. É o que desejam. Eles querem que
você adentre no templo”, ele disse.
“Já está bom?”, Al-Malik perguntou a mim.
“Sim”, respondi. “Iremos ao Mosteiro da Flagelação”.
“Então, é hora de dar a este renegado sua sentença”, disse Al-
Malik. “Shaitan, por agir contra o povo desta terra, por trazer violência e
morte, eu o condeno à morte”.
Os demais olharam Al-Malik, estranhando sua frieza. O Caído
debateu-se, mas Ansgar pôde contê-lo facilmente, mantendo-o imobilizado.
O Shaitan começou a gritar: “Quem você acredita ser para me julgar? Seu
covarde hipócrita! Você e sua laia de ‘puros’ se julgam defensores desta
terra, mas abandonou o nosso povo para sofrer e se humilhar nas mãos de
estrangeiros!”. Al-Malik não deu atenção às palavras do Caído. Erguendo
sua cimitarra, o Malaki cortou a cabeça do Caído e em seguida se afastou,
dando-lhe as costas enquanto o corpo do Caído caiu em seguida, tornando-
se pó e deixando apenas suas roupas.
Ansgar perguntou a Al-Malik: “Por que não o Obliterou?”.
“Tive pena dele”, respondeu o Malaki. “Ele é apenas um peão, um
servo de demônios, cego por seu ódio. Estou dando a ele meses para a
reflexão, enquanto sua carne e sangue se refazem”.
187
Levei a mão ao meu rosto, já curado, mas ainda ensangüentado.
“Temos de nos apressar. Iremos ao Mosteiro da Flagelação e
encontraremos respostas”.
“Há outros Shaitani nesta cidade”, disse Wang. “Tem certeza
disso?”.
“Sim. Iremos com cuidado. De uma forma ou de outra, eles virão
atrás de nós, então é melhor que nós estejamos na ofensiva desta vez”,
respondi.
“Acha que devo ir?”, perguntou Absolon, aproximando-se. “Eu...
não fui útil aqui. Na verdade, apenas atrapalhei”.
“Achille Absolon, se quiser continuar sendo inútil, fique aqui”,
respondi seriamente. Ele olhou-me, esperando uma resposta mais gentil,
mas eu apenas complementei: “Coragem eu sei que tem, senão não teria
nos acompanhado até este ponto. Vontade eu sei que tem, senão já teria ido
embora. O único que pode julga-lo inútil ou não é apenas você mesmo. Se
quiser continuar sendo inútil, fique aqui. Se quer nos ajudar, saiba não há
ninguém aqui o julgando. Queremos a sua companhia. Agora decida se
vem ou não. Estamos todos arriscando nossas vidas”.
Absolon suspirou. “Está bem, eu vou. Vou tentar mais uma vez”.
Al-Malik falou a Absolon: “Seu problema, jovem Absolon, é que
não entende que é preciso sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma.
Entenda uma única coisa: todos nós estamos arriscando nossas vidas. Se
não arriscar a sua, nunca irá se superar. Se não estiver disposto a tudo, não
alcançará nada”.
Observei meus companheiros. “Estão prontos?”, perguntei a eles.
“Como sempre”, disse Ansgar. Os demais ficaram calados.
188
“Então, empunhem suas armas. Mais do que nunca, preparem-
se para uma guerra...”.
189
Capítulo 11: Ha’il-Kanzab
“Você está certo de que é isto que devemos fazer?”, indagou
Ansgar. Sua voz mal podia ser ouvida, tão diminuta era diante do uivo dos
ventos e dos estrondos dos trovões, que se tornavam cada vez mais fortes.
“Sim, nosso tempo é curto”, respondi, fitando o horizonte e
sentindo o mal que se aproximava. “O tigre está cada vez mais próximo.
Precisamos indagar Ha’il-Kanzab antes que o monstro chegue. Senão,
talvez nossos problemas se somem”.
“É arriscado”, disse Ansgar, nervosamente segurando sua espada.
“Estaremos adentrando nos domínios dos Shaitani. O que sabemos sobre
eles?”.
Todos os presentes estavam com medo. Karina me olhava
apreensiva, assustada, com medo do que estava por vir. Seus longos
cabelos ruivos, mesmo presos num rabo de cavalo, eram erguidos pelo
vento. Seus olhos me evitavam, talvez para esconder seu medo. Atrás,
calada, sentada e cabisbaixa, estava Fabrizia, pensativa. Ainda perturbado
por sua derrota, Absolon permanecia calado, mas se mantinha em pé, ao
meu lado, buscando reunir forças e coragem.
Então, Al-Malik, que estava à minha direita, deu um passo à frente.
“Se vamos enfrentar os Shaitani em seu território, então lhes contarei o que
sei sobre eles. Pois, como Malaki, há gerações luto contra esses Impuros”.
Ansgar e eu fitamos o Malaki. Al-Malik coçou sua barba, fitou os
céus furiosos, e começou: “Quando Íblis Al-Qadim reuniu os seus
seguidores, fossem eles Shaitan, Marid, Ifrit ou Djinn, ele os instigou ao
fanatismo. De todos, os Shaitani, com seu orgulho ferido e seu prestígio
perdido, foram aqueles que mais caíram nas garras do Deus Negro. Disso,
190
surgiu um fervor religioso, que logo se tornou um culto entre os
amaldiçoados”.
“Assim, os Shaitani formaram uma vaga estrutura religiosa.
Aqueles que mais estavam próximos dos Maridi se tornaram sacerdotes. Os
mais jovens e fracos buscaram esses sacerdotes em busca de apoio, tutela e
aliados. Desta forma, os infernais e os Impuros tornaram-se mais ligados do
que no ocidente. Onde antes havia grande rivalidade, surgia cooperação. E
disto, nasceu uma força poderosa e fanática, que incitou a violência no
Oriente Médio por séculos”.
“Hoje, portanto, há dois tipos de Shaitani que podemos esperar
encontrar: os que agem solitariamente e os que pertencem a um culto. Os
solitários são mais sutis e até mesmo mais perigosos, pois se escondem
facilmente. Os cultos, porém, possuem força em números. A maioria dos
cultistas são Shaitani mais jovens e fracos, mas seus sacerdotes costumam
ser excepcionalmente poderosos, graças a favores infernais e a séculos de
experiência como Impuros”.
“E hoje, enfrentaremos um destes sacerdotes”, disse Ansgar. “É
isso que quer dizer, não Al-Malik? Ha'il-Kanzab lidera os Shaitani da
Velha Jerusalém. Pelo menos, aquele Shaitan que interrogamos o chamou
de sacerdote...”.
“Verdade,” disse Al-Malik. “Porém, a idéia de um culto nos faz
pensar que são muitos Impuros juntos, mas isto não é verdade. Impuros são
raros, Shaitani mais ainda. Já destruímos três deles, não me admiraria se os
que sobram forem menos do que nós sete”.
Todos olhávamos Al-Malik, nos esforçando para discernir suas
palavras, abafadas pelos sons da tormenta. Foi quando uma voz ergueu-se
191
atrás de nós, pegando-nos de surpresa. A voz falou alto, mas sem gritar,
num tom frio e direto: “Encontrei mais dois que vigiam a Via Dolorosa”.
Viramos de repente e vimos uma sombra vagamente humanóide
diante de nós. Abaixado, apoiando suas mãos no chão, com as pernas
encolhidas, e suas grandes asas negras abertas. Não havia face ou traços
distintos. Na forma de trevas, Lo Wang dava vida ao nome de seu Clero:
Kage, a Sombra.
“Onde estão?”, perguntei, aproximando-me do mesmo.
“Como aquele Caído nos disse, vigiam o Mosteiro da Flagelação.
Tomam o corpo de guardas, mas seus espíritos os denunciam. Não parecem
ser melhores do que aqueles que enfrentamos aqui há pouco”, respondeu o
anjo das trevas.
“E o que recomenda?”, perguntei.
“Temos duas escolhas... Podemos captura-los e descobrir seu
esconderijo... Ou extermina-los e atrair os demais para fora”, disse Wang.
Eu tentava fitar seus olhos, mas era impossível discerni-los na massa negra
que estava diante de mim. “De qualquer forma”, ele continuou,
“precisamos agir agora”.
Foi quando um brilho intenso foi emitido atrás de mim. Virando-
me, observei as grandes asas prateadas de Ansgar abrirem-se, enquanto sua
aura azul brilhava intensamente. “Vamos”, ele disse, erguendo sua espada
com ambas as mãos.
Observei os demais, cada um deles assumindo sua Forma
Angelical. Alguns realizaram rituais particulares para se preparar
psicologicamente para a batalha: Al-Malik cobriu a face com os panos de
seu turbante, deixando apenas os olhos expostos, enquanto Absolon
192
empunhou sua espingarda. Apenas Karina hesitou, mas Fabrizia
estendeu-lhe a mão, encorajando-a. Mesmo com medo, ela abriu suas asas,
logo após retirar o sobretudo, e deu um passo a frente para aproximar-se de
nós.
Então, em uníssono, erguemos vôo, em direção aos céus negros,
cobertos por nuvens pesadas. Antes que pudéssemos elevarmo-nos demais
no céu, porém, Lo Wang disparou para o leste. Com dificuldade,
tentávamos seguir a forma negra, que parecia ser absorvida pela escuridão
da noite, apenas revelando-se quando a luz dos relâmpagos iluminava a
noite. Um a um, abafamos nossas auras, tentando singrar imperceptíveis
pelo ar.
Abaixo, seguíamos a Via Dolorosa, o caminho de dor que o Cristo
supostamente percorrera dois mil anos atrás. Víamos casas e ruas,
discerníveis apenas pela fraca iluminação da milenar cidade. Eu algumas
raras pessoas na rua, talvez guardas israelenses, mas minha impressão era
de que a cidade estava morta. A tempestade expulsou a vida das ruas...
Mesmo havendo um número incontável de pessoas abaixo de nós, em suas
casas, era como se esta noite esta cidade fosse só nossa. Nossa e do
inimigo.
Foi então que, à nossa frente, o Anjo Sombrio rodopiou no ar e
desceu, desaparecendo de nossa vista. Abaixo, estava a Segunda Estação da
Via Dolorosa... e o Mosteiro da Flagelação. Sob um arco da Via Crucis,
percebi duas pessoas. Ouvi o grito de Al-Malik: “Vejo a luz de fogo em
suas testas!”. Eram Caídos: Shaitani sob a carne de oficiais do exército
israelense. Mas onde estava Lo Wang?
193
Foi quando o inesperado ocorreu. Absolon, desceu
repentinamente, separando-se do grupo. Na metade do caminho, acendeu
sua aura com toda a intensidade e abriu seus braços, iluminando a noite
com um brilho dourado. Tão intensa era sua aura, que suas faixas de luz
pareciam estar em chamas. E, de braços abertos e pernas unidas, ele desceu
suavemente, na direção dos dois guardas abaixo. Os dois correram em
direção ao Celestial, deixando o abrigo que o arco lhes proporcionava e
apontando fuzis na direção do jovem Princeps.
Por um instante, os dois guardas encararam o jovem, que
permanecia imóvel, majestoso, suas faixas de luz ondulando suavemente
pelo ar, seus pés tocando levemente o chão. Porém, nenhum deles podia
mover-se. Absolon estava a apenas uns seis metros dos guardas, mas eles
não atiravam, e pareciam hesitar a aproximação. Foi quando um trovão
ensurdecedor atordou-me, e a luz intensa de um relâmpago ofuscou minha
visão. Senti uma manifestação celestial intensa, e virei-me para fitar
Fabrizia, a única do grupo não surpreendida pelo raio que caíra sobre o
arco, pouco atrás dos dois guardas.
Então, Ansgar e Al-Malik desceram imediatamente. Novamente
fitei a Via Crucis, e vi Absolon aproximar-se dos dois guardas caídos.
Apesar de estarem sendo conduzidos por Anjos Caídos, seus corpos
humanos, atingidos em cheio pelo estrondo de um trovão tão próximo, não
puderam resistir ao atordoamento causado pelo forte som. Absolon agarrou
um deles pela roupa, e com uma força anormal forçou-o a levantar-se e
jogou-o contra o muro de pedra que limitava aquela parte da Via Dolorosa.
Então, o Princeps segurou sua vítima pelo colarinho e encostou o cano de
sua espingarda na cabeça do guarda.
194
Enquanto isso, o segundo guarda se esforçava para levantar-se.
Tonto, o Caído que conduzia seu corpo não estava acostumado com a
súbita vulnerabilidade de sua condição. Ele tentou pegar seu fuzil e apontar
para as costas de Absolon, mas neste momento Ansgar alcançou o chão,
atingindo a arma com sua espada. O impacto do golpe desarmou o guarda.
Imediatamente, com uma velocidade surpreendente, o Venator agarrou o
guarda pelo pescoço, e o corpo do homem incendiou-se em chamas
azuladas. O Caído no interior gritou, escorchado pela chama celestial. Em
seguida, o guarda caiu, inconsciente, sem ferimentos, já livre da presença
profana que controlava sua alma.
Voltei a fitar Fabrizia, que sorria alegremente. “Vocês planejaram
isso?”, gritei para que os ventos fortes não abafassem minha voz,
indagando-a. Ela apenas balançou a cabeça negativamente, ainda sorrindo.
Karina, logo atrás, estava tão surpresa quanto eu. Liberei minha aura e
desci. As duas me seguiram.
Quando me aproximei do campo de batalha, tocando meus pés no
caminho santo percorrido por Jesus, pude ouvir Ansgar gritar nervosamente
para Absolon: “No que diabos você estava pensando? E se eles atirassem
em você?”.
“Eles não atirariam”, Absolon respondeu, sem deixar de fitar o
guarda rendido com seus olhos brilhantes. Sua face estava séria. Ele não
sorria, mas não parecia ter medo também. “Eu sou um Princeps, também
tenho poderes, e sei que eles hesitariam antes de me ferir, pois tenho a
Benção de Miguel. E sabia que vocês iriam interceder por mim, dei a vocês
a distração necessária. Tive medo sim, mas não quero mais ser um inútil”.
195
Al-Malik riu, congratulando o jovem Princeps, e em seguida
aproximando-se do guarda que Absolon rendia. “Onde está Ha'il-Kanzab,
Shaitan?”, perguntou o Malaki.
“Eu não tenho motivos para contar”, gritou nosso refém. “Essa
arma pode matar meu hospedeiro antes de conseguir me eliminar,” ele
disse, referindo-se à espingarda de Absolon, “e vocês são fracos demais,
incapazes de exterminar uma vida para alcançar seus objetivos”.
“Pois eu o condeno...”, disse Al-Malik, mas antes que terminasse a
frase, Ansgar tocou seu ombro, pedindo passagem, e dizendo: “Eu cuido
disso”. Então, aproximou-se do guarda, tocando o dedo indicador de sua
mão esquerda no pescoço do homem. Uma leve faísca azulada emitiu-se do
dedo, e o homem gritou. O corpo do guarda nada sofrera, porém. “Não
preciso ferir o israelense para te matar”.
O guarda olhou assustado para o Venator, que exibia uma feição
fria. Então, fitou Absolon, o único de nós que se mantinha em Forma
Angelical, mas encontrou apenas os olhos flamejantes do Princeps fitando-
o com determinação. Por fim, fitou a mim, e a Fabrizia, que estava ao meu
lado, com os braços cruzados. Com certeza meu rosto velho e calmo não o
assustou, mas o sorriso perverso de Fabrizia sim.
“Riam enquanto podem, porcos, pois conseguiram o que
desejam!”, gritou o guarda, sua voz alterada pelo espírito que o dominava.
“Porque esta vitória será vazia diante da grande derrota que virá! Eu os
levarei ao meu senhor, mas verão que isso será a sua perdição”.
“O que quer dizer?”, perguntou Absolon, pressionando a
espingarda contra a têmpora do guarda.
196
“O momento da Revelação se aproxima! Os exércitos do
Inferno começaram a se mover! Hordas empunham armas e marcham sobre
o solo infernal, esperando o momento. Será em breve!”, ele continuou a
gritar.
Absolon jogou o homem no chão, para a direita, ao alcance de
Ansgar. O Venator então o levantou, retirando as armas que o guarda ainda
portava no corpo, e, agarrando-o pelo braço, disse: “Leve-nos aonde
queremos chegar”. Eu apressei meu passo e tomei a frente, pronto para
intervir caso o Caído tentasse abandonar o corpo que possuía.
“Há uma prisão”, disse o Caído, “que leva a catacumbas”,
continuou, pausando por um instante. “E as catacumbas levam a túneis,
criados a ferro e fogo. Os arqueólogos descobriram as catacumbas, mas nós
isolamos os túneis, e ali fizemos nosso santuário, onde o Bom Deus não
pode ver ou ouvir. É lá que Ha'il-Kanzab diz a vontade do Deus Negro a
nós”.
“Quantos mais estão lá?”, perguntou Absolon, finalmente
retornando à sua forma humana. A luz dourada desapareceu, assim como as
majestosas faixas luminosas que nasciam de suas costas.
“O sacerdote e dois servos, seus mais fiéis agentes. Muitos Maridi
vinham freqüentemente para nos trazer notícias, mas agora eles
desapareceram. Íblis os chamou para se unirem ao exército que marcha no
Inferno”.
Virei-me para Al-Malik. “Ele diz a verdade?”, perguntei.
“Nada além da verdade”, disse Al-Malik, em tom de preocupação.
“E isso é o que mais me assusta”.
197
O guarda sorriu, rindo discretamente. “Saiba que uma guerra se
aproxima. Suas ações aqui pouco significarão”.
Minha mente se encheu de perguntas. Por um instante, um mar de
dúvidas inundou meus pensamentos. Mas um trovão ecoou, trazendo minha
mente de volta à realidade. Olhei o céu e senti o tigre próximo, sua
respiração ofegante mais forte, seus passos mais rápidos, seu rosnar mais
alto. “Precisamos nos apressar”, lembrei a todos. “Nos leve aos túneis”,
ordenei ao Caído.
“Havia duas passagens originais. Uma pela prisão, outra pelos
túneis arqueológicos. A prisão tornou-se quase inacessível quando o
mosteiro foi construído sobre ela. Os túneis tornaram-se perigosos quando
o governo Israelense começou a protege-los. Portanto, tivemos de construir
nossa própria entrada. Sigam-me”, ele disse. Novamente, fitei Al-Malik,
que fez um sinal positivo com a cabeça, indicando que devíamos acreditar
no Caído.
“Aonde iremos?”, perguntou Karina.
“Não distante daqui há um bazar, e ali há uma antiga residência”,
revelou o Caído, “há um grande porão na velha casa, onde escavamos
passagens para os túneis. Usamos nossa influência para impedir que essa
passagem clandestina fosse descoberta”.
Seguindo o Caído, deixamos a Via Crucis e adentramos uma
pequena passagem, que nos levou a ruas milenares, apertadas, cheias de
escadarias, por entre prédios e casas antigas. Desconfiado, fechei meus
olhos e concentrei minhas energias, me sintonizando com o ambiente ao
redor. Uma emboscada poderia ocorrer a qualquer momento, e melhor seria
se eu estivesse preparado. Porém, não pressenti perigo algum, a não ser o
198
tigre. Eu podia ouvir seus passos, a centenas de quilômetros... Mas
sabia que ele chegaria a Jerusalém em pouco mais de uma hora...
“E quanto a Wang?”, perguntou Fabrizia, “ele desapareceu depois
que nos trouxe aqui”.
“Ele é assim... Também desapareceu quando estávamos na casa dos
Urielitas”, disse Ansgar, “enquanto nós corríamos para ajudar Nicodemus,
não se lembra? Quando chegamos à biblioteca, ele foi o primeiro a chegar”.
“Esse é o caminho dos Kage”, eu disse. “Eles caminham na sombra
e nós na luz”.
Continuamos a caminhar por entre becos e ruelas. Ao contrário de
mim, Al-Malik não conseguia eliminar de sua mente as dúvidas geradas
pelas palavras do Shaitan que nos guiava. Voltando-se ao Decaído, ele
perguntou: “O que quis dizer com um exército marchando no Inferno?”.
“Está com medo, Malaki?”, perguntou o Caído, num tom
zombador. Um trovão ecoou, e o relâmpago iluminou as ruas de Velha
Jerusalém. “Dezenas de milhares neste instante, reunindo-se e preparando-
se para o que está por vir”.
“E o que está por vir?”, perguntei.
“Vocês querem respostas? Perguntem a Ha'il-Kanzab, não é ele que
procuram? Pois ele é o único que foi digno de ter toda a revelação”,
respondeu o Shaitan, em seguida apontando para mim: “E é por isso que ele
deseja você, Arcanjo, pois você também teve uma revelação”.
“Qual é a minha importância nisto tudo?”, perguntei.
“Você sabe onde está a chave do Inferno”, ele respondeu.
Mais perguntas inundaram minha mente... A chave do Inferno? A
que se refeririam? Seria o velho? Seria Veritatis? Ou seria... O jarro? Meus
199
olhos arregalaram-se com uma súbita revelação. Seria esse o
significado do jarro?
Mais um trovão urrou nos céus, assim que chegamos à frente de
uma pequena construção de dois andares. Esta rua, durante o dia, era um
bazar, onde comerciantes vendiam bijuterias, arte, comida e artigos locais,
principalmente para turistas. O andar de baixo servia de loja e ficaria aberto
durante o dia. Agora, porém, estava totalmente fechado. Fitei a porta,
tentando pressentir qualquer mal ou presença sobrenatural em seu interior.
Nada pude sentir... Talvez não houvesse nada. Mas talvez a presença cada
vez mais forte do tigre, simbolizada pela tempestade, estivesse distraindo
meus sentidos. “Eu tenho a chave”, disse o Caído, “mas preciso deixar este
corpo, pois a carrego em minha forma verdadeira”.
“Não”, respondi, proibindo-o de deixar aquele corpo. Eu não podia
permiti-lo abandonar o corpo, pois ele poderia aproveitar a forma etérea
para escapar de nós. Então, aproximei-me da porta, toquei sua tranca e
balbuciei certas palavras. Minha energia celeste fluiu pelo meu braço,
passando por meu dedo e tocando a porta. E, usando uma imagem mental,
forcei a tranca a abrir-se. Mais uma vez, meus conhecimentos nas formas
mais simples de Spiritus Magica mostraram-se úteis.
Assim que adentramos a loja, a escuridão tornou-se forte demais
para que olhos comuns pudessem ver claramente. Em instantes, nossos
olhos começaram a brilhar. Absolon pegou sua mochila e procurou por sua
lanterna, mas intervi: “Não use luzes, Achille”. Fabrizia aproximou-se de
Absolon, segurando sua mão. “Vem, eu te guio”, ela disse, sorrindo.
“Está sorridente hoje, Fabrizia”, comentei, murmurando.
200
“Estive pensando no que conversamos em Chak-chak, e no que
Al-Malik disse a Achille”, ela respondeu. “Estou sorrindo pra disfarçar o
medo. Mas também porque estou me sentindo útil ao grupo. Ajudei a
derrubar três Shaitani”. O guarda olhou nervosamente ao ouvir isso.
“Há outros mais perigosos à frente”, disse Ansgar. “Você não devia
sorrir ainda”, completou, antes que se voltar ao Caído, fitando-o com seus
olhos que brilhavam em tom azulado: “Agora, indique o caminho, estou
sem paciência com você”.
“Pois bem”, disse o Shaitani, nos levando aos fundos da loja,
caminhando com certa dificuldade devido à escuridão. Ali, abriu um grande
alçapão no chão de madeira, abaixo estando uma escada de pedra. “É por
aqui”. Al-Malik tomou a frente, seguido por Absolon e Fabrizia. Eu e
Ansgar, que acompanhávamos nosso refém, fomos em seguida, e por fim
desceu Karina. Ainda não havia um sinal sequer de Wang.
Abaixo encontramos um depósito, onde artesanato, tanto pronto
como incompleto, e ferramentas e matéria-prima estavam organizados em
velhas prateleiras de madeira que se apoiavam nas paredes de pedra. Era
uma câmara retangular, com cerca de 10x15 metros quadrados. Apenas
uma pequena porção da parede não era preenchida com prateleiras. Foi
naquela direção que o Caído, no corpo do guarda, caminhou. “É aqui”, ele
disse. “Construímos um túnel rudimentar que nos leva aos subterrâneos”.
Em seguida, ele agarrou uma pedra retangular que compunha a parede e a
removeu, fazendo um pouco de força. A pedra, embora larga, não possuía
muita espessura. Logo atrás da mesma, estavam três buracos e, logo além, a
escuridão de um túnel. “Veja por si mesmo”.
201
Aproximei meus olhos de um dos buracos, e minha visão pôde
perceber além um túnel rudimentar, de cerca de dois metros de altura por
um e meio de largura, descendo obliquamente, como uma rampa, para
profundezas que eu não conseguia ver. O túnel era mantido por alicerces de
pedra e madeira, dispostos nas paredes do mesmo. “Como abrimos a
passagem?”, perguntei.
“Ali”, ele respondeu, apontando para a parede oposta.
“Empurrando aquela prateleira, verão que há um vão na parede, e nele uma
alavanca. Girando-a, vocês podem acionar o mecanismo de correntes que
abre a porta, mas é preciso muita força para tal. Somente um mortal
extremamente forte conseguiria”.
Observei a parede que o Caído indicara. Al-Malik começou a
caminhar em direção da mesma. Foi então que tive uma sensação repentina.
Voltei-me ao guarda e, para minha surpresa, vi uma névoa densa sair de sua
boca e olhos, adentrando os buracos que levam ao túnel além. “Ansgar!”,
gritei, alertando-o. O Venator também havia se voltado para a parede
apontada pelo Caído e, por um breve momento, distraiu-se, possibilitando
ao Shaitan a chance de escapar. Tentei impedir que o espírito do Caído
escapasse, mas era tarde: quando meus dedos tocaram o guarda, a névoa já
tinha se dissipado no túnel além. A risada do Shaitan ecoou, seguida pelo
som de passos apressados que se afastavam rapidamente.
“Merda”, amaldiçoou Ansgar.
“Ele vai alertar o Ifrit”, disse Al-Malik.
Porém, minha preocupação era outra... Sem o espírito do Caído no
corpo, a consciência do guarda retornava. Assustado e atordoado, ele
gritou: “Quem são vocês?”, e tentava escapar da potente mão de Ansgar,
202
que segurava seu braço. Naquela escuridão, ele via apenas vultos e
nossos olhos brilhantes, o que certamente era assustador. Ele tentou pegar
alguma arma, mas não portava nenhuma. Absolon tentou acalmar o
homem, mas era inútil. Ele lutava futilmente para se livrar de Ansgar, que
buscou contê-lo. A força do homem não era páreo para a do Venator,
felizmente.
Meus olhos se encontraram com os dele então, e brilharam ainda
mais fortes. “Um raio atingiu o arco em que você e seu companheiro
estavam para se protegerem da tempestade”, eu disse, com voz alta e firme.
“Você estava procurando ajuda, pois seu companheiro desmaiou. Volte e
lembre-se que você não viu nada estranho aqui”. A mente dele, hipnotizada
pelo brilho, deixou-o por um instante fora de si. Então, pedi que Karina o
levasse para fora e depois retornasse. Ela atendeu prontamente, segurando o
guarda pela mão e guiando-o. Ele, atordoado pelo meu Domínio, se deixou
levar sem resistência.
“Como vamos atravessar a parede?”, perguntou Fabrizia,
analisando-a.
“O Shaitan disse a verdade quanto a uma alavanca na parede
oposta”, respondeu Al-Malik, continuando em direção à parede citada.
“Não há tempo”, disse Ansgar, elevando sua voz. “Afastem-se”.
Afastei-me da parede, enquanto Fabrizia puxou Absolon. Foi
quando Ansgar começou a empurra-la, fazendo um grande esforço. Senti
sua energia explodir, conforme ele a canalizava por seu corpo e a parede
começou a ceder, os blocos de pedra se desfazendo. Mais energia celestial
fluiu, conforme Al-Malik aproximou-se e somou sua força à do Venator.
203
Então, a parede cedeu, caindo no túnel à frente. Nesse momento,
Karina retornava.
“Vamos”, ordenei. Ansgar empunhou sua arma, seus olhos
brilhando na escuridão emitiram uma leve luz azulada que a lâmina refletia.
Também Al-Malik sacou sua cimitarra. Ambos tomaram a dianteira. Eu e
Karina fomos sem seguida, enquanto Fabrizia, atrasada por Absolon, ficou
na retaguarda.
O túnel adiante descia suavemente para as profundezas. Havia
muita poeira, que irritava meu nariz, e nenhum som além de nossos passos
nervosos. Eu queria apressar o grupo, mas sabia o risco que tal ação
representava, ainda mais lembrando que Absolon estava praticamente cego
naquela escuridão. Karina segurou minha mão, dizendo: “Aquele guarda...
o Domínio que você exerceu sobre ele... Acho que precisava ser mais
refinado”.
“Eu sei”, respondi. “Mas estamos sem tempo... A mente dele
certamente vai se lembrar do lugar onde estava e até mesmo vai se lembrar
de estar num local escuro e ser conduzido para fora, mas agora não tenho
tempo para pensar nisso. Infelizmente, corremos um risco muito maior do
que as memórias do guarda representam”. E, tendo dito isso, chegamos a
um corredor, mais antigo, mais trabalhado. Uma catacumba, com paredes
de pedra, construída nas profundezas da Velha Cidade. “Qual caminho
seguir, Karina? Direita ou esquerda?”.
Karina parou por um instante. Então, após uma breve concentração,
disse: “Direita. Quem procuramos está ainda mais profundo no solo”.
Al-Malik e Ansgar apressaram o passo. Eu e Karina tentamos
acompanha-los, mas precisávamos esperar por Absolon e Fabrizia. A Xamã
204
ainda conduzia o Princeps pela escuridão. Eu podia sentir um
pressentimento ruim, uma sensação de estar sendo vigiado, e também podia
perceber uma aura de medo ao nosso redor, como se estivéssemos por
adentrar terreno profano.
“Que tipo de túneis são esses?”, perguntou em voz alta Fabrizia,
que se esforçava para acompanhar o resto de nós. Sem diminuir o passo,
respondi: “Acredito que guardavam os mortos em compartimentos nas
paredes... e que se escondiam aqui quando a cidade era atacada, talvez. Não
tenho idéia de quão antigos são esses túneis, mas podem muito bem ter
mais de dois milênios”.
“Peguem o caminho da direita!”, avisou Karina. Pouco depois, o
caminho dividiu-se, e os que estavam à frente seguiram as instruções dela.
O caminho começou a tornar-se mais irregular. Eu podia ouvir o som de
água ecoar. Foi então que vimos uma fraca luz adiante. “É ali, onde estão
as luzes”, avisou Karina. Ansgar aproximou-se da entrada do corredor
iluminado... e permaneceu ali parado.
O grupo todo se reuniu diante da passagem seguinte: uma caverna.
“Não imaginava que um lugar assim existisse sob Jerusalém”, comentou
Karina. Presas nas paredes da caverna, algumas tochas iluminavam a
passagem, mas a luz do fogo também gerava sombras tremulantes.
Algumas gotas d´água caíam do teto e, ao tocarem o chão, emitiam um som
que ecoava pelos túneis.
Ansgar tomou a frente, caminhando cautelosamente. Logo em
seguida prosseguiu Al-Malik. Absolon, não mais limitado pela falta de
visão, aproximou-se de mim, e Fabrizia continuou na retaguarda do grupo.
Ambos empunhavam suas espingardas. Mesmo Karina sacou uma de suas
205
pistolas. Cuidadosamente, prosseguimos, pisando com cuidado para
não gerar sons demais.
A caverna se dividia em múltiplos caminhos, mas seguíamos o
caminho traçado pelas tochas nas paredes. Uma sensação crescente de
medo e angústia me tomava... Mais ainda, eu sentia uma inconfundível
presença infernal permear as paredes daquele lugar.
Finalmente, nosso destino chegava, conforme avistei adiante uma
grande câmara. E, quando aproximamo-nos mais, nada pôde nos preparar
para a surpresa que nos esperava.
À frente, estava a grande câmara arredondada, com cerca de seis
metros de altura e uns vinte e cinco metros de diâmetro. As paredes
irregulares abrigavam pequenas piras, cujas chamas traziam luzes e
sombras tremulantes a todo o local. O chão era regular, como se moldado
por uma força não natural, gerando um piso sólido e quase liso, mas não
escorregadio. Múltiplas estalactites pendiam do teto, ajudando a criar mais
sombras tremulantes. Do outro lado, os túneis continuavam, descendo ainda
mais nas trevas da terra. E, aproximadamente no centro da câmara, uma
formação de rocha formava um trono rudimentar, cercado por estalagmites
que reforçavam o destaque daquele local. Ali, um homem esperava por nós.
Pude imediatamente reconhecer aquele homem de barba e longos cabelos
negros, com pele morena e feições inconfundíveis, ainda vestindo os trapos
que vestia em nosso primeiro encontro. Ha'il-Kanzab era o homem sentado
no trono.
Ansgar tomou a frente, a lâmina de sua espada incendiando-se em
chamas celestes, adicionando a forte luz azul à iluminação tremulante da
câmara. “Cria de Íblis Al-Qadim!”, gritou Al-Malik, colocando sua
206
cimitarra à esquerda do corpo, em posição de ataque, “renda-se à nossa
vontade!”.
Então, pela câmara ecoou um som de passos... Cascos batendo no
chão rochoso. De trás do trono surgiu um animal pequeno e negro, com
grandes chifres. Um bode, que caminhou calmamente até que sua cabeça
chegou ao alcance da mão esquerda de Ha'il, que começou a acaricia-lo
suavemente. Ha'il gritou: “Vocês entram em minha casa para ameaçar-me?
Que tipo de tolo acham que sou? Vocês estão aqui porque permiti que
viessem, mas tenho assuntos a tratar apenas com você, Arcanjo”. Sua voz
ecoou pela câmara, mas eu não conseguia deixar de observar o animal,
praticamente ignorando as palavras do Luciferite. A criatura possuía pêlos
oleosos, negros e eriçados, e seus olhos brilhavam num tom avermelhado.
Olhei sua aura, mas ela parecia tão inocente quanto a alma de um bebê.
Senti um calafrio percorrer minha espinha quando a criatura berrou, e
aquele som do animal também ecoou, tanto na câmara como em minha
alma.
Ansgar começou a caminhar, avançando a passos lentos na direção
de Ha’il. “Se deseja falar com Nicodemus, terá primeiro de passar por
mim”, disse, empunhando a espada flamejante adiante do corpo. “Então,
MORRA”, gritou Ha'il. Al-Malik gritou para alertar Ansgar, conforme um
assassino caiu do alto, vindo de uma pequena plataforma no teto,
impossível de ser vista pelo túnel que levava à câmara. Eu mal pude notar o
vulto descendente, que caía sobre Ansgar, mas percebi o brilho da lâmina
que carregava, pronta para atingir a cabeça do Venator. Então, numa
velocidade que meus olhos não podiam acompanhar, Ansgar virou-se,
girando o corpo para a direita, emitindo um urro de batalha, e traçando um
207
arco ascendente com sua lâmina, deixando um rastro de chamas
celestes. O choque das lâminas ocorreu logo acima da cabeça de Ansgar,
emitindo um som forte como um trovão. Tamanha foi a força do golpe do
Venator, que seu atacante foi jogado para o alto e para a direita, e sua
lâmina partiu-se. O atacante, um Shaitan vestindo um manto negro, caiu
violentamente no chão, uns três metros de distância do Venator.
Um tiro de fuzil, então, veio do túnel atrás de nós, atingindo
Fabrizia pelas costas. A força do disparo abriu um buraco em sua barriga e
a fez cair de joelhos com dores. Absolon virou-se, gritando o nome da
moça. Antes que eu pudesse reagir, senti um vento formar-se atrás de mim,
conforme braços fantasmagóricos me abraçavam e se materializavam.
Karina gritou com o susto, e em seguida meus braços estavam
imobilizados, conforme uma pessoa enorme e tremendamente forte me
segurava. Al-Malik avançou contra ele, tentando cortar suas costas com a
cimitarra, mas ele então saltou uns três metros de altura, em direção ao
centro da câmara, não só escapando do ataque do Malaki, como também
pousando na metade do caminho entre a entrada do local e o trono de Ha’il.
Então, me jogou violentamente no chão, e virou-se para os meus demais
companheiros, sacando uma grande lâmina que portava nas costas. Caído,
fitei-o, e vi que era um homem enorme, sem camisa, apenas calça,
descalço, cabeça raspada e sem barba. Sua pele era negra, bem escura, e
sua lâmina parecia com uma cimitarra, mas com curvatura menos
acentuada, e mais grossa, longa e pesada. Nas costas dele, vi grandes
cicatrizes, deixadas pela extração de suas asas.
208
No túnel, ecoaram os sons de tiros, conforme Karina e Absolon
disparavam contra o Caído que atingiu Fabrizia. A forma do Caído
desapareceu na escuridão, porém.
O grande Caído avançou, sua lâmina erguida sobre a cabeça,
atacando Ansgar. Ambos os combatentes urraram quando suas lâminas se
chocaram. As lâminas se prendiam, cada guerreiro forçando o seu oponente
a recuar. O primeiro que fraquejasse seria o primeiro a ter seu sangue
derramado.
O Shaitan de negro, antes derrubado por Ansgar, levantou-se,
avançando contra as costas do Venator, que ainda estava no confronto de
força. Seus dedos tornaram-se garras cortantes e pontiagudas, mas antes
que chegasse ao Venator, a Al-Malik desferiu-lhe um golpe vertical com
sua cimitarra. Para minha surpresa, o homem de manto escapou do golpe,
girando seu corpo com facilidade. Al-Malik repetiu o ataque de novo e de
novo, mas o homem parecia escapar dos ataques com tremenda facilidade,
ainda que não contra-atacasse em momento algum.
E, enquanto Ansgar fitava seu oponente, ainda tentando vence-lo
em força, enquanto Al-Malik tentava atingir em vão seu adversário, e
enquanto Karina e Absolon buscavam o vulto do Caído que os atacou, ouvi
os passos de Ha’il, cada vez mais próximo. “Não tenho tempo a perder
aqui, Arcanjo”, ele disse, “nem desejo ver o fim desta contenda. O que
quero é você. Iremos embora deste lugar”.
Ainda caído, me virei para encarar aquele homem. Ele estava
próximo de mim, e caminhando cautelosamente. Asas nasciam em suas
costas, e sua boca tornava-se uma grande mandíbula. Quatro novos olhos
surgiram em sua testa, e seus braços afinavam-se e alongavam-se, nascendo
209
grandes pêlos sobre a pele que tornava-se cada vez mais negra e
resistente. Abaixando-se sutilmente, suas garras quitinosas estavam prestes
a tocar meu rosto. Foi quando uma sombra silenciosa começou a erguer-se
atrás de Ha’il-Kanzab, nascendo das trevas tremulantes da câmara, abrindo
suas asas negras, que mais pareciam mantos tremulantes de trevas. A
sombra moveu-se silenciosa e mortalmente, fazendo sua lâmina negra
cortar as costas do demônio, causando-lhe um rasgo mortal pelo qual fluiu
seu sangue fétido, e até mesmo cortando uma das asas da monstruosidade.
O urro de dor do Caído foi extremamente alto. Não fosse sua armadura
quitinosa, Ha'il poderia estar incapacitado com aquele único golpe. O
demônio cambaleou para a frente, para minha direção. Eu me arrastei,
tentando afastar-me, e então Ha’il virou-se para encarar seu atacante. A
sombra deu lugar a roupas negras, e a face de Lo Wang surgiu das trevas. O
que surgiu não foi sua face mortal, porém, e sim uma máscara cinzenta,
com feições monstruosas, incluindo uma grande boca com presas. Por trás
da falsa boca da máscara era possível ver a real boca do Celestial. O adorno
tornava o Kage tão monstruoso quanto o próprio ser que ele combatia.
Porém, a batalha ainda continua furiosa na entrada da câmara. O
Caído que Karina e Absolon procuravam de repente surgiu atrás deles,
desfazendo sua invisibilidade no instante em que disparou no tórax de
Absolon. O sangue voou por seu peito, seu coração perfurado, dando-lhe
uma súbita sensação de fraqueza. Absolon perdeu as forças, mas apoiou-se
na parede rochosa para não tombar no chão. Karina gritou, tentou virar-se
para atirar no atacante, mas foi mais rápido, empurrando-a contra Fabrizia,
ainda ajoelhada. Ambas caíram. O Caído voltou-se para Absolon, dando
um, dois, três, quatro outros disparos a queima-roupa. “Você não me parece
210
mais tão poderoso agora, não é mesmo?”, gritou o Shaitan, um homem
que vestia um sobretudo marrom e tinha cabelos curtos e nenhuma barba,
tendo uma aparência mais ocidental do que seus outros companheiros. A
cada disparo sofrido, o sangue de Absolon se espalhava mais e mais pelas
paredes, pintando-as de rubro. Karina, caída, apontou sua pistola, e
disparou contra o ombro do Caído. O maldito não gritou diante do
ferimento sofrido, que parecia bem menor do que o esperado, e então se
voltou para a jovem, fitando-a raivosamente. Ela disparou novamente,
atingindo-lhe no peito. Mas ele apenas avançou contra ela, chutando a
pistola. Enquanto isso, Absolon caía quase inconsciente, sua barriga e peito
severamente feridos, seu sangue escorrendo pelas paredes.
Também Al-Malik enfrentava dificuldades. Seu oponente movia-se
como vento, escapando dos golpes de cimitarra com grande facilidade. O
Shaitan de manto negro recuava, em direção à parede, tentando manter
certa distância do Malaki. Quando o Caído tocou a parede, Al-Malik teve a
certeza de que ele não teria por onde escapar. A cimitarra veio da esquerda
para a direita, num golpe certeiro contra o pescoço do homem de negro.
Mas então, o braço do homem parou a lâmina, emitindo o som de metal
batendo contra rocha. Por trás do capuz, podia-se notar a boca sorridente do
Caído, que havia atraído Al-Malik para a sua armadilha. Sua pele tornava-
se como rocha, e mesmo a espada não podia feri-lo. Com o braço
impedindo que Al-Malik avançasse com a espada, e vendo o pescoço do
Malaki desprotegido, o Shaitan negro desferiu um golpe com as garras da
mão esquerda, que estava livre. Para a sua surpresa, porém, o Malaki, numa
velocidade incrível, largou a cimitarra, que empunhava com ambas as
mãos, e com a mão direita agarrou o pulso do atacante antes que suas
211
garras pudessem cortar a garganta de Al-Malik. O Caído, surpreso,
tentou atacar, com a mão direita agora livre, uma vez mais o Malaki. Mas
este, novamente mais veloz, usou a mão esquerda para agarrar seu pulso.
Segurando ambos os pulsos do Shaitan, Al-Malik fitou-lhe a face e, em voz
alta, condenou-lhe: “Por tentar derramar sangue divino e por ser um
assassino vil, eu o castigo”. O homem de negro gritou de dor, contorcendo-
se. Foi quando Al-Malik jogou-o ao chão. “Suas artimanhas não são nada
perto de quem pode ver a verdade. Sua pele de rocha não é nada além de
uma armadura que restringe sua velocidade”. Então, o Malaki ergueu as
mãos, e as puxou para baixo, traçando dois arcos de fogo descendentes
diante do corpo. O fogo então projetou-se contra o Caído, incendiando
tanto a ele como a suas roupas. “E mesmo a pele de rocha não resiste a
fogo purificador”, completou Al-Malik, diante dos gritos de dor do Shaitan
em chamas.
Já Ansgar permanecia em seu duelo de força, sua espada tentando
forçar a lâmina do gigante a recuar. Foi quando o Shaitan tornou-se um
espectro de vento. A força que Ansgar exercia agora voltava-se contra ele,
jogando-o para frente, uma vez que não havia mais a lâmina do adversário
para segura-lo. Ansgar perdeu o equilíbrio, cambaleando, quase caindo.
Quando, neste movimento, Ansgar atravessou o espectro, este se
materializou, girando o corpo para a esquerda, sua lâmina certeiramente
atingindo o ombro direito de Ansgar, cortando-lhe carne e músculos,
resvalando no osso. Ansgar gritou de dor e, combinado o golpe sofrido com
o seu desequilíbrio, caiu no chão, largando sua espada, que deixou de
iluminar-se em chamas celestes.
212
À minha frente, demônio Ha’il encarava o Kage mascarado.
“Desgraçado!”, gritou o anjo infernal, avançando com fúria, suas mãos
incendiando-se em chamas avermelhadas, que traçavam desenhos conforme
suas garras avançavam contra Lo Wang. O Kage, com suas asas negras
ainda abertas, voou para trás, afastando-se antes que as garras o atingissem.
Com apenas uma asa intacta, o demônio foi incapaz de segui-lo, tendo de
correr em sua direção. Em pleno ar, Wang recolheu suas asas, caindo
suavemente sobre o trono de pedra. Ha’il, avançando furiosamente,
desferiu um golpe potente com a mão direita, mas o Kage saltou para trás,
numa cambalhota, e a mão do demônio encontrou em seu caminho apenas a
resistência do encosto do trono de rocha, que partiu-se em vários pedaços.
Wang pousou uma vez mais, suavemente, atrás do trono, mas Ha’il já
saltava sobre o mesmo. Surpreso com a velocidade do atacante, Wang
saltou contra ele, preparando um golpe contra seu peito. Mas os braços
longos de Ha’il tinham um maior alcance que a lâmina do Kage. Quando
ambos estavam em pleno ar, num golpe poderoso de seu braço direito, Ha'il
arremessou o guerreiro celeste para a sua esquerda. Tamanha foi a
violência do golpe que o Kage caiu no chão como um boneco sem vida,
rachando o solo rochoso e quebrando vários de seus ossos. A lâmina negra
do Kage caiu ainda mais distante. “Vocês não são melhores do que simples
mortais, que se escondem atrás de armas de metal”, gritou o demônio.
Chamas de múltiplas cores surgiram ao seu redor, num círculo,
precipitando para o alto da câmara, iluminando-a intensamente. E, ao lado
esquerdo do trono semi-destruído, ainda estava o bode, intocado, sentado,
tranqüilamente me fitando com seus olhos vermelhos, como se nada
ocorresse ao seu redor.
213
Atrás, o Caído de sobretudo, aquele que antes possuía o guarda
e havia agora derrotado Absolon, erguia Karina pelos cabelos, usando sua
mão livre, enquanto a outra mão ainda empunhava o fuzil. A moça gritou, e
o Caído forçou-a contra a parede. “Me largue!”, gritava Karina. O maldito
ria e, com a mão livre, tocou o peito de Karina, apertando seus seios. “Você
é uma mulher muito idiota por ter vindo aqui”, ele dizia rindo. Naquele
momento, Fabrizia, caída logo ao lado dos dois, já recuperada do ferimento
sofrido, estendeu sua mão esquerda, agarrando a perna do homem, que se
voltou para olhar quem o tocara. Faíscas e um grito de dor e surpresa se
seguiram, conforme o toque de Fabrizia transmitia um poderoso choque
elétrico. O choque também afetou Karina, mas com menor intensidade,
pois o homem retirou seu toque assim que começou a dor. E, ferido, o
homem virou-se. “Cadela!”, gritou, preparando para disparar com seu fuzil.
Fabrizia rapidamente ergueu sua espingarda, apontando a queima-roupa
para o cotovelo do braço que empunhava o fuzil, e disparou, partindo o
braço em dois e desarmando o inimigo. “Vá se foder!”, devolveu Fabrizia.
O Caído recuou, segurando o ferimento com seu braço ainda bom. Um
grito feminino se seguiu. Karina urrava como um animal, seus olhos
tornavam-se vidrados como os de uma fera selvagem. Sua forma não se
alterou, mas sua beleza parecia assustadora. Tendo finalmente liberado seus
poderes e o Instinto que carrega, a jovem avançou contra o Caído sem
braço, rasgando-lhe a garganta com as próprias unhas da mão. O Caído
caiu, Karina sobre ele, ela atacando-o com as unhas, rasgando-lhe o rosto e
os olhos. Fabrizia levantou-se, correndo em direção aos dois, e teve de
retira-la à força de cima do homem, mas a força de Karina parecia maior
que o normal, e ela estava fora de si. Assim que Fabrizia puxou a
214
companheira, ela voltou a si. O homem, caído, cego e ferido, não
resistiu quando Fabrizia aproximou-se, apontou com raiva a espingarda
para a sua cabeça e, com um último tiro, destruiu sua forma física. Seu
corpo tornou-se pó pouco depois, deixando apenas ossos frágeis, roupas e o
sangue derramado por seus ferimentos.
Enquanto esses confrontos prosseguiam, o grande Caído, de pele
negra e poderosa lâmina, ergueu a mesma sobre a cabeça, pronto para
desferir um golpe fatal contra a cabeça desprotegida de Ansgar, caído à sua
frente e com as costas totalmente indefesas. “Em nome de Íblis, nosso
Deus!”, gritou o Shaitan. Porém, assim que avançou para o ataque, o Caído
ouviu um grito de guerra de um atacante que vinha por trás, e suas costas,
na altura da cintura, foram rasgadas pela cimitarra de Al-Malik, que
deixava o homem de manto para trás, ardendo em chamas. O corte da
cimitarra não atingiu a coluna do Shaitan, mas rasgou-lhe carne e órgãos
vitais, até que a lâmina surgiu através da barriga. Corte fora lateral,
horizontal, e tamanha foi a força do impulso de Al-Malik ao realiza-lo, que
o Malaki foi parar um pouco à frente de seu alvo. O Shaitan desabou de
joelhos, largando a lâmina e levando as mãos ao ferimento, conforme suas
tripas teimavam em tentar escapar pela imensa fenda em seu abdome. “Não
há Deus a não ser Deus”, gritou Al-Malik, decepando a cabeça do gigante,
“e Maomé é seu profeta!”.
“Obrigado”, agradeceu Ansgar, erguendo-se e pegando sua espada.
O ferimento no ombro do Venator começava a se fechar, mas ainda levaria
algum tempo para se curar por completo. “Não me agradeça”, respondeu
Al-Malik, apontando sua cimitarra ao Caído de manto, que agora erguia-se,
ainda com as roupas em chamas. “Vá ajudar o Kage”, completou o Malaki.
215
Ansgar nada disse, apenas novamente banhou suas lâminas em chamas
celestes, empunhou-a com ambas as mãos, e correu em direção ao demônio
Ha’il.
O Ifrit ainda concentrava suas chamas, que se espalhavam pela
pedra como se esta fosse inflamável. O Kage tentava erguer-se, mas tanto
uma perna como um ombro estavam quebrados. Ha'il avançou, rosnando
em fúria e bufando chamas, deixando um rastro de fogo infernal por onde
passava. Porém, neste instante, Ansgar gritou seu nome. Incrivelmente, o
demônio teve a agilidade e a velocidade suficientes para escapar do golpe
da espada incandescente de Ansgar. O eco do som de metal contra rocha foi
refletido pela câmara, conforme o chão se partia diante do golpe que
Ansgar desferiu. O demônio recuou, cuspindo chamas infernais, mas
Ansgar balançou sua lâmina, intensificando as chamas na mesma, criando
um rastro de luz celeste que barrou o avanço do Fogo Infernal. Ansgar
avançou, elevando sua espada para cima da cabeça, na tentativa de atingir a
barriga do demônio durante o movimento. O demônio recuou, uma vez
mais escapando. Agora com a arma sobre a cabeça, Ansgar novamente
golpeou, de cima para baixo e da esquerda para a direita, tentando atingir a
cabeça de seu adversário. Porém, novamente Ha'il-Kanzab escapou do
golpe, curvando o corpo para a esquerda. Antes que Ansgar pudesse
preparar um novo ataque, Ha’il deu um passo a frente, e com a mão direita
golpeou o rosto do Venator, rasgando-lhe com as garras e queimando-lhe
com o fogo. Ansgar recuou três passos. Foi quando lembrei das lições de
combate em Chak-chak, e percebi porque Ansgar não conseguia atingir o
inimigo: os braços do demônio eram longos demais, impedindo que Ansgar
se aproximasse o suficiente para desferir golpes certeiros. Após o recuo do
216
Venator, o anjo infernal urrou, abrindo seus braços e preparando suas
garras para seu próximo ataque. “É outro que se esconde atrás de metal.
Um a um, vocês todos morrerão, não importa que armas usem”, provocou o
demônio, sua boca sendo iluminada por chamas infernais que dela saltavam
conforme ele falava.
No túnel de entrada, Karina, de joelhos, chorava, olhando suas
unhas quebradas e cheias de sangue. “Eu odeio usar aquela habilidade”, ela
revelou, aos prantos, Fabrizia abraçada a ela, tentando conforta-la. “Perco o
controle por completo”, Karina continuava.
“Calma, Karina”, Fabrizia dizia. “O desgraçado mereceu”.
Absolon, sentado no chão, apoiado na parede, sujo com seu próprio
sangue, observava o que acontecia na câmara. Ele respirava com
dificuldade, conforme usava suas energias para curar-se dos múltiplos
ferimentos. Sem olhar para as duas moças, ele falou, com dificuldade:
“Todos fizemos o que podíamos... Agora é com eles”, disse, fitando
aqueles que ainda batalhavam.
Al-Malik avançou, cimitarra em punhos, contra o Shaitan de
manto. Com o manto em pedaços, era possível ver o homem que o vestia:
magro e baixo, com longos cabelos encaracolados, mas sem pêlos no rosto.
Sua pele não mais era feita de rocha. Os vestígios de fogo não mais o
incomodavam, como se ele tivesse se tornado imune às chamas após o
ataque inicial. Antes que Al-Malik avançasse, o homem balançou a mão, e
uma forte rajada de vento atingiu o Malaki. Perdendo o equilíbrio, Al-
Malik caiu, mas logo se levantou. O homem tinha desaparecido, mas
através de meus poderes eu ainda podia vê-lo. Oculto por sombras e
artimanhas sobrenaturais, ele movia-se com dificuldade, mancando, devido
217
a seus ferimentos. Al-Malik tentava procura-lo, mas não o encontrava,
mesmo com ele estando bem diante de seus olhos. O Shaitan deu a volta,
evitando o Malaki, posicionando-se alguns metros atrás do mesmo. Então,
ergueu as garras, pronto para um ataque... Pensei em gritar para alerta-lo,
mas lembrei de algo que certamente o Shaitan tolo não sabia. E,
certeiramente, no momento de seu silencioso ataque, o pulso que atacava
foi cortado pela cimitarra de Al-Malik, que virou-se girando o corpo,
desferindo o golpe certeiro. Um Cuique Suum sempre vê a verdade,
sempre. Revelado por seu ataque, sem sua mão direita, o Caído recuou.
Sem piedade ou hesitação, Al-Malik avançou... Seu primeiro golpe cortou o
peito do Caído, fazendo-o tombar. O segundo golpe atingiu seu pescoço,
cortando-lhe traquéia, artéria e veias. Em seguida, mal o sangue começou a
ser derramado, seu corpo desmanchou-se em pó. Al-Malik abriu os braços,
fechou os olhos e concentrou-se: que a alma daquele ser impuro jamais
retornasse para atormentar os vivos. E, feito isso, o juiz condenou o Shaitan
à Obliteração.
Restava apenas um oponente em pé. Ha’il-Kanzab e Ansgar se
encaravam, os múltiplos olhos do demônio fitando sua presa. O corte no
rosto de Ansgar não sangrava devido à cauterização causada pelo Fogo
Infernal, mas estava próximo o suficiente do olho de Ansgar para
prejudicar sua visão. Uma parede de chamas infernais surgiu
repentinamente, entre os dois, ascendendo do solo explosivamente. Ansgar
recuou, parcialmente cego pelo brilho das chamas, mas então o demônio
emergiu do fogo profano, suas garras quase alcançando o pescoço do
Venator. Ansgar escapou, tentou desferir um golpe contra o ventre do
demônio, mas novamente foi incapaz de atingir a criatura, pois precisava se
218
manter distante das garras. Ha'il ria e rosnava ao mesmo tempo, pois
após o golpe mal sucedido do Venator, o mesmo precisava posicionar a
pesada espada novamente para atacar. Ao invés de atacar diretamente o
Celestial, porém, Ha’il agarrou a lâmina da arma com ambas as mãos. Fogo
Celestial da lâmina e Fogo Infernal das mãos se tocavam e se anulavam, e
então o anjo maldito girou o corpo para a esquerda, puxando a lâmina sem
se cortar na mesma. Pego desprevenido, Ansgar largou a espada, vendo-a
ser arremessada a dezenas de metros.
Ansgar recuou. “Sem armas de metal para se protegerem, sua
coragem desaparece?”, provocou o demônio, que avançou contra o
Venator, atacando o rosto com uma das garras. Ansgar jogou o corpo para
trás, escapando do ataque. Ha’il gargalhou, conforme Ansgar recuava
lentamente, e ergueu a outra mão, mostrando as potentes e compridas
garras. O demônio avançou, num urro, pronto para desferir outro golpe,
mas o grito de dor que se seguiu era dele próprio, conforme uma sombra
saltava silenciosamente, materializando-se em pleno ar para ganhar
substância e, empunhando uma adaga negra como a noite, feita da própria
essência das trevas, golpeou a mão de Ha’il, cortando-lhe os dedos e garras.
Wang caiu logo atrás do Caído, os dedos do demônio caíram inertes no
chão, desfazendo-se ao baterem no solo. Sangue fétido escorreu, e o
demônio recuou. Não mais tendo insubstancialidade, Wang sentiu o peso
do corpo sobre a perna quebrada, mas teve força o suficiente para jogar-se
no chão, saindo do caminho do demônio que recuava.
Ansgar, num impulso, avançou contra o Caído. O Venator agarrou
o pulso da mão boa de Ha’il, tirando seu braço do caminho, e então
desferiu um soco certeiro no queixo do demônio, quebrando-lhe a
219
mandíbula. “Quem não tem suas armas agora?”, provocou o Venator,
desferindo um segundo golpe no rosto do infernal. Agora que tinha
ultrapassado o alcance das garras do demônio, os braços compridos do
mesmo eram uma desvantagem para o mesmo. Ele tentou recuar, mas
Ansgar agarrou sua cabeça com ambas as mãos, então girou o corpo,
voltando-se para trás, usando o movimento para adicionar força aos braços
e erguer o pesado infernal por sobre a sua cabeça, arremessando-o
violentamente no chão. O chão rachou com o impacto. Ha’il, ferido, tentou
mover-se, mas Ansgar pisou violentamente em seu pescoço, pressionando-
o contra o chão. “Está acabado”, disse, suas mãos agora irradiando chamas
celestes, formando duas espadas de puro fogo purificador.
Corri em direção a Ansgar, passando pelo trono de pedra. O bode
que ali estava tinha desaparecido. Al-Malik e Fabrizia, enquanto isso,
ajudavam Absolon a se levantar. Logo depois, os três mais Karina também
seguiram em direção a Ansgar. Atrás de Ansgar, Wang se erguia, com
dificuldade, enquanto sua perna começava a recuperar-se. O Kage retirou
sua máscara, aproximando-se mancando de mim. “Por que a máscara?”,
perguntei.
“Quando caça nas trevas, um Kage deve ser como os monstros que
nelas vivem, é uma velha tradição”, respondeu.
“Malditos seres que se julgam abençoados”, praguejou, com voz
enfraquecida, o demônio. “Julgam-se melhores, acham-se os protetores da
inocência, mas destroem não uma, mas duas vezes a vida daqueles que
querem o melhor para os homens”.
Al-Malik, mais próximo e ainda ajudando Absolon, respondeu:
“Quem é você para julgar-nos, cria das trevas? Vendeu seu corpo e sua
220
alma a um falso Deus, traiu tudo o que acreditava em nome de poder!
Quem pensa que é para saber o que é melhor para os homens?”.
“HIPÓCRITAS”, Ha’il-Kanzab gritou com as forças que lhe
restavam. “É isso o que são! Arrancaram minhas asas e minha dignidade
por amar os homens mais do que vocês! Destruíram meu orgulho por eu ter
ousado dar-lhes conhecimento para afasta-los do mal! Expurgaram-me do
Paraíso por eu ser melhor do que vocês! Mas não era o suficiente, não?
Vocês não queriam apenas me expulsar, queriam me destruir ainda mais!”.
“Cale-se”, ordenou Ansgar.
Ha’il, porém, prosseguiu: “Eu conquistei minha tribo, me tornei um
deus bondoso e forte. Ensinei meu povo a temer-me e, em meu nome, eles
iriam crescer e prosperar, longe de pecados e da falsidade do mundo. Mas
então vocês enviaram seu falso profeta, cujas palavras enganaram meu
povo e levou os últimos fiéis a serem perseguidos e mortos brutalmente.
Depois disso, eu sabia que não descansariam enquanto não me destruíssem.
Por isso, jurei destruí-los antes, e dei minha alma ao único que estendeu sua
mão para mim”.
“Íblis Al-Qadim”, murmurou Al-Malik.
“Me matem”, ordenou o demônio, “pois não direi nada além de
minha história! Me matem, sabendo que vocês são traidores, monstros sem
piedade que buscam nada além de domínio sobre os homens, através da
ignorância e falsos profetas! Me destruam, pois nada mais direi. Morrerei
sabendo que servi meu mestre e meus propósitos por todos esses séculos”.
“Façam-no”, pediu Al-Malik. “Dêem a ele esse último pedido”.
“Irei Oblitera-lo”, disse Ansgar, “e assim teremos todas as
informações que precisamos. Mesmo tendo de agüentar os pensamentos
221
desta coisa em minha cabeça pelos próximos minutos, precisamos fazer
isso para termos respostas”.
Concordei. Naquele momento, Ansgar pressionou ainda mais seu
pé contra o pescoço do demônio, quebrando-lhe a espinha e esmagando-lhe
a garganta. A criatura começou a desfazer-se, e o Venator fechou os olhos,
concentrando-se. Eu podia sentir a alma do Venator atrair a do demônio,
prestes a devora-la e destruí-lo de uma vez por todas, mas antes que a
Obliteração se concluísse, as paredes tremeram, e senti uma sensação como
nunca sentira antes. Medo. Trevas. Ódio. Dor. Todos num só, permeando o
ambiente como se o Inferno em si estivesse se abrindo naquele lugar.
Então, uma voz ecoou. Uma voz humana e bela, calma, mas forte, como
um líder que grita a seus seguidores. E a voz disse: “Já chega!”.
Ansgar perdeu a concentração, recuando. Karina gritou: “Quem
está aí?”. E, do trono, desceu o bode, silenciosamente. “O que é esse
animal?”, perguntou Ansgar, empunhando defensivamente suas lâminas de
chamas.
“Vocês não o viram antes?”, perguntei.
“Não”, respondeu Al-Malik. “Não o tinha visto antes”.
Meu coração pareceu ser pressionado pelo medo, minha garganta
ficou seca. Nem mesmo Al-Malik pôde ver a criatura antes, apenas eu. Por
quê? Mas então, o bode abriu sua boca, que durante o movimento parecia
ganhar lábios humanos. “Este é um bom servo”, disse a criatura, “vocês o
entregaram a mim, não permitirei que o tomem de volta”. Sua voz era bela,
calma, estranhamente humana. Nada de vozes trovoantes, nada de sussurros
e ecos em nossas mentes, nada de tremores de terra que a acompanhavam.
Era apenas... uma voz. E, de repente, a face do bode parecia estranhamente
222
humana. Sua pata dianteira abria-se, revelando dedos humanos, e ele
crescia em tamanho, lentamente erguendo-se em duas patas.
“Quem é você?”, perguntou gritando Al-Malik.
“Quem sou eu?”, a criatura disse, sua essência espalhando-se pelo
local. No mundo espiritual, uma negritude impermeável se formava e os
espíritos que restavam fugiam ou eram contaminados pela mesma. Agora
ele tinha um metro e oitenta de altura, apoiando-se nas patas traseiras, que
ainda eram como as de um bode, com pêlos negros e densos. Os pêlos do
resto do corpo, salvo a longa cabeleira negra, desapareciam, revelando uma
pele negra e lustrosa. Suas mãos e rosto, porém, tinham a cor de pele
humana, bem clara. Suas mãos eram totalmente humanas, sem garras ou
qualquer outra ferramenta demoníaca. Também sua face era humana e
belíssima, mas sua gengiva sangrava, e seus dentes eram pontiagudos. Os
olhos possuíam um tom avermelhado, e sobre a cabeça, os chifres de bode
ainda permaneciam, maiores e mais majestosos. Grandes asas de morcego
nasciam, abrindo-se até atingirem mais de quinze metros de envergadura.
Também a cauda do bode permanecia, mas crescia, tornando-se
extremamente longa, e serpenteava atrás do corpo, movendo-se
suavemente. “O que querem de mim? Um nome?”, perguntou.
“Diga logo, desgraçado!”, ameaçou Ansgar, mostrando suas armas
flamejantes. Notei que Al-Malik tremia, e eu mesmo permanecia paralisado
de medo.
A criatura, porém, apenas balançou a mão, calmamente, e as
chamas celestes nas mãos de Ansgar tornaram-se esverdeadas. O Venator
caiu de joelhos, gritando de dor, mas então o Fogo Negro apagou-se,
levando consigo as armas flamejantes do Celestial. “Cale-se, pequena
223
criatura”, disse o ser, “pois não sabem o que pedem. Nomes são apenas
designações mortais, nenhum nome me limita ou pode me definir”.
Al-Malik murmurou: “O que é você?”.
“Essa sim é uma pergunta válida”, disse a criatura, dando alguns
passos em nossa direção. Os cascos de suas patas batiam no chão, fazendo
um barulho que ecoava pela câmara. “Pois nomes pouco dizem, a não ser
aquilo que eu quero mostrar. O que eu sou? Eu sou o Oitavo Filho. Quem
eu sou? Vocês podem me chamar de muitos nomes. Pois de Azazel roubei
o nome, e na forma de um bode o usei para ouvir os pecados do homem.
Pois antes de Hades assim se chamar, eu mesmo Hades era, e manipulava
deuses e deusas de acordo com minha vontade. Também os romanos e os
cristãos sussurravam ‘Rex Mundi’, o senhor deste mundo, pois sabiam que
minha vontade não devia ser contestada, e que meu real nome deveria ser
temido. Pela Idade das Trevas, Næbyrus, Senhor do Profano, fui chamado,
e sussurrava nos ouvidos de reis e lordes. Também Mamon foi minha
alcunha, e me chamavam de Mestre da Usura, pois pela ganância os
homens a mim encontravam, e a mim se entregavam. Nu, eu comparecia
aos Sabás com o nome de Leonardo, e, a minhas feiticeiras, milhares
temiam. Para muitos, eu sou Nebiros, mas nesta terra, me chamam Íblis Al-
Qadim, e é por este nome que mais me temerão”.
A criatura se aproximava, calma e seriamente. Al-Malik orava a
Deus. Ansgar se levantava, recuando cautelosamente. Calado, Absolon
apenas observava, ainda apoiado a Fabrizia, e Karina levou a mão à boca, o
medo aflorando em sua pele. Atrás, Wang permanecia em silêncio, mas sua
face demonstrava claro medo. Restou a mim perguntar: “O que veio fazer
aqui?”.
224
“Vim trazer as respostas que tanto quer, Philipe Nicodemus.
Respostas eu trago, mas garanto que um preço será pago por elas. Direi a
vocês o destino de seu precioso Arcanjo, Uriel-chamado-Veritatis, a
mentira encarnada. Mas saibam que esta revelação os levará à perdição.
Tolos são vocês, que não compreendem sonhos ou avisos de perigo, e não
perceberam que a presença sombria desta terra não era outro a não ser eu.
Tolos são aqueles que, mesmo vendo a caveira da morte, adentram onde
anjos deveriam temer se aproximar. Destruição se aproxima nas patas de
um tigre, mas ainda assim desviam-se de seu caminho para me procurar.
São tolos, pois uma vez que tenham as respostas, eu não permitirei que
saiam daqui vivos. Esta é a minha vontade, e minha vontade não pode ser
contestada”.
E, assim diante do Grande Lorde Íblis Al-Qadim, oitavo entre os
Filhos de Ialdabaoth, finalmente teríamos as respostas... Porém, da mesma
forma, nossas esperanças ali terminariam...
225
Capítulo 12: Shiva, o Destruidor
E ali estávamos, diante de nosso destino, cada um ferido em corpo
ou alma, diante de algo maior que nós. Minha mente divagava, não
conseguindo compreender a sensação de escuridão que tomava aquele
lugar. Não eram as sombras tremulantes geradas por piras que me
assustavam, nem as trevas que tomaram o reino espiritual, mas aquela
sensação que percorria meu corpo, que me fazia suar frio e tremer. Aquela
sensação de estar diante de algo além de minha compreensão, frente a
frente com um destino inevitável e cruel. Metaforicamente, estávamos
sendo enolidos por trevas, e mesmo com toda a nossa glória e todo o nosso
poder, não éramos mais do que fracas velas numa noite escura.
Ao meu redor, meus companheiros também se mostravam
surpresos. Ansgar estava de joelhos, suas mãos inutilizadas por terríveis
queimaduras, sua face cortada pelas garras do demônio Ha'il. Seus olhos
não acreditavam no que viam, e seu corpo parecia frágil. Ele finalmente
sabia que estava indefeso naquela situação.
Um pouco atrás, Wang lutava para permanecer de pé, tentando
recuperar-se da fratura em sua perna quebrada. Sua face demonstrava
surpresa e medo, assim como revolta por se sentir tão pequeno. Ele que se
orgulhava por caminhar livremente nas trevas agora se via perdido nelas.
Também Al-Malik, até então mostrando toda a sua majestade,
agora parecia pequeno. O único que não fora ferido pelo terrível combate
que há pouco ocorrera na câmara agora se via catatônico, paralisado diante
de seu maior medo e daquele que seria seu maior inimigo.
Absolon ainda curava-se dos tiros que sofrera. Seu semblante sujo
de sangue, suas roupas rubras pelo líquido derramado por seu próprio
226
corpo. Ajudando-o a permanecer em pé estava Fabrizia, também com
as roupas sujas. Ele nada fazia a não ser olhar, incapaz de sequer mover-se,
enquanto ela futilmente apontava sua espingarda na direção daquele mal
que estava diante de nós. Sua mão tremia, incapaz de conseguir mirar
precisamente a arma.
Karina também estava sem esperanças. Suas mãos sujas com
sangue impuro, sua mente tentando conciliar o fato de que se perdeu para a
raiva e a violência.
E, como se não bastasse, eu ainda podia sentir a tempestade acima,
ainda que estivéssemos a dezenas de metros sob o solo. Eu ainda podia
ouvir os passos e a respiração do tigre, cada vez mais próximo.
Desta vez, estávamos realmente sozinhos.
Diante de nós, Íblis Al-Qadim, Oitavo entre as Crias de Ialdabaoth,
balançava suas asas, gerando um poderoso vento que rodopiava e percorria
a câmara. Ele caminhava lentamente, os cascos em suas patas inferiores
criando um som repetitivo ao bater na rocha, como se fossem os ponteiros
de um relógio que indicava o tempo que ainda tínhamos de vida. Mais
próximo ele estava, e seu corpo continuava a transformar-se. Pouco a
pouco, sua pele negra tornava-se alva, e seus olhos vermelhos tornavam-se
azuis. A monstruosidade se tornava humana, seus cascos mudavam em pés,
suas pernas de cabra contorciam-se até terem um aspecto de humanidade.
Os chifres diminuíam até sumir, e as asas mudavam, diminuindo, ganhando
penas negras. Seus cabelos negros continuavam, porém, longos e lisos. Nu,
ele se tornava um belo homem, com asas negras de anjo, porém ainda
doentias, cujas penas mal-formadas caíam uma a uma em intervalos
irregulares.
227
“Nada mais têm a dizer ou perguntar?”, questionou o Grande
Lorde, aproximando-se ainda mais. “Nada mais têm a fazer?”, indagou. Eu
comecei a recuar, conforme mais próximo ele chegava. Então, quando
estava a menos de dois metros de nós, o demônio parou. “Pois então,
aceitem o destino”, ele disse.
O demônio me fitou, seus olhos azuis encontraram-se com os meus.
Ele então falou em voz alta: “Então, é chegada a hora da revelação,
Arcanjo Nicodemus, Querubim entre os Veritatis Perquiratores. É hora de
contar a verdade sobre aquele que buscam, o Senhor da Mentira, Uriel-
chamado-Veritatis, e sua história de traição, bem como seu miserável
destino”.
“Seu destino?”, perguntei, sem querer, como se meus lábios se
movessem contra minha vontade.
“Você tem perguntas”, ele disse. “Faça-as. Quero que morra
sabendo todas as respostas. Quero que tenha tempo para descobrir todas as
mentiras. Quero que sinta o quão pequenos são, o quão insignificantes
foram, e o quão pouco suas ações influenciam o futuro deste mundo. Quero
que morram com o desgosto de terem sido usados e que tudo o que
acreditaram nada mais era do que uma mentira”.
Dei um passo para trás. Então, murmurei minha primeira pergunta:
“O que é o jarro?”.
“Uma afronta”, ele disse, “uma humilhação que será retribuída, e
pela qual Uriel pagou e ainda pagará”.
Silêncio.
“Vocês realmente não sabem, não é?”, perguntou Íblis, que então
balançou o braço direito, suavemente, como se jogasse areia para o alto.
228
Imagens ondularam ao nosso redor, ouvimos gritos de guerra e sons de
batalha, e então Leviathan surgiu por um instante, urrando furioso e
desaparecendo em seguida, engolido pelas trevas da câmara. “Mas Uriel
sabia. Por uma eternidade houve equilíbrio, uma tênue linha intransponível
que nenhum dos lados podia ultrapassar. Pois poderes iguais podiam agir
neste reino, tanto pelas trevas como pela luz. Este era um jogo, uma disputa
que, pelas regras, manteria o homem em seu lugar e impediria que a
humanidade se pusesse acima da Criação. Porém, ele ousou quebrar as
regras e, ao faze-lo, destruiu a linha que separava trevas e luz, trazendo o
brilho ofuscante ao Inferno, um ultraje pelo qual ele pagaria”.
“Por quê? O que ele fez?”, perguntei, minha voz fraca, tomada pelo
medo.
Então, a voz de Íblis rugiu como um trovão, fazendo a terra tremer
e meu coração se apertar. “ELE OUSOU NOS TRANCAR NUMA
PRISÃO!”, sua voz divina disse, ferindo nossas almas e ecoando em nossas
mentes. Karina e Al-Malik tombaram de joelhos, e eu mesmo me esforcei
para manter-me em pé. Absolon e Fabrizia recuaram, mas Wang
permaneceu onde estava, ainda que não intocado pela fúria do Grande
Lorde.
Eu não podia compreender.
A voz de Íblis uma vez mais se tornou humana, mas era como se o
fogo do ódio a contaminasse. Com convicção e raiva, ele revelou: “Pois, no
sangue da alma de meu irmão, ele encontrou a chave para quebrar o tênue
equilíbrio. Nas entranhas do Paraíso, ele ergueu uma fortaleza de rocha e
falsa sabedoria, e ali colocou a tranca dos portões do Inferno. Ele selou
com palavras arcanas e direcionou a fúria de Leviathan contra seus próprios
229
irmãos. Os últimos vestígios do Primeiro Filho espalharam-se, criando
ventos cortantes, dilacerando aqueles que, entre nós, ousasse ultrapassar os
portões do Inferno. E, por dois mil anos, estivemos presos em nossos
próprios lares, incapazes de tocar diretamente o reino dos homens,
reduzindo o poder de Ialdabaoth neste reino, dando a vocês, tristes tolos, a
chance de moldarem este mundo à sua imagem e semelhança”.
“Aprisionados?”, perguntei, então erguendo timidamente minha
voz, tentando impor meu ponto de vista: “Uma mentira, pois Hades e
Mephistus se manifestaram e ergueram-se contra o Éden, e em momento
algum tivemos um único segundo de tranqüilidade nos dois últimos
milênios”.
Íblis então suavemente ergueu sua mão esquerda, e sons de
milhares de vozes orando inundaram nossos ouvidos. Pedidos de fé, choros
inocentes, cânticos gregorianos, sinos eram ouvidos às centenas, mas pouco
a pouco se tornavam blasfêmias, palavras de ódio, gritos de dor e sons de
guerra. “Em sua tolice, Grande Uriel se esqueceu que nós ainda podíamos
sussurrar através das paredes de nossa prisão. Pois, se nossos corpos não
podiam abandonar a prisão, então nossos espíritos criariam cascas para nos
manifestarmos além dos portões do Inferno. Todas as vitórias que seus
preciosos Primi tiveram foram sobre cascas vazias e sem valor, facilmente
substituíveis, enquanto nossos reais corpos e nossos reais poderes
permaneciam trancados em nossos reinos. Mas não é aí que está a maior
das tolices de Uriel. Não, sua maior tolice foi dar poder aos homens”.
Eu não podia compreender o significado daquela afirmação. Antes
que eu perguntasse algo, porém, o Grande Lorde ergueu os braços e o rosto,
dizendo em voz alta: “Pois o homem guarda em si a essência divina e, se
230
não guiado, torna-se o agente que destruiria a criação. Uma vez que o
Inferno perdeu poder, a humanidade cresceu para tomar o vazio deixado
para si. Sem Inferno e Éden para criar um equilíbrio, o homem cresceu,
saiu do controle. Veja o que a humanidade criou em dois mil anos, quanto
poder adquiriu, o quanto moldou esse mundo. E encare a única e irrefutável
verdade: o homem está levando a criação divina à ruína”.
“Isso não é verdade!”, disse Karina, chorando de joelhos.
“Você está mentindo”, eu gritei, mesmo não tendo argumentos para
contraria-lo. Em minha mente, vinham apenas verdades: a humanidade
divorciando-se da espiritualidade, voltando-se para o egoísmo e tornando-
se maior do que o mundo que a sustenta. E não pude deixar de pensar que,
com ou sem Éden, com ou sem Inferno, a humanidade cresceria até um
ponto em que a criação não mais pudesse contê-la e sustenta-la, e naquele
momento, a própria humanidade se destruiria, deixando uma criação estéril.
“É bem verdade que sussurramos nos ouvidos do homem”, disse
Íblis, uma vez mais me fitando. “É bem verdade que o incitamos a tornar-se
o que é. Pois, se nosso poder não mais nos servia, iríamos nos vingar
usando o poder do homem. Mas isto não é o que realmente importa aqui,
pois nossa vingança não está ainda completa. Pois queríamos o retorno de
nossa glória. Nosso poder seria nosso uma vez mais”.
“E então, vocês tentaram destruir o jarro”, eu disse, entendendo o
que ele queria dizer.
“Exato!”, Íblis sorriu. “Pois o mesmo rito de Leviathan que abriu
os portões do Inferno na Terra poderia ser usado no Paraíso. Um de nós,
Astaroth, terceiro entre os Filhos, Senhor da Dor, reuniu os ritos. Com a
ajuda de outros, ele abriu um portão entre Éden e Inferno, e nossos servos
231
foram então enviados para trazer dor e sofrimento ao Paraíso. Assim,
começou a Terceira Grande Guerra”.
“Mas não conseguiram o que desejavam”, murmurei.
“Sim, nós conseguimos”, sorriu o Grande Lorde. “Pois Fleuretti,
meu quarto irmão e mais fiel aliado, mesmo sendo inimigo de Astaroth,
também contribuiu secretamente com o rito. Uma vez criado, o portão não
mais podia ser fechado, a menos que fosse constantemente mantido
trancado. E fizemos questão de que o selo do portal pudesse ser facilmente
descoberto”.
Meus conhecimentos sobre a Terceira Guerra vinham à mente...
Lembranças de ter lido sobre a grande batalha em torno do portal, quando
Veritatis Perquiratores e Mors Sancta, sob o comando de Grande Veritatis
em pessoa, fizeram um poderoso rito para tranca-lo.
“E O TOLO CAIU EM NOSSA ARMADILHA”, gritou Íblis, sua
voz fazendo a terra tremer uma vez mais. “Pois, ao selar o portal, ele criou
um paradoxo. O Éden estava protegido contra as forças do Inferno... Mas e
a Terra?”.
“Não entendo”, respondi.
“Foi minha sugestão e o gênio de Fleuretti que permitiram a
concretização de nossa mais irônica vingança. Os dois ritos se anulam,
jovem Arcanjo. Ao selarem o Éden, vocês impediram que a tranca de nossa
prisão continuasse a agir por muito tempo. A essência de nosso Irmão foi
aprisionada no Paraíso, impedida de continuar os ventos cortantes que nos
dilaceravam. Lenta, mas inexoravelmente, os ventos cessariam, e uma vez
mais seríamos livres. Porém, esse processo levaria alguns séculos, pois
poderosas eram as proteções que Veritatis originalmente ergueu sobre o
232
jarro. Fleuretti e eu sabíamos que em algum momento, a Selo que
fechava o Éden deveria ser aberto, ou senão nossa prisão ruiria. E, quando
Veritatis percebeu que estávamos prestes a ser livres uma vez mais...”.
“Ele desfez o Selo”, concluí, “e uma segunda invasão começou”.
“A Quarta Grande Guerra”, Ansgar murmurou, ainda de joelhos.
“Eu me lembro”.
“Culpa de seu precioso Primus. Ele sabia que viríamos. Para
continuar a esconder a verdade, deixou que viéssemos e, em troca, fizemos
o Éden provar de seu próprio veneno”, revelou o Grande Lorde. “Enquanto
nossa destruição alastrou-se sobre suas cintilantes cidades sagradas,
tentamos alcançar os restos de nosso irmão, em vão. Pois as proteções da
fortaleza subterrânea se mostraram mais poderosas do que prevíamos, e
nenhum de nós poderia ali adentrar pessoalmente. Mas o próprio Uriel
estava em sua encruzilhada particular. Pois ele sabia que aquilo se repetiria,
de novo e de novo, até que em algum momento nós alcançássemos nosso
objetivo. Então, ele buscou a única saída possível”.
“O que ele fez?”, perguntei. Era o momento da verdade, a
revelação do destino de Veritatis. Finalmente, eu saberia a resposta, o que
aconteceu a ele após a Quarta Guerra.
“Ele veio a nós”, respondeu calmamente o Grande Lorde, seus
olhos então começando a brilhar vermelhos. “E encontrou um de nós”. Íblis
ergueu a cabeça e abriu os braços, gritando. O grito de repente parecia o
som de uma batalha distante, e imagens se formaram. Imagens
assustadoramente familiares ao que vi nos pesadelos de Asphael.
E vimos diante de nós o Éden, e o grande portal vermelho à nossa
frente, diante de um céu vermelho fogo. Os Campos Elísios ardiam em
233
chamas, e o um Arcanjo solitário e sombrio caminhava pela vastidão
fumegante. Veritatis. E ele aproximou-se do portal, tocando-o. Além das
ondulações e do brilho vermelho, uma planície devastada o esperava. E,
logo adiante, ele viu o vulto de uma pessoa. Ali estava um velho careca e
de barba branca, vestindo trapos e magro como se há dias definhasse. Ele
não tinha olhos, apenas órbitas vazias pelas quais escorria sangue, e seus
dentes eram como os de um tubarão. Seus dedos eram magros e compridos,
com unhas longas e quebradiças, manchadas em sangue. Sua pele era
pálida, cheia de feridas e tumores. Aquela visão me enchia de nojo e me
fazia me sentir fraco, como se meu corpo fosse tomado pelo peso da idade.
E o velho sorriu quando Veritatis atravessou o portal em sua direção.
A imagem então se distorceu, mudando para uma batalha. Veritatis,
com suas asas negras abertas, lutava contra o velho nas planícies infernais.
O chão tremia e os céus urravam no Inferno, e os dois se combatiam diante
de uma fortaleza. Ao toque do velho, a carne de Veritatis rachava-se e
sangrava, e vermes surgiam para devorar-lhe os órgãos. Ao toque de
Veritatis, o velho queimava, mas lutava como se dor alguma o afetasse. As
paredes daquela poderosa fortaleza rachavam-se diante da batalha violenta,
e Veritatis aos poucos tombava, seu corpo sendo debilitado pelo poder da
morte que aquele velho possuía. Foi então que Veritatis caiu, sobre as
muralhas derrubadas na batalha. O velho aproximava-se...
“Veritatis foi destruído!”, murmurei, com olhos arregalados, meu
coração apertado. Eu sentia um grande vazio, conforme via o velho
aproximar-se, sangrando, ferido, mas incansável, do corpo quase morto do
poderoso Primus.
234
“Não”, Íblis disse sorrindo. “Ele sobreviveu, vitorioso, à
batalha”. Então, naquele momento, Veritatis ergueu a mão, e o chão tremeu
e os céus sopraram. Uma ventania poderosa se formou, enquanto o chão em
si rachava e erguia-se sob o velho. E, num movimento, Veritatis ergueu-se
no ar, abrindo suas asas, ignorando toda a debilidade de seu corpo, e gritou.
As nuvens negras do Inferno abriram-se, revelando o céu vermelho acima,
e uma explosão se seguiu, derrubando mais muralhas e comprometendo
toda a fortaleza. O velho foi jogado, gritando em fúria, mas ainda sem
nenhuma dor, contra o portal, que estava a centenas de metros de distância.
Os demônios e Condenados ali presentes fugiram diante da visão
radiante de Veritatis, seu corpo incapacitado mas seu espírito intocado, sua
aura de luz iluminando o Inferno a centenas de quilômetros de distância,
ofuscando todos os que o viam. E então, a luz, e o poderoso Arcanjo,
desapareceram em seguida.
As imagens sumiram. Íblis continuou: “Uriel-chamado-Veritatis
usou todas as suas forças para escapar da morte. Mais do que isso, quase foi
bem sucedido em destruir permanentemente Astaroth, Lorde da Dor e
terceiro dos Irmãos”. O ar ondulou e as imagens voltaram, agora no Éden,
além do portal, onde o velho agora se erguia. Mas mal ele se erguia, após o
terrível golpe de Veritatis, sua carne começava a se cortar. Ele urrou de dor,
pela primeira vez sentindo seus ferimentos, conforme sua carne queimava e
se desfazia, e seu sangue caía, contaminando o solo do Paraíso. Ele
cambaleava, totalmente enfraquecido, tentando alcançar o portal e retornar
à segurança do Inferno, conforme os Ventos Cortantes gerados pelo Jarro o
destruíam rapidamente. Mas então, diante dele, o portal se fechou, selado
mais uma vez. O velho tombou, restando apenas ossos e poucos músculos.
235
Urrou mais uma vez, e desapareceu, antes que fosse completamente
despedaçado.
Então, Íblis revelou: “Por poucos segundos, Astaroth escapou da
morte, transportando-se para as catacumbas de sua fortaleza. Três dias
demorou para ele ter forças para erguer-se. Mais cinqüenta anos se
passaram antes que ele estivesse totalmente recuperado. Por aquela afronta,
Astaroth caçaria Uriel até os confins da Criação”.
“E Veritatis?”, perguntei.
“Naquele momento, Uriel já entendia o significado e a futilidade de
seus atos. Ele entendia que seus atos não atingiram os objetivos desejados.
Ao nos enfraquecer, ao invés de terminar a Guerra Eterna, ele apenas tinha
condenado o Éden e a humanidade à perdição. Nós retornaríamos, é o curso
natural da criação, e nem mesmo ele podia mudar as regras do jogo. Ele
percebeu que era uma das peças do tabuleiro, que apenas se julgava um dos
jogadores. Ele não podia mais compreender o significado daquilo tudo.
Como você, ele buscou a única coisa que poderia conforta-lo e lhe
permitiria corrigir seus erros... a verdade”.
Novamente, minha visão ficou turva, e o ar ondulou. Vi a imagem
de uma vastidão vermelha, sob um Sol enegrecido e o céu vermelho.
Ventos fortes sopravam, erguendo uma tempestade de areia, e um homem
de manto, caminhando com a ajuda de um cajado, atravessava um vasto
deserto que antes fora uma grande floresta. Seus pés eram espetados por
espinhos, e ele fracamente se esforçava para atravessar aquela floresta
morta. “Ele então seguiu a única indicação que poderia leva-lo a alguém
que saberia o significado de tudo. E por mais de um século e meio, Uriel
caminhou do Reino de Gehenna, domínio de Astaroth, para o sul...”.
236
O sul! Lembrei-me das palavras de Leviathan a Khral-Harshek:
“Então, segue para o sul, para além das terras inférteis. Siga as sombras de
meu pai, através das montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a
voz que ecoará em tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que,
quando encontrar o vale no qual a única caverna é guardada por um dragão,
terás encontrado o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o
Primogênito. E, feito isso, terá cumprido tua última missão”.
Íblis riu: “Lá, Uriel-chamado-Veritatis encontrou seu destino”.
Logo em seguida, a risada se tornou uma gargalhada.
“O que aconteceu a ele?”, perguntei.
Os olhos de Íblis encararam os meus, brilhando intensamente.
Apesar da forma humana, seu rosto agora era demoníaco, com feições
angulares, pele avermelhada e escamada, nariz pontiagudo e dentes
disformes, “Como vocês, ele encontrou respostas que não esperava. E meu
irmão mais velho ali estava à sua espera. Finalmente, Uriel-chamado-
Veritatis, como vocês agora, encontrou sua própria insignificância. E,
exaurido de suas forças, finalmente as hordas de Astaroth o alcançaram”.
“Astaroth o alcançou?”, perguntei apreensivo.
“Astaroth ou Duriel, Balberith ou Olivier, o nome não importa, mas
sua Maldição sim. Pois ele é o Senhor da Dor, e seu toque definha. Sua
fúria fora alimentada por quase dois séculos, e finalmente ele encontrava
sua presa. Como previsto, Astaroth esperava vingar-se lentamente, e assim
Uriel-chamado-Veritatis foi levado de volta ao Coliseu Ashtar, fortaleza de
Astaroth e Pilar Central de Gehenna, para ali ser torturado por uma
eternidade”.
237
O silêncio que se seguiu foi tão perturbador quanto aquela
revelação. Observei cada um de meus companheiros, todos imóveis diante
das palavras de Íblis.
“Sim”, disse Íblis, “seu precioso Primus está no Inferno, sua carne
sendo constantemente dilacerada pelas presas de meu irmão. Por trás das
muralhas do Coliseu Ashtar, Uriel-chamado-Veritatis nada mais é do que
um boneco nas mãos de um mestre da dor. Ou, pelo menos, ele foi. Pois
nem mesmo Astaroth poderia conter o poder e a sabedoria de Uriel para
sempre”.
Ergui minha cabeça, uma vez mais encontrando os olhos de Íblis.
Sua face era agora novamente humana, seus olhos azuis friamente me
observando. Então, sem nada perguntar, esperei que ele me desse a resposta
que eu desejava:
Íblis prontamente respondeu: “Uriel-chamado-Veritatis é supremo
no plano espiritual. Não foi difícil para ele descobrir o truque que por
milênios utilizamos para fazer a nossa vontade no mundo dos homens. Se
seu corpo era vulnerável, seu espírito poderia ser livre. E assim, há dois
anos e meio, ele criou uma casca mortal para si no reino dos homens, e sua
alma ali se refugiou”.
Dois anos e meio? Durante o ano de 1999? Foi quando Asphael
abandonou o Éden, quando ele pressentiu que Veritatis estava próximo.
“É óbvio que a fuga de Uriel não poderia ocorrer impunemente.
Astaroth enviou suas legiões ao plano mortal, à procura da casca mortal do
Primus. Qualquer um de nós ou qualquer um de seus Primi poderia
pressentir a presença de um ser do nível de Uriel. Porém, para escapar de
238
seus perseguidores, uma vez mais Uriel demonstrou sua genialidade... e
sua tolice”.
Íblis deu uma pausa, observou cada um de nós, esperando uma
pergunta. Era óbvio o que desejávamos saber... Antes que qualquer um
falasse algo, ele prosseguiu: “Ele suprimiu seu próprio poder, sua própria
personalidade. Deu à casca mortal vida e mente própria, ainda que não
tivesse alma. No interior daquele homem, a alma de Uriel adormeceu, suas
memórias vindo apenas para atormentar os pesadelos da casca mortal. Um
estratagema perfeito para não ser detectado, mas que ao mesmo tempo
essencialmente significaria que Uriel-chamado-Veritatis não mais existia,
até que sua alma fosse resgatada e libertada daquela prisão auto-imposta”.
De repente, tudo pareceu claro: o velho do sonho! A imagem de
Metatron pedindo-me para protege-lo! O homem que gritava blasfêmias,
enlouquecido por seus sonhos, que lhe mostravam o Céu e o Inferno e as
faces dos Filhos de Ialdabaoth. Ele era Veritatis! Não! Ele possuía a alma
de Veritatis!
“Mas Astaroth, Senhor da Dor, foi também um tolo. Por todos
esses séculos, ele se considerava o realizador de façanhas... Ele não sabia a
origem da prisão que nos mantinha no Inferno, nem sequer imaginava que
o portal que criou foi a chave para atrair Uriel. Ele também foi um idiota ao
imaginar que conseguiria manter em segredo o aprisionamento do Primus
ou sua fuga... Outros entre nós também desejamos ter a alma de Veritatis
em nossas mãos. Afinal, nossa vingança ainda não está plena. Por isso,
Fleuretti, também chamado Baal-phegor, uma vez mais usou seus
conhecimentos para interferir em nossa vingança... Ele criou um poderoso
agente e o libertou neste mundo para encontrar a alma de Uriel”.
239
“O tigre”, eu murmurei, sentindo que a tempestade acima se
intensificava.
“Shiva, o Destruidor”, revelou Íblis. “Porém, mesmo Shiva não
sabia por onde começar sua busca. Então, dei-lhe a dica... ‘Elimine o
Círculo de Uriel, venha a Jerusalém’. E assim, atraí vocês para cá. Pois o
seu sonho, Arcanjo, contém a localização de Uriel-chamado-Veritatis, e eu
agora a conheço. Eu sei onde encontrar seu precioso Primus. Ele é o único
que sabe que, se o Selo entre Inferno e Éden permanecer fechado, logo
poderemos retornar a este mundo. Tendo ele em nossas mãos, nós não
precisamos mais destruir o jarro para conseguir a liberdade, nossa prisão de
dois milênios terá um fim”. Então, mais uma vez a voz de Íblis estremeceu
as fundações do plano físico: “E IREMOS RECLAMAR NOSSO REAL
PODER!”.
A câmara tremeu com a voz de Íblis, pequenas lascas de pedra e
poeira fina caíam sobre nossas cabeças. Protegi minha cabeça com as mãos.
Foi quando Íblis nos condenou: “E agora que sabem tudo isso, é chegada a
hora de encontrarem seus destinos!”.
“NÃO!”, gritou Ansgar, num impulso erguendo-se e saltando em
direção a Íblis. Suas mãos ainda estavam queimadas, mas ainda assim ele
fechou o punho para golpear com toda a sua força, gritando como um
guerreiro furioso. “SILÊNCIO”, gritou Íblis, fazendo um leve movimento
com as asas. O vento poderoso gerado repeliu Ansgar como se ele fosse
uma pedra levada por um furacão. O Venator voou por metros, batendo
violentamente contra a parede da câmara, rachando a rocha, e em seguida
caindo como uma boneca de pano. Ele ainda se mantinha consciente,
porém.
240
Íblis ainda fitava o Venator, quando Wang avançou,
silenciosamente, as trevas formando uma espada de pura escuridão em suas
mãos. Porém, sem ao menos olhar para seu atacante, o Grande Lorde fez
com que as sombras formassem uma dezena de poderosos tentáculos, que
nasceram das fendas no chão. Os tentáculos envolveram o Kage, prendendo
suas mãos e pernas, enrolando-o, entrando em sua boca e enrolando-se em
torno de sua cabeça. Então, os tentáculos o puxaram contra o chão,
prendendo-o ao solo, e espinhos começaram a nascer naqueles tentáculos
tenebrosos, perfurando sua pele. Por fim, os tentáculos retornaram ao solo,
rasgando a pele do Kage por onde os espinhos de escuridão deslizavam,
deixando-o ali às portas da morte, também consciente, mas mortalmente
ferido, suas roupas rasgadas e seu corpo debilitado.
Mesmo cheia de medo, Fabrizia então atirou, o disparo da
espingarda ecoando na câmara. Mas Íblis nada sofreu. Fitou-a como ela
fosse um ser sem importância. “Você pode jogar os céus e a terra contra
mim, mas prefere usar aparatos de mortais?”, ele provocou. Então, Fabrizia
gritou de dor, conforme seu corpo se contorcia e queimava com choques
internos. Absolon, que se apoiava nela, também foi atingido pelo choque,
causando uma grande faísca. Em seguida, ambos caíram. Ambos ainda se
mantinham conscientes.
Al-Malik, Karina e eu ali permanecemos, sem nada poder fazer.
Íblis nos olhou um a um. “Aqueles que ousaram erguer a mão contra mim
serão os últimos a morrer. Eles testemunharão suas mortes, mas sofrerão
muito antes que eu os abençoe com o mesmo destino”.
Então, diante daquela noite escura que era Íblis, senti surgir uma
poderosa luz. Passos calmos ecoaram pela câmara, e notei o semblante de
241
Íblis mostrar surpresa. Íblis se virou para trás, gritando em fúria e
fazendo a terra tremer: “QUEM É VOCÊ?”.
A passos calmos, e com seriedade na face, Asphael adentrava,
arrastando sua espada, então ergueu-a, empunhando-a com ambas as mãos.
A lâmina brilhou em tom azul, e então as asas de Asphael surgiram, sua
aura dourada irradiando-se como fogo, enchendo aquela câmara de luz. “Eu
sou o Arcanjo Asphael Veritas, Serafim entre os Veritatis Perquiratores.
Metatron me tornou guardião destes bravos Celestiais. Enquanto eu viver,
nenhum deles morrerá!”.
“Idiota!”, provocou Íblis, caminhando na direção de Asphael.
“Pequena criatura rastejante. VOCÊ SABE QUEM SOU?”. Tão poderosa
era a voz de Íblis, que não a suportei mais, caindo de joelhos.
“Sim”, disse Asphael, caminhando em direção a Íblis, lentamente.
“Eu ouvi toda a conversa”, completou.
As patas de Íblis uma vez mais eram como as de bode, e suas asas
tornavam-se como as de um morcego, chifres nasciam em sua cabeça. Ele
retornava à sua forma monstruosa, mas agora suas mãos tinham garras
vermelhas, e sua face também era rubra, mostrando as feições monstruosas
que há pouco vi. “COMO VOCÊ OUSA...?”. O Grande Lorde avançou,
chamas negras formando-se em seu rastro, o chão tremendo diante de seus
passos. Era como se a câmara fosse desabar sobre nós.
Asphael também avançou, mas majestosamente, flutuando logo
acima do chão. Sua espada se iluminou, banhada em poderosa luz branca.
No meio do turbilhão que Íblis representava, Asphael avançava como se
intocado pelo caos. Então, Íblis parou na metade do caminho, erguendo as
mãos, fechando-as, e baixando-as, e o chão abaixo de Asphael partiu-se e
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chamas negras ergueram-se, enquanto o teto acima ruiu e grandes
blocos de pedra caíram sobre o Arcanjo. As trevas intensificaram, e
centenas, talvez milhares de tentáculos de escuridão se formaram,
avançando contra o Arcanjo. E, então, as pedras de caíram desabaram sobre
o Arcanjo, e as chamas o consumiram. Os tentáculos serpenteavam ao
redor da armadilha.
Mas então, as pedras foram erguidas por mãos poderosas, e o
Arcanjo emergiu do oceano de chamas intocado, dançando por entre os
tentáculos, destruindo-os com os golpes poderosos de sua espada. Os
tentáculos que o envolviam não conseguiam para-lo, rompendo-se
conforme o Arcanjo avançava velozmente, deixando um rastro luminoso
dourado. “NÃO!”, urrou Íblis. Asphael o alcançou, desferindo um golpe
contra a sua cabeça, não com a lâmina, mas com a ponta da empunhadura
de sua espada, como se fosse um soco feito com ambas as mãos contra a
têmpora do demônio. O impacto fora tanto que o Grande Lorde foi
arremessado para a direita de Asphael, tombando violentamente no chão.
Ainda flutuando, o Arcanjo segurou a espada com apenas a mão direita,
apontando sua lâmina para o demônio caído, e ordenando: “Cale-se,
impostor!”.
Eu estava boquiaberto, vendo Íblis ser derrubado com um único
golpe. Meu coração batia forte, Asphael, ainda com semblante pacífico, era
agora como um gigante de luz. Íblis se erguia lentamente, e o Arcanjo
então falou, também em voz de trovão, mas ao invés de terror, sua voz nos
trazia força: “É uma ilusão, casca de Íblis. Pelo medo e pelas suas
armadilhas você manipula a mente e nubla seu raciocínio, mas eu tenho a
mente clara e posso ver o que realmente é”.
243
Furioso, Íblis avançou, sua boca espumava veneno, suas garras
deixavam traçados de fogo. Majestosamente, Asphael golpeou o ar à frente,
pouco antes de Íblis alcança-lo, fazendo com que o demônio interrompesse
o ataque. Porém, ao mesmo tempo em que atacava, Asphael avançava e,
quando sua espada completou um semi-círculo e seu braço direito estava
esticado ao lado do corpo, ele golpeou a face de Íblis com o punho
esquerdo. Íblis novamente tombou.
“Acha que não posso ver através de suas ilusões?”, perguntou
Asphael, continuando: “A essência de Leviathan ainda dorme em Libraria,
e sua prisão ainda se mantém em pé. Sua real forma está presa em seu
reino, e diante de mim está apenas uma criatura digna de pena, que engana
através de truques de névoa, sombra e medo”.
Íblis, caído, urrou de frustração, tentando erguer-se. Mas assim que
ergueu sua cabeça, Asphael avançou, chutando-a. Então, o Arcanjo parou,
flutuando acima da barriga de Íblis, e apontou sua espada para o pescoço do
demônio, tocando sua garganta. “Agora, é hora de dissipar as ilusões que
criou”.
O demônio rosnou em fúria, mas logo em seguida começou a
gargalhar. Corri para me aproximar, e assim Al-Malik também o fez. O
demônio ria, mas o semblante sério de Asphael não se alterava. Então, o
infernal disse, numa voz inumana, mas não mais poderosa: “Tolos, sua
vitória aqui é vazia! Estão numa encruzilhada como a que Uriel-chamado-
Veritatis estava. Têm duas escolhas, igualmente dolorosas. Pois Shiva
agora perseguirá a alma de Veritatis e não poderão simplesmente ignora-la.
Mas se conseguirem-na, o que farão? Poderão proteger um homem louco e
mortal para sempre, e nunca mais ter seu precioso Arcanjo? Ou tentarão
244
libertar sua alma, assim fazendo-a retornar ao real corpo, que está nos
domínios de Astaroth, governante de Gehenna? Façam sua escolha, de uma
maneira ou de outra, eu terei vencido no fim”.
“Cale-se”, disse Asphael, sem se sensibilizar com as palavras do
infernal. Em seguida, a cabeça do demônio foi separada do corpo por um
golpe poderoso da lâmina do Arcanjo. Conforme o corpo tornou-se pó,
deixando apenas seus ossos quebradiços e restos de sangue pútrido
espalhados no chão, ouvimos um urro espiritual que tardou a desaparecer.
Al-Malik e eu nos aproximamos de Asphael. Minha voz estava
fraca, minhas mãos trêmulas, meus olhos arregalados. “Senhor, agradeço”,
foi a única coisa que fui capaz de dizer. “Temos de ajudar os outros”, disse
Al-Malik, seu estado não muito diferente do meu.
Asphael Veritas nos observou, suas asas desapareceram e sua
poderosa aura se dissipou. Ele caiu lentamente, em pé, sobre os ossos
quebradiços de Íblis, esfarelando-os. Então, caminhou em direção aos
outros. “Nós temos pouco tempo, Mestre Nicodemus, a Destruição se
aproxima”.
“Shiva! Você o encontrou?”, perguntei.
“Sim, está mais distante do que imaginávamos, logo além do Mar
Morto, mas chegará aqui em uma hora na velocidade em que se encontra.
Como o falso Íblis, trata-se de um Avatar, uma casca criada pelos Grandes
Lordes para se manifestarem. Shiva não é como o farsante, porém. Há
muitos níveis de Avatares. O farsante foi criado para engana-los, mas Shiva
é uma criação mais antiga e poderosa. Quando me aproximei dele, senti
algo que só pude sentir uma única vez”.
“O que sentiu?”, perguntou Al-Malik.
245
Sem nos olhar, Asphael continuou a caminhar. “O mesmo que
pressenti quando Mephistus adentrou o Éden. O mesmo que senti quando
os céus de Prístina choraram fogo. Mas não apenas isso. Senti que Shiva
não está sozinho. Algo cavalga a tempestade, algo que não consegui
identificar, nem tem forma física, nem uma aura, mas eu podia sentir”.
“Algo que deseja liberdade”, murmurei, lembrando daquilo que
senti em Chak-chak.
À nossa frente, Wang se erguia, sua roupa não mais destruída,
nenhum ferimento em sua carne a não ser pequenas escoriações. Fabrizia
agora era ajudada por Absolon a se levantar. Também Ansgar se levantava,
sua face mostrava confusão. O Venator olhava suas mãos, não mais
queimadas, e os únicos ferimentos em seu corpo eram escoriações e a
marca das garras de Ha’il em sua face.
“Ilusões e truques da mente!”, disse Al-Malik, “mas como eu não
pude perceber?”.
“Por que, embora fosse uma casca limitada, o falso Íblis tinha
poderes imensos”, respondeu Asphael. “Não se enganem, ele poderia
destruí-los, pois suas ilusões confundem-se com realidade. Apenas com a
visão clara e o poder que adquiri em milênios de existência me permitiram
ver através das enganações do demônio”.
Karina ainda estava muito abalada. Aproximei-me dela, ajudando-a
a se levantar, e a abracei. Ela chorava e eu sentia vontade de fazer o
mesmo, mas tentei demonstrar uma força que não tinha. Eu estava
aterrorizado. Todos nós estávamos, nossos corações ainda batendo fortes,
nossas mentes incapazes de se livrarem das memórias do que aconteceu
aqui, e do que nos foi revelado.
246
“Curem-se de seus ferimentos”, disse-nos Asphael, “esta noite
ainda não terminou. Sei o que sentem, mas a verdadeira batalha está à
nossa frente. Não queria pedir isso de vocês, mas somos os únicos que
podem parar a Destruição que está vindo”.
Asphael então ergueu sua voz, que mais uma vez era como um
trovão. “Bravos companheiros, é chegada a hora. Sei muito bem o medo
que sentem e o terror que enfrentaremos, e eu digo que também sinto medo.
Mas eu prometo a vocês, que morrerei antes que qualquer um de vocês.
Minha vida aqui existe apenas para proteger vocês. Por me darem as
respostas que eu procurava, agora posso morrer feliz. Mas ainda nossa
busca continua, pois precisamos separar verdades de mentiras”.
“Companheiros”, continuou Asphael, erguendo sua espada, “o
segredo para vencermos é termos nosso propósito em mente. O medo
ofuscou seu julgamento e permitiu a um mestre das trapaças engana-los.
Não mais! Tenham convicção! Enquanto tiverem coragem e sabedoria,
terão a força necessária para transpor seus limites. Agora, precisamos ir,
para encontrar a destruição personificada, o tigre de nossos pesadelos. Eu
não posso obriga-los a virem comigo, mas sozinho não conseguirei derrota-
lo. Por isso, humildemente peço que me acompanhem. Me ajudem”.
Lo Wang olhou ao redor, então caminhou para longe, dando-nos as
costas. Olhei-o, imaginando que desistiria, mas então ele pôs novamente a
sua máscara, virou-se para Asphael, e disse: “Irei pegar minha espada”.
Ansgar tocou os ferimentos em sua face, tentando cura-los. “Estou
com medo”, ele disse, “mas sei que prometi ir até o fim disso”. Ele então
caminhou em direção à sua espada, jogada por Ha’il a vários metros de
distância.
247
“Eu não tenho a menor idéia do que farei lá”, disse Absolon, se
aproximando de Asphael, “mas eu vou. Eu quero me tornar melhor do que
sou”. Fabrizia, abraçada a ele, concordou.
“Karina?”, perguntei, olhando-a. Ela ergueu a cabeça, seus olhos se
encontraram com os meus. “Não sei, Philipe... o que farei lá?”.
“Está na hora de acordar, jovem Supervivente”, disse Asphael.
“Até quando vai se esconder?”.
Absolon afastou-se de Fabrizia e tocou o ombro de Karina. “Sei
como se sente, mas também não se sente inútil? Eu, Fabrizia e você...
somos jovens entre Anjos seculares. Mas você não deseja ser como eles?”.
Karina abaixou a cabeça. “Eu vou”, murmurou. Absolon tocou a
mão de Karina, segurando-a e puxou-a para seu lado. Fabrizia se
aproximou dos dois. Notei por um instante a Xamã observando fixamente,
um tanto cabisbaixa, as mãos dadas de Karina e Absolon.
Voltei-me para Asphael: “Vamos”. Asphael deu-nos as costas,
começando a caminhar lentamente para a saída. Um a um, seguíamos o
Arcanjo. Todos caminhavam lentamente, com medo e incerteza. Seguíamos
o caminho pelo qual viemos. Enquanto andávamos, eu ouvia os sussurros
de meus companheiros.
“O que acha que vai acontecer, Achille?”, perguntou Fabrizia a
Absolon, aproximando-se dele enquanto ele ainda puxava Karina pela mão.
“Não sei”, respondeu o Princeps. “Mas eu quero ver o que
acontecerá. Ainda que não possa fazer nada, eu quero ver”.
“E se morrermos?”, Fabrizia perguntou gaguejando, entrando na
frente de Absolon e fitando seus olhos.
248
“Então morreremos, mas eu prefiro não pensar nisso. Quanto
mais pensar nisso, maior a chance de acontecer. Estou indo lá para viver,
não para morrer”, Absolon disse.
“Belas palavras, Absolon”, interrompeu Al-Malik. “Eu também
tenho medo de ir até o tigre, mas o que ocorreu há pouco me deu nova
perspectiva. Nós sobrevivemos ao impossível, então eu nunca mais
desistirei, não importa quão grande for a barreira que estiver diante de mim.
Terei em mente meu Deus e os ensinamentos do Profeta, e irei me agarrar à
vida mesmo que não tenha mais esperança”.
“E agora estamos indo ao encontro do maior desafio de minha
vida”, disse Ansgar. “Se eu morrer, morrerei com a glória de não ter fugido
diante do inimigo”.
Então, chegamos às ruas de Velha Jerusalém, deixando para trás as
profundezas tenebrosas da cidade. Ensangüentados, sujos, feridos em alma,
mas com mais um desafio diante de nós. Asphael abriu suas asas, liberando
toda a sua aura, então se ergueu aos céus, deixando um rastro dourado. O
segundo erguer-se aos céus foi Absolon, seguido por mim, Fabrizia e Al-
Malik. Ansgar hesitou, mas agarrou firmemente sua espada e ascendeu
rumo à tormenta. Wang silenciosamente o seguiu. A última a partir, ainda
cabisbaixa e silenciosa, olhos manchados por lágrimas, foi Karina.
“Escutem!”, a voz de Asphael ecoou, fazendo-se mais forte do que
a própria tempestade. Naquele momento, adentrávamos as nuvens bravias,
atravessando os céus contra a vontade dos poderosos ventos. “Pois o
inimigo agora está nas montanhas de Moab. Sob motivo algum podemos
deixa-lo chegar à cidade”.
249
Então, Asphael desceu abaixo das nuvens negras. Em grande
velocidade seguíamos seu rastro de luz. Ao descermos, prosseguíamos em
frente, rumo ao leste. Abaixo, a cidade já desaparecia de nossa vista, sendo
deixada para trás. À frente, vimos um turbilhão de poeira, gigantesco em
extensão, subindo até os céus. Ali, raios caíam freqüentemente, iluminando
a noite tempestuosa. Porém, como na cidade, nenhuma gota de chuva
precipitava-se sobre a terra. Nas montanhas à frente, eu podia sentir o tigre,
e sua presença era uma escuridão que ofuscava até mesmo a do falso Íblis.
Porém, nas nuvens acima, eu sentia algo mais... Embora não pudesse sentir
o quê, eu sabia que olhos tenebrosos nos observavam.
Adentramos o turbilhão de poeira, minha visão ali se tornou turva,
tão fortes eram os ventos, e a poeira atingindo nossa pele parecia cortar-
nos. Mas então, abaixo, percebi um rastro de poeira que era erguido e então
varrido pelos ventos, espalhando a areia por todo o céu. E, embora minha
visão estivesse comprometida demais para ver com clareza, eu sabia que à
frente daquele rastro estava o tigre, prosseguindo incansavelmente em
velocidade feroz. Era chegada a hora da batalha.
Então, a voz de Asphael ecoou nos ventos, quando ele ergueu sua
espada, orando para todos nós: “Venha a mim, ó Lorde Sábio, ser presença
real através de felicidade e bons pensamentos, assim serei ouvido além da
irmandade e seremos, através de nossas ações, oferta de vida para o mundo.
Ser firme como a Imortalidade, ser substancial como a Integridade, é a
minha intenção, o que busco pelos bons pensamentos. É essa a palavra e é
esse o cântico que queremos oferecer a Você, a vida de acordo com a
felicidade”. O Arcanjo então nos disse: “Choremos depois pelas perdas,
mas lutemos agora em nome de nosso futuro”. E, num grito que se
250
confundiu com um trovão, Asphael avançou, reduzindo altitude,
empunhando sua arma com ambas as mãos, e seguiram a ele Ansgar e Lo
Wang. Eu, Al-Malik e Absolon fomos logo depois, e por último seguiu-nos
Karina.
O tigre prosseguia, suas patas atingindo como pistões o chão,
causando estrondos, numa velocidade que superava qualquer animal
terrestre. Os ventos convergiam sobre ele, ascendendo e carregando poeira.
Então, a forma brilhante de Asphael surgiu dos céus, descendo em direção
ao tigre e, em pleno vôo, o Arcanjo golpeou o monstro com sua espada,
atingindo-o pelo lado, jogando-o violentamente a várias dezenas de metros
de distância. O tigre caiu violentamente no chão, rolando. Asphael pousou,
avançando correndo, mas então Shiva se ergueu, e urrou. Naquele instante,
Asphael Veritas parou, fitando o demônio, a cerca de dez metros à sua
frente.
Ansgar sobrevoou o campo de batalha, sua espada iluminada em
chamas celestiais. Então, desceu à direita do animal, a cerca de seis metros
de distância do mesmo. Lo Wang fez o mesmo, mas à esquerda. As trevas
ergueram-se ao redor do Kage, suas asas desapareceram, e sua espada foi
engolida pelas trevas, tornando-se uma lâmina de pura escuridão, ganhando
um corte muito mais poderoso e letal do que qualquer arma comum poderia
possuir. Eu e Al-Malik também pousamos, ambos retornando à forma
humana, cerca de quinze metros atrás do tigre. Karina, Fabrizia e Absolon
permaneceram sobrevoando o campo de batalha. Shiva permaneceu parado,
apenas sua cabeça movendo-se para fitar aqueles ao seu redor. Ele rosnava
como um animal acuado.
251
Por um instante, era como se nem o vento nem os trovões
fizerem barulho. Houve um silêncio repentino, absoluto, ou talvez fosse
apenas eu que estava concentrado demais na batalha à nossa frente. Al-
Malik empunhou sua arma, pronto para avançar caso necessário, enquanto
eu tentava me recordar de cada truque que conheço, caso fosse necessário
me envolver. Por alguns instantes que pareciam uma eternidade, a posição
dos combatentes no chão não se alterou. Todos estavam com medo de
avançar, e mesmo Shiva permanecia em seu lugar, cercado por todos os
lados.
Shiva fitou Asphael, poderoso Arcanjo erguendo sua espada em
posição de ataque. Sua face serena, suas asas abertas, sua aura irradiando-se
poderosa. Então, fitou o sombrio Kage, cercado por uma nuvem negra de
sombras tremulantes, empunhando uma arma negra como a noite. Por fim,
olhou Ansgar de asas também abertas, cuja espada, ardendo em chamas
azuis, era mantida em posição defensiva, à frente do corpo. Então, os olhos
do tigre brilharam vermelhos, e o animal urrou. Poeira e pedras foram
jogadas ao ar numa explosão, e os ventos convergiram sobre o local, como
se um vácuo se formasse. Da explosão de poeira, o tigre avançou contra o
Venator.
Shiva saltou, urrando, mostrando suas garras e presas, pronto para
cair sobre o Venator. Então, poeira ergueu-se conforme Ansgar, em grande
velocidade, voou, para o alto e para trás, abrindo braços e asas, deixando a
mão esquerda livre enquanto a direita ainda segurava a espada. Shiva caiu
onde Ansgar antes estava, erguendo ainda mais poeira. Então, quando os
olhos vermelhos do monstro fitaram o Venator se afastando, a mão
esquerda de Ansgar brilhou azul, gerando um globo de chamas celestiais,
252
que foi arremessado contra o tigre. Ao atingir seu alvo, o globo
explodiu, levantando ainda mais poeira e emitindo uma poderosa luz azul.
Poeira cobria o campo de batalha, tornando impossível ver
precisamente o que acontecia. Ansgar já estava a oito metros de altura,
quando então Shiva emergiu da nuvem de poeira, saltando contra o
Venator. Tão rápido foi o tigre que Ansgar não conseguiu reagir. As garras
do tigre penetraram nos ombros de Ansgar, e o impacto fez o Venator
perder o controle de seu vôo. Na nuvem de poeira erguida Ansgar caiu,
suas costas bateram violentamente contra o chão. Shiva estava sobre ele.
Ansgar gritou de dor e o tigre freneticamente rasgava-lhe a carne do peito
com suas garras.
Eu corri em direção à nuvem de poeira, seguido por Al-Malik,
tentando ver o que acontecia em seu interior. Os trovões me impediam de
ouvir os gritos de dor de Ansgar. Adentrei na poeira e pude ver a forma do
tigre, ainda sobre Ansgar, erguendo sua cabeça e abrindo sua boca,
preparando-se para abocanhar a cabeça do Venator. Mas então, duas formas
tenebrosas ergueram-se do chão. Os dois tentáculos de trevas se enrolaram
no pescoço do tigre, empurrando-o para trás. Ansgar, ainda empunhando
sua espada flamejante, aproveitou a deixa para erguer seu braço direito,
atingindo em cheio o pescoço do demônio. O tigre caiu para a esquerda de
Ansgar, livrando o Venator, mas, para nossa surpresa, nenhum corte foi
feito em seu pescoço.
Ansgar se afastou, retornando à forma humana e arrastando-se no
chão, sem nunca largar sua arma. Ele gemia de dor, e seu sangue pintava o
solo de vermelho. Corri em sua direção. Shiva se ergueu, os tentáculos
ainda tentando mantê-lo caído, mas a força deles não era páreo para a de
253
Shiva. O tigre urrou para mim, conforme eu me abaixava para ajudar
Ansgar, e se preparou para o bote. Mas então, a voz de Al-Malik foi
ouvida. “Pelos Urielitas de Atashgah, eu o puno!”, ele gritou. Para nossa
surpresa, o tigre recuou, algumas porções de sua pele rasgavam-se,
revelando feridas abertas. Porém, aquela pequena distração não foi o
suficiente para parar o monstro.
Shiva fitou Al-Malik, mesmo eu e Ansgar estando mais próximos,
e avançou contra ele, partindo os tentáculos que o prendiam. As formas
tenebrosas desintegraram-se logo em seguida. Al-Malik se preparou,
correndo contra o tigre, gritando, pronto para desferir um ataque suicida.
Antes que ambos se encontrassem, porém, a terra tremeu e rachou, e as
rochas se ergueram formando uma barreira entre os dois. Al-Malik parou
diante do obstáculo, fitando sua criadora: Fabrizia, que flutuava vinte
metros acima do campo de batalha. O tigre, ao contrário, não hesitou, nem
parou seu avanço, atingindo a barreira em grande velocidade. A parede
desmoronou diante daquele golpe, e o tigre a transpôs sem se ferir, mas o
impacto o fez parar por um instante. Com o impacto, as rochas que
formavam a parede foram arremessadas como se atingidas por uma
explosão. Um bloco de pedra atingiu em cheio a cabeça de Al-Malik, que
caiu, largando sua arma. Shiva urrou, mas seu urro foi interrompido por um
poderoso trovão. Um raio atingiu o tigre, fazendo-o recuar um passo, mas
não o ferindo. Fabrizia, acima, gesticulava com as mãos, e gritava,
enviando um segundo e um terceiro raio contra o tigre. O som
ensurdecedor dos trovões me atordoava, mas eu ainda tentava ajudar
Ansgar a se levantar.
254
Assim que o quarto raio atingiu Shiva, este ergueu a cabeça,
fitando sua agressora. O monstro urrou uma vez mais, e os ventos
convergiram contra Fabrizia, formando ondas de poeira que a atingiram
com força. A Celestial foi arremessada mais de vinte metros para o alto, e
então caiu descontroladamente, precipitando-se contra as rochas abaixo.
Antes que atingisse o chão, porém, Absolon a alcançou, e conseguiu
agarra-la. Fabrizia abraçou forte o Princeps, e suas asas desapareceram logo
em seguida, retornando à forma humana, enquanto Absolon a levava para o
chão.
De volta ao campo de batalha, eu tentava me recuperar do
atordoamento causado pelos trovões. “Pode se levantar?”, gritei a Ansgar.
Ele fez sinal que não. Agarrei seu braço esquerdo e tentei puxa-lo, para que
o Venator se apoiasse em mim. Sem largar a espada flamejante, Ansgar
levantava-se com dificuldade. Também Al-Malik tentava erguer-se, mas o
tigre estava muito próximo. Shiva caminhou lentamente em direção ao
Malaki caído. Foi quando, atrás de Shiva, Lo Wang saltou silenciosamente,
em meio à poeira, pousando sobre os restos do muro de rocha erguido por
Fabrizia. Enquanto Shiva fitava Al-Malik, Wang segurou firmemente sua
lâmina negra, revestida com trevas. Então, ergueu-a sobre a cabeça, a
lâmina apontando para frente, e saltou, caindo sobre as costas do tigre, a
lâmina penetrando-lhe no pescoço, emergindo através da garganta do
animal.
Shiva rosnou em fúria, e imediatamente Wang saltou, retirando a
lâmina. Mal Wang saiu das costas do animal, uma coluna de chamas negras
saltou do mesmo. Wang girou no ar, caindo à frente do tigre, de frente para
o mesmo. Shiva avançou num salto, garras prontas para rasgar a carne do
255
Kage. Wang saltou uma vez mais, dando uma cambalhota para trás. O
tigre caiu no local em que Wang se encontrava originalmente, e então
prosseguiu avançando contra o Kage. Este, no meio da cambalhota, apoiava
os braços no chão, e se impulsionou novamente para trás quando a tigre
estava preste a atingi-lo. O tigre parou, e Wang, assim que pousou os pés
no chão, recuou um passo, apontando defensivamente sua lâmina para o
adversário.
Os dois permaneceram se fitando por alguns segundos. O tigre
rosnava, furioso, sujo tanto com o sangue de Ansgar como o seu próprio. A
tempestade se intensificou, os raios pareciam mais fortes e o uivo do vento
se tornava mais alto. O tigre vomitou uma onda de chamas negras, mas esta
se dissipou antes de atingir Wang. Das chamas, porém, emergiram seis
formas flamejantes, que pareciam fantasmas esverdeados incorpóreos,
apenas com tronco, cabeça e braços, e uivavam ferozmente. Os fantasmas,
compostos por Fogo Negro, ascenderam aos céus, urrando, e então se
separaram, cada um tomando uma direção. Logo em seguida, todos
convergiram contra Wang.
Wang recuou para escapar do primeiro fantasma, que lhe atacou
pelo flanco esquerdo. O segundo, o Kage golpeou com sua arma, fazendo-o
explodir ao contato. A arma de Wang se incendiou em chamas negras, que
dissolveram o revestimento de trevas que a protegia. Wang girou o corpo
para a direita para escapar do terceiro, e usou esse mesmo movimento para
atingir o quarto, que também explodiu ao contato. Era como em uma dança,
o Kage rodopiando, saltando e recuando para impedir que os espíritos de
chamas o tocassem.
256
Enquanto isso, Al-Malik se ergueu e pegou sua cimitarra caída.
Sua cabeça sangrava, manchando o turbante branco, mas o Malaki parecia
não sentir dor. O Cuique Suum avançou para atacar o tigre, que permanecia
parado, observando Wang esquivar-se dos espíritos. Antes que Al-Malik
atingisse Shiva, porém, este se virou para o Malaki, abrindo sua boca e
urrando. Imediatamente, o Malaki, a três metros de distância, foi engolido
por chamas negras, e o urro o tigre o arremessou para trás. Al-Malik caiu
rolando no chão, inconsciente. As chamas negras em seu corpo se
apagaram logo em seguida.
“Al-Malik!”, gritou Ansgar, tentando reunir forças para avançar,
mas mal se agüentando em pé, ainda se apoiando em mim. Foi quando
Absolon pousou diante de nós. “Me dê a arma”, pediu, referindo-se à
espada de Ansgar.
“Você não tem chance”, disse o Venator.
“ME DÁ A ARMA”, ordenou Absolon, estendendo a mão.
Ansgar entregou a arma flamejante ao Princeps. “Tome cuidado”,
disse o Venator. Então, Absolon a empunhou com ambas as mãos. “Não
pretendo ter cuidado”, disse Absolon, “mas pretendo sobreviver”.
Wang continuava a escapar dos espíritos. O primeiro espírito o
atacou por trás, mas ele abaixou para escapar. Em seguida, quando o sexto
espírito veio de cima, ele rolou para a direita. O espírito atingiu o chão,
explodindo em chamas. Dois espíritos convergiram contra o Kage, mas este
saltou, dando uma cambalhota para trás. Os espíritos se atingiram, mas não
se explodiram, um atravessando o outro sem nada sofrerem. Mal o Kage
terminou sua cambalhota, o terceiro espírito veio por trás, urrando, e então
o Kage girou o corpo, virando-se e atingindo em cheio o atacante com sua
257
espada. O espírito explodiu sem causar ferimentos. Naquele instante,
quando Wang deu as costas a Shiva, o tigre avançou. Wang se virou, mas o
tigre já o alcançava. As garras do tigre estavam prontas para atingir o peito
do Celestial, mas este assumiu sua forma de sombras. Shiva atravessou a
forma incorpórea de Wang, suas garras passando através do tórax do
Celestial. Porém, mas Shiva pousou, Wang cambaleou, retornando à forma
humana. Pela boca de sua máscara, Wang cuspiu sangue, e um ferimento
gravíssimo de garras cortava seu peito, rasgando até mesmo suas costelas.
Wang caiu no chão, inerte.
“LO WANG!”, gritou Absolon, avançando em forma angelical,
flutuando rente ao solo. As faixas de luz que formavam suas asas
tremulavam, e as chamas celestes em sua espada deixavam um rastro
azulado traçando seu caminho. O tigre se virou para Absolon, e correu em
sua direção. Antes que os dois se encontrassem, um raio atingiu Shiva, não
vindo dos céus, mas das mãos de Fabrizia, que estava onde Absolon a
deixara, observando a luta. Shiva se distraiu com o ataque parando por um
instante, e então Absolon atingiu a face do tigre com a espada flamejante, o
golpe traçava um arco de fogo no ar. Shiva recuou, ainda sem nenhum
ferimento, a não ser poucas queimaduras onde Ansgar e Absolon o
atingiram, alguns cortes na pele causados por Al-Malik, e o pescoço
perfurado pela lâmina de Wang.
Shiva fitou Absolon. Os dois espíritos flamejantes restantes
ergueram-se nos céus, e convergiram contra Absolon uivando de dor e
fúria. Então, eu ergui minha mão. “CHEGA!”, gritei, gesticulando com a
mão livre, e então a apontei para os espíritos. Um deles explodiu. O outro
258
continuou a avançar, mas Karina, desceu dos céus, entrando em sua
frente. O espírito atingiu Karina, seu corpo incendiou-se e caiu no chão.
Aproveitando a deixa, Absolon avançou com raiva, desferindo
outro golpe na cabeça de Shiva. A espada atingiu-o em cheio, mas nada
mais fez do que queimar seus pêlos. Shiva recuou. Eu gesticulei
novamente, invocando o poder que eu tinha sobre os espíritos daquele
lugar, e convergindo toda a fúria espiritual contra o tigre. Shiva urrou em
dor, sua carne recebia novos ferimentos, ainda que pequenos. Porém,
mesmo que conseguíssemos derramar seu sangue, era como se nada
pudesse para-lo.
Furioso, Shiva urrou novamente. A partir do tigre, rachaduras
começaram a se espalhar pelo chão, em padrões aleatórios, cuspindo
chamas negras explosivamente. Absolon foi engolido pelas chamas e, em
seguida, arremessado ao ar. A espada de Ansgar caiu no chão pouco antes
de Absolon. Sua faixas de luz perderam parte do brilho e caíram como
trapos inertes sobre ele, conforme Absolon perdia suas forças. O tigre se
aproximava lentamente do Princeps caído...
Mas então, meus olhos se desviaram para um brilho repentino que
vinha do meio das nuvens de poeira que eram erguidas pelo vento. Shiva
também fitou aquela luz, e urrou furiosamente. E, ali, vi Asphael, parado,
ainda na mesma posição em que estava desde o começo do combate. Suas
asas estavam em chamas, seus olhos brilhavam com o Sol. Sua espada era
envolvida por luz branca intensa, e de sua lâmina saltavam raios que
envolviam o Celestial. O chão sob ele rachava-se e tremia, conforme
Asphael absorvia toda a resistência do solo para si mesmo.
259
Asphael avançou, emitindo um grito furioso. Shiva urrou,
também avançando contra o adversário. Mas, quando ambos se
encontraram, foi a espada de Asphael que prevaleceu. O golpe atingiu o
pescoço do demônio, de baixo para cima, emitindo um clarão intenso e
jogando o tigre para o alto e para trás, como um boneco de pano. O tigre
caiu violentamente no chão, rolando. Para a minha surpresa, seu pescoço
sangrava intensamente, e queimaduras estendiam-se por todo o lado do
corpo atingido pelo golpe, que possuía a força da terra, do fogo, do
relâmpago e da luz combinados. A espada de Asphael se partiu com o
golpe, incapaz de agüentar tamanho golpe.
O tigre se levantou, cambaleando em dor. Asphael deu um passo à
frente, ainda empunhando a espada. A lâmina da mesma crescia,
reconstituindo-se. Os dois se encaravam, conforme a carne de Shiva
também se regenerava, e o tigre urrava em fúria. Os trovões urravam e os
raios se intensificavam. Eu podia notar que, mesmo com Asphael ali, Shiva
ainda não tinha sido ferido o suficiente para termos uma luta equilibrada, e
as forças que Asphael concentrou em seu primeiro golpe tinham sido
dispersadas quando a lâmina da espada se quebrou e precisavam ser
reunidas novamente. Então, inesperadamente, Shiva urrou uma última vez,
e um torvelinho de poeira envolveu o tigre, este próprio se tornando pó e
ascendendo aos céus, carregado pelo vento. Imediatamente após a poeira se
dissipar, os trovões pararam e a ventania diminuiu. A presença de Shiva
desaparecera por completo.
“Ele ainda pode nos atacar”, disse Ansgar, esforçando-se para falar.
“Tenham cuidado”.
260
“Não”, respondi. “Ele não está mais aqui. Nem a força na
tempestade eu sinto mais”.
Asphael retornou à forma humana, abaixou sua espada e caminhou
em nossa direção. Ele agora parecia cansado, não mais tão calmo quanto
antes. Sua face mostrava preocupação, temor. Ao mesmo tempo, Fabrizia
corria em nossa direção.
“Acabou?”, perguntei a Asphael.
“Não”, ele disse, ofegante. “Isto não é o fim. Acho que está apenas
começando”.
“Não é possível!”, Ansgar retrucou.
Fabrizia, enquanto isso, ia ajudar Absolon. “Achille, você está
bem?”.
Absolon murmurou, parte de sua pele queimada, mas ele próprio
sorridente: “Não muito. Me ajuda a levantar?”. Fabrizia respirou aliviada e
ajudou o Princeps a se levantar.
Asphael fitou o horizonte. “Shiva se escondeu. Está em algum
lugar. Sabe que terá oposição e tentará cumprir sua missão agora.
Precisamos encontrar a alma de Mestre Veritatis antes do tigre”.
“Mas onde procurar?”, perguntou Ansgar.
Ao mesmo tempo, Fabrizia e Absolon caminhavam em direção a
Karina, também caída. “Karina, você está bem?”, perguntou Absolon.
“Não”, disse Karina, também parcialmente queimada,
especialmente no braço direito, o ponto em que o espírito de chamas a
atingiu.
“O que você fez foi loucura”, Absolon comentou.
261
“E daí?”, Karina disse, sua voz fraca e trêmula. “Eu não ia
servir pra mais nada. Se você se defendesse do fantasma, o tigre iria mata-
lo”.
Asphael, respondendo a Ansgar, comentou: “Eu não sei onde
encontraremos meu mestre. Mas você, Mestre Nicodemus, tem em seus
sonhos a resposta”. Asphael me fitou seriamente.
Eu tentei pensar, tentei me lembrar dos detalhes de meus sonhos,
mas estava nervoso. Minha cabeça não conseguia decifrar o significado das
imagens que eu vi. Onde? Onde está a pessoa que possui a alma de Uriel?
Onde está o velho dos meus sonhos, protegido sob os braços de Cristo? “Eu
não sei”, respondi.
Ali perto, Absolon se ajoelhou para ajudar Karina. “Vá ver se Al-
Malik e Wang estão bem”, ele pediu a Fabrizia, que correu em direção aos
outros dois.
Asphael então olhou o céu. “A tempestade não possui mais um
poder que a mantém, irá se dissipar, e o rastro de Shiva será perdido. Ele
está à nossa frente. Íblis irá informa-lo de tudo o que descobriu em sua
mente, Mestre Nicodemus. Precisamos continuar, mas para isso precisamos
de um lugar aonde iremos continuar a busca”.
Observei nosso grupo. Ouvi Fabrizia gritar: “Eles estão bem! Estão
só inconscientes!”, referindo-se a Al-Malik e Lo Wang. Olhei para Ansgar
ao meu lado, seus ferimentos profundos ainda sangrando. Olhei Absolon e
Karina, juntos, ambos queimados pelas chamas do inferno. Então, voltei-
me a Asphael: “Nosso grupo precisa se recuperar”.
262
“Eu irei ajuda-los”, disse Asphael, caminhando em direção a
Karina e Absolon. “Ajude Ansgar enquanto isso, e pense. Pense aonde
iremos agora”.
Concordei. Abaixei-me logo depois, para deitar Ansgar. Assim que
o Venator se deitou no chão do deserto, toquei seus ferimentos e fechei
meus olhos, concentrando o que restava de minhas energias para chamar os
espíritos e pedir suas forças vitais. Pouco a pouco, os ferimentos de Ansgar
se fechavam, ao custo de minhas próprias forças. Quando abri meus olhos,
o peito de Ansgar estava quase recuperado.
“Eu mesmo posso curar o que resta”, disse Ansgar. “Poupe suas
forças, Nicodemus”.
Eu me sentei ao lado do Venator, observando Asphael curar
Karina, enquanto Absolon recusava a ajuda para curar-se sozinho. Pensei,
mas não conseguia concluir nenhum pensamento. Então, lembrei-me de
palavras que me foram ditas nesta mesma noite: “Meu trabalho aqui era
leva-los a meu mestre. Se sobreviverem, com certeza vocês terão diversas
perguntas que ele pode responder. Se vocês se arrependerem de sua tolice e
mudarem de idéia, ou se conseguirem sobreviver esta noite, vão a este
local”. Então, levei minha mão a um dos bolsos internos do sobretudo, e
retirei o cartão postal que Onesimus, o Anjo Caído, me entregara em
Jerusalém. A primeira face do cartão que vi foi o verso, no qual runas
fabuláricas diziam: “Passagem segura permitida pelo senhor desta casa”.
Então virei a face do cartão, onde vi uma figura, e sua respectiva legenda:
“Domus Aurea, Roma”.
263
Capítulo 13: A Cidade Eterna
Senti água tocar meu rosto, mas sem me molhar. Num instante, os
sons da tormenta sumiram. Não havia mais trovões, nem raios, nem ventos
poderosos. Não havia mais fúria, mas ainda permanecia o medo. O incerto
estava à nossa frente e eu não tive coragem de atravessar o portal de
Asphael de olhos abertos. Dei mais passos à frente, deixando a sensação de
atravessar água para trás. E ouvi algo que imaginei nunca mais ouvir:
serenidade.
Uma brisa suave e gelada tocou meu rosto. O frio trouxe-me
calafrios, mas estes, comparados com os calafrios do medo e do desespero
que senti há poucos minutos, eram uma bênção. O frio não incomodava,
nem sequer o silêncio era inoportuno. Eu ouvi o som de passos, conforme
meus companheiros atravessavam o portal atrás de mim, mas o som mais
alto era o de galhos de árvores balançando ao vento, suas folhas emitindo
uma cacofonia suave e, para minha mente tensa, estranhamente relaxante.
Então, abri meus olhos para ver aquilo que me cercava.
Meus olhos primeiro viram um bosque, no qual estava a clareira em
que nos encontrávamos. Olhei para o céu, e vi poucas nuvens flutuarem no
vazio distante, estrelas brilhando majestosamente na escuridão. Virei-me ao
sentir o portal atrás de mim fechar-se, conforme Asphael o atravessava. Ali
estávamos os oito, feridos em espírito e sujos com poeira, sangue e cinzas.
Nenhum de nós conseguia esconder a tensão ou o medo, nem nenhum
poderia jamais esquecer aquilo que vimos e ouvimos nesta noite
interminável. Mesmo poderoso Asphael agora parecia cansado e duvidoso,
ainda que tentasse exalar uma presença confiante. Eu sentia que seu grande
poder havia diminuído, exaurido pela batalha com Shiva.
264
“Onde estamos?”, perguntou Fabrizia, que se aproximava de
Absolon e tocava-lhe o ombro. Absolon virou-se para a jovem, sua mão
tocou a mão dela, sobre seu ombro, mas ele não sorriu. O cansaço do
Princeps era claro, bem como seus temores.
“Villa Borghese”, murmurou Karina, que se afastava timidamente
do grupo. Seu olhar fitava o chão, suas mãos ensangüentadas tocavam seus
próprios braços, que ela pressionava contra o peito, como se estivesse se
abraçando para se confortar. Fosse ela mortal, eu imaginaria que estava
com frio, mas eu sabia que ela estava insegura, sentindo-se a mais baixa
entre nós, a única que não foi capaz de pegar uma arma e lutar.
“Sim”, disse Asphael. Sua voz agora mais baixa, menos grandiosa.
“A jovem Supervivente tem razão... Sem dúvida, já esteve aqui para
reconhecer este lugar tão facilmente. Estamos em Roma, uma cidade que já
foi tanto de trevas como de luz. Eu amo e odeio esta cidade”.
“Por quê?”, perguntou Al-Malik, que retirava o turbante sujo,
deixando seu rosto à mostra. Seus longos cabelos negros e encaracolados
caíram sobre os ombros. Ao seu lado, Lo Wang removia sua máscara.
Silenciosamente, o Kage fitava a face demoníaca que até há pouco usava.
“Aos meus olhos, esta cidade representa a humanidade, jovem Al-
Malik”, respondeu o Arcanjo. “Ela representa glória, beleza, iluminação e
conhecimento, mas também representa a corrupção, a farsa e as mentiras do
ser humano. Aqui nasceram impérios, tanto de luz como de trevas”.
“O que faremos agora?”, perguntou Ansgar. O poderoso Venator
segurava o cabo de sua espada com a mão direita, mas não a erguia. Ao
contrário, a mantinha apoiada ao chão, arrastando-a como se ela tivesse
grande peso.
265
“Iremos a Domus Aurea”, respondi, olhando o cartão postal em
minhas mãos. “É nossa única pista, talvez nossa única esperança. Íblis disse
que meus sonhos eram a chave para encontrarmos Veritatis, mas eu não
consigo decifrar minhas visões. Quanto mais penso nelas, menos claras se
tornam, mas ainda assim acho que os Guardiões estão nublando meus
pensamentos, pois algo me mim me diz que estou ignorando aquilo que é
mais óbvio. Enquanto eu não conseguir desvendar meus sonhos, tudo o que
temos é este cartão postal”.
“E, infelizmente, não temos tempo”, murmurou Absolon.
“Eu queria que tivéssemos todo o tempo do mundo”, resmunguei.
Minha voz tornou-se rouca e fraca. “Eu queria dar a vocês tempo para
descansar, tempo para pensar. Eu queria poder pensar num curso de ação
melhor... Mas se Íblis realmente invadiu minha mente e roubou meus
sonhos, então talvez já seja tarde demais”.
Olhei para meus companheiros, observando cada um. “Vamos orar
ao Lorde Sábio para que encontremos respostas, Mestre Nicodemus”,
Asphael disse, assim que meus olhos se encontraram com os dele.
“Mas tenhamos cuidado”, eu disse enquanto minhas asas se abriam,
sem encontrar resistência em minhas roupas já rasgadas nas costas. “Eu sei
que Roma, embora longe de conflitos étnicos, não é muito diferente de
Jerusalém. Aqui também é lar de povos antigos e uma cidade que já foi um
centro de fé. Aqui também Anjos Caídos detém grande poder. Vamos
torcer para que a Corte Negra nos seja amigável, pois certamente ela deseja
algo conosco esta noite”.
Ergui vôo, suprimindo minha aura para que nenhum mortal me
visse. Meus companheiros fizeram o mesmo. Em conjunto, elevamo-nos
266
aos céus. Assim que estávamos a grande altura, eu olhei para as luzes
da cidade abaixo. Esta noite parecia interminável, mas não era de se
surpreender... Primeiro do Irã para Israel, depois de Israel para a Itália,
avançávamos junto com a noite... Certamente, mesmo tendo passado
diversas horas desde que saímos de Chak-chak, o horário em Roma deveria
ser aproximadamente o mesmo em que chegamos a Israel... Era como se o
tempo não passasse.
Fiquei algum tempo observando, perdido, para as luzes abaixo, sem
saber o que era norte ou sul, ou para onde seguir. Karina percebeu minha
confusão, e então apontou para o horizonte além. “Para lá”, ela disse, sua
voz baixa e sem forças. Agradeci, e então pedi que ela tomasse a frente. Ela
passou então a guiar o grupo pelos céus, mas seu ânimo não se alterou.
Prosseguíamos através dos céus. O vento frio atingia nossos rostos,
e as luzes da cidade se moviam abaixo de nós. A noite plácida parecia tão
silenciosa e tão diferente da tempestade que há pouco enfrentávamos.
Fechei meus olhos por um instante, lembrando-me de tudo o que nos
atormentava...
Abri os olhos, fitando a escuridão do horizonte. Em algum lugar
deste mundo estava um velho homem assustado, atormentado por
memórias de uma vida que não era a sua. Um ser sem alma nem passado,
mas pensamentos distintos, carregando a alma dormente do Arcanjo que
admirei por toda a minha existência celeste. Uriel-chamado-Veritatis,
Primus dos Veritatis Perquiratores e dos Mors Sancta, Arcanjo da sabedoria
e da vida além da morte. Eu sempre o imaginei como um ser divino,
infalível, inigualável. Mas então, ele era apenas um homem, um homem
267
falho, que errou, e em seu erro criou um pesadelo que afetou e ainda
afetaria toda a humanidade.
E, assim como o velho, também em algum local estava seu algoz,
caminhando com patas de tigre. Fechei meus olhos uma vez mais, e senti
uma estranha escuridão distante, que vinha de leste, oeste, norte e sul. Algo
maior até mesmo do que o tigre. Aquele que cavalgava a tempestade
parecia mais forte agora que a tempestade tinha se dissipado. E nós oito
éramos aqueles destinados a impedir que essa escuridão se apossasse do
velho e da alma do poderoso Arcanjo. Seríamos capazes? O que o destino
realmente nos reservava?
Minha mente deixou de divagar quando Karina descendeu ao solo.
Nosso grupo logo a seguiu. Fitei Roma abaixo, conforme as luzes da cidade
tornavam-se mais próximas, e lembrei uma vez mais do homem que nos
atraiu aqui: o Caído, Onesimus. O que seu povo poderia desejar conosco?
Que respostas poderiam nos dar?
Abaixo, estava uma antiga colina. Pousamos numa área deserta do
parque, em meio a ciprestes. O vento frio e suave balançava suas folhas
suavemente. Assim que Karina tocou seus pés no chão, suas asas
desapareceram. Ela deu alguns passos à frente, cabisbaixa. O segundo a
descer foi Asphael, seguido de perto por Absolon e Fabrizia. Os demais os
seguiram, e por último vim eu. Todos, um a um, retornamos às nossas
formas humanas.
“Estamos próximos das Termas de Trajano”, disse Karina,
suspirando. “É um lugar lindo. A Domus Aurea também está próxima...”.
“Eu me lembro quando a ‘casa dourada’ de Nero ainda era um
gigantesco palácio, construído sobre as cinzas de Roma”, disse Asphael.
268
“Nero foi um ser desprezível, um homem vil e covarde, assombrado
por demônios e espíritos. Ele era cruel e traiçoeiro, matando por prazer e
por poder. Muitos acreditam que ele incendiou Roma apenas para construir
seu palácio, e eu não duvidaria disto”.
Observei Asphael. “Às vezes esqueço-me o quanto viveu e o
quanto vivenciou, Lorde Asphael”, comentei.
“Há muitas memórias que tenho, Mestre Nicodemus”, ele
respondeu, fitando o horizonte, “mas não é hora de lembrar do passado”.
“Karina, pode nos guiar?”, pedi-lhe, lançando a ela um olhar
preocupado. Ela concordou com a cabeça e tomou a frente.
Karina nos conduziu pelo parque, por entre árvores e grandes
jardins, e estátuas e construções de mármore. Caminhávamos em silêncio, e
eu aproveitei o momento para novamente observar as faces cansadas de
meus companheiros. Cansados, mas determinados, apenas Karina
demonstrando vontade de desistir.
“O que faremos quando encontrarmos Onesimus?”, perguntou
Ansgar.
“Não sei”, respondi. “Vamos ouvir o que eles têm a dizer
primeiro”.
De repente, Karina parou, fazendo sinal para ficarmos quietos. Ela
parecia assustada. “O que houve?”, perguntou Fabrizia, que caminhava ao
lado de Absolon.
“Ouvi algo”, disse a Supervivente, que olhava atentamente ao
redor. “Vozes sussurrantes e passos próximos”.
Ansgar ergueu sua espada, empunhando-a com ambas as mãos. Seu
movimento foi acompanhado por Asphael, Al-Malik e Wang, que também
269
empunharam suas lâminas. Karina recuou para perto do grupo, e eu
comecei a observar o ambiente ao redor, buscando por qualquer presença
oculta. “Ali”, ouvi Al-Malik murmurar, fitando uma estátua a cerca de
vinte metros de distância, fracamente iluminada. Observei e notei uma
sombra, um homem jovem e forte, vestindo um sobretudo cinzento. Sua
forma era quase indistinta, oculta por alguma forma de ilusão. Ele se movia
lentamente, cuidadosamente.
“Você!”, gritou Al-Malik, tomando a frente e apontando sua
cimitarra na direção da estátua. “Mostre-se!”.
O homem se surpreendeu por ter sido encontrado e, num salto,
afastou-se, em seguida correndo pela escuridão da mata. Al-Malik se
preparou para segui-lo, mas então Wang saltou à sua frente. Em meio ao
salto, o Kage se tornou sombra, e, num instante, desapareceu nas trevas da
noite. “Wang!”, gritei, “precisamos permanecer juntos!”.
“O que era aquele homem?”, perguntou Karina, assustada.
“Um Anjo Caído”, respondeu Al-Malik. “Pude ver a marca
flamejante em sua testa, indicando seus pecados”.
“Há outros mais”, disse Asphael, olhando ao redor. Acompanhei
seu olhar, e vi outros dois vultos atravessarem o bosque dando a volta por
nós a uma distância segura.
“Estão nos cercando”, eu disse. “Temos que ter cuidado”. Ao
mesmo tempo, vi outro homem aproximar-se pela frente. Este, também
oculto por ilusões, portava uma foice negra de metal. Seus olhos me
fitavam friamente.
“O que faremos?”, perguntou Absolon. Ao seu lado, Fabrizia
sacava sua espingarda.
270
“Vamos mostrar a eles a luz”, disse Asphael, erguendo a mão
esquerda para o céu. Um brilho intenso se seguiu, iluminando em luz
branca tudo ao nosso redor. Tocados pela luz, os vultos se revelavam, suas
ilusões sendo quebradas pelo poder do Arcanjo. Alguns tampavam os
olhos, cegados pelo brilho intenso. Eu mesmo mal pude enxergar a
princípio, mas então a luz sumiu, e todos ao nosso redor agora se
mostravam descobertos. Para minha surpresa, eram mais de dez pessoas.
Eu mesmo não pude ver através das ilusões de todos... Com certeza, eram
poderosos ou, no mínimo, habilidosos. Alguns portavam espadas, outros
escopetas ou submetralhadoras. Um possuía uma foice, e outro um grande
machado. Todos vestiam roupas modernas, fossem sobretudos, jaquetas ou
paletós, mas todos usavam cores escuras. Alguns cobriam o rosto, outros
não. Havia homens e mulheres. Eu podia sentir grande poder em alguns
deles.
Ao lado do homem de foice surgiram outros dois Anjos Caídos: um
homem e uma mulher. Com suas ilusões desfeitas, o homem, o único
desarmado do grupo, fitou-me. “O que desejam aqui, Celestiais?”, ele
disse. Eu não conseguia tirar os olhos da mulher, porém, que portava duas
maças negras, e trajava um vestido negro. Ela sorria, seus olhos negros
demonstrando um desejo por sangue. Seus longos cabelos negros eram
erguidos pelo vento frio.
“Estamos indo para a Domus Aurea”, disse Absolon, ao notar que
eu nada respondi. “Procuramos um homem chamado Onesimus”.
“Onesimus, você diz?”, o homem perguntou intrigado. Seus olhos
azuis fitaram Absolon. “O que querem com ele, vestidos com trapos e sujos
de sangue? Quem os enviou?”.
271
“O próprio Onesimus”, respondi. “Ele me deu este cartão”,
disse em seguida, erguendo o cartão postal. O homem se aproximou,
cuidadosamente, e pegou o cartão. Ansgar e Al-Malik fitavam o homem,
analisando cada movimento do mesmo.
O homem leu a mensagem no cartão, e então olhou em meus olhos.
“Então, vocês são aqueles que esperávamos. Mas Onesimus nos disse que
eram sete, e não oito”.
“Ele não encontrou todos nós quando nos entregou o cartão”, eu
respondi.
O homem olhou cada um de nós, liberou um suspiro, e falou,
calmamente: “Muito bem. Eu sou Millard, Dominação entre os Veritatis
Alliatos. Fui enviado para esperar por sua vinda”. Millard então afastou-se,
dando um sinal para os demais baixarem a guarda. “Vocês são convidados
de honra. O nosso senhor garantiu a vocês passagem segura e, por mais que
alguns de nós discordem de sua presença aqui, somos obrigados a
cooperar”. A mulher à nossa frente virou o rosto em claro sinal de
desprezo, e nos deu as costas. Os demais Caídos se afastaram e, neste
momento, Wang surgiu das sombras, aproximando-se de nós. Ele estava
mais próximo do que eu imaginava.
“Venham comigo”, pediu Millard. “E perdoem os modos de meus
companheiros. Eles estão guardando a região esta noite. Há algo muito
importante aqui”.
“O quê?”, perguntei.
“Vocês verão”, respondeu Millard, repetindo a frase em seguida
num tom mais baixo: “vocês verão”.
272
Millard caminhou pelo bosque. Nós o seguíamos de perto, e
com ele iam a mulher e o homem de foice. “Perdoem minha falta de
educação”, disse Millard, continuando: “mas estes são os encarregados de
guardar esta região por esta noite. Este é Surial, um Trono, e ela é Azubah,
uma Serafim. Ambos pertencem à ordem dos Angelus Destructores”.
A mulher, Azubah, virou-se para olhar-nos novamente. Seu olhar
era frio, sua expressão demonstrava incômodo. Ela era incrivelmente bela,
seus cabelos negros pareciam refletir a fraca luz das entrelas, e seu rosto era
perfeito, sem qualquer falha ou cicatriz. A pele era alva, quase pálida. Ela
vestia um longo vestido negro, sem mangas e com grandes fendas nas
laterais da saia, indicando que poderia mover-se agilmente apesar da roupa.
Em suas mãos, as maças negras de metal pareciam possuir alguma
propriedade sobrenatural. Eu imaginava que tipo de guerreira ela seria, e
não podia deixar de pensar que ela seria uma oponente mortal.
Já Surial caminhava sem nos fitar. A foice de metal prateado era
ricamente adornada com detalhes e inscrições na lâmina e no cabo. Ele
vestia uma capa de chuva negra, seus cabelos eram loiros, e seus olhos
azuis. Sua pele, como a de Azubah, era alva. Sua face, porém, era feia,
esguia, com um nariz fino e comprido e olhos profundos. Os cabelos eram
longos, caindo desarrumados sobre o rosto.
Conforme caminhávamos, eu percebia que outros Caídos passavam
por nós, nos observando, alguns nos acompanhando à distância. “Nunca vi
tantos Anjos Caídos em um único lugar”, murmurei. Normalmente, uma
cidade grande típica não tem mais do que três ou quatro Anjos Caídos, mas
aqui eu via cada vez mais.
273
“Esta é uma data especial”, disse Millard. “Muitos dignitários
foram convocados. Shemhazai, Abdiel, Ramuel, Sarakmyal, Turial,
Urakabarameel, Armen e muitos outros vieram. Com eles, trouxeram suas
comitivas. Eu diria que, pela primeira vez, mais de metade de toda a Corte
Negra em todo o mundo se reúne em um único local”.
“Se reúne?”, perguntou Asphael, sua voz demonstrava medo. “Se
reúnem para quê?”.
“Eu ainda não sei, Arcanjo”, o Caído respondeu, calmamente, “mas
algo está para acontecer. Correm boatos que um exército marcha no
Inferno. Nossos contatos infernais confirmam que, neste exato momento,
batalhões se reúnem entre os reinos de Gehenna e Necrópolis”.
“Não está falando demais, Dominação Millard?”, perguntou
Azubah, num tom áspero. “Eles não merecem saber de tudo isso”.
“Me perdoe, minha senhora”, respondeu Millard, “mas tenho um
fraco por repartir conhecimento. Além do mais, Onesimus disse que estes
Celestiais têm uma grande importância para um dos dignitários”.
“Quem enviou Onesimus para nos procurar?”, perguntou Absolon.
“Eu não sei”, respondeu Millard, “mas logo saberemos”.
Após algum tempo de caminhada, sempre acompanhados por
olhares de Anjos Caídos, chegamos à entrada da Domus Aurea. Uma pista
de asfalto levava à entrada, ricamente arborizada e gradeada. Normalmente,
turistas só podem visitar a Domus em horas marcadas e grupos pequenos e
controlados, mas esta noite, o que víamos era um pequeno grupo de Anjos
Caídos guardarem a entrada. O portão estava aberto. Logo atrás das
árvores, eu vi o topo das ruínas da Domus. A maior parte do palácio,
porém, se encontrava soterrada na colina. Conforme nos aproximávamos,
274
os olhares dos Caídos se fixavam em nós. À frente do portão, estava
parado, em pé, um rosto conhecido. Os mesmos cabelos compridos e
negros, e olhos verdes que me fitavam friamente. Ele ainda vestia o mesmo
sobretudo que usava em Jerusalém. Assim que nos viu, Onesimus disse, em
voz alta: “Estou impressionado que tenham sobrevivido, Arcanjo”.
“Nisroch!”, murmurou Asphael, ao fitar Onesimus. “Então é pelo
nome de Onesimus que atende agora?”.
Onesimus pareceu surpreso. “Asphael Veritas! Então, não é de se
surpreender que os tolos tenham sobrevivido esta noite. Eu não esperava
vê-lo”.
“Asphael Veritas?”, perguntou Millard, também surpreso. “Bem
que eu o achei familiar”. Outros Caídos ao redor também demonstravam
surpresa. Murmúrios se seguiram, tanto de admiração como de ódio.
“Não é comum alguém como você ter acesso à Cidade Eterna”,
disse Onesimus.
Azubah protestou: “Você irá leva-los à Cidade Eterna? Isso é
loucura!”. Os murmúrios dos Caídos elevaram-se, alguns questionando a
decisão de Onesimus.
“É uma questão de segurança. Não podemos permitir Celestiais na
Cidade Eterna!”, disse Surial, finalmente quebrando seu silêncio.
“Eu também não gosto dessa decisão”, disse Onesimus, elevando a
voz, “mas como senhor dos exércitos de Oostegor, eu tenho que cumprir
com as ordens que recebo”. Os outros ainda protestaram. Onesimus perdeu
a paciência, e ergueu ainda mais a voz: “E não cabe a vocês questionar a
vontade da Estrela da Manhã!”.
275
Um silêncio repentino e perturbador se seguiu. Não pude
deixar de demonstrar surpresa, e meus companheiros estavam boquiabertos.
Notei nervosismo em Asphael.
“Ele?”, perguntou Millard, gaguejando.
Onesimus não se preocupou em responder. “Venham”, ele pediu a
nós. “Eu os levarei à Cidade Eterna”.
Onesimus nos deu as costas, adentrando a Domus Aurea, a Casa
Dourada de Nero. Nosso grupo o seguiu, e atrás de nós vinham Millard,
Azubah e Surial. “De onde conhece Onesimus?”, perguntei a Asphael,
conforme atravessávamos os portões da antiga ruína.
Asphael murmurou: “Ele era conhecido como Nisroch em minha
época, um grande general dos Princeps. Eu era jovem quando ele já era um
Arcanjo, mas por ser o companheiro e fiel aprendiz de Lorde Veritatis, eu
pude conhecer Nisroch pessoalmente antes de sua queda”.
“Ele era de meu Clero! Por quê ele caiu?”, perguntou Absolon.
“Por amar os mortais mais do que vocês”, disse Onesimus, que
ouvia a conversa. Ele mantinha-se de costas para nós, guiando-nos através
dos salões e corredores escuros da Domus Aurea. Sua voz áspera e cheia de
ressentimentos continuou: “Eu acreditei que era melhor nos revelarmos,
não como Lúcifer fez, não para domina-los, mas para convivermos com
eles, para tornar o mundo como era o Éden. Nos tornaríamos exemplos e
protetores da humanidade”.
“E, por isso, seguiu a loucura de Shemhazai-chamado-Samyaza”,
completou Asphael. Minhas memórias tentavam lembrar do que li sobre
Shemhazai. Ele fora o líder da segunda grande rebelião, tomado por seus
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desejos obsessivos e seu excesso de zelo. Duzentos Celestiais decaíram
na rebelião, e nisso fortaleceram as legiões de Lúcifer.
“Para onde estamos indo?”, perguntou Karina. Ela se mantinha
próxima a mim. Onesimus nada respondeu.
Os corredores da Domus Aurea eram largos o suficiente para
permitir ao grupo atravessa-los sem problemas. Porém, a escuridão era
incômoda, nos forçando a usar nossos poderes para melhor ver. Os olhos de
todo o grupo brilhavam, menos os de Absolon, que era guiado por Fabrizia.
Ambos caminhavam de mãos dadas e, embora Absolon não notasse, ela
parecia sorrir ao estar com ele. Estava frio e muito úmido, nossa respiração
liberava pequenas nuvens de vapor. As paredes continham motivos
decorativos da antiga Roma. Não demorou para que chegássemos a um
corredor no qual a escuridão era ainda mais densa.
“Esta não é uma escuridão natural”, murmurou Lo Wang. Eu
concordei, vendo que nossos poderes não conseguiam penetrar na nuvem
negra à frente.
“Venham”, insistiu Onesimus, atravessando a escuridão. Ansgar foi
em seguida, e depois Absolon e Fabrizia. Os demais então tomaram
coragem para segui-los.
Assim que atravessamos a escuridão, eu senti vertigem. Fechei
meus olhos por um instante e, ao abri-los, notei que estávamos não mais no
corredor da Domus Aurea, mas sim numa caverna. Olhei para trás e,
embora o grupo estivesse todo ali, não vi mais a nuvem de escuridão, e sim
que a caverna continuava até onde a vista alcançava. “Estamos a
quilômetros de onde estávamos”, Karina revelou.
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“Não podíamos mostrar a vocês a entrada real de nosso lar”,
disse Onesimus, que continuava a caminhar. “Por isso, criamos uma
entrada temporária. Venham”. O Caído prosseguiu.
A caverna era larga, com espaço suficiente para dez pessoas
caminharem por ela lado a lado, e o teto estava a mais de três metros de
altura. O solo era maciço, sem grandes reentrâncias ou irregularidades
notáveis, o que permitiria até mesmo que veículos a atravessassem. Não era
uma caverna natural, provavelmente feita por magia. E meus sentidos
podiam sentir uma tênue força ao nosso redor, algo bloqueando o acesso ao
mundo dos espíritos e, ao mesmo tempo, fortalecendo o espaço da caverna.
Nenhum portal poderia ser aberto aqui. Não tínhamos como escapar se
precisássemos.
Azubah, Surial e Millard permaneciam atrás de nós, seguindo-nos
em silêncio. A mulher mostrava desgosto, até mesmo ódio, por estarmos
ali. Procurei ignorar seu olhar e me concentrar no caminho.
Então, logo à frente, notei uma passagem. Onesimus a atravessou,
abriu os braços, e disse: “Bem-vindos sejam, Celestiais. Bem-vindos à
Cidade Eterna”.
E, conforme atravessávamos a passagem, ficávamos estupefatos
com a visão que tínhamos. A entrada da caverna era adornada por um arco
de mármore, e o chão à frente era ladrilhado com rochas negras,
perfeitamente esculpidas. Um vale à frente continha a cidade, uma imensa
maravilha construída em estilo romano, cortada por rios subterrâneos e
preenchida por templos, praças e palácios. Suas ruas eram largas,
iluminadas por tochas que ardiam em chamas espirituais que jamais
paravam de arder, sem no entanto queimar a tocha e o óleo que as
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mantinham. Acima, a caverna era tão imensa, tão infinita, que eu via
apenas escuridão, mesmo com meus poderes especiais. Era como se aqui
fosse eternamente noite. O ar era puro, como se estivéssemos no alto de um
planalto sob o céu, e árvores cheias de vida embelezavam toda a cidade,
mesmo sem jamais terem visto as luzes do Sol. Havia movimento,
conforme centenas de pessoas andavam, solitárias ou em pares, pelas vastas
avenidas, e estátuas gigantescas, tão altas quanto os próprios templos,
demonstravam a imponência dos Anjos Caídos. Mas nada adiante se
comparava com a construção que tomava o centro exato da grande cidade.
Uma imensa torre, em forma ligeiramente cônica, feita de mármore negro e
a mais pura obsidiana, mais alta do que qualquer arranha-céu que eu tenha
visto na Terra, podendo ser vista de qualquer ponto da Cidade Eterna. O
palácio negro se misturava à escuridão, tornando-se quase invisível, mas
milhares de tochas o circundavam, dando-lhe uma forma distinta, como se
fosse uma coluna de escuridão cercada por fracas luzes que a limitavam.
Al-Malik, surpreendido, murmurou: “Tamanha beleza... Não
imaginei que seria assim”.
“E o que pensava, Malaki?”, perguntou Millard. “Uma cidade
demoníaca cheia de apologias à violência que sofremos? Um reino de dor e
caos? Queremos paz, não destruição”.
Onesimus continuou a caminhar, descendo uma grande escadaria
que nos levaria à cidade. “Vamos à Fortaleza Oostegor”, disse, se referindo
à grande torre. Logo ao fim da escadaria, um arco indicava a entrada da
cidade. À frente, a avenida era ladrilhada por pedras bem esculpidas. Em
ambos os lados do arco de entrada estavam grandes estátuas de dois metros
279
de altura, uma feminina e outra masculina, nuas, dispondo-se como
dessem boas-vindas aos que chegavam.
A cidade tinha uma beleza inigualável, mas emanava um ar de
silêncio e tristeza, como se fosse um lugar morto. Embora muitos
caminhavam nas ruas, estavam sempre em pequenos grupos, ou mesmo
solitários. Seus olhares acusadores se voltavam sobre nós, observando
conforme prosseguíamos rumo ao castelo negro à frente. A admiração
inicial deu lugar a uma sensação de frieza, de morte, de extrema tristeza...
A Cidade Eterna era calma e quieta, o mais perfeito local para a
contemplação e a meditação, mas também não tinha vida. Eu sentia solidão
enquanto caminhava silenciosamente por aquela avenida. Logo após uma
ponte, que atravessava um rio subterrâneo, estava uma grande muralha
negra. Quando estávamos na metade da ponte, os portões de ferro se
abriram, rangendo. Adiante estava um estranho jardim.
“Meu Deus!”, exclamou Al-Malik. O jardim do castelo não tinha
plantas ou vida, mas sim centenas de estátuas negras representando uma
grande batalha. Eram imagens de celestiais açoitando pessoas de joelhos,
de heróis do passado lutando entre si, de figuras ameaçadoras apontando
para pessoas caídas, pedindo clemência.
“O jardim das memórias”, disse Millard. “Eu sou novo demais para
lembrar-me desta época. A grande revolta”.
“Uma visão distorcida do passado”, disse Al-Malik.
“Ou simplesmente uma perspectiva diferente da sua, Celestial”,
respondeu Onesimus, “ou talvez seja a sua visão que esteja distorcida”.
Al-Malik, ofendido, devolveu: “Crueldade é um defeito que
aprendi a evitar, Anjo Caído, e não acredito que meus companheiros sejam
280
tolos de abraçarem tal barbárie. Eu não vejo verdade alguma neste
jardim”.
“Tome o cuidado com o que diz, Malaki”, ameaçou Azubah,
erguendo suas duas maças negras.
“Por quê?”, Al-Malik perguntou, virando-se para encara-la. “Quem
não concorda com sua verdade deve ser calado?”.
“É coragem ou tolice o que o faz erguer sua voz contra nós aqui?”,
perguntou Millard, seus olhos brilhando em cor dourada.
“Isso é uma ameaça?”, perguntou Ansgar, dando um passo em
direção a Millard, fitando seus olhos.
“Chega!”, ordenou Onesimus. “Azubah, Millard, calem-se! Suas
provocações não valem nada aqui, sabem que estes Celestiais não devem
ser tocados! E quanto a vocês, Celestiais, respeitem os senhores da casa que
os acolhe”.
“Sim, senhor Onesimus”, disse Al-Malik, baixando a voz.
“Venham”, Onesimus ordenou impacientemente, em seguida
dirigindo-se ao imenso castelo. Por alguns minutos, atravessamos o jardim
de estátuas negras, até chegarmos ao portal de entrada. O portal era
ricamente adornado, com formas belamente esculpidas, e se encontrava
aberto, revelando um interior bem iluminado, de paredes brancas como o
marfim do interior da fortaleza. Esperando-nos à porta estava um velho,
que vestia um manto cinzento e tinha uma longa barba branca.
O senhor exclamou ao nos ver, falando serenamente: “Saudações,
Nisroch-chamado-Onesimus, é bom ver que tua missão foi bem sucedida”.
Ele colocou as mãos atrás do corpo, caminhando calmamente em nossa
direção.
281
“Saudações, Lorde Amazarak”, respondeu Onesimus, dando
passagem ao velho.
O velho fitou-nos serenamente, abriu um sorriso amistoso, e se
apresentou: “Eu sou Amazarak, Serafim Decaído entre os Primordiais
Impuros. Meu Senhor pediu que os recebesse”. Então, virando-se para os
Caídos que nos acompanhavam, pediu: “Onesimus, Azubah, Surial e
Millard, deixe-nos a sós”.
Os quatro Caídos obedeceram a Amazarak sem questionar.
Sorridente e ainda calmamente, o velho pediu que o acompanhássemos, e
caminhou em direção do interior de Oostegor. A presença de Amazarak me
deixava mais tranqüilo, seu sorriso era estranhamente amigável, seu olhar
calmo era muito diferente dos olhares cheios de incômodo e ódio dos
demais.
Adentramos um grande salão, iluminado por diversas tochas
douradas e grandes lustres. O teto do salão tinha a forma do interior de uma
abóbada, e suas paredes eram puramente brancas. Vitrais, que no exterior
pareciam apenas janelas de vidro negro, pelo interior eram belos vitrais,
mostrando imagens gloriosas do passado, ricamente coloridas. Assim que
entramos, o portal de Oostegor fechou-se atrás de nós. O salão era imenso,
provavelmente reservado para grandes reuniões. Nas paredes, além de mais
vitrais, estavam grandes quadros ou imagens em alto-relevo, também
mostrando a Rebelião, mas menos trágicas e mais heróicas. O salão era
mantido por grandes e grossas colunas, que se erguiam até o teto. As
colunas estavam dispostas em duas linhas, entre elas um imenso tapete
vermelho-sangue, que levava do portal de entrada a um segundo portal a
mais de uma centena de metros à frente. Fora esse segundo portal, não
282
havia portas neste andar. Ao invés disso, diversas escadarias
adentravam as paredes, levando a um segundo andar, que nada mais era do
que uma espécie de sobreloja, de era possível ver todo o salão abaixo, e se
tinha acesso a inúmeros outros portais bem trabalhados, que provavelmente
levariam aos interiores da fortaleza. Alguns Caídos caminhavam por este
segundo pavimento, observando-nos conforme cruzávamos o grande salão
abaixo. A visão daquele local era inspiradora, quase sagrada. Se o exterior
de Oostegor indicava escuridão e vergonha, o interior era luz e glória.
Porém, o clima de tristeza e silencio permanecia. Nossos passos ecoavam,
conforme nos dirigíamos para o outro lado do salão, de onde partiam duas
escadas para um segundo andar, e entre as mesmas um outro grande portal.
Amazarak parou no meio do salão, virando-se para nós. “O que
acham da Cidade Eterna, meus amigos?”.
“É linda”, disse Fabrizia.
“Surpreendente”, acrescentou Ansgar.
“Mas falta vida nela”, completei, fitando o velho diante de nós. De
alguma forma, sua presença me acalmava, ele parecia amigável,
respeitável, um Celestial tão pleno quanto nós.
“Essa é a maneira como somos, caro Arcanjo”, respondeu
Amazarak. “Tentamos ser belos, majestosos, tentamos ser o que podermos
ser de melhor. Mas no fundo, sentimos que falta algo, algo que perdemos
há muito tempo. Esta tristeza, esse silêncio, está em nós. E, embora o
silêncio incomode, nos inspira à reflexão”.
“À reflexão do quê?”, perguntei.
“Para encontrar um caminho é preciso refletir, jovem Arcanjo”,
disse Amazarak. “Oostegor leva a muitos caminhos, tanto física como
283
espiritualmente. Estamos sob Roma, mas Oostegor leva a todos os
cantos do mundo, e aqui cada Caído encontra o caminho a trilhar, seja um
caminho iluminado ou obscuro. Não é para encontrar seu destino que
vieram aqui esta noite?”.
Quando chegamos ao segundo portal, Amazarak parou e nos fitou:
“Eu ainda não os conheço, meus amigos, gostaria que se apresentassem”.
Nos apresentamos, um a um, primeiro eu, então Asphael, seguido
por Ansgar, Absolon, Fabrizia e Lo Wang. Finalmente, Al-Malik e Karina
se apresentaram. Amazarak sorriu: “É um prazer conhece-los. Devem estar
cansados, pelo que vejo em suas faces. Também noto que passaram por
grandes provações. Meu senhor deseja falar-lhes mais tarde, mas gostaria
que estivessem com a mente limpa e os corpos descansados, para que
melhor pudessem analisar suas palavras”.
“Não acredito que tenhamos tempo para descansar”, respondi,
tentando ser o mais gentil possível para não ofender o Serafim Decaído.
Amazarak sorriu: “Por quê? E o que farão sem nós? Quanto tempo
perderão até encontrarem o caminho? Acredite em mim, Philipe
Nicodemus, que o tempo que usufruirão aqui será compensado pelas
respostas que terão. O inimigo que enfrentam mente, e quer que não
tenham tempo para refletir estas mentiras”.
Olhei para meus companheiros. Ansgar e Lo Wang permaneciam
quietos, evitavam me olhar, talvez para não demonstrar fraqueza, mas
Absolon, Karina e Fabrizia pediam por descanso. Al-Malik balançou
positivamente a cabeça. “Amazarak fala com sabedoria”, disse o Malaki.
Virei-me para Asphael, que concordou: “Precisamos repor nossas forças e
fortalecer nosso espírito”.
284
Amazarak sorriu gentilmente, e então se virou de costas,
abrindo o portal adiante. As grandes portas de metal dourado se abriram,
emitindo um som característico. Em seguida, mais uma vez nos vimos
maravilhados, conforme o som de água corrente inundou nossos ouvidos e
ecoou pelo grande salão. Vapor d’água atravessou o portal aberto, bem
como grande umidade. A grande porta levava a uma escadaria, e à frente da
mesma vimos um ambiente surreal. Fontes jorravam água aquecida para o
alto, enquanto das paredes caíam pequenas cachoeiras. A água corria por
canais, e se acumulava em diversas piscinas não muito profundas. Por cima
dos canais passavam pontes ricamente ornadas, e entre as várias piscinas
haviam praças, preenchidas por esculturas e estátuas ricamente ornadas. O
som da água ecoava pelo imenso salão, criando uma sinfonia calmante.
Alguns Caídos caminhavam pelas pontes e praças, enquanto outros
banhavam, nus ou seminus, nas piscinas. Alguns se sentavam à beira
d’água ou em plataformas nos cantos das piscinas, enquanto outros
limpavam o corpo, a água profunda o suficiente para tocar-lhes o peito.
“O que é este local?”, perguntou Al-Malik, observando enquanto
Amazarak caminhava à frente, fazendo sinal para que o seguíssemos.
“Este é um local de purificação, o chamamos de Termas de
Lucibel”, disse o velho Caído, que atravessava uma das pontes por sobre os
canais, dirigindo-se à uma praça adiante, que se ligava a outras iguais
através de mais pontes. “Este é o local aonde vamos quando precisamos
limpar o corpo e a alma, como vocês”.
“Não imaginava um lugar assim”, comentou Absolon.
Amazarak sorriu: “Admito que este local não é uma obra de
Lúcifer, mas de outros sábios, que viram que nós, por mais resistentes que
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tentemos ser, também precisamos liberar nossas tensões”. Reparei num
casal de Caídos, ambos nus, se beijando numa piscina abaixo da ponte pela
qual passávamos. Por onde passávamos, eu via mais Caídos, alguns
meditando, outros se limpando, e outros simplesmente passeando pelas
Termas. De repente, a voz de Amazarak se tornou mais ríspida. “Nós
estamos entre trevas e luz, não fazemos parte de nenhum, mas tomamos
parte no conflito entre ambos. Estamos sozinhos e só podemos contar
conosco. É fácil cair em desespero”. Então, quando atravessava uma outra
ponte, sua voz novamente se tornou amigável e confortante: “Meu senhor
já reservou um local para vocês descansarem, bem como toalhas e roupas
se assim desejarem”.
“Que tipo de roupas?”, perguntou Absolon.
“O que desejarem, iremos providenciar, até mesmo equipamento
que tenham perdido em sua jornada. É uma prova de nossa boa vontade
para com vocês, e de que meu senhor os tem como hóspedes importantes”,
respondeu Amazarak, neste instante descendo uma escada, rumo a uma
plataforma mais baixa. Ali, adiante, estava uma grande piscina, no centro
da mesma uma pequena ilha de mármore, com estátuas que erguiam potes,
dos quais jorrava água sobre a piscina, formando pequenas quedas d’água.
“Eu tenho um conjunto de roupas extras em minha mochila”, disse
Absolon, “mas eu gostaria que me conseguisse uma espada”.
Amazarak se mostrou surpreso. Também Al-Malik e Ansgar
olharam Absolon com certa descrença, mas notei Lo Wang sorrir
sutilmente. “Uma espada, Anjo Achille?”, perguntou o Caído.
“Sim. Uma menor e mais leve do que a de Ansgar, se possível”,
respondeu o Princeps.
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Amazarak concordou com a cabeça, então se virou aos demais:
“E o que vocês desejariam?”.
“Não preciso de nada”, disse Fabrizia, “também tenho roupas
extras comigo”. Outros concordaram. Parecia que apenas eu precisaria de
roupas novas, visto que não trouxe nenhuma mochila comigo. Então,
resolvi pedir: “Poderiam conseguir roupas como as que uso agora?”.
Amazarak sorriu. “Sim, claro. Se não precisarão de mais nada, vou
me retirar. Retornarei em breve. Descansem agora e reflitam sobre sua
missão. Há toalhas sobre o balcão próximo àquela estátua. Não se
preocupem, pois ninguém além de mim virá aqui. Mas, quando eu retornar,
será a hora de seu encontro com meu senhor”.
“Sim, obrigado”, eu respondi. Amazarak se retirou logo em
seguida. Assim que o Caído sumiu e vista, olhei a redor, notando que
estávamos sozinhos naquela parte das Termas de Lucibel.
“Que situação estranha”, comentou Ansgar, “será que devemos
confiar neles?”.
“Uma vez que estamos dentro do território deles, não temos mais
escolha”, disse Wang, que se afastava do grupo, removendo sua sacola e a
camisa negra. Suas costas nuas mostravam uma bela tatuagem, de um
grande dragão chinês, cujo corpo enrolava-se em uma montanha, e cujas
garras eram mostradas ameaçadoramente.
“Lo Wang está correto”, disse Asphael, que se sentou no chão,
cruzando suas pernas, e colocou a espada ao lado do corpo, deitada. “Se
isto é uma armadilha, então estamos mortos. Nós adentramos na Cidade
Eterna. Se as palavras de Millard forem corretas, então há dezenas de
287
Caídos cuja idade, sabedoria e poder superam todas as minhas
capacidades”.
Notei Karina afastar-se do grupo, ainda em silêncio, dirigindo-se
para um canto mais distante da piscina. Observei-a tirar os sapatos e puxar
as pernas da calça, sentando-se à beira da piscina e mergulhando os pés na
água quente. Ela parecia pensativa, distante, desanimada. Porém, a voz de
Fabrizia chamou minha atenção em seguida: “Melhor então jogarmos o
jogo deles, não é?”, ela disse. “Qualquer ofensa que fizermos pode se
tornar um pretexto para agirem contra nós”.
“Tem toda a razão”, disse Al-Malik, que retornava, trazendo uma
toalha branca para si. “Estamos diante daqueles que foram julgados por
nós. Muitos deles nos odeiam. Sinceramente, algo me diz que Amazarak
não deseja nosso mal, mas os olhares de Azubah e Onesimus não me
deixam confortável. Se os mestres não nos desejam mal, não posso dizer o
mesmo de seus servos”.
“Então, tomemos cuidado”, disse Ansgar.
“Não acho que cuidado apenas nos salvará”, completou Absolon.
“Ainda assim, não temos escolha”, disse Al-Malik, “a não ser ter
cuidado”. Em seguida, o Malaki se afastou. “Com licença, vou me limpar.
Não estou acostumado a presenciar a nudez de outros, prefiro limpar-me
sozinho”.
“É”, disse Fabrizia, caminhando em direção às toalhas. “Acho que
farei companhia a Karina, e os homens podem permanecer aqui, juntos”.
“Um momento, Fabrizia”, pedi, “vou falar com Karina. Espere um
pouco antes de ir até lá”.
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“Está bem, Nicodemus”, ela respondeu, sorrindo. “Vou ficar
aqui, vendo os rapazes tomarem banho”, ela disse brincando, descontraída,
mas notei que direcionou o olhar a Absolon. Sorri, concordando, e me
direcionei a Karina.
Dei a volta na piscina, até que encontrei Karina ali, ainda mais
distante do que antes, num ponto que não era visível do local em que o
grupo estava. Ela estava na piscina, refrescando-se sob uma pequena queda
d’água. Fiquei um pouco sem graça por surpreende-la nua, mas por outro
lado, não era a primeira vez que a via assim. Karina jamais teve vergonha
de mostrar seu corpo, embora jamais tenha sido vulgar. Ela sempre agiu
com naturalidade, e eu sabia que ela se afastou do grupo não por vergonha
de mostrar-se, mas sim por vergonha de suas ações. Karina me notou, e
então nadou em minha direção, chegando à borda da piscina, mas manteve
o corpo submerso. “Quer falar comigo, Philipe?”.
Sentei-me no chão e me virei de costas, por respeito a ela. Embora
seu corpo fosse uma visão agradável e acendesse em mim atração, eu não
sentia nada a não ser amizade por Karina, algo que eu não desejaria, de
maneira alguma, profanar. Ela sempre foi uma protegida minha, uma quase
filha, e jamais pensei nela de outra forma. De certa forma, olha-la assim era
mais incômodo do que prazeroso. “Sim, Karina. Sei o quanto está sofrendo,
o quanto sente medo da situação em que está. Mas por que a vergonha?”.
“O que posso fazer, Philipe? Eu não sei, não consigo acompanhar
vocês... Me sinto inútil, tão pequena... Eu não sirvo para isso”, ela
respondeu.
“Não serve para quê, Karina?”, perguntei.
289
“Para lutar. Me desculpe, mas é verdade. Eu sou inútil, nunca
desenvolvi nenhuma habilidade voltada para isso. Mal sei portar uma
arma”, ela respondeu, “e vendo vocês... me sinto pequena... incapaz de
ajudar. Do que adianta acompanha-los se me torno um peso que vocês são
forçados a carregar?”. Notei tristeza na voz, que se tornava rouca. Ela
segurava o choro.
“Não sabe portar uma arma? Sei muito bem que Samuel ensinou
você a se defender, que você sabe tanto portar uma arma de fogo como
qualquer arma improvisada”, eu disse. Meu desejo era olha-la em seus
olhos verdes e força-la a ver a verdade, mas continuei evitando virar-me
para ela.
“Sei me defender contra pessoas”, ela disse, “mas e contra o que
encontramos? O que eu pude fazer? No máximo, servi de escudo para
Absolon, e ainda assim, do que adiantou?”.
“Karina, eu entendo como se sente... Sei que é muito boa em tudo
aquilo que gosta de fazer. Sei que conhece os caminhos do mundo como
ninguém, que já ajudou pobres, famintos e desesperados. Me lembro de
cada conto seu, de cada aventura que me contou, até dos perigos que já
enfrentou. Mas você é como eu, dedicada naquilo que gosta, mas inepta
naquilo que teme”.
Ela nada disse. Um silêncio desconfortável se seguiu, e então eu
decidi revelar: “Acho que é hora de pegarmos em armas e aprendermos a
usa-las”.
“O quê?”, Karina perguntou, não surpresa, mas descrente de
minhas palavras.
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“Em parte, decidi isso quando vi Lorde Asphael lutar. Ele
mesmo disse que é preciso aprender a arte da guerra, mesmo que não seja
para usa-la. Também é um incentivo ver a força de vontade de Absolon.
Ele não é diferente de nós, mas ao mesmo tempo está decidido em fazer o
que for preciso fazer. Mas o que realmente me fez pensar nisso é esse
sentimento que compartilho com você: a sensação de que não somos
realmente úteis”.
“Você é útil, Philipe, sabe muitas coisas”, ela respondeu.
“Mas não sei pegar numa arma, nem sei usa-la quando for preciso.
Karina, eu não queria ter de aprender isso, mas cem anos já se passaram, e
não vejo mais como evitar esse conhecimento. Al-Malik disse que é preciso
estarmos dispostos a nos sacrificar, e a isso tanto eu quanto você estamos
dispostos. Mas não podemos nos sacrificar em vão. Precisamos saber lutar,
mesmo que tentemos evitar isso a todo custo”.
“Eu não queria ter de pegar em uma arma”, Karina murmurou.
“Nem eu, Karina. Eu não quero, mas às vezes é preciso. Se for para
defendermos algo precioso, nós precisamos”.
De repente, uma terceira voz interrompeu nossa conversa. “Ora,
então é isso que veio falar com ela?”. Virei-me para encarar Fabrizia, que
se aproximava, seus cabelos negros soltos e seu corpo escondido apenas
pela toalha branca.
“Pedi que esperasse, Fabrizia”, eu disse, um tanto chateado por ela
ter desobedecido.
“Me desculpe, mas vocês estavam demorando tanto que achei que
estava rolando alguma sacanagem”. Ela sorriu, piscando. “Ok, ok, na
verdade, eu quero tomar um banho, e você estava demorando muito”.
291
“Já estou de saída então”, eu disse, me levantando.
“Pode deixar que irei continuar sua conversa com Karina, Nick”,
disse Fabrizia, sentando-se à beira da piscina, mergulhando seus pés na
água. “Eu entendo também o que sentem, mas acho que se eu falar de
mulher para mulher, ela pode compreender um pouco melhor”.
“Obrigado”, eu respondi. Notei que Fabrizia parecia mais confiante
do que no começo... Talvez ela estivesse recuperando sua força de vontade,
descobrindo a si mesma... talvez por ter encontrado alguém como ela e por
quem eu acho que ela sentia algo, mas ela estava diferente. Não só mais
confiante, como menos séria, mais descontraída, mesmo à face dos perigos
que enfrentávamos. Mas também porque no começo éramos todos
estranhos e, após tudo o que passamos, agora Fabrizia confiasse o
suficiente em nós para revelar sua verdadeira face.
Caminhei, seguindo a borda da piscina, até o local onde os outros
estavam, deixando Karina e Fabrizia para trás. Wang, vestido apenas com
roupa de baixo, estava sentado sob uma queda d’água, observando Absolon
e Ansgar, ambos sem camisa, treinarem. Absolon empunhava a espada de
Asphael, enquanto Ansgar, com movimentos lentos, o ensinava a portar e
mover a espada. Ambos conversavam enquanto treinavam, e eu notava
satisfação no olhar de Absolon. Já Asphael permanecia ali, na mesma
posição em que estava quando saí, sentado, as pernas cruzadas, orando ou
meditando. Talvez por efeito de magia, ele parecia estar limpo, como se sua
meditação o purificasse em corpo e alma. Eu notava sua roupa limpa, sua
pele perfeita, e a poeira do deserto e o sangue derramado espalhando-se ao
redor do local em que ele estava.
292
Tirei meus sapatos e também sentei-me à beira da piscina. As
águas límpidas emanavam vapor e eu fiquei fitando o fundo branco da
piscina. Os sons de água e de metal se chocando gentilmente se repetiam e
eu pensava em tudo o que passamos. Nossa jornada ia continuar... Notei
que meus companheiros agora pareciam mais calmos, suas forças
parcialmente recuperadas por pouco menos de meia hora de descanso.
Talvez fosse bom eu também relaxar. Tendo isso em mente, decidi tirar
minha roupa e mergulhar, deixando a água levar para longe os medos que
me atormentavam...
E, mal mergulhei nas águas das termas, minha mente pôde pensar
claramente. O que tínhamos passado até agora? Nós desafiamos a vontade
dos governantes do Inferno. O que nós oito poderíamos fazer diante dos
poderes que agora estariam comprometendo nossa missão? Talvez Lúcifer
e os Caídos de Oostegor pudessem se tornar poderosos aliados... se é que é
esse o objetivo de Lúcifer.
O tempo passou rápido. Amazarak enviou um servo, que me trouxe
roupas novas. Um a um, cada um de nós foi se preparando. Me senti como
no começo, quando estávamos prestes a adentrar em Dur Sharrukin. Mas
agora, cada um de meus companheiros originais parecia um pouco maior,
um pouco mais preparado do que no começo.
Assim que terminei de me vestir, fui até eles, e pude fitá-los um a
um. O primeiro que vi foi Absolon, que agora parecia mais adulto. Seu
tênis era o mesmo, bem como sua calça, ainda suja de areia, mas agora, por
cima de uma camiseta negra, passava não só as alças de sua mochila, mas
também a tira de couro que prendia às suas costas a bainha de sua nova
espada, uma lâmina com dois gumes, de tamanho médio e sem curvatura,
293
com uma empunhadura prateada ricamente ornada. Seus olhos azuis
agora brilhavam com determinação e não medo, e ele parecia emanar uma
aura de poder que antes não o acompanhava.
Ao lado de Absolon, estava Fabrizia. Mais uma vez, ela tinha uma
bandana, desta vez negra, na cabeça, e seus cabelos estavam presos numa
única longa trança que caía quase até sua cintura. Ela também vestia o
mesmo sobretudo que usou durante nossa jornada, cujas costas já estavam
rasgadas devido às muitas vezes que suas asas se abriram. Notei que ela
ainda levava a espingarda nas costas, mas desta vez deixava a faca de
combate mais à vista.
Ansgar vestia uma jaqueta negra por sobre uma camisa branca, e
ainda usava calças militares e botas. Agora, porém, ele deixara a mochila
para trás, assim como as roupas usadas. Seu único pertence agora era a
espada, que levava com orgulho na cintura.
Al-Malik usava uma roupa parecida com a original. Porém, seus
trajes, tipicamente árabes e de cores claras, agora eram acompanhadas por
uma mistura de sobretudo e capa, sem mangas, e de cor marrom escura.
Mais uma vez, ele enrolou panos na cabeça, formando um turbante que
escondia seus longos cabelos. Sob a capa-sobretudo, ele escondia sua fiel
cimitarra.
Karina parecia mais calma agora. Vestia uma camiseta vermelha e
calça cinza escura. Levava a pistola num coldre no peito, e prendia os
cabelos vermelhos em um rabo-de-cavalo.
Já Lo Wang permanecia com roupas negras, idênticas às que
originalmente usava. Ele apenas trocara as roupas rasgadas por outras
novas. Sua lâmina negra permanecia embainhada em sua cintura.
294
Por fim, estava Asphael que finalmente levantava-se de sua
meditação. Suas roupas estavam restauradas, e seu aspecto emanava saúde
e confiança. Sua face serena era apenas a de um homem de idade, mas
mostrava que carregava uma grande força dentro de si.
Pouco conversamos depois, mas não demorou para que Amazarak
viesse nos buscar. Ao seu lado, vinham Azubah e Onesimus.
“Estão prontos?”, perguntou Amazarak, sua voz ainda serena e sua
face calma. Os olhares de Azubah e Onesimus, porém, mostravam
descontentamento.
“Sim, estamos”, respondi.
“Venham”, Amazarak disse, sorrindo.
Quando deixamos as Termas, adentramos novamente o grande
salão de entrada de Oostegor. Desta vez, porém, o longo salão era
preenchido por atividade, conforme dezenas de Caídos caminhavam por
ele. Subimos as escadas laterais até a sobreloja do salão, e então
adentramos por um grande portão. Uma longa escadaria, que subia
espiralando pela grande torre de Oostegor, estava à nossa frente. “As
escadas de Oostegor são longas e dolorosas, como o caminho de cada
Decaído”, disse Amazarak, “este é o preço que Lúcifer cobra daqueles que
o procuram. Mas desconcentrem suas mentes, não pensem nos degraus à
frente, e a jornada será curta”.
A escadaria de fato parecia interminável, embora nossos corpos
imortais não se cansassem. Ela era escura, e Amazarak ergueu uma tocha,
que brilhava em fogo espiritual, de cor prateada. A escadaria passava por
várias janelas e vitrais, através dos quais podíamos ver a extensão da
Cidade Eterna ali fora. Também passava por diversos portões, os quais
295
Amazarak nomeava um a um. O portão da morte, o portão do
renascimento, o portão da glória, o portão da perda, o portão da queda...
Era como se cada portão levasse a uma parte diferente de Oostegor, e
conforme ascendíamos em Oostegor, nos aprofundávamos nos caminhos
dos Impuros. Quando a jornada parecia interminável, e a Cidade Eterna lá
fora parecia se perder na escuridão da caverna, salvo por algumas fracas
luzes lá embaixo, Amazarak parou diante de um portão dourado. “O portão
da realização”, disse, conforme a luz do fogo espiritual iluminou o portão.
Reparei, porém, que a escadaria negra ainda continuava adiante, mesmo
que nossa caminhada terminasse ali.
O portão da realização se abriu, iluminando a escura escadaria com
a forte luz do salão adiante. Era uma grande antesala, o teto estava a mais
de quatro metros de altura. Millard e Surial nos aguardavam ali. Um belo
vitral decorava toda a face leste da sala, expondo a imagem de um anjo e
um homem batalhando. Millard nos cumprimentou, e Amazarak continuou
a caminhada, até o portal que se localizava no lado oposto do corredor.
“Daqui em diante, vocês caminharão sozinhos”, disse Amazarak.
“O quê? Sozinhos?”, perguntou Azubah, claramente contrariada,
“Não temos sequer o direito de saber o que o Mestre deseja com eles?”.
“Não, não têm”, respondeu Amazarak, calmamente, abrindo o
portal. Ali adiante estava um grande salão escuro. “Entrem, caros amigos”,
disse Amazarak a nós, “e encontrarão respostas”.
Assim que os oito atravessaram o portal, Amazarak fechou a
pesada porta atrás de nós. O som ecoou na sala. A escuridão era densa,
sobrenatural, mas no centro estava uma mesa iluminada por velas, dispostas
em belos castiçais, também ricamente esculpidos. Caminhamos até ela. O
296
silêncio era tanto que nossos passos emitiam ecos. Havia nove cadeiras
ao redor da grande mesa, que tinha um formato retangular. Quatro cadeiras
se dispunham em cada uma das duas bordas maiores da mesa, e numa das
menores estava uma cadeira maior e mais suntuosa, quase um trono.
Olhávamos uns aos outros, em silêncio, sem saber se devíamos nos
sentar. Foi então que o senti. Não como um grande sol iluminado, nem
como uma treva eterna, mas como uma grande, infinita penumbra. Não
senti nem glória, nem terror, mas uma profunda melancolia, acompanhada
de uma espécie de silêncio espiritual que não consigo definir bem com
palavras. Um portão se abriu, do lado oposto ao do portão pelo qual
entramos, trazendo um pouco de luz à escuridão. E ali, vimos o vulto de um
homem. Ele. O portão se fechou, ecoando. Os sons seguintes eram de seus
passos. E eu sentia aquele ser, que caminhava como homem, mas tinha
passos de gigante, se aproximar, sua presença quase nos esmagando, nos
forçando a baixar nossas cabeças. E ainda que houvesse um resto de glória
naquela presença, uma luz fraca em meio à penumbra, eu também podia
sentir uma pequena treva, ocultando algo que eu não podia decifrar.
Ele se sentou em seu trono, diante de nós, e as luzes das velas o
iluminaram por completo. Ali, eu vislumbrei, pela primeira vez, a face do
Mais Belo dos Anjos. E a Estrela da Manhã era como uma forma perfeita,
seu rosto impecável, sem marcas ou falhas, e seus olhos, negros, brilhavam
com sabedoria e poder. Seus longos cabelos negros caíam até a altura dos
ombros, perfeitamente penteados. Sua face era máscula, viril, mas ainda
assim suave, bela. Sua pele, levemente morena, não era maculada por barba
ou pêlos faciais, salvo as sobrancelhas. Ele vestia um manto negro com
detalhes brancos. Porém, sua beleza e perfeição eram maculadas pelas
297
sombras tremulantes geradas pelas velas. Aquela escuridão, porém,
apenas o tornava mais divino, mais misterioso. Assim que se sentou,
Lúcifer apoiou os cotovelos nos braços de seu trono, e uniu as pontas dos
dedos das mãos, abaixando um pouco a face para observar suas próprias
mãos. “Então”, disse Lúcifer, sua voz soando ao mesmo tempo divina e
humana, poderosa e suave, “vocês são os campeões que Metatron escolheu.
Vocês são aqueles destinados a encontrar uma resposta, um sentido. São os
que foram escolhidos para impedir que os planos de um jogador insano se
concretizem”.
Silêncio se seguiu. Lúcifer ergueu a cabeça, continuando: “Mas o
que sabem sobre os atos daqueles que têm manipulado vocês? O que sabem
sobre verdades e mentiras, ou sobre os reais perigos que os cercam?”.
“Se você sabe as respostas”, eu interrompi, “diga-nos”.
Lúcifer me fitou. Sua feição não mudou. Ele não parecia nem
contente, nem raivoso, não demonstrava nada a não ser frieza. “São as
respostas que irão destruí-los, jovens Celestiais. É a missão que significa
seu fim. Vocês estão numa jornada suicida. Pois contaram mentiras a
vocês. Continuem em seu caminho, e ocorrerão calamidades. Eu não os
trouxe aqui por compaixão, mas porque o futuro deste mundo depende de
suas ações”.
“Conte-nos o que sabe”, eu pedi novamente.
“Que assim seja”, Lúcifer disse, “mas uma vez que tenham ouvido
minhas palavras, espero que estejam preparados para fazer uma escolha.
Pois, para salvarem este mundo, vocês não podem salvar seu querido
Primus. Para que este mundo viva, Uriel-chamado-Veritatis não deve ser
salvo!”.
298
Capítulo 14: A Estrela da Manhã
Perguntas subiram à minha mente. Dúvidas, indagações, era tudo o
que eu podia pensar. Ainda assim, eu mal tinha coragem de dizê-las. Á
frente, eu via apenas o olhar de determinação da Estrela da Manhã. Seu
rosto ainda era frio. As sombras tremulantes o tornavam quase demoníaco,
mas ainda assim um ar divino o cercava. E sua presença era tamanha, a
ponto de quase me forçar a manter-me calado. Mas eu então arrisquei
indagar: “Por quê?”.
O Príncipe dos Caídos abaixou a cabeça por um instante,
escondendo seus olhos sob os cabelos que caíram-lhe à face. Suas mãos
permaneciam unidas, à frente da cabeça, os cotovelos ainda apoiados nos
braços de seu trono. Então, ele ergueu o rosto, fitando-me. Seus olhos
negros pareciam brilhar como fogo, mas o brilho logo desapareceu. Então,
Lúcifer disse: “Vocês estão entrando em um jogo perigoso, controlado por
criaturas cuja natureza vocês não podem compreender. Estão mantendo-nos
constantemente sob pressão, sob tensão, exigindo que corram contra o
próprio tempo rumo a seu objetivo, sem tempo para indagar ou para
questionar suas motivações, seus propósitos. Vocês estão sendo
enganados”.
“E que tempo temos para gastar com charadas?”, perguntei,
continuando: “Enquanto descansamos ou conversamos, Shiva avança, sem
que ninguém o impeça. Viemos aqui atrás de respostas, para continuarmos
em nossa missão...”.
“Vocês foram enganados”, interrompeu-me Lúcifer. “E sua missão
está fadada ao fracasso. Digam-me, pequenos benfeitores, porque
299
acreditam que sua sobrevivência, até este ponto, se deve às suas
próprias habilidades?”.
Calei-me, e então comecei a compreender a revelação de Lúcifer.
Outros, porém, ainda não podiam compreender. Absolon a princípio
gaguejou, mas então ergueu a voz, tentando demonstrar determinação:
“Aonde quer chegar? Quer dizer que não sobrevivemos graças a nossos
próprios esforços?”.
Lúcifer voltou-se para o jovem Princeps. Seu olhar parecia agora
preencher-se de ódio, não por Absolon, mas talvez pelo seu Clero, o Clero
fundado pelo maior dos inimigos do Príncipe dos Caídos. “Em parte, jovem
Princeps, seus esforços foram suficientes para mantê-los todos vivos.
Enfrentaram inimigos poderosos, e é surpreendente que todos tenham
sobrevivido até aqui. Mas agora os questiono. E, se pensarem
profundamente nas respostas, saberão que estou correto”.
Lúcifer se ergueu do trono, e sua voz se intensificou: “Vocês
acham realmente que poderiam derrotar Íblis Al-Qadim? Vocês acreditam
cegamente que Shiva, o Destruidor, fugiu por medo?”. Lúcifer então
apontou para mim, seus olhos brilhando como fogo, seu corpo iluminando-
se fracamente, como um distante sol poente vermelho-sangue. “Eles o
querem vivo, Veritatis Perquirator. Por que, sem você, não alcançarão seus
objetivos. Esta é a única verdade. Dentro de você estão as respostas que
todos queremos”.
“A localização de Veritatis?”, perguntei.
“Sim”, Lúcifer respondeu.
“Mas Íblis entrou em minha mente, roubou a resposta de mim”,
respondi. “E agora, eles têm a informação que eu não consigo encontrar”.
300
“Mentiras, jovem Arcanjo”, disse Lúcifer, sua voz voltando a
um tom calmo, sua aura desaparecendo, conforme ele se sentava em seu
trono, retornando à posição original. “Mentiras fortalecidas por verdades.
Pois Íblis revelou a verdade a vocês, exceto quando disse a razão de ter
atraído-os a seu templo. Desde que entrei neste recinto, pequeno Arcanjo,
eu estive observando sua mente, lendo seus pensamentos, conhecendo seu
passado e seu futuro. Sei agora seus sonhos e forças, suas vontades e
desejos, suas fraquezas e temores. Mas há algo que não posso ler, não
importa o quanto eu tente. Algo que supera todo o meu poder, e diante
disso não sou nada”.
Arregalei meus olhos. “O que há dentro de mim?”, perguntei.
“A vontade de Metatron! Ao tentar ver o que ele te mostrou, senti
apenas dor e fogo, e a chama divina tocou minha alma, me forçando a
desistir. É impossível roubar de você aquilo que Metatron revelou”.
Arrisquei revelar minha conclusão: “Então, o único que pode
encontrar Veritatis...”.
“É você”, Lúcifer completou, “mas esta é uma resposta que você
não deve buscar”.
“Por quê?”, perguntei.
“Por que estão todos os olhos do Inferno agora se voltam sobre
você, Arcanjo. Sinta! Feche os olhos e sinta quantos olhares se voltam a
Oostegor agora! O tigre e o bode o observam, esperam o momento certo, a
revelação final. Todos querem a resposta que apenas você tem. Um segredo
é um segredo apenas enquanto não puder ser decifrado. No momento em
que outros souberem a resposta, eles também poderão saber, e tirarão esse
segredo de você”.
301
Absolon, porém, tentou contestar a Estrela da Manhã. “Mas, se
nós pudermos alcançar o velho antes de nossos inimigos? E se pudermos
leva-lo ao Éden antes que Shiva o alcance?”, ele disse, esforçando-se para
erguer a voz diante de Lúcifer.
“Uma tola esperança”, Lúcifer respondeu. “Vocês acham que eles
não planejaram seus movimentos? Vocês esperam superar a astúcia e os
dons dos Grandes Lordes do Inferno? Essa esperança é a arma deles, e essa
ingenuidade será a sua perdição”.
“Devemos desistir?”, perguntei a mim mesmo, em voz baixa e, em
seguida, repetindo a pergunta mais alto, a meus companheiros.
“Por que acreditar nele?”, perguntou Ansgar. “O que nos garante
que ele nos diz a verdade? O que nos garante que ele não está ao lado do
Inferno?”.
Lúcifer ergueu sua voz, mas não se mostrou ofendido: “Eu faço
muitas barganhas com o Céu e com o Inferno, Venator, mas não pertenço a
nenhum deles. Sou minha própria sombra, e ninguém a não ser eu dita
meus atos. Não nego que negocio com os Infernais, mas também o faço
com seu próprio povo. Não pertenço nem às trevas nem à luz, e abomino
ambos igualmente. Mas, para meu povo sobreviver, para a Corte Negra se
manter, precisamos manter diplomacia com ambos os lados, ou seríamos
massacrados por um deles. Tentem julgar minhas palavras não porque vêm
de mim, mas porque digo a verdade. Eu sei de muitas coisas porque tenho
meus elos infernais, mas acredite, o que faço aqui se volta contra os
interesses infernais. Arrisco meu próprio povo ajudando vocês, mas como
eu disse, não o faço por compaixão, mas para sobrevivermos”.
302
“Nós temos uma missão a cumprir”, eu disse, “não podemos
desistir dela. Nós iremos encontrar a alma de meu Primus”.
Lúcifer balançou a cabeça negativamente. “Por que se recusam a
ouvir minhas palavras? O que acha que poderão fazer, quando os Grandes
Lordes conseguirem o que querem? O que os leva a cometer essa
loucura?”.
“Fé”, respondi, “um amigo disse que passaríamos por grandes
provações, mas que não estaríamos sozinhos. Você disse que Metatron
protege aquilo que sei, e acho que isso basta para mim ter fé que, no final,
seremos bem-sucedidos. Não vamos estar sozinhos quando precisarmos”.
Asphael sorriu com satisfação diante de minhas palavras. Meus
companheiros mostraram reações diversas. Notei apreensão nos rostos de
Karina e Wang, mas satisfação em Absolon e Ansgar. Fabrizia estava
receosa, mas ao notar a reação de Absolon, também sorriu. Al-Malik,
porém, continuou sério e calado.
“Vocês nunca mudam, nunca crescem”, disse Lúcifer,
resmungando a si mesmo. “São como mortais... cegos, tolos, vivendo de
crenças infundadas. Vocês estão sozinhos. Onde estão seus brilhantes
Primi? Onde estão seus poderosos Arcanjos? Por que Metatron escolheu
vocês e não outros mais capazes?”.
“Você não tem o direito de critica-los”, Ansgar ergueu a voz.
Al-Malik, ainda sério e quieto, disse a Lúcifer: “Quem é você para
criticar a maneira como agimos? Não é mais um de nós, caiu por ser
incapaz de nos compreender, porque se deixou cegar por poder. Sei que
disse a verdade até aqui, mas é apenas a sua verdade, aquilo em que
acredita. Você não tem o direito de condenar nossas crenças e atitudes”.
303
O olhar de Lúcifer ardeu em ódio. “Eu sempre agi em prol de
uma causa maior. E suas palavras são a prova de que minhas atitudes
sempre foram corretas. Eu sei daquilo que não sabem, reparto esse
conhecimento com vocês, dou um alerta, e o ignoram por completo?”.
“Agradecemos sua preocupação”, respondi, “mas não somos
obrigados a cumprir com sua vontade. Temos o direito de escolher nosso
caminho”.
A voz de Lúcifer se elevou, ele se ergueu de sua cadeira,
novamente iluminando-se em vermelho-sangue. “Eu não vou permitir que
ponham todos os meus esforços a perder por causa dessa cegueira”.
Asphael se ergueu, jogando sua cadeira para trás e sacando sua
espada, e fitando o Príncipe dos Caídos: “Eu posso morrer aqui, Lúcifer
Estrela da Manhã, mas não vou permitir que sequer toque em meus
companheiros!”.
“Isto não é coragem, mas tolice”, respondeu Lúcifer, fitando
Asphael. E eu percebia que todo o poder do Arcanjo não era nada agora...
Se antes ele era uma grande luz, agora a penumbra o ofuscava até quase se
perder. “Enquanto desejarem continuar sua missão, eu os proíbo de deixar
Oostegor. Nenhuma porta se abrirá a vocês, e nenhuma janela poderá ser
atravessada. Nenhum homem ou mulher neste reino jamais irá ajuda-los, e
nenhum pedido de socorro será ouvido fora destas paredes. Vocês não
deixarão este lugar,enquanto não tiverem o desejo sincero de abandonar sua
obrigação”.
“Você não pode nos obrigar a isso!”, respondeu Absolon, também
se erguendo.
304
“Eu os estou protegendo, jovem Princeps”, respondeu Lúcifer,
calmamente. “O que vocês fariam em meu lugar? O que fariam se
soubessem que iriam falhar, mas ainda assim se recusassem a acreditar
nisso? Vocês Celestiais falam em fazer algo maior em troca de sacrifício
pessoal, mas agora se mostram incapazes de abandonar um Celestial para
proteger todo este mundo. Não vêem que estão fazendo a vontade dos
Grandes Lordes? Eu posso ser chamado de vilão, posso ser odiado, mas
tenho firme crença naquilo que preciso fazer. Quer acreditem em mim... ou
não”.
“Fará conosco o que quis fazer com a humanidade?”, perguntou
Asphael, ainda empunhando sua espada. “Nos privará da escolha? Nos
forçará à sua vontade?”.
“E eu por acaso estava errado naquela época, Asphael Veritas?”,
perguntou Lúcifer. “Ou vocês se tornaram tão cegos por sua preciosa luz,
que são agora incapazes de ver o mundo dos homens? O que o homem se
tornou quando deixado para viver suas próprias decisões? Este mundo está
morrendo, Asphael Veritas, e é culpa do homem. Íblis bem disse uma
grande verdade, ao dizer que o homem está crescendo fora de controle, até
sufocar toda a Criação. Mas ele não cresceu em grandeza interior, apenas
em poder. E poder corrompe. A humanidade é uma abominação, que
poderia gerar maravilhas, mas planta apenas guerras, fome e morte. Eu
queria tornar este mundo um segundo Éden. Tentei fazê-lo pela força sim,
mas os fins justificam os meios, e eu não me importava de sacrificar meu
nome em troca desse objetivo maior”.
“A humanidade cresceu corrupta porque o Inferno a manipulou”,
respondeu Absolon.
305
“Não, o homem cresceu corrupto porque, ao invés de lidera-lo,
vocês decidiram encher-lhe de parábolas e restrições. Resolveram contar-
lhe histórias e ficaram protegendo-o das agruras do mundo. Deram-lhe
profetas e mandamentos, mas nunca as respostas que eles realmente
desejavam”.
“Só cresce aquele que aprende por si mesmo”, contestou Asphael,
“nenhum destes jovens Celestiais se tornará grande se não enfrentar o
mundo e conseguir suas respostas com seu próprio esforço. Eles jamais se
tornarão grandes Arcanjos se os grandes Arcanjos estiverem sempre
presentes para fazer o trabalho por eles. Assim também ocorre com a
humanidade. O homem deve se tornar grande com o nosso exemplo, não
por causa de nossa vontade”.
Lúcifer ergueu a voz, mas ainda se mantinha controlado. “Eu
conheço bem a filosofia celeste, Arcanjo Asphael, mas pela prática sei que
ela não funciona com a humanidade. O homem, se não for controlado, não
segue a ninguém a não ser a si mesmo...”. Então, de repente, ele parou,
olhando para trás, sua face demonstrou surpresa. Imediatamente, percebi
que havia algo errado.
“O que houve?”, perguntei.
Lúcifer olhou para os lados, mexendo a cabeça lentamente. Ele
fechou os olhos, e sua face demonstrou raiva. “Há uma sombra
esgueirando-se em Oostegor”.
“O quê?”, perguntei, surpreso, mesmo compreendendo o
significado.
“Eles vieram atrás de vocês”, disse Lúcifer, então, ele ergueu a voz:
“Fiquem aqui! Pensem sobre tudo o que conversamos! Reflitam! Eu
306
invocarei os exércitos de Oostegor e expulsarei esta sombra de minha
cidade!”. Então, Lúcifer nos deu as costas. Seu manto branco agora se
erguia como uma capa conforme, a passos rápidos, ele se afastava. A porta
adiante abriu-se, trazendo luz ao salão escuro, e assim que Lúcifer
atravessou-a, ela se fechou, emitindo um som ecoante.
E ali, nos vimos sozinhos novamente, ao redor da mesa, cercados
por escuridão, iluminados por velas. “O que acham de tudo isso?”,
perguntei a meus companheiros.
“Vamos sair daqui”, disse Ansgar. “Não temos porquê ficar aqui”.
“Não podemos”, respondi, “as palavras de Lúcifer não foram
apenas vento, mas uma maldição. Não seremos capazes de deixar Oostegor,
por mais que tentemos”.
“Somente a vontade de Lúcifer ou um poder igual ou maior poderia
nos libertar agora”, respondeu Asphael, que baixava finalmente a sua arma.
“A questão não é essa”, disse Al-Malik, ainda sério, pensativo. Ele
não havia se levantado da cadeira, e agora punha as mãos diante do rosto,
apoiando os cotovelos sobre a mesa. “O que mais me assusta é que Lúcifer
não mentiu. Quando Íblis nos falou, senti um terror não-natural... algo tão
profundo que não pude separar verdades de mentiras, mas Lúcifer não
parecia me manipular. Ele queria realmente nos convencer, e disse apenas
verdades”.
“Apenas verdades, ou apenas aquilo em que ele próprio acredita?”,
perguntou Asphael.
“Talvez um, talvez outro, mas não podemos negar que Lucibel é
um ser de grande conhecimento”, disse Al-Malik. “Ele pediu que
julgássemos suas palavras, não que o julgássemos. Ele estava certo. Me
307
sinto estranho por concordar com ele, mas aí penso em julgar apenas as
palavras e não quem as conta... E realmente ele parecia sincero”.
“Mas não podemos desistir”, disse Absolon.
“Não pretendo desistir”, disse Asphael.
“Nem eu”, respondeu Ansgar.
O som de portas se abrindo ecoou em seguida. Não o portal pelo
qual Lúcifer deixou a sala, mas aquele pelo qual originalmente entramos.
Luz inundou o salão, conforme vimos silhuetas de pessoas entrando... Não
uma ou duas pessoas, mas sim dúzias. Seus passos ecoavam, fazendo
parecer que um exército se aproximava. Viramo-nos para os recém-
chegados, e aqueles que ainda estavam sentados se levantaram. Ansgar,
Absolon, Wang e Al-Malik sacaram suas espadas, preparando-se para se
defenderem, enquanto Asphael mais uma vez ergueu sua lâmina,
empunhando-a firmemente. Até mesmo Fabrizia puxou sua faca de
combate, até agora mantida guardada.
Silêncio se seguiu por alguns segundos, conforme os recém-
chegados se organizavam. Uma voz ecoou, murmurando em Fabulare
arcaico: “Faça-se luz”. Em seguida, tochas iluminaram-se nas paredes, uma
a uma, rapidamente revelando a verdadeira extensão do salão antes escuro.
As paredes não continham janelas, mas eram adornadas por desenhos de
figuras poderosas empunhando espadas e lanças, usando elmos e
armaduras, feitas em auto-relevo. Ali, em frente à multidão, estava Millard,
o autor do feitiço, uma de suas mãos erguida.
“Mil perdões pela intromissão”, disse Millard, “mas recebemos
ordens”. Neste momento, a mão feminina de Azubah tocou seu ombro, e
Millard deu licença para que ela tomasse a frente. Também Surial,
308
empunhando sua foice metálica, pôs-se à frente do grupo, ao lado de
Azubah.
“Arcanjo Philipe Nicodemus e sua Falange”, disse Azubah, seus
olhos queimando em ódio, suas palavras firmes e decididas, “vocês nos
ofendem com sua presença aqui. Meu senhor Lúcifer ofereceu-lhes
respostas, deu-lhes a nossa hospitalidade. E sua resposta foi negar a
sabedoria de suas palavras. Por decreto da Estrela da Manhã, vocês não
sairão daqui com vida!”.
“Os três à frente são poderosos”, murmurou Asphael para nós,
“mas os que os seguem são jovens. Há algo mais aqui, porém, não
compreendo”. Então, Asphael ergueu a voz, respondendo a Azubah: “Seu
senhor nos garantiu passagem segura por sua casa! Você não o direito de
nos ameaçar, Impura! Suma de nossa frente, antes que seu mestre retorne e
descubra a sua traição”.
O ódio em Azubah cresceu. “Como ousa falar comigo assim?”. A
multidão atrás dela, composta de cerca de trinta Anjos Caídos, ergueu
armas, gritando com raiva. E imediatamente, tive uma revelação, conforme
ouvi sussurros ecoando na sala. Sussurros inumanos, monstruosos, quase
incompreensíveis, mas que emitiam uma mensagem de ódio que apenas eu
podia ouvir. “Ele os ridiculariza!”, diziam os sussurros, e a voz de Azubah
os repetia: “Eles nos ridiculariza! Os ‘Puros’ se imaginam superiores a nós,
nos expulsaram, nos humilharam! Aqui temos a chance de destruir dois
grandes Arcanjos e toda a escória que os protege!”. A multidão gritou,
brandindo armas. “Mas deixem aquele vivo, a Estrela da Manhã deseja algo
que somente ele possui”, ela completou, apontando para mim. Azubah deu
309
um passo à frente. “Entreguem-se a seus destinos, rendam-se, e
morrerão rapidamente”.
Asphael tomou a frente, colocando sua lâmina diante do corpo,
firmemente segurando a espada com ambas as mãos. “Terão de passar por
mim antes de tocarem em um deles”, disse o Arcanjo. Azubah riu,
caminhando em direção a Asphael. O Arcanjo, a passos lentos, se
aproximava da mulher.
“Que assim seja”, respondeu Azubah. Ela abriu bem os braços,
mostrando suas maças negras, que em seguida incendiaram-se em chamas
negras. Senti um vento frio soprar, mas ao mesmo tempo notei o poder de
Asphael crescer e, com ele, um brisa quente. Os poderes dos dois de ambos
pareciam quase iguais... quase. Antes que eu pudesse avaliar direito o poder
de ambos, ouvi novamente os sussurros. “Matem a todos”, a voz
monstruosa ecoou em minha mente.
Três dezenas de Caídos urraram gritos de batalha, empunhando
lanças, espadas e machados. À frente, Surial deu o primeiro passo,
empunhando sua foice prateada, símbolo da morte. Seu manto negro
ergueu-se devido à velocidade com que corria. Atrás dele, a horda de
Caídos o seguida.
“In nomine Veritas!”, gritou Asphael, jogando-se para a frente,
traçando um arco horizontal com sua lâmina. Azubah saltou para trás,
escapando por poucos milímetros da espada do Arcanjo. A multidão
passava pelos dois combatentes, avançando furiosa, mas sem perturba-los.
Quando a lâmina de Asphael passou por Azubah, a mulher avançou,
erguendo a maça da mão direita, mirando contra a cabeça do Arcanjo.
310
“Cubram-me”, disse Ansgar, vendo a multidão se aproximar
furiosa. Então, notei algo se manifestar... Uma aura tímida, mas que nos
fortalecia, me senti mais atento e menos hesitante, mais corajoso, e percebi
que aquilo vinha de Absolon. Ele estava usando o poder de seu Clero.
“Será uma honra”, respondeu Absolon. Ansgar avançou e, com ele, fomos
todos nós.
Os Caídos também avançaram, seus gritos ecoando, formando uma
cacofonia infernal. Surial ergueu sua foice, saltando à frente do grupo,
pronto para atingir o Venator que avançava. Porém, sua foice foi atingida
em pleno ar pela lâmina de Wang, que saltou para interceptar o ataque do
Caído. O impacto das armas fez um estrondo, e, em seguida, ambos foram
lançados violentamente contra o chão, caindo desajeitadamente.
O Venator não parou, continuando seu avanço. Ele segurou sua
arma com ambas as mãos, colocando-a à esquerda do corpo. Sua lâmina
banhou-se em Fogo Celestial. Um relâmpago percorreu a sala em seguida,
vindo das mãos de Fabrizia, atingindo a multidão à frente. Alguns caíram
diante da fúria elétrica, mas aquela última distração foi suficiente para que
Ansgar alcançasse o bando furioso. Um Caído ergueu sua espada para
atingir Ansgar, mas o Venator foi mais rápido. Um arco de chamas celestes
traçou o golpe de Ansgar, que percorreu a barriga de um Caído, cortou ao
meio aquele que tentava ataca-lo e ainda rasgou o peito de um terceiro.
A maça de Azubah errou a cabeça de Asphael por pouco, deixando
um rastro de chamas negras em pleno ar. O Arcanjo, após o golpe
horizontal que dera, recuou, mas continuou a girar o corpo, num
movimento incrivelmente rápido. Sua lâmina brilhou em luz branca e,
conforme o movimento de seu corpo completava 180 graus, Azubah teve de
311
abaixar-se para impedir que sua cabeça fosse decepado pelo segundo
golpe de Asphael.
Enquanto isso, Wang levantava-se do tombo que sofrera. Surial,
porém, fora mais rápido, erguendo-se num pulo e preparando a foice para
um novo ataque. A lâmina de Surial avançou contra a cabeça de Wang, mas
Al-Malik interviu, barrando o caminho da lâmina com sua espada. O
impacto das armas fez com Al-Malik recuasse, porém deu tempo o
suficiente para que Wang recuperasse seu equilíbrio e se preparasse para o
combate que viria.
E então começou.
Um estrondo foi emitido quando a espada de Absolon interceptou a
lâmina de um Caído, prestes a atingir Ansgar pelas costas. Por sua vez,
Absolon era protegido por Fabrizia, que rasgou a barriga de um outro
oponente que tentava se aproximar do jovem Princeps pelo flanco. Um
Caído, avançou contra Ansgar, erguendo um grande machado sobre a
cabeça. Antes que alcançasse o Venator, este avançou com a espada diante
do corpo, largando-a assim que sentiu a lâmina penetrar a frágil carne do
oponente. A lâmina atravessou o peito do Caído, o Fogo Celestial
cauterizou suas entranhas, e o inimigo tombou sobre outro Impuro que
vinha logo atrás, a lâmina da espada penetrando no ombro do segundo. A
espada de Absolon bloqueou outra lâmina, desta vez dirigida ao próprio
Princeps. A força do Caído, porém, fez com que o Absolon recuasse,
perdendo o equilíbrio por instantes. O Caído avançou, erguendo a lâmina,
mas Fabrizia intercedeu novamente. A faca da Xamã rasgou a garganta do
Caído, forçando-o a recuar. Porém, mais e mais Impuros surgiam para
cercar o trio.
312
Forçada a se abaixar para escapar do segundo ataque de
Asphael, Azubah atacou as pernas desprotegidas do Arcanjo. Asphael
saltou, escapando do ataque, mas Azubah contra-atacou, também saltando.
O movimento circular da lâmina de Asphael fez com que seu corpo pende-
se para a direita no ar, deixando seu ombro esquerdo totalmente
desprotegido. A maça de Azubah atingiu o braço esquerdo de Asphael. O
Arcanjo perdeu o controle do salto, caindo desajeitadamente, logo após ter
o osso do braço esmagado pelo impacto sofrido. Azubah pousou
suavamente no chão, seus olhos fixamente voltados para o Arcanjo que caía
violentamente. O impacto da queda, mais o braço quebrado, fez com que a
espada de Asphael escapasse de suas mãos, deslizando em direção ao caos
de Anjos Caídos que avançavam contra nós.
Um Caído se aproximou se mim, tendo uma espada de cabo
vermelho-sangue e dupla lâmina em mãos. Ele ergueu a arma para me
atacar, mas encontrou minha palma aberta no caminho. Antes que pudesse
me atingir, o Caído foi arremessado ferozmente por uma corrente de ar que
gerei, derrubando ainda outro Caído que corria em direção a Al-Malik. Foi
quando ouvi um grito.
Wang avançou gritando contra Surial, enquanto Al-Malik
preocupava-se em se desviar do caminho da lâmina de uma lança de
combate, empunhada por outro Caído. A lâmina negra do Tenshi se chocou
com o cabo prateado da foice de Surial, e o Caído negro empurrou a arma
contra a lâmina de Wang, fazendo-o recuar. A lâmina da foice atacou em
seguida, com velocidade e precisão surpreendentes. Wang reagiu rápido,
jogando-se para trás, mas ainda assim a lâmina penetrou em sua barriga,
313
cortando-a superficialmente de lado a lado. O sangue celeste caiu sobre
o piso branco.
A cimitarra de Al-Malik bloqueou o caminho cortante da lança que
o atacava. Ainda assim, o comprimento da arma o impossibilitava de se
aproximar para contra-atacar. Eu ergui a mão esquerda e comecei a
gesticular. No limiar dos meus sentidos, ouvi os urros furiosos dos espíritos
da terra e do ar. Concentrei toda aquela fúria e liberei, terminando os gestos
necessários. O Caído puxou sua arma novamente, pronto para atacar com
um golpe perfurante, mas em seguida urrou de dor. Sua pele rompia-se e
sangrava. Al-Malik, confuso, me olhou, e me encontrou apenas apontando
os dedos indicador e médio da mão esquerda para o Impuro. Dilacerado
pelos espíritos sob meu comando, o Caído tombou. Al-Malik voltou suas
atenções para Wang, então...
Wang cambaleou, levando uma das mãos ao ferimento em sua
barriga. Surial avançou, mas Al-Malik, agora livre de oponentes, preparou
para ataca-lo pelo flanco esquerdo. Para a minha surpresa, Surial girou o
corpo para a esquerda, numa velocidade impressionante. A lâmina da foice
serviu como um gancho, atingindo a cimitarra de Al-Malik e removendo-a
facilmente das mãos do Malaki. A direita do Caído negro ficou vulnerável,
e Wang avançou, aproveitando a brecha, mas então Surial mais uma vez se
moveu tão rápido quanto um pensamento, retornando sua arma para
golpear como se fosse um bastão a cabeça do Kage. Lo Wang foi jogado
pelo impacto, caindo violentamente no chão. Sua lâmina negra caiu de suas
mãos.
Eu ergui minha mão esquerda, pronto para repetir em Surial o
feitiço espiritual que usara antes. Antes que pudesse completar os gestos,
314
porém, senti uma força me arremessar no ar, derrubando-me. Millard
caminhava em minha direção, suas mãos já preparando algum outro feitiço
cuja natureza eu era incapaz de decifrar. “Desista, Nicodemus. Não tenho
nada contra você, mas ordens são ordens”.
E, em meio ao turbilhão, Asphael e Azubah se encaravam,
intocados pelo caos ao redor. O Arcanjo fitava sua oponente com respeito,
caído diante. A Caída, porém, mostrava com orgulho seu par de maças
negras, um sorriso cruel nos lábios. “É isso o melhor guerreiro que o Éden
pode me oferecer? Lorde Lúcifer os teme sem motivo, então!”, ela
provocou. “Levante-se!”.
Asphael se ergueu, lentamente, e então encarou sua oponente,
fitando-a seriamente, e levando a mão direito ao ferimento no braço
esquerdo. “Ah, não irá se curar, maldito!”, ela gritou, avançando. Uma
seqüência de golpes se seguiu, conforme Azubah avançava cada vez mais,
girando o corpo e usando uma maça após a outra para atacar. Os rastros de
Fogo Negro de seus ataques formavam uma espiral interminável, um
turbilhão de chamas rodopiantes, forçando Asphael a recuar.
Uma espada medieval perfurou o ombro esquerdo de Ansgar. O
atacante sorriu, arrancando a espada violentamente, fazendo o sangue de
Ansgar escorrer. Antes que atacasse novamente, o punho do Venator
atingiu sua face. O nariz do Caído se partiu. Antes que Caído caísse
atordoado pelo golpe, Ansgar agarrou-o pela roupa, puxando-o e jogando-o
contra outro que vinha pela direita. Uma lâmina rasgou-lhe as costas, mas
ele ainda avançava... Cada vez se colocando mais e mais no meio da
multidão de Caídos.
315
Absolon caiu. Ele tinha derrubado um oponente, mas sua
inexperiência e falta de treinamento com a espada não o tornava páreo para
enfrentar tantos oponentes. Na tentativa de ao mesmo tempo bloquear os
ataques incessantes e recuar, ele perdeu o equilíbrio e tombou. Um dos
oponentes ergueu sua lança, pronto para atravessar o corpo do Princeps,
mas então um grito feminino o distraiu. Karina foi de encontro ao atacante,
atingindo-o com o ombro. O atacante perdeu o equilíbrio e caiu, enquanto
Karina recuou, cambaleante. Um dos atacantes de Absolon observou a
Supervivente, voltando-se contra ela. Antes que se aproximasse o suficiente
para corta-la com a espada, Karina ergueu sua pistola. O estrondo do tiro
ecoou, a bala atingindo a cabeça do adversário, que tombou. Karina parecia
assustada mas ainda assim decidida. Ela tentava se manter séria, conforme
mirava num terceiro atacante que se aproximava. O som do tiro se repetiu,
o disparo atingindo o peito do guerreiro que se aproximava, mas isso não
parecia diminuir sua velocidade ou determinação. Karina se jogou para o
lado para escapar do golpe da lâmina do oponente. Então, para sua
surpresa, a arma brilhou em Fogo Negro. Karina recuou, tentando um
segundo disparo...
Caído no chão por causa do truque de Millard, Apontei a mão para
o Caído que se preparava para atingir Karina. Antes que pudesse liberar
meu poder, porém, senti meu corpo arder, dor me tomando como se eu
fosse queimado, mas não havia chama alguma. “Esta é uma batalha
perdida”, disse Millard, colocando-se à minha frente, gesticulando como se
amarrasse uma corda imaginária à sua frente. Eu sentia meu corpo pesado,
incapaz de me mover. “Vocês não têm a menor condição de vitória”, ele
murmurou.
316
Um novo relâmpago iluminou a sala. O Caído que atacava
Karina tombou diante do disparo de Fabrizia. Infelizmente, para salvar a
companheira, Fabrizia deu as costas a um outro Caído, que conseguiu
agarra-la, prendendo seus braços. O próprio atacante, porém, gritou de dor,
conforme uma chuva de faíscas saltou de seu corpo. Fabrizia conseguiu se
livrar, mas não a tempo de desviar de mais um ataque, vindo de outro
Caído. Uma lança perfurou o peito de Fabrizia, a lâmina emergiu através de
suas costas. A jovem gritou, agarrando o cabo metálico da arma. Seu
atacante urrou em seguida, mais uma vítima dos ataques elétricos da Xamã.
A moça e seu atacante caíram juntos no chão, ambos muito feridos. Tentei
gritar o nome de Fabrizia, mas consegui emitir apenas um grito de dor,
conforme os grilhões invisíveis de Millard me apertavam.
Wang se esforçava para levantar, seu rosto sangrando devido ao
impacto da pancada que sofrera. Ele virou-se para Surial a tempo de vê-lo
empalar Al-Malik com um ataque certeiro. Desarmado, Al-Malik se tornou
um alvo fácil. A lâmina penetrou por sua barriga, arrebentando a coluna
vertebral e emergindo em suas costas. Surial recolheu a arma em seguida,
puxando-a com força. Livre da lâmina, Al-Malik tombou.
Millard mantinha-me preso em seu feitiço. Meu corpo não se
movia, e ardia como se estivesse em chamas. A boca de Millard
pronunciava palavras que eu mal compreendia. Ele parecia sério, não
parecia sentir prazer e sim incômodo naquela situação. Olhei os olhos de
Millard por um instante... e, de repente, ouvi novamente os sussurros
monstruosos. “Sua busca termina aqui, Philipe Nicodemus”, a voz
demoníaca dizia. Meu corpo ardia em dor, mas pensei em Fabrizia. Ouvi
um tiro, seguido de um grito de dor. Karina caía, sua barriga trespassada
317
por uma lâmina. Ansgar caiu de joelhos quando uma espada perfurou
suas costas. Os inimigos o cercavam por todos os lados. E, em minha
mente, vi uma figura de fogo se formar... Em seguida, vi o velho. Abri bem
meus olhos, fitei Millard, e contra a dor, contra toda a força de seu feitiço,
apontei minha mão contra ele. Millard se surpreendeu com minha
resistência repentina, mas não teve tempo de reagir. Senti minha energia
explodir através de minha mãos, e um relâmpago saltou de mim. A corrente
elétrica atingiu Millard, mas então saltou sobre outro Caído, e mais outro. E
um quarto e um quinto também. Millard recuou, ferido, enquanto eu sentia
seu poder sobre mim diminuir. Tendo liberado um poder que até o
momento eu desconhecia possuir, eu me levantei, e fitei o caos novamente.
Eu não ia deixar meus companheiros morrerem. Teriam de me matar
primeiro.
Os golpes incessantes de Azubah prosseguiam. Finalmente, a
mulher atingiu o rosto de Asphael. Senti os ossos do crânio do Arcanjo se
partirem, enquanto seu olho direito era cauterizado pelas chamas negras.
Asphael cambaleou, sua face sangrando, mas para minha surpresa não caiu.
Azubah parou, confiante, rindo. “Você é um guerreiro patético”, ela
provocou, e então atacou, com toda a força e fúria que tinha, direcionando a
maça ao braço de Asphael.
Um estrondo poderoso se seguiu. Metal se chocou com rocha,
conforme Asphael golpeou, com o braço nu, a maça que vinha em sua
direção. A arma se partiu em milhares de pedaços, e os olhos de Azubah se
arregalaram, indicando sua surpresa. Antes que ela reagisse, os dedos da
mão esquerda de Asphael penetraram em sua garganta, tamanha a força
com que o Arcanjo apertava seu pescoço. “Eu não sou guerreiro”, disse
318
Asphael Veritas, assumindo sua Forma Angelical, seus olhos
transbordando em luz dourada. “eu sou um sábio”.
Absolon se ergueu, tentando escapar do caos, conforme vários
Caídos avançavam contra ele. O Princeps tentava alcançar Fabrizia, que
estava caída inconsciente, a lâmina da lança ainda atravessando seu peito.
Um machado atacou as costas de Absolon, mas o jovem Celestial
conseguiu escapar, virando-se para encarar seu oponente. Outros dois se
aproximavam do Princeps pelas costas. Foi quando o corpo de Azubah
atingiu o Caído que empunhava o machado. Arremessada por Asphael, a
mulher derrubou facilmente o Caído, e ainda atingiu violentamente a
parede a mais de dez metros de distância, rachando-a. Absolon e os outros
dois Caídos fitaram Asphael.
Surial atacava Wang ferozmente. O Kage se esforçava para se
manter longe do oponente, mas a foice tinha um alcance muito grande. A
lâmina avançou, atingindo certeiramente o braço de Wang. Porém, ao invés
de decepar o membro do Celestial, a lâmina o atravessou sem causar danos.
Tornando-se uma sombra imaterial, Wang avançou, conforme o ataque do
oponente passava através de seu corpo. Em seguida, retornando à forma
material, o Kage atingiu o peito do oponente com o cotovelo. Surial,
porém, nem recuou. Pelo contrário, avançou, como se o golpe de Wang
sequer o tivesse atingido. Surial atingiu Wang com o ombro, jogando-o no
chão, e então ergueu a foice para o golpe final.
Foi então que uma voz ecoou, sobressaindo-se em meio ao caos.
“JÁ CHEGA!”, exigiu Lúcifer Estrela da Manhã, que adentrava
pelo portal deixado aberto pelos invasores. Agora, ele portava consigo uma
grande lança prateada, ornada com uma lâmina negra e comprida. “Como
319
vocês ousam profanar minha casa e desobedecer a minha vontade?”. À
direita de Lúcifer estava Onesimus, à esquerda, Amazarak. Os três
adentraram o salão a passos rápidos, seus rostos sérios.
“Quem é o responsável por esta traição?”, exigiu saber o furioso
Onesimus.
“A estes Celestiais foi garantida a passagem segura por esta casa”,
disse Amazarak. “Nós exigimos uma explicação”.
Surial recuou de seu ataque imediatamente, fitando os recém-
chegados: “Meu senhor, mil perdões!”, ele repetia, sua voz claramente
demonstrando medo. “Azubah nos comandou até aqui, disse estar
obedecendo à sua vontade”.
“E vocês acreditaram?”, Onesimus disse erguendo a voz. Sua face
mostrava fúria, e ele ergueu a mão. A foice de Surial se partiu ao meio,
também explodindo nos cabos em que Surial a empunhava. Farpas de metal
penetraram nas mãos de Surial, que caiu de joelhos, suas mãos sangrando
inutilizadas. Os outros Caídos recuavam com medo, alguns caindo de
joelhos. “E quanto a vocês?”, gritou Onesimus, voltando-se àqueles que
ainda cercavam Ansgar, que estava caído no chão, lutando para se levantar,
ferido por diversas lâminas mas ainda consciente. Os Caídos ao redor de
Ansgar arderam em chamas negras, gritando de dor, e caindo de joelhos.
“Como ousam acreditar nas palavras daqueles que dizem fazer a vontade da
Estrela da Manhã, ainda que tenham ouvido dos próprios lábios de nosso
senhor que estes Celestiais não devem ser feridos?”.
“Chega, Onesimus”, disse Amazarak, calmamente segurando o
braço do companheiro. “Deixe que nosso senhor os julgue como for sua
320
vontade. Quanto a nós, devemos apenas oferecer cura, descanso e
desculpas a nossos convidados”.
“Ajuda-los?”, disse Onesimus, raiva em sua voz, mas então seus
olhos se encontraram com o olhar decidido de Amazarak. Imediatamente,
Onesimus baixou a voz e a cabeça. “Sim, senhor”. Onesimus caminhou em
direção a Ansgar, Karina, Fabrizia e Absolon, enquanto Amazarak se
aproximou de Al-Malik e Lo Wang. Asphael permaneceu aonde estava, em
pé, seus ferimentos já se curando, seus olhos dourados fitando a Estrela da
Manhã.
Próximo de mim, Millard, apoiando-se na parede, olhava com
terror aos recém-chegados. Lúcifer o fitou, o que apenas aumentou seu
medo. “Explique suas ações, Dominação Millard, dos Veritatis Alliatos”,
pediu a Estrela da Manhã.
“Meu senhor”, ele disse, “Azubah nos trouxe aqui, nos disse que
foste traído por seus convidados e que exigiu suas mortes, menos a do
Arcanjo Nicodemus. Eu tentei argumentar, mas as palavras dela foram
persuasivas. Mas, agora que está aqui, eu sinto que minha mente estava
sendo nublada por um poder maior”.
Uma risada se seguiu. Os presentes imediatamente fitaram Azubah,
que se erguia, rindo. Seu pescoço e sua boca sangravam, e seu corpo estava
ferido pelo impacto contra a parede, mas ela ria, gargalhava. A gargalhada
ecoava, se tornava mais poderosa, menos feminina, até se tornar a voz que
ouvi em minha mente, os sussurros que acompanhavam a voz da mulher.
“Quem é você?”, perguntou Onesimus, claramente assustado agora.
Ansgar, sendo curado pelo Caído, se levantava com dificuldade, mas
sussurrou: “Mais um deles. Não é possível...”.
321
“Pela Estrela da Manhã!”, murmurou Millard, ainda mais
nervoso e assustado.
Lúcifer deu um passo à frente, empunhando sua lança com ambas
as mãos, apontando a lâmina negra para a mulher. “Eu sabia que um de
vocês estaria aqui”, disse a Estrela da Manhã, seu olhar emitindo uma
poderosa luz vermelho-sangue.
A voz monstruosa de Azubah disse: “Estou grato por vê-lo
novamente, irmão. Já faz um bom tempo. Não fique nervoso com minha
presença, afinal eu fui convidado a entrar. Afinal, eu estive caminhando por
este mundo, atendendo os desejos tanto de mortais como de imortais. Eu
pude ouvir os desejos de muitos aqui, milhares desejando vingança,
dezenas de milhares desejando retribuir a dor que sofreram. Eu vim atender
a seus desejos”.
A voz de Lúcifer não se alterou, continuou séria, firme. “Lorde
Agliareth, você veio aqui apenas para impedir que minhas ações
atrapalhassem seus planos... Mas estes Celestiais agora são MEUS. Eles
não sairão de Oostegor, nem serão feridos por você e seus irmãos. Agora,
abandone minha casa”.
Um rosnado ecoou, conforme os olhos de Azubah brilharam em cor
amarela e sua boca se abriu, exibindo dentes pontiagudos. Uma língua
comprida, grossa, gelatinosa se estendeu para fora da boca, balançando
como uma serpente pendendo da boca da mulher. “Por que não conta toda a
verdade a eles, irmão? Porque não revela que estou aqui para que cumpra a
sua parte no pacto? Acha que impedindo que as condições ocorram estará
livre de sua obrigação?”.
322
Asphael fitou Lúcifer, o olho cauterizado se abriu, agora
curado. Ao mesmo tempo, Al-Malik se erguia, também olhando Lúcifer,
sua mão tocando a barriga, há pouco transpassada pela lâmina de Surial,
agora curada por Amazarak. Novamente, minha mente se enchia de
perguntas e dúvidas. Que pacto seria esse?
Lúcifer nada disse, apenas continuou a fitar a mulher, que agora
não mais parecia uma mulher. Sua pele se tornava como escamas de um
réptil, seus olhos eram como os de uma cobra, e grandes asas de dragão
nasciam de suas costas, rasgando-as. Sua altura já alcançava três metros, e
suas mãos agora tinham garras com trinta centímetros ou mais de
comprimento.
“Não tem nada a dizer, irmão?”, provocou a mulher-coisa. “Nada a
dizer sobre seus crimes? Nada a dizer de minhas provocações? Sua
pequena serva se entregou a mim, pois eu podia dar a ela o que ela tanto
queria! E, através das mãos dela, eu irei puni-lo por sua tentativa vã de
fugir ao pacto! Esta noite, sua preciosa Oostegor não existirá mais, e sem
Oostegor, a prisão destes tolos Celestiais não mais existirá. Eles serão
nossos, de uma forma... ou de outra”.
O monstro urrou, e o chão tremeu. Rachaduras começaram a se
formar sob os pés da criatura. A torre de Oostegor rangia, conforme seus
últimos momentos se aproximavam...
323
Capítulo 15: Verdade seja Dita
Rachaduras se espalharam pelas paredes e pelo teto do salão.
Pequenas quantidades de poeira caíram, e eu sentia a torre de Oostegor
tremer, como se estivesse sendo lentamente espremida por gigantescas
mãos invisíveis. Eu sentia a torre resistir, mas lentamente e
inexoravelmente o aperto dessas mãos parecia se tornar mais e mais forte,
aos poucos vencendo a resistência sobrenatural da torre.
Ansgar se erguia enquanto as rachaduras aumentavam. Ele ficou de
joelhos, mãos apoiando no chão, e observou aquilo que há pouco era
Azubah. A silhueta era vagamente feminina, mas não mais havia a beleza
de antes. Agora, em seu lugar estava uma monstruosidade escamada, seus
olhos de cobra fixados em Lúcifer. O Príncipe dos Caídos, porém,
permanecia parado, sua mão direita empunhando a lança de batalha ao lado
do corpo. Ele nada dizia, nada fazia, a não ser observar o demônio adiante,
que ria enquanto proclamava vitória.
“Como é possível?”, perguntou a si mesmo Asphael. “Mesmo uma
Caída não poderia ser possuída por um demônio! Como ele a tomou? Isso
não faz sentido”.
Amazarak, que acabara de curar Ansgar e agora corria em direção
de Karina, caída ali perto. “Ele a tomou porque ela se ofereceu a ele!”, o
ancião decaído disse.
Asphael se virou para Amazarak, surpreso, mas então voltou-se
novamente para o demônio que espremia Oostegor. Amazarak murmurou:
“Sem que soubéssemos, em algum momento o ódio de Azubah cresceu a
ponto dela desejar se entregar ao Inferno. Ela se tornou uma Luciferite, mas
não sabíamos disso”.
324
O demônio riu, conforme os tremores aumentaram. “Foi muito
fácil trazê-la a mim”, o demônio disse. “Pois eu sou aquele que realiza
desejos. Eu sou o Senhor dos Pecados, e ouvi os clamores de vingança
desta jovem. Sua posição na Corte Negra foi apenas uma pequena
vantagem, perto dos poderes que ela adquiriu ao longo de oito milênios. Eu
sabia que ela seria útil, e finalmente foi! Ela se tornou uma comigo”.
Absolon enquanto isso estava de joelhos, segurando a mão de
Fabrizia. A Xamã abriu os olhos, e murmurou o nome dele, fracamente.
Absolon tinha removido a lança que atravessava o peito da mulher, mas ela
ainda estava gravemente ferida. “Calma, Fabi... Você vai ficar bem”, o
Princeps disse, então voltando seu olhar para o demônio.
“Este é o verdadeiro propósito de cada Luciferite”, continuou o
demônio. “Eles se vendem em troca de poder e aceitação, se entregam por
ódio ou em nome de vingança. E aceitam que nós os fortaleçamos com
nossa própria essência. Não damos poder a eles, pobres tolos, nós os
tornamos nossos Avatares. Eles acreditam ser livres, mas nós falamos em
suas mentes, e seus corpos são nossos. Nós os deixamos ser livres, até o
momento em que achamos necessário nos manifestar. Esta é a terceira vez
na história que um de nós faz isso”. Então, voltando-se mais uma vez para
Lúcifer, o demônio proclamou: “Mas em breve, não mais necessitaremos
deles. Não mais iremos precisar desses bonecos de carne, desse Povo de
Lúcifer”.
Ouvi um estrondo, causado por um pequeno bloco de pedra que
caía do teto, partindo-se ao atingir o chão. “Eles não são meu povo, são
traidores”, respondeu Lúcifer. Sua face ainda estava inalterada e sua voz
não demonstrava medo, apenas raiva. “E estou cansado de ouvir você”,
325
disse a Estrela da Manhã, erguendo lentamente o braço esquerdo diante
do corpo, e mostrando a palma da mão ao inimigo. As tochas do local se
enfraqueceram, sua luz sendo consumida pela presença do Príncipe dos
Caídos. Uma penumbra sobrenatural obscureceu a sala, e em seguida, uma
aura vermelha circundou Lúcifer, emanando como chamas, mas a luz que
emitiam não se refletia no ambiente ao redor. Imediatamente, os tremores
cessaram e o ranger da torre parou. “Você está em meus domínios, Lorde
Agliareth, Senhor dos Pecados, e eu ordeno que saia imediatamente.
O monstro abriu os braços, mostrando suas garras, curvando o
corpo para a frente. Uma cauda longa e fina, que só agora eu percebia,
serpenteava atrás dele, e suas asas abriam-se por completo. Ele urrou, seus
olhos emitindo uma luz amarela, e então provocou: “Se quer me ver fora de
seu domínio, me expulse, irmão!”.
O demônio permaneceu onde estava, sua língua pegajosa
serpenteava para fora da boca, salivando uma espécie de veneno. Lúcifer
deu o primeiro passo, caminhando lentamente em direção ao oponente,
agora colocando a lança adiante do corpo, empunhando-a com ambas as
mãos.
Amazarak pegou Karina, já curada e consciente, mas ainda
atordoada e fraca, nos braços, e então gritou ao resto dos presentes: “Se
afastem, rápido!”. Absolon também se apressou para erguer Fabrizia e
correu para um dos portões do salão. Onesimus ajudava Al-Malik, já
curado, a se levantar, enquanto, para minha surpresa, Millard agarrou os
braços de Wang, ainda inconsciente, e começou a arrasta-lo para longe.
Surial se afastou rapidamente, e eu segurei Asphael pelo braço, pedindo
para apressar-se. Os passos lentos de Lúcifer eram como uma contagem
326
regressiva, conforme ele se aproximava do oponente. Os Caídos
presentes se esforçavam para se afastar, uns ajudando os outros.
Ainda que todos se afastassem, também a curiosidade nos forçava a
manter os combatentes em nossas linhas de visão. Como se há pouco não
tivéssemos nos enfrentado, Caídos e meus companheiros agora
permaneciam juntos, reunindo-se nos dois portões do salão. Apenas os mais
poderosos, Onesimus, Amazarak e Asphael, ousaram permanecer no
interior do salão, ainda que a uma distância considerável. Cinco passos
separavam Lúcifer e Agliareth. Entrei na sala, mesmo tomado pelo medo, e
me apoiei contra a parede, logo ao lado do portão. Quatro. A mão esquerda
de Lúcifer segurou a lança na ponta do cabo, enquanto a direita a segurava
na metade. A grande lâmina, com dois gumes, foi apontada na direção do
oponente. Três. O demônio gargalhou, provocante. Dois. Senti trevas e
penumbra se tocarem no mundo dos espíritos. Um. O demônio rugiu, e
então a batalha começou.
Lúcifer arremeteu-se à frente, libertando a lança de uma das mãos,
segurando-a apenas pela ponta do cabo, numa tentativa de perfurar o peito
do oponente. O demônio recuou um passo, e girou o corpo para a direita,
fazendo com que a lâmina da lança atravessasse o ar logo à sua frente. O
chão rachou com o passo da criatura, que então avançou, sua mão veio por
cima, caindo sobre Lúcifer, mas o Caído também recuou. As garras do
demônio atingiram o chão, partindo a rocha, lançando lascas para todos os
lados. Assim que o braço atingiu o chão, o demônio se apoiou nele, girando
o corpo na tentativa de atingir o Príncipe dos Caídos com sua cauda.
Lúcifer também girou o corpo, abrindo sua mão livre. Cauda e mão se
atingiram, emitindo um estrondo. A mão de Lúcifer agarrou a cauda e,
327
continuando o movimento circular do corpo, puxou o braço,
arremessando o demônio contra a parede do outro lado do salão. A parede
ruiu, erguendo uma nuvem de poeira. O impacto foi suficiente para o
demônio atravessar a parede e cair na sala adjacente.
Lúcifer mais uma vez empunhou a lança com ambas as mãos, e
então curvou o corpo, lâmina apontada para a frente, e correu em direção
do imenso buraco que foi aberto na parede. Um urro furioso ecoou, vindo
do buraco, e da nuvem de poeira emergiu Agliareth, saltando furiosamente.
Assim que os pés do demônio tocaram o chão, este rachou. Lúcifer
avançava, mas antes que alcançasse o Grande Lorde, ambas as mãos do
demônio atingiram o chão, ruindo-o. O chão sob Lúcifer, com mais de três
metros de espessura, ruiu como se fosse barro seco. Os Caídos e Celestiais
que estavam nos portões do salão lutavam para se afastar, conforme as
rachaduras se espalhavam e se aproximavam. Na confusão, alguns caíam e
eram pisoteados.
O Lúcifer caiu mais de seis metros, atingindo o solo do salão
abaixo. O Decaído rolou após atingir o chão, parando de joelhos. O
demônio saltou, seu impulso destroçando ainda mais o chão, e precipitou-se
sobre Lúcifer. Antes que a imensa forma da criatura esmagasse o Príncipe
dos Caídos, porém, a pequena forma de Lúcifer rolou para a direita. Assim
que o demônio atingiu o chão, este novamente ruiu. Ambos os combatentes
caíram no salão logo abaixo.
Corri para me aproximar da borda do buraco formado no salão, a
fim de ver a luta. Outros entre os expectadores se também aproximaram,
cautelosamente. O novo impacto de Agliareth com o chão criou mais
rachaduras, mas desta vez o piso resistiu e não ruiu. Lúcifer tentou se
328
levantar após a queda, mas o demônio, que caíra em pé, atacou antes.
As costas da mão do demônio atingiram o rosto de Lúcifer, jogando-o
longe. As costas da Estrela da Manhã atingiram uma parede, rachando-a,
mas não arrebentando-a. O demônio avançou contra Lúcifer. Para verem
melhor o combate, Asphael, Onesimus e Amazarak saltaram para o andar
abaixo. Resolvi segui-los, mas inseguro quanto à minha capacidade de
suportar uma queda de nove metros sem ferimentos, assumi minha Forma
Angelical, descendo suavemente.
Em seu avanço furioso, o demônio deixava suas pegadas na rocha,
emitindo seguidos estrondos. Seu urro se fortaleceu conforme suas garras
se aproximavam de Lúcifer, mas então o Caído ergueu sua mão esquerda.
Mesmo sem ser tocado pelo movimento de Lúcifer, Agliareth foi atingido
por um impacto fora do comum, tão poderoso que reverberou pelos salões,
rachando ainda mais as paredes. O corpo do demônio foi jogado pelo
impacto como se fosse uma folha ao vento. O pesado corpo do infernal
atingiu o chão com força, rolando em seguida. Os ossos de suas asas
quebravam conforme o pesado corpo rolava por cima delas. O demônio só
parou de rolar quando suas garras fincaram no chão e, num movimento
rápido, ele se pôs em pé novamente.
Mal o demônio se punha em pé, Lúcifer já avançava, erguendo sua
lança sobre a cabeça, empunhando-a apenas com a mão direita, na metade
do cabo. A escuridão e as chamas vermelhas da aura de Lúcifer se
concentravam na lâmina, que brilhava num vermelho intenso, cuja
intensidade se comparava apenas ao brilho vermelho dos olhos do Caído.
Num movimento rápido, o Príncipe dos Caídos arremessou a lança, que
traçou uma linha vermelha pelo ar obscurecido. A lâmina perfurou o peito
329
do demônio, que então urrou de dor, recuando dois passos. Lúcifer,
porém, continuou a avançar. Assim que estava próximo o suficiente, o
Caído saltou contra o inimigo, punhos abertos, emitindo um grito de guerra.
O punho esquerdo de Lúcifer se fechou em meio ao salto, conforme
sua trajetória se aproximava da face do inimigo. Esperava ouvir um
estrondo emitido pelo impacto seguinte, mas a mão do demônio se fechou
ao redor do braço direito da Estrela da Manhã. Em seguida, o demônio
puxou seu braço, parando bruscamente a trajetória do salto do Caído. Podia
jurar que tal movimento quebraria o braço de Lúcifer, mas aparentemente o
Caído nada sofrera.
O imenso demônio ergueu Lúcifer no ar pelo braço, e então bateu-
o, como se fosse um boneco inerte, contra o chão, ruindo-o. Antes que
ambos caíssem novamente num andar inferior, porém, o demônio saltou,
conforme o chão sumia sob seus pés, e abriu suas asas. Mesmo quebradas e
abrindo distorcidas, asas bateram, emitindo poderosas rajadas de vento. O
infernal ergueu vôo, passando por nós e continuando a subir. Ainda com
Lúcifer em suas mãos, o demônio agarrou também o outro braço do Caído,
e ergueu-o acima de sua cabeça. O vôo do demônio prosseguiu, usando o
corpo de Lúcifer para atingir o teto acima, atravessando-o. Não bastando
isso, o teto do outro andar também foi atravessado, e de um terceiro andar
também, sempre usando Lúcifer para absorver o impacto.
Tentando manter meus olhos na batalha, ergui vôo, seguindo a
trajetória de Agliareth. Asphael abriu suas poderosas asas, sua aura dourada
emanando forte, e fez o mesmo. A nós se juntou Ansgar, que empunhava
sua espada. Amazarak gritou para o esperarmos, mas não ouvimos.
330
Prosseguimos, eu usando meus braços para me proteger dos destroços
que caíam.
Conforme o corpo de Lúcifer atravessava o teto de um sétimo
andar, Agliareth urrava sadicamente, seu urro parecendo uma gargalhada
monstruosa. Com ambos os braços presos, o Príncipe dos Caídos puxou
suas pernas encostando seus joelhos em seu peito, e então chutou com toda
a força a face do demônio. O impacto reverberou pela torre, o pescoço de
Agliareth se quebrou, e o demônio, atordoado, largou seu inimigo, caindo.
Ambos precipitaram sobre nós, mas Lúcifer conseguiu se agarrar à borda
de um dos rombos abertos pelo oponente. Agliareth caiu como um cometa,
mal nos dando tempo de desviar. As asas de Ansgar quase foram atingidas
pelo demônio. Abaixo, o demônio atingiu com força o chão, quebrando
mais um andar da torre. Ele continuou a cair, mas antes que destruísse o
piso de outro andar, sua queda parou bruscamente. Olhei para cima, e vi a
Estrela da Manhã brilhando com intensidade. Uma das mãos segurava
firmemente na borda do buraco no teto, impedindo que ele caísse. A outra
parecia agarrar seu oponente, impedindo-o de continuar a destruição da
torre. Em seguida, Lúcifer abriu a mão, e Agliareth caiu sobre o piso,
rachando-o, mas não o destruindo.
“Agliareth sabe que, como um Avatar, não pode vencer Lúcifer
diretamente”, murmurou Asphael, conforme nós pousávamos num dos
andares atravessados pelos combatentes. “Por isso, está usando a batalha
para destruir Oostegor”. Abaixo, Agliareth se erguia, sempre fitando o
oponente. Acima, a Estrela da Manhã intensificou seu brilho e se jogou
pelos vãos abertos, caindo rumo ao inimigo. Agliareth preparou suas garras
para interceptar a queda do oponente, antes que o Caído o atingisse.
331
O punho de Lúcifer se fechou novamente, conforme ele caía
pelos andares destruídos. As garras de Agliareth traçaram o ar,
atravessando em cheio a cabeça do Caído. Porém, ao invés de penetrarem
na carne e crânio do oponente, as garras passaram diretamente, sem nada
tocar. Tornando-se uma forma indistinta, quase uma nuvem de brilho
avermelhado, Lúcifer passou ileso pelo ataque de Agliareth, pousando
suavemente no chão logo à frente do inimigo. Então, o punho de Lúcifer
avançou, tornando-se material, e atingindo em cheio o estômago do
demônio. A criatura recuou com o impacto. Suas passadas pesadas
rachavam o piso. A Estrela da Manhã ergueu a mão direita, e novamente
um impacto poderoso atingiu o demônio, jogando-o longe. Ouvi um
segundo estrondo, provavelmente causado pelo impacto de Agliareth contra
uma parede. Amazarak e Onesimus saltaram para baixo, assim que Lúcifer
sumiu de vista, correndo na direção em que arremessou o oponente. Eu,
Asphael e Ansgar descemos o mais rápido que pudemos. Alguns dos
Caídos que observavam a luta correram na direção das escadarias para
também descer.
Assim que alcançamos o piso do andar em que a batalha
prosseguia, eu vi um buraco na parede próxima. Do salão adjacente,
vinham os sons da batalha. Nós e os Caídos corremos em direção ao
buraco, e vislumbramos o combate continuar.
Desta vez, Lúcifer recuava, conforme o inimigo avançava, suas
garras iluminando-se em chamas negras, seus movimentos ainda mais
rápidos do que antes. Desarmado, o Caído tentava se manter longe do
alcance dos longos braços do inimigo. Numa dança violenta, com
movimentos rápidos e precisos, ambos os combatentes lutavam naquela
332
penumbra. O demônio cuspiu uma rajada de chamas negras, fazendo
Lúcifer recuar ainda mais. Em seguida, Agliareth urrou, curvando o corpo
para a frente, e abrindo bem os braços. O urro atingiu Lúcifer como facas
cortantes, criando rasgos em suas vestes e cortes em sua carne, partindo a
rocha do chão e do teto. Lúcifer, arremessado pelo impacto, atingiu a
parede atrás de si, atravessando-a. O demônio avançou, deixando um rastro
de pegadas flamejantes atrás de si.
Corremos atrás de Agliareth, conforme sua imensa forma atingiu a
parede, aumentando o buraco formado pelo impacto de Lúcifer. Adiante
estava uma câmara menor, mais escura, por onde passam as escadarias que
circunda Oostegor. Lúcifer se erguia, mas as garras flamejantes do
oponente penetraram seu peito. Mesmo atingindo o inimigo, Agliareth
continuou avançando, fazendo o Caído, empalado pelas garras, atingir a
parede logo atrás. Esta parede se quebrou, e ambos os oponentes caíram no
vazio além, deixando a torre de Oostegor.
Corri em direção ao rombo. Caídos vinham pela escada, parando
nos vitrais para ver a batalha que transcorria ali fora. Um rastro de fogo
negro erguia-se no espaço negro acima da Cidade Eterna. Abaixo, eu via
multidões se movimentarem, tentando ver o espetáculo. O demônio voava
para o alto, Lúcifer ainda preso às suas garras. O demônio fez um
movimento rápido com a mão, traçando um arco para o alto. Com este
movimento, Lúcifer foi arremessado a dezenas de metros para o alto, seu
corpo girando desgovernado no espaço negro.
O urro do demônio ecoou por toda a Cidade Eterna. Chamas se
formaram ao redor do Infernal, que então voou em grande velocidade na
direção do indefeso inimigo. As garras de Agliareth atingiram a Estrela da
333
Manhã, interrompendo sua queda e arremessando o Caído ainda mais
para o alto.
Asphael gritou: “Lúcifer não tem chance fora do solo”. Onesimus,
porém, agarrou o ombro do Arcanjo, interrompendo-o. “Ele está longe de
estar indefeso”.
De fato, enquanto o Infernal fazia um loop no ar para aumentar a
velocidade e atacar novamente o Caído, Lúcifer parou de repente,
interrompendo sua trajetória desgovernada. A aura da Estrela da Manhã
intensificou e, para minha surpresa, asas luminosas se formavam nas costas
do Caído. “Como é possível?”, indaguei a mim mesmo, meus olhos
arregalados. Não era uma asa de carne e penas, mas sua aura criando uma
asa de trevas, circundada de luz vermelho-sangue. Os olhos de Lúcifer
brilharam quando Agliareth ascendeu em sua direção, e o Caído levou a
mão direita para a esquerda de seu corpo, em seguida trançando um arco de
luz vermelha diante de si, conforme puxava a mão de volta para a direita. O
demônio gritou em dor, sua ascendência parando bruscamente, conforme
um arco de luz idêntico surgiu diante de seu peito. A lança de Lúcifer, até
então presa ao peito do demônio, arrancou-se, sendo puxada pelo arco de
luz, rasgando ainda mais a carne do demônio. Imediatamente, a lança
surgia na mão de Lúcifer, puxada por ele. O arco era um portal.
O infernal começou a cair após o último ferimento. “Agora que o
inimigo não mais está em Oostegor”, continuou Onesimus, “meu mestre
não precisa mais se preocupar com a destruição de sua casa”. Lúcifer
avançou contra o corpo decadente do inimigo, a lâmina da lança à frente de
seu corpo. Os dois oponentes se chocaram em pleno ar, e o demônio urrou
conforme a lança penetrava seu pescoço. Mais ainda, o urro prosseguiu,
334
conforme ambos, impulsionados pela Estrela da Manhã, caíram sobre a
Cidade Eterna, deixando um rastro vermelho no espaço negro. Os dois
inimigos caíram sobre um domo, causando uma onda de choque poderosa.
O domo ruiu, erguendo uma nuvem de poeira e lançando escombros a
centenas de metros de distância. A poeira nem tinha começado a baixar
quando vi uma forma, provavelmente o demônio, ser arremessada para fora
da nuvem, atravessando diversas casas e um prédio, que ruiu com o
impacto.
Tentei me jogar pelo buraco na parede da torre, a fim de voar em
direção à batalha. Porém, senti uma força me impedir. Como se atingisse
uma parede invisível, meu corpo recuou atordoado. Asphael me segurou,
impedindo que eu perdesse o equilíbrio e caísse. “Não podemos deixar
Oostegor”, Asphael murmurou, “enquanto Lúcifer não nos liberar”.
Um outro estrondo ecoou, vindo da Cidade Eterna. Porém, não
olhei para a batalha, e sim para trás, conforme senti algo se formar atrás de
nós. Meu coração parou e senti um calafrio. No mundo dos espíritos,
pressenti uma grande escuridão. E, sem me surpreender, uma voz
monstruosa ecoou nas mentes de todos que estavam próximos a mim. “É
exatamente isso que eu esperava que ocorresse”, a voz disse. Era a voz de
Agliareth.
Em terror, eu, meus companheiros que estavam presentes e os
Caídos próximos fitamos a criatura que nos observava da sala adjacente,
através dos buracos formados na batalha. A criatura movia-se sem emitir
som algum, e mesmo sua voz ecoava apenas em nossas mentes. Sua forma
era vaga, era como um ser transparente, a luz refratava ao atravessa-lo,
dando-lhe um contorno luminoso como se ele fosse feito de gás ou líquido.
335
Sua forma era indistinta, mas semelhante à forma demoníaca que lutava
com Lúcifer naquele exato momento. “Agora que a Estrela da Manhã pensa
que está me derrotando, mantendo-me longe de sua fortaleza, eu posso
conseguir aquilo que realmente vim buscar”.
A criatura avançou, estendendo o braço à frente do corpo,
mostrando a mão aberta, seus dedos com garras pontiagudas. Ansgar emitiu
um grito, sua espada iluminando-se em chamas celestes. Num salto, o
Venator alcançou o demônio, desferindo um golpe que atravessou o
pescoço da criatura. O demônio, porém, nada sofrera, e continuou a
avançar. Sua mão se aproximava de minha face, conforme o corpo
translúcido do demônio passava através dos muitos Anjos Caídos em seu
caminho, sem feri-los. Asphael tentou agarrar o pulso do demônio antes
que sua palma me alcançasse, porém também a mão de Asphael atravessou
o demônio sem poder toca-lo. Assim que a palma da mão do infernal
alcançou meu rosto, sues dedos cortantes envolveram minha cabeça.
Embora ninguém pudesse tocar Agliareth, para mim ele era tão sólido
quanto rocha.
Embora até então a criatura fosse transparente, minha visão foi
bloqueada quando sua mão agarrou minha cabeça. Senti o monstro me
puxar com força, me erguendo do solo. Senti como se meu corpo batesse
com violência contra uma superfície d´água. Porém, meus sentidos me
diziam que na verdade eu tinha atravessado a barreira que separa matéria e
espírito. Pude perceber as emanações do mundo espiritual, obscurecidas
pela presença do demônio. Oostegor emanava tristeza e solidão, seus
espíritos murmuravam parcialmente insanos, abandonados e sozinhos.
Assim que fui puxado para o mundo dos espíritos, senti a mão de Agliareth
336
me libertar, conforme fui jogado violentamente contra o chão.
Instintivamente, retornei à Forma Humana, fazendo desaparecer minhas
asas, antes que eu atingisse o piso.
Meu corpo rolou com o impacto, sofrendo múltiplas escoriações.
Meus olhos se abriram assim que parei de rolar, e fitei as paredes decrépitas
da versão espiritual de Oostegor. “Dentro de você”, disse Agliareth em
minha mente, “está a chave para libertar a todos nós”. Fitei o demônio,
agora um pouco mais sólido, como se fosse semimaterial. Sua forma era
sólida, claramente discernível, mas levemente transparente, indicando que
o que estava à minha frente era apenas seu espírito, não seu corpo. Ele era
ligeiramente diferente da forma de Azubah, seu corpo claramente
masculino, sua face parecendo com uma mistura de rosto humano e
crocodilo. Ao contrário da forma de Azubah, ele tinha chifres, e era menor,
tendo pouco mais de dois metros de altura.
“Lúcifer tinha razão”, murmurei. “Vocês não têm como encontrar
Veritatis sem mim!”.
O demônio se aproximou. “Lúcifer é um mentiroso”, sua voz
surgiu em meus pensamentos. Sua face não se movia. “Um mentiroso que
acredita nas próprias mentiras que conta, um ser incapaz de falar a verdade.
Por acaso, teria ele contado a respeito do pacto que fez?”.
Tentei escapar da mão de Agliareth, que se aproximava de mim.
“Que pacto?”, perguntei. Neste momento, a mão do demônio agarrou meu
pescoço, pressionando-o firmemente.
“Quando a hora chegar, Lúcifer fará a parte dele. Este é o pacto do
qual ele tentou escapar. Este é o destino que ele tenta evitar. Ele não deseja
o melhor para vocês, nem a salvação de seu precioso Primus desaparecido.
337
Ele é um tolo que faz acordos por poder, pensando que pode escapar de
suas obrigações”. Os olhos do demônio se encontraram com os meus.
Fiquei em silêncio, pensando no que poderia fazer. No canto de
minha visão, vi uma forma materilizar-se. Uma forma masculina, poderosa,
que avançou contra o demônio. Unindo ambas as mãos unidas, Asphael,
agora também no plano dos espíritos, atingiu com violência o ombro de
Agliareth. A criatura cambaleou para a direita, mas não perdeu o equilíbrio
nem me soltou. O demônio se virou para Asphael.
“Pobre criatura”, disse o Grande Lorde, “eu não tenho a intenção
de lidar com você”. O chão tremeu, conforme escuridão parecia brotar de
rachaduras, crescendo rapidamente na forma de tentáculos. Antes que
Asphael pudesse reagir, um tentáculo o atacou por trás, envolvendo sua
cabeça, tapando sua boca. Outros envolveram seus braços e pernas. Pouco a
pouco, a escuridão crescia sobre Asphael. Das trevas, criaturas parecidas
com aranhas se formavam. Suas centenas de olhos vermelhos fitavam o
Arcanjo.
Enquanto Asphael lutava para escapar dos tentáculos de trevas,
Agliareth me fitou novamente. “Dentro de você estão as respostas que
procuro. Onde meus irmãos falharam, eu clamo vitória!”. Senti algo
estranho, uma sensação de estar me afogando. O olhar de Agliareth brilhou
com intensidade e senti o aperto em meu pescoço diminuir. Foi quando
percebi que uma névoa densa emanava da boca do Grande Lorde. Essa
névoa me envolvia e adentrava pela minha boca, preenchia meus pulmões.
Meu corpo todo doía, e sentia meus sentidos lentamente se apagarem.
Asphael gritou quando conseguiu livrar a boca da massa densa de
trevas. Com força, ele arrancava os tentáculos, arrebentando-os. Suas asas
338
se abriram, seu corpo emanou luz dourada. Aos poucos, as trevas iam
queimando, tornando-se fumaça.
Diante de mim, Agliareth se tornava mais e mais translúcido. De
repente, a pressão em meu pescoço desapareceu por completo, e caí no
chão. Sem forças, tombei de joelhos.
As aranhas atacavam Asphael vorazmente, conforme mais e mais
tentáculos surgiam para impedir seu avanço. Asphael caiu, mas continuava
lutando, tentando me alcançar. De repente, seu corpo brilhou ainda mais. O
Arcanjo gritou meu nome: “MESTRE NICODEMUS!”. Então, houve uma
explosão, e um clarão tão intenso que perdi minha visão. A explosão não
me feriu, nem senti qualquer impacto. Porém, com ou sem ela, eu já não
tinha mais forças, e tombei, meu peito batendo contra o chão frio.
Conforme o clarão desaparecia, eu via Asphael correr até mim. As
trevas e criaturas tinham sumido. Porém, quando o Arcanjo tocou minha
cabeça e tentou me erguer, as últimas forças deixaram meu corpo. Houve
apenas escuridão. Até mesmo os gritos de Asphael desapareceram,
conforme se tornavam cada vez mais distantes.
Em seguida, não senti nada. Não havia mãos me segurando, nem
um chão para me apoiar. Não estava quente nem frio, nem havia luz ou
sombra. Ouvi uma gargalhada infantil e vozes de alegria, que logo em
seguida se tornaram choros desesperados e gritos de ódio. Alguém, uma
criança, orava a Deus, pedindo que seu anjo da guarda a protegesse esta
noite. Ao mesmo tempo, um homem reclamava por já ser manhã e ter de
acordar. Senti medo e felicidade, tristeza e pesar. Um casal de namorados
declarava seu amor, enquanto uma mulher chorava ao apanhar de seu
marido. Alguém sonhava com o presente que ganharia em seu aniversário,
339
enquanto outra pessoa se preocupava com a perda de seu emprego.
Teorias científicas e ritos mágicos eram pronunciados ao meu redor. Não
era uma voz, nem duas, nem uma dezena ou uma centena. Eram milhões de
vozes, bilhões, formando uma cacofonia ensurdecedora, enlouquecedora.
Abri meus olhos, vendo apenas uma paisagem branca, sem solo ou céu,
infinita. Ao meu redor, imagens se formavam. Eram sonhos, pesadelos e
desejos. E vi rostos conhecidos e desconhecidos, ouvi palavras de
preocupação.
Eu já tinha ouvido falar deste lugar. Enquanto flutuava sem rumo
no vazio eterno, tentava desesperadamente tapar meus ouvidos para não
ouvir as milhões de vozes. O plano das idéias. O mundo astral. Sim, já ouvi
falar deste reino. Aqui, cada pensamento da humanidade ecoava. Aqui se
formam sonhos e pesadelos. Aqui está toda a memória da criação. Alguns
místicos podem acessar esses pensamentos para adquirir conhecimento,
mas ninguém a não ser o mais insano dos magos ousa tocar este plano por
mais do que alguns segundos. Nada pode sobreviver em meio aos
pensamentos de bilhões de seres humanos.
Foi quando adiante de mim vi meu reflexo. Ao contrário de mim,
ele estava calmo, controlado, seus olhos fechados. Por um instante, as
vozes cessaram, e perguntei: “Quem é você?”.
Meu reflexo agarrou-me pelo colarinho, seus olhos abriram-se,
emanando chamas. E então, as milhões de vozes falaram como se fossem
uma só voz: “Eu sou Agliareth, Senhor dos Pecados, e estamos no limite da
criação. Este é o reino das idéias, a última camada entre a criação e o Nada
Além. É um plano etéreo, sem forma, sem matéria. Nada que possa existir
no mundo da carne pode existir aqui, e mesmo as criaturas que aqui nascem
340
não podem interagir a não ser em sonhos e pesadelos com os vivos.
Este é o limiar entre o ser e o não ser, uma camada mal formada que separa
Tudo e Nada”.
“Porque estamos aqui?”, pensei.
“A barreira que Uriel ergueu não se estende a este semi-plano.
Aqui, meus poderes são quase tão plenos quanto em meu Reino. Por
milênios percorri este plano, ouvindo os pensamentos e desejos da
humanidade. Mesmo antes da barreira, eu vinha aqui para encontrar aqueles
que me serviriam. A partir deste plano, seus sonhos e pesadelos eram meus,
e a partir deste conhecimento, pude compreender a verdadeira natureza do
homem. Aqui, Arcanjo Nicodemus, eu sou supremo. Aqui, entre o Tudo e o
Nada, eu sou rei! E você agora é meu brinquedo”.
“Não”, pensei em desespero, lutando para me livrar do toque do
demônio. Assim que as mãos da criatura me soltaram, a cacofonia de
bilhões de vozes voltou a invadir minha cabeça. Eu gritei em desespero,
incapaz de suportar aquela invasão. Minha alma parecia tremer e queimar,
tamanha era a força emitida pelos pensamentos da humanidade. Eu flutuava
desgovernado, girando sem rumo pela eternidade.
Meu vôo desgovernado foi impedido, porém, quando senti algo me
envolver. Eu estava sobre uma palma de uma mão gigantesca. À minha
frente, Agliareth, agora na forma de um imenso dragão, olhava para mim.
As bilhões de vozes novamente falaram como um só ser: “Aqui, você não é
nada, Celestial. Aqui, sua mente é um livro aberto para mim, escrito na
mais clara e direta linguagem. Há apenas uma única informação que desejo,
porém”.
341
O dragão fechou sua mão, me envolvendo em escuridão.
Quando a escuridão desapareceu, estava novamente à minha frente meu
reflexo, segurando-me pelo colarinho. Seus olhos flamejantes fitaram os
meus e então por um instante me largou. Antes que eu pudesse me afastar,
voltando à enlouquecedora cacofonia, porém, suas mãos envolveram minha
cabeça. Os polegares tocaram as minhas bochechas, enquanto as pontas dos
demais dedos encostaram-se a meu rosto. E então, senti os dedos do Grande
Lorde penetrarem minha carne e crânio. Eu tentei gritar de dor, mas não
conseguia. Sequer podia me debater.
Conforme a dor se tornava mais forte, ouvi trovões e o rugido do
tigre. Minha mente voltou no tempo, trazendo flashes de um passado
distante. Revi, por um segundo, minhas experiências arcanas em vida e, em
seguida, me vi morrer novamente, vítima dos meus próprios atos tolos. Vi-
me na escuridão, cercado por seres de luz, e uma voz me dizia que eu era
especial. Vi-me renascer. E, um a um, vi os desafios que superei durante
meu século de existência celeste. Ouvi novamente os trovões. Com as
forças que me restavam, eu tentava impedir que o demônio alcançasse meu
sonho. Eu tentava esquecer o sonho, mas quanto mais me esforçava, mais
claramente a visão surgia em minha mente.
O sonho veio. A dor impediu que eu pudesse resistir mais. O
demônio finalmente tocou aquilo que estava guardado dentro de mim... E vi
uma grande praça, em uma imensa cidade cheia de mesquitas e esplendor.
E ecoaram, trazidos pelo vento, gritos de dor. Pessoas estavam sofrendo.
Um rosnado inconfundível se seguiu, um rosnar de tigre. E vi paredes de
pedra manchadas com sangue. Um tigre feroz matando pessoas, uma a
uma; suas garras e presas dilacerando carne e partindo ossos; gritos de
342
morte e horror. Então, o tigre correu por um imenso deserto, raios e
trovões o seguiam, e sua sombra projetava uma escuridão ilimitada.
A passos rápidos, o animal atravessou a vastidão árida, rumo a uma
grande montanha. Como se visse através dos olhos do animal, o vi escalar
aquela montanha, sem que nenhum obstáculo pudesse desacelerar seu
progresso. E, do alto da montanha, contemplei uma cidade cujas glórias do
passado já haviam se extinguido, em cujas ruas dois irmãos atacavam-se
com paus e pedras. E senti pulsar nos subterrâneos daquela cidade um mal
muito grande, que inspirava a violência nas ruas. E vi ali uma via
manchada com sangue. E vi sombras do passado percorrendo-a, homens
carregando cruzes nas costas e espinhos na cabeça, sob a vigília de oficiais
romanos e diante de uma multidão feroz, que se deliciava e se horrorizava
com a visão dos condenados à crucificação.
Raios e trovões seguiram-se, conforme a cidade de antigas glórias
foi encoberta por nuvens escuras. E o tigre rugiu, fitando o horizonte. E vi,
além do horizonte, além do mar... eu vi... fogo.
Senti meu corpo queimar por dentro, por inteiro, como se minha
alma estivesse sendo destruída. Gritei. Um som de desespero foi emitido
pelo minha boca, conforme sentia meu corpo inchar, como se algo
insuportavelmente causticante surgisse em mim. Meu grito foi tão forte que
o Grande Lorde me soltou, afastando-se em confusão, seus dedos saindo de
minha carne como se eu fosse feito de argila. Abri meus olhos, e fitei meu
corpo queimar. Eu estava envolto em chamas. Meu grito atormentado
tomou todo o plano astral, ecoando infinitamente. Senti algo entalar em
minha garganta, engasguei. Mas então, conforme a necessidade de vomitar
me tomou, liberei aquilo que estava dentro de mim.
343
E, com o horror, o demônio, usando minha face, recuou.
“Não”, milhões de vozes gritaram, “não é permitido que você esteja aqui!”.
As chamas saltaram de minha boca, expandindo e tomando forma. E, entre
eu e o demônio, surgiu um colosso gigantesco, que fazia minúscula mesmo
a forma dracônica que o demônio usara há pouco. Sua luz emanava por
todo o vazio infinito, suas asas imensas eram puro fogo, e sobre a cabeça
estava sua coroa. À mão estava uma espada de chamas, que ele usou para
apontar para a forma diminuta do demônio. Metatron nada disse, apenas
fitou o inimigo. “Você não pode protegê-los sempre! Você não tem poder
dentro da criação! Avise ao seu Criador, se é que ele ainda vive, que não
importa o que façam, nosso momento ainda chegará!”. Metatron ergueu a
espada, mas antes que pudesse atacar, Agliareth urrou, sua forma tornando-
se uma multitude de morcegos e insetos, espalhando-se pelo infinito,
desaparecendo segundos depois.
Eu flutuava inerte pelo infinito, minha alma ardendo em dor. Meus
olhos se fechavam, lentamente, conforme a cacofonia voltava a me atacar.
Metatron virou-se para mim, estendendo sua mão. Eu caí em sua palma. E,
conforme a dor sumia e a mão de Metatron se fechava, ouvi sua voz:
sussurrando como uma brisa suave, podendo ser ouvida apenas no meu
subconsciente. “Sinto muito por tudo o que você tem de passar. Sinto muito
por ter de colocar tamanho fardo em suas mãos. Mas saiba que você não
está sozinho. Nenhum de vocês nunca está sozinho”.
Escuridão se seguiu. E um confortável silêncio.
Ouvi um som de água corrente... Meus olhos se abriram
lentamente. Uma luminosidade fraca os atingiu, fazendo-os piscar. Senti
meu corpo fraco, meus braços caíam sem força ao meu lado. Eu estava nos
344
braços de Asphael. À minha frente, estavam os meus companheiros,
todos eles. Meu olhar os percorreu, um a um, todos expressando
preocupação. Millard estava com eles, assim como Onesimus e Amazarak.
Ali perto, estava Surial. Estávamos novamente no salão principal de
Oostegor, o som de água vinha do portão das termas, que estava aberto.
Outros Caídos estavam por perto.
“Você está bem, Mestre Nicodemus?”, perguntou Asphael, pondo-
me no chão. Minhas pernas fraquejaram, mas Asphael me ajudou a manter-
me em pé.
“Sim”, eu disse, minha voz ainda fraca. “Minha mente deixou meu
corpo, estive à mercê do demônio, mas fui salvo”.
“É um homem especial, Philipe Nicodemus”, a voz de Lúcifer
ecoou pelo salão. Virei-me para o Príncipe dos Caídos, que adentrava. Suas
roupas tinham vários rasgos e seu sangue manchava o tecido. Sua lança
também pingava sangue, mas a Estrela da Manhã em si parecia intocada,
seu cabelo perfeito, seu rosto limpo, sua face inalterada pela batalha que
acabara de enfrentar. “É de fato um ser que tem mais do que mostra e é
mais do que sabe”, Lúcifer murmurou.
Encarei a Estrela da Manhã. O salão estava bem iluminado, a aura
vermelha do Príncipe dos Caídos já tinha desaparecido. “Lucibel, você
precisa nos dar permissão para deixar Oostegor”.
“Depois de tudo o que ocorreu?”, perguntou Lúcifer. “Será que
vocês são incapazes de entender que, se continuarem, darão a eles o que
desejam?”.
“Sim, eu entendo”, respondi. Mesmo fraco, me esforçava para
erguer a cabeça e encarar os olhos frios de Lúcifer. “Entendo que apenas eu
345
tenho o conhecimento que eles desejam. Entendo que a única forma de
conseguirem tal conhecimento é mantendo-me sob vigilância. Entendo que,
se deixar Oostegor, serei uma presa fácil para o tigre”.
“E ainda assim, quer continuar em sua missão? O que o faz
acreditar que pode supera-los? O que carrega em si para ter tamanha
confiança?”, a Estrela da Manhã indagou.
“Eu sei que não estarei sozinho”, respondi, sem desviar meu olhar.
Lúcifer parou, sua expressão mudou de frieza para desgosto. “Fé”,
ele disse, “Só a fé o mantém nessa busca. A mesma fé que ensinam aos
mortais. A mesma crença infundada, baseada no impossível, facilmente
corruptível. Ainda assim, acreditam nessa besteira”.
“Eu não entendo como um Primus pode dizer isso”, respondi.
“Você com certeza viu muitas maravilhas em sua existência. Viu e
acreditou”.
“Ser traído abriu meus olhos”, respondeu Lúcifer, com rancor.
“Mas verdade seja dita, o que me pede é uma tolice. Você é como uma
criança que deseja contrariar o pai por pura inocência. Vocês próprios
sabem que, por mais que tentem guiar os mortais, eles os ignoram
simplesmente por ignorância. Por acreditarem que são donos de si, por
pensarem que são livres, preferem sacrifícios e dor à proteção daqueles que
são mais sábios e mais experientes. Vocês são para mim como os mortais
são para vocês. Vocês são para mim o que uma criança é para um pai. Eu
não permitirei que deixem este lugar para sacrificarem tudo. Eu não vou
deixar que esta fé cega, esta ignorância traga morte e destruição”.
“Assim como quis fazer com os mortais? Conduzi-los pela força,
pelo medo, por ser mais forte?”, indaguei.
346
Os olhos de Lúcifer Estrela da Manhã brilharam vermelhos. “É
assim que deve ser. Pelo futuro, é preciso conduzi-los, impedi-los de tomar
as decisões que os ferirão. E assim será com vocês. Vocês não têm a menor
chance de serem vitoriosos”.
Argumentos escapavam de minha mente. Embora minha convicção
me dizia que Lúcifer estava cego pelo orgulho, pela crença que conhecia o
único caminho correto, eu não sabia como convencê-lo, como vencer essa
barreira entre mim e ele. Antes que eu pudesse falar algo, porém, a voz
feminina de Karina se ergueu: “Mas você pode!”.
O brilho nos olhos de Lúcifer desapareceu imediatamente. Ele se
voltou para Karina, ainda olhando com frieza. A jovem se aproximou, a
passos lentos, um pouco temerosa. “Você pode enfrenta-los. Você sabe o
que eles querem. Você os entende melhor do que nós”. Uma lágrima caiu
pela face da Supervivente.
“O que está dizendo?”, perguntou Lúcifer, demonstrando surpresa.
“Por favor, nos ajude!”, Karina pediu. “Venha conosco. Você já foi
um de nós, já foi um dos maiores entre nós! Mesmo que não queira estar
com os outros no Éden, por favor, nos ajude!”.
Lúcifer recuou, esperando tudo, menos uma súplica. “Por quê...?”,
ele murmurou, então erguendo a voz: “Por que eu os ajudaria?”.
“Você fala em ajudar”, disse Karina, “fala em se preocupar com o
futuro, em nos guiar. Então nos guie! Você fala em ser como um pai, então
nos acompanhe como um pai faria! Um pai que ama seus filhos saberia
estar ao lado deles quando eles precisassem”. A Supervivente falava quase
chorando, talvez pela emoção de suas palavras, talvez pela tensão que se
formou ao longo desta noite infernal. Suas lágrimas escorriam, seus olhos
347
fitavam Lúcifer Estrela da Manhã, deixando-o surpreso, sem resposta.
“Se não somos grandes o suficiente para caminharmos sozinhos, caminhe
conosco. Por favor, nos ajude!”.
Lúcifer virou as costas para Karina, talvez por ser incapaz de fita-
la, talvez por sua mente se lembrar de um tempo há muito esquecido,
quando ele jamais negaria um clamor como este. Então, para minha
surpresa, as palavras de Lúcifer vieram fracas, murmurantes: “Há certas
decisões que não têm volta, há certos erros que não podem ser corrigidos.
Vocês estão livres para ir. Mesmo que falhem, esta foi a escolha de vocês,
lembrem-se disso. E me perdoem pelo que terei de fazer em breve”. Dito
isso, Lúcifer se afastou, diante dos olhares perplexos dos Caídos presentes.
O Príncipe dos Caídos saiu silenciosamente, subindo as escadas que
levavam ao andar superior do salão.
Amazarak sorriu, murmurando: “Já faz muito tempo que alguém
conseguiu tocar Lucibel”. O ancião pediu que Onesimus cuidasse de
Oostegor, então se voltou a nós: “Venham, meus amigos, eu os levarei até a
saída”.
Deixamos os portões de Oostegor, atravessando o jardim de
estátuas. A escuridão acima envolvia a Cidade Eterna, novamente
silenciosa e plácida. Pelas ruas, multidões de Anjos Caídos observavam a
destruição causada pela batalha. Prédios ruíram, casas foram destruídas,
monumentos foram irreparavelmente danificados. Deixávamos para trás a
torre negra de Oostegor, um monumento solitário, delineado por milhares
de tochas, como se fosse um atestado ao ar depressivo e solitário do lar dos
Anjos Caídos.
348
No meio do caminho, Absolon perguntou a Amazarak: “Senhor
Amazarak, posso fazer uma pergunta a você?”.
“Claro, jovem Princeps”, disse Amazarak.
“Você não é como os outros, parece mais um de nós”, disse
Absolon, “porque ainda é um Anjo Caído?”.
“Não tenho certeza se posso voltar ao Éden, nem se quero, jovem
Princeps”, disse Amazarak. “Talvez me aceitem, mas meu medo está
sempre me dizendo que não. De qualquer forma, não acho que devo
abandonar a Corte Negra. Eles precisam de mim”.
Asphael concordou. Então, Al-Malik disse: “Pode se considerar um
Puro, Amazarak, pois a marca em sua testa sumiu há muito tempo. Me
surpreendi quando pela primeira vez vi você”.
Amazarak olhou surpreso para Al-Malik. “Então, é ainda mais
importante que eu fique, para ajudar os meus irmãos a encontrarem paz.
Um dia, Al-Malik, eu fui como Azubah, me vendi. Por milênios, fui
consumido por orgulho e ódio, até que, em um momento, senti que não
restava mais nada em mim. Como lenha, tudo o que eu tinha foi queimado
pelo meu ódio, pelo meu senso de vingança. Foi então que decidi expurgar
os demônios dentro de mim”.
“Foi um Luciferite?”, perguntei, surpreso. “Pensei que eles não
tinham mais salvação”.
“Mesmo demônios têm salvação, Philipe Nicodemus, mas nem
todos eles. Eu fui uma exceção... Sinto, bem no fundo, que desde o começo
não era meu destino ser um deles, houve uma hora que percebi que estar
com eles era como ser nada”.
349
Naquele momento, subíamos as escadarias que levavam às
cavernas para fora da Cidade Eterna. Assim que subimos a escadaria,
chegando ao topo, eu me virei para fitar aquele lugar pela última vez.
Nuvens de poeira e fumaça ainda se erguiam, resquícios da batalha recente.
Então eu disse a Amazarak: “Realmente, acho que você tem que guia-los”.
Amazarak retrucou, como se murmurasse a si mesmo: “Digo-lhes
que só me sentirei pleno quando tiver expurgado os demônios de Lúcifer
também. Meu mestre é um bom homem, eu o acompanho desde o começo,
sei o quanto sofre com as decisões que tomou”. Então, ele se virou para a
caverna, esticando o braço esquerdo à frente do corpo. “É hora de vocês
irem... Boa sorte em sua missão”. Ao alcance da mão de Amazarak, o ar
ondulou como se fosse uma superfície aquosa. O portal emanava um leve
brilho dourado, perceptível apenas nas ondulações que se formavam.
“Obrigado”, agradeci, apertando a mão de Amazarak. Um a um,
meus companheiros fizeram o mesmo. Então, logo depois adentramos o
portal. Primeiro Absolon, ao lado de Fabrizia. Em seguida Ansgar, depois
Lo Wang e Al-Malik. Karina segurou minha mão, pedindo para me
apressar. Ambos atravessamos o portal, deixando apenas Asphael para trás.
O Arcanjo viria logo depois.
Quando senti a superfície aquosa do portal me tocar, foi como
atravessar suavemente uma pequena queda d’água. Fechei meus olhos ao
ter aquela sensação... Mas então, ouvi uma voz ecoar.
“Philipe Nicodemus”, ouvi. Estava escuro, eu flutuava no vazio.
Abaixo, notei as luzes de uma cidade distante. Um vento frio tocou meu
rosto, mas então senti o calor de fogo. “Os perigos ficaram para trás,
estamos um passo à sua frente”, disse Metatron, se formando diante de
350
meus olhos. Tamanha era sua magnitude que seus pés tocavam no
chão, quilômetros abaixo, e sua cabeça estava quilômetros acima. Suas asas
flamejantes encobriam todo o horizonte atrás dele. Ele apontou sua espada
de fogo, e então minha visão se distanciou na direção em que a espada
apontava. Como se eu voasse em alta velocidade, percorri o Mar
Mediterrâneo e sobrevoei parte do noroeste africano, alcancei o Oceano
Atlântico e prossegui, sempre na direção que Metatron apontara. Foi
quando vi, além do oceano, uma baía, e uma cidade iluminada, uma cidade
maravilhosa. E, no alto de uma montanha, um segundo gigante me
esperava: Cristo, de braços abertos me saudando. “Agora, temos que
alcançar o Arcanjo da Verdade antes de nossos inimigos”.
Abri meus olhos, levando minha mão à cabeça, meio tonto. Notei
meus companheiros me cercando. A brisa fria da noite tocava meu rosto, e
o portal de Amazarak já tinha se fechado. “Philipe, está tudo bem?”,
perguntou Karina.
Olhei ao redor. Estávamos no parque aonde encontramos os Caídos
pela primeira vez. Estávamos próximos a Domus Aurea. Provavelmente, o
portal para a Cidade Eterna por onde entramos originalmente já não mais
existia. Sorri, ao ver o rosto de Karina, e então olhei cada um dos meus
companheiros.
“Eu sei aonde devemos ir agora”, respondi. “Tive uma última
visão, uma última revelação! Agora que nossos inimigos falharam ao tomar
a frente da busca, nós estamos em vantagem, e finalmente eu pude entender
qual o local em que está Veritatis”.
“Aonde?”, perguntou Al-Malik.
351
“Não é um lugar sagrado, tampouco um local que eu esperava”,
respondi, abrindo um portal diante de mim. Minhas energias estavam fracas
após tantas provações, e tenho certeza que meus companheiros também já
estavam exauridos após tantos combates, mas me dei o luxo de poder criar
este último portal. “Vamos”, pedi, indicando que fossem em frente, “Cristo
nos aguarda de braços abertos”.
352
Capítulo 16: Sob os Braços de Cristo
Aquela foi a mais longa das noites, quando o véu negro do céu nos
acompanhou por mais horas do que o normal. Do Irã a Israel, de Israel à
Itália, e agora da Itália ao Brasil, por horas e horas estivemos combatendo,
fugindo, questionando. Quanto tempo foi? Oito horas de escuridão? Ou
mais? Eu nem sei. Eu me lembro de quando deixamos Chak-chak para trás,
mas parece fazer tanto tempo... como se fosse outro dia, e de fato era.
Agora que mais uma vez atravessávamos um portal, que nos levou ao oeste,
é irônico lembrar que regressamos pelo menos quatro horas no tempo, e
que esta maldita, interminável noite estava apenas começando de novo. De
fato, se era madrugada de um novo dia em Chak-chak há horas atrás, agora
estávamos no dia foi ontem, e o novo dia em Chak-chak só chegará ao Rio
de Janeiro dentro de algumas horas. Estava exaurido, e uma frase se repetia
em minha mente: “Eu estou cansado, muito cansado”.
Eu sabia que meus sete companheiros pensavam o mesmo. O que
presenciamos naquela noite interminável estava além de tudo o que
presenciamos em todas as nossas vidas. Contemplar o poder de três
Grandes Lordes sendo manifestos na Terra era algo impensável,
imprevisível. Presenciar a força do Príncipe dos Caídos também foi uma
experiência impressionante. Mas agora tínhamos a sensação de que os
males tinham ficado para trás, que nossa longa jornada se aproximava do
fim. Agora, enquanto atravessávamos os céus do Rio de Janeiro, Cristo nos
saudava de braços abertos.
“E agora?”, perguntou Absolon, sua voz obviamente cansada e
fraca, “Qual é o próximo passo que devemos seguir?”.
353
Eu fitei o jovem Princeps, observando a fraca aura dourada que
circundava seu corpo e as faixas luminosas que formavam suas asas.
Apesar de meus poderes nos ocultarem dos mortais que poderiam nos ver
do solo, nós podíamos nos perceber sem dificuldades. E eu podia
claramente notar que não apenas Absolon, mas todos s outros também
tinham auras fracas, um reflexo de seu estado de espírito. Todos estavam
exaustos, não de corpo mas de alma. Todos se mantinham na busca apenas
por determinação, por força de vontade. Apenas um de nós ainda brilhava
com intensidade, enquanto ia à frente, seu corpo brilhando como fogo
dourado. O Arcanjo Asphael Veritas se mostrava um pilar de confiança e
devoção, sua força tendo apenas crescido desde que as várias provações
começaram.
“Eu não sei Absolon”, respondi, “Metatron apenas me mostrou o
nosso último destino, mas ainda precisamos descobrir onde procurar”.
“Por algum lugar precisamos começar”, disse Al-Malik, parando
em pleno ar. “Não podemos simplesmente procurar em todos os cantos
desta cidade. O Velho está aí em algum lugar, mas onde? Deve haver
alguma pista!”.
Todos paramos, formando um círculo luminoso nos céus. Asphael,
que tomava a frente, retornou para reunir-se com o grupo.
“Eu não sei nada sobre esta cidade”, disse Armin Ansgar.
“E nem eu”, murmurou Al-Malik.
“Confesso eu também não compreender esta terra, nem o Novo
Mundo”, disse Asphael Veritas, “meu tempo e meu povo eram outros.
Conheço as velhas terras que um dia foram a Suméria ou a Persa, conheço
as areias onde se construíram pirâmides, e sou familiar com os locais onde
354
Roma e Grécia se estabeleceram. Mas aqui... aqui é uma terra nova que
só conheci através de contos, ou pelas quais passei apenas ligeiramente”.
“Temos pouco tempo”, eu disse, “em minha visão, Metatron me
disse que estávamos finalmente à frente de nossos inimigos. Mas ainda
assim eles podem nos alcançar a qualquer momento. O que decidirmos
fazer, precisamos fazer logo”.
“Talvez...”, sussurrou Karina. “Talvez devêssemos descansar um
pouco”.
“Certamente a jornada se prova árdua”, respondeu-lhe Asphael,
“mas podemos nos dar este luxo?”.
“Não podemos”, respondi, mesmo sabendo que não seria uma
resposta agradável. “Eu ainda sinto ele se aproximar”, disse, fechando
meus olhos. E num local distante, ouvi o rugido do tigre, a milhares de
quilômetros de distância, seguido de trovões e o uivo de uma ventania. “Ele
virá até nós”.
“E se alguém puder procurar por nós?”, Karina questionou, sua voz
demonstrando um pouco mais de ânimo, seus olhos brilhando com
intensidade, enquanto sua própria aura se intensificava. “E se
procurássemos o Samuel?”.
“Fulmen?”, perguntei, mesmo sabendo exatamente a quem ela se
referia.
“Não é arriscado envolvermos mais pessoas em nossa busca?”,
perguntou Al-Malik. “Desde o começo, estivemos sob constante perigo.
Não acho seguro colocarmos mais pessoas em risco”.
355
Fitei Al-Malik, e então fitei a cidade abaixo de nós, pensando
na proposta de Karina. Fitei as luzes do Rio de Janeiro, e então o Cristo tão
próximo, e então voltei-me a Karina: “Vamos procura-lo”.
Antes que pudessem contestar minha decisão, mergulhei em
direção à cidade, então novamente ganhando altitude e tomando a frente.
Talvez fosse o cansaço que me fez cometer tal ato, pois só depois percebi
que não esperei qualquer opinião de meus companheiros. Em silêncio, eles
tomaram formação nos céus, me seguindo. O vento da noite batia em meu
rosto conforme cruzávamos os céus, em meio a poucas nuvens e sob um
céu estrelado. Minha cabeça estava cheia demais para pensar direito. Tudo
o que eu conseguia me concentrar era no Velho, a chave para chegarmos a
Veritatis e concluir nossa busca. Ele estava em algum lugar lá em baixo,
em meio às luzes do Rio de Janeiro. Ele estava próximo, mas onde? Por
onde começaríamos? Quem procuraríamos? Perdido em pensamentos, às
vezes vozes desconexas do Plano das Idéias se repetiam em minha mente,
lembrando-me da traumática experiência que Lorde Agliareth me impôs.
Eu tentava evitar as vozes, me manter concentrado, mas o cansaço me
impedia.
“Philipe! Philipe!”, uma voz feminina se repetia. Só após ecoar na
minha mente pela terceira vez que percebi que não era um devaneio ou uma
lembrança desagradável. Karina me chamava. “Aonde está indo? Samuel
mora em algum lugar abaixo”. Parei imediatamente, fitando-a, notando que
por um momento minha mente tinha se perdido no mar de pensamentos.
“Você está bem, Philipe?”, ela perguntou, me fitando, assim que parei.
“Estou bem, Karina, apenas cansado”, respondi, primeiro
observando-a, então olhando os companheiros que nos seguiam.
356
“Precisamos descer mais”, ela pediu. “Daqui não conseguirei
reconhecer o prédio de Samuel. Quer que eu tome a frente?”.
Movi a cabeça positivamente. Karina sorriu, talvez por desejar se
reencontrar com Fulmen, talvez por eu ter dado a ela a posição de líder do
grupo, nem que fosse apenas para mostrar o caminho... Então, minha mente
se lembrou do que Melkel Veritas disse a ela, quando nossa missão nos foi
revelada: “Karina Ariel, por mais que tema se ferir e por mais que se julgue
um peso para os demais, você é quem poderá guia-los quando estiverem
perdidos”. Finalmente começo a ver que o Conselho estava certo sobre
todos nós. Estávamos perdidos, sem saber nosso rumo. Encontrar Fulmen
era o melhor que poderíamos fazer.
Karina deu meia-volta, fiz um sinal para que os outros a seguissem.
Ela olhou o horizonte a leste, onde o mar e o céu negro da noite se
tocavam, e então fitou as luzes da cidade abaixo. Então, disparou, sua aura
azul tornando-se mais forte. Aceleramos, conforme a jovem se direcionava
a nosso destino.
Logo as luzes abaixo se tornavam mais próximas. Se não fosse
pelos poderes ilusórios de Lo Wang, certamente os mortais abaixo notariam
nossas oito formas luminosas sobrevoando logo acima de seus edifícios de
concreto. Abaixo, os carros percorriam as múltiplas avenidas, e era difícil
distinguir sobre que parte da cidade sobrevoávamos. O mar preenchia o
horizonte ao leste, sendo difícil perceber onde as águas escuras tocavam o
céu negro. A noroeste, o corcovado despontava, e eu por um momento
novamente fitei a figura distante de Cristo, iluminada em meio à escuridão
do céu e da montanha. Onde estávamos? Sobre o bairro de Laranjeiras? Ou
sobre Botafogo? Faz tanto tempo que eu passei por aqui pela última vez
357
que é até mesmo difícil saber como posso me lembrar dos nomes. De
qualquer forma, esta não era uma noite comum, e as vozes em minha
cabeça a todo momento me lembravam do passado, mesmo aquele que
deveria ser esquecido.
Karina prosseguia sem hesitação, seus poderes de Supervivente
guiando-a com precisão impressionante. Enquanto para mim todos os
prédios pareciam iguais e as ruas abaixo apenas se repetiam, ela sabia
exatamente qual seria nosso destino. Então, de repente, ela mergulhou,
nosso grupo acompanhando-a de perto. Um prédio menor do que os demais
que o cercavam estava logo ao nosso lado, e mesmo eu pude reconhece-lo.
Quanto tempo faz que estive aqui? Cinco anos? Oito anos? Talvez mais.
Não me recordo exatamente quando, só sei que fui eu quem apresentou a
Samuel o apartamento. De repente, minhas palavras naquele dia retornaram
em minha mente: “Um lar como outro qualquer na grande metrópole, num
bairro de classe média, mas próximo à riqueza e pobreza, um local perfeito
para se deslocar, pelas ruas ou pelos céus, a qualquer região da cidade”.
O chão estava mais próximo agora, e nossas auras irradiavam luz
que tocava a lateral do prédio. Graças a Lo Wang, mesmo tal luz era
ignorada pelos mortais que poderiam estar observando. Karina foi a
primeira a ter seus pés tocando o chão. Ela pousou logo já dentro do prédio,
ao lado de um pequeno jardim, no caminho que passava ao lado do posto
do vigia do prédio, e que levava do portão, vigiado com câmeras, ao hall de
entrada. O vigia, vendo alguma novela ou série na minúscula televisão que
possuía, não percebeu nada, e nem poderia, a não ser que seus sentidos
superassem as Ilusões de nosso Kage. Imediatamente, as asas de Karina
desapareceram, recolhendo-se para além dos rasgos em suas roupas, e a
358
jovem Supervivente adentrou o Hall, dando espaço para que, um a um,
nós também pousássemos.
As portas de vidro que levavam para o hall de entrada estavam
abertas, e ao adentrar Karina acabou acionando as luzes, que ligaram ao
sentirem movimento no local. Lo Wang podia enganar mentes, mas não
máquinas. Assim que pousei, tratei de verificar a presença de câmeras.
Felizmente, nenhuma à vista, a não ser no portão, observando a rua. Então,
olhei o vigia, que ainda se mantinha entretido pelo programa de TV e não
percebeu a luz acender. Sorte, pois se sua atenção se voltasse para nós, o
véu místico que nos protegia poderia ser descoberto, e seria difícil não só
explicar nosso surgimento ali, como explicar nossas roupas rasgadas e
ensangüentadas pelo conflito com os Caídos em Oostegor. Segui Karina,
então, enquanto Absolon e Fabrizia pousavam praticamente juntos e lado a
lado. Asphael veio em seguida, e então Ansgar e Lo Wang. O último a
descer foi Al-Malik.
Ansiosa, Karina pressionou o botão do elevador. Eu tinha minhas
dúvidas se oito pessoas caberiam ali. Antes que as portas se abrissem,
porém, Absolon perguntou: “Como é este tal Samuel?”. Ao mesmo tempo,
por precaução, eu apertava o botão para chamar o segundo elevador.
“Ele é um Sancti”, respondeu Karina, “e um grande amigo meu. Na
verdade, é uma das melhores pessoas que já conheci. Ele é um Elohim, um
grande guerreiro... e tem muitos séculos de experiência”.
“Não muito diferente de mim”, disse Ansgar, “pelo que me lembro
que você comentou sobre ele, em Dur Sharrukin”.
O meu elevador tinha chegado, mas nem sinal do elevador de
Karina. Segurei a porta, esperando que ela terminasse de descrever Samuel.
359
“Ele foi um cruzado”, ela disse, “e a história dele não é muito diferente
da sua, Armin”.
O segundo elevador chegara, e Karina adentrou-o. Vendo que parte
do grupo entrava no primeiro elevador, ela avisou: “É no oitavo andar”.
Apoiei-me na parede oposta à porta do elevador, observando
Absolon, Al-Malik e Fabrizia entrarem. Conforme a porta se fechava, Al-
Malik me fitou. “Me sinto exausto, Nicodemus. Como se meu tempo como
Celestial fosse pequeno, e meu poder fosse diminuto”, disse o Malaki,
levando as mãos ao rosto, esfregando-as nos olhos.
Observei Absolon e Fabrizia. Absolon estava pensativo, distante,
enquanto Fabrizia tinha um aspecto de tristeza. Ela tentava se apoiar nele,
pendendo a cabeça sobre o ombro do Princeps. Ao notar meu olhar,
Fabrizia forçou um falso sorriso, que infelizmente não consegui retribuir.
“Todos estamos cansados, pelo visto”, eu disse. “Não é surpresa alguma.
Mas se Deus permitir, poderemos descansar esta noite”.
“É uma boa idéia?”, perguntou Absolon. “É uma boa idéia
pararmos a busca? E se o tigre, ou um outro, vier?”.
“Estamos à frente do inimigo desta vez, Achille”, respondi, fitando
a luz no teto do elevador. “Temos tempo...”, eu murmurei. Embora minha
preocupação era a mesma de Absolon, no fundo eu sabia que, no estado de
fadiga mental em que estávamos, não conseguiríamos prosseguir.
Quando a porta do elevador se abriu, Karina já se encontrava à
frente, no corredor. O grupo mal cabia no pequeno espaço. Adiante,
estavam três portas, uma delas levando às escadas. Karina tocava a
campainha do apartamento 802.
360
Houve uma certa demora. Atravessando por entre os membros
do grupo, me pus ao lado de Karina, ansioso por ver Samuel Fulmen
novamente. “Um momento”, a voz dele disse, vinda de algum cômodo nos
fundos do apartamento. Alguns segundos depois, o som de chaves, e a
fechadura da porta se abrindo. Então, Samuel abriu a porta.
Samuel tinha mudado pouco, e ao pensar nisso, me veio um sorriso
nos lábios. Quando o conheci, eu era jovem e ele também, pelo menos em
aparência, mas mais de sete séculos de existência nos separavam. Agora, eu
era um velho, e ele ainda era o mesmo. O mesmo caucasiano, de pele muito
clara, sem barba alguma. Suas feições claramente masculinas e angulares,
seus olhos negros ainda brilhando com determinação. Seus cabelos lisos e
negros, porém, agora eram compridos, caindo até a altura dos ombros.
Engraçado como ele continuava um pouco mais baixo que eu, um fato do
qual eu sempre fiz questão que ele lembrasse, devido às nossas constantes
provocações amistosas que fazíamos um ao outro. Ele vestia calça jeans e
sapatos, e uma camiseta negra, com os dizeres “Cry Havoc”. Tinha um
relógio prateado no braço, e sua face mostrou surpresa ao nos ver.
“Karina?”, ele murmurou e, antes que pudesse sorrir, ela o abraçou,
exclamando: “Samuel!”. Engraçado como sorri ao ver aquela cena.
Samuel a abraçou com força, a princípio nem ligando para a
presença dos demais. Então, ainda com Karina nos braços, ele me fitou, sua
face se tornando imediatamente séria, seus olhos fitando os meus. “Sinto
cheiro de sangue, Philipe Nicodemus”, disse ele seriamente, até mesmo de
forma ameaçadora.
Fiquei calado, apenas o fitando. Senti uma certa tenção em meus
companheiros, como se Samuel tivesse algo sério a me dizer, ou alguma
361
repreensão. Um silêncio incômodo se seguiu... até que não agüentamos
e ambos rimos. Era apenas mais uma de nossas brincadeiras. Samuel se
afastou de Karina e pôs a mão em meu ombro, sorrindo. “Entrem”, o Sancti
disse, “a casa é de vocês, mas não reparem a bagunça”.
Uma modesta sala de tevê era o primeiro cômodo no apartamento.
Uma estante continha a televisão e alguns adornos, especialmente relíquias
como brasões e estatuetas. Um sofá de três lugares ficava de frente à tevê,
com uma pequena mesa à frente, sobre a mesma um conjunto de anotações
e jornais. Dois outros sofás, de dois lugares cada, formavam um “U” com o
sofá de três lugares. Um deles se apoiava na parede, ao lado da porta de
entrada, enquanto atrás do segundo estava o que seria uma sala de jantar, de
formato retangular e um pouco maior que a sala de tevê. Na verdade,
ambas seriam uma sala só em formato de “L”, não fosse o sofá para separa-
las. A sala de jantar com uma bela mesa de madeira de cor escura, e atrás
da mesma uma outra estante. Do lado direito da estante havia uma porta de
vidro, que levava à pequena sacada do apartamento. À esquerda da estante
estava um corredor que levava a quartos e banheiro. De frente a esse
corredor, na parede oposta, eu sabia, pelas lembranças que tinha do lugar,
que estava a porta que levava à cozinha.
Samuel se dirigiu ao seu quarto. “Fechem a porta ao entrarem, e
desculpem não poder dar-lhes atenção”, ele disse. Absolon se sentou no
sofá, seguido por Fabrizia, que se mantinha perto dele. Os outros foram
entrando, timidamente, até Ansgar, o último a entrar, fechando a porta. A
televisão, que estava ligada, estava sintonizada em um canal de notícias.
“O que houve, Samuel?”, perguntou Karina, seguindo em direção
ao quarto, um tanto desapontada pela falta de atenção. Eu fui logo atrás, e
362
notei o olhar de Al-Malik, que ainda estava na sala de tevê, me
acompanhar. Enquanto isso, Lo Wang sentou-se no chão da sala de jantar,
baixando a cabeça como se meditasse. No sofá, Fabrizia conversava algo
em voz baixa com Absolon. Os outros procuravam algum lugar para se
acomodarem.
“Eu tenho algo a fazer, Karina”, disse Samuel, retornando do
quarto enquanto vestia um sobretudo negro por cima das roupas. “Eu
gostaria muito de saber o que os trouxe aqui, e porque estão neste estado,
mas simplesmente não há tempo”.
“Temos uma missão muito importante, Sam”, Karina avisou.
“Eu também, Ka”, ele respondeu, repetindo: “eu também”. Samuel
se aproximou dela, mas então se voltou a mim e aos demais. “Mas posso
perceber que precisam descansar. Ia ser uma honra se esperassem por meu
retorno aqui em meu apartamento. Por favor, sintam-se à vontade, eu
retornarei em algumas horas. Se tivessem chegado um pouco mais tarde,
vocês não me encontrariam aqui”.
“Algum problema em que possamos ajudar, Samuel?”, perguntei,
estranhando sua pressa.
“Não, Nicodemus, muito obrigado”, ele respondeu, retornando ao
quarto. Logo em seguida, ele voltou, sua espada longa em mãos, a lâmina
recentemente polida brilhando intensamente ao refletir a luz.
Imediatamente, a bela espada atraiu o olhar de Ansgar, Asphael e Al-Malik.
“Esta noite, eu sairei para caçar uma presa muito importante”, o Sancti
disse, guardando sua arma numa bainha oculta sob o sobretudo.
“E que presa requer tanta pressa?”, perguntou Ansgar.
363
“Crias de Lucifugo”, respondeu Samuel, se dirigindo à porta.
“Haverá um encontro em menos de uma hora. Duas facções rivais, ambas
buscando um acordo após serem quase esmagadas pelo novo Patriarca do
Rio de Janeiro”.
“Uma guerra entre ghûls?”, perguntou Al-Malik.
“Mais como um massacre”, disse Samuel. “Eu quero aproveitar o
caos este encontro para tentar chegar ao novo Patriarca das criaturas, e esta
é uma chance única. Sabe-se lá quando terei outra oportunidade como esta.
Já estou investigando isso há quase dois anos, quando tudo começou, desde
então as noites desta cidade têm sido um inferno”.
“Tem certeza que não quer ajuda, Sam?”, perguntou Karina,
segurando a mão dele. “Podemos ajudar”.
Samuel sorriu. “Não se preocupe, Karina, voltarei logo. Fiquem
aqui e descansem. Conversaremos dentro de algumas horas”. Karina, um
tanto entristecida, afastou-se. “Vejo-os em breve”, disse Samuel Fulmen,
deixando o local.
“Nem tivemos tempo para nos conhecer”, murmurou Absolon.
“Ele é muito ligado ao dever”, disse Karina, de braços cruzados.
“E quem aqui não é?”, perguntou Lo Wang, de olhos fechados,
sentado em posição de lótus, como se estivesse meditando, mas ainda
atento a tudo a seu redor.
Ansgar se sentou à mesa de jantar, olhando para os demais no sofá.
“O que faremos aqui?”.
“Descansar”, disse Fabrizia, se levantando e tirando a bandana que
cobria a cabeça. Em seguida, ela soltou os longos cabelos, e levou a mão ao
buraco no peito da blusa, antes trespassado por uma lança, e ainda com as
364
roupas ao redor ensangüentadas. “Vou tomar um banho e vestir roupas
novas”, ela disse, então murmurando: “E depois dormir um pouco, se não
se importarem... e se eu conseguir dormir...”.
“Vá, é melhor todos relaxarem um pouco”, eu disse.
“Também vou tomar um banho”, murmurou Karina. “Há um
banheiro no corredor, e outro na suíte do quarto do Sam. Fabrizia, você
pode usar o banheiro do corredor, por favor?”. Fabrizia concordou, e então
Karina disse aos demais: “Quem quiser tomar banho depois, espere um
pouco, ok?”.
Absolon concordou, demonstrando interesse em mudar para roupas
mais limpas, menos sujas por conflito. Também Ansgar concordou com a
cabeça. Mal as garotas deixavam saíam, porém, Al-Malik, que mexia nos
jornais e anotações sobre a pequena mesa da sala de tevê, murmurou:
“Talvez não possamos descansar ainda”.
“O quê?”, perguntei, me aproximando. Ansgar, Asphael e Absolon
também mostraram interesse. Al-Malik se ergueu, mostrando um bloco de
notas, no centro da folha de papel um nome em destaque, sublinhado, e
escrito na língua-mãe de Samuel: “The Mad Prophet?”.
“O Profeta Louco?”, murmurou Absolon.
Seria o Velho? O homem cuja alma era a mesma de Uriel-
chamado-Veritatis? O homem que, em nossos sonhos, pronunciava
insanamente blasfêmias? Fitei Al-Malik. “Algo me diz que Samuel Fulmen
estava envolvido em nossa busca antes mesmo que nós o procurássemos”,
disse o Malaki.
Virei-me para Lo Wang, apenas para ver que ele não mais estava
no chão. Meu olho se voltou para a sacada, agora com a porta de vidro
365
aberta, e Lo Wang se apoiava, leve como uma pena, sobre a borda do
parapeito da mesma, fitando a cidade abaixo. O Kage me fitou enquanto
colocava sua máscara demoníaca: “Não se preocupe, meu senhor, as
sombras vigiarão Samuel Fulmen esta noite”. Então, suas asas de trevas se
abriram, conforme ele saltava em direção ao vazio em frente,
desaparecendo na noite.
“Vamos com ele?”, perguntou Absolon, já saltando do sofá,
deixando sua mochila para trás.
“Não há necessidade”, respondeu Asphael. “Vá descansar”.
“Mas não seria melhor...”, ia perguntar o Princeps, quando Asphael
o interrompeu: “Não se preocupe. O importante não é o que Sancti irá fazer
esta noite, mas o que ele está investigando. Karina nos trouxe ao local
correto, é aqui que teremos respostas, não nas ruas”.
“Entendo”, disse Absolon.
“Vá descansar, Achille”, eu pedi ao jovem Princeps, “seria bom
você fazer companhia a Fabrizia, ela ainda não se recuperou da última
batalha, e quer sua companhia. Quando ela sair do banho, tome um banho e
depois vá conversar com ela”.
“Conversar com a Fabi...?”, murmurou Absolon, então dizendo
numa voz ainda mais baixa: “Tudo bem, tem razão... E Karina?”.
“Ela está bem, e terá toda a companhia que realmente quer quando
Samuel voltar”, respondi.
Asphael fechou os olhos. Seus lábios murmuravam palavras
inaudíveis, sua face não tinha expressão. Mas enquanto os outros mal
percebiam, eu parei para fita-lo. E, no mundo dos espíritos, ele era como
um furacão, os espíritos do ar cercando-o e circundando-o, sua aura
366
brilhando como um farol. Ninfas tocavam-lhe a face, e o vento em si
urrava em resposta. E suas palavras eram trovões para os espíritos, como
um deus pedindo, poderoso mas ainda assim gentil: “Serenidade, Boa
Mente e Equilíbrio ouçam-me, sejam graciosos para comigo e que eu seja a
Recompensa do alegre agir. Sábio, surge dentro de mim, dá-me serena
coragem, apóia-me, revela-me suas bênçãos”.
Antes que eu pudesse entender o propósito do Arcanjo, Al-Malik
chamou-me: “Veja, Nicodemus, as anotações de Samuel”.
Fitei novamente o Arcanjo, que parecia distante, seus olhos
fechados vendo apenas o mundo dos espíritos. Um vento quente e úmido
soprou pela porta aberta da sacada. Então, fui até Al-Malik, sentando-me ao
seu lado no sofá de dois lugares. Enquanto isso, Ansgar, no sofá de três
lugares, e Absolon, no sofá oposto ao nosso, também investigavam as
pistas que tínhamos à nossa frente.
Peguei um jornal, tentando lembrar o suficiente de português para
tentar lê-lo. Mais uma vez, minha visita ao Reino das Idéias se provou útil,
aguçando as memórias e a compreensão, pois as palavras logo se tornaram
incrivelmente claras. Eram notícias do início de 2000. Os jornais seguiam
uma lógica clara, que começava com pequenas notícias de assassinatos em
áreas diversas da cidade. Em seguida, brigas de gangues e traficantes de
drogas emergiram entre as notícias destacadas ou recortadas.
As notícias às vezes estavam presas, através de grampos ou clipes
de papel, a algumas anotações. Nomes surgiam entre as anotações, bem
como lugares. Seriam as vítimas? Seriam os algozes? Havia lembretes,
mensagens com nomes e encontros, locais e datas. Havia fotos destacadas,
de celebridades, políticos e outros, mas os rostos circulados eram sempre
367
de pessoas desconhecidas, seus nomes anotados no rodapé de cada
imagem.
“Pelo visto...”, disse Al-Malik, lendo anotações em inglês, “Houve
um encontro entre Fulmen e um padre chamado Inácio Alves de Lima, no
começo do ano de 2001. As anotações falam de um seqüestro em princípios
de 2000, de um homem sob os cuidados de Inácio”.
“Que homem?”, perguntou Absolon, enquanto ele próprio fuçava
entre anotações.
“Um homem louco, que tinha uma estranha consciência para
presenciar seres sobrenaturais”, respondeu Al-Malik. “Ele não tinha nome,
era chamado apenas de ‘o Profeta Louco’”.
Olhei as anotações que Al-Malik segurava. Aparentemente, o padre
era um Azarias da Sociedade de Tobit. “Fulmen chegou ao padre ao
investigar caçadores de seres sobrenaturais agindo no Rio de Janeiro”,
continuou Al-Malik, “Os caçadores estavam em busca do Profeta Louco,
após seu rapto no começo do ano. Parece que vampiros estavam
envolvidos”.
“E parece que há uma guerra lá fora”, respondeu Ansgar, mexendo
em velhas manchetes. “O português é diferente daquele que conheço, mas
entendo as palavras. Os jornais estão muito bem organizados, parece que
Fulmen estava revisando todas as suas anotações antes de sair para sua
caçada. Está bem claro que começaram com assassinatos de pessoas
influentes em 99, seguidas por brigas de traficantes em favelas e de
gangues em bairros ricos”.
“Lembram-se do que Fulmen disse?”, perguntou Absolon, “Que
uma facção de vampiros foi quase massacrada nesta cidade?”.
368
“Talvez hoje seja o ponto culminante de suas investigações”,
eu pensei em voz alta, “por isso sua ansiedade e pressa. Após dois anos
estudando os eventos, eu também estaria ansioso pelo fim”.
“Há mais aqui,” disse Absolon, arregalando seus olhos ao abrir um
envelope de papelão. Em seu interior, uma coleção de fotos. Em todas elas,
uma mesma parede, suja de sangue, sua tinta arranhada por dedos fortes e
insanos, formando uma escrita que mortal nenhum poderia desvendar.
Olhei o envelope, que era endereçado a um certo padre Gervas Norbert, na
Alemanha. O remetente era Inácio Alves de Lima. Aparentemente, a carta
nunca chegou a seu destino, e o conteúdo da mensagem que estava no
envelope se perdeu, mas as fotos em si eram uma algo impressionante. Nas
paredes, estava uma escrita em Fabulare. Samuel numerou a seqüência das
fotos ao tentar desvendar a mensagem, e pude então coloca-las em ordem
rapidamente. E a mensagem fez minhas mãos ficarem geladas. Eu li em voz
alta:
“Em meus sonhos vejo as imagens da perdição, do momento em
que tudo irá ruir. Vejo o desespero que virá e as mortes que causarei. Sim,
eu vejo, de oriente para ocidente, a maré de sangue e loucura avançando.
Tudo por causa de um erro, tantos milênios atrás.
“Correndo sobre quatro patas, a destruição em si se aproxima de
mim. Imagens me vêm em mente e não as compreendo. Outra vida. Outra
pessoa. Anjos e demônios lutando uns contra os outros numa batalha
interminável. E sangue. Muito sangue.
“Quisera eu... ou seria ele... não ter feito tudo aquilo. Quisera que
ele jamais tivesse me criado. Quisera que ele não estivesse em mim. Somos
369
dois. Eu sou ele e ele está em mim. E ainda assim, os erros dele me
atormentam até hoje... eu não fiz nada... Foi apenas ele.
“Me chamam de louco porque sei. Porque sei de toda a mentira e
de toda a verdade. Sei o que nos protegeu por todos esses milênios, o que
nos manteve à salvo, e ainda assim, acabou por nos condenar. Sei o que
cada um deles planeja. Sei de tudo. Sei mais do que era saudável saber.
Ele pôs essas memórias em mim.
“Eu grito ao lembrar do que eu... do que ele viu. Ele não grita...
ele é supremo, infalível, mas eu... eu sou apenas uma casca que ele criou
para se proteger... para escapar da tortura e da morte nas mãos da Dor
Eterna. Eu sei agora que eles estão atrás de mim. Sei que me buscam,
porque através de mim podem liberta-lo uma vez mais, e conseguirem as
respostas que quero. Preciso fugir.
“Estou vendo todos os peões neste grande tabuleiro. Cada um
achando que é um jogador, sem ver o rosto daquele que dita seus
movimentos. O senhor das mentiras foi iludido e o maior dos
manipuladores está sendo manipulado. Sob a fachada séria, o jogador ri,
pois sabe que não tem adversário. Ele move ambas as cores, o negro e o
branco, enviando-os uns sobre os outros, destruindo as peças uma a uma.
“E quando conto isso às pessoas, elas me chamam de louco. E eu
grito, grito para que ouçam, mas apenas me ignoram. Eles ignoram a voz,
as memórias em minha mente. Me contando toda a verdade. Talvez estejam
certos... talvez eu seja louco, mas é porque sei. Sei mais do que uma pessoa
deveria saber.
“Mas sinto que estão próximos de me encontrarem... mas quem
virá primeiro? Será que alguém conseguirá desafiar o jogador e vence-lo,
370
ou será que ele continuará a manipular o jogo de xadrez sozinho? Vou
sentar aqui, no escuro, e esperar. Esperar para ver se encontro salvação
ou morte. Se eu morrer, todos estarão perdidos, pois ele vai voltar... Se eu
viver, então ninguém saberá quem é o jogador...
“Que escolha deve ser feita? E se simplesmente não houver
salvação?”.
“Nós estamos perto”, murmurou Al-Malik. Não pude dizer nada a
não ser concordar com a cabeça.
“Quem vai ser o próximo?”, uma voz feminina veio da porta.
Fabrizia entrava, aparentemente mais relaxada, vestindo uma blusa branca
e um short vermelho. Estava descalça, e ainda enxugava os longos cabelos
negros na toalha. “Desculpem a demora, eu acabei perdendo noção do
tempo lá. Precisava limpar a mente”.
Olhei para Absolon, que então se levantou e foi em direção a ela.
Antes, porém, ele apenas me avisou: “Me mantenha informado, por favor”.
Concordei com a cabeça. Absolon sorriu para Fabrizia, dizendo que iria
tomar usar o banheiro e trocar de roupa.
Fabrizia nos olhou. “Precisam de mim para algo?”.
“Não, Fabrizia, não se preocupe. Estamos apenas tentando juntar as
pistas que temos. Eu sugiro que durma um pouco”, respondi.
Ela sorriu. “Estou precisando. Vou usar o quarto de hóspede, mas
deixarei a porta entreaberta. Caso precisem de mim, é só chamar”. Assim
que consenti, Fabrizia saiu da sala, indo para o quarto.
“O que faremos agora?”, perguntou Ansgar.
“Eu os encontrei”, murmurou Asphael, finalmente abrindo seus
olhos e deixando seu transe.
371
“Quem?”, perguntei.
“Samuel Fulmen e Lo Wang, Mestre Nicodemus”, respondeu o
Arcanjo, caminhando em nossa direção. “Os espíritos os encontraram, e eu
posso vê-los”.
“Iremos atrás deles?”, perguntou Ansgar.
“Não é necessário, Mestre Ansgar”, respondeu Asphael Veritas,
sentando-se na ponta do sofá de três lugares, entre Ansgar e Al-Malik.
Então ele estendeu as mãos aos dois. “Mas nós poderemos vê-los. Dêem-se
as mãos e fechem seus olhos, e deixem os ventos falarem em suas mentes”.
Ansgar hesitou, mas então apertou a mão de Asphael, fechando
seus olhos. Al-Malik fez o mesmo, e então estendeu a mão livre para mim.
Eu apertei sua mão, e então, fechando meus olhos, deixei minha
consciência ser levada pelo fantástico poder de Lorde Asphael.
E me vi voando. Os sons mais vivos, as luzes mais fortes, as trevas
tão transparentes... Abaixo, as ruas do Rio de Janeiro se moviam tão rápido.
Eu não voava como um anjo de grandes asas, mas como uma corrente de
vento, numa fluidez sem precedentes, sem corpo. Olhei ao redor, vendo o
céu acima e o asfalto abaixo, e então pensei em Samuel. Imediatamente,
minha consciência mergulhou entre os edifícios, aproximando-se da
avenida, desviando-se dos veículos e ultrapassando-os uma forma tão
natural que eu não precisava pensar no que fazer. Então circundei um
motoqueiro. Embora o capacete cobrisse seu rosto, o sobretudo era
indistinguível. Samuel pilotava em alta velocidade, um pouco acima, mas
não exageradamente além dos limites impostos pela sinalização. Minha
consciência elevou-se alguns metros, a fim de desviar do carro que Samuel
ultrapassava. Eu não precisava ter desejo consciente, minha mente apenas
372
respondia a todos os estímulos, como se cavalgasse uma ninfa ou fosse
levada pelo vento. Um espírito do ar me levava, e o espírito ainda tinha sua
própria vontade, mas estava ali para me fazer ver o que eu queria ver.
A moto prosseguiu, entrando em uma rua secundária, então se
aprofundando no labirinto de vias menores, por entre bares, restaurantes,
lanchonetes e boates, e também estabelecimentos comerciais que agora se
encontravam fechados. Então, finalmente, o Sancti reduziu a velocidade,
numa rua escura e deserta, mas cheia de carros e motos estacionados. Logo,
Samuel Fulmen avistou um local para estacionar, e o fez. Senti a força do
pisar de Samuel, quando seu pé direito tocou o chão, e então ele desceu do
veículo. Um garoto de dezesseis anos, talvez um pouco mais ou menos, se
aproximou: “Quer que guarde?”, perguntou, estendendo um pequeno cartão
de cartolina, enquanto Samuel tirava o capacete e o prendia à moto.
“Sim, obrigado”, respondeu Samuel, forçando-se a um curto
sorriso, enquanto pegava o cartão. Enquanto se afastava do local a passos
rápidos, Samuel fitou a face da cartolina: três reais pela vigília. “Não sei se
é desespero...”, murmurou Samuel, “ou simples desbrio”.
Samuel continuou caminhando após colocar o cartão num dos
bolsos do sobretudo. Ele cruzou a esquina, adentrando uma rua um pouco
mais movimentada, e prosseguiu através dela. Alguns jovens se
posicionavam apoiados a uma parede, rindo, bebendo e fumando. Carros
passavam com freqüência, buscando um lugar para estacionar. Samuel
checou o relógio no braço direito: quase meia-noite. Ele apressou o passo,
passando pelos jovens. Uma garota entre eles, claramente bêbada, fixou seu
olhar no rosto do Anjo, apreciando sua beleza de uma forma lasciva. Um
373
dos rapazes, com os braços muito tatuados, provocou com xingamentos
o Sancti. Samuel apenas o ignorou, continuando em frente.
O movimento se tornou mais intenso assim que Samuel Fulmen
alcançou a rua seguinte, esta mais larga, com carros em quantidade se
movendo a uma baixa velocidade, conforme seus motoristas e passageiros
analisavam os bares e restaurantes ao redor. Pessoas de ambos os sexos,
principalmente jovens, caminhavam pela calçada ou se acumulavam nas
mesas de bar, bebendo, rindo ou simplesmente se beijando lascivamente. O
anjo prosseguiu, enquanto os sons das músicas e conversas dos bares
invadiam minha consciência.
O anjo então finalmente parou, após atravessar a fachada de um
edifício comercial, agora fechado. À frente, uma multidão fazia fila diante
de uma boate. Ouvi a música vibrante saindo do interior, abafada pelas
paredes, mas ainda assim forte. Samuel Fulmen fitou o nome do
estabelecimento: Deluge. Passo a passo, Fulmen se direcionou à entrada,
caminhando paralelo à fila de pessoas que se empurravam, esperando por
sua chance de entrar. Então, murmurante, o Elohim dos Sancti começou a
orar: “Senhor Sábio que está nos céus, santificada seja minha causa...”
Ele fitou os seguranças, enquanto subia os três degraus que
separavam a entrada da calçada e se aproximava dos cordões de isolamento
que limitavam a entrada de pessoas. Ele continuou a oração: “Guie eles ao
seu Reino e que seja ouvida a sua palavra, tanto nesta Terra como no Céu”.
Assim que Fulmen tocou os cordões de isolamento, o segurança se
voltou ao Anjo: “Ei, bonitão, pegue a fila como todo mundo”.
“Deixe-me entrar, por favor”, pediu Samuel, fitando os olhos do
segurança. Por um instante, seus olhos brilharam dourados, preenchidos por
374
luz divina, e então o segurança removeu o cordão de isolamento,
deixando Fulmen prosseguir. Fulmen continuou, passando pelo segundo
segurança, que olhava sem entender a decisão do colega, enquanto as
pessoas na fila reclamavam ou se perguntavam se Fulmen seria uma pessoa
famosa ou importante, ou mesmo da família dos donos da boate. Então,
Fulmen prosseguiu sua prece: “A força que eu preciso, dai-me agora...”.
“...para protege-los do mal, amém”, terminou Fulmen, abrindo seus
braços para que o terceiro segurança o revistasse, antes que ele finalmente
adentrasse o local. As mãos do segurança tatearam a espada sob o
sobretudo, mas sua mente era incapaz de sentir qualquer objeto oculto.
Após receber um cartão eletrônico que iria marcar seu consumo dentro da
boate, Fulmen prosseguiu, finalmente adentrando aquele local. E, aos olhos
do meu espírito-guia, eu via uma escuridão tangível por entre as luzes
intensas que ali vibravam e dançavam.
Repentinamente, sob o som de batidas potentes e ritmadas, o
mundo parecia mover-se em flashes de luz, como se a dança frenética fosse
mostrada quadro-a-quadro, conforme as luzes piscavam de forma
hipnotizante. Mesmo minha velha alma sentia aquelas batidas acelerando
meu coração, e me sentia inquieto, como se levado pelo ritmo frenético. E,
num dos flashes de luz, vi uma figura monstruosa espreitar atrás de
Fulmen, oculto por suas ilusões. A figura sumiu nas sombras antes que
flash seguinte relampejasse, mas sua face, na verdade uma máscara, ainda
estava em minha mente. Lo Wang tinha conseguido manter o Sancti sob
vigilância.
Samuel caminhou pelo dilúvio de jovens, inalterado pelo ritmo
frenético, seus olhos buscando calmamente alguém naquela multidão, em
375
meio à fumaça, sua face demonstrando uma frieza sobrenatural. Uma
névoa de gelo seco bloqueava a visão, servindo de refletor para as luzes
dançantes. O centro do salão estava cheio demais, apertado demais, e
Samuel se deslocava para os cantos, buscando um espaço mais livre para se
locomover entre as mesas e poltronas onde os vários grupos de
freqüentadores se reuniam quando não estavam dispostos a participar da
dança no centro. O bar, no canto do salão oposto à entrada, estava cheio de
pessoas, umas sentadas nas cadeiras à frente do balcão, outras em pé,
pedindo bebidas ou tira-gostos. O olhar de Fulmen então fitou o segundo
andar, o qual continha uma maior quantidade de mesas e poltronas e, pelo
grande vão no centro, era possível ver toda a movimentação da pista de
dança. Ali, uma pessoa atraiu a atenção de Fulmen. Não era um jovem
rapaz em busca de paquera, mas sim alguém que poderia ser confundido
com um segurança da boate, não fosse a vestimenta tão diferente dos ternos
negros usados pelos seguranças. Aquele usava um sobretudo aberto e uma
camisa social, e sua face era fria, sua atenção estava longe da multidão, e,
ao lado dos freqüentadores da boate, que vibravam com vida e emoção,
aquele homem mais parecia um homem morto e cinzento, com emoções há
muito perdidas. Os olhos de Samuel se fecharam por um instante, e então,
ao se abrirem, viram algo que nenhum mortal poderia perceber. O Sancti
então colocou as mãos nos bolsos do sobretudo e pôs-se na direção das
escadas para o segundo andar.
Enquanto subia as escadas, Samuel Fulmen olhava as pessoas ao
redor. Num canto, uma garota fumava algo que era claramente ilegal,
enquanto em outro um casal se deixava levar pela lascívia. Logo acima,
quando chegou ao andar superior, o anjo fitou um grupo de arruaceiros
376
empurrando pessoas enquanto passavam. Um deles quase esbarrou em
Samuel quando ambos se encontraram no topo das escadas. Porém, todas
essas distrações não eram suficientes para manter o olhar de Samuel
afastado do seu alvo. O vampiro se apoiava no parapeito, olhando as
pessoas abaixo. Apesar de seus 1,70m de altura, rosto fino e físico esguio, a
criatura demonstrava força, tanto física como profana. Mas, ao invés de ir
em direção a ele, Fulmen caminhou a uma mesa logo atrás, onde um
homem de aspecto vigoroso, barba por fazer e cabelos brancos permanecia
sentado. Não havia uma única bebida ou tira-gosto naquela mesa, nem
nenhuma outra pessoa com quem aquele senhor, aparentando um porte
invejável para alguém de 40 ou 50 anos, pudesse conversar. Ele permanecia
ali, impaciente, suas mãos unidas enquanto os braços se apoiavam sob a
mesa. A poltrona, apoiada na parede, o fazia fitar diretamente para o
primeiro vampiro. Ele estava claramente incomodado por aquele barulho e
pelo movimento incessante. Aquele senhor também era uma Cria de
Lucifugo.
Samuel caminhou a passos rápido até chegar à mesa daquele
senhor. Rapidamente, ele tirou as mãos dos bolsos, puxando a cadeira e
sentando-se, frente a frente com o impaciente vampiro. O rosto frio da
criatura demonstrou surpresa, e imediatamente Samuel sentiu o toque frio
do cano de uma pistola tocar sua nuca. O vampiro maior, com aspecto mais
bruto, pressionava a arma de fogo contra a cabeça de Samuel, mantendo o
corpo próximo o suficiente para bloquear a visão da maioria dos
freqüentadores e impedisse que vissem a arma. Os olhos do vampiro
sentado se estreitaram, fitando os de Samuel enquanto o sanguessuga
analisava o recém-chegado. “O caçador!”, exclamou o senhor, numa voz
377
alta o suficiente para que Samuel o ouvisse naquele local barulhento,
“Você é muito corajoso por vir aqui. Por anos você tem me aniquilado os
de meu sangue. Veio, afinal, buscar minha caveira?”.
Samuel sentiu a pistola ser pressionada contra sua cabeça com
maior força, e então respondeu, falando baixo e lentamente, sabendo que a
Cria de Lucifugo de alguma forma iria entendê-lo, independente do ruído
local: “Eu adoraria eliminar este câncer que são os Anunnaki, Alexandro,
Cria de Aloísio Domos de Oliveira, antigo Patriarca do Rio de Janeiro, mas
esta noite procuro outro. Eu busco o Profeta Louco”.
Os olhos de Alexandro, o vampiro, brilharam por um instante
vermelhos, conforme sua face se tornava mais bestial, suas feições
tornando-se mais angulares e primitivas. Os longos caninos ficaram à
mostra por um instante antes que sua face retornasse ao aspecto humano e
frio. “Você é um homem perigoso, Caçador. Vejo que sabe muito sobre os
de meu sangue... É arrogância ou coragem que o traz até mim?”.
Samuel fixou o olhar nos olhos de Alexandro, respondendo-o com
outra pergunta: “É confiança que me traz aqui esta noite, e quanto a você?
É tolice ou inocência que o traz ao domínio de seu inimigo?”
“O que quer dizer, Caçador?”, perguntou o vampiro, intrigado.
“Eu quero a cabeça de Hagan Gudrun”, respondeu Samuel.
O vampiro continuou inexpressivo, seu olhar encarando Samuel
como se, durante o diálogo, estivesse tentando desvendar as emoções do
Anjo, buscando medo ou hesitação. Alexandro encontrava apenas uma
força de vontade que ele não podia compreender. Após alguns segundos em
silêncio, o vampiro ergueu a mão, fazendo um sinal ao subalterno, que
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guardou a arma que apontava para a cabeça de Samuel Fulmen. “Hagan
Gudrun? O que você sabe sobre a Morte Carmim?”
“Eu sei apenas os resultados do Feudo de Sangue que ele criou,
pois o Rio de Janeiro está cada vez mais nas mãos desse bruxo”, disse
Samuel, cruzando os braços e apoiando-os na mesa, enquanto o lacaio
vampiro afastou-se, voltando à sua posição de vigília no parapeito de onde
via a frenética pista de dança abaixo. O Sancti prosseguiu: “Seu progenitor
caiu ante as presas de Gudrun, não é mesmo? Pois eu digo que agora
Gudrun quer o seu crânio, Alexandro, e sua guerrinha sangrenta logo terá
um fim”.
“Se sabe de tantas coisas, Caçador”, murmurou o vampiro, então
erguendo a voz para se fazer ouvir: “então deve saber que Gudrun possui o
Profeta Louco”. Samuel meneou a cabeça positivamente. “Eu não sei onde
nem um nem o outro está!”, concluiu o vampiro.
“Eu não vim aqui atrás de você, Alexandro”, disse Samuel.
“Então...”, murmurou o sanguessuga, quando então seu subalterno
se aproximou, abaixando-se ao seu lado e dizendo em voz alta ao lado de
seu ouvido: “Senhor, ele chegou”.
Samuel interrompeu o subalterno: “Esta noite, a cabeça que
procuro é a de outro. Eu e você viemos em busca de George Matos. Ele não
irá ajuda-lo, Alexandro, mas sim traz seus lacaios para elimina-lo esta
noite. George serve a Gudrun agora. O bruxo foi muito persuasivo”.
“Mentiras!”, exclamou Alexandro, furioso.
“Senhor”, disse o subalterno, “ele não está sozinho”.
“O quê?”, perguntou Alexandro, erguendo-se imediatamente. O
vampiro e seu subalterno prosseguiram até o parapeito a passos rápidos.
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Minha visão os seguiu, e então vi aqueles que acabaram de entrar. À
frente, quase chegando às escadas, vinha um homem de terno, barba grossa,
o topo da cabeça já careca, usando óculos espelhados. Ele era magro,
esguio, e uma grande cicatriz vertical atravessava sua face esquerda,
começando em sua testa e passando por sobre o olho e a boca, até chegar ao
queixo. Outros dois o seguiam. Os homens eram rapazes jovens, vestindo
camisetas de cores vivas, calças jeans e tênis. Um deles tinha barba por
fazer e cabelos longos, negros, enquanto o outro tinha cabelos curtos, de
um tom castanho. Eles tinham jaquetas de couro, sob as quais poderiam
estar escondendo armas. Foi quando o subalterno de Alexandro apontou
uma garota que vinha pela escada presente no outro lado. “Ela entrou com
eles”, disse. A mulher tinha cabelos curtos tingidos de vermelho e uma pele
tão alva que se destacava na multidão. Seus braços eram tatuados com
símbolos tribais, e tinha um piercing no nariz. Ela trajava uma blusa
vermelha e calças jeans, e sob o braço possuía uma bolsa negra de couro.
Alexandro fitou Samuel, após notar a presença da mulher, e então correu
até o Anjo. “Aquela é uma das crias de Gudrun!”, gritou Alexandro a
Samuel, “Sua assassina número um!”.
“Vocês precisam chegar ao bar no primeiro andar e pular o balcão.
Invadam a cozinha, prossigam pelos depósitos e poderão escapar pela saída
dos fundos. Não retorne ao seu lar esta noite, Alexandro. Busque um lugar
alternativo”, Samuel disse, levantando-se. “Eles estarão esperando, caso
consiga escapar”.
“Eu? Fugir? Por que não ficar e lutar?”, perguntou Alexandro.
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“Por que se neste tiroteio morrer qualquer outra pessoa nesta
boate, eu mesmo irei me encarregar de sua morte, Anunnaki”, respondeu
Samuel, virando-se para as escadas por onde George e seus capangas
vinham.
O vampiro se ofendeu com a ameaça. Sua face mostrou desprezo
por Fulmen, mas apenas perguntou: “E como sairei daqui? Saltando pelo
vão e caindo sobre as pessoas abaixo?”.
Samuel se pôs a andar, rumo à escada. “Eu abrirei o caminho”, ele
murmurou, mesmo sabendo que o vampiro não escutaria.
Os três vampiros abriam caminho pela escada, empurrando as
pessoas pelas quais passavam. A música do local diminuiu de intensidade
gradativamente, até sumir por completo. Do outro lado do salão, a mulher
alcançava os primeiros degraus e começava sua escalada rumo ao segundo
andar. Um súbito silêncio tomou a multidão presente, e era como se toda a
boate parasse. Samuel deu seu último passo, parando no topo da escada por
onde os vampiros subiam. Através de seus óculos espelhados, George
Matos fitou o Anjo acima, e sua mente foi tomada por surpresa. “Você!”.
Samuel ergueu a mão esquerda. Então, houve mais um segundo de
silêncio... E uma nova música começou. A multidão urrou, acompanhando
o novo ritmo, mais violento e frenético. George Matos tentou apressar seu
passo, mas uma rajada de vento o atingiu, jogando-o contra os capangas
que o seguiam. George e um dos capangas rolaram escada abaixo, enquanto
o outro conseguiu segurar-se ao corrimão. Samuel correu escada abaixo,
pedindo perdão ao empurrar alguém em seu caminho. O vampiro que ainda
estava em pé rosnou, quando Samuel Fulmen saltou em sua direção. O pé
de Samuel atingiu em cheio o rosto do sanguessuga, derrubando-o escada
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abaixo. O morto-vivo rolou pelos degraus, caindo aos pés de George,
que já se levantava.
Gritos se seguiram, e as pessoas na escada tentavam se afastar de
Samuel, assustadas. Samuel apressou seu passo, correndo para a base da
escada, quando George sacou uma pistola de um coldre oculto sob o paletó.
A visão da arma foi o bastante para provocar gritaria e correria na multidão,
tentando se afastar. As pessoas se empurravam, alguns tentando se afastar,
outros, mais curiosos, buscando se aproximar para melhor ver o que
acontecia. No andar superior, uma multidão se reunia para ver o que ocorria
abaixo. A arma disparou duas vezes, seus disparos atingindo o Anjo, mas
não eram o suficiente para impedi-lo. O punho de Samuel atingiu em cheio
a face de George, arrebentando seus óculos espelhados. O vampiro recuou,
cambaleante, enquanto seu capanga, o de barba por fazer, se erguia para
golpear Samuel. Enquanto isso, os seguranças da boate lutavam para
atravessar o dilúvio de pessoas, tentando chegar aos combatentes.
O capanga que se erguia tentou desferir um soco contra as costelas
do Anjo. Samuel desviou para o lado, erguendo o braço e fazendo a mão do
vampiro atingir a lâmina de aço da espada oculta sob o sobretudo. A
surpresa do vampiro permitiu que Fulmen o agarrasse pelo colarinho com a
mão direita. Em seguida, o anjo girou o corpo, puxando o vampiro e
jogando-o contra a parede. O amorteceu o impacto com os braços, mas não
teve reflexos rápidos o suficiente para se afastar da parede antes que o
Sancti usasse a mão esquerda para agarrar a nuca do sanguessuga e
golpeasse a cabeça da criatura contra a parede.
George demonstrava surpresa. Seu nariz estava quebrado, mas
pouco sangue descia por seu rosto. Ao ver seu capanga tombar após ter seu
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crânio partido, o vampiro demonstrou pânico, dando meia-volta e
saindo correndo, sem se importar em usar sua força sobre-humana para
empurrar ou derrubar quem estivesse em seu caminho.
Alexandro e seu subalterno se puseram a correr escada abaixo, na
esperança de alcançar o balcão do bar antes que a assassina, que estava nas
escadas do outro lado, pudesse percebê-los. Da mesma forma, Samuel
começou a correr atrás de George, deixando para trás o segundo capanga,
que ainda se erguia. Foi neste momento que um dos seguranças alcançou o
Anjo, agarrando-o por trás enquanto este se preparava para correr.
Do outro lado do salão, a assassina observava a cena. Ao perceber
seu alvo correr pelas escadas, a mulher apoiou-se no corrimão, saltando por
sobre ele e caindo com agilidade e graça na pista de dança abaixo, num
espaço vazio deixado pelos freqüentadores, que ou tentavam escapar pela
entrada da boate ou se espremiam para ver a briga.
O segurança tentava derrubar Samuel, mas sua força não era párea
para a força sobrenatural do Elohim. Samuel agarrou os braços do
segurança, e um brilho dourado repentino retirou todas as forças do
homem, que largou Samuel e caiu de joelhos no chão. O segundo capanga
agora avançava contra o anjo, atingindo-lhe no rosto com o punho. Samuel
recuou, notando que o primeiro capanga, caído após quase ter seu crânio
partido, começava a se erguer. Alexandro e o subalterno passaram correndo
pelos combatentes, e então começaram a empurrar a multidão para tentar
chegar ao balcão do bar.
O capanga em pé tentou desferir um segundo soco contra a cabeça
de Samuel Fulmen, mas o anjo desviou facilmente, chutando o estômago
do vampiro para afasta-lo. O golpe do anjo, por mais poderoso que fosse,
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fez o sanguessuga recuar, mas não causou nenhum dano aparente. O
outro capanga, com o rosto todo ensangüentado, finalmente se ergueu, e fez
menção de que iria puxar alguma arma de dentro da jaqueta, quando a
assassina finalmente conseguiu atravessar a multidão. Um outro segurança
da boate também chegava agora, avançando contra Samuel.
Samuel se virou jogando o corpo para a direita e pressionando a
mão esquerda contra o peito do segurança. A força de Samuel mais o poder
elemental do ar que ele invocou derrubou imediatamente o segurança, sem
feri-lo. O Anjo se virou de volta aos capangas, apenas para ver a assassina
passando por eles. “Idiotas!”, ela gritou, “Peguem Alexandro!”. O capanga
mais próximo olhou Samuel e, não o vendo avançar, virou-se para seguir
sua mestra. Da mesma forma, o outro, com o rosto sujo com seu próprio
sangue profano, correu para segui-la. Os vampiros correram para o bar, e as
pessoas abriam caminho para eles, conforme o vampiro ensangüentado
disparava para o ar com a pistola que sacara. Samuel deu as costas a eles, e
correu em direção à entrada, procurando encontrar o fugitivo George,
enquanto a assassina e seus lacaios saltavam o balcão e avançavam pela
porta que levava à cozinha, deixada aberta por Alexandro e seu subalterno.
Lembrando de Alexandro, meu guia espiritual voou através da
porta e da cozinha, até alcançar o vampiro e seu subalterno, que
prosseguiam pelo depósito de alimentos e utensílios, logo além da cozinha.
Logo à frente, ele viu a porta de saída, correndo em direção a ela. Estava
trancada, mas a força do vampiro a arrombou com facilidade, quebrando a
fechadura. Adiante estava um corredor largo, longo e mal iluminado, já ao
ar livre, formado pelo muro que limitava o terreno da boate e as paredes da
própria boate. Ao fim do corredor havia um portão gradeado, que levava à
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calçada. Meu pensamento se voltou ao outro vampiro, George, e mais
uma vez o guia espiritual me mostrou o que eu desejava. Voando através do
portão gradeado, cheguei à calçada, onde uma multidão observava,
tentando entender o que ocorria no interior da boate, e da calçada fui levado
pelo corredor de entrada da boate, por onde George fugia, derrubando os
seguranças que tentavam impedi-lo de sair sem pagar.
Minha consciência voou através do corredor de entrada, onde
estava o caixa da boate, e vi Samuel, que tentava atravessar a multidão
concentrada na entrada, tentando seguir George. As pessoas reclamavam,
conforme o anjo tentava empurra-las sem feri-las. Finalmente chegando à
entrada, Samuel jogou o cartão de consumação e todo o dinheiro que tinha
no bolso para o caixa, e continuou correndo, empurrando as pessoas, às
vezes se desculpando. Os seguranças, já derrubados por George, não
ofereceram resistência.
Vendo Samuel chegar à calçada, minha consciência se fixou no
portão gradeado ao lado da boate. Alexandro alcançou o portão e, sem
reduzir o passo, atravessou as grades do mesmo, por um momento
tornando-se uma espécie de névoa ou espírito e retornando ao aspecto
sólido em seguida. Seu subalterno, incapaz de repetir a façanha do mestre,
escalava as grades, quando a assassina e os dois capangas surgiram pela
porta de chegada ao corredor. Os três correram na direção de Alexandro e
do subalterno, e Alexandro continuou a correr. O subalterno saltou do ato
do portão, caindo suavemente na calçada e tentando acompanhar seu
senhor. A assassina apressou o passo, sua velocidade tornando-se
sobrenatural. Mas então, as sombras se moveram, tentáculos se
entrelaçaram à frente, formando uma rede de escuridão, bloqueando o
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caminho. A assassina, incapaz de desviar-se, foi pega pela rede.
Imediatamente as sombras tentaram agarra-la, moldando-se ao redor de
seus braços e pernas, como se aquilo fosse uma teia de aranha. Os dois
capangas pararam, olhando atônitos para aquela feitiçaria tenebrosa. A
assassina lutava para escapar da teia de sombras, urrando como um animal
selvagem, enquanto uma sombra em particular emergia do chão, logo atrás
dos dois capangas, tomando a forma de um demônio negro mascarado.
Enquanto a mulher rugia, seu rosto deformando-se, assumindo
formas angulares e grotescas, e seus dedos tornavam-se alongados e
afiados, ela se debatia, tentando escapar da rede de trevas. Seus rugidos
fizeram os dois capangas recuarem lentamente, imaginando que um frenesi
a tomava. Foi quando uma sombra feroz avançou, passando velozmente
entre eles. O da esquerda não teve tempo de gritar, seu braço direito e
metade do tórax cortados pela lâmina negra de uma katana de trevas. O
corpo do vampiro tombou inerte, sua carne desfazendo-se, deixando apenas
um cadáver putrefato. Mal atingira o primeiro capanga com o golpe mortal,
Wang girou seu corpo para a direita, num ataque circular contra o peito do
segundo capanga. Este, o de rosto ensangüentado, gritou com o susto
repentino, recuando a tempo para escapar da lâmina negra.
A mulher começava a arrebentar a teia de sombras, enquanto o
capanga gritava, perguntando o nome de seu agressor. Segurando o cabo da
lâmina de trevas com ambas as mãos e colocando a lâmina levemente
tombada frente ao corpo, o Kage fitou o inimigo. O vampiro urrou, atirando
seguidamente com a pistola. O Kage avançou, suas feições demoníacas
tornando-se negras como a noite. Os tiros atravessaram seu corpo tenebroso
sem causar danos, atingindo a parede atrás. Em seguida, assim que o
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Celestial das trevas passou por seu inimigo, o corpo do vampiro
tombou, sua cabeça rolando e se desfazendo até se tornar um crânio
quebradiço. O mascarado parou, lentamente se virando para fitar o único
inimigo que restava.
A mulher conseguiu libertar um dos braços, virando-se o suficiente
para ver o Kage. Lo Wang flexionou as pernas, pendendo a katana negra
para a esquerda do corpo, e avançou rapidamente. O assassina urrou,
abrindo a bocarra e mostrando as presas, e a espada de Lo Wang atravessou
o local da teia em que ela estava, cortando de lado a lado. A lâmina não
cortou carne porém, pois a vampira transformou-se numa névoa espessa,
englobando o Kage. A névoa se moveu rapidamente, como se tornando
uma corrente de ar, e a mulher se materializou seis metros atrás de Wang.
Wang se virou para encara-la. Não havia mais a face animalesca, nem as
garras longas, apenas a forma feminina, sua face presa numa expressão que
misturava raiva e terror.
“Onde está Hagan Gudrun?”, perguntou Wang, sua voz baixa,
sussurrante, sem emoção.
“O que você quer com ele?”, perguntou a assassina, também
contendo suas emoções. Enquanto isso, ela levava a mão à barriga, sobre
um corte leve provocado pela lâmina negra enquanto atravessava a vampira
em sua forma de névoa.
“Uma chuva de sangue”, respondeu o Kage.
“Eu posso providenciar isso!”, gritou a vampira, sua boca
tornando-se uma bocarra cheia de dentes afiados. Ela curvou o corpo para a
frente, abrindo a mandíbula monstruosa, e Wang liberou um grito abafado
de dor. A carne do Kage se partiu, especialmente no pescoço, pulsos e
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peito, e seu sangue formou uma correnteza, sendo sugado pela
mandíbula da criatura. A dor fez Wang cambalear, e a vampira avançou,
seus dedos crescendo em garras, desta vez sangrentas, seus braços se
alongando ligeiramente. Wang tentou se jogar para o lado, mas as garras
alongadas atingiram seu braço. O sangue das garras queimava a carne de
Wang. A vampira saltou após atingir o golpe, indo de encontro à parede.
Seus braços e pernas tocaram a superfície de tijolos, e ela começou a
caminhar pela parede como se fosse uma aranha.
Wang se ergueu enquanto a vampira movia-se com agilidade pela
parede. O olhar da morta-viva fixava-se na máscara do Kage. A lâmina de
trevas dissolveu-se de repente, e o Kage levou a mão do braço direito,
ainda bom, ao ferimento causado pelas garras da criatura no outro braço. A
assassina abriu a bocarra mais uma vez, o branco de seus olhos tornando-se
vermelho-sangue, e da boca saiu uma espécie de chicote carmim, como se
fosse uma longa língua feita de sangue. O chicote, com mais de três metros
de comprimento, atacou as pernas de Wang num movimento horizontal. O
Kage saltou, escapando do primeiro golpe, mas então, antes que tocasse o
solo novamente, a ponta do chicote carmim girou e avançou contra o peito
do Celestial, transpassando seu tórax, perfurando o pulmão direito. Wang
caiu de joelhos, o chicote sendo recolhido para um novo golpe de
perfuração. A ponta do chicote ergueu-se no ar, girando mais uma vez para
descer sobre o anjo caído, que se apoiava com as mãos no chão. Antes que
a arma sangrenta completasse seu giro e se arremetesse contra as costas
desprotegidas do Celestial, a vampira sentiu uma força a impedir. A mão do
braço ferido de Wang se pressionava contra o chão, sobre a sombra do
chicote, como se segurasse a arma cortante através de sua inofensiva
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sombra. A vampira arregalou os olhos vermelhos ao ver Wang estender
seu braço direito, os dedos unidos, e uma treva longa e fina se formar entre
o indicador e o dedo médio. “O destino não sorri para você”, murmurou o
Kage, arremessando a adaga tenebrosa contra a testa da vampira. A
assassina tentou desviar o rosto, mas o chicote paralisado a impediu. A
lâmina perfurou seu crânio, desfazendo-se em seguida. O chicote de sangue
se desfez tornando-se líquido e caindo sobre o chão na forma de gotículas
inofensivas. As mãos e pernas da vampira se libertaram da parede, sua
carne se desfazendo em cinzas, e seu esqueleto quebradiço se partiu ao
bater violentamente contra o chão. Wang se ergueu, lenta e dolorosamente,
sentindo o cheiro forte de sangue. Por trás da face demoníaca, ele sorriu, e
então sombras surgiram em suas costas, formando asas, enquanto as trevas
emergiam de seu corpo, e logo ele se tornava uno com a escuridão.
Meus pensamentos se voltaram a Samuel Fulmen, e imediatamente
minha consciência se arremeteu para os céus, deixando para trás o corredor
ensangüentado e a boate. Meu espírito-guia girou no ar, buscando Samuel,
e então fitou um ponto adiante, avançando uivante, como uma rajada de
vento, em direção a um conjunto de prédios com uma média de dez a
quinze andares. Eu sobrevoei os prédios, vendo carros de polícia passando
pela avenida, indo na direção da boate. Meu guia sobrevoou um prédio,
descendo rapidamente, como se estivesse em queda-livre, até eu avistar
Fulmen. Ele corria por uma rua estreita e deserta, com prédios comerciais,
a esta hora fechados, em ambos os lados, e uns poucos carros estacionados.
O espírito chegou ao solo, seguindo Fulmen, quando de repente o Sancti
parou, no meio da rua estreita rua. “Apareça, Matos!”, gritou o Anjo,
fitando uma árvore na calçada.
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“Caçador!”, uma voz ecoou, forçando Samuel a olhar para os
lados, tentando localizar sua origem, “Sua espada degolou muitas de
minhas crias”.
“Apareça, Matos!”, repetiu Samuel, agora num tom bem mais
baixo. “Eu quero Hagan Gudrun. Diga-me o que quero, e esta noite
deixarei que você parta”. Samuel girava o corpo lentamente, os olhos
atentos buscando a posição de George Matos.
“Gudrun, o Sacerdote de Sangue? Gudrun, a Morte Carmim?”,
ecoou fracamente a voz de George Matos, vinda de algum lugar atrás de
Samuel. O Anjo virou-se rapidamente, curvando o corpo levemente para a
frente e levando a mão direita para o cabo da espada oculta sob o
sobretudo. “Ele é um lunático, o auto-proclamado Sacerdote dos antigos
Anunna”, ecoou novamente a voz, desta vez vindo de uma outra direção.
Samuel não se virou desta vez porém, embora seus olhos continuassem
procurando George Matos. Então, a voz disse num tom de sarcasmo e ódio:
“O Precursor do Sangue! Ah!”.
“Mas ele tem poder”, resmungou Samuel Fulmen.
Um silêncio perturbador se seguiu, mas Samuel permaneceu
fitando a mesma direção, apenas seus olhos se movendo. Após alguns
segundos, a voz de George Matos veio mais baixa, resmungante. “Seu
sangue é negro, e sua reputação o precede! Ele vem da Europa, e pelo que
sei, é mais antigo do que o mais experiente Progenitor do Rio de Janeiro!
Mas ele está aqui por possuir inimigos poderosos além-mar!”.
Samuel deu alguns passos em direção a um carro estacionado.
Logo além do carro, um vão entre dois prédios formava um pequeno beco
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onde as sombras se acumulavam. “Onde o encontrarei?”, perguntou o
Sancti.
Um novo silêncio, e então uma voz murmurante, vinda de lugar
algum: “Você procura morte ou danação, Caçador? Eu sei que não é
humano, mas nem mesmo o mais insano dos Anunnaki busca o Desfazer
com tanto empenho”.
“Onde?”, repetiu Samuel, sem erguer a voz, dando as costas para o
beco escuro e caminhando lentamente em outra direção.
“Cosme Velho”, disse o vampiro, sua voz agora surgindo do beco
escuro. No entanto, Samuel continuou dando as costas para o beco, ainda se
afastando do mesmo. “Mas acredito que seu real refúgio pode estar em
algum lugar em Cerro-corá”.
Samuel se virou de repente para a esquerda, voltando a observar a
rua. Do outro lado, as sombras de uma árvore se mexiam, conforme os
galhos e folhas se moviam levados pelo vento. “Acha que o Profeta Louco
está lá?”. Um carro virou a esquina, entrando na rua, seu farol ajudando a
eliminar parte das sombras. Samuel fitou as sombras do outro lado, mas a
luz não revelou nada. Assim que o carro passou, o Sancti perguntou
novamente: “Onde está o Profeta Louco?”.
“NINGUÉM”, gritou o vampiro, sua voz vinha do outro lado da
rua, continuando então num tom mais calmo: “Ninguém é permitido saber
sobre o Profeta”.
“Eu o encontrarei”, murmurou Samuel. “Eu juro por Deus!”.
“Você soa como o padre decrépito que guardava o Profeta”, a voz
veio de lugar nenhum, então o tom de voz ergueu-se até se tornar um urro:
“Como ele, seu lugar é entre os MORTOS”. Samuel se virou para a
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esquerda, de onde George Matos surgiu como se viesse do nada. A
boca do vampiro se abriu e seus caninos alongados e pontiagudos
perfuraram a carne do pescoço do Anjo enquanto seus braços envolviam
Samuel Fulmen num abraço mortal. Samuel tentou recuar, mas o vampiro
já o prendia com força. Sangue celeste era sugado com fúria, mas então o
vampiro urrou, seus lábios queimando como se ácido tivesse caído em sua
boca. O vampiro recuou, assustado, seus olhos arregalados, enquanto os
lábios queimados expunham a mandíbula. De sua boca escorria sangue e
saía uma fumaça fétida, resultado de suas entranhas queimadas. Samuel
Fulmen também recuou, levando a mão ao ferimento aberto no pescoço,
que imediatamente se fechava. “Que maldito sangue é este?”, questionou o
vampiro.
“O sangue de Cristo”, murmurou Samuel, encarando o vampiro.
Sua mão direita puxava finalmente a longa espada, que então empunhou
com ambas as mãos, erguendo-a à esquerda do corpo, a lâmina apontada
para cima, mantendo o cabo à altura de seu peito. As pernas do Anjo se
flexionaram, prontas para um impulso rápido para a frente.
O vampiro rosnou, recuando alguns metros sem virar as costas ao
adversário. Sua barba grossa parecia crescer, tornando-se maior e eriçada,
enquanto a boca se expandia a proporções monstruosas, seus dentes se
tornando presas afiadas. Os olhos do monstro brilharam vermelhos,
enquanto a pele enegrecia e as orelhas se tornavam pontiagudas e longas.
Seus dedos também se estenderam, tornando-se finos e pontiagudos, com
articulações grossas. Em resposta, a lâmina da espada de Samuel Fulmen
ardeu numa fantasmagórica chama dourada que emitia fraca luz. “O que
diabos é você?”, perguntou o vampiro.
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O Elohim avançou, negando uma resposta ao sanguessuga. O
vampiro abriu os braços, abaixando o corpo, preparando-se para um contra-
ataque mortal com as garras. De repente, em meio à corrida, Samuel
inverteu a posição de sua espada, apontando a lâmina para baixo. A três
metros do vampiro, o Anjo ergueu a espada acima da cabeça, e então se
jogou de joelhos ao chão, a ponta da lâmina tocando a calçada. O vampiro
avançou, mas então um círculo de chamas douradas cercou o Celestial. As
chamas fantasmagóricas tomavam tudo em um raio de alguns metros, mas
nada queimavam a não ser o morto-vivo, que recuou imediatamente,
uivando em ódio, para escapar do círculo de fogo purificador. Ainda
ajoelhado, Samuel ergueu a cabeça, seus olhos brilhando como o Sol. O
medo transpareceu na face do morto-vivo ao ser fitado pelo Anjo, e então
George Matos recuou ainda mais, mostrando presas e garras como se fosse
um animal acuado. O Celestial se ergueu e as chamas ao seu redor
desapareceram quando Samuel deu seu próximo passo, sempre fitando o
vampiro com seus olhos brilhantes. “QUEM DIABOS É VOCÊ?”, urrou o
vampiro.
Samuel não se preocupou em responder, ao invés disso dando mais
um passo na direção de George. O olhar de Samuel mudou, o brilho
sumindo de seus olhos, dissipando-se lentamente. A espada, porém, ainda
brilhava com intensidade, e era erguida por ambas mãos, à esquerda do
corpo. O morto-vivo o fitava apreensivo, o olhar vermelho não perdendo a
intensidade.
Os dois se encararam por alguns segundos, nenhum ousando se
aproximar mais. Então, o vampiro urrou, avançando, suas garras preparadas
para o ataque. O golpe horizontal de Samuel Fulmen traçou um arco
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dourado no ar, atravessando o tórax do vampiro com perfeição. Porém,
a forma do vampiro se desfez numa cortina de sombras, dissolvendo-se
rapidamente. Foi quando o verdadeiro vampiro emergiu do nada, atacando
pela esquerda desprotegida de Samuel. O Anjo tentou escapar, mas não
antes que as garras da mão direita do vampiro rasgassem a carne de seu
pescoço e parte de sua traquéia. Fulmen recuou, levando a mão esquerda ao
ferimento, e ao mesmo tempo atacou com a espada, agora empunhada
apenas com a mão direita, com o intuito de forçar o monstro a se afastar.
Num recuo rápido, o morto-vivo escapou facilmente do ataque da lâmina,
desaparecendo em seguida.
“Por que diabos você simplesmente não morre?”, veio ecoante a
voz do vampiro, ao notar que a perda de sangue não enfraquecia Samuel, e
o ferimento mortal não o fez sequer cair de joelhos.
A mão esquerda de Samuel brilhou em leve luz dourada, e o
ferimento no pescoço se fechou parcialmente, estancando o sangramento
mas ainda deixando um corte sangrento. Então, o anjo voltou a segurar sua
arma com ambas as mãos, e permaneceu ali, imóvel, seus olhos buscando
qualquer sombra que se movesse.
“Você não é humano”, a voz do vampiro sussurrou no ouvido
esquerdo de Samuel. O Anjo não ousou se mover, porém. “Eu desconfiava
disso”, disse a voz, desta vez num tom alto, vinda do outro lado da rua. O
Elohim permaneceu apertou as mãos com mais firmeza no cabo da espada,
preparando-a para um golpe rápido. A voz veio do beco próximo: “Por
anos, você tem derramado o sangue dos Anunna, mas o que você é? Não é
um de nós”.
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Samuel se virou de repente, dando meia-volta. Não havia nada
por perto. “Os mortos sussurram que você brilha com vida”, disse o
vampiro, sua voz vinda de lugar nenhum. “Mas o Profeta não diz uma só
palavra sobre você”.
Os olhos de Fulmen se moviam lentamente, buscando algo ou
alguém. O Anjo moveu a cabeça lentamente para direita, buscando fitar
algo que poderia estar atrás dele. O rosnar do vampiro veio em seguida,
vindo por trás. A criatura surgia do nada, suas garras próximas do coração
de Samuel. O Anjo rapidamente moveu sua arma, girando o corpo para a
direita, sua lâmina traçando o ar, mas não atingindo a criatura que vinha
por trás, e sim o vampiro invisível à frente. A marionete de sombras, usada
como chamariz, dissipou-se antes de tocar Fulmen, mas o verdadeiro
George Matos sentiu a lâmina penetrar seu tórax, partindo suas costelas e
cortando parte de seu coração. O vampiro tombou em seguida, surpreso e
derrotado.
A face de George Matos retornava ao seu aspecto humano, e suas
garras uma vez mais pareciam dedos inofensivos. O frio sangue vampírico
escorria pelo ferimento, não em quantidade, mas o suficiente para manchar
suas roupas. “Que Deus tenha piedade de sua alma”, murmurou Samuel,
invertendo a posição da espada, fazendo a lâmina apontar para baixo.
“...pois eu não terei”, continuou o Sancti, perfurando o crânio do vampiro
com a lâmina. O morto-vivo emitiu seu último grito, e em instantes seu
corpo começou a se deteriorar, como se fosse um cadáver com meses de
idade. Samuel Fulmen fez o sinal da cruz, e logo depois puxou um pano de
um dos bolsos, limpando a lâmina da espada, e em seguida a embainhou
sob o sobretudo.
395
Samuel fitou o cadáver de George Matos por alguns segundos.
“Que sua Alma encontre um caminho que não o Inferno”, sussurrou. Em
seguida, ele se abaixou, revistando o corpo. No bolso, encontrou um
celular. Em outro, estavam as chaves do carro e a carteira. Samuel se
levantou, abrindo a carteira e olhando os documentos. Todos eram falsos.
Samuel jogou a carteira e as chaves sobre o corpo, mas manteve em suas
mãos o celular e os documentos.
De repente, um carro de polícia virou a esquina, entrando na rua,
suas luzes de alerta ligadas, mas sem sirene. Samuel pensou em correr, mas
então uma voz murmurante disse: “Não se preocupe”. O Sancti se virou
repentinamente para encarar Lo Wang, agora sem máscara, mas ainda com
as roupas apresentando cortes, rasgos e outros sinais das batalhas contra os
Caídos de Oostegor e os vampiros do Rio de Janeiro. “Eles não nos verão”,
disse Lo Wang. De fato, o carro passou sem nota-los. Por sorte, ou talvez
pela vontade de Lo Wang, também não perceberam o corpo de George
Matos.
“Você é um dos companheiros de Nicodemus”, disse Samuel
Fulmen.
“Tenshi Lo Wang, Virtuoso entre os Kage”, apresentou-se o anjo
negro, abaixando a cabeça em sinal de cumprimento e respeito.
“Anjo Samuel Fulmen, Elohim entre os Sancti”, respondeu Samuel.
“Meus companheiros desejam falar com você, Anjo Fulmen”, disse
Lo Wang, “Pois acreditamos que a sua busca é a nossa”.
“E o que vocês buscam?”, perguntou Samuel Fulmen.
“O Profeta Louco”, disse o Kage, “mas ao contrário de você, nós
compreendemos o que buscamos. Acredite em mim, Curandeiro, que há
396
mais perigos nesta busca do que você imagina, e que o destino de mais
do que apenas os vampiros de uma cidade dependem de nosso sucesso”.
“O que quer dizer?”, perguntou perplexo Fulmen, seu olhar
paciente demonstrando curiosidade.
“Que você busca um louco e não a Verdade”, disse Lo Wang, “mas
acredito que Nicodemus poderá explicar melhor”. Então, o Anjo das Trevas
deu um passo para trás, uma sombra rapidamente cobrindo-o, e sua forma
desaparecendo por completo.
“Espere!”, pediu Fulmen, estendendo a mão para o local em que
Wang antes estava. Ao notar que não houve resposta, Samuel Fulmen
guardou o celular e os documentos no sobretudo, e então, colocando as
mãos nos bolsos do sobretudo, caminhou, pensativo, pela rua escura.
Pouco a pouco, minha consciência se elevou, e meu espírito-guia se
afastou do Anjo solitário. Samuel continuou caminhando, cada vez mais
distante, enquanto minha visão já se mantinha acima dos prédios.
Rapidamente, senti minha consciência ser puxada de volta, talvez chamada
por Asphael Veritas. O espírito arremeteu-se em grande velocidade, de
volta ao apartamento. Porém... havia algo... Eu olhei para o leste, e vi a
escuridão da noite tocar o oceano negro. Mas havia... algo... que não podia
ser visto. O horizonte estava plácido, mas eu pressenti que vinha uma
tempestade. Talvez o espírito do ar pudesse me levar, mas eu sabia que,
estando tão longe, mesmo o espírito não a alcançaria a tempo.
E ouvi trovões e o som de ventos extremos e chuva torrencial. O
som era tão distante, um simples eco, mas ao mesmo tempo era claro em
minha mente. Estava além da visão, além da percepção comum, mas minha
alma ouvia. Uma tormenta urrava, num local muito além do horizonte. E
397
ouvi, em meio à tempestade, o urro do tigre, acompanhado do poderoso
bater de asas de alguma criatura, logo acima das ondas furiosas.
Ele nos encontrou. Shiva estava vindo.
398
Capítulo 17: A Tempestade Vindoura
Meus olhos se abriram lentamente, enquanto o som de uma voz
feminina alcançava meus ouvidos. “Há a previsão de chuvas fortes esta
noite em todo o Sudeste brasileiro”. Meus olhos se abriram lentamente,
meu corpo parecia pesado. A luz do dia trazia alívio. Eu estava deitado no
sofá na sala de Samuel. O Sol já tinha se erguido, e sua luz entrava pela
porta de vidro da sacada. Aquela longa noite finalmente teve um fim, e eu,
mesmo que sem querer, tinha sucumbido ao sono. Alguém se sentava no
sofá ao lado, assistindo televisão, enquanto a moça do noticiário matinal
alertava: “Os meteorologistas alertam para uma tempestade que está se
formando em alto-mar. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, este
acontecimento é fora do comum e ainda precisa ser estudado. É possível
que a tempestade que atingirá o Sudeste, especialmente o Estado do Rio de
Janeiro, seja uma das mais fortes tempestades dos últimos anos”.
A pessoa no sofá ao lado retrucou: “Mais mortes, mais barracos
soterrados, mais alagamentos, mais desabrigados... Como se já não
bastassem as chuvas do ano-novo”. Reconheci a voz como sendo de
Samuel. Me levantei lentamente, fitando-o. Vestido de bermuda e camiseta
regata, com os cabelos presos em um rabo-de-cavalo, Samuel me olhou,
abrindo um sorriso. “Bom-dia, Philipe. Karina preparou um belo café da
manhã para fortalecer seu ânimo”, ele disse, mostrando o copo de vidro que
tinha à mão, com ainda um pouco de suco. “Que tal um suco de
maracujá?”, ele perguntou, sorrindo, em seguida falando em voz alta para
os outros que estavam no apartamento: “Ele acordou!”.
Sentei-me no sofá, apoiando a cabeça em minhas mãos, esfregando
bem meus olhos. Sentia-me renovado, não o suficiente, mas sabia que tinha
399
recuperado as forças necessárias para continuar nossa busca. Karina
entrou, vinda da cozinha, seu rosto sorridente. Ela vestia um top negro e
bermuda, e sua beleza parecia mais radiante que o normal. Seus cabelos
ruivos se mantinham presos atrás da cabeça, e ela veio o mais rápido
possível até mim. “Philipe!”, ela disse, se ajoelhando à minha frente,
“estávamos preocupados!”.
“O que aconteceu?”, perguntei a ela, mas também fitei Samuel em
busca de uma resposta. No canto de meu olho, vi outra pessoa entrar na
sala, vinda dos quartos. Era Al-Malik, que foi rápido em me responder:
“Quando saímos de nosso transe durante a noite, você caiu desacordado,
Nicodemus”.
“Eu estava preocupada”, disse Karina, “pois quando tinha saído do
banho, vi vocês, Asphael e Ansgar em transe. Fiquei esperando aflita, mas
quando os outros acordaram, você caiu inconsciente”.
“Me desculpem por preocupar vocês”, pedi. “Mas agora estou
bem”.
“Sim, Lorde Asphael disse que você estava exausto”, disse Al-
Malik. Eu fitei o Malaki, vendo que ele tinha conseguido roupas novas.
Para minha surpresa, ele desta vez vestia roupas ocidentais, e não portava o
turbante na cabeça, deixando seus cabelos longos e negros à mostra.
“Onde estão os outros?”, perguntei.
“Lá em cima”, disse Samuel. “O apartamento é meio apertado para
tantas pessoas. O Princeps queria aprender a usar sua espada, e o Venator
quis ensina-lo. Os outros foram acompanha-los para ver”.
400
Sorri pensando no entusiasmo de Absolon. Al-Malik,
entendendo meus pensamentos, comentou: “Achille Absolon mudou muito
desde que isso começou”. Concordei meneando a cabeça.
“Nicodemus”, interrompeu Samuel, enquanto Karina se sentava ao
seu lado no sofá. “Precisamos conversar”, ele disse, seriamente.
“Sim, precisamos”, respondi, “mas não aqui. Vamos subir. O que
temos a conversar é do interesse de todos”.
Samuel concordou. Ao me levantar, aproveitei para tirar o
sobretudo e olhar o buraco em minha camisa, causado pelas minhas
próprias asas. “Poderia me emprestar uma camiseta, Samuel?”, pedi. O
Sancti foi rápido em me oferecer uma camiseta branca.
Pegamos o elevador para o último andar, e então de lá usamos as
escadas para chegar ao topo do edifício. O acesso é normalmente restrito,
mas a tranca da porta para o exterior estava aberta. Além da porta, vimos a
cidade à frente. Nosso edifício era pequeno e antigo se comparado aos seus
vizinhos, mas mesmo dali era possível ver um pouco daquela grande cidade
de concreto. No topo do prédio, tínhamos a caixa d´água, um acesso ao
fosso do elevador e antenas e pára-raios. O chão era de concreto, e às
bordas do prédio estava uma pequena mureta, com cerca de um metro de
altura. Assim que passei pela porta, ouvi o som de metal se chocar com
metal, e desviei minha visão para a direita, vendo nossos companheiros.
“Mais forte!”, dizia Ansgar, sua espada sendo golpeada pela lâmina
de Absolon. “Não basta velocidade! Prefira um golpe mortal a vários
golpes leves!”. O Venator estava sem camisa, usava apenas tênis e calça
jeans, possivelmente emprestadas de Samuel ou pegas de algum outro
lugar.
401
Lo Wang, por sua vez, estava de braços cruzados ali perto.
Também com roupas comuns, usando uma calça preta e uma camiseta sem
mangas, descalço. Ele sorria, vendo o treinamento do jovem Absolon.
“Você está deixando a guarda aberta ao atacar tanto”, ele disse. “Afaste-se
do oponente após o golpe, arme o segundo ataque e espere o momento
certo. Se o primeiro golpe falha ou é bloqueado, o oponente irá contra-
atacar. Isso não é um desses filmes americanos de ninjas e samurais”.
“Bom-dia, Nicodemus”, disse Absolon, se afastando um pouco de
Ansgar, sem dar as costas ao Venator, e então usando uma das mãos para
tirar o suor da testa. Os outros pararam para nos olhar, enquanto eu, Karina,
Al-Malik e Samuel nos aproximávamos.Vendo que o treinamento parava,
Absolon baixou a arma. Ele vestia uma camiseta colorida, uma bermuda
azul e chinelas.
Fabrizia estava sorridente, seus cabelos negros e lisos reluziam sob
a luz do Sol. Ao ver o fim do treinamento, ela se levantou da mureta, onde
estava sentada, e se aproximou de Absolon. A Xamã ainda vestia a mesma
blusa e short com que tinha ido dormir. Seus cabelos soltos eram erguidos
pelo vento, às vezes uma mecha caindo diante de seus olhos. Ao chegar a
Absolon, Fabrizia tocou seu ombro, então se apoiando o peso do corpo no
Princeps. Absolon virou-se para fita-la, sorrindo em seguida.
“Onde está Lorde Asphael?”, perguntei a Absolon.
“Ele estava aqui”, respondeu o Sancti.
“Estou aqui”, veio a voz de Asphael, vinda por trás de nós. O
Arcanjo surgiu vindo de trás da caixa d’água. “Eu estava orando e
meditando”, disse ele, que ainda vestia a mesma túnica árabe de antes, com
o mesmo manto cinzento, mas estranhamente limpos e reparados de todos
402
os danos. “Chegou a hora de contarmos ao Sancti?”, perguntou o
Arcanjo.
Meneei uma resposta positiva com a cabeça, e nos reunimos sob a
sombra de um prédio maior, para evitar o calor do Sol enquanto
conversávamos. Ali, com todos reunidos, alguns sentados na mureta de
segurança que limitava o edifício, outros em pé, eu fitei Samuel Fulmen:
“Samuel, estes são meus companheiros, creio que já conheceu todos eles
enquanto eu dormia”. Samuel confirmou que sim, então continuei: “Nós
estamos aqui numa missão de extrema importância, e não acho que você
está realmente preparado para conhecer nossa busca, mas precisamos de
sua ajuda. Me ouça com atenção, pois quem nos enviou aqui não foi um
Anjo ou Arcanjo, nem foi a provocação de um demônio ou uma Cria de
Lucifugo. Quem nos trouxe até o Rio de Janeiro foi Metatron, a Voz do
Lorde Sábio em pessoa.
Samuel pensou em dizer algo, mas se calou. E eu continuei,
começando do princípio. Eu contei a ele sobre nossos sonhos, e sobre os
terremotos em Libraria. Eu narrei nossa jornada pelas profundezas do Éden,
e o tesouro que encontramos ali. Eu revelei o conteúdo daquele tesouro,
aquele jarro que continha a essência aprisionada do próprio Lorde do
Sangue. Fitei os olhos de Samuel, esperando alguma pergunta, mas vendo
que ele nada tinha a dizer, continuei, descrevendo nosso encontro com o
Conselho Veritas, e a nossa invasão ao templo esquecido de Dur Sharrukin.
Contei a ele, uma a uma, cada visão que tivemos naquele lugar profano, e
repeti, da melhor forma que a memória me permitia, as palavras que Khral-
Harshek, o cavaleiro, nos disse. Então, lembrei-me sobre Isfahan e Chak-
chak, e nosso encontro com o Arcanjo Asphael, antigo pupilo do próprio
403
Grande Veritatis. Minhas memórias se tornavam mais vivas, e minhas
revelações mais intensas, conforme eu me recordava dos eventos que
transpiraram na Longa Noite, na qual chegamos a Jerusalém para impedir o
avanço do Tigre. Contei a ele sobre o que encontramos nas profundezas da
cidade sagrada, sobre o terrível encontro com Íblis Al-Qadim e o combate
mortal com o tigre, que então descobrimos se chamar Shiva. Eu falei sobre
o Velho, aquele chamado de Profeta Louco pelos Anunnaki do Rio, e sobre
a alma de Veritatis, aprisionada naquela forma frágil e mortal. Então,
descrevi as maravilhas da Cidade Eterna, e contei sobre a traição de
Azubah em Oostegor. Lembrei-me também das palavras de Lúcifer, e
finalmente decidi falar, tanto ao Sancti como aos meus demais
companheiros, o que realmente aconteceu no Plano das Idéias, e as palavras
que Metatron me disse naquele momento.
“Nós buscamos Veritatis, Samuel”, concluí, continuando: “Estamos
perto de encontrar Uriel-chamado-Veritatis, Primus dos Veritatis
Perquiratores e Mors Sancta, construtor de Libraria. E, para isso,
precisamos encontrar o Profeta Louco antes que Shiva chegue a ele. Não
estamos enfrentando vampiros, mas a ira dos Grandes Lordes do Inferno”.
Samuel ficou boquiaberto. “Um dos Primi!”, ele murmurou. Karina
segurou sua mão, confirmando minhas palavras, sua face triste e séria, seus
olhos quase revelando os horrores pelos quais passamos. “Mas por que
somente vocês? Como um peso desses pode estar sobre apenas vocês? Os
outros precisam saber! Os Arcanjos! Os Primi!”.
“Não”, revelei. “Porque eu finalmente entendi, quando o Grande
Lorde Agliareth quase me possuiu no Plano das Idéias. Um segredo deve
ser um segredo. Não há tempo, não há ajuda. Quantos mais vierem nesta
404
busca, mais facilmente os Grandes Lordes nos alcançarão. Quantos
mais descobrirem o paradeiro do Velho, mais mentes o Inferno terá à
disposição para ler. É preciso haver silêncio. E entenda, que esta noite isso
terminará”.
Todos me olharam sem entender, com exceção de Asphael, que
compreendia o que eu quis dizer. “Ele está vindo”, revelei, “Shiva está
vindo e trás o Inferno consigo. Se não encontrarmos Veritatis esta noite, o
tigre o alcançará”. Eu olhei para o céu claro acima, com apenas algumas
nuvens. Por mais poluída que estivesse a atmosfera, o azul ainda tinha
beleza. “Em breve as nuvens começarão a chegar, e a tempestade vai cair
novamente”.
“Nicodemus”, murmurou Samuel, me olhando seriamente. “O que
faremos? Ou seria... O que devo fazer?”.
Eu sorri. “Bem-vindo à nossa Falange. O que era Sete agora são
Nove. Nenhum de nós está aqui por acaso”. Então, fitando os olhos negros
de Samuel Fulmen, disse: “Por favor, amigo, nos conte tudo, desde o
princípio, que está acontecendo nesta cidade”.
“Com prazer”, disse Samuel. “Começou em 1999. Naquela época,
o Patriarca vampírico do Rio de Janeiro era um ancião chamado Aloísio
Domos de Oliveira. Aparentemente, ele era antigo o suficiente para ter
chegado ao Brasil por volta do século XVII. Pelo que consegui descobrir,
Aloísio pertencia era um Ereshkigal, e era um homem moderado. Eu tinha
poucos problemas com ele. Normalmente ele influenciava a política do Rio
e tinha negócios escusos com o tráfico de drogas, mas em geral se mantinha
longe da violência e não atraía os olhares dos Celestiais cariocas. Desde o
405
fim da ditadura militar, porém, o poder de Aloísio vinha decaindo, com
o surgimento de facções rebeldes”.
“Que tipo de facções rebeldes?”, perguntou Absolon.
“A maioria se apoiava no poder do tráfico de drogas”, respondeu
Samuel. “Porém, as facções eram pequenas e desorganizadas. Além disso,
desde o fim da ditadura, Aloísio tinha dificuldades em manter influência na
prefeitura da cidade, e alguns rivais se aproveitaram disso para enfraquecê-
lo. Porém, apesar da violência e dos constantes conflitos vampíricos, até 99
a situação estava sob controle. A maioria dos Celestiais cariocas, eu
incluso, estávamos mais preocupados com o crime organizado e com
licantropos. Mas então surgiu um novo elemento que desequilibrou a
situação”.
“Hagan Gudrun?”, perguntou Lo Wang, de braços cruzados e
apoiando-se na mureta.
Samuel fitou o Kage. “Não”, respondeu o Sancti. “Hagan Gudrun
era um problema ausente. Eu já tinha ouvido falar dele uma ou duas vezes.
Parece que ele é mais antigo que qualquer outro vampiro no Rio, mas se
mantinha isolado, e suas crias apoiavam o Patriarca em troca de serem
mantidas fora das políticas da cidade... O que realmente iniciou tudo foram
caçadores. Não que eles não fossem ausentes antes, mas de um momento
para outro, era como se conhecessem os movimentos e os objetivos dos
seres sobrenaturais cariocas. A princípio, poucos se importavam com a
presença dos caçadores, pois eles estavam eliminando peixes pequenos.
Um Anunnaki aqui, um licantropo ali. O problema começou quando os
caçadores finalmente conseguiram invadir uma reunião de uma das mais
influentes crias de Aloísio”.
406
Samuel parou por um momento, observando o olhar de Al-
Malik. Vendo que o Malaki não ia perguntar nada, o Sancti continuou. “As
coisas se tornaram piores com o tempo. A morte de vampiros influentes fez
com que as facções vampíricas começassem a se culpar, e uma guerra
começou. Se os sanguessugas estivessem apenas se matando, eu não
ligaria, mas tudo se tornou um caos quando começaram a assassinar ou
seqüestrar pessoas influentes, bandidos, políticos e empresários, a fim de
enfraquecer seus rivais. Para tornar ainda pior a coisa, mais esconderijos de
vampiros importantes estavam sendo invadidos pelos caçadores”.
“E onde o Profeta Louco entra nesta história?”, perguntou Ansgar.
“Ele foi a origem de tudo”, respondeu o Sancti. “Distraído pela
guerra vampírica, eu não dei muita atenção aos caçadores. Ao invés disso,
me aproveitei da vulnerabilidade dos vampiros para ataca-los. Houve uma
invasão de vampiros de Gudrun na Catedral de São Sebastião, por volta de
Abril de 2000, se não me engano. Para o público, foi uma invasão de
bandidos fugindo de uma facção rival. Para minha surpresa, os próprios
párocos sustentavam esta versão. Minha investigação não me revelou
muito, até que, no fim de 2000, um dos padres foi atacado repentinamente
na rua. Isso me levou a Inácio Alves de Lima. O bom padre estava no
hospital, às portas da morte. Eu conversei com ele duas vezes, mas ao me
Revelar, quando ele estava para morrer, ele finalmente confessou toda a
verdade para mim”.
“E o que você descobriu?”, perguntei, mesmo sabendo
parcialmente da resposta, após termos analisado as anotações e recortes de
Samuel na noite passada.
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“O padre era um Azarias da Sociedade de Tobit”, respondeu o
Sancti.
“Sociedade de Tobit?”, questionou Fabrizia. “O que são eles?”.
“É uma ordem secreta dentro da Igreja Católica”, respondi.
“Poucos sabem sobre ela. Na verdade, quase ninguém ouviu falar dela.
Quando a Inquisição acabou, alguns Arcebispos, talvez até mesmo o Papa,
ainda tinham acesso aos arquivos dos inquisidores, que detalhavam seus
sucessos na caça aos monstros europeus. A Inquisição foi uma iniciativa
falha, destinada ao extermínio do sobrenatural na Europa, mas que logo se
tornou uma ferramenta política. Alguns conservadores dentro da Igreja
resolveram recria-la sob uma nova face, de forma que suas atividades não
fossem ligadas à Igreja. Assim nasceu a Ordem de Tobit. Seus membros
são sempre chamados Azarias, e eles não agem diretamente na Caça. Ao
invés disso, eles financiam e fornecem informações e equipamento aos
caçadores”.
“Exato”, confirmou Samuel. “Padre Inácio era o Azarias de quatro
caçadores cariocas. Um dos caçadores tinha sido morto cerca de mês antes
da invasão da Catedral, mas pelo visto Hagan Gudrun utilizou alguma de
suas bruxarias para arrancar dele o conhecimento sobre a presença de um
Azarias. Investigando o Padre Inácio, Gudrun descobriu sobre a existência
do Profeta Louco”.
“O Velho estava com o padre?”, perguntou Karina.
Samuel continuou, respondendo a Supervivente: “Sim. Inácio
cuidava desse ‘Velho’ desde que o encontrou nas ruas da cidade, por pura
compaixão. Pelo que Inácio me disse, antes de morrer, o ‘Velho’ era
assombrado por fantasmas, e às vezes falava sobre o Céu e o Inferno. Mais
408
do que isso, Inácio descobriu que o ‘Velho’ tinha o dom de sentir a
presença do sobrenatural e prever acontecimentos. Foi aí que o nome
‘Profeta Louco’ foi dado a ele”.
“Então, o Azarias usava as profecias do Velho para guiar seus
caçadores”, murmurou Al-Malik.
“Exatamente”, confirmou Samuel. “Mas então o Profeta Louco
caiu nas mãos de um vampiro”.
“Hagan Gudrun”, disse Ansgar.
Samuel moveu a cabeça afirmativamente. “Ele é mais poderoso do
que parecia, e sua intervenção nos eventos fez a guerra vampírica atingir
níveis insuportáveis. Em pouco mais de seis meses, o Patriarca estava
morto, e quase metade dos vampiros mais influentes da cidade tinha sido
destruída ou foi forçada a se aliar a Gudrun”.
“E esta é a situação atual?”, perguntei.
“Quase”, respondeu Samuel. “Gudrun é esperto e cauteloso. Ele se
utiliza de suas crias e de fantasmas para fazer a sua vontade. Ele raramente
aparece, e eu nunca vi seu rosto, embora já tenha ouvido descrições. Pelo
que me parece, ele é um Namtar, e é conhecido como um bruxo. Ele tem
utilizado o Profeta Louco para prever os passos de seus inimigos, mas pelo
que Inácio me disse e pelo que observei, o Profeta nunca fala nada sobre
atividades Celestiais no Rio de Janeiro”.
“Precisamos encontrar Gudrun para podermos prosseguir”, eu
disse, “Há alguma esperança de conseguirmos encontra-lo esta noite?”.
“Eu nunca estive tão perto de chegar a Gudrun como agora,
Nicodemus”, respondeu Fulmen. “Ontem meu objetivo era tomar as
respostas de um dos aliados de Gudrun. George Matos, meu alvo de ontem,
409
possuía uma formidável influência entre algumas quadrilhas de
traficantes de drogas cariocas. Até pouco tempo atrás, George era um
opositor de Gudrun e queria a posição de Patriarca. Só que, após ter boa
parte de sua influência roubada ou destruída, ele assegurou sua vida
prometendo a Gudrun eliminar seu maior opositor, a Cria do antigo
Patriarca, um Anunnaki chamado Alexandro”.
“E você descobriu algo?”, perguntou Karina.
“George disse que Gudrun se esconde em Cosme Velho ou talvez
na favela de Cerro-corá”, respondeu Samuel, “Isso bate com as suspeitas de
outros vampiros e com o pouco que descobri durante estes anos todos. O
problema é que ainda é muito pouco para o encontrarmos. Eu tenho o
celular de George Matos e alguns de seus documentos, e posso tentar usar
esta informação para descobrir onde ele tem ido e com quem tem falado,
mas isso levará muito tempo”.
“E nós temos pouco tempo...”, murmurei, baixando a cabeça para
pensar em alguma solução.
Foi quando ouvi um murmúrio, e ergui meus olhos para fitar os
lábios de Al-Malik se moverem suavemente, como se ele repetisse algo a si
mesmo. Al-Malik se virou para mim, murmurando: “É meu momento,
então, é o que Helammelak me disse em Libraria. Eu nunca esqueci aquelas
palavras...”. Então, ele se voltou aos demais, sua voz erguendo-se: “Karina!
Samuel! Nicodemus e Lorde Asphael! eu precisarei de vocês”.
“O que tem em mente, Al-Malik?”, perguntou Karina.
“Samuel tem o conhecimento sobre os ghûl, e você pode nos guiar
como ninguém mais, Karina”, disse Al-Malik. “Já Nicodemus saberá
410
decifrar os sinais que estiverem à nossa frente... Mas eu, eu posso
arrancar verdades mesmo do mais terrível dos Djinni”.
“E quanto ao resto de nós?”, perguntou Ansgar.
“Seria melhor que ficassem aqui, Ansgar, e continuassem com seus
treinamentos”, respondeu o Malaki. “Tornem Absolon um guerreiro, pois
mais tarde precisaremos de todos vocês”.
“E quanto a mim?”, perguntou Asphael Veritas.
“Venha comigo também, Lorde Asphael”, pediu Al-Malik. “Eu sou
só seu serviçal, grande Arcanjo, mas precisarei de suas habilidades”.
“Que assim seja”, disse o Arcanjo.
Al-Malik pediu que nós o seguíssemos, enquanto os demais
ficaram para trás. Descemos novamente ao apartamento de Samuel, onde o
Malaki nos pediu que nos vestíssemos para sair. O próprio Cuique Suum já
estava pronto desde o início, vestido com calça e terno. Sua aparência,
embora claramente árabe, lembrava um homem de negócios. Asphael
também não precisava se trocar, já vestido com a mesma roupa que usou
em toda a nossa jornada. Karina, porém, foi se trocar no quarto de
hóspedes, enquanto eu e Samuel entramos no mesmo quarto.
“O que o Malaki tem em mente?”, perguntou Samuel, enquanto eu
trocava a camiseta emprestada por uma camisa branca, e em seguida
procurava um paletó que combinasse com minha calça, por mais suja que
ela estivesse.
“Não sei”, respondi, enquanto Samuel colocava uma camiseta azul
escura e trocava a bermuda por calças jeans. “Mas se Al-Malik tem um
plano, então é melhor que pelo menos tentemos. Nosso tempo é curto”.
411
Samuel olhou para sua espada, jogada sobre a cama. Então,
pegou o sobretudo e o vestiu, em seguida indo à direção da arma. “Estou
nesta busca há dois anos e meio, Philipe, e de repente descubro que o
tempo acabou”. Por fim, ele embainhou a arma.
“Que acabe esta noite”, eu murmurei.
“Que acabe esta noite”, ele repetiu.
Quando saímos do quarto, Karina, Asphael e Al-Malik já nos
esperavam. Karina usava calças jeans, uma blusa de várias cores vivas e
uma jaqueta. Sob a mesma, pude perceber um coldre de pistola. Seu cabelo
ruivo estava preso num longo rabo de cavalo. Notei que o olhar de Samuel
se fixava nela. Já o Malaki esperava sentado no sofá, segurando sua
cimitarra.
“E então, Al-Malik Bin Bayt’Namus Al’lah, qual é seu plano?”,
perguntou Samuel, sentando-se num dos sofás. Karina se aproximou de
Samuel, sentando-se ao seu lado. Eu preferi permanecer em pé, e cruzei
meus braços, apoiando-me na estante da televisão.
“Nós precisamos reunir nossos conhecimentos e poderes para
encontrarmos uma solução, Samuel Fulmen dos Sancti”, respondeu o
Malaki. “Precisamos apenas de um primeiro passo, uma primeira pista, e
poderemos prosseguir. O único que pode nos colocar no caminho correto é
você, Elohim. Precisamos encontrar alguém que tenha tido contato recente
com Hagan Gudrun ou uma de suas crias”.
Samuel parou um momento para pensar. “Encontrar uma Cria de
Lucifugo durante o dia? Eu poderia leva-los aos campos de caça de
algumas durante a noite, mas agora seria impossível”, disse Samuel.
“E George Matos?”, perguntou Asphael.
412
“Ele está morto. Eu o destruí na noite passada, já se
esqueceu?”, respondeu o Sancti.
“Mas você possui pistas dele”, disse o Arcanjo.
Samuel parou para pensar. “O celular e os documentos, e só”, ele
murmurou. “Eu os peguei para poder investigar mais sobre suas atividades
e contatos, mas isso por si só levaria dias”.
“É o suficiente”, respondeu Al-Malik.
Samuel olhou o Malaki, e então o Arcanjo Veritas. “Está bem, eu já
venho”, disse o Sancti, logo em seguida se levantando para buscar o celular
e os documentos em seu quarto.
“Acha que conseguiremos?”, perguntou Karina a Al-Malik,
enquanto fitava Samuel se afastar.
“O primeiro passo é não dizer que é impossível, jovem Karina”,
disse o Malaki. “O segundo passo é começarmos. Não há nada que nossa
vontade não possa fazer. E, diante de tudo o que tem acontecido, não temos
outra escolha a não ser confiarmos em nossa capacidade”.
“Se falharmos”, eu disse, “não será por termos desistido”.
“Aqui está”, disse Samuel, já retornando com os objetos em mãos.
“A identidade traz o nome ‘Márcio Luiz de Macedo’”. Al-Malik estendeu a
mão enquanto o Sancti se aproximava, e Samuel entregou-lhe os
documentos e o celular, em seguida se sentando ao lado de Karina.
“Devemos investigar suas propriedades?”, perguntei.
“Talvez”, disse Al-Malik, “mas isso certamente levaria tempo. Eu
quero simplesmente saber por onde este celular andou. Eu posso olhar o
passado do objeto, mas imagens distorcidas não me ajudarão a localizar o
local”. Então, o Malaki fitou Karina: “Mas ajudarão a você”.
413
Karina compreendeu o propósito de Al-Malik, porém tinha
suas dúvidas: “Mas eu não posso observar o passado”.
Al-Malik sorriu gentilmente. “Você se esquece que não estamos
sozinhos aqui”. Então, ele estendeu o celular a Asphael, que se mantinha
em pé, logo ao lado do Malaki.
Asphael sorriu, pegando o objeto, e então se aproximou de Karina,
estendendo a mão a ela. “Me dê sua mão e feche seus olhos, Karina Ariel”,
pediu gentilmente o Arcanjo.
Karina estendeu a mão, tocando Asphael, e seus olhos verdes se
fecharam lentamente. Asphael também fechou seus olhos, e segurou
firmemente o celular com a outra mão. Samuel olhou a garota apreensivo,
esperando que ela deixasse o transe, mas logo sua paciência começou a
diminuir, conforme os segundos passavam.
“Calma, Samuel dos Sancti”, pediu Al-Malik. “As visões poderão
levar alguns minutos, pois Karina precisará analisar bem o que vê”.
“Eu sei”, disse Samuel, “mas isso não diminui minha ansiedade”.
Al-Malik estendeu a sua cimitarra a Samuel. “A propósito...
Enquanto esperamos, gostaria que guardasse minha cimitarra para mim.
Estas roupas não permitem que eu a oculte facilmente”.
Samuel fitou o Malaki, balançando positivamente a cabeça, e
pegou a cimitarra. “Vou dar um jeito de guarda-la dentro do sobretudo”,
disse o Sancti.
“Você é um homem de Deus, não Samuel?”, perguntou Al-Malik.
Samuel se mostrou surpreso e intrigado com a pergunta. “Por que a
pergunta? Por quê agora?”.
414
“Por que eu posso sentir. E por causa desse pequeno crucifixo
que porta consigo”, disse Al-Malik, se referindo a uma corrente prateada ao
redor do pescoço de Samuel. A corrente caía por dentro da roupa,
impossibilitando ver o crucifixo de prata que o Sancti portava.
“Eu tenho minha fé”, disse Samuel, “e acredito que Deus me deu
uma segunda chance de viver em nome dele”.
Al-Malik sorriu. “Você ora muito também”, disse ele. “Como fez
ontem, e como fez esta manhã”.
Samuel ainda se mostrava intrigado, observando aquele sorriso de
satisfação no Malaki. Ele perguntou: “E quanto a você, Al-Malik? Ora?”.
“Sim”, respondeu o Malaki, “e me encho de satisfação alguém
honrar a Deus com palavras, para mostrar que não me esquecemos d’Ele
apesar de nossas constantes missões. Eu orei bastante nas duas últimas
manhã. E, sempre que há um momento de desespero, eu murmuro uma
frase que me conforta”.
“E o que murmura?”, perguntou Samuel.
“La ilaha illa ‘llah”, sussurrou o Malaki.
“Não há Deus a não ser Deus”, repetiu o Sancti, um sorriso tímido
surgindo em sua face.
“Viu só?”, disse o Malaki, “já o fez sorrir. E pensar em Deus ajuda
a superar as dificuldades. Veja só. Ela já está saindo do transe”.
Samuel virou-se para olhar Karina. Os olhos da Celestial se abriam
lentamente, enquanto Lorde Asphael Veritas já a fitava. Karina levou a
mão à testa, baixando a cabeça. “Eu sei o vampiro se escondia”, ela
murmurou.
415
Eu sorri, me afastando da estante e me aproximando de meus
companheiros. “Você pode nos levar lá?”, perguntei a ela.
“Claro, Philipe”, ela respondeu enquanto se levantava. “Era em
Copacabana. O desgraçado vivia em Copacabana”.
Estranhei a maneira de Karina falar, e fitei Lorde Asphael, que me
devolveu o olhar: “Acabamos vendo algumas das atividades da criatura,
Mestre Nicodemus”, ele explicou.
Al-Malik se levantou. Karina olhou o Malaki, compreendendo o
que devia fazer. Ela se levantou também. Eu me direcionei à porta, mas
então notei que Karina caminhou rumo ao centro do salão. “Abram suas
asas”, ela pediu, enquanto estendia a mão direita para a frente. Logo
adiante da mesa de jantar, o ar ondulou e cintilou, e ela pôs-se de lado para
que passássemos antes dela.
“Não seremos vistos se voarmos em pleno dia?”, perguntou Al-
Malik.
“Não se preocupem, eu cuidarei disso”, disse Asphael, que foi o
primeiro a passar. Conforme sua forma desaparecia, intensificando as
ondulações, as roupas se rompiam em suas costas, suas asas abrindo. O
Arcanjo desapareceu antes que as asas saíssem por completo, porém.
Eu tirei meu paletó, esperando por ocultar a camisa rasgada sob ele
quando chegássemos a nosso destino. Enquanto caminhava em direção ao
portal, vi Karina e Al-Malik também tirarem o paletó e a jaqueta,
respectivamente. Então, atravessei o portal. Minhas asas surgiram quando
senti o chão sumir sob meus pés, logo após a sensação de atravessar uma
parede aquosa.
416
O Sol brilhava acima e o vento batia com força, me forçando a
fechar os olhos, enquanto as asas lutavam para me manter estável no ar.
Olhei para baixo, e sob a cobertura das nuvens, vi a Cidade Maravilhosa.
Al-Malik atravessava o portal agora, seguido por Samuel. Eu fitei o
horizonte a leste. Ele começava a enegrecer.
“Quantas horas são?”, gritou Al-Malik, sua voz lutando para
superar o som do vento forte que vinha do leste. Enquanto isso, Karina
atravessava o portal, que se fechou logo após.
“Cerca de nove horas!”, eu gritei em resposta.
“Vamos!”, insistiu Karina, tomando a frente.
Não houve muito o que dizer. Apenas seguimos a Supervivente.
Ironicamente, dois Arcanjos e dois Anjos centenários agora seguiam uma
jovem que foi abençoada há pouco mais de uma década. A ironia me fazia
sorrir de satisfação, ainda que a negritude que vinha do leste enchesse
minha mente de preocupações. Além disso, ainda que uma nova noite de
pesadelos estivesse para começar, havia um certo conforto em voarmos sob
o Sol da manhã.
Nós seguimos Karina através das nuvens do Rio de Janeiro, meu
olhar às vezes desviando-se para baixo, onde via o movimento incessante
das avenidas. Poucos minutos se passaram antes que eu visse uma grande
praia com milhares de minúsculas pessoas caminhando em suas areias.
Karina, porém, não avançou rumo à praia. Ao invés disso, desceu
subitamente, rumo a um conjunto de prédios altos e luxuosos um pouco
afastados do mar.
A Supervivente pousou no terraço de um prédio luxuoso, de cor
branca com faixas horizontais azuis. O terraço em si continha uma larga
417
área descoberta, com uma bela piscina. Uma faxineira lavava o terraço
naquela hora. Samuel foi o segundo a descer, pousando próximo à
faxineira, que não podia nos perceber. Eu, Al-Malik e Lorde Asphael
descemos em seguida.
“É neste prédio”, murmurou Karina, caminhando através do vasto
terraço, rumo à porta que levava ao segundo andar do apartamento de
cobertura do prédio. Samuel se mantinha próximo a ela, enquanto os
demais os seguiam próximos a mim. Fitei o rasgo nas roupas de Samuel,
provocados pelo nascimento de asas, enquanto eu mesmo cobria minhas
costas com o paletó. Notei, com certo ciúme, admito, que Karina tocou a
mão de Samuel, e ambos prosseguiram de mãos dadas.
A porta, que estava aberta, nos levou ao interior luxuoso do
apartamento. Os móveis eram novos e bem cuidados, e a decoração
continha tanto tapetes caros como quadros belíssimos. Karina continuava
em frente, sem se importar com a decoração. Passamos por uma mulher de
meia-idade, vestindo roupas formais, que olhava pela janela enquanto
discutia com alguém pelo celular. A Supervivente prosseguia, primeiro nos
levando através das escadas para o andar inferior do apartamento, e então,
finalmente, à porta que nos levaria ao elevador do prédio. Karina soltou a
mão de Samuel e tocou na fechadura, tentando abri-la sem sucesso. Então,
ela se virou para nós. “A porta está trancada”, murmurou.
Lorde Asphael já se preparava para dar um passo à frente, quando
eu tomei a iniciativa, fazendo sinal para que a jovem me desse licença.
“Permita-me”, eu sussurrei. Murmurei palavras no Fabulare Arcaico e
toquei a tranca. Um som abafado se seguiu, vindo da fechadura que se
destrancava, e então eu abri a porta, dando licença para que a jovem Karina
418
passasse. Ela sorriu para mim, agradecendo, e então entrou no curto
corredor adiante, chamando o elevador em seguida.
Após todos passarem, eu encostei a porta. Mesmo não podendo
tranca-la da mesma forma que a abri, seria melhor deixa-la encostada para
evitar sermos vistos. Esperamos pelo elevador, que não demorou. Logo
chegamos ao 11o. andar. “O apartamento dele é este”, disse Karina, abrindo
a porta do elevador.
Karina tomou a frente, mas logo deu passagem para mim. Adiante,
estava a porta do único apartamento do 11o. andar. Mais uma vez,
murmurei o Fabulare Arcaico, tocando a fechadura e, em seguida, abrindo
cuidadosamente a porta. Senti um ar frio soprar do interior do apartamento.
O interior estava escuro, coberto por uma densa penumbra. Parei por um
instante, olhando de canto a canto buscando qualquer movimento. Não
sentindo perigo, adentrei.
A sala de entrada era vasta, em forma de “L”. Logo à frente da
porta de entrada, estava a porção da sala que servia como sala de estar, com
dois sofás, um de frente para o outro, e duas poltronas, e uma pequena
mesa no centro. A mesma sala, de tão vasta, ainda tinha uma mesa de oito
lugares, para o jantar, e, por mais estranho que parecesse, uma lareira, com
um sofá voltado para ela. Cortinas pesadas cobriam as janelas e a varanda,
deixando apenas uma luz solar mínima escapar pelos cantos. Com as luzes
apagadas, era como estar num ambiente noturno. Embora a penumbra
dificultasse a visão, ainda era possível ver os objetos com clareza, ainda
que detalhes ficassem obscurecidos.
419
“Devemos tomar cuidado, Nicodemus”, sussurrou Al-Malik, o
segundo a entrar no apartamento. “Ghûls com freqüência possuem lacaios
para cuidar deles durante o dia. Pode haver alguém aqui”.
“Eu sei, Al-Malik”, respondi num tom baixo, ainda analisando o
ambiente ao redor. Eu procurava um interruptor para acender as luzes.
Seria melhor do que usarmos nossos poderes, pois a visão no escuro nos
privaria da capacidade de distinguir cores com clareza. Porém, ao
responder o Malaki, o que notei foi vapor sair de minha boca.
“Está frio aqui”, murmurou Karina, abraçando-se para conter os
arrepios. Ela estava certa. O frio não me incomodava como a ela, mas eu o
sentia. Estava frio demais, mesmo para um apartamento fechado e escuro.
“Este lugar é assombrado”, murmurei ao notar, por um instante,
uma sombra se mover próxima à lareira. Minha visão se aguçou, conforme
invocava meus poderes para ver além do véu da morte. De repente, teias de
aranha surgiram onde antes não havia nenhuma, e o ambiente se tornou
cinzento e abandonado. A decoração aparecia rasgada e envelhecida, e ouvi
um som de ventania forte soprando do lado de fora. Uma figura magra e
translúcida nos observava à distância, sua face pouco mais do que um
crânio ressequido. Os dedos ossudos se moviam lentamente, enquanto a
criatura flutuava, sem pernas, sobre uma névoa negra que era emitida de
suas costelas expostas. Eu ouvi o ecoar de um murmúrio distante, e me
virei para fitar uma segunda criatura, esta sendo quase invisível, pouco
mais do que uma forma humanóide cujas feições eram definidas apenas
pelas sombras que a cercavam. “Espectros!”, eu disse, revelando a natureza
das criaturas a meus companheiros.
420
“Eu também vejo”, murmurou Al-Malik. “O Ghûl deve tê-los
criado para proteger seu lar. Mas por que não nos atacam?”.
“Porque eu não permitiria”, disse Lorde Asphael, que agora tomava
a frente do grupo. Ele brilhava como fogo no mundo dos mortos e,
conforme avançava, os espectros recuavam temerosos, como se a presença
do Arcanjo fosse anátema para as criaturas. “Asha me dê força, através da
Boa Mente, para que a vontade do Bom Sábio seja feita, e que o mal se
dissipe diante de minhas boas obras”, murmurou Asphael, erguendo a mão
direita, então a fechando com força e, ao baixa-la, o primeiro espectro
urrou, sua forma esquelética se desfazendo em pó. O Arcanjo então fez os
mesmos gestos com a mão esquerda, e o segundo espectro se desfez em
silêncio, conforme as sombras que o definiam se dissipavam. Em seguida,
Asphael Veritas nos fitou: “Vamos continuar nossa procura, mas ainda
assim tomem cuidado”.
Meneei a cabeça positivamente, primeiro dando um passo para me
afastar do grupo, e então me virando para fitar Al-Malik. “O que pretende
fazer?”, perguntei.
“Procurem por qualquer documento, qualquer pista que nos leve a
outros vampiros”, pediu Al-Malik. “Deve haver algum contato, talvez
alguma pista sobre o local em que George se encontrava com Hagan ou
suas crias”.
“Certo”, concordei, então me virando aos demais, “Samuel, fique
com Karina. Sugiro que procurem um escritório ou algo parecido. Al-Malik
e eu vamos procurar pelo quarto ou qualquer local que servisse de descanso
para o vampiro”. Virei-me então para Asphael: “Tem algum plano, Lorde
Asphael?”.
421
“Este lugar pulsa com memórias”, disse Lorde Asphael,
analisando o ambiente, “e os mortos possuem muitas histórias a contas.
Deixem-me sozinho por um momento. Talvez eu possa encontrar algo”.
Concordei. Enquanto minha visão voltava ao normal, Karina e
Samuel se afastavam para outros cômodos. Virei-me para Al-Malik: “Tome
a frente, amigo”, pedi.
Caminhamos por uma porta que levava à sala de tevê. Do outro
lado, Samuel e Karina procuravam pelas estantes por qualquer informação
que pudesse ser útil. Eles tinham acendido a luz e ligado a televisão, talvez
para que a luminosidade e o som espantassem quaisquer espíritos. De fato,
o frio intenso que antes sentíamos começava a desaparecer.
Continuamos em frente, adentrando um pequeno hall com quatro
portas. Abri a primeira delas, acendendo a luz em seguida. Era apenas uma
suíte, mas sem móveis ou cama. Uma inspeção nos guarda-roupas os
revelou vazios. Apenas um quarto sem uso. Al-Malik me chamou assim
que abriu a segunda porta. Indo até o Malaki, percebi que era uma segunda
suíte, mas estava sendo usada como um escritório. “Pode ter algo aqui”,
murmurei, vendo a escrivaninha cheia de papéis, e as estantes cheias de
livros.
“Nicodemus, Pedirei que Samuel e Karina verifiquem este cômodo
após terminarem na sala da televisão”, disse o Malaki. “Eu sugiro procurar
o local de descanso dele enquanto isso. Se não encontrarmos nada, aí
retornaremos aqui e verificaremos toda essa papelada”.
Concordei. Al-Malik se afastou. Retornando ao hall, abri a porta
oposta à que levava ao pequeno escritório. Acendi a luz do cômodo, fitando
a pesada cortina. No cômodo havia uma cama de casal, que eu podia notar
422
não ter sido tocada há muitas semanas. Verifiquei os criados-mudos
que estavam em ambos os lados da cama, mas estavam vazios. Então,
abrindo o armário, notei que continha roupas e outros pertences. Nas
gavetas, encontrei relógios e outros documentos falsos, assim como uma
caixa com jóias. Uma das gavetas me surpreendeu, estando cheia de armas
de fogo de pequeno calibre e pentes de balas.
Continuei abrindo outras portas do armário, até que uma delas, para
minha surpresa, me levou a um closet escuro, onde certamente, com as
portas fechadas, nenhuma luz solar poderia adentrar. Além de mais
armários no closet, havia uma porta. A porta levava a um luxuoso banheiro,
com uma grande banheira. A pequena janela, ainda que coberta para
encobrir a luz, certamente não tornava tal lugar seguro para o descanso de
um vampiro. Fechei a porta do banheiro, investigando os armários internos
do closet. Estavam vazios, mas percebi que as três portas dos armários
levavam a um só compartimento comprido. Notando que o chão dentro do
compartimento estava à cerca de meio metro acima do piso do closet,
comecei a revista-lo. “Nicodemus, está aí?”, perguntou Al-Malik, que já
estava retornando. Foi neste momento em que encontrei uma pequena
reentrância no chão do compartimento, forçando-a para cima. “Al-Malik,
eu encontrei!”, eu disse em voz alta, enquanto o assoalho de madeira se
abria, revelando uma pequena câmara escura e acolchoada, com lençóis e
um travesseiro, comprida e larga o suficiente para que uma pessoa dormisse
ali.
O Malaki se aproximou. Por alguns minutos, começamos a
vasculhar tanto a câmara, buscando qualquer coisa oculta sob o acolchoado,
como toda a suíte, por documentos ou papéis. Encontramos um
423
compartimento sob o acolchoado, onde estavam mais jóias, cerca de
oitocentos reais em notas de 50,00, e uma pequena caderneta com nomes,
endereços e telefones. Retornamos ao quarto, onde Al-Malik abriu as
cortinas para que a luz do Sol entrasse. Então, comecei a investigar os
nomes, lendo as descrições sobre eles. Eram contatos, amigos e bandidos,
bem como pistas sobre onde conseguir armas, passagens de avião, drogas
ou dinheiro emprestado em casos de emergência. Após cerca de trinta
minutos analisando os nomes e comparando-os com a agenda do celular de
George, acabamos separando alguns dos nomes no celular que não
constavam na caderneta. A caderneta não parecia ter nenhuma referência a
vampiros. Talvez os nomes no celular, porém, pudessem nos levar a outras
Crias de Lucifugo.
Al-Malik buscava mais papéis ou compartimentos nos armários do
quarto e eu ainda analisava o celular e a caderneta, quando Karina
adentrou. Pela porta, dava de ver Samuel no escritório, analisando mais
papéis e agendas. “Philipe, dê uma olhada nisso”, pediu Karina, que me
estendeu uma carta com um pequeno cartão. “Encontramos na sala da
tevê”.
Observei a carta, que usava um papel-cartolina branco e resistente.
Um selo, na forma de um círculo vermelho com as letras ‘H’ e ‘G’
finamente desenhadas no seu interior a assinava. Eu li em voz alta, para que
Al-Malik pudesse ouvir o conteúdo da mesma. “A George Matos, Herdeiro
do Sangue de Nergal. É de nosso mais desejado interesse que nossa aliança,
assim como vossa subserviência, sejam de uma vez por todas formalizadas
em uma reunião formal na data de 09 de Janeiro de 2002. O Mais Alto
Patriarca do Rio de Janeiro, Hagan Gudrun, faz questão de vossa presença,
424
bem como a de outros dignitários, para resolvermos as questões que
pendem em seu domínio. O encontro se dará às nove horas da noite de 09
de Janeiro, quarta-feira, na Casa Sabina”.
“Casa Sabina?”, perguntou Al-Malik, “Do que se trata?”.
Olhei o pequeno cartão, na qual estava o nome da Casa Sabina e
seu endereço. “Aparentemente, é uma mansão para aluguel. Usada em
festas, casamentos, formaturas...”, respondi, de acordo com o que eu via no
cartão.
“Nós poderíamos ir a Casa Sabina e descobrir quem a alugou na
quarta-feira”, disse Karina.
“Faremos isso”, eu disse, “mas não agora. Ainda teremos tempo.
Vamos primeiro encontrar todas as pistas que pudermos aqui neste
apartamento”.
Continuamos nossas buscas. Após o quarto, retornamos ao
escritório, onde nós quatro continuávamos verificando os vários registros,
cartas, agendas e livros. Havia conexões com o tráfico de drogas, ordens de
assassinatos, pagamentos de propina a policiais, nomes de mercenários, até
mesmo relatórios sobre carregamentos de armas contrabandeadas, muitos
deles disfarçados como se fossem carregamentos de materiais mais
inofensivos. George Matos com certeza mantinha suas mãos sujas no
submundo do Rio de Janeiro. O dinheiro e a influência que ele possuía
podia não ser das maiores, mas com certeza ele era um oponente
respeitável na arena política e policial da cidade. As vantagens de ter um
servo desses seriam óbvias para Hagan Gudrun. O fato de Hagan ter
amedrontado esse vampiro a ponto de fazê-lo jurar subserviência, porém,
apenas me faz temer o inimigo que teremos de enfrentar em breve. “Assim
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que terminarmos de procurar aqui, seria bom darmos um telefonema
anônimo para a polícia”, murmurou Samuel Fulmen. Eu concordei.
As horas começaram a passar. Não sei exatamente quanto tempo,
mas eu sentia que, mesmo nos apressando para olhar todos os papéis, o
tempo ainda passava rápido demais. Aos poucos, porém, mais pistas
surgiam. Quase sempre guardados em pastas no fundo de pilhas,
começamos a achar anotações e referências. Algumas delas falavam sobre
Hagan Gudrun, sobre as suspeitas de que a “Morte Carmim” se escondia no
bairro do Cosme Velho durante o dia, e de como o Profeta Louco levou os
opositores de Gudrun quase à extinção. Inclusive, haviam alguns relatos de
perdas severas por parte de George, na forma de aliados políticos
assassinados, traficantes presos pela polícia e o dinheiro em suas contas
desaparecendo misteriosamente. Havia também um relatório detalhado
sobre Alexandro, Cria do antigo Patriarca, inclusive com suspeitas dos
locais em que ele poderia se esconder durante o dia e quais contatos e
influências ele possuía na política do Rio de Janeiro. Em meio aos papéis,
encontrávamos referências a outros vampiros, inclusive a uma cria de
George. Infelizmente, a maioria deles, segundo Samuel ou os próprios
papéis, tinham sido destruídos na guerra contra Gudrun.
“Isso é inútil”, resmungou Samuel, “eles tomam cuidado para não
deixar rastros. Gudrun não confia em George, e portanto não
encontraremos nada que possa nos levar a ele”.
“E a casa Sabina?”, perguntou Karina. “É nossa única pista
concreta até o momento”.
“Realmente”, concordei, olhando o cartão que dava o endereço.
Para minha surpresa, ela ficava no bairro do Cosme Velho, o mesmo que
426
George Matos suspeitava de abrigar o refúgio de Gudrun. “Eu irei até
lá”.
“Sozinho?”, perguntou Karina.
“Lorde Asphael é o único que pode ocultar a todos nós, e sei que
você e Samuel não possuem poderes para ficarem despercebidos, Karina”,
respondi. “Me indique o caminho. Eu posso voar pela cidade sem ser visto,
mas não posso fazer o mesmo com você ou Samuel. Se eu tiver problemas,
farei o que todo turista perdido faria... chamarei um taxi”.
Karina conseguiu um mapa da cidade em uma lista telefônica, me
indicando a localização do Cosme Velho. Agradeci, pedindo que ligassem
para o celular de George Matos caso tivessem alguma novidade. Antes de
partir, voltei ao local de descanso de George Matos, pegando um pouco do
dinheiro ali guardado, caso eu precisasse. Em seguida, voltei à sala de estar,
onde o Arcanjo Asphael se mantinha na escuridão, num estado de transe.
Caminhei em direção à varanda, mas por um momento olhei o mundo dos
mortos. Almas penadas cercavam Asphael, que, embora de olhos fechados,
murmurava a eles. Permaneci ali por alguns segundos, intrigado, mas
depois saí, me esgueirando atrás da pesada cortina que tampava a porta de
vidro para a varanda. Abri a porta usando meu truque mágico e, na varanda,
tirei meu paletó, subindo no parapeito da sacada. Fechei meus olhos, me
concentrando, desejando me manter oculto diante dos olhares dos milhares
de cariocas que passavam pelas ruas abaixo. Minhas asas surgiram e eu
saltei no vazio. Minhas asas bateram forte, me elevando aos céus.
O Sol tocou meu rosto enquanto eu acendia, após alguns instantes
oculto pelo véu de nuvens. O astro-rei estava alto nos céus. Já passava do
meio-dia, e o tempo continuava correndo. Parei minha ascendência assim
427
que me elevei acima dos prédios, e fitei o céu acima e o horizonte a
leste. A negritude ainda tomava o horizonte e as nuvens começavam a tapar
os céus acima. O Sol tinha dificuldade em se mostrar, sendo
constantemente encoberto por nuvens cinzentas. Eu precisava me apressar.
Fitei o noroeste, buscando a visão do Cristo Redentor. A princípio não
conseguindo vê-lo, eu me elevei mais ainda nos céus, prosseguindo para o
norte. Logo, os braços abertos de Cristo surgiram. Eu segui até a estátua e,
ao alcança-la, tomei o caminho para o Cosme Velho, conforme Karina
indicara.
A princípio, tive dificuldades para me deslocar pelos céus do
bairro. Sem conseguir me localizar pelo alto, tive de descer. Colocando o
paletó para cobrir as roupas rasgadas e desfazendo minha ocultação, pedi
ajuda às pessoas na rua, para que me indicassem como chegar a meu
destino. Felizmente, não estava distante.
Caminhei por cerca de meia hora, até estar diante de uma grande
mansão. Grades altas e um portão gradeado limitavam a propriedade. Havia
um pequeno jardim, com flores e algumas árvores frondosas, e adiante
estava a entrada da mansão. “Mansão Sabina”, dizia o letreiro no portão
gradeado. A mansão estava fechada. A rua em frente à mansão era bem
arborizada e, mesmo tendo movimento constante, poderia ser considerada
calma se comparada com as movimentadas avenidas da cidade. Um lugar
perfeito para reuniões daqueles que querem privacidade...
Procurei um lugar ou rua mais tranqüilo, a fim de não chamar
atenção, e fechei meus olhos, me concentrando a fim de adentrar o Reino
dos Espíritos. Meus olhos se abriram para fitar a paisagem espiritual
daquela cidade. Embora as árvores vibrassem com vida, o ambiente estéril
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ao redor aparecia cinzento e apático. Retornei à mansão, voando por
sobre as grades e pousando no jardim. Então, pelo reino dos espíritos,
comecei a vasculha-la.
Não demorou até eu terminar de vasculhar o local. A mansão
consistia, além do jardim, consistia basicamente de um imenso salão, com
um segundo andar onde havia acesso a um bar, no momento inativo. Havia
também uma grande cozinha, com acesso tanto ao bar como ao salão, uma
despensa e um palco com bastidores, além de banheiros. Eu invoquei os
espíritos do ar e da terra, mas eles nada puderam encontrar. Não havia
passagens ocultas ou quartos secretos.
Saí da Mansão Sabina pouco mais de trinta minutos após adentra-
la. Assim que cheguei a uma rua mais tranqüila, retornei ao mundo
material. O que fazer a seguir? Dúvidas permeavam minha mente. Eu puxei
do bolso o cartão da Mansão Sabina, olhando o telefone para contatos.
Talvez, se investigássemos quem alugou a mansão na quarta-feira
passada... Usei o celular de George. Do outro lado da linha, um homem
atendeu, e eu revelei que tinha interesse em alugar a Mansão para uma festa
particular. O homem me passou o endereço de seu escritório, não muito
distante da mansão em si. Procurei a avenida mais próxima, onde peguei
um taxi para o local.
A caminho do escritório, o celular tocou. Num impulso, o atendi,
ouvindo a voz de Karina: “Philipe, descobrimos algo!”.
“O que encontraram?”, perguntei.
“Asphael nos deu uma resposta”, ela respondeu. “Ele descobriu
onde George guardava seus documentos mais importantes. Tem muita coisa
aqui, Philipe, inclusive os contatos entre ele e Gudrun”.
429
“Tudo bem, Karina”, respondi. “Estou indo para aí, só preciso
verificar uma coisa antes. Vejam o que mais podem descobrir e esperem
por mim”.
O taxista parou. “É aqui, senhor”. Perguntei em quanto ficou a
corrida e, ao receber a resposta, entreguei-lhe algumas notas. “Fique com o
troco”, eu disse, vendo a expressão de surpresa dele ao receber duas notas
de cinqüenta. Ele agradeceu enquanto eu descia do veículo e, ao notar que
eu fitara o céu antes de fechar a porta, comentou: “Vai vir uma chuva brava
hoje”.
“É”, concordei, fitando os céus cada vez mais cinzentos. “Uma
tremenda tempestade”.
Segui ao escritório do representante da Mansão Sabina, no quinto
andar de um prédio de escritórios. Devido à minha pressa, a conversa foi
curta. Usando alguns de meus poderes, o convenci facilmente a me dizer o
que eu queria. Infelizmente, não descobri muito... A mansão não tinha sido
alugada na última quarta-feira, de forma que não havia nenhum registro
sobre atividades nela. Além disso, o próximo uso da mansão seria só na
semana que vem, de forma que, ou os vampiros tinham algum acesso
especial a ela, ou se tivessem que aluga-la só o fariam quando nosso prazo
já estivesse esgotado. Agradeci ao homem, apagando parte de suas
memórias para que se lembrasse de mim apenas como um interessado em
alugar a mansão, e parti. Ao entrar sozinho no elevador e verificar a
ausência de câmeras, me concentrei no apartamento de George, abrindo um
portal para o local e o atravessando.
Ressurgi na escurecida sala de estar de George Matos. Segui em
direção ao escritório, onde os outros estavam. Anunciando minha chegada,
430
Al-Malik foi o primeiro a perguntar sobre meu sucesso. “Infelizmente,
não encontrei nada. Os vampiros aparentemente têm acesso livre à Mansão
Sabina, mas não se escondem lá. Não é possível seguir seus rastros por lá...
Ou melhor, poderia ser possível, mas vai levar mais tempo do que
dispomos”.
“Tivemos um pouco mais de sorte”, disse Samuel, com alguns
papéis na mão. “Parece que George estava estudando as posições das crias
de Gudrun na cidade. Ele estava anotando posições de contatos. Asphael
encontrou os documentos”.
“Eu apenas consultei aqueles que poderiam saber onde estavam”,
murmurou o Arcanjo.
“Certo”, disse Samuel em resposta a Asphael, continuando em
seguida: “mas o importante é que há um vampiro que, segundo os relatos
de George Matos, não é uma das crias de Gudrun, mas tem muito
conhecimento acerca delas. Não só isso, mas foi ele quem levou Gudrun ao
Profeta Louco em primeiro lugar”.
“E como encontraremos este vampiro?”, perguntei.
Samuel sorriu ao responder, seus olhos brilhando em determinação:
“Aí está o mais interessante, Nicodemus. Parece que Gudrun resolveu se
livrar da criatura após ter conseguido a posição de Patriarca. George estava
oferecendo abrigo a ela em troca de informações sobre Gudrun. Ele está
sendo escondido num armazém no Morro dos Cabritos”.
Não foi preciso muito para que saíssemos dali, mas não antes de
Samuel coletar toda a papelada sobre vampiros e ligar para a polícia, dando
uma denúncia anônima sobre o local. Saindo pela varanda do apartamento,
erguemo-nos nos céus, protegidos da visão alheia pelos poderes de Lorde
431
Asphael. O ar estava mais frio agora, e o céu mais obscuro. Uma
ventania soprava e no horizonte os primeiros relâmpagos iluminavam o véu
negro que vinha do leste.
“Philipe!”, gritou Samuel, tentando superar o som constante do
vento, enquanto voávamos para noroeste. “Isto tudo é obra de Shiva?”.
“Sim”, respondi, “mas isto é apenas o começo”.
Os ventos incomodavam, atrapalhando o vôo. Karina preferiu
baixar a altitude, voando entre os paredões de prédios, sobre as grandes
avenidas. Não demorou até que o Morro dos Cabritos se aproximasse,
analisando o aspecto rochoso e, ainda assim, verdejante. Por um momento,
me lembrei de histórias de Karina, na qual ela me contava das trilhas e
caminhos pelo morro, e pela vista magnífica que era possível ter ao se
alcançar o Mirante de Sacopã. Porém, não era o morro em si o nosso
destino, mas uma comunidade ali localizada. Uma favela, como tantas
outras no Rio.
Deixando a proteção dos paredões de edifícios, o vento forte nos
atingiu novamente. Karina parou, por um momento analisando o conjunto
de casas abaixo, procurando, com os olhos e com suas habilidades inatas, o
nosso destino. Ela apontou a direção, chamando a nossa atenção, e
mergulhou rumo a um pequeno galpão, talvez com 15x8 metros, quase nos
limites da favela. Pousamos pouco após os pés de Karina tocarem o chão de
terra nos fundos do galpão. As asas da Supervivente desapareceram, e ela
imediatamente cobriu as costas nuas com a jaqueta.
Havia apenas uma porta nos fundos. As únicas janelas estavam a
mais de dois metros e meio de altura, com aparência retangular, longas e
finas. Os vidros as mesmas estavam quase todos rachados ou quebrados,
432
mas tábuas de madeira tinham sido pregadas pelo lado de dentro, a fim
de evitar invasores. Aproximei-me da porta, mexendo na fechadura apenas
para confirmar que ela estava trancada. Comecei meu rito para destranca-la,
mas a mão de Al-Malik tocou meu ombro. “Não faça isso”, pediu o Malaki.
“Eu abrirei nossa própria porta, mas evitemos que a luz solar entre.
Precisamos dele vivo”. Concordei, e Al-Malik caminhou até a parede,
tocando-a gentilmente. Imediatamente, a parede ondulou, conforme um
portal interligava ambos os lados. Al-Malik pôs-se de lado, para que
Samuel fosse o primeiro a entrar.
“Segure isto por favor, Philipe”, pediu o Sancti, entregando-me a
pasta em que ele guardara os papéis de George Matos. Então, Samuel
desembainhou sua espada, atravessando o portal. Em seguida, entrei eu, e
depois Asphael e Karina. O Malaki passou por último, o que fez com o que
o portal se fechasse assim que ele chegasse ao interior do armazém.
O ambiente estava escuro, embora uma luz fraca entrasse pelas
frestas entre as tábuas que tapavam as vidraças quebradas. Se fosse um dia
ensolarado, certamente a luz solar impediria que um vampiro permanecesse
aqui durante o dia, já que as estantes vazias e as caixas jogadas no chão não
ofereciam qualquer proteção adicional. O local parecia abandonado há
anos. “Que lugar”, murmurou Karina, checando o chão e as paredes
próximos, “deve haver muitos ratos por aqui”.
Al-Malik fechou os olhos. “Ele está próximo, abaixo de nós”,
revelou. “Eu sinto”. O Malaki abriu os olhos, procurando qualquer
passagem para o subsolo. Caminhamos próximos a eles, todos atentos a
qualquer movimento ao redor, ou a qualquer sinal de uma passagem. Vez
433
ou outra, o som de um rato correndo entre o entulho no chão chamava a
atenção, mas nada que pudesse dispersar nossa concentração.
“Karina”, perguntou Samuel, “você pode encontrar a passagem?”.
A Supervivente respondeu, mantendo-se atrás do Sancti: “Estou
tentando, Sam, mas sempre que me concentro na direção a seguir, meus
instintos apenas apontam para o subsolo. É difícil se concentrar numa
passagem pequena. É fácil achar um local ou um caminho, mas posso
encontrar apenas direções gerais”. De repente, ela parou, se afastando um
pouco dos demais, o que atraiu os olhares de todos. “Esperem”, ela pediu
sussurrando, “talvez nossos observadores possam nos dizer”.
“Observadores?”, perguntou Samuel.
Karina fez um sinal gentil para que houvesse silêncio, e então se
abaixou, ajoelhando-se próxima a uma pilha de entulho. Houve um silêncio
inicial, mas em seguida pequenos sons vieram da pilha. Diversos pares de
olhos começaram a aparecer, conforme meia dúzia de ratos e algumas
ratazanas rastejaram para fora do entulho, aproximando-se da Celestial.
Karina estendeu a mão, e um dos ratos menores subiu sobre a palma dela.
Karina se levantou, seus olhos fixados no rato, e então ela se virou para
nós. “Eles indicarão o caminho”. Então, ela se abaixou novamente,
colocando gentilmente o rato no chão.
Os ratos correram para o centro do galpão, forçando-nos a apressar
o passo para acompanha-los. Por pouco não os perdemos de vista, embora
Karina parecesse ser capaz de segui-los por puro instinto. A Supervivente
parou entre duas estantes, próximas ao centro do local, e fitou o chão. Os
ratos já desapareciam entre o lixo e as caixas vazias espalhadas ao redor.
Alguns entraram por pequenos buracos no chão. Porém, era clara uma
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argola de metal presa ao assoalho. “Aqui!”, revelou Karina, abaixando-
se para agarrar a argola e então a puxando com força. O alçapão não se
abriu, porém. “Pesado demais”, revelou a Celestial.
“Com licença”, pediu Samuel, se abaixando para agarrar a argola.
Imediatamente, senti a aura invisível do Sancti se intensificar, conforme
energias celestes percorriam seu corpo e aumentavam suas forças. Samuel
fez força, e o alçapão se moveu, mas ainda assim não abriu. “É pesado
demais para um ser humano erguer”, disse, “e há alguma espécie de tranca
muito resistente”.
Eu não podia usar meu truque para abrir a tranca sem poder toca-la,
mas certamente podia tentar outra coisa. “Então, abriremos a tranca”, eu
disse, fechando meus olhos e abrindo-os para ver o mundo dos espíritos. E
murmurei, embora meu murmúrio fosse um pedido em voz alta para os
elementais ali presentes. “Eu humildemente peço, guardiões da terra e do
ferro, que aquilo que bloqueia nosso caminho seja aberto”. Um som
metálico se seguiu, conforme uma superfície de metal deslizava abaixo do
alçapão. Em seguida, Samuel foi capaz de erguer a pesada passagem de
pedra, camuflada sob um aparentemente fino assoalho de madeira.
“Tomem cuidado lá embaixo”, disse Samuel, seus olhos
começando a brilhar dourados, conforme ele descia os degraus de pedra sob
o alçapão. Abaixo, a escuridão era plena e densa. Um a um, o resto de nós
seguiu o Sancti, cada um usando seus poderes para ver na escuridão. Dez
degraus abaixo, estava o chão. O teto não era alto, a cerca de 1,90m de
altura, de forma que Samuel teve de curvar-se para a frente e manter a
lâmina da espada pendente para a frente, a fim de se movimentar sem que a
arma tocasse o teto. Assim que todos já estavam no subsolo, formamos um
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círculo, a fim de podermos cobrir todas as direções. A princípio, não
vimos nada, a não ser muito entulho, mas em uma área mais limpa estavam
um saco de dormir abandonado, algumas velas, uma mochila e alguns
livros. O subsolo era grande, um pouco menor em área que o galpão acima.
“Apareça!”, ordenou Al-Malik, “Nós temos perguntas a fazer!”.
Um som crescente foi a resposta. Ouvimos o entulho ser revirado,
conforme dezenas de ratazanas começaram a surgir, algumas surgindo do
lixo, outras vindo de buracos nas paredes e no teto.
“Eu conheço um bom remédio contra pragas, Anunnaki”, ameaçou
Samuel, “mas receio que você não vai desejar ver fogo em seu lar”.
Karina levou a mão ao peito de Samuel. “Não, Sam”, ela pediu,
então falando em voz alta para o vampiro: “Seus lacaios não vão nos
atacar. Você deve estar percebendo isto”.
“Buscamos Hagan Gudrun e suas crias”, disse Asphael Veritas, sua
voz baixa e calma. “Conte-nos o que precisamos saber e partiremos em
paz”.
“Por que buscam Gudrun?”, uma voz ecoou. A voz era masculina,
mas cheia de medo, e de certa forma parecia inofensiva.
“Para destruí-lo”, disse Samuel.
“Você é o caçador! Você é o caçador!”, disse o vampiro, sua voz
mostrando certo temor. Então, sua forma surgiu, conforme os ratos e
ratazanas lhe deram passagem. Ele parecia vir da escuridão, formando-se
lentamente, revelando um homem magro, de braços finos e aspecto pálido e
fraco. Seus olhos brilhavam vermelhos, e suas presas se destacavam entre
os dentes. Seus cabelos eram longos, loiros e lisos, mas caíam
desarrumados sobre a face, e alcançavam seu peito e a metade de suas
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costas. O vampiro vestia uma blusa de frio vermelha, e uma calça
negra. “Então, meu velho amigo estava certo, afinal!”.
“Seu... velho amigo?”, perguntei.
“O Profeta Louco! Sim, o Profeta Louco!”, o monstro respondeu.
“Ele falou de sua vinda e do caos que se seguirá!”. Então, como se as
palavras fossem sussurradas em seus ouvidos, o vampiro repetiu uma
profecia: “E na Cidade Maravilhosa, haverá uma grande guerra. E uma
tempestade de Sangue cairá quando os Mortos Famintos se erguerem. E
então um Caçador solitário trará fogo purificador e às suas costas virão os
Anjos de Deus. Quando o Inferno vier a Terra, o Momento Final chegará.
E a minha vida estará condenada, bem como as suas almas!”.
“Você conheceu o Profeta?”, perguntei, compreendendo as palavras
do vampiro. “Essas foram as palavras dele?”.
“Eu o encontrei, eu o guardei, entendi a preciosidade dele! Eu vi a
luz que emanava de dentro de seu corpo moribundo! Os espíritos dos
mortos se agrupavam ao redor dele, e de sua boca saíam apenas profecias
enlouquecidas!”, respondeu o vampiro. “E eu o abriguei, até que o padre o
tomasse de mim! Maldito seja ele!”.
“Quando isso aconteceu?”, perguntei.
O vampiro nos deu as costas, pensativo, mas ainda assim respondeu
em voz alta: “Anos atrás. Dois anos? Não me lembro, mas eu me lembro
das palavras traiçoeiras de Hagan Gudrun. Ele me fez contar tudo! Eu
queria libertar o Profeta. Gudrun me traiu, mas eu ainda sei como me
vingar...”.
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“Diga-nos como encontrar Gudrun e libertaremos o Profeta”,
pediu Al-Malik, prometendo em seguida: “Faremos com que o bruxo
encontre seu fim merecido”.
“O Profeta não deseja ser encontrado”, disse o vampiro, “não por
vocês”. Então, ele nos encarou novamente, erguendo a voz, e repetindo
palavras que ouviu anos atrás: “O Profeta disse: ‘E minha vida nada vale, a
não ser como mais um Selo. Pois um Selo os trancou, e agora eu sou o Selo
que o tranca. Minha morte abrirá o caminho. Minha alma não deve ser
liberta. Minha existência será tortura eterna. Melhor me condenar a esta
carne, com as memórias do que Ele fez, do que condenar a todos ao toque
da podridão. Eu não posso morrer. Eu não posso viver’”.
“Conte-nos, por favor”, pedi. “É importante! Podemos impedir que
o pior aconteça, se tivermos o tempo necessário para isso. Queremos
libertar o Profeta! Mas precisamos fazê-lo esta noite, ou será tarde demais!”
“NÃO!”, gritou o vampiro, “Você não me ouviu? Estas foram as
palavras dele! Hagan Gudrun precisa ser destruído. Mas o Profeta não deve
ser salvo!”.
Al-Malik deu um passo a frente. “Não há verdade em sua alma que
eu não possa retirar”, disse o Malaki, “e não há palavras neste mundo que
irão nos impedir. Eu não sinto nenhum ódio por você, nem desejava ter de
força-lo, pois isso irá corroer minha consciência por dentro. Mas por Deus
e pelo Profeta, eu o farei”. O vampiro rosnou, mostrando suas presas, mas
nervosamente recuando. Al-Malik deu um novo passo, mas então a mão de
Asphael Veritas tocou seu ombro. O Malaki se virou para fitar o Arcanjo.
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“Não deixe que o desespero controle suas ações, Anjo da
Verdade. Deixemos que a Verdade fale por nós”, disse o Arcanjo, que
então caminhou em direção à Cria de Lucifugo.
“O que você quer?”, indagou o monstro, recuando.
“Mostrar a você aquilo que meu Mestre me mostrou há muito,
muito tempo atrás”, respondeu Lorde Asphael. “Mostrar a você o que
precisa ser liberto”. O vampiro tentou recuar, mas então os olhos de
Asphael brilharam intensamente, e a criatura parou, boquiaberta. Sem
demonstrar qualquer reação, o vampiro deixou-se tocar. A palma da mão
direita de Asphael repousou sobre a testa do vampiro, e após alguns
segundos, a criatura caiu de joelhos, chorando lágrimas de sangue. “Qual é
seu nome?”, perguntou Lorde Asphael Veritas.
“Eu me chamo Santiago... Santiago de Lacerda Neves”, disse o
vampiro, pouco contendo o choro.
“Somos irmãos, Santiago Veritas, filhos do mesmo Mestre”,
respondeu Asphael, “Como eu, você foi tocado por ele, foi guiado por ele.
Agora você entende o que nós buscamos libertar”.
“Eu entendo”, respondeu o vampiro. “Eu não sei onde Hagan
Gudrun se esconde, mas minha vingança me levou até duas de suas crias.
Eu sei onde se escondem”.
“Onde?”, perguntou Al-Malik.
“Eles são chamados de Gêmeos, e são os principais algozes a
serviço de seu criador. Eles se escondem em Botafogo”, respondeu
Santiago.
Em seguida, ele nos contou tudo. O endereço, a casa em que os
dois se escondiam, a segurança de que dispunham. Após nos contar, nós
439
deixamos o vampiro em paz, deixando-o em seu refúgio sombrio.
Ainda assim, uma questão ainda me incomodava, e, conforme subíamos as
escadas de volta para o galpão abandonado, perguntei a Lorde Asphael: “O
que mostrou a ele?”.
“Apenas minhas memórias”, respondeu Asphael Veritas. “Eu
mostrei a grandiosidade que desejávamos libertar, aquele que se esconde
sob o Profeta Louco”.
Eu parei, observando Lorde Asphael, enquanto Samuel e Al-Malik
tratavam de fechar o alçapão que levava ao esconderijo do vampiro. “Como
era Veritatis, Asphael?”, perguntei, pela primeira vez pensando no lado
humano de um Primus.
“Como nenhum outro ser que conheci, Mestre Nicodemus”, disse
Asphael, num tom saudosista, distante, “Ele parecia ter a natureza e o
mundo espiritual como parte de si. Sua serenidade e sabedoria não
conheciam limites, e sua busca por conhecimento era uma paixão mais
poderosa do que qualquer lâmina ou qualquer palavra. Conhece-lo era
como ter ao seu dispor conhecimento infinito e ilimitado e, ao mesmo
tempo, alguém que o instigasse à busca e à contemplação. Ele era um pai,
um mentor e um amigo e por ele eu daria minha vida”.
Eu parei para pensar naquelas palavras, invejando em silêncio as
memórias que Asphael pode ter passado para o vampiro. Ao mesmo tempo,
eu não podia deixar de pensar que tais revelações possam ainda transformar
a criatura em algo menos inumano. O Arcanjo chamou-o “Veritas”, um
privilégio que poucos Celestiais já tiveram. O que o futuro poderia reservar
a esse Santiago?
440
Um trovão ecoou, distante, tirando-me de meu estado
pensativo, forçando-me a retornar à realidade. Eu fitei as frestas entre as
tábuas que cobriam as vidraças do local. “Está muito escuro lá fora”,
murmurou Samuel. “E são quatro horas da tarde, em pleno verão”.
Eu então disse a mim mesmo, mas alto o suficiente para que todos
ouvissem: “Em breve, estará tão escuro quanto à noite. Nosso tempo está
quase acabando”. Então, pedi: “Vamos, a busca continua”.
441
Capítulo 18: O Povo das Sombras
Os galhos da árvore balançavam sem parar, empurradas pelo vento
crescente, e as nuvens negras acima já cobriam o céu de horizonte a
horizonte. Um trovão distante rugiu alguns segundos após seu relâmpago
iluminar os céus escuros. O dia estava escuro, criando uma penumbra densa
sobre a Cidade Maravilhosa. Embora a escuridão não fosse absoluta, e a
visibilidade ainda fosse boa, era como um entardecer precoce, e alguns
carros já acendiam seus faroletes. Uma energia negativa permeava o
ambiente, algo difícil de definir, mas para meu espírito era sufocante e fria.
No Reino dos Espíritos, eu podia pressentir os elementos recuando e se
escondendo, enquanto uma escuridão ainda mais profunda se aproximava.
“É aqui”, disse Karina, parando diante de um portão cinzento. Os
muros ao redor tinham mais de três metros de altura e cobertos por
trepadeiras. O portão em si era sólido, impossibilitando ver a casa além.
Mas mal paramos diante deles, ouvimos os latidos raivosos de dois cães.
“Os ‘gêmeos’”, murmurou Al-Malik, “o ghûl disse que os
‘gêmeos’ se escondiam neste lugar, correto?”.
“Correto”, respondeu o Arcanjo Asphael Veritas.
“O que sabe sobre eles, Samuel?”, perguntei.
“Quase nada”, respondeu Samuel, “sei apenas o que ouvi falar. São
os dois executores a serviço de Gudrun. São sua força entre as Crias de
Lucifugo, responsáveis por manterem outros vampiros obedientes. Eu
nunca ouvi seus nomes, nem sei o que podem fazer. Mas são perigosos e,
pelos boatos, não são daqui. Gudrun os trouxe consigo da Europa quando
veio ao Rio de Janeiro”.
442
“Precisamos ser cuidadosos”, murmurou Karina, tocando o
portão, fitando-o com um ar de tristeza, “os cães não estão em seu estado
natural. Eles foram pervertidos pelo sangue vampírico”.
“O único inimigo que me faz tremer não está além destes muros”,
disse Asphael Veritas, “mas sobrevoa o Oceano em nossa direção”.
Olhei para o topo do muro, vendo uma cerca elétrica. “Lorde
Asphael, os mortais podem nos ver agora?”, perguntei.
“Não”, o Arcanjo respondeu.
“Então, não percamos mais tempo”, pedi, tocando o muro.
Concentrei minhas energias no ponto tocado, e a parede tremeu, ondulando
por um momento, como se eu tocasse a superfície de uma poça d’água.
Samuel Fulmen sacou sua espada com a mão direita e, em seguida, com a
mão esquerda, retirou a cimitarra de Al-Malik que levava também sob o
sobretudo, jogando-a ao Malaki. Ao mesmo tempo, Karina sacava a pistola
que levava sob a jaqueta.
Samuel deu o primeiro passo em direção ao portal, mas a mão de
Karina tocou suavemente seu peito. O Sancti a fitou, encontrando seus
olhos verdes calmos. “Deixe-me ir primeiro”, ela pediu, tomando a frente.
Samuel ficou em silêncio por um instante, sua face demonstrando
preocupação, e Karina deu-lhe as costas, atravessando o portal. Samuel
rapidamente a seguiu.
Quando atravessei o portal, após Al-Malik e Lorde Asphael, vi um
pequeno gramado diante de uma grande casa. O portão levava a uma
grande garagem, onde haviam dois carros. A casa em si era grande, com
dois andares. O segundo andar tinha uma varanda, e o gramado cercava
toda a propriedade. Muito bela, a casa certamente era um imóvel caro, mas
443
ao mesmo tempo em que representava poder e ostentação, ela parecia
mal cuidada, com paredes sujas e um gramado que necessitava de maiores
cuidados. A grama tinha crescido além da conta, e onde antes poderia ter
existido um canteiro de flores agora estava tomado por plantas mal
cuidadas. Mas mais importante do que a casa em si era o nosso grupo.
Karina se colocava entre nosso grupo e os dois enormes rottweiler negros.
Os cães rosnavam furiosos, mas ao mesmo tempo mantinham suas cabeças
baixas, como se tivesse medo. Karina avançou, a passos lentos, e os cães
ao mesmo tempo recuavam, mostrando seus dentes e rosnando como se
estivessem diante de uma grande ameaça.
“Calma”, murmurou Karina aos cães, aproximando-se de um deles
e abaixando-se para toca-lo. O animal rosnava, suas presas sempre à
mostra. Então, a mão de Karina tocou a testa do animal, e imediatamente o
cachorro se silenciou. O animal se ergueu, calmamente, deixando que a
Supervivente afagasse sua cabeça, acariciando seu pêlo negro com a ponta
dos dedos. O segundo rottweiler ainda estava nervoso, mas então Karina
fez um sinal a ele, chamando-o. Cautelosamente, o segundo se aproximo,
desconfiado e temeroso. Mais uma vez, Karina estendeu sua mão, desta vez
tocando o focinho do segundo cão. A mão deslizou pelo focinho, tocando a
testa do animal, e este também se acalmou, deixando que Karina o
acariciasse. “Venham comigo”, ela sussurrou, se levantando. Os cães se
puseram ao redor dela, agindo como seus protetores.
Karina se virou para nós. No fundo, eu me sentia orgulhoso dela,
embora minha face demonstrasse surpresa diante de sua calma. “Vamos”,
ela pediu sorrindo. Havia uma harmonia nela como eu não sentia desde o
começo de nossa jornada. Talvez por agora estar em seu elemento, entre as
444
criaturas da terra e contra um inimigo tangível, ela finalmente se
sentisse segura e protegida.
A Supervivente tomou a frente do grupo, caminhando em direção
da casa. Ela parou diante da porta de entrada, e então fitou um dos cães. O
animal ergueu a cabeça, seus olhos se encontrando com os da Celestial.
Pouco depois, o cachorro correu até a porta, começando a latir e a arranha-
la em seguida.
Uma voz raivosa veio de dentro. “Pare com esse barulho, cachorro
idiota!”, disse um homem, que abriu a porta. “O que é?”. O homem,
aparentando ter uns trinta anos de idade, olhou ao redor, dando um passo
para fora da casa. O cachorro se afastou, ainda latindo. “Cale a boca!”,
ordenou o homem, mas o cão não obedecia. O olhar dele percorreu o
gramado, passando por nós, mas mesmo o sangue vampírico que o
fortalecia não permitiu que sua visão penetrasse a ocultação de Lorde
Asphael. O homem deu mais um passo para fora, ainda olhando ao redor,
enquanto o cão ainda latia furiosamente. Notei então que, na mão direita,
ele portava uma pistola. Ele fitou o outro cão, parado calmamente a uns
dois metros de distância, e se virou para o que latia. “Cachorro imbecil.
Cale a boca!”.
Foi quando a pistola de Karina tocou a têmpora do homem,
pressionando-a. “Largue a arma e fique quieto”, murmurou a Celestial,
agora desprotegida pela ocultação do Arcanjo Asphael. O homem parou
imediatamente, sua face expressando surpresa . Ele lentamente abriu a mão
direita, deixando sua arma cair. O cão agora permanecia em silêncio.
“Onde estão os gêmeos?”, perguntou Karina. Samuel se surpreendeu com
445
Karina, perguntando: “Karina, que idéia é essa?”. Embora Karina
pudesse ouvir o Sancti, o homem não podia.
“Quem é você?”, perguntou o homem. Sua voz estava um tanto
nervosa, mas mesmo assim firme, e sua pergunta mostrava claramente que
ele não queria dar nenhuma resposta.
“Responda!”, ordenou Karina. Enquanto isso, Samuel se
aproximava dela, murmurando: “Karina, se afaste dele!”. Al-Malik segurou
firmemente o cabo de sua cimitarra, como se esperasse pelo pior.
“Como entrou aqui?”, perguntou o homem, obviamente ignorando
as perguntas de Karina. O cão ao lado de Karina rosnou, virando a cabeça
na direção da porta. Neste instante, Karina se moveu rapidamente,
empurrando o homem para o lado, e aproveitando este mesmo movimento
para se jogar para trás. A Celestial emitiu um grito de surpresa, mas este foi
abafado pelo som do disparo de uma pistola, vindo do interior da casa,
através da janela, cuja vidraça se partiu. O homem, impulsionado por
Karina, caiu no chão, enquanto ela própria se abaixou, logo antes de
ocorrer um segundo disparo. Samuel também se abaixou assim que ocorreu
o segundo disparo. Embora invisível, o Sancti estava muito próximo de
onde Karina estava, e poderia ser atingido por uma bala perdida.
Abaixada, Karina fez um sinal para o cão que estava próximo à
porta. O animal a fitou por um instante, e então correu para o interior da
casa, rosnando furiosamente. O homem, caído no gramado, tentou pegar
sua pistola no chão. Antes que Samuel pudesse reagir, porém, o segundo
cão mordeu o braço do homem. Ele gritou de dor, conforme o cão segurava
firmemente, perfurando as presas na carne do braço. Um terceiro disparo se
seguiu, e então um novo grito, desta vez vindo do interior da casa. Al-
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Malik e eu corremos para o interior, onde encontramos um segundo
homem, este mais jovem, caído com o cão sobre ele. As presas do animal
pressionavam o braço esquerdo do rapaz. Mesmo com dor, o rapaz
conseguiu disparar a arma que carregava mais uma vez, mirando no animal.
Um ganido se seguiu. O cão largou o braço do rapaz, caindo no chão ao
lado. O rapaz soltou a arma, levando a mão boa ao braço ferido, e gemendo
de dor. Al-Malik se aproximou, pisando sobre a arma caída e apontando a
lâmina da cimitarra na direção da garganta do rapaz. “Permaneça onde
está”, ordenou o Malaki, quebrando o poder de Asphael sobre si e se
tornando visível.
Olhei para fora, vendo Karina se levantar. Samuel a questionava:
“Por que fez isso?”.
“Desculpe, Sam,” ela disse, “Achei que podia nos fazer entrar na
casa sem termos muitas dificuldades. E sem mortes desnecessárias”.
“E conseguiu”, disse Asphael, que se aproximava, “mas vocês
ainda precisam agir em grupo. Entramos aqui sem planejamento. Talvez
vocês todos estejam acostumados demais a contar apenas com consigo
mesmo”.
“Deixa para lá”, disse Samuel, também se levantando. “O problema
de verdade é o que ainda está por vir”. Então, o Sancti fitou o homem caído
no chão, ainda agarrado pelo cão. Ele gritava de dor, enquanto o rottweiler
negro ainda pressionava seu braço entre as mandíbulas. Samuel se abaixou,
tocando o homem, que se calou, primeiro como se a dor sumisse, e então
como se uma sonolência repentina o tomasse. O homem gemeu, como se
sentisse um misto de frio e dor e, por fim, ele desmaiou. Samuel se
levantou, adentrando a casa.
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“Onde estão os gêmeos?”, perguntou Al-Malik, pressionando a
lâmina contra a garganta do rapaz caído na sala. O cão ao lado respirava
com dificuldade, enquanto seu sangue escorria pelo piso cinzento. O rapaz
fitou Al-Malik, seus olhos trêmulos de temor. Embora o rapaz visse apenas
um árabe de meia-idade, no fundo ele sabia estar diante de algo muito
maior e mais poderoso. Suas palavras vieram aos poucos, forçadas não pela
lâmina em seu pescoço, mas pelo sutil poder que emanava do Malaki. “Sob
a casa!”, ele respondeu em desespero. “A passagem fica atrás da estante na
sala de estar! Há um porão escondido, eles dormem ali. Nós guardamos o
local durante o dia!”.
Samuel e Karina se aproximaram. Karina se abaixou e tocou o cão
que morria. “Calma”, ela pediu, acariciando o animal. “Tudo ficará bem”.
Já o Sancti tocou o rapaz, provocando nele o mesmo efeito que
provocou no outro homem. Assim que o rapaz caiu desacordado, Samuel
tocou o braço de Karina. “Com licença”, ele pediu. Ela o olhou, já sabendo
a intenção do Sancti, e deu espaço para Samuel. As mãos do Sancti tocaram
o cão, e um forte brilho dourado emanou. A respiração fraca do animal de
repente se tornou mais intensa, e o cachorro surpreso se levantou
lentamente. Karina sorriu, e seus olhos se encontraram com os de Samuel,
que devolveu o sorriso.
Ouvi um trovão, um lembrete de que o tempo se tornava cada vez
mais curto. Sem querer apressar meus companheiros, e sabendo que não
seriam necessárias palavras, eu prossegui para os outros cômodos da casa.
Asphael me seguiu de perto, enquanto Al-Malik, Samuel e Karina
demoraram um pouco para deixarem aquela primeira sala. Atrás de Karina,
vieram ainda os dois cães.
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A primeira sala levava tanto a um corredor como às escadas
para o segundo andar. Eu decidi prosseguir pelo curto corredor e, abrindo a
porta ao final do mesmo, cheguei à sala de estar. Observando o ambiente,
pude mais uma vez perceber a ausência dos detalhes que tornam uma casa
“viva”. Não havia quadros para adornar as paredes, nem um tapete no chão,
e mesmo os sofás, as paredes e o chão pareciam necessitar de limpeza. Eu
parei no centro da sala de estar, analisando as pesadas cortinas que tapavam
as janelas, deixando o ambiente obscuro, bem como as portas fechadas para
os demais cômodos. Porém, meu interesse maior estava na estante vazia,
onde deveria haver uma tevê e, provavelmente, enfeites, adornos,
possivelmente alguns livros. Aproximei-me da parede, analisando o
encontro da mesma com a estante. Mesmo na penumbra densa da sala,
percebi a presença de dobradiças no lado esquerdo da estante.
“Provavelmente, a estante funciona como uma porta. Deve ser trancada por
dentro”, eu disse aos demais. Indo para o lado direito da estante, tentei
força-la, sentindo uma espécie de tranca impedir a abertura da passagem.
“Eles são sempre engenhosos para se esconderem”, murmurou
Samuel, se aproximando. Samuel analisou o lado direito da estante, e então
a puxou, sentindo a resistência da tranca. “Acho que posso arrebentar a
tranca”.
“Eu posso abri-la como fiz da última vez”, eu disse ao Sancti.
“Tudo bem”, disse Samuel, se afastando. Eu pensei nas
possibilidades... Não podendo ver a tranca, eu não poderia usar meu feitiço
de arrombamento, mas ainda assim poderia pedir ajuda aos espíritos
novamente. Ao tocar a estante, porém, pensei numa maneira ainda mais
simples de vencermos este obstáculo. A estante era de madeira, um dos
449
elementos que posso manipular, ainda que eu tenha pouca experiência
com este Caminho Elemental. Eu fechei meus olhos, sentindo meus dedos
tocarem a madeira. Tentando imaginar onde estava a tranca, eu fiz minha
energia fluir, invadindo a estante. Sob meu comando, a madeira se
transformava, de uma forma imperceptível. Normalmente, eu poderia fazer
a madeira crescer e se transformar, mas desta vez eu desejava algo ainda
mais simples: afrouxar a madeira ao redor dos parafusos que mantinham a
tranca presa à estante. Forçando novamente a estante, a tranca se soltou, e a
passagem se abriu, revelando um pequeno cômodo.
O cômodo escuro poderia ter sido um banheiro originalmente, mas
a passagem onde estaria a porta agora estava obstruída por uma parede de
tijolos que nunca fora pintada. Uma escada levava a um cômodo escuro sob
a casa. Virei-me para meus companheiros, e Samuel novamente tomou a
frente. O Sancti foi o primeiro a descer as escadas, seguido por Al-Malik,
eu, Asphael e Karina e seus cães.
“Acha que estão adormecidos?”, perguntei mentalmente a Samuel,
usando meus próprios poderes.
“Acredito que sim. Mesmo que acordem, estarão letárgicos”,
respondeu Samuel, também mentalmente, utilizando o elo mental que criei
para iniciar a conversa mental.
O porão abaixo era extremamente escuro, sem janelas que
trouxessem a luz natural do Sol. Apesar da escuridão, haviam alguns
abajures, cuidadosamente colocados sobre pequenas mesas redondas, junto
aos cantos das paredes, providenciando uma iluminação suficiente para ver
na penumbra. Notei interruptores nas paredes e luzes elétricas no teto. O
primeiro cômodo subterrâneo continha grandes estantes juntos às paredes,
450
com escrivaninhas, e pude perceber uma vasta coleção de livros. À
frente, estava a porta para um outro cômodo.
Samuel se aproximou da porta, tocando sua fechadura
cautelosamente. Al-Malik permaneceu próximo ao Sancti, sua cimitarra
pronta para cortar qualquer criatura que saísse por aquela passagem.
Cuidadosamente, a porta foi aberta, quase em total silêncio. Samuel fitou o
cômodo seguinte, e então o adentrou, sua lâmina posta à frente do corpo.
Adentrei o novo cômodo logo após Al-Malik. Meus olhos
penetraram a escuridão, analisando o local. Era uma sala grande, de
formato quadrado, com uns cinco metros de lado, mais ou menos. Havia
armários na parede oposta, e as demais paredes eram adornadas com
quadros belíssimos de paisagens e pessoas. O chão era coberto por tapetes
finos, com desenhos ricamente adornados. Duas esculturas de mármore, de
um homem e uma mulher, estavam em paredes opostas. Mas, mais
importante, no centro da sala estavam dois caixões.
Samuel e Al-Malik se aproximavam dos caixões por lados opostos.
Samuel preparou sua espada, enquanto Al-Malik se abaixou, usando a mão
esquerda para abrir o primeiro caixão, enquanto a mão direita ainda
empunhava a cimitarra. Eu pensava enquanto isso... Por que caixões? Por
que o símbolo da morte? Que tipo de fixação seria essa entre vampiros? Por
que algo tão comum? Minhas indagações se tornaram apreensão quando
enfim Al-Malik forçou o caixão a se abrir, revelando-se vazio. O Malaki
deu um salto para trás, e seus olhos brilhantes percorreram a sala, buscando
qualquer movimento, qualquer criatura oculta. Também Samuel se pôs em
alerta, deixando escapar uma única palavra: “Maldição...”.
451
Uma rajada de tiros foi a resposta. Karina, que estava na porta
de entrada do cômodo, foi atingida nas costas. A Celestial tombou, embora
ainda estivesse consciente. Rapidamente, me afastei da porta, me virando
para poder ver o que quer que viesse por ela. Foi quando os dois cães
adentraram correndo, suas presas à mostra. Um ganido de dor ecoou
quando um dos cães tentou avançar contra Samuel. A lâmina do Sancti
atingiu o animal no pescoço, quase o decapitando, e jogando-o para o lado.
Al-Malik, porém, não teve tanta sorte, tendo o braço direito perfurado pelas
presas do segundo rottweiler.
O Malaki não gritou, mas sua face demonstrava a dor da mordida.
O cão punha seu peso contra Al-Malik, tentando derruba-lo, mas o Malaki
lutava para se desvencilhar do animal. Samuel tentou avançar para atacar o
animal, mas uma nova rajada de tiros veio pela porta, atingindo os armários
na parede oposta. Samuel parou, fitando o vampiro que vinha pela sala
anterior. A sombra da criatura, projetada pela luz dos abajures do outro
lado da porta, se movia de uma maneira não-natural, mostrando dedos
alongados e um corpo alto e magro.
Lorde Asphael estava ao meu lado e, pondo a mão em meu ombro,
me empurrou para trás. “Proteja-se, Mestre Nicodemus”, pediu o Arcanjo,
dando um passo à frente.
Al-Malik ainda lutava para se livrar do cão, quando percebi uma
névoa sair pelas frestas do armário logo atrás. Gritei pelo nome do Malaki,
mas já era tarde demais: o segundo vampiro surgia, materializando-se a
partir da névoa, seus braços agarrando o Malaki pelas costas. As presas do
vampiro penetraram na jugular de Al-Malik, que gritou ao sentir seu sangue
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ser sugado. Imediatamente, o cão largou o braço do Malaki, passando a
rosnar para Samuel.
O outro vampiro veio pela porta, e reparei, apontando uma uzi para
mim e Asphael. Foi quando entendi porque eles eram chamados de
“gêmeos”. Embora não fossem idênticos, ambos vestiam trajes negros
iguais, e ambos tinham corpos longos e esguios, faces finas e ossudas, e
olhares frios. Onde um tinha longos cabelos negros e lisos, porém, o outro,
que agora sugava o sangue de Al-Malik, mostrava-se de cabelos raspados,
mas as sobrancelhas sugeriam que ele era loiro.
O recém-chegado mostrou um sorriso sádico para nós, talvez
imaginando que fôssemos mortais, talvez caçadores, e que nossa idade
aparente nos tornava alvos fáceis. Lorde Asphael fitou o vampiro
friamente. Foi quando Samuel baixou sua espada. Também percebi que Al-
Malik parou de se debater, permitindo que seu atacante sugasse o sangue
celestial impunemente. O cão rosnava furiosamente para Samuel, quando
repentinamente se calou, baixando a cabeça. Foi quando uma voz quebrou
o silêncio: “Onde está Hagan Gudrun?”, perguntou Lorde Asphael, sua voz
demonstrando uma serenidade intocada. Mas em minha mente, eu ouvia a
voz de Asphael ecoar diferente: “Proteja Al-Malik quando o sinal vier”,
disse a voz do Arcanjo.
O vampiro de cabelos negros continuou apontando a arma para nós.
Seus olhos nos avaliavam, talvez vendo coisas além do que a simples visão
podia revelar. O outro terminava seu banquete, desprendendo suas presas
do pescoço de Al-Malik, sem se preocupar em fechar a ferida. O sangue
celeste escorria de seus lábios, enquanto seu olhar brilhante agora fitava
Samuel. “O sangue deles é doce como há muito não saboreava”, disse o
453
sanguessuga, sua pele tornando-se mais avermelhada, suas feições
simulando vida, ainda que falsa vida. “Eu sinto vida como não sentia há
muito tempo! E uma força que não me é normal! É delicioso! Fabuloso!”.
O morto-vivo que nos fitava continuava a nos analisar friamente.
Sua face era mais séria, seus olhos mais profundos. Então, como se sentisse
uma ameaça em nós, sua feição mudou, como se nos visse com asco, talvez
certo temor. Ele nada disse, apenas disparou uma rajada de balas contra
Lorde Asphael. O som dos tiros abafou o rosnar do cão, que avançou contra
seu mestre, mordendo o braço do vampiro e desviando sua mira, mas não
antes que algumas balas atingissem o peito do Arcanjo. Asphael recuou,
embora nada indicasse dor ou medo da parte dele. Ao contrário, sua voz
veio como um trovão em nossas mentes, mas pedindo e não ordenando:
“Agora é o momento!”.
E imediatamente, Karina se virou, rolando para a direita e
apontando sua pistola para o vampiro que lutava com o cão. Três tiros
rápidos se seguiram, atingindo o morto-vivo, enquanto o cão usava seu
peso para tentar derrubar a criatura.
O segundo vampiro reagiu jogando Al-Malik para o lado, suas
mãos em um instante tornando-se garras poderosas, suas presas crescendo e
sua pele tornando-se escamosa como a de uma cobra venenosa. Antes que
ele avançasse contra Karina, ergui meu braço, invocando o poder do vento.
Atingido pela da lufada, o vampiro-víbora recuou, batendo as costas contra
os armários logo atrás. A espada de Samuel veio em seguida, direcionada à
barriga do sanguessuga, numa tentativa de parti-lo em dois. A lâmina,
porém, se chocou contra a porta de madeira do armário, provocando
rachaduras na madeira. O vampiro atravessou a lâmina sem ferimentos,
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como se sua essência por um instante fosse ar, embora não tivesse se
tornado névoa. A criatura-víbora recuou, mostrando uma língua bífida
comprida e as duas longas presas, seus olhos brilhando num amarelo pálido
que refletia a pouca luz vinda do aposento anterior.
O primeiro vampiro recuou pela porta de entrada da sala, seu
movimento sendo atrasado pelo cão que o agarrava no braço. “Cão
desgraçado!”, o vampiro urrou, descarregando o pente de balas no animal,
enquanto continuava recuando. Karina gritou, sentindo a morte do
rottweiler através do elo que ela tinha com ele. O corpo do cachorro
tombou, mas não sem antes rasgar a carne do morto-vivo, deixando cair
algumas poucas gotas de sangue profanado. Lorde Asphael avançou na
direção da porta, seus passos firmes e cadenciados, como se estivesse numa
marcha. Eu o segui de perto, embora meus olhos ainda se focassem na
batalha que ocorria na mesma sala.
Samuel avançou com velocidade e graça que excediam qualquer
agilidade humana. Num instante, ele puxou sua lâmina para a esquerda do
seu corpo, em seguida usando a força do braço direito para direciona-la
contra o peito do inimigo. Também excedendo os limites humanos, o
vampiro-víbora avançou, garras prontas para um golpe fatal. Mais uma vez,
a lâmina atravessou o vampiro, como se este fosse apenas fumaça. A
lâmina atingiu novamente os armários de madeira, desta vez com uma
potência tão grande que o impacto partiu a porta do armário em duas,
arremessando lascas de madeira por toda a sala. As garras escamadas do
morto-vivo investiram contra o pescoço do Sancti, penetrando a pele. Onde
o vampiro esperava encontrar a carne macia de um mortal, porém, suas
garras rasgaram pele tão resistente quando osso. O sangue de Samuel
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espirrou, mas apenas um ferimento leve se formou. O vampiro
prosseguiu em seu avanço, seu corpo-névoa agora atravessando o corpo de
Samuel, e se materializando logo atrás do Celestial. Por um centésimo de
segundo, ambos os oponentes estavam de costas, e então ambos giraram
seus corpos, cada qual usando o movimento circular para dar força e
velocidade às suas armas, fossem garras ou lâmina. O morto-vivo provou
ser mais rápido, suas garras penetrando no braço esquerdo de Samuel,
rasgando a manga do sobretudo e deixando marcas sangrentas no Celestial.
A dor não impediu o ataque de Samuel, que continuou o movimento para
desferir um golpe mortal com sua espada. O metal se chocou mais uma vez
contra os armários, porém, incapaz de atingir o vampiro que, em um
instante, recuou para além do alcance da lâmina.
Samuel parou, mantendo a lâmina à frente do corpo, seu pescoço e
braço sangrando, enquanto o oponente se afastava cautelosamente. Seus
olhares se encontravam fixados um no outro. Enquanto o Sancti ofegava,
extravasando suas emoções, a víbora permanecia silenciosa e mortal.
Karina se levantava, apoiando-se na parede oposta aos armários, já curada
dos ferimentos de bala que sofrera, enquanto Al-Malik ainda permanecia
caído no chão. Já Lorde Asphael e o outro vampiro, o de cabelos negros, se
encaravam na sala ao lado, iluminados pela fraca luz dos dois abajures ali
presentes. Os olhos de Asphael brilhavam com intensidade, adicionando
ainda mais luz ao local, enquanto o vampiro o analisava com temor. “Onde
está Hagan Gudrun?”, perguntou novamente o Arcanjo.
Samuel continuava a fitar seu oponente, seus lábios se movendo
enquanto ele murmurava uma oração. Samuel avançou, silêncio agora em
seus lábios, os olhos fixados no oponente. A espada atacou novamente,
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desta iluminando-se dourada. O corte atingiu o peito do vampiro, que
mais uma vez permitiu que a lâmina sólida trespassasse o corpo imaterial.
Porém, ao invés de avançar para o ataque, o vampiro gritou, seu peito se
rasgando e queimando ao toque da lâmina reluzente. O vampiro recuou um
passo, em seguida avançando contra o ombro desprotegido de Samuel.
Mais uma vez, ambos se moveram com agilidade sobre-humana, numa
dança mortal. As garras da criatura erraram por centímetros a carne de
Samuel, que se jogou para o lado, em seguida tentando cortar o morto-vivo
na altura da cintura. O monstro se afastou rapidamente, escapando por
pouco do metal cortante. Samuel recuou um passo, virando suas costas para
a parede, enquanto o vampiro avançou para um novo ataque. Incapaz de
colocar a espada numa posição defensiva a tempo, Samuel se apoiou na
parede, chutando o peito do vampiro para força-lo a recuar e conseguir
tempo. O vampiro recuou, e foi quando a lâmina de uma cimitarra perfurou
suas costas, emergindo em seu peito, através das costelas e do coração. O
vampiro arregalou os olhos amarelos, enquanto suas escamas desapareciam
rapidamente. Atrás dele, Al-Malik estava em pé, seus olhos fixados no
monstro que bebera seu sangue. Samuel sorriu, erguendo a lâmina
incandescente. Um arco dourado se formou indicando o traçado da lâmina,
e a cabeça do morto-vivo rolou.
“Quem são vocês?”, perguntou o vampiro que restava, desviando
os olhos para não fitar Lorde Asphael, e fazendo uma expressão clara de
dor, como se sentisse o fim de seu irmão de sangue.
“A pergunta deveria ser... o que queremos?”, murmurou Asphael,
seus olhos brilhando intensamente, e logo em seguida o Arcanjo ergueu a
voz: “Mas as respostas que procurávamos já tenho, Stephan Reinhold”.
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O vampiro recuou ainda mais, mostrando suas presas e olhos
brilhantes, como um animal acuado. “Como sabe meu nome verdadeiro?”.
Lorde Asphael permaneceu parado, seus olhos brilhantes
acompanhavam os movimentos do vampiro. “Eu sou Veritas, e seus séculos
de existência não significam nada para mim. Não há segredos seus que eu
não possa descobrir”.
“O Profeta estava certo! No dia em que nossa força não puder ser
detida pelo Sol, virá a noite em que todos nós seremos julgados!”,
murmurou o vampiro, sua face demonstrando surpresa e medo. Então, ele
abriu os braços, e as estantes de livros ao redor começaram a arder em
chamas. “Eu vou enterra-los aqui, pois não tocarão meu Senhor!”.
Karina e os outros, que viam a cena através da porta da sala dos
caixões, viraram-se com surpresa ao notar as chamas se formando também
nos armários no fundo da sala e nos caixões no centro da mesma. Asphael,
porém, começou a caminhar na direção do vampiro, sem se preocupar em
desembainhar a espada que levava na cintura. O morto-vivo mostrou as
presas, e para minha surpresa, sombras se ergueram do chão. Tentáculos de
sombra, como os que Wang é capaz de gerar, surgiram para agarrar os
pulsos de Asphael, e o vampiro avançou, de sua boca nascendo um
serpenteante chicote de sangue. Asphael se moveu na direção do monstro,
sua força sendo suficiente para partir os tentáculos negros como se estes
fossem papel. O chicote carmim atacou pela esquerda, mas a mão de
Asphael o agarrou, a pele do Arcanjo resistindo à superfície cortante
daquela arma demoníaca. A mão direita de Asphael agarrou o pescoço do
vampiro, erguendo-o no ar. O vampiro se debateu, mãos tornando-se
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garras, e tentou em vão rasgar o rosto do Arcanjo, não conseguindo
causar dano maior do que unhas comuns fariam.
“Eu estou enfrentando os senhores do Inferno e não tenho tempo a
perder com um ser como você. Você se orgulha de seu poder, e o usa para
abusar de seres mais fracos. Mas eu não sou como você”, disse Asphael,
intocado pelos ataques do monstro. Então, o Arcanjo puxou o chicote
rubro, arrebentando-o. O vampiro não conseguiu esconder a dor, enquanto
o chicote sólido se desfez em gotas de sangue. Ao redor, as chamas
aumentavam, e o calor se tornava insuportável. “Eu odeio a mim mesmo
cada vez que tenho que demonstrar poder e não sabedoria. E por isso,
também odeio o que me forçou a fazer”. Mais chamas surgiram, agora
diante das mãos de Asphael. O vampiro ardeu, fogo consumindo-o, e então
o Arcanjo o arremessou contra as estantes flamejantes. “Vamos”, gritou
Asphael aos outros, indicando para que saíssemos daquele inferno.
Samuel abraçou Karina, correndo com ela de volta à escada que
levava de volta a casa. Eu e Al-Malik corremos também para a escada,
parando assim que chegamos a ela para fitar o Arcanjo, que ainda
permanecia parado no centro da sala, vendo o corpo do vampiro, em
chamas, se erguer mais uma vez. O monstro se moveu com velocidade, e
finalmente a mão de Asphael tocou o cabo de sua espada. O movimento foi
rápido e eficaz, a espada foi retirada num instante, e o corpo do vampiro se
partiu em dois. As metades do morto-vivo se desintegraram no ar, deixando
apenas uma chuva de cinzas e fogo. A lâmina da espada brilhava
levemente, não refletindo o fogo, mas sim emitindo luz própria, de pura cor
branca.
“Lorde Asphael!”, gritei, “Vamos!”.
459
Os olhos do Arcanjo me fitaram, e ele caminhou na direção da
escada. Al-Malik já subia os degraus, mas eu continuava a esperar por
Asphael. Ele embainhou sua espada, e caminhou em minha direção, como
se o fogo não pudesse afeta-lo.
Enquanto subíamos as escadas, eu não pude deixar de perguntar:
“E agora? Qual será nosso próximo passo?”.
“Eu sei onde é o refúgio de Hagan Gudrun”, murmurou o Arcanjo,
“Rezo para que ainda haja tempo”.
Saímos rapidamente da casa, que logo estaria em chamas. Samuel e
Karina deixaram os corpos desacordados dos servos dos vampiros no
jardim. Acima, as nuvens estavam ainda mais negras e densas, e os
relâmpagos caíam com freqüência, iluminando a escuridão. O dia tinha se
tornado uma grande penumbra, mas ainda não tão escura quanto a noite
verdadeira. Então, enquanto as chamas já começavam a tomar a
propriedade, as primeiras gotas de chuva começavam a cair.
“Eu não entendo”, disse Samuel, “Os vampiros estavam despertos.
Isso não deveria acontecer, deveriam estar letárgicos durante o dia”.
“É a tempestade”, disse Asphael, olhando para o céu escuro. “Ela
está fazendo a barreira entre a vida e a morte se enfraquecer. As Crias de
Lucifugo têm uma ligação com o mundo dos mortos. É o fortalecimento da
barreira, que ocorre todas as manhãs, que os deixa letárgicos. Afinal, os
Anunnaki estão mortos à sua própria maneira”.
“O dia em que a força deles não seria detida pelo Sol”, murmurou
Al-Malik, “Foi isso o que o vampiro disse”.
460
“Então, como o próprio morto-vivo disse, chega a noite em que
eles serão julgados”, respondeu Asphael, estendendo a mão para abrir um
portal. “Vamos, o tempo é curto”.
E, ao atravessar aquele portal, deixando para trás a casa em chamas
e a chuva que começava, ouvi mais um trovão. Um trovão e um rugido.
Ao emergir do outro lado do portal, continuei a ouvir a chuva cair,
mas agora ela estava lá fora, e eu numa sala grande e escura. Fitei uma
cortina pesada, sem conseguir ver a janela e a chuva além, mas podia ouvir
o som da água cair. E ouvi novamente o mesmo trovão que antes,
indicando que estávamos bem longe da casa dos Gêmeos agora. Olhei ao
redor, analisando a sala, enquanto meus companheiros chegavam pelo
portal. Al-Malik e Samuel empunhavam suas armas, e Karina adentrava
temerosa. Estávamos numa sala de estar, grande e luxuosa. As luzes
apagadas e a cortina fechada tornavam aquele lugar escuro demais. Fora
nossos passos e nossa respiração, não haviam sons vindo do interior da
casa.
“Onde estamos?”, perguntou Samuel.
“No covil da fera”, respondeu Al-Malik. “É o esconderijo dele”.
“Mas ele não está aqui”, murmurou Lorde Asphael.
“Lorde Asphael, tem certeza?”, perguntei.
“Não sinto nada aqui, nenhum perigo, nenhum olhar oculto”,
respondeu. “Este lugar está tão morto quanto seu dono”.
“Realmente”, murmurou Samuel, fechando os olhos em
concentração, “ele deve ter servos mortais, mas não sinto vida aqui. Não há
pessoas, nem animais. Nada que importe”.
461
“Maldição!”, murmurei, “tão perto, e tão longe! Temos que
procurar... deve haver algo aqui! Alguma pista, algo que nos leve a
Gudrun! Nosso tempo está se acabando, em poucas horas o tigre estará
aqui!”.
“Vamos procurar, como fizemos no apartamento de George
Matos”, disse Al-Malik, “E tenhamos paciência, se nos desesperarmos,
podemos deixar para trás informações importantes”.
“Chamarei os outros. Melhor estarmos todos juntos de agora em
diante”, eu disse.
Asphael concordou com a cabeça. “Abrirei o caminho para você,
Mestre Nicodemus”, ofereceu o Arcanjo, então, mais um portal se formou.
Agradeci, atravessando a passagem. Da sala escura, passei a um ambiente
iluminado, bem menor, mas mais aconchegante. A sala de tevê de Samuel
estava diante de mim. Logo percebi que minha chegada repentina
surpreendeu Absolon e Fabrizia, que estavam sentados lado a lado no sofá.
Absolon se levantou imediatamente: “Nicodemus! Nós estávamos
preocupados!”. Fabrizia sorriu, notei-a meio sem graça, mas ela se levantou
logo em seguida.
“Onde estão os outros, Absolon?”, perguntei, olhando o jovem
Princeps. Ele agora usava uma jaqueta negra por cima de uma camiseta
branca, além de calças jeans e tênis.
“Estão lá dentro, Nicodemus”, respondeu o Princeps, abaixando-se
para pegar a espada que ganhou de Amazarak, na Cidade Eterna, e que
deixara embainhada, sobre o sofá. “Acha que precisarei disso?”.
“Espero que não, Absolon, mas prepare-se para qualquer coisa”,
respondi. Olhei para Fabrizia, que vestia uma blusa negra e calças jeans, e
462
deixava os cabelos negros presos num rabo de cavalo. Seu olhar
demonstrava preocupação, e ela olhava constantemente para Absolon.
Notei as mãos de ambos unidas, e ao lado de onde Fabrizia antes estava
sentada estava uma capa de chuva cinzenta. Fiz um sinal para ela com a
cabeça, então me pus em direção ao interior do apartamento. “Entrem pelo
portal, os outros explicarão a situação”, eu disse antes de começar a
caminhar. No canto de minha visão, vi Fabrizia pegar a capa de chuva.
Caminhando para o quarto de Samuel, minha atenção se voltou à
tempestade lá fora. A chuva parecia cada vez mais forte, e os ventos
uivavam furiosamente. Em meio ao uivo do vento, eu às vezes parecia
ouvir gritos de horror ou agonia, ecoando nas profundezas de minha mente.
O ambiente parecia um vácuo espiritual, como se os elementais do Rio de
Janeiro estivessem se escondendo. E, cada vez mais, eu sentia uma
presença opressiva. Minha intuição me dizia que Shiva ainda estava longe,
que o tigre ainda voava com grandes asas sobre o Oceano ao leste. Quanto
tempo ainda tínhamos? Duas horas? Três horas?
Entrando no quarto escuro, encontrei Lo Wang sobre a cama,
meditando em posição de lótus. Sua roupa negra incluía um capuz, luvas e
botas, mas notei a máscara demoníaca ao seu lado. Os olhos do Celestial
das trevas se abriram, me olhando calmamente. “Chegou a hora?”,
perguntou.
“Ainda não, mas está chegando. Há um portal na sala, os outros
explicarão o que está acontecendo”.
Lo Wang se levantou, pegando a máscara e guardando-a em um
dos muitos bolsos ocultos de sua roupa. Ele também pegou sua espada
463
negra, ainda embainhada, e colocou-a em suas costas. “Onde está
Ansgar?”, perguntei, enquanto ele passava por mim.
“Na cozinha”, respondeu o anjo negro.
Caminhei até a cozinha, onde Ansgar estava sentado à mesa,
olhando o vazio à frente, perdido em pensamentos. A barba ruiva do
poderoso Venator parecia um pouco mais grossa agora, efeito do
crescimento de dois dias sem corta-la. Ele voltava a vestir uma roupa igual
à que usou no começo de nossa busca: botas, calça militar e uma camiseta
negra. Ao notar minha presença, ele se levantou, levando a mão esquerda
ao cabo de sua espada, embainhada em sua cintura, apenas para checar que
a arma estava ali.
“Vamos, Ansgar”, pedi, levando-o ao portal. No caminho,
expliquei brevemente nossa situação.
E, logo que atravessamos o portal de Asphael, os nove membros da
Falange estavam novamente reunidos. Todos olhando para mim, eu pensei
na melhor maneira de encontrarmos Gudrun: “Nós precisamos ser rápidos
aqui. Lo Wang, Absolon e Fabrizia, procurem o local em que Gudrun
provavelmente dorme durante o dia. Precisa ser um local protegido contra o
Sol, talvez um porão, talvez um quarto muito bem protegido. Ao acharem,
nos avisem, e depois procurem no local qualquer documento, qualquer pista
que indique onde está Gudrun”.
Virei-me a Ansgar, Samuel e Karina: “Procurem por alguma
biblioteca ou escritório. Dizem que Gudrun é um ‘bruxo’, então ele deve
possuir alguma fonte de conhecimento e de estudo. Aposto que mantém
também anotações ou dados sobre outros vampiros da cidade. Tentem
encontrar algo assim. Assim que encontrarem, nos avisem”.
464
Finalmente, meus olhos buscaram Al-Malik e Asphael. “Cada
um de nós pode ver o passado. Vamos nos separar. Tentem buscar qualquer
evento que explique o que aconteceu aqui, onde Gudrun foi”.
“Que Deus nos guie!”, murmurou Al-Malik, não indicando
desespero, mas sim esperança.
Nos separamos, cada um tomando seu rumo naquele casarão.
Ouvindo os trovões vindos de fora, por um momento eu me aproximei de
uma janela, puxando a cortina. Notei que a casa ficava numa região mais
alta, em meio a grandes árvores. Um relâmpago me permitiu ver as nuvens
negras acima, e nenhum prédio ao redor. O refúgio de Gudrun parecia ser
um local isolado, mas ainda assim próximo da região sul da cidade. Não
perdendo mais tempo, procurei a porta de entrada da propriedade.
Saindo da sala, encontrei uma escadaria, que levava a um salão de
entrada. O salão era grande, espaçoso, com grandes quadros de diversas
épocas. A luz dos relâmpagos iluminava as faces nos quadros. Muitas das
obras tinham o mesmo rosto: o de um homem vigoroso, de rosto esguio,
olhos negros e barba grossa. Me aproximei da porta que levava para fora, e
então fechei meus olhos, concentrando minhas energias. Concentrei-me no
momento em que os últimos deixaram a casa por aquela porta. Senti minha
mente vagar e, ao abrir meus olhos, me vi em outra época. Um novo trovão
ecoou, este mais distante, e a fraca luz do dia entrava pela porta aberta. Lá
fora, as nuvens negras já cobriam o céu, de horizonte a horizonte.
“Vamos logo! Tragam o maluco!”, um homem de negro disse,
esperando num carro logo à frente. E então, um grito me fez me virar para
o interior da propriedade.
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E meus olhos se arregalaram ao vê-lo. “Não, por favor!
Deixem-me ir! Deixem-me ir! O tigre se aproxima! A destruição me
persegue! Deixem-me ir! Por favor! Pelo amor de Deus!”, ele grita em
desespero, enquanto outros dois homens de preto o carregam à força. O
Velho! O Profeta Louco! Magna Veritas! Ele estava pálido e fraco, seu
corpo era magro, mal alimentado. Sua barba e cabelos cresciam sem
cuidado, grisalhos, e seus olhos eram profundos e tristes. Ele se debatia em
desespero, preso por uma camisa de força e vestindo apenas calças velhas
rasgadas.
“Calma, seu louco”, disse um dos homens, gritando para o Velho.
“Nos o levaremos a um lugar seguro!”.
“Não há lugar seguro!”, gritou o Velho, “Destruição caminha sobre
patas de um tigre, e caçadores iluminados me oferecem salvação! Mas
morte é tudo o que me segue, e o próprio Inferno virá atrás de mim e todos
os que me guardam!”. Os homens continuaram puxando o velho, que se
debatia em desespero para escapar. Os de negro o xingavam e batiam em
seu rosto, tentando leva-lo. E então, ao se aproximarem mais da porta de
saída, os olhos do Velho se encontraram com os meus... Eles arregalaram,
como se pudessem me ver, mesmo eu estando num tempo diferente. E
então ele gritou: “Eles me acharam! Nós estamos perdidos! E o Inferno virá
logo atrás!”. Os de negro o jogaram no chão, e então o arrastaram
violentamente, enquanto ele ainda se debatia, chorando em desespero:
“Eles virão a mim! Eles virão a mim!”.
“Philipe?”, ouvi uma voz feminina me chamar. Fechei meus olhos
quando um relampejo quebrou a visão. Ao abrir meus olhos, estava
466
novamente no presente, na escuridão do salão de entrada, e Karina
diante de mim: “Você está bem?”, ela perguntou.
“Sim”, respondi confuso, levando a mão à cabeça.
“Você precisa ver o que encontramos”, Karina disse, segurando a
minha mão e me puxando, gentilmente. A jovem Supervivente me levou de
volta às escadas e então através de um corredor com muitas portas, até
finalmente entrarmos numa suíte vazia, onde Ansgar me esperava. A janela
do quarto, do tipo deslizante, continha barras de metal que impediam a
passagem de uma pessoa. O banheiro também estava quase vazio, muito
sujo. Um fedor de suor e urina permeava o local. Reparei que a porta, de
metal, só tinha fechadura pelo lado de fora, e não havia armários, nem
mesmo uma cama, apenas um colchão e lençóis encardidos em um canto
oposto ao banheiro. A única luz no quarto era precária, vinda de uma única
lâmpada incandescente, insuficiente para iluminar adequadamente o
cômodo vazio. Porém, mesmo a fraca iluminação era suficiente para ver as
paredes danificadas e sujas... Marcas de giz, arranhões provocados por um
objeto duro e pontudo e até mesmo sangue seco formavam runas nas
paredes. As runas, do mais puro Fabulare, formavam frases, avisos.
“Deixem-me em paz!”, elas diziam. “Eu não devo ser encontrado”. “Ele
manipula seus atos”. “Eu não posso morrer”. “Eu não posso viver”. “A
Verdade não deve ser encontrada”. “Após o Apocalipse, virá o
Armageddon”. Pela janela, veio a luz de um relâmpago, seguida do trovão
que o acompanhava.
Fechei meus olhos novamente, me concentrando mais uma vez no
passado. Minha força de vontade já começava a se esgotar, após dois dias
de pouco descanso e uso contínuo de poder, mas eu tentava usar minhas
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últimas forças. Meu poder buscou algum momento... qualquer
momento... Eu queria ver Gudrun. Eu queria ver Gudrun e o Velho juntos,
nesta sala. Eu queria saber onde os dois estavam. Aos poucos, os sons da
tempestade diminuíram. Quando a noite ficou calma, abri meus olhos, e
além das barras da janela percebi uma noite tranqüila, com poucas nuvens e
algumas estrelas, ainda que houvesse uma negritude espiritual distante
vinda do oriente. Olhei para o colchão, onde o Velho se encolhia, sob os
lençóis, tremendo em posição fetal. Ele murmurava: “Há alguém aqui! Há
alguém me vendo! Eu sinto! Eles estão próximos!”. O Velho se ergueu
num instante, olhando ao redor. “Quem está aí?”, gritou.
“Eu, velho amigo”, uma voz masculina, forte e calma, ecoou vinda
do corredor. Ouvi o som de passos pesados, causados pelo bater da sola do
sapato no piso nu do corredor. Então, seguiu-se o som de chaves e do
destrancar da porta, que se abriu rangendo. Quando aquele homem entrou,
eu sabia que não era apenas um homem, mas um monstro. Careca, de barba
pesada e negra, olhos determinados, um nariz fino e longo, o rosto esguio,
mas aparência vigorosa, vestindo robes de cor vermelha por cima de uma
roupa totalmente negra. Hagan Gudrun tomou mais alguns passos, parando
diante do Velho que, sentado no colchão, abraçando as próprias pernas, se
limitou a olhar para cima, seus olhos trêmulos se encontrando com o olhar
frio e cruel do vampiro. “Minha filha acaba de morrer, eu pude sentir sua
chama se extinguir, seu elo na corrente de sangue se desfazer. Exatamente
como você predisse. É esta a noite?”.
“Não”, disse o Velho, sua voz rouca e fraca, “mas ela está perto, ó
Morte Carmim. O Caçador agora é seguido pelos Enviados da Luz, e a
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tempestade se forma, bloqueando o nascer do Sol. A noite está
próxima, está à sua porta. Eles vêm a mim”.
“Então o dia em que nossa força não será enfraquecida pelo Sol
também se aproxima. Eu conheço os sinais”, disse o morto-vivo, dando as
costas e, a passos lentos, se preparando para deixar o quarto. “Eu estarei
preparado”, continuou a falar o vampiro, “Meus serviçais já sabem o que
fazer”.
Um passo separava o monstro da porta, quando uma mão frágil e
cheia de feridas agarrou sua perna. O vampiro parou, virando para fitar a
face aterrorizada do Velho, que se arrastava aos seus pés. O velho
implorou, lágrimas percorrendo sua face: “Deixe-me ir, Morte Carmim, me
deixe ir. Eles virão atrás de você, e através de você chegarão a mim. Eu não
devo ser encontrado. Por favor, deixe-me ir”.
O vampiro puxou a perna, forçando o Velho a larga-la. Ele fitou
aquele homem desesperado com uma frieza sem igual. “Abandona-lo?
Quando chegar a hora, eu o moverei a um local seguro, já preparado para a
noite que virá. Não o encontrarão, velho amigo. Mas não pense que o
deixarei ir. Você é meu, seu poder é meu. Dê-me esta cidade, e então o
libertarei”.
Hagan Gudrun deixou o quarto e, enquanto fechava a porta, ouvia
os gritos enlouquecidos do Profeta Louco: “A Morte se aproxima, e o
Inferno a segue! A espada da luz irá atravessar seu peito, Hagan Gudrun, e
os inocentes morrerão às dezenas, varridas pela chuva de sangue cairá!
Haverá apenas morte, Hagan Gudrun! Apenas morte, trazidas pelas presas
de um tigre! Eu não posso morrer! EU NÃO POSSO MORRER! Eu não
posso... senão, ele voltará!”.
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Houve silêncio, quebrado apenas pelo som da chave fechando a
tranca, seguido dos passos pesados do vampiro que se afastava. O Velho se
encolheu em um canto, levando suas mãos à cabeça. As unhas longas
penetravam na carne da face, ferindo-a, enquanto ele chorava. Então, após
alguns minutos, ele ergueu a face, me fitando. “Desista de sua busca”, o
Profeta disse. “Por favor, senão ele virá a mim”.
“É tarde demais”, respondi, não tendo certeza se ele poderia me
ouvir ou não. “Ele já se aproxima. Se não o encontrarmos antes dele, então
tudo estará perdido”.
“Saia daqui!”, disse o Profeta, aparentemente incapaz de me ouvir.
“SAIA DAQUI”, ele gritou. E a voz ecoou em minha mente, tirando minha
concentração. Fechei os olhos, ouvindo aquela voz em minha mente.
Porém, por trás do tom desesperado e agonizante, ouvi uma segunda voz,
bela, poderosa, majestosa.
“Nicodemus!”, me chamava Ansgar, me apoiando para eu não cair.
O som da forte chuva retornava, e meus olhos se abriram. “O que houve,
Nicodemus?”.
“Eu o vi, Ansgar”, murmurei, me afastando do Venator e indicando
que estava bem. “Ele estava aqui, mas Gudrun sabia que viríamos. O
Velho... Veritatis foi tirado daqui, levado a algum lugar para que não o
encontrássemos”.
“E o que faremos?”, perguntou Ansgar. Procurei por Karina na
sala, mas ela já tinha saído.
“Precisamos de alguma forma encontrar Gudrun. Só aí
encontraremos o Profeta”, respondi. Logo em seguida, voltei a olhar aquele
quarto decadente, imaginando o sofrimento do Velho, pensando em suas
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palavras. Ele não queria ser achado... Por um momento, considerei em
desistir, em fazer a vontade daquela pobre criatura... Um ser vivo criado
para proteger uma alma sem igual, torturado pelo que sabe e pelo que é,
sabendo não ser vida verdadeira, mas um simulacro, um selo para impedir
que um Arcanjo permaneça prisioneiro de um dos governantes do Inferno.
Porém, era tarde demais para desistir. Se nós estávamos próximos, então
Shiva estava próximo. Se nós desistíssemos, então Shiva prosseguiria. Não
há mais tempo para voltar atrás, pois a morte se aproxima sobre as patas de
um tigre.
Foi então que Fabrizia apareceu, me chamando. Ela entrou no
quarto, e então parou ao sentir o cheiro de urina e sangue. “Nicodemus”,
ela disse, “Encontramos o local onde o vampiro dormia. Al-Malik está lá, e
pediu que o chamasse”.
Fabrizia nos levou ao local, um outro quarto no mesmo andar.
Ansgar foi conosco, e no quarto encontramos Absolon, Lo Wang e Al-
Malik. “Ele dormia aqui”, disse Absolon, apontando uma cama de casal,
grande e luxuosa, com lençóis de tecidos finos. O quarto era absolutamente
escuro, sem janelas. A porta de entrada era de metal, só podendo ser
trancada por dentro.Mesmo o corredor de entrada era escuro, evitando a
entrada da luz do Sol a qualquer custo. Os armários estavam abertos,
provavelmente pelos meus companheiros, e tinham muitas roupas, algumas
delas remanescentes de épocas passadas. Notei símbolos no teto e no chão,
e um círculo de proteção ao redor da cama.
“Gudrun é um homem bem preparado”, disse Al-Malik, “Ele
cercou o quarto de proteções, mas elas não parecem estar ativas agora. Eu
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não entendo muito de ritos místicos, Nicodemus, talvez possa me
ajudar a entende-los”.
Eu olhei os símbolos escritos, compreendendo pouco, mas sabendo
que se tratava de alguma espécie de magia de sangue. Pelos escritos,
parecia uma proteção contra fogo e madeira. A porta continha também uma
proteção contra arrombamentos. “Não há muito o que dizer, Al-Malik. Não
compreendo tudo, mas parece que Gudrun temia ser morto por fogo ou por
estacas, e que ficaria ciente se a porta do quarto fosse aberta”.
“Há mais”, disse Al-Malik. “Eu vi o passado deste quarto, tentei
ver quando Gudrun o deixou. Seus serviçais trouxeram um caixão durante o
dia, há umas quatro horas atrás. Depois, o levaram, mas murmuraram sobre
algo que aconteceria esta noite. Gudrun disse que ele não estaria
desprotegido”.
Olhei o brilho do visor do rádio-relógio no criado-mudo do quarto.
Já eram quase 18:30. “Continuem a procurar por pistas”, pedi a todos, após
agradecer Al-Malik, enquanto deixava o quarto, pedindo licença aos
demais.
Procurei por Karina e Samuel, não demorando a encontra-los. Eles
estavam com Asphael, num escritório. Karina tinha ligado o computador do
local, decifrando a senha com a ajuda de Asphael, enquanto Samuel
revirava papéis em busca de informações. “Alguma novidade?”, perguntei.
Infelizmente, não havia muito: nomes de vampiros e, no computador, os
documentos mais recentes continham informações sobre outros vampiros e
como contata-los, sobre as ações de Gudrun na cidade, sobre sua influência
no tráfico de drogas e outros assuntos que, embora pudessem nos levar a
Gudrun, levaria dias até que encontrássemos o vampiro. Não havia como
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procurarmos cada vampiro dessa cidade até o encontrarmos, nem como
buscar cada traficante atrás de um refúgio alternativo.
O tempo passava, mas a informação mais importante jamais surgia.
Onde estava Gudrun? Mesmo que pudéssemos investigar todos os passos
de Gudrun desde que ele deixou a casa, isso exigiria horas e horas vendo o
passado. Tínhamos de prosseguir buscando uma pista mais física, algo que
pudesse nos indicar um caminho... Mas o tempo ainda prosseguia. Mesmo
oculto por trás de pesadas nuvens, sua luz incapaz de penetra-las, logo o
Sol sumiria a oeste, fortalecendo ainda mais as trevas da Cidade
Maravilhosa. Buscamos anotações, papéis, documentos acessados mais
recentemente no computador... Eu tentei invocar os espíritos da terra e do
ar, mas mesmo eles estavam ocultos, amedrontados pela tempestade.
Afastei-me dos outros para pensar. Por alguns minutos, caminhei
pelos corredores sombrios daquela casa, ouvindo apenas o som da chuva e
do vento lá fora. Minha mente tentava juntar o que sabíamos... O Profeta
foi levado a um lugar seguro, enquanto Gudrun estaria num lugar
protegido. Mas onde se protegeria? Aonde iria? Eles saíram durante a tarde,
levados pelos serviçais de Gudrun, certamente antes do vampiro perceber a
morte dos Gêmeos, senão teríamos encontrado-o aqui. Os documentos mais
recentes eram sobre outros vampiros. Um relâmpago iluminou a sala por
onde eu caminhava, e à minha frente, no meio da escuridão, vi um telefone.
Uma possibilidade surgiu em minha mente... Informações para contatar
outros vampiros! Estar num lugar seguro! Corri até o aparelho, tocando-o,
fechando meus olhos. Ignorei a tempestade, até que o som da chuva
parasse. Não me importei em abrir os olhos, pois não queria ver e sim
473
ouvir. E finalmente ouvi, e era a voz de um homem, um serviçal do
vampiro, falando ao telefone.
“O Patriarca sabe que seu senhor está acordado e deseja que você
leve uma mensagem a ele. Há um assunto que precisa ser tratado, que
interessa a todos nós e que foi predito pelo Profeta Louco” , disse o
serviçal.
“Sim, meu senhor está acordado. Diga que mensagem devo passar
a ele”, disse uma voz do outro lado da linha.
“Haverá uma reunião esta noite, no local de sempre, a começar
exatamente as sete da noite”.
“Está louco???”, indagou a voz do outro lado da linha. “É Verão,
e neste horário o Sol ainda não terá se posto”.
“Então olhe para fora”, respondeu o capanga, “Este será um dia
diferente, pois o Sol se esconde e a força dos Anunna não desapareceu com
o raiar do dia. O Patriarca avisa que os que não comparecerem serão
considerados traidores e opositores a seu comando sobre o Rio de Janeiro.
Todos os aliados de Hagan Gudrun comparecerão”.
“Está bem”, disse o outro, “Eu avisarei ao meu senhor”.
“O Patriarca deseja que todos estejam presentes, pois o assunto
diz respeito a todos nós”, disse o serviçal, desligando o telefone. Pouco
depois, ouvi o discar de um novo número.
Abri meus olhos, sentindo ao mesmo tempo minha confiança se
restaurar e minha alma se encher de poder, canalizado pela descoberta feita.
Virei-me, correndo pelos corredores, até me chegar ao escritório. “Eu
descobri!”, gritei, para que os que estavam em outros cômodos pudessem
ouvir. Rapidamente, reuni meus companheiros.
474
“Hagan Gudrun sabe que vamos ataca-lo esta noite, e por isso
se protegeu da forma que sentiria ter maior força”, eu disse a todos.
“Maior força? Como assim?”, perguntou Al-Malik, “Como ter
força se foi predito a ele que ele morreria?”.
“Força em números”, respondi. “Hagan Gudrun está convocando
todos os vampiros sob seu domínio. Nesse momento, eles já devem estar
reunidos, sua força não tendo sido diminuída pelo dia, e só aumentando
conforme a noite cai e a tempestade se intensifica. Eu presumo que tenha
também muitos servos humanos e animais protegendo-os nesse momento”.
“Isso seria mais da metade da população vampírica desta cidade...
Mas onde eles estão?”, perguntou Samuel.
“No local de sempre”, respondi, retirando um pequeno cartão que
tinha guardado hoje mais cedo, e mostrando-o a Samuel. Um sorriso de
alívio se formou em meu rosto. Eles estavam na Casa Sabina. “E nós
faremos uma visita a eles esta noite. Nós iremos lá agora mesmo”.
Todos se entreolharam. Houve um silêncio, mas não impulsionado
por medo. Sabíamos que era a única coisa que poderíamos fazer. Uma festa
de vampiros nos aguardava, mas sabíamos que poderíamos atravessar
qualquer obstáculo. O único que poderia nos impedir agora era Shiva, o
Destruidor. Sabíamos que nós, sete Anjos e dois Arcanjos, iríamos àquele
encontro de mortos-vivos. E foi com isso em mente que cada um se
preparou à sua maneira. Fabrizia puxou sua espingarda, guardado sob a
capa de chuva, e cobriu a cabeça com o capuz. Da mesma forma, Lo Wang
cobriu sua face, tanto com capuz como com a máscara demoníaca. Absolon
levou a mão ao cabo da espada, removendo-a lentamente da bainha. E Al-
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Malik tirou as faixas de seu turbante, que levava dentro do paletó, e
enrolou-as em torno da cabeça, deixando apenas os olhos à mostra.
O trovão seguinte ecoou quando abri mais um portal, e cada um de
nós o atravessou, alcançando a fria escuridão das ruas. Sendo o último a
atravessar, eu fechei meus olhos, preparando-me para entrar na tempestade.
Senti a água fria cair com força em meu rosto. A chuva estava pesada,
densa. Cobri os olhos com uma das mãos e notei que a visão estava
totalmente prejudicada pela chuva. Eu podia ver luzes à distância, mas na
escuridão minha visão não alcançava mais do que alguns metros. Era como
submergir em trevas, como se o mundo todo fosse negro e opressivo. Um
relâmpago iluminou a escuridão por um momento, mostrando as grades da
Casa Sabina logo à frente, do outro lado da rua. Os portões estavam
fechados, e havia vários carros no jardim. Por um instante, vi silhuetas de
pessoas andando pelo jardim, possivelmente armadas.
Fitei um a um cada companheiro. Estávamos lado a lado, apenas
observando nosso objetivo à frente. A cada um que eu fitava, eu canalizava
um pouco de meu poder, transmitindo uma mensagem diretamente às
mentes deles, um de cada vez, visto que eu não podia criar um elo com
todos ao mesmo tempo:
“Karina, fique longe do confronto, dê cobertura a quem estiver
cercado, mas evite atrair a atenção do inimigo”.
“Fabrizia, mantenha-se perto de Absolon. Assim que estivermos
entrando, use seus poderes para acabar com a energia elétrica do quarteirão.
Protejam-se um ao outro, e dêem proteção a Karina também. Dêem
cobertura a quem mais precisar de ajuda”.
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“Absolon, meu amigo... tome cuidado. Não chame atenção para
si, use seus poderes para nos fortalecer, e ajude quem estiver cercado.
Fique próximo de Fabrizia. Ela irá cortar a energia elétrica, e você terá
dificuldades em ver no escuro”.
Para minha surpresa, Absolon respondeu em minha mente: “Não se
preocupe... Eu aprendi a ver nas trevas também”.
Sorri, vendo o progresso do jovem Princeps. Então, continuei:
“Ansgar, me dê cobertura enquanto entramos. Eu abrirei o portão. Após
estiver aberto, você será o primeiro a entrar pela frente, enquanto Lo Wang
entrará pelos fundos. Tome cuidado”.
“Lo Wang, você sabe o que fazer”.
“Samuel, lute ao lado de Ansgar. Juntos vocês serão invencíveis”.
“Al-Malik, dê cobertura aos demais, e tente impedir que fujam.
Permaneça próximo a Samuel e Ansgar, mas proteja especialmente os mais
jovens”.
“Lorde Asphael, meu Senhor. Proteja a todos, mas cuide para que
os vampiros não escapem... Certamente, muitos tentarão fugir. Esta noite,
Lorde Veritatis voltará ao Paraíso”.
Eu já me preparava para começar, para dar o primeiro passo. Vi as
espadas sendo postas à frente de seus portadores, suas lâminas reluzindo a
cada relâmpago que vinha dos céus. Foi quando a voz de Lorde Asphael
veio forte, alta, não em nossas mentes mas em nossos ouvidos, vencendo
até mesmo o som da tempestade: “Esta noite, não teremos medo, nem
mesmo hesitaremos em erguer nossas espadas. Brandiremos em nome do
que acreditamos, diante das trevas. Hoje, levaremos a justiça celeste às
Crias de Lucifugo, e ao fim, quando a madrugada acabar e o Sol nascer,
477
será uma manhã muito mais bela do que qualquer outra que já
tenhamos visto. Não temam, e lutem com todas as suas forças”.
“Assim que tudo isso estiver terminado”, gritou Lo Wang, numa
demonstração pouco característica dele, “levarei-os para beber e
comemorar comigo!”.
Samuel fez o sinal da cruz, e eu finalmente dei o primeiro passo.
Atravessei aquela rua vazia, vendo apenas o objetivo à frente. Meus olhos
brilharam, iluminando a escuridão, e o portão se aproximava. A energia de
Fabrizia emanou, e um raio caiu próximo, sobre um poste na esquina. As
luzes se apagaram. Abrindo caminho pela escuridão, alcancei o portão, oito
Celestiais atrás de mim, e murmurando palavras inaudíveis, meu dedo
tocou a fechadura nos portões. Uma porção mínima de minha energia fluiu,
abrindo aquele selo, e então, ao chute de Ansgar e ao empurrão de Samuel,
os portões se abriram. Como uma sombra, Lo Wang se moveu mais rápido
do que eu podia acompanhar. Um relâmpago já revelava o corpo de um
guarda caído no gramado, vítima da lâmina negra. A arma do guarda, uma
submetralhadora, jazia a poucos metros dele.
Dois outros guardas surgiram, talvez por terem visto o corpo caído.
Gesticulei com a minha mão direita, apontando na direção de um deles.
Samuel correu até eles, tanto sua espada como seus olhos começando a
brilhar dourados, mas antes que sua lâmina pudesse alcança-los, um deles
caiu vítima de meus poderes, seu corpo sendo rasgado por garras espirituais
guiadas por minha vontade. O outro tentou reagir, disparando tiros cujo
som era abafado pela chuva. A lâmina dourada o partiu em dois.
Olhei para o outro lado, e vi mais dois guardas caminhando nas
trevas, protegidos pela tormenta. Sombras emergiram para imobiliza-los, e
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uma outra sombra surgiu. Instantes após, mais duas vítimas da lâmina
negra jaziam no jardim.
Luzes de lanterna vieram do interior da mansão, indicando que
mais guardas se aproximavam da porta dupla que levava ao interior da
Mansão. Ansgar se posicionou na porta, e com um chute a arrombou,
atingindo um homem que a abria naquele momento. Tiros se seguiram, mas
não foram capazes de impedir o avanço do Venator. Fogos Celestiais
iluminaram a lâmina da espada do Celestial e, segundos depois, os tiros se
silenciaram.
Ansgar e Samuel, seguidos por Al-Malik, adentraram a mansão.
Asphael permaneceu do lado de fora, dando a volta ao redor da casa. Entrei
em seguida, seguido pelos mais jovens. À frente, o largo e curto corredor
levava ao salão de festas. Venator e Sancti nos guiavam, suas lâminas
respectivamente ardendo em chamas celestes e brilhando com luz
purificadora.
Enquanto prosseguíamos, no canto de minha visão vi mais uma
sombra de mover, quase invisível. Gesticulei novamente, apontando para
ela, e o vampiro oculto urrou, sua carne se rasgando sob o efeito de ataques
espirituais. Al-Malik se virou para o vampiro, decapitando-o.
À frente, mais um vampiro surgiu. De aparência adolescente, este
veio do salão, talvez para investigar os tiros. A criatura sacou uma pistola,
disparando múltiplas vezes contra o peito de Ansgar. O Venator avançou,
assim como Samuel, e ambas as espadas penetraram a carne vampírica,
fazendo cair um corpo putrefato quase partido em três. Sem mais oposição,
nossa Falange prosseguiu, chegando finalmente ao salão e, à nossa frente, o
último obstáculo.
479
Pelo menos quatro ou cinco dezenas de pessoas nos esperavam
no salão escuro, suas faces e expressões extremamente variadas. Embora
alguns fossem serviçais dos monstros, estávamos diante de uma multidão
de mortos-vivos, seus rostos pálidos indicando ódio, medo ou surpresa. A
cada relâmpago que iluminava o salão obscurecido, mais faces surgiam na
escuridão. Para cada morto-vivo ali presente, havia um ou dois
acompanhantes mortais. Alguns se vestiam elegantemente, como seus
mestres, sendo claramente amantes ou serviçais prezados, enquanto outros
eram mais rústicos, alguns até mesmo mal-vestidos, servindo de protetores
e guarda-costas. Alguns dos Anunnaki demonstravam vontade de lutar,
enquanto outros se afastavam cautelosamente. Num palco à frente, estava
Hagan Gudrun e dois guarda-costas armados. O rosto de Gudrun se encheu
de um misto de ódio e medo. A multidão tomou as mais diversas atitudes:
capangas sacavam armas de fogo, enquanto mestres se afastavam ou
mostravam garras e presas numa tentativa de nos intimidar.
Enquanto os mortos-vivos que se afastavam começavam a buscar
rotas de fuga ou sacavam armas de fogo, Al-Malik se colocava lado a lado
com os outros dois guerreiros, à frente do grupo.
Gudrun ergueu a voz: “E estes são o inimigo! Cinco padeceram em
suas mãos em menos de um dia! Irão esperar que venham até vocês
sozinhos? Não esperem mais, lutem por suas vidas, ou vamos todos
apodrecer aqui!”.
E então começou.
Os mortos-vivos e seus protetores se espalharam, alguns se
afastando do conflito, temendo-nos, mas muitos avançando, seus olhos
brilhando na escuridão. Os sons de dezenas de tiros ecoaram pelo salão,
480
visando atingir os três à frente do grupo. Eu e os mais jovens nos
abaixamos, mas os três guerreiros à frente avançaram. Da mão esquerda de
Ansgar surgiu um globo de chamas celestiais, que foi então arremessado
contra um grupo de atiradores. Uma explosão se seguiu, iluminando o salão
em cor azulada. O Venator avançou, sua lâmina penetrando no peito de um
vampiro que ainda permanecia em pé. O vampiro gritou de dor, enquanto
as Chamas Celestes espalhavam-se por seu corpo.
Al-Malik saltou em meio à multidão de vampiros, sua espada
ardendo em brasa, enquanto suas asas emergiam de suas costas, rasgando o
tecido do paletó. O Malaki se cobriu de chamas, brilhando tão intensamente
que era difícil fita-lo. Ele avançou, naquela forma de Fúria Ardente,
atacando os inimigos com a espada e afugentando-os com as asas
flamejantes. Mais atiradores apontaram suas armas para o Malaki, mas sua
forma flamejante impedia a mira, ofuscando a visão dos atiradores.
Enquanto rajadas contínuas de balas eram disparadas contra o guerreiro de
fogo, muitos dos atingidos eram na verdade mortos-vivos e serviçais que
estavam ao redor de Al-Malik.
Os vampiros cercaram Ansgar, avançando como uma horda furiosa.
Das trevas, mãos de sombra emergiam para agarrar os pés do Venator,
enquanto garras e tentáculos de sangue avançavam para mutilar o guerreiro.
Um vampiro se aproximou demais, sendo decapitado de antes poder causar
algum mal ao Venator, mas as primeiras garras começavam a ferir sua
carne. Samuel Fulmen avançou, atacando pelas costas de uma vampira de
aspecto monstruoso. Alcançando o Venator e ferindo um segundo
sanguessuga no caminho, o Sancti então ergueu a espada, cravando-a no
chão no momento em que mais mortos-vivos se aproximavam.
481
Fantasmagóricas chamas douradas emergiram do chão, cauterizando a
carne dos monstros ao redor, sem no entanto incendiar qualquer objeto ou
ferir o Venator. Alguns vampiros eram consumidos por chamas, enquanto
outros recuavam feridos.
A intensidade dos tiros aumentou ainda mais. Uma janela se partiu,
entrando no salão o Anjo das Trevas. A espada negra de Lo Wang cortou o
cano de uma espingarda no salão, em seguida rasgando a barriga do
vampiro que a empunhava. Do outro lado do salão, Lorde Asphael emergiu
atravessando um portal na parede. Sua espada cortou em dois um homem
que não o viu se aproximar.
De repente, pressenti perigo. Virei-me a tempo de alertar Absolon e
Fabrizia com um grito. Uma vampira veio do alto, espreitando pela
escuridão das paredes. A criatura saltou sobre Fabrizia, atacando sua
espingarda. A arma caiu das mãos da Celestial, enquanto a vampira a
derrubava violentamente no chão. Absolon avançou para ataca-la , mas
antes que sua lâmina atingisse a morta-viva, Fabrizia agarrou a criatura
firmemente, eletrocutando-a com seus poderes. A vampira gritou, erguendo
a cabeça, deixando seu pescoço à mostra para um golpe mortal de Absolon.
Karina permanecia nos fundos, disparando contra vampiros
desgarrados. Enquanto isso, Ansgar abriu suas asas metálicas, que também
se incendiaram em Chamas Celestes. Mesmo ferido e sangrando, o Venator
iniciou uma dança mortal, usando as asas cortantes para manter os
monstros afastados, enquanto sua espada flamejante derramava sangue
profano. Mais vampiros tentavam escapar, mas as sombras se moviam para
agarra-los, enquanto Lorde Asphael facilmente se deslocava pelo salão,
482
desviando-se de atacantes com graça sobrenatural, e desferindo golpes
mortais mesmo nos mais poderosos mortos-vivos.
Alguns vampiros conseguiam escapar da fúria de nossa Falange,
enquanto vários caíam diante de ataques mortais. Rapidamente, as fileiras
de mortos-vivos e serviçais mortais se reduziam, mas não sem provocar
marcas. Um tiro atingiu o ombro de Karina, fazendo-a recuar, mas não sem
antes que um disparo de sua pistola atingisse o peito de um mortal.
Conforme os vampiros mais jovens e os lacaios mortais tombavam, os mais
poderosos permaneciam, e a batalha começava a se tornar mais equilibrada,
ainda que os mortos-vivos estivessem encurralados.
Então, nas trevas ao fundo do salão, vi os guarda-costas de Gudrun
disparavam freneticamente, atingindo tanto vampiros como meus
companheiros. Mas onde estava o mestre deles? Forcei minha visão,
usando o máximo de meus poderes para tentar enxergar além. E vi Hagan
deixar a sala, oculto por poderes de sombra.
Até mesmo Absolon e Fabrizia agora entravam na batalha, a Xamã
protegendo o Princeps, enquanto este usava sua espada para aliviar Samuel
da quantidade de mortos-vivos que o cercavam. Ele não poderia escapar!
Cabia a mim impedi-lo. Somente a mim! Corri através do salão, enquanto
Hagan Gudrun subia as escadas, para o segundo andar. Um tiro atingiu-me
no ombro, arrancando-me uma expressão de dor, mas prossegui,
esquivando-me daqueles que tentavam impedir meu caminho. Os guarda-
costas apontaram suas submetralhadoras para mim, mas já era tarde para
eles. Minha mão se apontava para o primeiro, enquanto eu me lembrava do
poder que manifestei na batalha em Oostegor. Minha energia explodiu na
forma de um relâmpago, atingindo o primeiro e então ricocheteando na
483
direção do segundo guarda-costa. O primeiro caiu, mas o segundo ficou
apenas atordoado. Saltei para o palco, derrubando o oponente com o
impacto do meu corpo. O segundo guarda-costa recuou, tentando disparar
contra mim. A maioria dos tiros errou devido ao impacto, mas um atingiu
meu peito. Avancei, mesmo sentindo a dor de ter o pulmão perfurado.
Aquilo poderia impedir um mortal, mas certamente não iria me impedir.
Com um soco desajeitado, meu punho atingiu a face do homem, e em
seguida golpeei seu estômago. Perdendo o ar de seus pulmões, o homem
caiu incapacitado, largando sua arma. Abaixei-me, pegando a
submetralhadora e prosseguindo pelas escadas. A arma em minhas mãos
era pesada, desajeitada, eu sequer tinha certeza se conseguiria usa-la
corretamente... Ainda assim, eu precisava dela.
Cheguei ao segundo andar, e do parapeito podia ver a batalha no
salão abaixo. Agora os vampiros se resumiam a menos de quinze. Por outro
lado, o conflito parecia atrair mais alguns guardas que estavam do lado de
fora e que agora entravam na confusão, alguns atirando contra os
Celestiais, outros caindo de joelhos ao presenciarem as Formas Celestes de
Al-Malik e Ansgar. Mas aquilo não era importante: Gudrun era o objetivo.
Fechei meus olhos, usando meus poderes para apontar a direção daquele
que eu procurava. Embora não tão poderosos quanto os dons de Instinto de
Karina, meus dons de adivinhação me apontaram para o bar. Saltei o
balcão, adentrando na porta adiante, que estava apenas encostada, e
chegando à cozinha.
Do outro lado da cozinha, vi Gudrun abrir a janela. A ventania que
entrou fez seu pesado manto se erguer um pouco. O vampiro, prestes a
saltar pela janela, parou e se virou para me fitar.
484
“Onde está o Profeta?”, perguntei, apontando a arma à ele,
enquanto meus olhos brilhantes fitavam o vampiro na escuridão.
O vampiro nada disse. Gudrun ergueu a mão, mostrando as unhas
longas e negras, e eu senti uma força poderosa agarrar meu tórax e me
jogar contra a parede. Tentei atirar, mas o impulso repentino me fez perder
a mira. Fui pressionado contra a parede, Como se uma mão invisível me
mantivesse preso. Eu lutava para escapar, enquanto Gudrun voltava a fitar a
janela, sentindo a chuva fria tocar seu rosto. O vampiro saltou, mas era
como se não houvesse gravidade para puxa-lo ao chão. Ele atravessou a
janela aberta, descendo graciosamente no jardim lá fora.
Assim que Gudrun sumiu de vista, senti a força que me prendia se
dissipar. Correndo até a janela, meus olhos o procuraram na escuridão ali
embaixo, e o percebi caminhar para longe no jardim, em meio à
tempestade. “Gudrun!”, gritei, saltando pela janela. Minhas asas se abriram,
evitando que eu caísse violentamente no chão abaixo, mas desapareceram
tão logo eu toquei o chão. Gudrun estava longe, eu precisava impedi-lo!
Correndo em sua direção, disparei com a arma em minhas mãos, até que
todas as balas se acabassem. O recuo da arma comprometeu a mira, mas
atingi-lo não era o objetivo. Eu precisava atrair sua atenção!
Gudrun parou e se virou para me encarar. O plano tinha
funcionado! O vampiro gritou alguma coisa, mas sua voz foi abafada pelos
trovões e pelo vento. Eu corri na direção dele, pronto para derruba-lo. Eu
precisava tentar impedi-lo de fugir! Porém, tão logo o atingi com um
encontrão, fui eu quem recuou atordoado pelo impacto. A mão do vampiro
agarrou meu pescoço, suas unhas penetrando minha carne. “IDIOTA!”,
gritou Gudrun, me arremessando contra o chão. Caí violentamente, rolando
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na grama. Senti mais uma vez uma força invisível me agarrar e,
conforme Gudrun gesticulava, eu era erguido no ar e arremessado contra
uma árvore próxima. Minhas costas atingiram violentamente o caule, e
senti uma dor intensa. A força me soltou, e caí novamente no chão. Minha
cabeça rodava, e eu tentava me concentrar, para que minha energia me
recuperasse dos ferimentos.
“Nicodemus!”, alguém gritou, embora eu mal pudesse ouvir em
meio à tempestade. Absolon surgiu, desferindo um golpe de espada visando
as costas de Hagan Gudrun. Porém, ao invés de partir carne e ossos, a
lâmina atravessou névoa. A forma nebulosa do vampiro se ergueu no ar, se
reformando a dois metros de altura, mas ao invés de cair, o morto-vivo
continuava flutuando, como se não tivesse peso algum. Absolon recuou,
colocando a espada à frente do corpo, seus olhos brilhantes fitando o olhar
frio do vampiro. “Você está bem, Nicodemus?”, gritou Absolon.
Gudrun gesticulou novamente, desta vez com ambas as mãos.
Imediatamente, Absolon foi jogado para trás, e sua espada removida de
suas mãos, voando na direção da mão direita do vampiro. O vampiro
desceu violentamente, erguendo a lâmina pronto para um ataque fatal.
Absolon rolou, escapando por pouco do ataque, fazendo com que a espada
atingisse apenas o chão. O vampiro deu um passo para trás, erguendo mais
uma vez a lâmina, enquanto o Princeps tentava se levantar.
Antes que o vampiro desferisse um segundo golpe, porém, o chão
aos seus pés tremeu, fazendo-o perder o equilíbrio. O barro agarrou um dos
pés do morto-vivo, e da escuridão veio Fabrizia, correndo na direção do
monstro. Fabrizia parou a poucos metros da criatura e então disparou sua
espingarda. O tiro atingiu em cheio, arrebentando o peito do morto-vivo.
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Gudrun, porém, não caiu nem recuou, mas sim avançou contra a jovem,
sua força sendo suficiente para escapar da lama que prendia seu pé. Gudrun
direcionou a lâmina contra peito de Fabrizia. Antes que o peito da Celestial
fosse empalado pela arma, Absolon avançou, de encontro ao vampiro. Pego
de surpresa, o vampiro caiu, largando a lâmina.
Absolon se pôs sobre o oponente caído, golpeando a face do
monstro com as mãos nuas. O monstro cuspiu sangue na face do jovem
Princeps, queimando-a como se fosse ácido Absolon gritou de dor, levando
as mãos à face e se afastando. Enquanto Gudrun se levantava mais uma
vez, Fabrizia atacou, agora usando a espada de Absolon. A lâmina penetrou
na barriga do monstro, que se limitou a golpear a face da jovem, jogando-a
a quase dois metros de distância. Fabrizia caiu, ainda consciente, porém
atordoada. Gudrun então foi na direção de Absolon, que ainda tentava curar
seus olhos, feridos pela queimadura.
Enquanto isso, eu me erguia, sentindo todo meu corpo doer. Já
parcialmente recuperado, me apoiei na árvore, minha mão sentindo o
tronco de madeira. Mais uma vez, canalizei minhas energias através da
madeira, deformando-a. Uma forma longa, grossa e pontiaguda nasceu na
superfície da árvore, e eu a destaquei, criando uma estaca.
Gudrun abriu a boca, e Absolon gritou, seu sangue surgindo em
correntes que lhe rasgavam a pele, sendo levadas à boca do vampiro.
Cambaleante, o Princeps tombou em seguida. Por fim, Gudrun mais uma
vez me fitou. Dei um passo em sua direção, quando ele começou a
gesticular. Mais rápido, porém, ergui minha mão, e o vampiro sentiu o
poder do vento atingir seu peito, jogando-o para trás e derrubando-o.
Segurando firmemente a estaca em minhas mãos, corri na direção do
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maldito, enquanto este ainda se levantava. Ergui a mão que empunhava
a estaca, pronto para o golpe, mas então Gudrun se desfez em névoa diante
de mim. “NÃO!”, eu gritei, fechando meu punho livre e golpeando a forma
nebulosa. Embora meu punho fosse físico, eu o atingi em espírito, usando o
poder de meu Clero. O vampiro recuou, surpreso, se solidificando. Então,
aproveitando a oportunidade, dei o golpe final, perfurando o peito do
monstro com a estaca de madeira.
O vampiro tombou inerte, seu corpo imobilizado, sua face
paralisada numa expressão de surpresa. Porém, eu seus olhos, percebi que a
criatura ainda estava consciente, me fitando com ódio e terror. Fitei-o,
ofegante, usando minhas energias para me recuperar dos ferimentos
sofridos. Atrás de mim, Fabrizia e Absolon, ainda caídos, faziam o mesmo.
Eu fitei o vampiro. Então, meus olhos brilharam com uma
intensidade diferente de antes. Desta vez, minha visão não penetrava
apenas na escuridão da noite, mas sim nas profundezas da mente do
vampiro. Sua força de vontade era tremenda, uma barreira difícil de vencer.
Porém, em nome de Veritatis, eu precisava vencer o confronto mental com
o vampiro. Por um momento, minha concentração era tão grande que nem
mesmo ouvia os sons da tempestade. E então, a resposta surgiu em minha
mente, murmurada pela voz do próprio vampiro. Um leve sorriso de alívio
se formou em meus lábios, e eu parei de fitar o monstro.
Absolon se aproximou, sua espada em mãos. Sua mão esquerda
alisava o próprio rosto, como se buscasse marcas da queimadura, embora
ele já estivesse totalmente recuperado. “Mate-o”, pedi ao Princeps. Absolon
olhou o vampiro, erguendo a espada. Quando a lâmina desceu, o cabeça do
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monstro rolou. A força das chuvas foi o suficiente para quase
desintegrar o corpo ressequido que sobrara.
Das sombras, emergiu Lo Wang, sua roupa rasgada indicando
marcas de bala e cortes provocados por garras. “Nicodemus, me perdoe!”,
pediu o Kage, “eu o vi perseguir Gudrun, mas não pude acompanha-los
desta vez. Um dos demônios me impediu de alcança-los, e só pude vir após
destruí-lo”.
“Não se preocupe, Wang”, eu respondi. “Como está a batalha lá
dentro?”.
“Perto do fim. Os últimos Anunnaki partiram, alguns poucos ainda
lutavam quando deixei o salão, mas estavam em menor número e muito
feridos. Nós vencemos”, respondeu o Kage.
“Reúna todos, Wang”, pedi. “Eu agora sei onde Gudrun escondeu o
Profeta”. Wang fez um sinal positivo com a cabeça, dando-me as costas e
correndo de volta à mansão. Enquanto isso, Absolon ajudava Fabrizia a se
levantar, e os dois se abraçaram em seguida.
Cerro-corá. É lá que está o Velho. Gudrun o escondeu num
barracão abandonado, próximo à mata, no alto da favela de Cerro-corá. O
local estava claro em minha mente. Eu fitei o céu, na direção da favela.
Acima, havia apenas negritude. Escuridão mais profunda do que qualquer
noite.
A tempestade se intensificava. Agora que a batalha tinha
terminado, minha atenção se voltou para a tormenta. Quando fechei meus
olhos, eu ouvi novamente o urro do tigre sendo carregado pelo vento.
Porém, senti algo mais. Um olhar, como se um olho invisível me fitasse
diretamente. Olhei para os céus, tendo a clara impressão que, numa breve
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brecha nas nuvens, o céu acima estava vermelho. Shiva chegou, mas há
algo mais... Algo que cavalga a tempestade.
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Capítulo 19: O Momento mais Sombrio
A passos rápidos, subíamos uma escadaria de pedra, em meio a
barracos de madeira e pequenas casas de alvenaria. Uma torrente de lama
descia pelos barrancos, e pelo caminho víamos pessoas, às vezes famílias,
correndo na direção contrária. Os ventos faziam os galhos das árvores
tremerem. Os trovões aumentavam em freqüência. Os estrondos, cada vez
mais próximos, faziam a terra tremer. A tempestade era tão forte era
impossível prosseguirmos sem protegermos nossos olhos. Acima, as
nuvens formavam uma massa negra e instável, sempre se alterando e se
distorcendo. Talvez fosse impressão minha, mas a cada relâmpago, eu
percebia um tom avermelhado nas nuvens acima de nós.
Eu nunca vira uma noite tão negra como aquela.
Era impossível voar naquelas condições. Por isso, eu tive de abrir
um portal da Mansão Sabina para o morro de Cerro-corá. Conforme
subíamos pelas ruelas e escadarias, eu via sinais de desespero e destruição.
Casebres ruíam conforme o chão sob eles era arrastado pelas corredeiras de
lama, e pelo menos uma árvore tombara sobre uma casa. Eu podia sentir
que o pior ainda estava por vir, e que tragédias maiores ainda estavam por
ocorrer. Continuamos a correr, embora a lama, os ventos e a chuva
praticamente reduzissem nossa velocidade à metade. Os relâmpagos
freqüentes iluminavam o caminho, mas os trovões que os acompanhavam
quase nos ensurdeciam. Foi então que um som em particular ecoou pelo
morro, transportado pelas ruelas da favela, me forçou a parar, como se
minhas pernas congelassem. O urro do tigre se ergueu mais alto que
qualquer trovão. Parei e fitei para a negritude abaixo, por onde viemos. Os
relâmpagos iluminaram o caminho, não revelando nenhuma forma. Os
491
demais pararam para ver o que tinha acontecido, mas pareciam
incapazes de ouvir aquele urro. “Mestre Nicodemus!”, chamou-me
Asphael. Respirando fundo, voltei a correr rumo ao esconderijo do Velho.
Os outros voltaram a me seguir.
O caminho então tomou a direita, após as escadarias passarem por
um barranco de uns três metros de altura. À frente, alguns poucos casebres
se misturavam a uma mata mais densa. Usando as memórias do vampiro
como guia, corri em direção à mata, que não era muito densa. Por entre
árvores espaçadas, sobre um solo rochoso e lamacento, caminhamos, até
vermos luzes, vindas de mais um casebre à frente. “É aqui!”, gritei aos
demais.
Não havia tempo para planejamentos, mas eu sabia que deveria
haver algum serviçal de Gudrun ainda guardando o local. “Ansgar, à
frente!”, pedi aos gritos. O enorme Venator correu em direção ao casebre
de alvenaria, chutando a porta de entrada. Empunhando sua espada, ele
entrou, e eu o segui de perto. Imediatamente, vieram tiros.
Em lados opostos da sala de entrada, dois homens armados
começaram a disparar contra Ansgar. Algumas balas penetravam sua pele,
mas o grito de Ansgar não foi de dor, mas um chamado para batalha. Em
grande velocidade, o Venator alcançou o primeiro homem, agarrando-o
com a mão esquerda. Imediatamente, o homem ardeu em chamas celestes.
Ainda sob tiros do segundo vigia, Ansgar girou o corpo, arremessando o
guarda em chamas contra seu companheiro. A força do Venator foi
tamanha que eu jurava ouvir o som de ossos se partindo quando ambos
colidiram. O primeiro desmaiou imediatamente, enquanto o segundo, caído,
gritou de dor ao sentir as chamas celestes se espalharem também para o seu
492
corpo. Ansgar avançou contra a próxima porta, arrombando-a com um
encontrão. Antes que o Venator entrasse na sala seguinte, os dois guardas já
estavam inconscientes. Atrás de mim, os demais membros da Falange já
entravam no casebre.
Ouvi um grito desesperado quando Ansgar prosseguiu na sala
seguinte, que nada mais era do que um pequeno quarto. Tiros de uma arma
semi-automática vieram logo depois. Entrando no pequeno quarto, vi
Ansgar avançar furiosamente contra mais um guarda, seu peito sendo
atingido seguidamente por rajadas de balas. A mão esquerda de Ansgar
ergueu o homem, e então o arremessou pela janela. A vidraça se partiu, e a
força empregada por Ansgar era mais do que suficiente para tirar aquele
homem de combate. Por fim, fitamos o último homem presente, uma forma
frágil e murmurante, encolhida em um dos cantos do quarto. Seus olhos
profundos nos fitavam com medo, e ele respirava ofegante. “Não”, ele
murmurou, repetindo várias vezes.
“Não se preocupe!”, pediu Ansgar, se aproximando. “Viemos
salva-lo!”
Os outros entravam no quarto. Ouvi mais um trovão. “Não há
salvação! Eu vou morrer! É tarde demais!”, murmurou o Velho, “é tarde
demais! Começará esta noite!”. E eu podia sentir algo crescer à nossa volta,
algo invisível, intangível. Era como se o chão tremesse, acompanhando
passos furiosos e velozes que vinham em nossa direção.
“Precisamos tira-lo daqui imediatamente!”, gritei, ouvindo os ecos
da respiração do tigre, cada vez mais próximos.
Asphael se posicionou no centro do quarto. “Ao Éden, então!”. O
Arcanjo estendeu a mão, seu poder fluindo pelo ambiente. Um portal
493
começou a se formar, fazendo o próprio ar tremer. O ar parecia mais
quente, mais opressivo. Eu podia sentir uma escuridão espiritual tomar o
ambiente, subjugando a energia do Arcanjo. O urro do tigre ecoou, partindo
vidraças e fazendo objetos de madeira racharem e trincarem. O portal
desapareceu em seguida, antes mesmo que qualquer um pudesse atravessa-
lo.
“TIRE-O DAÍ, ANSGAR!”, gritei.
Ansgar agarrou o braço do Velho, girando o corpo para puxa-lo
para longe da parede, ao mesmo tempo se colocando entre o homem e a
quina. Um estrondo se seguiu, e mal as costas do Velho se distanciaram da
quina do quarto, garras de tigre atravessaram a parede, pulverizando tijolos.
Num movimento rápido, o Venator protegeu velho com o próprio corpo, e
as garras do tigre atingiram as costas do Celestial.
Ansgar gritou de dor, mas se pôs para frente, afastando da parede e
empurrando o Velho na direção do resto do grupo. As garras do tigre
rasgaram mais das paredes e, mal Samuel agarrava o Profeta e o puxava
para trás do grupo, Shiva adentrou o quarto, arrebentando a coluna que
sustentava a quina do quarto. O teto começou a ruir, derrubando suportes
de madeira e telhas sobre nós.
Tentamos nos afastar para a parede oposta, que ainda estava em pé,
a fim de escapar dos destroços, mas o tigre e Ansgar foram soterrados por
telhas e tijolos. Samuel empurrou Karina e o Velho para o quarto ao lado.
“TIREM ELE DAQUI!”, gritou o Sancti, sacando a espada.
O tigre, porém, emergiu dos escombros avançando. Ao seu urro, as
bases das paredes começaram a rachar e se desfazer, e logo o casebre
inteiro caiu. Karina abraçou o velho, jogando-se no chão com ele, enquanto
494
uma parede de tijolos caía sobre os dois. Samuel gritou pela moça,
ignorando as telhas e tijolos que caíam sobre nós. A maioria dos
escombros, porém, caíam sobre o Karina e o Velho, soterrando-os mais e
mais. O tigre deu alguns passos, mostrando suas presas e rosnando,
enquanto nos fitava furiosamente. Sem um teto para nos proteger, a
tempestade mais uma vez nos cobria. As luzes da casa se foram, sobrando
apenas iluminação de relâmpagos. O tigre deu mais um passo, abrindo a
bocarra e exibindo as poderosas mandíbulas.
Foi quando uma poderosa luz branca surgiu, emitida pela lâmina de
Asphael .O Arcanjo deu um passo em direção ao tigre. Pela primeira vez,
eu senti ansiedade em Lorde Asphael. Os olhos de ambos se encontraram.
Atrás de Asphael, Samuel, Al-Malik e Lo Wang também empunhavam suas
lâminas. Eu podia sentir o poder do tigre se espalhar como uma doença,
como se o monstro estivesse se tornando mais forte e mais rápido. Nem ele
nem meus companheiros tomavam a iniciativa, porém.
“Ajudem Karina”, murmurei a Fabrizia e Absolon, já concentrando
minhas forças para participar do embate que viria.
“Eu posso ajuda-los!”, disse Absolon.
“Absolon... AGORA NÃO!”, gritei, “VÃO!”.
Absolon, a contragosto, meneou a cabeça, então segurou o braço de
Fabrizia, puxando-a. Ambos correram em direção aos escombros que
cobriam Karina e o Velho. Nesse instante, a atenção do tigre se voltou ao
dois. Num urro poderoso, Shiva avançou contra os dois jovens. Tanto a
boca do tigre como suas patas se incendiaram em Fogo Negro, brilhando
num tom verde doentio.
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“Por Magna Veritas!”, gritou Lorde Asphael, também suas
energias se convertendo em força e velocidade. O Arcanjo avançou veloz,
sua lâmina brilhando liberando uma explosão de luz ao atingir o pescoço do
monstro. Os demais combatentes se espalharam, tomando direções opostas
para cercar o monstro. O impacto do golpe fez Shiva ser arremessado a dois
metros, rolando no chão, mas incrivelmente parando em pé, sem qualquer
sinal de sentir dor. Lorde Asphael avançou mais uma vez, urrando um grito
de guerra. Sua lâmina brilhante se direcionou contra a cabeça do tigre, mas
Shiva se ergueu nas patas traseiras, desferindo uma patada violenta contra a
lâmina. Ao encontro das garras com a lâmina, ecoou um som forte, como se
o metal atingisse rocha. Imediatamente, a luz da lâmina foi consumida por
chamas negras, que se espalharam até o cabo, queimando a mão do
Arcanjo. Sentindo uma forte dor, Asphael recuou, largando a espada
flamejante.
Shiva se preparou para saltar sobre Asphael, mas as trevas se
ergueram ao redor do tigre, formando múltiplos tentáculos que agarraram
suas patas. Ao meu lado, Ansgar se erguia, removendo os tijolos e telhas
que o cobriam. Atrás de mim, Fabrizia e Absolon tentavam descobrir
Karina e o Velho em meio aos escombros.
Shiva se debateu, puxando as patas dianteiras. Os tentáculos de
trevas se rasgavam como papel, incapazes de superar a força do tigre. Antes
que se soltasse por completo, porém, o tigre foi atingido pela direita,
quando Samuel avançou num ataque de carga, tentando perfurar as costelas
do animal com sua espada. A lâmina, que brilhava dourada como se
estivesse em brasas, perfurou a pele de Shiva, mas não conseguiu adentrar
mais do que alguns centímetros na carne do animal. Shiva virou a cabeça
496
para fitar o Sancti. As chamas na boca do demônio pareciam prestes a
explodir quando ele urrou. Imediatamente, Samuel se incendiou em chamas
negras, sendo arremessado pelo menos três metros para trás. O Sancti bateu
violentamente contra uma árvore, caindo em seguida no chão,
semiconsciente. Felizmente, as chamas negras não duraram antes de se
extinguirem.
Asphael tentou pegar a espada caída no chão agora que as chamas
nelas também já tinham se dissipado. O tigre foi mais rápido, porém,
rompendo os tentáculos que ainda o seguravam e pondo a pata flamejante
sobre a lâmina. Asphael puxou a mão, a poucos centímetros do cabo, a
tempo de evitar a poderosa mordida do tigre. O Arcanjo recuou
rapidamente, esperando um avanço rápido e mortal do oponente.
Rapidamente, eu gesticulei, apontando a mão ao tigre. Ao mesmo tempo, a
voz de Al-Malik se ergueu: “Por cada dor que causou em seu caminho, eu o
puno!”. O tigre recuou, urrando de dor, conforme o poder combinado de
garras espirituais e punição divina rasgavam sua carne. Mal o tigre se
recuperava, menos de um segundo depois, uma sombra saltou das árvores
próximas. Lo Wang caiu sobre o tigre, montando em suas costas. Adagas
de sombra se formaram em ambas as mãos do Kage, e rapidamente ele
começou a atacar freneticamente com as armas tenebrosas, perfurando
várias vezes o pescoço de Shiva. O tigre expressou dor agonizante,
enquanto seu sangue se espalhava. O sangue do monstro, porém, respingou
sobre o Kage, queimando-o como ácido. Trevas se formaram atrás do tigre,
delas saindo um tentáculo longo e pontiagudo. O tentáculo avançou contra
as costas de Lo Wang, perfurando-as até emergir através de seu peito. O
grito do Celestial negro ecoou.
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Asphael avançou para pegar sua espada, enquanto o tentáculo
erguia Lo Wang no ar. Shiva avançou, aparentemente inafetado pelos
ferimentos sofridos. Ao mesmo tempo, o tentáculo sacudia o corpo Lo
Wang, arremessando-o contra Al-Malik, que avançava na direção do tigre.
O impacto derrubou ambos os Celestiais.
A mão de Lorde Asphael alcançou o cabo da espada, enquanto as
patas de Shiva se apoiavam no chão firmemente, prontas para darem ao
demônio um impulso mortal. O monstro saltou na direção do Arcanjo, suas
mandíbulas se abrindo em pleno ar. Não tendo tempo de preparar um golpe,
Lorde Asphael colocou a lâmina no caminho da mandíbula do monstro, a
fim de manter as presas do demônio à distância. As mandíbulas de Shiva
abocanharam a lâmina, rachando o metal como se fosse um simples cabo
de vassoura. Mais ainda, o peso do monstro derrubou Asphael. O Arcanjo
tentava em vão fazer o monstro largar a lâmina da arma, enquanto o
monstro sobre ele usava as garras flamejantes para rasgar-lhe o peito.
Ansgar avançou, enquanto Al-Malik já se levantava. Asphael usou
suas forças para jogar Shiva para o lado, largando a espada e rolando na
direção contrária. Shiva já se levantava, enquanto o Arcanjo, tomado por
dores, tinha dificuldades em se erguer. Ansgar se aproximou o suficiente
para golpear o chão com sua espada. Imediatamente, um círculo de chamas
celestes se formou ao redor do Celestial. As chamas chegaram até o tigre,
encobrindo-o. Mas, ao invés de parar ou se voltar ao Venator, o tigre
avançou contra o Arcanjo Asphael, saltando para fora das chamas
purificadoras. Al-Malik interceptou Shiva em pleno ar, antes que o monstro
pudesse penetrar as presas pontiagudas no pescoço de Asphael. Shiva caiu,
rolando no chão, mas mais uma vez parando em pé. O impacto, porém,
498
jogou Al-Malik de volta para trás, caindo de costas no chão. Asphael,
felizmente, acabava de se pôr em pé, seu peito sangrando com os cortes que
sofrera. A dor em sua face, porém, desaparecia por completo, e o Arcanjo
fitava o oponente com determinação e fúria.
Atrás de mim, Fabrizia e Absolon por fim conseguiam retirar
Karina. Sob a moça, estava o Velho, assustado e ferido, mas bem. O Velho,
vestindo apenas uma calça rasgada, tossia muito e se abraçava, encolhendo-
se, enquanto murmurava palavras sem sentido. Fabrizia retirou a capa de
chuva para cobri-lo. “Tirem-no daqui!”, gritei.
E, ouvindo isso, o tigre se voltou a nós, avançando em velocidade
sobrenatural, deixando um rastro de chamas negras em seu caminho.
Coloquei-me no caminho do demônio, frente ao Velho. Imediatamente,
implorei aos espíritos da terra por ajuda. Minha energia fluiu, enquanto
meus pés se firmaram no solo, drenando sua força. Os passos do tigre
faziam a terra tremer e, quando ele estava quase me alcançando, o chão à
minha frente se abriu, erguendo dele uma parede de pedra, obra de
Fabrizia. O monstro se chocou contra a parede violentamente, mas o único
a ceder foi a própria rocha. Shiva trespassou a muralha sem dificuldades,
em seguida se chocando contra mim. Senti um impacto gigantesco me jogar
para trás. O chão aos meus pés não suportou, rompendo-se. Fui
arremessado como uma boneca de pano, caindo violentamente no chão.
Minha cabeça bateu contra uma rocha. Esforcei-me para não desmaiar,
reunindo o que restava de minha força de vontade.
Absolon empurrou Fabrizia para trás, colocando-se entre o tigre e
os outros. O demônio urrava furioso, fazendo o chão rachar, e das
rachaduras saltavam chamas negras. As chamas ergueram-se como se
499
fossem muralhas, formando um labirinto de Fogo Negro ao redor do
Velho e seus últimos protetores.
Mas da chamas surgiu Ansgar, ele próprio se protegendo em Fogo
Celestial. O tigre se voltou ao recém-chegado, mas não a tempo de desviar
da lâmina flamejante do Venator. A lâmina veio certeira, perfurando o olho
esquerdo do tigre. Cego de um olho, o tigre recuou alguns passos,
balançando a cabeça para afastar a lâmina do Venator. “Afaste-se deles!”,
gritou Ansgar, largando a arma e avançando contra o tigre aproveitando a
cegueira parcial do mesmo. O braços do guerreiro envolveram o pescoço
do demônio, e então Ansgar se jogou para trás, fazendo com que ele o
monstro rolassem morro abaixo, aproveitando a leve inclinação e a lama
que descia. Eu tentava me levantar, curando-me de minhas contusões,
enquanto ambos continuavam a rolar até caírem pelo barranco logo adiante.
Tendo finalmente me erguido, corri em direção ao barranco, ainda
sentindo algumas dores nas costelas. Al-Malik também ia na mesma
direção, e eu via Samuel já se erguendo, já parcialmente curado. O corpo de
Lo Wang tinha desaparecido por completo. Já o Arcanjo Asphael
permanecia parado, numa concentração intensa, empunhando sua arma.
Fogo circundava a lâmina, e relâmpagos saltavam dela, enquanto o metal
brilhava com uma luz poderosa. Ele concentrava suas forças na arma,
esperando torna-la poderosa suficiente para dar um golpe mortal, como no
confronto anterior que tivemos com o tigre.
Chegando à borda do barranco, vimos o teto destruído de um
casebre abaixo. Ansgar estava caído, cheio de marcas de garras em sua
barriga e face, mas ele ainda estava consciente. Ouvimos gritos de medo
vindos da casa, e em seguida, uma vidraça se quebrou, Lo Wang saltando
500
através dela. Em seguida, a própria parede ruiu, atravessada pelo tigre-
demônio. Ainda ferido, com a lâmina negra em mãos, Lo Wang mal
conseguia escapar dos ataques do tigre. Ainda assim, o oriental se
esforçava para manter Shiva ocupado. O tigre avançou, forçando Lo Wang
a desviar-se para a direita. O Celestial escapou das garras e presas, mas
Shiva, assim que pousou, jogou o corpo para a direção de Lo Wang,
atingindo-o com a cabeça. Aquele simples movimento foi o suficiente para
jogar o Tenshi para trás, arrebentando a parede de madeira de um barracão
próximo. O barracão foi o seguinte a ruir.
Ouvindo os gritos e urros, pessoas saíam nas ruelas da favela para
ver o que estava acontecendo. Outras não se preocupavam em ver,
preferindo apenas correr para longe. “Droga!”, murmurei, pensando nas
testemunhas. Da primeira casa, uma mulher saiu carregando uma menina
nos braços, gritando em desespero. O tigre se voltou para ela. Assumi
Forma Celeste, deixando que minhas asas surgissem e meu brilho atraísse
os olhares do tigre e da multidão. Melhor que caiam ante ao Temor Divino
do que ante as garras de Shiva. Minha ação atraiu olhares, e muitos
desviaram as faces ou caíram de joelhos, mas a maioria preferia apenas
fugir.
Mas então uma luz mais forte do que a minha surgiu acima de nós.
Lorde Asphael saltou sobre nós, sua Forma Celeste brilhando com
intensidade. Suas asas brilhavam como nunca, e de seus olhos transbordava
poder. O Arcanjo pousou violentamente, fazendo o chão rachar, e avançou.
Sua espada, concentrando energias de fogo, raio e luz, atacou as patas
dianteiras de Shiva. O tigre ergueu as patas dianteiras, enquanto recuava
com as traseiras. Numa velocidade incrível, antes que Shiva pudesse se
501
apoiar novamente em quatro patas, Lorde Asphael deu um passo à
frente, sua espada penetrando furiosamente no peito do tigre. A lâmina
brilhante emergiu das costas do monstro, e Shiva deu seu último urro de
dor. A tempestade acima urrou em resposta.
Asphael ergueu a espada acima da cabeça, o tigre ainda empalado
por ela. Então, o Arcanjo gritou como um guerreiro furioso, sendo
acompanhado por um trovão, e balançou a arma para arremessar o tigre
longe. O corpo inerte de Shiva se desprendeu da lâmina, caindo
violentamente no chão alguns metros à frente, suas patas e boca perdendo
as chamas sombrias que até então ardiam furiosamente.
Karina, Absolon e Fabrizia se aproximaram do barranco, trazendo
o velho. Apesar do vento, da chuva e dos trovões, houve silêncio, enquanto
fitávamos o tigre caído. A espada de Asphael, e o próprio Arcanjo,
lentamente perdiam o brilho, enquanto eu mesmo retornava à forma
humana. Os mortais presentes olhavam sem entender, alguns fugiam
apavorados. Outros ainda choravam ou se escondiam. Nós tínhamos
vencido. Os relâmpagos e trovões acima, porém, apenas se intensificaram.
Abaixo, Ansgar se esforçava em levantar, mas parecia ser uma
tarefa quase impossível. “Acabou?”, perguntou Samuel, se aproximando a
passos lentos e difíceis.
A resposta veio quando os olhos de Shiva se abriram novamente,
mas desta vez brilhando vermelhos. As nuvens acima se abriram, como se
estivesse se formando um redemoinho, mostrando um céu avermelhado e
uma lua sangrenta. E eu senti algo... algo inacreditável. Se Shiva era
escuridão, aquilo era o próprio abismo. O redemoinho acima fez a chuva
parar de cair sobre Cerro-corá por um momento, mas então as nuvens se
502
fecharam de novo, trazendo consigo a tempestade. O poder daquilo que
se aproximava era tão grande... tão gigantesco... que era como se nosso
poder fossem pequenas velas, que se apagavam diante da passagem fria da
escuridão. Vi relâmpagos vermelhos caírem, e gritos de dor e agonia
ecoavam, trazidos pelo vento. Eu senti o mundo espiritual se escurecer,
tornando-se breu denso.
“O que é isso?”, perguntou Karina em desespero, sentindo o chão
tremer.
“É um deles! É um deles!”, dizia o Velho, abraçado a Fabrizia. “O
quarto Filho! O Lorde do Proibido!”.
Asphael recuou, sem retirar os olhos de Shiva. O tigre se erguia,
sentindo dores profundas, cambaleantes. Então, suas mandíbulas se
mexeram e ele... falou. A voz trovejante veio em nossas mentes, ecoando
em nossas almas. “Pai, eu falhei! Tome meu corpo e faça de minha derrota
a sua vingança!”.
O tigre se ergueu em duas patas, urrando. Ao invés do urro de um
tigre, porém, ecoou o de um dragão. Ele se manteve bípede, seus dedos se
alongando, garras expandindo-se, presas se afiando. Sua forma se tornava
ligeiramente humanóide. Seu olho cego se abriu, também brilhando
intensamente. Ele se ergueu por completo, tendo quase dois metros e meio
de altura. Era algo meio tigre e meio homem. Ao segundo urro de dragão,
as pessoas começaram a sair de suas casas, mas não era desespero que as
movia. Seus olhos brilhavam verdes, como se algo, e não suas almas,
comandasse suas ações. Crianças sob a chuva armadas com paus e facas,
enquanto seus pais e mães caminhavam como zumbis à frente, formando
uma procissão profana.
503
“O tempo chegou! O tempo é agora!”, disse o Velho.
“Corram! Fujam!”, gritou Asphael, sua lâmina mais uma vez
enchendo-se de fúria elemental. “FUJAM!”, ele repetiu, sua face
claramente transbordando desespero.
Os outros se viraram para correr, mas não estávamos mais
sozinhos. Os mortos vinham pela mata, alguns vestindo armaduras
medievais e portando espadas quebradas, outros nus, com os corpos
incinerados, rastejando como zumbis. Ainda outros vestiam trapos e
portavam lanças. A presença que eu sentia era indistinguível. As almas dos
Condenados se materializavam para bloquear nosso caminho.
“POR MAGNA VERITAS!”, gritei. Das minhas mãos, rugiu
trovão. O relâmpago saltou de mim, atingindo vários dos Condenados. Um
caiu, mas outros continuaram em nossa direção.
“Por Magna Veritas!”, gritaram Samuel, Absolon e Al-Malik,
avançando contra as dezenas de almas. Dos céus, raios caíram sobre as
fileiras inimigas, comandados pela vontade de Fabrizia. No chão, os
guerreiros decepavam cabeças e braços, mas os inimigos pareciam
incansáveis.
Atrás, Lorde Asphael avançou, gritando. Sua espada traçou um
arco de fúria no ar, mas Shiva se moveu mais rápido. Uma das mãos do
demônio agarrou o pulso direito de Asphael, impedindo o golpe da arma, a
outra segurou seu pescoço. O Grande Lorde ergueu Asphael no ar, e então
forçou o braço direito do Arcanjo, fazendo-o largar a arma e quebrando a
articulação do cotovelo. “Pequeno verme”, disse o monstro em nossas
mentes, sua voz causando dor como se pregos fossem cravados em nossas
mentes. Em seguida, Shiva jogou Asphael longe, para o alto. O Arcanjo foi
504
arremessado como se não tivesse peso, caindo a mais de trinta metros
de distância, sobre alguns casebres. A multidão possuída avançava pelas
escadarias, seus olhos queimando em ódio e fúria. E então os olhos do
demônio se encontraram com os meus.
Desviei o olhar imediatamente. “VOEM!”, gritei, retornando à
Forma Celeste. Fabrizia e Karina imediatamente abriram suas asas, mas os
combatentes não tinham espaço suficiente, estando cercados por legiões de
almas.
Ergui vôo, mesmo sabendo que deixaria meus companheiros para
trás. Fabrizia hesitou, vendo Absolon ser cercado por guerreiros mortos-
vivos. Karina puxou o Velho dos braços da Xamã e voou com ele.
Enquanto nós nos erguíamos no céu, sentíamos a chuva nos empurrar para
trás, os ventos tentando rasgar nossas asas. Abaixo, vi Samuel tocar o solo,
criando um círculo de chamas fantasmas. Ao seu redor, os mortos
queimaram, recuando e abrindo espaço. “FUJAM!”, gritou o Sancti, tendo
de permanecer parado para manter as chamas douradas. Imediatamente,
Absolon e Al-Malik abriram suas asas, erguendo-se aos céus. Fabrizia,
vendo Absolon escapar, voou rumo a ele. Samuel foi o último a abrir as
asas, desfazendo as chamas para poder voar. Uma lâmina atingiu suas asas,
ferindo-a, mas ainda assim o Sancti conseguiu subir aos céus.
Nós lutávamos para vencer as correntes de ar e a chuva forte.
Minhas asas doíam, conforme penas eram arrancadas e o vento as cortava,
fazendo-as sangrar. Apenas Absolon, com suas asas em forma de faixas de
luz, parecia resistir facilmente aos efeitos do vento. Foi quando senti o
poder de Shiva se manifestar novamente. Uma corrente de ar nos pegou por
baixo, jogando-nos para o alto e fazendo-nos perder o controle do vôo.
505
Pega de surpresa, Karina largou o Velho, que foi arremessado pelo alto
pelo vento. Outra rajada nos atingiu, girando como um redemoinho. Eu
sentia minhas asas se despedaçando dolorosamente, enquanto todos
rodopiávamos nos céus sem qualquer controle. O Velho começou a cair
rumo ao solo, mas Al-Malik conseguiu segurar sua mão. O urro de Shiva se
seguiu, conforme a última rajada de ventos nos acertava, direcionando-nos
para baixo. Al-Malik abraçou o velho, enquanto o grupo caía violentamente
contra a mata abaixo. Um relâmpago iluminou a noite, me mostrando o
solo abaixo, um instante antes de eu atingi-lo. Houve dor... e depois tudo se
apagou.
Alguns segundos se passaram nas trevas... Mas eu não podia
desmaiar agora! Forçando meu corpo a extremos, meus olhos se abriram,
enquanto eu canalizava minhas últimas energias para me curar. Todo o
corpo doía, enquanto eu me erguia, apoiado a uma árvore, no meio da mata.
Próximos a mim, Karina e Al-Malik também se levantavam, mas não havia
sinal dos demais. O Velho estava ferido, mas vivo, agarrado a Al-Malik.
“Philipe!”, gritou Karina, se levantando com dificuldade. “Você
está bem?”.
“Fujam!”, pedi, sentindo minhas forças se esgotando.
“Tarde demais!”, gritou Al-Malik, me jogando o velho ao ouvir o
urro de dragão. Abracei o Velho e comecei a correr. Karina veio atrás de
mim sacando sua única arma, a pistola. Enquanto isso, Al-Malik empunhou
sua cimitarra. “Não há Deus a não ser Deus!”, disse Al-Malik, orando
desesperadamente. Ao ver o demônio Shiva vir em nossa direção pela
mata, seus passos fazendo o chão tremer, Al-Malik gritou: “E VOCÊ NÃO
É ELE!”. O Malaki avançou, sua lâmina refletindo o relâmpago que se
506
seguiu. As garras de Shiva foram mais ágeis, atingindo a barriga do
Malaki, rasgando-lhe do ventre ao pescoço, quase o partindo em dois. O
sangue celeste espirrou sobre o monstro, que então se pôs em minha
direção.
Eu tentava correr o mais rápido possível pela mata, mas o próprio
Velho me atrasava, incapaz de acompanhar meu passo. Karina já nos
ultrapassava, quando senti algo se agarrar aos meus pés. Eu caí, largando o
Velho, mas Karina pegou na mão dele e continuou correndo. Olhei, para
trás, vendo Shiva se aproximar, correndo como um gorila, usando os longos
braços como se estivesse sobre quatro patas. As plantas cresciam e criavam
espinhos sobre mim, enroscando-se em minhas pernas. De repente, as
plantas me ergueram pelas pernas, seus espinhos penetrando na carne de
meus pés. Uma árvore ao lado se moveu, mais cipós emergindo dela e
agarrando meus pés, enquanto eu era erguido de cabeça para baixo. O urro
de Shiva ecoou, conforme a criatura se aproximava rapidamente,
mostrando presas e garras, enquanto seus olhos ardiam, vermelhos de ódio.
O monstro saltou, pronto para me despedaçar em pleno ar. Antes
que suas garras me tocassem, porém, uma forma brilhante se chocou com
ele, emergindo das trevas da mata. Shiva caiu, enquanto Lorde Asphael
avançava novamente para atingi-lo com a espada, que ainda brilhava
intensamente. A lâmina traçou um caminho do alto para baixo, na direção
do pescoço do demônio, mas o monstro aparou o golpe com o próprio
braço. O choque da lâmina com o braço de Shiva fez com que as
rachaduras nela apenas se intensificassem. O Grande Lorde agarrou a perna
de Lorde Asphael e, num pulo, se pôs em pé, erguendo o Arcanjo. Então,
como se Asphael fosse um pedaço de pano, Shiva correu contra uma
507
árvore, usando o corpo do Arcanjo para golpear o tronco da mesma.
Com o impacto, Asphael perdeu sua arma, e o tronco se partiu como se
fosse um graveto. Shiva avançou contra uma segunda árvore, mais uma vez
balançando o corpo do Arcanjo para atingi-la. Eu tentava desesperadamente
me livrar dos cipós que me agarravam, quando então Shiva bateu Asphael
contra a árvore que me erguia. A árvore tombou, me jogando contra o chão.
Shiva ergueu Lorde Asphael para mais um golpe contra as árvores.
Em meu desespero para fugir. Vi alguém correr pela mata a passos
desesperados, em nossa direção. Absolon emergiu das sombras, sua espada
prateada em mãos, e avançou contra o demônio, atingindo-lhe no tendão da
perna. O golpe, porém, sequer fora capaz de penetrar no couro grosso de
Shiva.
Shiva se voltou para Absolon, imediatamente largando Asphael e
desferindo um soco com as costas da mão. O golpe atingiu a cabeça do
jovem Princeps, que desmaiou imediatamente. O corpo do Princeps caiu
inerte, próximo à arma de Asphael, enquanto sua espada escorregou no
chão, chegando ao meu alcance. Infelizmente, Shiva agora punha seus
olhos na minha direção. Peguei em vão a espada de Absolon, mas antes que
pudesse usa-la, um trovão me ensurdeceu. Fabrizia, escondida na mata,
agora avançava. Desarmada, ela usava seus poderes para distrair o monstro,
disparando relâmpagos. Shiva se virou para ela, quando então Asphael
agarrou o monstro por trás.
“Os outros estão adiante! CORRAM!”, gritou Lorde Asphael, já
sem forças, tentando segurar o demônio.
Usando a espada de Absolon, cortei o que restava dos cipós e
comecei a correr. Fabrizia me alcançou, segurando minha mão, e ambos
508
corremos pela mata, numa direção diferente da que Karina tinha
tomado antes. Talvez pudéssemos despistar o demônio, eu pensava. Ao
meu lado, Fabrizia corria, mas fraquejando. A chuva podia esconder suas
lágrimas, mas ela chorava intensamente.
Foi quando atrás de nós Shiva se livrou de Asphael e, com um
golpe preciso, atingiu a face do Arcanjo com suas garras. O sangue de
Asphael se espalhou, e finalmente o Arcanjo tombou. Shiva nos fitou,
urrando, mas para meu desespero correu na direção que Karina tomara.
Parei imediatamente. “Vamos atrás dele!”, gritei.
“O quê?”, questionou Fabrizia.
“Precisamos ir!”, avisei, tomando a frente. Mesmo sem forças, com
os pés feridos, eu corria, ignorando cansaço, dor e medo. Fabrizia hesitou,
mas me seguiu. Quando passamos pelo local em que nossos companheiros
caíram, eu pude ver o rosto dilacerado de Asphael, enquanto Fabrizia
hesitou uma segunda vez ao ver o corpo inerte de Achille Absolon. Mas
precisávamos seguir em frente.
Correndo pela escuridão da mata, logo Shiva sumiu de nossas
vistas. Continuamos seguindo aquela direção, sem saber onde estávamos
indo. Já nos julgávamos perdidos, quando luzes adiante nos indicavam que
a batalha continuava adiante. À frente, um espectral fogo dourado se
misturava ao azul de chamas celestes, enquanto Samuel e Ansgar uniam
forças para criar uma área protegida. Atrás dos mesmos, o Velho e Karina
estavam caídos no chão, presos por cipós de forma semelhante ao que
ocorreu comigo.
Urgi para que Fabrizia apressasse o passo. Enquanto isso, Shiva
avançava, ignorando tanto chamas purificadoras como o fogo espectral.
509
Seu pêlo queimava, mas sua carne nada sofria. As garras do monstro
atacaram primeiro o Venator, que tinha liberdade de ação dentro do círculo
de chamas. Ansgar desviou, avançando em seguida com a espada
flamejante. Antes que o Venator sequer atingisse o oponente, porém, Shiva
penetrou as garras de ambas as mãos na barriga do Venator. Puxando as
mãos, o monstro arrancou as tripas de Ansgar. O Venator gritou enquanto
suas tripas se espalharam pelo chão. Em seguida, um golpe final de Shiva
atingiu sua mandíbula, arrancando-a violentamente. O grito cessou, e o
corpo de Ansgar tombou.
Eu e Fabrizia tentávamos dar a volta para chegar a Karina e ao
Velho, na tentativa de liberta-los dos cipós. Porém, vimos uma sombra
emergir da mata, chegando à Celestial e seu protegido antes de nós. Lo
Wang surgiu cortando os cipós precisamente com sua lâmina negra.
Com as chamas celestes morrendo, Shiva agora se voltava ao autor
do fogo espectral. Samuel recuou, o que fez com que as chamas douradas
desaparecessem. Shiva avançou, e o Sancti aproveitou para tentar perfurar
o peito do monstro. A espada atingiu seu alvo, mas o couro grosso apenas a
fez se desviar para o lado. Avançando, Shiva atingiu o estômago de
Samuel, fazendo suas garras emergirem pelas costas do Sancti. O monstro
ergueu o braço, com o Celestial preso a ele e gritando de dor, e urrou.
Lo Wang ajudou Karina e o Velho a se erguerem, colocando-os
para correr em nossa direção. Shiva fez um movimento rápido com o braço,
jogando Samuel longe, e então se virou para o velho, emitindo mais um
urro.
“Foi um prazer conhece-los”, disse Wang, a máscara demoníaca
cobrindo-lhe o rosto. “Agora corram!”.
510
O demônio-tigre fitou Lo Wang, preparando-se para desferir o
golpe fatal. Lo Wang, porém, largou sua arma apontando ambos os braços
na direção de Shiva. Das trevas, mais e mais tentáculos emergiam.
Dezenas, talvez centenas. Eu sentia o Kage usar toda a sua energia naquele
último esforço. Shiva avançava, rompendo os tentáculos com facilidade
tremenda. Ainda assim, para cada tentáculo destruído, outros mais surgiam.
Embora não pudesse parar o monstro, Wang agora se sacrificava para
atrasa-lo. Shiva avançava pela selva de tentáculos, lentamente, mas
inexoravelmente.
E nós continuávamos a correr. “VÃO EM FRENTE!”, gritei,
diminuindo o passo, não mais agüentando a dor dos meus pés feridos.
“Philipe!”, gritou Karina, parando.
“Não parem!”, ordenei. Felizmente, Fabrizia continuava em frente,
levando o Velho consigo. Eu tentava acompanha-los, mas ficava cada vez
mais para trás. Karina, preocupada comigo, insistia em me acompanhar.
Atrás, eu senti um poder imenso se manifestar. As próprias trevas
que seguravam Shiva agora avançavam contra Lo Wang. Centenas de
tentáculos de escuridão traíram seu criador, enroscando-se nas pernas e
braços do Kage. Então, os tentáculos criaram dentes e espinhos, penetrando
na carne de Lo Wang. Conforme os tentáculos se desenrolavam e se
soltavam do corpo do Kage, levavam consigo sua pele. O corpo dilacerado
caiu, e o urro de dragão ecoou novamente. A terra tremeu com seus passos
uma vez mais.
Fabrizia já estava muito à frente, mesmo com o Velho a atrasando.
Atrás, a força dos passos se tornava mais e mais intensa.
“Philipe, vá!”, gritou Karina, chorando. Ela então parou de correr.
511
“Karina!”, gritei, parando pro um instante.
“CORRA!”, ela pediu em desespero, sacando a pistola.
Ela ia atrasa-lo? Eu não podia parar para pensar... Mesmo com meu
coração me implorando para ficar, continuei a correr. O som de tiros
seguidos ecoou. Shiva avançou sobre quatro patas, correndo como um
gorila, praticamente impenetrável às balas. Ele passou por Karina sem
perder velocidade, sem precisar parar. Suas garras cortaram o peito da
Supervivente de lado a lado, o sangue dela apenas servindo para sujar mais
um pouco a face do monstro. Ele prosseguiu. Shiva vinha até mim.
A mata a frente dava lugar a um descampado. Um relâmpago
revelou Fabrizia e o Velho não muito distantes à frente. Um barranco
estava adiante, e além dele, a favela, mas não era o mesmo lugar de onde
partimos. Fabrizia parou diante do barranco, sem saber o que fazer. Atrás
de mim, eu sentia o monstro se aproximar. Fabrizia ergueu a mão, e ouvi
estrondos, conforme raios caíam dos céus, sobre o demônio. Os passos
apenas se aproximavam, porém. E, finalmente, ele me alcançou.
Senti o corpo do demônio trombar com o meu, me jogando para a
frente. Caí violentamente, com o peito no chão. O monstro continuou
avançando, e senti-o passar por cima de mim. Suas patas pisaram
violentamente em meu peito, forçando todas as toneladas de seu corpo
contra o meu tórax. Minhas costelas se partiram, penetrando meus órgãos
internos. Num instante, a respiração se tornou impossível, conforme meus
pulmões se enchiam de sangue. Senti o calor do sangue fluir pela minha
boca e invadir meu peito. Minha mente se apagava, enquanto eu tentava
força-la a permanecer desperta. Abri os olhos, tentando me curar, mas
512
minhas energias já se esgotavam, possibilitando apenas manter-me
desperto, sentindo meu corpo morrer.
Eu pude ver a luz de um relâmpago antes mesmo de conseguir abrir
os olhos. E a voz dele ecoou em minha mente, causando ainda mais dor ao
meu corpo alquebrado. Ele ria.
Adiante, eu vi o demônio se erguer diante de Fabrizia, suas garras
preparadas para um golpe certeiro e mortal. Com o que me restava de
forças, eu me arrastava na direção deles, mesmo sabendo que nada poderia
fazer. Fabrizia fechou os olhos, se pondo entre o Velho e Shiva, apenas o
barranco atrás deles. Shiva urrou.
E então, algo luminoso veio descendo dos céus, gritando em grande
velocidade. A espada de Asphael Veritas atingiu as costas do demônio, mas
não era Asphael que a portava. Era Absolon. A lâmina finalmente se
quebrou com o impacto, mas o golpe foi forte o suficiente para jogar Shiva
à frente. Então, todos os quatro, Shiva, Absolon, Fabrizia e o Velho, caíram
no barranco adiante.
Arrastei-me até a borda do barranco, já não suportando as dores em
meu corpo. Finalmente, minha força de vontade se esgotava, e meus braços
fraquejaram. Eu nada mais podia fazer, a não ser ver os eventos.
Abaixo, eu vi a favela. A chuva provocava desmoronamentos nos
paredões de lama do barranco. Shiva e Absolon eram levados pela corrente
de lama, através de uma escadaria que chegava a uma ruela mais abaixo.
Eu via o corpo do Princeps bater contra os degraus violentamente,
quebrando-lhe ossos. Fabrizia e o Velho, porém, caíram sobre uma grande
poça de lama. A Xamã se esforçava em erguer o pobre homem, que estava
513
quase se afogando na lama. O Velho parecia ferido, talvez com a perna
quebrada.
O Princeps e o demônio finalmente pararam na ruela abaixo. A
mão de Absolon ainda segurava firmemente o cabo sem lâmina da espada
de Asphael. Caído, ferido, o jovem nada podia fazer a não ser ver Shiva
erguer-se. Pelo alto do barranco, vi a procissão de possuídos e Almas
Condenadas se aproximar, vinda das ruelas e casas próximas. Os céus
acima urravam, jogando relâmpagos sobre a terra. Shiva fitou o corpo de
Absolon, erguendo a mão e mostrando as garras a ele.
Houve então um relâmpago e um estrondo, como nenhum raio ou
trovão poderiam gerar. A forma luminosa de Asphael Veritas desceu dos
céus numa velocidade que eu mal podia acompanhar. Unindo as mãos num
golpe poderoso, ele caiu sobre Shiva, fazendo a ruela rachar com o
impacto. Ao redor, vidraças se partiam, e uma parede próxima tremeu.
Shiva se virou para o Arcanjo, avançando com as garras a postos. A mãos
do Arcanjo agarraram os pulsos de Shiva, impedindo que as garras o
tocassem. O impulso do demônio, porém, jogou Asphael contra uma
parede, ruindo-a e fazendo cair no chão, Shiva sobre ele. Com um chute
poderoso, o Arcanjo fez o demônio recuar, e então Asphael se ergueu.
Ele não era o Asphael calmo de antes. Mesmo em Forma Celeste,
sua face desfigurada, cega de um olho, extravasava fúria. Mal o demônio
recuou, Asphael avançou, seus próprios punhos brilhando intensamente,
atingindo a face do demônio. Shiva golpeou o peito de Asphael, jogando-o
contra a multidão possuída que agora já alcançava a ruela onde duelavam.
O corpo de Asphael derrubou alguns homens e almas, e então os
Condenados começaram a saltar sobre ele, usando espadas e lanças contra
514
sua pele. Ignorando as criaturas, Asphael, se ergueu, correndo na
direção de Shiva, seus punhos fechados, prontos para o ataque. Não sei se
foi um trovão ou o impacto, mas a terra tremeu. Era como se um homem
socasse uma rocha, porém, pois a cada golpe ecoava um estrondo, e os
próprios punhos de Asphael se cortavam com os golpes, revelando carne
viva. As garras de Shiva mais uma vez se aproximaram do rosto do
Arcanjo, mas este escapou, atingindo um soco poderoso contra a mandíbula
do demônio. Shiva recuou mais, dando espaço para outro golpe. Porém,
antes que mais um estrondo se seguisse, desta vez foi Shiva quem
conseguiu segurar os pulsos do adversário.
Segurando o oponente firmemente, Shiva arremessou Asphael
contra um casebre. A casa ruiu com o impacto, e Asphael foi soterrado nos
destroços. Shiva, porém, continuou avançando, as almas e possuídos dando
espaço para que seu Lorde finalizasse o inimigo. As garras do monstro
penetraram nos destroços, puxando o corpo de Asphael. O Arcanjo ainda
estava consciente, tentando lutar, mas as garras penetraram nos músculos
de ambos os seus braços, enquanto Shiva os segurava firmemente.
O demônio urrou novamente, erguendo Lorde Asphael Veritas para
o alto como se fosse um troféu. As mandíbulas de Shiva se abriram, seus
olhos brilhando intensamente, e suas presas se fecharam ao redor da cabeça
do Arcanjo. O crânio do Celestial se partiu, seu sangue se espalhando numa
explosão vermelha. Lorde Asphael estava morto.
O corpo de Asphael foi finalmente liberto, caindo violentamente no
chão. Sua forma já começava a se desfazer, e eu pude sentir seu poderoso
espírito. Porém, Shiva continuou ao lado do corpo, seus servos mantendo
distância considerável. O demônio abriu os braços e ergueu a cabeça em
515
concentração. Eu podia sentir o espírito de Asphael agonizar, enquanto
a vontade do demônio o consumia pouco a pouco. Tentei me mover, mas o
corpo não obedecia. Minhas energias tinham se esgotado. Shiva devorava o
alma do homem mais nobre que já conheci.
Um grito desesperado se seguiu. Absolon corria, por entre
Condenados e possuídos, empunhando a espada quebrada do Arcanjo. Eu
sentia o espírito de Asphael se contorcer em dor, mas então o jovem
Princeps direcionou o que restava da lâmina contra a articulação do joelho,
atrás da perna de Shiva. Tamanho foi o impacto que o braço direito de
Absolon se quebrou. O Celestial caiu no chão com o impacto, seu braço se
contorcendo numa direção normalmente impossível. Shiva, porém, não só
perdeu o equilíbrio, como também a concentração. Por um instante, senti o
espírito de Asphael se libertar das mandíbulas espirituais do tigre. No
momento seguinte, a alma se fora, escapando da horrenda Obliteração.
O olhar de Shiva se voltou ao Princeps caído ao seu lado. O
demônio urrou de ódio, mas então se voltou para outra direção. Escadaria
acima, Fabrizia tentava escapar com o Velho. “CHEGA!”, a voz do
monstro ecoou em minhas mentes, e a dor foi suficiente para fazer Fabrizia
largar o velho e levar as mãos à cabeça. O Velho, com a perna quebrada,
caiu no chão, enquanto Fabrizia tentava controlar a dor. Shiva ignorou
Absolon, correndo na direção do velho, sua fúria fazendo a lama se erguer,
abrindo passagem para ele. Imediatamente, as legiões profanas do demônio
caminharam na direção do Princeps caído.
Fabrizia gritou, e a energia dentro dela explodiu. Numa
demonstração de poder como eu jamais tinha visto antes, os céus
mandaram raios constantes contra o demônio-tigre. O chão rachava e se
516
partia, segurando os pés do monstro. Colunas de barro se erguiam à
frente, forçando-o a diminuir seu avanço. O próprio vento criava ondas de
lama, que batiam vigorosamente contra o corpo do monstro. Porém, Shiva
prosseguia. Nada podia detê-lo.
Memórias surgiam em minha mente. Frases que nos foram faladas.
Ou que eu mesmo falei. “Nenhum de nós vai morrer”.
Absolon se erguia, seu braço direito arruinado, mas o esquerdo
ainda empunhando o cabo da espada arruinada. Os Condenados se
aproximavam dele.
“Todos devemos crescer, Mestre Nicodemus. É duro, mas é o
caminho da vida e da sobrevivência. Todo jovem se torna adulto”.
Shiva atravessou a última barreira, seus passos se tornando apenas
mais poderosos, seus olhos brilhando intensamente como se fossem os sóis
do próprio Inferno.
“Seu problema, jovem Absolon, é que não entende que é preciso
sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma”.
Absolon avançava, derrubando os inimigos à sua frente, suas
Faixas de Luz mais uma surgindo em suas costas. Seus pés se ergueram do
chão, seu corpo se lançando contra os ventos da tempestade.
“Vocês esperam superar a astúcia e os dons dos Grandes Lordes
do Inferno?”, questionou a voz de Lúcifer.
Finalmente, Shiva chegava a Fabrizia. A Celestial tentou se afastar,
mas o corpo do monstro se chocou com o dela. A moça foi arremessada a
distância, batendo violentamente contra o barranco de barro.
“Se soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde, teríamos a
coragem de puxar nossas espadas e avançar, sem medo da morte?”.
517
E Absolon avançava, seu corpo brilhando dourado, deixando
para trás os servos do demônio. Na mão esquerda, ele segurava firmemente
o que restava da espada de um grande homem. Em sua face, medo e raiva,
expressados num grito que o impulsionava à frente. Shiva agarrou o Velho
pela cabeça, erguendo-o. O Velho gritou de dor. “Você quer este LIXO?”,
perguntou o demônio.
E a cabeça do velho se desfez numa explosão vermelha, esmagada
pelos dedos e garras poderosas do demônio.
Eu senti algo sumir. Senti uma alma poderosa ser tragada para um
vácuo longínquo. Um grito de dor ecoou nos mundos espirituais,
expandindo-se por todo o mundo. O grito era do Velho. E toda a grandeza
que se escondia dentro dele desapareceu.
Diante daquela última morte, a vontade de Absolon finalmente
fraquejou. Fabrizia, ainda consciente, mas ferida, apenas pôde observar o
Princeps cair de joelhos na lama, suas asas desaparecendo, logo adiante do
demônio. O cabo da espada finalmente caía de sua mão.
Shiva fitou o jovem, e abriu os braços para mostrar suas garras,
enquanto emitia seu último urro. O urro do dragão ecoou.
Fechei meus olhos, sentindo apenas aquela grande escuridão e o
sabor da derrota. Eu sabia que o próximo a morrer era Achille Absolon. O
desespero trouxe uma última voz à minha mente.
“Quero que se lembrem quando chegar o momento...”, disse
Senhor Urias, em Libraria.
Houve silêncio, e senti algo. Não havia mais chuva.
“Quando chegar o mais desesperador dos momentos...”
518
E senti algo invadir aquela escuridão espiritual. Algo brilhante
como um Sol. Minha cabeça se ergueu de repente, e meus olhos se abriram.
“...acontecerão maravilhas...”.
Faixas brilhantes de luz agarravam os braços de Shiva, puxando o
monstro para trás. E onde faixas o tocavam, a carne do demônio queimava.
O tigre urrou agora, mas agora em desespero.
“...e vocês saberão que não estão sozinhos”.
A forma dourada que flutuava nos céus, logo atrás de Shiva,
brilhava como um Sol, dezenas de faixas luminosas serpenteando os céus,
saindo de suas costas. Embora a tempestade furiosa ainda caísse ao redor,
sobre nós o céu estava limpo e estrelado, e a luz dAquele diante de nós era
tão forte que queimava os Condenados e expulsava os espíritos que
tomavam os mortais de Cerro-corá. Às dezenas, as pessoas corriam, sem
entender os acontecimento. Apesar da armadura dourada e do elmo branco
reluzente que cobria seu rosto, eu reconhecia Aquele diante de nós. Aquele
que empunhava uma espada de fogo. Aquele que é como Deus.
O Arcanjo Miguel ergueu Shiva no ar, puxando-o pelas faixas, que
agora também seguravam-no penas pernas, pelo pescoço e pela cintura. O
monstro se debatia em vão, enquanto o fogo dourado das faixas continuava
a queima-lo. O Primus girou seu corpo no ar, fazendo com que suas faixas
chocassem Shiva contra o barranco. A superfície íngreme se rompeu,
ruindo, enquanto Miguel puxava mais uma vez o demônio, se erguendo
mais ainda nos céus.
Imediatamente, eu senti meu corpo se fortalecer, diante da aura
daquele Celestial. As faixas trouxeram o demônio para próximo do corpo
luminoso do Primus, e então os olhos brilhantes de ambos se encontraram.
519
Shiva emitiu seu último urro, enquanto o Arcanjo Miguel erguia a
espada de chamas, desferindo um único golpe.
O último urro de Shiva subitamente cessou, enquanto seu corpo,
partido em dois, caía em direção ao solo. O monstro se desfazia em cinzas,
que queimavam diante da luz de Miguel. Shiva se desfez totalmente antes
que atingisse o chão.
Abaixo, eu vi Fabrizia correr em direção a Absolon, abraçando-o e
chorando em seus braços. Absolon segurou Fabrizia firmemente com o
braço esquerdo, também se consolando junto a ela.
Eu senti alguém se aproximar, a passos lentos. Sua mão tocou meu
ombro, emitindo um calor confortável e um brilho dourado. Virei-me para
fitar Samuel Fulmen, que carregava Karina, inconsciente mas já curada.
Acima, as nuvens se fechavam mais uma vez, mas agora a tempestade caía
mais fraca, os trovões se tornando infreqüentes.
“E os outros?”, perguntei.
“Parecem estar vivos, seus corpos não se desfizeram”, respondeu o
Sancti, sentindo dores ainda por ferimentos que preferiu manter para
poupar energia e curar os demais.
“Nós falhamos”, murmurei, tentando me levantar. Minhas costelas
ainda estavam quebradas, meu corpo ainda doía, mas eu tinha forças para
me mover novamente.
Acima, a forma brilhante do Arcanjo Miguel nos fitava
silenciosamente. Então, o Primus desceu, suavemente, até parar a poucos
metros do solo, diante de nós. “Eu sinto muito”, disse o Arcanjo, sua voz
ecoando em nossas mentes, emitindo tristeza mas nos dando conforto, “Eu
não pude chegar antes”.
520
“Ninguém poderia”, murmurei, abaixando minha cabeça, tanto
por tristeza como para evitar olhar diretamente um ser tão majestoso, “esta
era a nossa missão, nosso fardo. Nós falhamos”.
“Ninguém pode carregar tamanho fardo sozinho, Arcanjo
Nicodemus dos Veritatis Perquiratores”, respondeu o Arcanjo. “Reúna seus
amigos, eu preciso saber o que ocorreu aqui”.
“Temo que está tudo perdido”, respondi, deixando-me levar pelo
desespero.
“Do vazio do desespero pode vir a começo da grandeza, Arcanjo
Nicodemus”, disse Miguel, sentindo meus ferimentos restantes se fecharem
sozinhos, sem a necessidade de eu me concentrar ou gastar minhas próprias
energias. Também Samuel e Karina se recuperavam, e a jovem lentamente
abria seus olhos. Então, o Arcanjo continuou: “E eu sinto que a missão de
vocês ainda não acabou. Reúnam seus amigos, eu os curarei, e então
venham comigo”.
“Com você?”, perguntei, surpreso.
“Sim”, respondeu o Primus, “Esta noite, nós iremos juntos ao
Firmamento. O Éden precisa saber o que ocorreu aqui. Os Primi desejam
vê-los”.
521
Capítulo 20: Os Primi se Reúnem
Uma brisa fria soprava do norte, enquanto singrávamos os céus
rumo a oeste. O céu estava estrelado acima, com uma enorme lua brilhando
iluminando a noite com luz prateada. Havia poucas nuvens, e as
atravessávamos como se fossem uma névoa suave e gentil. Ao leste
distante, eu sentia a força do Sol que ali nasceria dentro de algumas horas.
Após deixar aquela tempestade, a destruição e o Rio de Janeiro para trás, as
energias do Éden nos fortaleciam, mas ainda não eram suficientes para
restabelecer nossos espíritos.
Minha alma estava ferida e meu orgulho dilacerado pelas garras de
Shiva. Eu sentia um gosto amargo na boca, e uma sensação sufocante em
minha garganta. Havia apenas frio, e meu corpo parecia tão pesado, tão
cansado, que mesmo voar pelos céus era um esforço sem igual. Eu queria
cair, pois a glória do Éden não me parecia assim tão grande. Olhei meus
companheiros, que voavam comigo pelos céus do Paraíso, e via seus rostos
sofridos e suas roupas rasgadas por garras e ainda ensangüentadas, sujas de
lama. Nenhum parecia estar melhor do que eu, e no fundo eu me ressentia
ainda mais por não poder conforta-los.
E, ainda assim, prosseguíamos, rumo ao vazio negro do céu
noturno. Não éramos erguidos pelas nossas próprias forças, mas pela luz
dAquele à nossa frente. Como um Sol ardente, o Arcanjo Miguel nos
guiava pela escuridão da noite, sua armadura e elmo reluzindo dourados.
Tão intensa era sua aura, que ele parecia estar em chamas e o brilho de suas
faixas de luz parecia se unir para formar asas reais.
O Primus pouco tinha falado desde que nos salvou das garras de
Shiva. Ao perguntar o que tinha acontecido, eu pude falar apenas de nossas
522
falhas, mas de alguma forma, eu senti seus olhos dourados fitarem
minha alma e seu poder tocar minha essência. Eu podia sentir que ele agora
sabia de tudo, e que sua mente estava tão cheia de questões quanto as
nossas. Ao contrário de nós, ele era como Deus, e sua força não diminuiu.
Agora, na mais negra das horas, o Arcanjo era tudo o que nos dava direção
e propósito.
“Estamos próximos”, a voz do Arcanjo ecoou em nossas mentes,
finalmente quebrando seu silêncio. E à frente, a luz da Lua se refletia em
uma formação densa de nuvens. Com a nossa aproximação, a luz dourada
de Miguel se misturou com o prateado lunar, e então o Primus penetrou
naquela névoa densa.
A visibilidade se tornou quase nula, mas o brilho intenso do
Arcanjo ainda servia de guia. Seguindo a luz dourada, nós então nos
erguemos acima das nuvens, que mais pareciam um plácido oceano. E, em
meio àquele mar nos céus, nós vimos uma ilha.
Meus olhos se arregalaram diante da visão. Nunca em minha vida
pensei que viria até aqui. E jamais poderia imaginar que um Primus seria
meu guia. Banhadas pela luz prateada da Lua, torres se erguiam apontando
para o céu acima. À base das torres, uma ilha rochosa parecia emergir-se do
mar nebuloso, criando grandes escarpas. Uma muralha prateada cercava
toda a fortaleza. Diante daquela imagem surreal, senti minha alma se
encher de energia e poder, como se eu descobrisse algo ininteligível e
transcendente. A Fortaleza Erguida pela Fé. O Verdadeiro Reino dos Céus.
O Firmamento.
O Arcanjo Miguel prosseguiu, deslocando-se rapidamente logo
acima do mar de nuvens, desta forma criando grandes ondas. As pontas de
523
suas faixas de luz às vezes tocavam a superfície nebulosa, traçando
pequenos sulcos. Não eram necessários palavras nem pedidos. Nós o
seguimos, sabendo que o Firmamento nos chamava. E, uma vez mais senti
uma chama tímida alimentar meu espírito. Nós seguimos o Arcanjo-Sol
através do oceano celeste. Elevamo-nos acima das escarpas e muralhas, e
então, finalmente pousamos num jardim logo adiante da entrada de uma das
grandes torres, imediatamente assumindo nossas formas humanas, como se
o Aspecto Celeste fosse algo extremamente difícil de se manter naquela
situação.
O Arcanjo nos fitou enquanto suas faixas de luz desapareciam e seu
brilho deixava de existir. Assumindo seu aspecto humano, Miguel removeu
seu elmo, revelando um rosto masculino, de formas angulares, sem
qualquer imperfeição ou marca. Seus cabelos eram curtos e lisos, de cor
castanha clara, quase loira. Seus olhos castanhos nos fitaram, e então ele
falou, não como um trovão ou um deus, mas uma pessoa comum, com
preocupações e medos: “Aqui estamos, amigos, para prever o destino e
enfrentar nossos medos. Eu posso sentir as provações pelas quais passaram
e conheço a dor que sentem. Mas vocês ainda não falharam”.
Silêncio. Talvez ele esperasse alguma resposta nossa, ou talvez
apenas nos desse uma pausa para assimilarmos suas palavras. De qualquer
forma, o Primus continuou, enquanto, à distância, eu via dois Arcanjos, um
homem e uma mulher, se aproximarem, caminhando pelo jardim. “Vocês
confrontaram um dos males ancestrais, um ser cujo poder estava muito
além de qualquer limite. E, no entanto, vocês foram bem-sucedidos. A
verdadeira missão não era vencer este mal, mas nos trazer a verdade. E
vocês conseguiram, nos trouxeram a Revelação”.
524
Fitei o Arcanjo, enquanto os outros dois que se aproximavam
finalmente chegaram até. “E o que virá agora?”.
“Nós veremos”, respondeu o Primus, então se voltando aos dois
recém-chegados: “Dêem a eles roupas limpas e providenciem-lhes
descanso”.
“Sim, meu senhor”, respondeu, curvando-se ligeiramente, um dos
Arcanjos, a mulher, que tinha longos cabelos negros e uma pele escura,
vestindo um longo vestido branco, com as costas nuas, e armada com uma
espada em sua cintura e um broquel em seu braço esquerdo. Os dois
pediram que nós os seguíssemos, enquanto Miguel permaneceu parado, nos
fitando com seu olhar penetrante e calmo.
Enquanto caminhávamos em direção à torre, a Arcanja se voltou
para nós. “Perdoem-me a aproximação rude e a incômoda curiosidade, mas
parece que vocês passaram por grandes provações”.
Silêncio. Eu não sabia o que falar. O que dizer? Dizer que
confrontamos os senhores do Inferno? Dizer que tivemos a chance de
salvar a alma de um Primus e falhamos? Não havia o que dizer. Eu sentia
vergonha. “Nós lutamos contra aquilo que não podíamos vencer”.
“E estão vivos para contar a história”, disse o outro Arcanjo, sua
voz mais calma e sussurrante. “Qual é seu nome, Serafim?”, ele perguntou.
“Eu sou Philipe Nicodemus, mas não sou nenhum Serafim”,
respondi. “Sou Querubim, dos Veritatis Perquiratores”.
Ambos pararam para nos fitar. Então, a mulher disse: “Saudações,
Arcanjo Philipe Nicodemus, Serafim dos Veritatis Perquiratores. A
grandeza é difícil de se ver, especialmente quando o espírito se prende à
525
grandeza do adversário. Olhe dentro de si mesmo, e verá que ao chegar
à Montanha Erguida pela Fé, não é mais o mesmo que um dia foi”.
Eu parei, assim como meus companheiros, e fechei meus olhos,
prestando atenção em algo que eu antes não podia sentir. Nós... todos nós...
tínhamos excedido nossos limites. Minha luz interior agora brilhava mais
forte, assim como as luzes de meus companheiros. Eu fitei Karina, agora
uma Abençoada, e depois Achille, agora um Virtude. Samuel e Ansgar
agora eram Tronos, e Al-Malik agora seria chamado de Arcanjo. Fabrizia
se tornava uma Elohim, assim como Lo Wang.
“Perdoem-nos pela rudeza, peço novamente, pois não nos
apresentamos” disse a Arcanjo. “Eu sou Daena, Serafim dos Primordiais,
Guardião de Firmamento, e este é o Arcanjo Tistrya, Serafim entre os
Senhores do Trovão. É uma honra conhece-los”.
Tistrya, o segundo Arcanjo, nos fitou com seus olhos azuis. Sua
pele era morena, escurecida pelo contato constante com a luz do Sol, e seus
cabelos ruivos caíam por sobre seus ombros. Ele tinha uma barba curta, e
vestia pouco além de uma toga e, por cima da mesma, um cinto e um
peitoral de couro. Em sua mão direita, portava uma lança com a lâmina de
prata. “Eles não estão interessados em saudações, Daena”, ele disse ao
companheiro, então se dirigindo a nós, “vocês buscam compreender tudo
pelo que passaram. Eu não sei quais desafios venceram e quais obstáculos
os derrubaram, jovens, mas saibam que estão na Montanha que é Movida
pela Fé, e aqui tudo pode ser curado, seja o corpo ou a alma”.
“Na verdade”, eu interferi, sem conseguir fitar nenhum dos
Arcanjos diretamente nos olhos, “eu gostaria de saber... O que fazem aqui?
O que é o Firmamento? Por que estamos aqui, realmente?”.
526
Daena sorriu, respondendo: “O Firmamento, jovem Serafim, é
um refúgio, mas também um testamento para o poder de nossos propósitos.
Aqui não é o Éden, mas algo à parte, um local criado para refletirmos e
encontrarmos nossos propósitos. Eu e Tistrya, como muitos outros,
carregamos eras de experiência conosco, a ponto de nos sentirmos
pequenos diante de tudo o que vimos e presenciamos. Estamos aqui para
descansar, até que sejamos necessários uma vez mais para aqueles que
ainda não precisam descansar. Mas a terceira pergunta, meu amigo, apenas
Sheherevar-chamado-Miguel pode responder, mas nós podemos oferecer-
lhes um pouco de descanso, para talvez refletirem na resposta”.
Baixei a cabeça, lembrando de um título que ouvi há muito tempo.
Sem querer, eu sussurrei: “Prisci”. Notando que a palavra escapara de meus
lábios, expliquei, talvez a mim mesmo, o significado da palavra: “Os
Antigos que Esperam”. Daena sorriu.
“Esperam pelo quê?”, perguntou Absolon.
“Que sejamos necessários”, respondeu Tistrya, virando-se para a
torre adiante. “E, enquanto a hora não chega, nós aqui vivemos nossa
eternidade, esperando o momento de juntar-nos àqueles de nosso tempo,
nos corredores da memória e do tempo”.
“Vocês esperam pela morte?”, perguntou Lo Wang.
Daena apenas sorriu, enquanto Tistrya caminhou em direção à
torre. A construção parecia brilhar sob a luz prateada da lua, erguendo-se a
quase cem metros do solo. Eu ergui minha cabeça para fitar o topo do
Firmamento, e vi aquela torre branca se destacar no céu estrelado. Era tão
pequena... parecia tão simples. E ainda assim, não conseguia imaginar algo
mais grandioso ou mais digno para ser o refúgio dos que vieram antes de
527
nós. Imagens de Oostegor vinham à minha mente e, inevitavelmente,
tornavam aquela construção minúscula por comparação. Mas, se Oostegor
era ostentação, tristeza e trevas, a pequena torre era banhada pelas luzes do
mundo, destacando-se na escuridão como um refúgio e não como um
palácio. Ela parecia frágil e bela, sublime e inspiradora. As qualidades de
algo pelo qual eu lutaria e pelo que eu morreria. Talvez ainda houvesse
algo a aprender ali. Talvez, apesar da amarga derrota, ali em frente
estivesse a última revelação que precisaríamos. Talvez ainda houvesse algo
a fazermos. “Vamos?”, ouvi Daena pedir, me tirando de minhas
divagações. Baixando a cabeça, a fitei nos dar as costas, seguindo o
silencioso Tistrya pelos caminhos que atravessavam os jardins do
Firmamento.
“Que escolha temos?”, perguntou Samuel Fulmen a si mesmo,
levando a mão ao pequeno crucifixo que levava numa corrente presa ao
pescoço.
“Ficar aqui?”, murmurou Al-Malik. “Há apenas derrota aqui, nada
mais. Mesmo neste lugar santo, há trevas nos céus, refletindo nossas almas
alquebradas. Mas se é desígnio de Deus nos forçar a caminhar em frente,
então eu seguirei em frente, não importa o quanto minhas pernas doam e
meu corpo fraqueje”. Tendo dito isso, o agora Arcanjo dos Cuique Suum
deu o primeiro passo.
“Caminhamos por nossa própria Via Crucis. Algo melhor nos
espera”, disse Samuel, que então segurou a mão de Karina, e ambos
prosseguiram, seguindo Al-Malik.
Os outros os seguiram, eu entre eles. Absolon e Fabrizia também
seguiam juntos, enquanto Lo Wang e Ansgar vinham atrás de todos.
528
Ambos vestiam trapos ensangüentados, mostrando rasgos causados
pelas garras de Shiva. Na mão direita, Lo Wang portava sua lâmina. Na
mão esquerda, ele levava o que restava de sua máscara quebrada. Ao seu
lado, e tão silencioso quanto o Kage, o Venator prosseguia com um olhar
distante, como se sua mente ainda estivesse na Tempestade que ainda rugia
no mundo dos vivos. Eu olhei mais uma vez para a torre à frente, e
imaginei Asphael Veritas aqui, entre outros antigos milenares. Pensar no
Arcanjo fez com que lágrimas viessem em meus olhos. Lutando para conter
uma nova onda de tristeza eu segui em frente. Nós oito seguíamos em
frente, cada um lutando contra a fraqueza que nos tomava. Percorrer
aqueles caminhos em outra ocasião seria uma glória sem igual. Neste dia,
porém, era um esforço debilitante.
Por entre os jardins caminhávamos, e os portões da torre se abriam
adiante. Outros Arcanjos guardavam os portões, empunhando lanças, mas
vestindo apenas togas brancas e coroas douradas. Daena e Tistrya pararam
logo além dos portões, virando-se para fitar nossa silenciosa caminhada.
Meus pensamentos se silenciaram quando atravessei o umbral, fitando o
interior da torre. Mais uma vez minha mente trouxe imagens vistas na
Cidade Eterna de Lúcifer. Como em Oostegor, um grande salão de entrada
nos acolhia, longo e largo o suficiente para acomodar centenas. Grandes
colunas se erguiam até o teto, que estava a mais de seis metros de
comprimento. Com o comprimento de centenas de metros, o salão mais
parecia um grande corredor, e escadarias levavam a um segundo andar, que
era uma sobreloja, da qual era possível ver toda a movimentação que
ocorria no salão abaixo. No segundo andar, havia portões, que levariam aos
andares superiores.
529
“Isto é... como Oostegor”, murmurou Ansgar, “como pode
ser...?”.
“Oostegor?”, murmurou Samuel, sendo o único de nós a não
percorrer os corredores do lar de Lúcifer Estrela-da-Manhã.
Eu fitei ao redor, meus olhos lacrimosos fitando as paredes e os
Arcanjos que nos observavam. Os vitrais multicoloridos pareciam emitir
luz própria, e as paredes brancas eram adornadas com plantas e flores. Um
tapete vermelho se estendia por todo o comprimento do salão, levando do
portão de entrada a um outro portão, no extremo oposto. Acima do portão
oposto, porém, estava uma tribuna, com 14 cadeiras, e acima das mesmas,
num nível superior, nove tronos, dispostos em grupos de três. Ainda acima,
num terceiro nível, um único trono, maior e majestoso, destacava-se acima
de todos os outros.
“Não, isto não é como Oostegor”, murmurei.
“Oostegor é um pálido reflexo deste lugar”, disse Al-Malik,
“Caminhamos por Al-Sirat e Dar Al-Thawab está diante de nós! Tirem seus
calçados, pois pisamos no mais sagrado dos lugares!”. Imediatamente,
lágrimas caíram dos olhos do Malaki, como se finalmente não pudesse mais
conter as emoções dentro de si. Ele se abaixou lentamente, liberando os pés
dos sapatos que calçava, e então pisando descalço no tapete vermelho. Em
respeito, fiz o mesmo, e notei que os outros logo repetiram o ato, talvez
apenas por não saberem como reagir diante do local em que nos
encontrávamos.
Enquanto retirávamos nossos calçados, percebi um outro Arcanjo
se aproximar de Daena e Tistrya. “Rashnu”, murmurou Daena, curvando-se
ligeiramente diante da aproximação dele. Tistrya deu passagem ao ancião,
530
que então parou diante de nós, analisando-nos cautelosamente. “Eu sou
Yazata Rashnu, Seguidor de Vohuman, e eu vejo que são muitas as
respostas que buscam”.
“Eu sou o Arcanjo Philipe Nicodemus, Serafim dos Veritatis
Perquiratores”, respondi, tentando fita-lo, mesmo com meus olhos cheios
de lágrimas. “Nós buscamos encontrar o sentido de tudo pelo que
passamos”.
“Não”, respondeu Rashnu, seus olhos me analisando friamente,
“vocês buscam aquilo que os mantém em pé. Sigam adiante, ele os espera”.
“Quem nos espera?”, perguntei.
“Há julgamentos à frente, Arcanjo Nicodemus”, disse Rashnu,
dando-nos passagem. “Lá vocês encontrarão seu destino”.
“Por que vocês têm sempre de falar como se tudo fosse um
enigma?”, perguntou Absolon, erguendo a voz.
“Ele tem razão”, disse Samuel, apertando a mão de Karina.
“Precisamos saber o que vai acontecer. Por que esconder tudo?”
“Não somos peões num tabuleiro de xadrez”, continuou Ansgar.
“Precisamos saber que opções temos e quais são as conseqüências de
nossas ações! Não podemos mais caminhar cegamente. Estou cansado disso
tudo!”.
“Vocês conhecem suas opções”, disse Rashnu. “Ignorância é não
reconhecer isso. Vocês podem partir ou podem prosseguir”.
“Prosseguir? Rumo ao desconhecido?”, indagou Samuel. “Que
escolha há nisso?”.
“Não é assim em todas as grandes decisões de nossas vidas?”,
perguntou Tistrya. “Vocês podem partir e desistir. Ou podem continuar, e
531
aí terão de confrontar vitória ou derrota. É apenas uma questão de
perseverança. Onde está sua fé, Celestial? Não carrega em seu pescoço o
símbolo de seu rei?”.
Samuel Fulmen levou a mão ao pequeno crucifixo que carregava
preso ao pescoço. Baixando a cabeça, ele pediu desculpas.
“Vocês querem respostas, mas eu não as tenho”, disse Rashnu,
“mas adiante há respostas, mesmo que não vejam aquelas que vocês
buscam. Eu sinto suas mentes em conflito, desacreditando os motivos pelos
quais lutaram. Esse é o trabalho do inimigo, o toque corrosivo do Inferno”.
Eu olhei para o portão no lado oposto do grande salão. Feito de
madeira e adornado com ouro e prata, eu pude sentir um poder maior
emanar dali. Eu fechei meus olhos, tentando apenas sentir, tentando
conhecer aquela força. E, nas trevas, eu vi. À frente havia uma figura de
fogo e luz, cercada de vida e água purificadora. E todo aquele poder nos
chamava, exercendo uma atração sutil e gentil. O toque de Al-Malik em
meu ombro quebrou minha concentração, porém.
Al-Malik nada disse, apenas tomou a frente com uma ansiedade
incomum. Rashnu sorriu.
“Uma vez um homem me contou uma história, há muito tempo
atrás”, disse Ansgar, olhando o Malaki. “Sobre como guerreiros viviam
para morrer e que suas missões só eram cumpridas quando morriam em
batalha. E como eles caíam sorrindo, pois sabiam que viveram e morreram
por uma causa”.
“O que quer dizer?”, perguntou Absolon.
“Que ainda não morremos”, disse Ansgar, pondo-se a seguir Al-
Malik.
532
Absolon baixou a cabeça, pensativo, e então caminhou,
puxando consigo, gentilmente, Fabrizia.
Olhei para os que ainda ficavam. “Vão ficar aí?”, perguntei a
Samuel, Karina e Lo Wang.
“Estamos esperando nosso líder”, disse Lo Wang.
Sorri reflexivamente, sem pensar. Minha mente pesava, não
desejava sorrir. Mas por um instante eu sorria, mesmo sem perceber. Então,
caminhei também pelo grande salão. Lo Wang pôs-se a meu lado. Por um
momento, eu o fitei e comecei a analisa-lo. Como sempre, calado e
taciturno, o Kage prosseguia com determinação incomum. Pela primeira
vez, comecei a questionar o que realmente o fazia seguir em frente... De
todos, ele foi o que menos demonstrou sentimentos ou objetivos, se
comportando apenas como um soldado leal. “Wang”, chamei-lhe a atenção.
“O que deseja, Nicodemus?”, ele perguntou.
“Antes de invadirmos a reunião de vampiros, você disse em
comemorar e beber”.
“E ainda faremos isso, Nicodemus, quando tudo isto terminar”, ele
respondeu.
“E como espera que tudo isto termine?”, perguntei.
“O caminho do sábio não é meu caminho, Nicodemus. Eu não sei,
esta é uma resposta que se você não tiver, eu não terei. Eu não me preocupo
com o fim, apenas com o momento atual. Só há lamentos no passado e
incerteza no futuro. O tempo de agir é agora, para não lamentarmos
depois”.
“Entendo”, respondi.
533
“Mas quando isso terminar, eu prometo uma grande
comemoração, com muitas luzes, música e dança”, ele continuou.
“Isso não parece muito com você”, eu disse.
“Aqui eu sou um mascarado, Nicodemus, uso a máscara de um
demônio e comando trevas. Mas para saber pelo que eu luto, eu preciso
também conhecer o oposto. Para usar as trevas como arma, eu preciso saber
o que é luz”.
“Você disse que não é um sábio, Wang. Não é o que vejo”.
“E não sou. Nenhuma dessas palavras é minha. Eu sou um
estudante, um servo. Morrer por uma causa é o único futuro que tenho, a
única maneira de pagar pelos crimes do passado. Então, que eu tenha uma
vida gloriosa e plena até lá”.
“Você pode sentir o que há à frente, Wang?”, perguntei, mudando o
assunto, mas ainda pensando nas palavras do Kage. De que crimes ele
poderia estar falando. Culpas do passado, ou crimes reais, cometidos
durante seu passado humano.
“Sei apenas que há um deles lá”, ele respondeu, “e que a cada
passo, mais vontade eu sinto de chegar àquele portão”.
Olhando ao redor, eu via os outros Arcanjos presentes, observando-
nos, vendo nossas faces cansadas e sujas de lama, cabelos ainda molhados
pela tempestade que ainda rugia no mundo dos vivos. Quanto mais o portão
adiante se aproximava, mais minha mente se enchia de dúvidas. Ainda
assim, menos minhas pernas pesavam, e com mais forças eu prosseguia.
“Essa é a força da fé”, a voz de Rashnu ecoou, vinda do outro lado
do salão. Ainda na mesma posição de antes, Rashnu agora estava tão
distante, mas sua voz ainda era forte como um trovão. “Sorriam ante as
534
dificuldades, ou irão chorar! A eternidade é de vocês para viverem e
consertarem seus erros, ou para lamenta-los! Mas, por enquanto,
preocupem-se com o julgamento que os espera! Entrem de cabeças
erguidas. Fitem os olhos do juiz, não seus pés!”.
E, tendo o Arcanjo dito isso, o som de uma tranca metálica sendo
aberta reverberou, e o portão à frente se abriu, lentamente. Além dos
portões, havia uma penumbra gentil, quebrada pela luz do luar que entrava
pelos imensos vitrais. O som de água encheu nossos ouvidos, mas não era
uma terma que estava adiante. Era um jardim interno. Adentramos aquele
lugar com o olhar maravilhado, observando as árvores e flores, vibrando
com vida. Nas paredes, esculturas em altos relevos erguiam jarros, por onde
jorrava água. A água corria por canais por entre o jardim. Caminhos
também percorriam aquele lugar, mas todos passavam por ou levavam a
uma estrutura no centro: uma abobada erguida por colunas cilíndricas,
erguidas em pedra branca. Tochas iluminavam a pequena estrutura,
circundando-a e inundando-a de luz.
Os portões atrás de nós se fecharam, isolando-nos do resto da torre.
A maioria do grupo se virou para trás ao ouvir o som dos portões se
fechando, mas eu, Al-Malik, Lo Wang e Fabrizia mantivemos nossos olhos
centrados naquela estrutura adiante.
“Bem-vindos”, disse uma voz masculina, vinda da escuridão do
jardim. Viramos para fita-lo, e por um momento meus lábios se moveram,
prestes a questionar a identidade do homem. Nenhuma palavra pôde sair de
minha boca, porém. Nenhuma apresentação se fazia necessária.
Ele veio atravessando uma ponte de madeira, que atravessava um
dos canais. “Eu os estava esperando”. Nenhum de nós tentou usar qualquer
535
poder para ver na escuridão. Aquilo não era necessário. Ele se
aproximava, conforme nossos olhos se acostumavam com a luz prateada,
que parecia ampliada pelos vitrais prateados. Não muito alto, mas vigoroso,
o homem vestia uma toga cinzenta, com detalhes prateados. Caminhava
com as mãos unidas à frente do peito, e seus olhos negros pareciam
transpor escuridão e invadir nossos pensamentos. De barba grossa, já
grisalha, e cabelos curtos, ele parecia nos conhecer. Eu não tinha dúvidas
que, com apenas um olhar, ele conhecia nossos pensamentos, nossas
aflições, nossas memórias e, principalmente, o peso que carregávamos. Não
poderia haver segredos para a mente de Vohuman-chamado-Fanuel, Lorde
dos Cuique Suum.
Al-Malik pôs-se de joelhos, mas antes que se curvasse diante do
Primus, este pediu que se erguesse. “Somos todos iguais sob os céus, Abd
Al-Malik. Somos todos servos aqui”, disse o Primus ao Malaki. “Aos
demais, eu sou Fanuel Vohuman, e sinto que há algo que desejam me
perguntar”.
O Primus se calou, esperando que perguntássemos. Nós nos
fitamos, como se cada um esperasse que outro fizesse uma pergunta.
Quando os olhos dos demais me fitaram buscando minha liderança, eu
ignorei meu temor, dei um passo à frente, ficando frente a frente com o
Primus. Ainda assim, eu não sabia o que perguntar. Há poucos momentos,
minha mente estava cheia de dúvidas, mas naquele instante, era como se
todas fossem pequenas.
Então, com seu olhar penetrando em meus pensamentos, o Arcanjo
Fanuel disse: “Todas as respostas estão em vocês, Arcanjo Nicodemus.
Suas almas se questionam se falharam. Vocês não falharam, pois a busca
536
ainda não terminou. Vocês passaram por uma jornada de
descobrimento. Foram escolhidos por terem um potencial gigantesco, mas
este potencial só pode se manifestar se vocês puderem compreender a
vastidão das forças que enfrentam e o verdadeiro sentido de sua existência.
Vocês sempre souberam que os poderes do Inferno eram grandes. Mas
tinham alguma idéia do que estavam realmente enfrentando?”
Ninguém respondeu, afinal, todos sabíamos a resposta. Ouvir falar
de poder divino é simples, imaginar as forças do inimigo como poderosas é
comum. Em nossa existência, sempre lutamos contra esses poderes, mas os
víamos como lendas distantes, algo que jamais encontraríamos
pessoalmente. Mas, após sentir a própria realidade tremer e presenciar a
insanidade da natureza causada por uma manifestação limitada de um dos
Grandes Lordes, nós finalmente tínhamos dado conta de nossa pequeneza,
de nossos limite.
“Eu tenho certeza que agora compreendem o poder do inimigo.
Vocês puderam senti-lo, tentaram detê-lo. Lutaram contra o invencível e
foram derrotados, mas não falharam. Só teriam falhado se esse confronto
tivesse arrancado sua força de vontade, se tivessem desistido e abandonado
aquilo que sabiam que seria um peso grande demais para vocês. Mas,
então, pergunto... se compreendem o inimigo, podem finalmente perceber o
que é ser um Celestial?”.
Silêncio. Minha mente pensava em dezenas de respostas, nenhuma
delas satisfatória. Eu podia tentar explicar, conceituar, mas nada surgia que
não fosse imperfeito ou incompleto. “Eu não sei”, respondi, “mas Asphael
Veritas sabia”.
537
Fanuel sorriu por um instante. “E qual é a diferença entre vocês
e ele?”.
Mais uma vez, eu não sabia exatamente o que responder. Nenhum
de meus companheiros soube a resposta também. Asphael Veritas foi o
maior homem que conheci em um século e meio de existência. Eu não sei
exatamente o que diferencia um Arcanjo e um homem, mas eu sabia que
não era como Asphael. “Ele parecia agir com clareza de propósito”, eu
disse, “e, por mais poderoso que fosse, era como se fosse um homem
comum. Eu me sentia como uma criança perto dele, perto de tamanho
poder, mas ele não agia como se fosse melhor do que eu. Ele não hesitava.
Ele não tinha medo. Ele... tinha uma sabedoria tão grande”.
“É aqui que começa o meu julgamento sobre vocês, Philipe
Nicodemus”, disse o Primus. “Sabedoria... poder... São aspectos que apenas
o tempo e a experiência podem ensinar. Vocês têm o poder e a sabedoria de
acordo com suas idades e experiências. E você está errado. Asphael tinha
medos. Ele esperava, estudava, agia com cautela. Isso é ter medo, e é
necessário. Mas ele de fato não hesitava. Ele não tinha dúvidas quanto a
seu próprio valor, não se via nem como algo acima do que realmente era,
nem como algo abaixo. Ao contrário de vocês”.
“Do que está falando?”, perguntou Samuel, complementando: “Nós
sabemos exatamente o que somos capazes ou não de fazer! Sabemos nossas
limitações!”.
“Não sabem, pois se julgam incapazes a cada momento”,
respondeu o Primus. Então, com um dedo acusador, apontou para Samuel.
“Samuel Fulmen, observe seu passado. O que você foi em vida? Quantas
vidas tirou, quantas casas incendiou? A cruz vermelha que carregava em
538
seu peito, o que realmente representou? Você foi um saqueador em
nome de Deus, e nada mais. Se pudesse escolher, sabendo disso tudo, você
se consideraria digno de ser um Celestial?”.
Os outros olharam Samuel, espantados. O Sancti se calou por um
instante. “Eu não fui exatamente isso”, disse Samuel, baixando a cabeça em
vergonha, “Eu não fiz essas coisas por mal. Eu imaginei que seguia a
vontade de Deus”. Samuel segurou o crucifixo em seu pescoço.
“Não são essas as palavras que você usa para se julgar, Samuel
Fulmen. Eu apenas repeti os mesmos termos que flutuam em sua
consciência. Eu apenas olhei as culpas que carrega. Você acaba de dizer a
verdade, mas essa verdade você não costuma repetir a si mesmo para se
confortar. Oito séculos se passaram desde o último de seus crimes, e a cada
dia, você se torna mais do que era. Resta apenas abandonar essa culpa, mas
sem nunca esquecer os erros do passado. Agora, me responda. Naquela
época, sabendo de todos os seus crimes, você se consideraria digno de ser
Celestial?”.
“Não”, respondeu Samuel.
Então, o dedo acusado de Fanuel se direcionou a mim. “Philipe
Nicodemus, e quanto àquilo que foi em vida? O que seu desejo por
conhecimento causou a todos em seu redor? Que tipo de coisas liberou, e
que tipo de sofrimento causou? Você se recorda de sua culpa? Recorda-se
de como terminou seus anos de vida?”.
Imagens do passado vieram à minha mente. Imagens que eu
preferiria não lembrar. Minhas experiências com o arcano, meus
envolvimentos com grupos perigosos. Tudo por sede de conhecimento. Eu
tinha boas intenções naquela época, queria ajudar meu pai, salva-lo de algo
539
que a ciência não podia curar. E, em minha ignorância, fui usado.
Causei sofrimento. Tentei repara-lo. Vivi como um fugitivo desde então.
“Outros entre vocês se subestimam da mesma forma”, disse o
Primus. Fanuel fitou Ansgar: “Alguns de vocês carregam as mesmas
dúvidas e crimes que Samuel”. O olhar dele então encontrou Karina e
Absolon: “Outros se julgam incapazes por terem fugido de seus problemas
em vida, por se imaginarem fracos ou inúteis diante de algo maior”. Por
fim, ele encontrou Lo Wang: “E alguns cometeram crimes cruéis, até
mesmo mataram sabendo o que faziam.”.
“E ainda assim,” interrompeu uma voz feminina, suave e plácida,
“todos estão aqui, melhores do que foram, provando que não houve erro
algum ao terem sido escolhidos para serem o que são”.
Viramo-nos de repente, tentando ver quem se aproximava por trás
de nós. Antes de me virar, pude perceber um sorriso em Lorde Fanuel. E
após me virar, encarei aquela que agora vinha em nossa direção. Vestia-se
de branco, usando um longo vestido que descia até seus tornozelos. Os
braços estavam nus, mas adornados com jóias douradas, e seus olhos
verdes pareciam se destacar na penumbra. Seus cabelos vermelhos,
encaracolados, caíam abaixo dos ombros, e sua pele clara não tinha
qualquer imperfeição. Por trás daquela face frágil e sorridente, porém,
pulsava poder além do de qualquer um de nós, exceto Fanuel. Mas onde o
poder de Fanuel, Lorde da Justiça, irradiava-se como uma correnteza
bravia, a aura de Rachel, Primus dos Líberes, nos tocava como uma brisa
suave e reconfortante.
“Entendem agora porque foram escolhidos para a busca?”, disse a
Primus, sua face esboçando um sorriso gentil, “A sabedoria de Metatron
540
não tem limites, sua luz reflete-se apenas na alma verdadeira de cada
pessoa. Os Guardiões viram em vocês o que vocês próprios não conseguem
ainda ver: seu valor, sua capacidade, seu potencial. Se foram escolhidos
para a dura missão que cumpriram, então eram capazes de realiza-la. Como
negar isso?”.
“Vocês ainda pensam como os mortais que foram, não como os
imortais que agora são”, disse Lorde Fanuel, “E ainda que a humanidade
seja a nossa herança e nossa maior virtude, não somos mais seres
humanos”.
“Como assim?”, perguntou Fabrizia, talvez assustada.
“Não podemos abandonar nosso lado humano”, respondeu Fanuel.
“É o que nos faz sentir, sonhar, ter esperanças. Mas não podemos mais
pensar como os mortais que um dia fomos. No reino da vida, as pessoas
lutam para sobreviver. Deles é a luta diária por alimentação, por amor, por
conforto, pela própria família. Deles é o mundo de incertezas, de futuros
desconhecidos. Deles é uma sociedade de falsidades e enganações, onde o
divino é usado para controlar massas e o carnal é usado para satisfação
pessoal”.
“A humanidade é exatamente como este jardim”, disse Rachel, “é
cheia de vida e beleza, mas esta beleza é escondida pela escuridão da noite.
Mas olhem para o leste”.
Eu olhei, e vi os vitrais se iluminarem vermelhos, conforme o Sol
começava a nascer no horizonte além do mar de nuvens. Os vitrais
pareciam expandir a luz, sem no entanto ofuscar nossas vistas, e a luz
vermelha iluminava uma parte do jardim, mostrando árvores frondosas e
flores magníficas e revelando o movimento de pequenos animais.
541
Fanuel continuou: “Vocês não são mais mortais. A luta pelo
próprio viver não é mais de vocês. Vivem num mundo à parte, onde todos
são iguais, onde os prazeres carnais são menos importantes que os
alimentos do espírito. Vocês não vivem mais para si mesmos, mas pelos
outros. Vocês vivem por uma causa, mas segui-la jamais será um caminho
fácil, e sim um verdadeiro sacrifício”.
“Mas...”, interrompeu Ansgar, “eu sempre imaginei estar seguindo-
a. Eu sempre estive pronto para morrer por esta causa”.
“Seguindo-a você esteve”, disse Rachel, sua mão gentil tocando o
ombro do guerreiro, “mas não pedimos que você morra por uma causa. O
que pedimos é ainda maior e mais difícil”.
“Morrer por uma causa é o que um mortal faria”, disse Fanuel,
“Ele se desprende de sua vida, imagina-se pequeno ante ao que precisa ser
feito, e se joga ao esquecimento, sem realmente pensar nas conseqüências.
É o exemplo de fanatismo e cegueira que engana as boas intenções. É o que
muitos de vocês fizeram em vida, e o que ainda os faz se culparem até hoje.
O sacrifício que pedimos não é morrer por uma causa. Vocês devem viver
eternamente por uma causa”.
“Isso não significa abandonar o que são”, completou Rachel, “Não
pedimos que abandonem suas identidades, que se entreguem à missão com
a disposição de morrer. É preciso entender que são parte dela, que cada
ação, cada pensamento de vocês importa. A tristeza que corre em vocês é
compreensível. Haverá um tempo para lamentar por toda essa frustração:
mesmo a vida eterna tem seus momentos para a reflexão... Mas agora vocês
ainda precisam continuar lutando”.
542
“É este o conhecimento que Asphael Veritas tem. Quando ele
se sacrificou por vocês, ele não estava disposto a morrer, mas a viver”,
disse Fanuel.
A luz do Sol agora já tomava quase todo o jardim. Os vitrais agora
brilhavam dourados, e a luz se expandia por toda a câmara, revelando sua
vastidão. Adiante, além da estrutura central, eu pude perceber um conjunto
de piscinas, formadas pelos canais que atravessavam o jardim. Pequenos
animais passeavam pelo jardim, se alimentando das plantas. O vapor de
água subia das piscinas, indicando que este lugar era de fato uma espécie de
terma... Mas ao contrário das termas de Lúcifer, este lugar pulsava com
vida.
E, neste momento, o som dos portões de entrada se repetiu. Os
portões se abriam, revelando o Arcanjo Miguel, ainda com sua armadura.
“A hora chegou”, disse Miguel.
Fanuel caminhou na direção de Miguel. Rachel fez menção de
segui-lo, mas antes se voltou a nós: “O caminho que todos seguimos é um
caminho de sacrifício e dedicação. Mas lembrem-se: haverá recompensas.
Vocês são seres divinos, sua missão é proteger a humanidade. E cada
sorriso que receberem, cada vez que a missão for cumprida, essa será a sua
recompensa, pois se sentirão plenos. Sirvam os menores para ser grandes,
sirvam para serem plenos. Nossa eternidade é de servidão a uma causa. E
ela dará todas as forças e recompensas que precisam”. As palavras dela
eram simples, mas de alguma forma, de alguma maneira inexplicável, seu
sorriso era contagiante. Eu podia sentir o poder dela nos tocar, e era como
se nós nos rejuvenescêssemos. “Agora, preciso ir”, ela disse.
“O que está acontecendo?”, perguntei.
543
“Uma reunião”, ela respondeu. “Venham ver”.
Seguimos a Primus Rachel até o portão, onde Miguel e Fanuel já
estavam. E, com espanto e admiração, nós os vimos. Eles estavam todos
ali, adentrando o salão-corredor, lado a lado como iguais. E vinham em
nossa direção.
Num dos extremos, vi Raguel, Primus dos Xamãs, um homem
poderoso e alto, de cabelos selvagens e barba comprida, ambos ruivos,
vestindo peles de animais. Caminhando descalço, ele portava um machado
e um arco às costas. Seu olhar era selvagem, mas parecia se tornar dócil ao
fitar aquela que pertencia a seu Clero: Fabrizia.
Ao seu lado, caminhava um guerreiro de cabelos castanhos e pele
morena, trajando um manto negro e capa vermelha. Às suas costas, pendia
uma poderosa espada, quase tão comprida quanto o homem era alto. Seus
olhos negros fitaram Ansgar por um momento, e um sorriso de aprovação
surgiu em sua face ao vê-lo. Eu sabia que o homem não era outro senão
Gabriel, Primus dos Venatores.
Os quatro ao lado de Gabriel eu pude reconhecer imediatamente.
Helammelak, Melkel, Narel e Meleyal, o Conselho Veritas. Eles vinham
nossa direção, representando o Clero dos Veritatis Perquiratores.
Helammelak me fitou, fazendo um meneio com a cabeça. Os demais
sorriram ao me ver.
Uma figura sombria estava ao lado dos Veritas, trajando uma
armadura metálica negra, carregando seu elmo sob o braço direito. Suas
feições eram esguias, sua pele alva como a neve, e seus cabelos negros
caíam sobre seus ombros. O olhar, porém, brilhava em poder e sabedoria.
Minhas memórias me levaram de volta a Dur Sharrukin, pois aquele
544
homem... Era ele! Ele era o líder do pequeno bando de Celestiais que
avançou à frente em Dur Sharrukin, dois mil anos atrás! O rosto familiar
que surgiu nas visões do passado, mas agora tão mudado! Aquele era
Azrael Veritas, o Senhor dos Mors Sancta.
Ao lado do Senhor dos Mortos, vinham uma figura trajando as
cores vivas de um quimono vibrante. Seus olhos puxados nos fitaram,
analisando-nos cuidadosamente. Os cabelos negros, lisos e compridos eram
presos num rabo-de-cavalo no topo da cabeça, e dali caíam até a metade de
suas costas. Feng-huang-chamado-Bishamon, Primus dos Hun Xian,
caminhava a passos cuidadosos, seus movimentos eram perfeitamente
harmônicos e sutis, como se ele não tocasse o chão ao caminhar.
Assim como Bishamon tinha uma figura sombria à sua direita, ele
também tinha outra à esquerda, pois aquele que vinha a seu lado vestia um
manto pesado e negro, que cobria-lhe da cabeça aos pés. As mãos
permaneciam unidas à frente do corpo, mas ambas desapareciam no interior
das mangas largas do manto. Ele caminhava de cabeça baixa, coberta por
um capuz. E no interior do capuz, as sombras eram tão densas que sua face
se tornava invisível. Ainda que fosse treva, aquele homem, que só podia ser
o Lorde do Destino, Si-ming, não projetava sombra alguma. Ao não
projetar sombras, o Primus dos Kage era cercado de luz à sua própria
maneira.
Raziel, de pele escura e cabelos negros encaracolados, era o
seguinte. Vestia-se como um homem moderno: um terno negro e
caminhava calmamente. Como em todos os momentos em que eu o vira
antes, Raziel, Primus dos Tecnoanjos, não chamava a atenção. Ainda
545
assim, naquela forma humana, caminhava um ser divino com uma
mente tão vasta que eu não podia compreender totalmente.
E, ao lado do Senhor das Invenções, caminhava aquele que
representa o próprio toque divino. De cabelos loiros e olhos azuis, Hordad-
chamado-Rafael caminhava silenciosamente e seriamente. Seus olhos
emanavam um sutil brilho dourado. Ele se vestia como um monge, com
apenas uma batina simples, de cor escura. Em seu pescoço, como Samuel,
ele portava um crucifixo.
E, por fim, no extremo oposto ao de Raguel, vinha Ariel. Sua face
mostrava um certo desconforto com a situação, seus olhos negros
perscrutando o ambiente ao redor, mas seus lábios finos sorriam. Os
cabelos negros estavam presos em uma trança que chegava a sua cintura.
Ela vestia-se de uma forma extremamente simples: apenas uma saia de
tecido fino, que chegava a seus tornozelos, e uma blusa vermelha que
deixava sua barriga à mostra. Ao ver Karina, a Primus dos Superviventes
sorriu ainda mais.
Fora os Primus, Azrael, o Conselho Veritas e nós, não havia mais
ninguém no grande salão. “Retornem ao jardim, por favor”, o Arcanjo
Miguel nos pediu. “Temos muito a discutir aqui. Daena e Tistrya já os
esperam junto às termas, com roupas novas. Descansem, reflitam. Logo os
chamaremos”.
Meneei a cabeça, acatando o pedido do Primus. Retornando ao
jardim, fui seguido pelos demais. O portão se moveu, fechando-se atrás de
nós. E então, nós oito nos entreolhamos, sem nada dizer. Os Primi tinham
se reunido. Todos eles, como só fizeram uma única vez em toda a história.
E isso foi quando as hordas infernais invadiram o Éden, tomando Prístina e
546
cercando Libertatis. Apenas quando o inimigo esteve tão perto de nós.
Desde a Quarta Grande Guerra, tal evento jamais tinha se repetido.
“O que faremos agora?”, perguntou Karina.
“Descansar e refletir”, respondeu Al-Malik. “Acredito que agora
não está mais em nossas mãos. Esperemos”.
Fabrizia olhou na direção das termas e então puxou a mão de
Absolon. “Quem é ele?”, apontou a Xamã.
Um homem solitário nos esperava à beira das termas, mas não era
Tistrya. Sequer era um Celestial. Ele se vestia de branco, tinha cabelos
negros, ligeiramente encaracolados, e barba. Sua pele era morena, e
caminhava descalço. Carregava uma toalha em suas mãos, e ao seu lado
estavam, sobre um assento, roupas limpas e dobradas.
“Eu não sei quem é”, respondi, “mas Daena e Tistrya devem tê-lo
mandado nos entregar roupas limpas”.
Al-Malik se mostrou o mais curioso, caminhando na direção do
homem. Nós seguimos o Malaki, também curiosos. Chegando até o
homem, Al-Malik o saudou: “Olá, meu senhor, o que o traz aqui?”.
“Eu pedi que me concedessem a honra de conhece-los”, disse o
homem, “portanto trouxe roupas limpas e gostaria de servi-los, limpando
seus rostos e lavando pés. Seria uma honra para mim”.
“Agradecemos por seus serviços”, disse Samuel, “mas não é
necessário que limpe nossos rostos ou lave nossos pés”.
O homem sorriu. “Eu faço questão, meu senhor, é um prazer ajudar
que heróis como vocês se restabeleçam”.
Eu analisei o homem. Era uma alma pura, não um Celestial, e nem
uma gota de poder emanava dele. Ainda assim, ele trazia um olhar calmo e
547
sábio, e falava de uma maneira gentil, mas não servil. “Ajude-me a me
limpar, por favor, bom homem”, pedi, “mas gostaria de saber seu nome
antes”.
“Chamam-me Keter, senhor Arcanjo”, respondeu o homem, se
aproximando com a toalha em mãos. Baixei a cabeça, e gentilmente ele
limpou meu rosto, removendo a lama que ainda o impregnava.
A partir daí, Keter se introduziu melhor, revelando viver no
Firmamento há muitos séculos, tendo a honra de servir os maiores Arcanjos
e conhecer os Primi que visitavam Firmamento freqüentemente. Enquanto
isso, ele limpava nossos rostos. Depois, se afastou para pegar um balde e
uma toalha molhada.
Ao ver Keter se afastar, Ansgar se aproximou de mim. “O que os
Primi podem estar discutindo?”, perguntou o Venator.
“Não sei”, respondi.
“Após pensar um pouco... Eu acho que não fiz o suficiente durante
nossa missão, Nicodemus. Eu hesitei muitas vezes, como Fanuel disse. Eu
podia ter feito melhor”, disse Ansgar.
“Não é a hora de discutirmos isso, Ansgar”, disse Al-Malik. “Não é
hora de ficar lamentando mais. Vamos pensar no futuro agora. Ainda não
terminou”.
Neste momento, Keter retornava, trazendo consigo um balde cheio
d’água. “Não terminou realmente. Os Primi podem estar discutindo seu
futuro, mas não são eles que o determinarão. Os Primi têm a função de
inspirar, não de agir. O destino do mundo está sempre nas mãos dos
pequenos”.
Fitamos Keter. “O que sabe sobre os Primi?”, perguntei.
548
O homem pediu que eu me sentasse, pois lavaria meus pés.
Tentei recusar, mas Keter insistiu, dizendo que responderia a pergunta se
eu me sentasse. De joelhos, enquanto usava a toalha molhada para tirar o
barro de meus pés, Keter respondeu: “O destino dos homens está na mão
dos homens. Eles decidem o caminho a seguir. Ao Éden, resta apenas guia-
los. O destino dos Anjos está na mão dos Anjos, aos Arcanjos resta apenas
guia-los. Os Primi existem para inspirar e guiar, mas o destino depende da
vontade de vocês”.
“Mas eles possuem poder e sabedoria muito maiores do que
temos”, disse Absolon.
“Poder é um peso apenas, jovem Achille”, respondeu Keter. “Um
peso que graças a Deus eu não possuo Poder corrompe, poder induz ao
erro. Ao contrário dos regentes do Inferno, cada Primus é infinito em
apenas um aspecto, mas basta isso para que lutem para que o orgulho e a
cegueira não os corrompa. Lúcifer decaiu porque se imaginava acima dos
homens, porque foi seduzido pelo poder que tinha. De todos os Celestiais,
os mais poderosos são os que mais lutam para não usar seu poder”.
Minha mente voltou no tempo, e lembrei das palavras de Asphael
ao enfrentar um dos Gêmeos no Rio de Janeiro. Ele se sentiu mal ao ter de
usar o poder que realmente tinha. Ele se sentiu mal por confrontar um ser
mais fraco do que ele. E, fora ao enfrentar seres iguais ou maiores a ele,
Asphael jamais mostrava o que realmente poderia fazer.
Keter prosseguiu: “Os Primi possuem poder para confrontar os reis
do Inferno. Vocês presenciaram a ação deles, tanto sutil quanto
diretamente. Em seu caminho, foram enganados por eles, manipulados, e
no final derrotados. É por causa deles, e só por causa deles, que os Primi
549
possuem poder. Usar tal poder em qualquer outra situação é se render
ao mesmo tipo de maldição que atormenta os senhores do Inferno. Esse é o
preço do poder”.
Keter continuou a fitar Absolon, e então pediu que Absolon se
sentasse para que ele pudesse lavar seus pés. Fabrizia se aproximou:
“Então, se não é poder, o que faz deles Primi?”.
“Eles são o que são, Fabrizia”, respondeu Keter. “Eles nasceram
como são. Um dia tiveram dúvidas sobre si mesmos, mas as superaram.
Eles continuaram humanos, com medos e esperanças, mesmo quando
atingiram os ápices de poder. Mas havia algo dentro deles, algo único, e
cada um se tornou Primus porque poderia adicionar algo novo ao Éden.
Porque, desde que surgiram, eram homens e mulheres excepcionais. Mas
eles já o eram antes mesmo de morrerem”.
“Quem é você?”, perguntei, olhando Keter com calma, analisando
sua sabedoria. Nesse momento, Absolon se sentava e Keter se preparava
para lavar seus pés, mas então Daena surgiu, vindo por trás de mim.
“Senhor”, chamou Daena, “eles o estão esperando. Todos o
procuravam em todo o Firmamento. Eu não podia mais ficar escondendo
onde estava. A reunião o chama”.
Keter se ergueu, sorrindo. “Perdoem-me, eu gostaria poder
conversar mais, mas no momento sou chamado”. Então, ele se virou a mim.
“Eu já fui chamado de Rei, mas nunca fui rei. Eu sou só um homem. Eu
nunca tive poder, nunca tive a chance de ser um Primus, sequer um
Celestial. Pois, sendo apenas um homem, eu pude fazer mais pessoas
sorrirem e dar mais esperanças aos outros do que sendo um deus”.
550
Fiquei calado. E, como eu, também silenciaram os demais.
Notei um boquiaberto Samuel e um impressionado Ansgar, mas todos, até
mesmo Lo Wang, nada tinham a dizer. No fundo, eu queria perguntar o real
nome dele, pois “Keter” significava apenas “coroa”. Mas no fundo tinha
uma idéia de quem aquele homem seria. Ele então saiu, acompanhado de
Daena, em direção ao portão de entrada do jardim.
“Quem era ele?”, perguntou Karina, intrigada.
“Quem quer que fosse, foi um grande homem”, respondeu Fabrizia.
Absolon e Lo Wang também não pareciam saber quem ele era. Eu
mesma tinha apenas uma suspeita, mas Samuel me parecia eufórico, como
se tivesse presenciado algo maior do que qualquer evento que tínhamos
testemunhado nos últimos dias.
Conosco uma vez mais sozinhos, decidimos nos recompor. As
mulheres se separaram do grupo para se banharem numa piscina oposta,
separada por uma pequena cerca de madeira, de um metro de altura.
Enquanto isso, nós conversávamos e tentávamos chegar a uma conclusão
sobre tudo aquilo. Ficamos próximos à cerca, de forma que as mulheres
pudessem falar conosco e entrar na discussão.
E, quanto mais discutíamos, melhor nos sentíamos, e uma única
conclusão foi tomada: nós fizemos o que melhor que podíamos. Nós
hesitamos, mas em momento algum desistimos. Nós nos esforçamos além
de nossos limites conhecidos, e conseguimos nos superar em cada
momento. Cada um retornava ao Éden melhor e mais sábio do que quando
deixou. E, ainda que tivéssemos sido derrotados, ainda teríamos tempo para
nos recuperar. Não importa quanta tristeza ou lamento, precisávamos nos
recuperar. Em breve os Primi nos chamariam.
551
O tempo passou, mas eu não estava atento para saber se
passaram muitas horas. Talvez uma hora, talvez duas. Recompostos, nos
vestimos. As roupas que nos foram emprestadas eram brancas: vestidos
longos às mulheres, e uma camisa e calça aos homens, e ficamos descalços.
As roupas eram de tecido fino, revelando as formas por baixo delas, mas
eram tão simples que tinham uma beleza e uma pureza difícil de explicar.
Eram semelhantes às dos Prisci ou à de Rachel. Karina e Fabrizia
prenderam seus cabelos em tranças, enquanto os guerreiros — Ansgar,
Samuel, Lo Wang, Al-Malik e Absolon — adicionaram suas espadas,
embainhadas, às vestes. Absolon também me entregou o cabo da espada de
Asphael, pedindo que eu guardasse. “Em honra a ele, e até que ele retorne”.
Sorrindo, garanti que teria orgulho em entrega-la a ele, quando ele
retornasse da morte.
Enquanto esperávamos, alguns se dedicaram a outras atividades.
Samuel e Ansgar duelaram e conversaram sobre seus tempos como mortais,
sob o olhar admirado de Karina, enquanto eu, Al-Malik e Lo Wang
discutimos sobre as Cortes Ocidental, Malaki e Oriental. Em algum
momento, Absolon e Fabrizia se afastaram, caminhando sozinhos pelo
jardim, longe de nossas vistas.
Mas, quando os portões para o salão de entrada se abriram
novamente, todos se ergueram para descobrir a que resolução os Primi
chegaram. Mesmo não sendo chamados, sabíamos que deveríamos ir ao
encontro dos Primi.
Saímos pelo portão, adentrando o grande corredor-salão.
Caminhamos mais quinze metros, e nos viramos para presenciar os tronos
acima do portão. Como previsto, ali estavam eles. Dez Primi, mais Azrael,
552
sentavam-se em onze cadeiras, enquanto Helammelak e Melkel, do
Conselho Veritas, sentam-se em outras duas, e os demais membros do
Conselho permaneciam em pé, deixando apenas uma cadeira vaga no
mesmo nível. Acima deles, estavam sete almas ocupando alguns dos nove
tronos, “Keter” entre elas. E ainda acima, o trono maior permanecia vago.
O Arcanjo Miguel, sentado próximo ao centro das quatorze
cadeiras, se levantou. “Nós chegamos a um acordo, meus amigos. E,
infelizmente, há ainda um peso que vocês precisam carregar. Diante dos
eventos que presenciaram, pode ser injusto, até mesmo hipócrita, que
devamos pôr este peso sobre vocês. Mas ainda assim, vocês foram
escolhidos, não por nós, mas por Metatron, para a perigosa viagem. É
importante que prossigam até o fim”.
Eu já previa isso. Todos prevíamos. Como no começo, eu estava
com medo, e podia sentir medo em cada um de meus companheiros. Desta
vez, porém, não iríamos hesitar. “Meu senhor, nós sabemos que não
estamos sozinhos, pois presenciamos maravilhas. Nós sabemos que o
caminho é arriscado, pois enfrentamos aquilo que não pode ser detido. Nós
iremos, pois o único caminho que queremos seguir é em frente. Diga o que
deve ser feito, e o faremos”.
Miguel sorriu, mas seu sorriso logo se fechou. “Nós fomos
enganados. O Reis do Inferno nos enganaram, manipularam sua jornada.
Suas maquinações foram levadas ao extremo, e finalmente descobrimos,
graças somente a vocês, o destino de um de nossos irmãos. Um Primus
reside no Inferno, sob as torturas de um de seus Reis. Isto não pode
continuar, não podemos mais sofrer esse tipo de afronta. Cabe a vocês
libertarem-no”.
553
“Vocês entrarão no Inferno”, disse o Arcanjo Gabriel, sentado
à esquerda de Miguel, “Mas não entrarão sozinhos”. Tendo dito isso, ele se
ergueu, tornando pequenos mesmo os Primi ao seu lado. “Pois eu os
acompanharei, para que nenhum mal caía sobre vocês”.
E o Arcanjo Rafael, à direita de Miguel, também se ergueu. “E
também os acompanharei, para que nenhum de vocês caía ante as espadas
do inimigo”.
E então, eu senti o chão tremer quando o Arcanjo Raguel, Fúria de
Deus, se pôs em pé, sentado num dos extremos. “Um portão será aberto
para vocês, o próprio portal que o Inferno construiu. Mas não temam, pois
eu guardarei a passagem, e nenhum demônio entrará no Paraíso”.
Por fim, o Arcanjo Miguel tomou a palavra: “Pois nenhum de
vocês irá sozinho, porque eu estarei lá, e trarei os exércitos do Éden
comigo. As mensagens já foram mandadas e se espalham pelos céus:
haverá trinta dias para que os guerreiros se preparem. Haverá trinta dias, e
então, nos Campos Elíseos os portões do Inferno se abrirão novamente.
Haverá trinta dias, e as sete trombetas tocarão pela quinta vez. Trinta dias
de paz, e então haverá guerra, uma quinta guerra. E os exércitos do Éden
choverão como fogo no Inferno e destruiremos tudo até que nosso irmão
esteja livre”.
Nós ainda estávamos com medo, mas não desejávamos nada a não
ser cumprir a missão. Lá fora, o Sol brilhava forte, mas não duraria. Em
trinta dias, o céu se fecharia e as trombetas tocariam. E nós invadiríamos o
próprio Inferno.
554
Interlúdio Primeiro: O Outro Lado
Por um momento, havia raios e trovões, e um vento tão poderoso
que poderia derrubar uma pessoa. Por um momento, ele estava no reino dos
vivos, onde almas habitam corpos de carne e sangue. Mas então, o urro do
tigre ecoou pela última vez. Os olhos dele se abriram, e a tempestade
desaparecia. O reino dos vivos agora estava distante. Diante dele, estava
uma imagem de pesadelos. Paredes de marfim enegrecido, manchado com
sangue e preenchido por fios dos quais saltavam faíscas elétricas. Ao seu
redor, máquinas demoníacas, mesclando almas e metal, traziam uma luz
profana e fraca ao local. Mesmo com a iluminação, porém, havia trevas por
toda a parte.
Ele se levantou de seu trono. Seus olhos se voltaram para a direita,
onde uma forma gigantesca e disforme, levemente humanóide, permanecia
silenciosa como uma estátua, apenas vigiando-o enquanto sua alma
encarnava em um falso corpo. Ele sabia que sua cria estava morta, mas que
seu propósito havia sido cumprido. Não havia mais necessidade para a cria
existir. Shiva permaneceria apenas como uma memória.
O demônio continuou a caminhar. Sua forma imensa e reptiliana
atravessou um umbral, emergindo numa sacada para o exterior da torre.
Acima, os céus queimavam, um Sol negro exibindo apenas pedaços de si
por entre as nuvens e a fumaça que se elevava da cidade ao redor. Abaixo,
haviam prédios diminutos e vastas avenidas. Delas, subia os sons de
incontáveis vozes, como se uma imensa multidão falasse ao mesmo tempo.
O Grande Lorde se apoiou no parapeito da sacada, fitando a
multidão negra que tomava cada rua, cada avenida ao redor de Destructione
Turrim. Ele abriu os braços e ergueu a cabeça, emitindo um urro que ecoou
555
pelos prédios ao redor, fazendo-os tremer. Os céus ardentes acima
trovejaram. Os sons abaixo sumiram, e metrópole negra ficou em silêncio.
Até mesmo os ventos constantes que atingiam a titânica torre cessaram. Por
alguns segundos, era como se o tempo parasse.
“Para Dudael”, a voz do Lorde do Proibido ecoou. “O momento de
esperar acabou! Agora, nós clamaremos nosso prêmio!”.
Gritos se elevaram. Gritos de guerra, gritos de euforia. A metrópole
inteira gritou, enquanto o ardor dos céus aumentou. Os ventos voltaram a
soprar furiosos. E então, pouco após, um novo som ecoou, repetindo-se
constantemente. Eram o som de passos, do marchar de um exército,
enquanto a multidão abaixo começava a rumar para o sul, lentamente.
Fleuretti sorriu, observando seu exército. Acima, dragões cruzavam
os céus, urrando furiosamente. Abaixo, um milhão de almas condenadas
empunhavam lanças e espadas, guiadas por cem mil demônios.
556
Capítulo 21: Trinta Dias
Parte 1 de 10: Philipe Nicodemus
Um vento frio soprava, mas eu não sabia se vinha do norte ou de
outro ponto cardeal. Acima, não havia céu, apenas uma massa incessante de
nuvens negras e pesadas. Pequenas revoadas de pássaros negros
atravessavam os ares, seus olhos vermelhos fitando meu caminhar por entre
aquelas ruas sombrias. Eu caminhava por vias construídas sobre ladrilhos
de mármore negro, por entre fortificações de pedra. Não havia árvores ou
vida e, sob o céu encoberto, a penumbra intensa só era quebrada pelas piras
que iluminavam as passagens: piras que ardiam no mais puro Fogo
Celestial. Não havia como existir vida ali. Eu estava nas terras dos mortos,
percorrendo as vias no interior da Fortaleza Asphodel.
As construções ao meu redor lembravam ligeiramente a arquitetura
romana, com arcos e grandes colunas, mas era contaminada por um toque
gótico, exibindo estátuas e alto-relevos na forma de figuras angelicais e
demoníacas. Gárgulas vigiavam-me do topo dos edifícios, enquanto janelas
eram adornadas por vitrais de intenso vermelho. As almas penadas que
caminhavam por ali me olhavam com curiosidade, vendo em mim um
semblante da vida que há muito elas tinham perdido. Eu me destacava,
realmente, pois aqueles que me acompanhavam trajavam negro, seja na
forma de mantos e capuzes ou de armaduras de textura obsidiana.
Era estranho estar ali. Em pouco mais de um século de existência
celeste, eu havia entrado na Sombra do Mundo apenas outras duas vezes, e
sempre de forma relutante. As terras dos mortos nunca foram um lugar
convidativo... O frio, embora suportável, é constante, interminável. Tristeza
e melancolia pairam no ar, os céus e a terra parecem mortos e estéreis. Ali,
557
as sombras se movem, e pesadelos tomam vida. Ainda assim, são estas
terras que os Mors Sancta chamam de lar, e nessa terra morta que
construíram sua fortaleza. Pela primeira vez em minha vida, eu caminhava
por Asphodel. Embora mantida pelos Anjos da Morte, Asphodel não era
como o Éden, mas ainda assim representava um refúgio, uma fortaleza para
que aqueles que não tem alento possam se defender dos horrores da morte.
Algumas das almas que ali residem esperam um dia ascenderem ao
paraíso... A maioria, porém, apenas considera Asphodel um local seguro
onde podem viver a eternidade. Em comparação com o resto das terras
mortas, a Fortaleza Asphodel representava pelo menos um pouco de
esperança.
Continuei a caminhar, pensando nos motivos que me trouxeram a
Asphodel. Já fazia dez dias desde que me separei de meus companheiros,
cada um tomando seu caminho, cada um desejando viver seus últimos trinta
dias de paz à sua própria maneira. Nós nos encontraríamos novamente, nos
Campos Elíseos, no entardecer anterior à abertura dos portões do Inferno.
Até lá, nossa Falange estaria desfeita. Desde então, eu tinha estado isolado,
estudando as possibilidades do conflito que viria. Eu estudei as outras
Grandes Guerras e pude compreender um pouco da magnitude dos eventos
que estavam por vir. Teria continuado lá, em Sans Vidya, por todos os
trinta dias, se não fosse o chamado dos mortos... Ou, mais precisamente, o
chamado do Senhor de Asphodel.
Finalmente, chegamos ao ponto central da Fortaleza, onde todas as
avenidas levavam. “Lorde Nicodemus, nós chegamos”, disse minha guia,
Natalya, Trono entre os Mors Sancta. A face pálida da moça me fitou, seus
olhos indicando vida apesar do ambiente ao redor. Adiante, vi uma praça
558
circular, cercada por uma grade de metal com lanças pontiagudas no
topo. No interior, despontava a catedral negra, “Amaranth”, segundo
Natalya, com quatro torres erguendo-se acima de qualquer outra edificação
de Asphodel. Os vitrais aqui também eram vermelhos, e a luz interna os
fazia brilhar como fogo. Construída em estilo gótico, a catedral era
adornada por gárgulas, e ao seu redor estavam estátuas de anjos. À entrada
estavam duas estátuas angelicais femininas, de asas abertas, como se
saudassem todos os que vinham até este lugar sagrado. Além delas, dois
Celestiais de armadura negra guardavam a porta. Eu e Natalya nos
aproximamos dos dois, a quem ela referiu como “Yetzerhara e Ha-Mavet,
Guardiões de Asphodel e Amaranth”.
Chegando aos dois Arcanjos, Natalya me apresentou: “Ele é Philipe
Nicodemus, Serafim entre os Veritatis Perquiratores. Nosso senhor o
espera”.
“Nós sabemos quem ele é”, respondeu o Arcanjo à esquerda, a
quem Natalya chamara Yetzerhara, “e nosso senhor agradece seus serviços,
jovem Natalya”.
“O Anjo da Morte o aguarda na torre leste de Amaranth, Arcanjo
Nicodemus”, disse o outro Arcanjo, chamado Ha-Mavet, “a jovem irá leva-
lo até lá”.
Natalya fez um sinal positivo com a cabeça, então se voltou a mim,
chamando-me para segui-la. Atravessamos o portão de entrada, adentrando
Amaranth, que se dispunha como uma catedral real. Iluminada por castiçais
postos sem série, à frente estava uma grande câmara. Um tapete vermelho
se estendia da entrada ao altar à frente, e sendo flanqueado por centenas de
bancadas em toda a sua extensão. Algumas almas ali oravam, seus
559
murmúrios ecoando pelo espaço amplo do câmara. As paredes brancas
contrastavam com o exterior negro da catedral, e faziam o Fogo Celestial
dos castiçais parecer brilhar mais intensamente. O ambiente convidava à
meditação e contemplação, mas mantinha o ar melancólico e silencioso das
terras mortas.
Natalya e eu prosseguimos pela câmara, seguindo o tapete
vermelho até o altar. As almas ali paravam suas orações para me fitar.
Embora meu manto e capuz ocultassem quase todo meu corpo, a cor da
vida em meu rosto era clara àqueles espíritos inquietos. Um homem
esquelético fixou seu olhar em mim. Por um momento, eu fitei seus olhos
profundos e melancólicos, e pude notar em sua face tanto ódio como
admiração. Natalya prosseguiu, chegando ao altar e então se direcionando
para a direita, ignorando os olhares que continuavam a nos seguir, e me
levou até uma porta, parcialmente escondida atrás da estátua cinzenta de
um anjo armado com uma grande foice.
“Por que há tanta tristeza aqui, Natalya?”, perguntei assim que
atravessei a porta. “Eu sei que esta é a Sombra do Mundo. Mas como curar
os mortos se não é possível alegrar a existência deles?”.
Natalya silenciosamente fechou a porta, e então se virou para me
fitar. Seus olhos azuis apenas tornavam sua face pálida ainda mais
desconcertante. Ela era bela, de formas perfeitas e pele macia, mas sua
alvura a tornava quase um fantasma. Eu já conheci muitos Mors Sancta em
meu século de existência, mas nunca fui capaz de me acostumar com a
aparência deles. “Esta é a terra da morte, do medo e da tristeza, Arcanjo
Nicodemus. Se pudéssemos, traríamos festa e comemoração, mas as almas
presas neste Purgatório não têm mais como sentir o calor da vida. Nós as
560
ajudamos como podemos, dando-lhes proteção e disciplina, para que
possam se libertar sozinhas deste lugar”.
Natalya fez um sinal para que eu a seguisse pelo corredor à frente.
Enquanto caminhávamos, continuei a conversa: “É estranho estar aqui. A
Fortaleza Asphodel é uma maravilha erguida numa terra morta, mas ainda
assim é parte dessa terra morta. Eu esperava ver um pedaço do Éden aqui”.
“Você está num pedaço do Éden aqui”, respondeu Natalya, “Este
lugar é como um paraíso para os mortos. Entenda, Lorde Nicodemus, que
não há chama que resista a um mundo sem calor, e não há felicidade que
perdure neste reino de tristezas. Por séculos, desde que Magna Veritas
desceu a esta terra erma, nós temos nos adaptado à sombra. Como você
mesmo disse, é estranho estar aqui, mas não havia mais ninguém com a
disposição para ajudar estas almas. Nós fazemos como podemos”.
“Há outros que descem ao Purgatório”, eu disse.
“Verdade. Nas terras do oriente, os Kage vigiam os mortos. No
ocidente, Sancti e Venatores descem a estas profundezas quando é
necessário, enquanto alguns Perquiratores e Superviventes se aventuram na
Grande Penumbra. Mas apenas nós residimos aqui. Os outros adentram
quando precisam, quando sua missão assim pede. Nós somos aqueles que
estão sempre entre os mortos”.
“Entendo. Não quis questionar a importância dos Mors Sancta.
Nossos Cleros são irmãos, filhos de um mesmo Primus. Eu apenas não
estou acostumado a esta melancolia”.
Natalya parou diante de uma porta de ferro negro, após
caminharmos por um curto labirinto de corredores. Ela se virou para mim,
sorrindo brevemente e, por um momento, sua alvura me pareceu bela. “Nós
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trazemos vida a esta terra morta, Lorde Nicodemus, e a trazemos com
intensidade. Mas não há vida que perdure aqui. Temos de ser cautelosos e
pacientes, para que quando a alegria chegue, nossos protegidos a sintam em
plenitude. São apenas breves momentos, e enquanto estes momentos não
vêm, eles precisam contemplar e meditar, para se livrarem dos grilhões que
os prendem a este purgatório”. E tendo dito isso, a Celestial abriu a porta de
ferro, fazendo um som metálico que ecoou pelos corredores quando a
tranca foi aberta. “Por aqui, Lorde Nicodemus. Suba as escadas. Daqui,
você precisa seguir sozinho”.
Agradeci a Natalya e adentrei a torre. Durante meus primeiros
passos na escadaria, ouvi novamente o som da porta, desta vez fechando-se
atrás de mim. Parei por um instante, olhando para trás. Então, vendo-me
sozinho, retomei meus passos rumo ao topo da torre.
A escada espiralava para cima, acompanhando as paredes
retangulares da torre. Eu notei que, no vão entre as escadas, pendiam
correntes e cordas, indicando a presença de um sino acima. Conforme
subia, podia ouvir o som lamuriante do vento lá fora. A escuridão era forte,
mas uma fraca luz vinda do alto me guiava. Não demorou para que eu
chegasse ao topo, onde um grande sino cinzento me aguardava. Dali, era
possível ver toda Asphodel. E também ali, perscrutando a paisagem ao
redor, estava o Anjo da Morte.
Sentindo minha presença, o olhar do Arcanjo Azrael Veritas,
Serafim dos Mors Sancta, se voltou para mim. Como os demais de seu
Clero, o Anjo da Morte tinha uma pele alva. Seus cabelos negros,
compridos, caíam sobre os ombros, e seus olhos negros tinham vida e
determinação intensas. Ele portava sua armadura negra, com um manto
562
cinzento sobre ela. O capuz do manto pendia para trás, não cobrindo
sua cabeça. Em sua cintura, estava embainhada uma grande espada. Mas
mais do que aquela forma mundana, eu podia sentir seu poder e sabedoria
pulsarem. Algo nele me lembrava Lúcifer... aquela aura de melancolia,
como se Azrael emanasse penumbra e não luz. “É uma honra recebê-lo em
minha casa, Arcanjo Nicodemus”, ele disse num sussurro.
“A honra é minha, meu senhor”, cumprimentei em retorno, “Ao
receber seu chamado, não pude evitar a não ser vir o mais breve possível.
Em que posso servi-lo?”.
“Palavras, Nicodemus, eu busco ouvir suas palavras e histórias”, o
Anjo da Morte respondeu num tom baixo e frio. “Embora o Arcanjo
Miguel tenha me contado sobre a jornada de vocês, eu gostaria de ouvir
mais. Gostaria de saber mais sobre meu irmão”.
“Asphael?”, questionei, fitando a face inabalável do Serafim.
Ele fez um sinal positivo com a cabeça, e então se virou de costas,
erguendo a mão e gesticulando para que eu me aproximasse. Assim o fiz,
ficando ao seu lado, e então pude ver melhor a extensão de Asphodel além
dos parapeitos da torre. As nuvens cinzentas acima pareciam um mar
convoluto e bravio, enquanto os pássaros negros revoavam às centenas,
trazendo um vento frio e lamuriante. E, além das muralhas da cidade, havia
apenas um terreno irregular, montanhoso, preenchido por florestas mortas e
sombrias e montanhas rochosas.
“O que dizer de Asphael, senhor?”, perguntei, então acrescentei um
comentário: “Antes de conhece-lo, ele era uma lenda. Eu o vi antes, em
reuniões do Clero, mas ouvia histórias sobre ele, sobre sua nobreza e
563
humildade. Ele era... é um grande homem. O maior Celestial que
conheci. Eu espero reencontra-lo novamente”.
“Ele foi meu irmão, meu mestre e meu pupilo”, disse o Anjo da
Morte, sua voz sussurrante agora demonstrando algo além da frieza.
“Nosso pai nos pôs em nossos caminhos, mas sempre foi um mestre
ausente. Ele nos levou a grandes revelações, nos tornou maiores do que
éramos, mas foi Asphael Veritas quem me guiou pelos caminhos do
conhecimento. Foi ele quem me fez abandonar o manto dos Venatores e
caminhar entre sábios”. Então o Arcanjo Azrael se virou a mim, e seus
olhos determinados se encontraram com os meus. “Você carrega a espada
dele, não?”, ele perguntou.
Eu peguei a sacola que carregava sob o braço, abrindo-a, e então
puxei o cabo da espada, com apenas o que restava da lâmina preso a ele.
Estendi os restos da arma a Azrael. O arcanjo baixou a cabeça para fita-la, e
então ele murmurou: “Ele me guiou pelos caminhos do conhecimento, eu o
guiei nos caminhos da guerra. Esta espada viu tudo. Ela estava comigo
quando desci às entranhas de Dur Sharrukin. Ela ouviu o último suspiro do
Lorde do Sangue. Eu a dei a meu irmão e agora ela volta a mim”. Tendo
dito isso, ele se abaixou levemente, estendendo ambas as mãos e pegando
gentilmente a espada, mantendo-a suspensa à minha frente, enquanto eu
recolhi meu braço.
“Então, eu a devolvo”, eu disse.
“Não”, ele disse, recolhendo a arma para si, e então a empunhando
pelo cabo, usando ambas as mãos, como se a arma ainda estivesse inteira.
“Meu irmão merece recebe-la de suas mãos inteira. Eu a forjarei
564
novamente, e então ela será sua, até que você a devolva a seu
verdadeiro dono”.
Baixei a cabeça, agradecendo ao Arcanjo pela honra.
“Você não precisa se curvar a mim... Lorde Nicodemus”,
murmurou Azrael, se pondo de joelhos e baixando a cabeça, e então
finalmente erguendo a voz. “Pois você é grande se meu irmão se pôs a
servi-lo. Ele não está mais entre nós para continuar sua promessa de
protege-los, então eu tomo seu manto e assumo a responsabilidade. O Anjo
da Morte os acompanhará além dos portões do Inferno”.
Naquele momento, eu não tinha palavras. Honrado, só pude dar um
passo para trás, enquanto tentava manter minha compostura.
“Agora, Lorde Nicodemus”, pediu o Arcanjo, já se pondo em pé,
“Por favor, conte-me o que me viu. Diga aquilo que descobriu sobre meu
pai. Eu quero compartilhar de sua história e de meu irmão”.
Aproximei-me de Lorde Azrael Veritas e recontei nossa jornada até
ali. Ao mesmo tempo, porém, eu pensava nos meus companheiros... e em
como eles se preparavam para a tempestade que estava por vir.
Parte 2 de 10: Lo Wang
A lua cheia brilhava prateada no céu, seu tamanho três ou quatro
vezes maior do que no reino dos vivos, e seu brilho tão intenso que a noite
parecia uma penumbra gentil, afastando a escuridão. Nuvens esparsas às
vezes atravessavam à sua frente, mas eram incapazes de obscurece-la por
completo. Ao redor, além das florestas, despontavam grandes cadeias
montanhosas, que tomavam o horizonte em todas as direções. Obscurecidas
pela noite, era possível ver suas formas e magnitude, mas não seus picos
565
cobertos pela mais branca neve. Os ventos do norte eram frios, mas o ar
estava agradável, aquecido pelas fogueiras e tochas e pela música daqueles
que comemoravam.
Das sombras mais escuras da floresta, numa elevação ao sul da
vila, os olhos de Lo Wang fitavam o movimento alegre e intenso das
pessoas, que riam e se maravilhavam na praça central. Muitas lembranças
de sua existência passada passavam pela mente do Kage, enquanto ele
fitava aquelas pessoas. A alegria o contagiava, mas seu sorriso era oculto
pelas trevas densas. Tão diferente do Japão de hoje, e tão diferente da
China que Lo Wang conheceu em vida, esta vila remetia a eras passadas do
Japão, quando guerreiros letrados viviam pela espada e pela honra, e
quando o Japão era seu próprio universo, isolado de influências externas.
Foi nesta vila que o guerreiro despertou após seu renascer. Ele podia se
lembrar das almas de crianças ao seu redor, vendo-o despertar nas florestas
próximas. Agora, aquelas almas tinham crescido, e mais ainda tomavam a
vila como seu lar. Um lar seguro chamado Kanai Anzen, no coração de
Tian Guo.
No centro da vila, ao som dos tambores taikô, o shishimai do Tatsu
Kage, o dragão das sombras, serpenteava pela praça e por entre as pessoas,
cercando seu inimigo, uma gaki, representada por uma mulher vestida de
negro e com uma terrível máscara com grandes presas. Sob as folhas de
cerejeiras que caíam, as mulheres, vestidas de yukata, ouviam a narração de
um idoso, que contava a batalha do guerreiro protetor da vila, e como ele
usou as sombras para derrotar a morta faminta. Nas sombras, aquele
guerreiro se lembrava daquela batalha tão recente, num beco escuro de uma
cidade do ocidente. Ainda que fosse amado e louvado pelas pessoas dali,
566
Lo Wang não se sentia um herói. Em sua mente, ele se julgava,
lembrando das vidas que tirou enquanto ele próprio vivia, e pensando nos
julgamentos que ainda estavam por vir. A mente do guerreiro se silenciou,
porém, quando seu instinto o avisou que alguém se aproximava.
“Você está vestido para a festa”, disse o homem que se
aproximava, vestindo um quimono cerimonial, “mas não está
comemorando, nem bebendo, nem rindo”.
Lo Wang se levantou e se virou para fitar o homem que se
aproximava. A luz da lua iluminou um rosto branco e cabelos negros,
compridos e lisos, presos atrás da cabeça. Os olhos puxados e negros
fitaram o Kage por um instante, mas então o recém-chegado curvou-se para
cumprimenta-lo. Lo Wang fez o mesmo em retribuição. Após a saudação, o
homem comentou jocosamente: “Você estava se escondendo com o intuito
de ser visto novamente, velho amigo, ou minha percepção se aprimorou
desde nosso último encontro?”.
Lo Wang sorriu. Ten Raicho, Elohim entre os Hun Xian, também o
fez, e então se aproximou um pouco mais. “As histórias de sua jornada se
espalham por Tian Guo como fogo em mata seca, Lo Wang”, disse o Alto
Imortal, “Sinto-me honrado em ser seu amigo”.
“E não se sentia antes de tudo isso acontecer?”, perguntou Lo
Wang, num tom descontraído e provocativo, sem esconder o sorriso.
“Como sempre, você tenta encontrar falhas em tudo o que faço ou
falo”, respondeu Ten Raicho, “Nem parece que eu sou o mais velho”.
“Trata-se apenas de um passatempo, velho amigo”, disse o Kage,
depois acrescentando: “E devo confessar que sinto muito prazer em corrigi-
lo”.
567
Ten Raicho riu, sabendo que o irritante comentário do Kage era
uma confissão extremamente sincera. “E por que não comemora agora seus
feitos, Lo Wang?”, perguntou o Hun Xian, referindo-se às festividades
próximas dali.
“Logo estarei me juntando ao povo de Kanai Anzen, velho amigo”,
respondeu, “mas primeiro queria refletir um pouco sobre o que passou e
pensar no que ainda está por vir”.
Ten Raicho calou-se por um instante, talvez meditando o que diria
a seguir. Ele tinha notícias ruins ao amigo, embora pouco relevantes
levando em conta tudo o que ele passou e ainda passaria. “Entendo o que
quer dizer”, disse relutante o Alto Imortal, “pois não só os ocidentais
passam por dificuldades. Os Tenshi estão alarmados com crises nascentes
em nossos próprios domínios”.
“O que está acontecendo, Raicho?”, perguntou Wang, agora sem
um sorriso no rosto.
“Os Lung Kuei estão retornando”, respondeu Ten Raicho.
A mente de Lo Wang voltou no tempo. Lampejos do passado o
atormentaram por um momento. Memórias de uma vida sangrenta,
redimida num último instante. Desejos de vingança que terminaram em
tristeza profunda. Uma peregrinação a terras distantes... Uma morte
atormentada. Ele caminhou nas trevas desde então, jurando que isso não
aconteceria novamente. Os Lung Kuei tinham sido dizimados, seus
seguidores se espalharam sem liderança. Por mais de um século, eles
permaneceram desorganizados e sem força. Somente uma força poderia
faze-los crescer novamente. “Zhu Rong”, murmurou o Kage.
568
Ten Raicho meneou a cabeça, confirmando os temores do
amigo. “Rumores dizem que o profeta retornou. Os Gwai Wang dizem que
algo foi libertado no Makai”.
“O quão séria é a situação?”, perguntou o Kage.
“Por enquanto, tudo parece sob controle, mas...”, hesitou o Hun
Xian, “mas os Lung Kuei estão fortes, os rumores se espalham. Dizem que
Bishamon e Si-Ming estão preocupados. Por isso não pudemos dar atenção
necessária à crise no ocidente”.
“Eu acho que isso é um grande erro”, disse Lo Wang. “Nós
podemos nos dividir em leste e oeste, mas o Inferno é só um, não importa
que máscara use. Tudo estar acontecendo ao mesmo tempo, a mim parece
uma distração”.
“E ainda assim não podemos ignora-la”, disse Ten Raicho.
Lo Wang se calou, sabendo que Ten Raicho estava correto. Por
milênios, o oriente lutou suas próprias batalhas contra seus próprios
demônios. Ankokushin e seu profeta causaram três grandes guerras no
passados, nenhuma delas citada nas crônicas do ocidente. E agora, a
Grande Sombra, talvez aproveitando os conflitos nascentes no ocidente,
como fez antes, novamente enviava seu profeta para causar caos e semear
morte.
“Eu não deveria ter falado sobre isso agora”, murmurou Ten
Raicho, acrescentando: “Você tem suas próprias preocupações, sua própria
batalha. Eu gostaria muito de tê-lo como companheiro novamente, mas sei
que precisa aproveitar seus dias de paz”.
“Estão vindo muitas guerras, velho amigo”, murmurou Lo Wang,
“e muito sangue vai ser derramado no leste e no oeste. Venha, vamos beber
569
enquanto podemos. Que alegria me embriague como se fosse saquê, e
que por esta noite minha mente esqueça tudo isso!”. Tendo dito isso, Lo
Wang se virou e pôs-se a andar na direção da vila de Kanai Anzen. Ten
Raicho, o seguiu, sabendo que, apesar das palavras, a mente de Lo Wang se
mergulhava em memórias e se distraía com preocupações. O Hun Xian se
sentia culpado por isso, mas sabia que o amigo gostaria de ser informado de
tudo.
Conforme os dois guerreiros desciam a elevação rumo ao centro da
vila, as almas de crianças sorriam e apontavam para o herói da vila. Alguns
ali se curvavam em sinal de respeito, enquanto uma mulher, vestindo uma
yukata de cor vermelha forte, aproximou-se para espera-lo, sorridente. Ten
Raicho observou a mulher, de cabelos e olhos negros, pele alva e lábios
finos, sorrindo enquanto o guerreiro das sombras se aproximava. “Quem é
ela?”, perguntou o Alto Imortal.
“Yumi Mitsuko, meu amigo... é minha esposa”, disse Lo Wang.
Um sorriso sutil formou-se nos lábios do anjo das sombras.
“Esposa?”, surpreendeu-se Ten Raicho, seus olhos puxados agora
tendo forma ovalada de tão abertos. “Eu nunca soube que era casado”.
Apesar dos pesares, Lo Wang sorria. “Talvez porque eu nunca
contei. Talvez porque você nunca se interessou em saber”. O Kage riu, pois
mais uma vez tinha surpreendido seu velho amigo. E, ao redor, os sons de
alegria e de tambores continuaram a ecoar, anunciando que a festividade
daquela noite estava longe de terminar.
Parte 3 de 10: Karina Ariel
570
A trilha seguia montanha acima pela mata, as árvores frondosas
tapando parte do sol intenso que, no alto do céu, pendia para o oeste,
indicando que já tinham se passado algumas horas desde o meio-dia. O ar
estava quente, apesar da sombra constante que as árvores proporcionavam.
Karina parou, liberando um suspiro profundo, enquanto tirava o boné e
passava a mão na testa para limpar o suor. O som de pássaros era calmante,
e o ar puro certamente agradava a Supervivente. Porém, sua mente se
enchia de dúvidas e temores. Ela não conseguia afastar dos pensamentos
tudo o que passou desde que o ano começara, e não podia deixar de
imaginar que poderia morrer em breve, naquela que poderia ser sua última
viagem: uma viagem ao próprio Inferno.
Pondo novamente o boné, a Celestial fitou a mão molhada de suor.
Embora seu corpo não se cansasse, ela ainda suava, indicando que,
inconscientemente, ela ainda era mortal, ainda era humana, pelo menos em
seu subconsciente. Um dia, se ela pudesse sobreviver, talvez ela chegasse à
idade em que os Celestiais vão perdendo a noção do que era ser vivo, e
essas reações inconscientes do corpo deixariam de ocorrer. Mas, no fundo,
Karina sentia um pouco de alívio por ainda possuir essa “fraqueza”
humana. Ela jamais pensou que poderia ter de encarar dificuldades tão
grandes ou que deveria assumir responsabilidades tão pesadas. Lembrando-
se de seu passado, antes do renascer, ela suspirou fundo... Ela era uma
garota alegre, extrovertida, liberal, que não considerava a vida à sério.
Como Celestial, ela se dedicou a viajar, sempre ajudando os que estavam
em seu caminho, mas jamais se preparando para as responsabilidades
futuras. Pensando nisso, Karina sentou-se no chão, sem se importar em
571
sujar a calça, pôs a mochila ao seu lado e apoiou-se numa árvore num
canto da trilha.
Karina fechou os olhos, deixando os sons da mata tomarem seus
sentidos. Mais uma vez ela suspirou. Essa melancolia era tão atípica para
ela, que sempre quis viver com um sorriso no rosto. Mas algo havia
mudado após tantos eventos. O mundo que Karina conhecia até então tinha
agruras e dificuldades, mas cada sorriso que ela provocava a animava e a
fazia prosseguir. Ela enfrentou sempre pequenas dificuldades, arriscou a
vida poucas vezes, sempre teve companheiros, amigos e amantes que
podiam protege-la dos maiores riscos. Mas então, ela conheceu o lado mais
sombrio do mundo, e isso a afetou. “Talvez fosse a hora de mudar”, ela
pensava, mas temia que poderia ser tarde demais para isso.
Os pensamentos dela cessaram quando ela percebeu, quase
inaudível, o som de água correndo à distância. Karina abriu os olhos, seu
instinto apontando para a direita. Então, levantando-se e pegando a
mochila, ela adentrou a mata, seguindo o som distante.
As sombras da mata eram confortantes, afastando o calor. Karina
prosseguiu sem pressa, distraída em seus pensamentos. Por um momento, a
mata trouxe memórias ruins, de uma noite de tempestade há poucos dias,
quando ela correu desesperada entre as árvores, perseguida por um mal
ancestral em forma de tigre. Karina tentou afastar esses pensamentos,
buscando algo que a confortasse... e o rosto de Samuel Fulmen veio em sua
mente. Karina suspirou mais uma vez ao se lembrar dele. Ela queria que ele
estivesse ali com ela... A índole dele a fascinava, pois ele era diferente de
qualquer outro homem por quem ela já tivesse se apaixonado. Ele parecia
surreal, ideal demais para ser verdade. O Sancti possuía uma melancolia
572
que pedia por carinho para ser tratada, mas ao mesmo tempo tinha uma
determinação extrema, que dava segurança e inspirava confiança nela.
Ainda assim, ele não estava isento de defeitos, como Karina viria a saber. A
idade dele já era avançada demais, e ele sempre se mostrou um pouco
distante, ainda que fosse carinhoso e gentil. Ele tinha medo de
relacionamentos, talvez devido a casos passados, e um fatalismo o tomava
de vez em quando, tentando manter Karina afastada porque ele acreditava
que cedo ou tarde ele a magoaria. Karina não sabia se os sentimentos dele
correspondiam aos dela, pois Samuel, independente de o quão próximos os
dois estivessem, preferia manter uma barreira sutil entre eles. Isso
incomodava Karina, mas ela não estava disposta a desistir ainda.
O som de água se tornou mais forte, e Karina viu à frente um
riacho de águas gentis. Ele descia pelo morro, tão raso que era incapaz de
molhar mais do que o joelho de quem o atravessasse. Porém, após uma
pequena cascata de cerca de dois metros de altura, as águas se acumulavam
num pequeno lago, sem grande profundidade, e com poucos metros de
diâmetro. Do lago, o riacho prosseguia por outra cascata, esta com menos
de um metro de altura, e continuava a correr morro abaixo, sempre
mantendo pouca profundidade.
Karina sorriu ao ver aquela paisagem. As árvores eram altas ali,
mas a luz do sol iluminava bastante o ambiente. Ela se aproximou do
pequeno lago, abaixando-se e pegando um pouco de água com as mãos,
levando-a até o rosto para beber e, sem seguida, lavar o suor da face.
Karina se levantou, olhou ao redor e, não vendo qualquer sinal humano,
pôs a mochila no chão, tratando de despir-se em seguida.
573
Antes que entrasse na água, Karina prendeu os cabelos no topo
da cabeça. Seus pés tocaram o líquido, mas a sensação de frio não a
incomodou. Karina caminhou pelo lago, a água chegando no máximo até a
sua barriga no ponto mais profundo. O lugar parecia tão perfeito, que ela
não pôde deixar de pensar em Samuel novamente, e em como ela gostaria
que ele também estivesse ali.
Karina então se aproximou da margem, sentando-se numa pedra
submersa, mantendo apenas a cabeça fora d’água. Apoiando a cabeça numa
pedra da margem, ela fechou os olhos, a princípio tentando manter os
pensamentos em Samuel, mas logo pensando também nos outros membros
da falange... Ela se sentia triste por Asphael, lembrava-se de que Absolon, a
princípio, observava-a com interesses amorosos, e pensou no velho
Nicodemus, que era quase um pai para ela. As Termas de Lúcifer vieram
em sua mente, e a conversa que teve com Nicodemus naquele momento
voltou a invadir seus pensamentos. “Precisamos saber lutar, mesmo que
tentemos evitar isso a todo custo”, ele disse naquela noite.
Os pensamentos divagaram mais. Lembranças da mãe, retratos do
pai que jamais conheceu... Ela era filha única, sua mãe a tivera ainda
jovem. O pai morreu quando ela ainda tinha dois anos de idade, mas a mãe
sempre fora carinhosa. Elas eram muito amigas, e o espírito aventureiro da
mãe a contaminou desde cedo. Aos 14 anos, ela já tinha viajado muito,
conhecia muitos lugares. Sua vida terminou pouco antes de fazer 19,
quando um acidente de carro a matou e levou sua mãe ao hospital com
ferimentos graves. Karina ainda olhava pela mãe às vezes, agora casada e
com um casal de filhos. Ela queria poder conhecer seus irmãos, mas sempre
soube que precisava se manter longe... e por isso, ela sempre viajou pelos
574
cantos mais longínquos do mundo, para tentar sufocar as saudades e
para descobrir novas maravilhas que poderiam ocupar sua nova existência.
“A vida que você teve ficou para trás”, uma voz masculina ecoou
em suas lembranças, “e aqueles que olham para trás não podem seguir em
frente”. O som de uma grande cachoeira encheu os ouvidos da
Supervivente, e ela lembrou de algo que ocorrera quase 11 anos antes. Ela
trajava um vestido branco, e sentava-se à beira de um rio de forte
correnteza. Uma cachoeira de dois metros de altura estava logo adiante e,
ao centro do rio, mergulhado até a cintura, estava Somerled, então Trono
dos Superviventes, seu mentor, amigo, confidente e, na época, um grande
amor platônico. Ele deu a Karina seu sobrenome atual: Ariel, em
homenagem à sua semelhança com a Primus do Clero. Por onde ele andaria
hoje? Fazia tanto tempo que eles não se viam...
As memórias estavam tão claras que parecia serem lembranças no
dia anterior. “Somos agora criaturas do espírito e não da carne, Karina”,
dizia Somerled em voz alta, de forma a ser ouvido apesar da cachoeira,
“somos livres de tudo o que nos prendia em vida. Você vai conhecer muita
gente, vai viajar por muitos lugares, mas lembre-se que você não é mais
apenas uma peregrina”.
“Mas eu preferiria ser só uma viajante”, respondeu Karina naquele
dia.
Somerled riu. “Você não pode ignorar o que é, nem pode ignorar o
que ocorre com os outros ao redor. As pessoas muitas vezes não podem se
ajudar, mesmo que sintam compaixão, porque lhes falta tempo, dinheiro,
recursos, saúde ou liberdade, mas ao mesmo tempo sobram-lhes deveres,
dívidas, preocupações e responsabilidades. Não estamos restritos a isso.
575
Nós somos imortais, tempo nos sobra e saúde temos em plenitude, não
somos presos a política ou a dinheiro e a nossa única responsabilidade é
preservar o mundo e as pessoas. E quanto a recursos... nós temos poder
para mudar o mundo...”. E tendo dito isso, Somerled estendeu a mão direita
à frente do peito, apontando-a para a cachoeira. “...e para fazer milagres”.
A mão de Somerled se abriu, e de repente o som da água cessou. A
cachoeira parou por completo, e as correntezas fortes acamaram-se como se
aquilo fosse um lago. “Você precisa encontrar esse poder dentro de você”,
ele disse, e então a correnteza voltou a correr tão forte quanto antes.
Os olhos de Karina se abriram no presente, e ela viu escuridão.
Tinha ela caído no sono? Ela tentou respirar, mas inalou água. Assustada,
ela se debateu, emergindo rapidamente do lago e respirando ofegante. E,
então, inesperadamente, a Supervivente começou a rir. A mata ao redor
estava escura, o ar frio, e a lua alta no céu. Ela levou a mão ao peito, rindo
por ter adormecido e, mais ainda, por ter achado que estava se afogando,
mesmo após ter passado horas sob as águas. Ela soltou os cabelos, já que
estavam molhados de qualquer forma, e deu um mergulho, emergindo junto
à margem e saindo para pegar uma toalha em sua mochila.
Enquanto se enxugava, a Supervivente começou a pensar nos seus
sonhos. Talvez ela morresse em breve... mas certamente, ela deveria lutar
para viver, para que pudesse mudar e evoluir. Por onze anos, ela tinha
vivido como uma adolescente, buscando amores e aventuras juvenis. Pela
primeira vez desde que o ano começou, ela fez a promessa que realmente
tentaria mudar dali em diante. Ela deveria aceitar sua natureza celestial,
aprender a fazer milagres maiores, desenvolver os dons divinos que tinha
dentro de si.
576
Mas... e se ela morresse em breve? E se ela morresse antes que
pudesse se tornar maior, antes que pudesse realmente compreender por que
foi escolhida para ser uma Celestial? Karina refletiu um pouco mais, e
sabia que precisaria fazer uma última coisa antes de aceitar que precisava
crescer e deixar de ser uma adolescente. Karina se vestiu, e então focalizou
um lugar distante. Seus olhos se fecharam, e ela tocou o ar adiante,
fazendo-o tremer e ondular. Então, a Celestial atravessou o portal.
Ela iria ver a mãe e os irmãos uma última vez. Ela iria sussurrar
para a mãe, enquanto dorme, o quanto a ama. Ela iria encontrar seus irmãos
enquanto brincavam em casa, e iria contar a eles a história da irmãzinha
mais velha que nunca conheceram, e finalmente descobriria seus nomes.
Ela precisava fazer isso, para não precisar mais olhar para trás, e para poder
seguir em frente.
Parte 4 de 10: Samuel Fulmen
Risos ecoavam pela mata, enquanto a lua brilhava cheia no céu. O
ar estava frio com a proximidade do inverno, mas as fogueiras
compensavam, tanto iluminando a noite como trazendo calor. Ao som de
uma alegre música, as pessoas dançavam, riam e cantavam ao ar livre. A
vila estava cheia de vida e alegria. Era pleno século XIX, mas aquela vila
afastada, no meio da floresta negra, conhecia pouco do progresso e dos
problemas que afetavam a Alemanha. Os chalés com teto triangular eram
característicos da região. As pessoas ali pareciam comemorar alguma data
especial que Samuel não conseguia lembrar. E, em um canto afastado,
observando as festividades e ouvindo a música alegre, Samuel tomava
alguns goles da deliciosa cerveja de região. Ele podia sentir um leve efeito
577
do álcool, deixando-se levar pela alegria. Sua condição celeste, porém,
impedia que os efeitos mais fortes da bebida o afetassem.
Samuel Fulmen era um outro homem naquela época... Claro,
setecentos anos haviam se passado desde que ele morreu como um
templário em terras romenas, mas ainda assim, aquela festa acontecera
muito antes dele visitar o Japão, conhecer Philipe Nicodemus ou presenciar
as duas grandes guerras da humanidade. Ele estava tão contagiado pela
alegria e pelo tratamento que recebeu daquela pequena vila, que sua espada
estava guardada no quarto da pousada, e seu olhar se deixava levar por uma
alemã de tranças loiras, que o olhava em retribuição com interesses
amorosos. Os olhos azuis dela freqüentemente se encontravam com os
olhos negros do Anjo. Naquela época, Fulmen ainda se deixava levar por
pequenos casos amorosos, mesmo após ter tido o coração partido duas
vezes nos séculos anteriores.
A alegria era tamanha, que Samuel não percebeu uivos próximos,
ecoando por entre os carvalhos e abetos. Ninguém viu de onde eles vieram,
mas quando notaram a presença das três criaturas, já era tarde demais.
Gritos e correria se seguiram. Uma enorme criatura, humanóide e corcunda,
mas com cabeça de lobo, invadiu a festividade, derrubando uma mulher.
Outras duas criaturas vieram pela direção oposta, encurralando as pessoas
que corriam. Eles urravam e rosnavam, suas garras rasgando carnes e
partindo ossos, enquanto os habitantes da vila caíam um a um.
Samuel despertou assustado, sentando-se na cama. Era madrugada,
mas a cidade do Rio de Janeiro lá fora se mostrava sempre ativa. O Sancti
levou a mão à cabeça, lembrando-se da tragédia que reviveu em sonhos.
Que ano era? Ele não se lembrava direito, mas o século XIX estava a
578
menos de duas décadas do fim. A vila inteira fora dizimada, alguns
poucos sobreviventes viveram para contar a história dos monstros que
destruíram sua comunidade. Samuel caiu uma vez antes que pudesse chegar
até sua espada. Quando finalmente tinha a arma em mãos, era tarde demais.
Samuel avançou em Coro duas vezes desde então, e era estranho
lembrar daquele momento em que ele mudou tanto. “Por que esse sonho
justo agora?”, pensou o Celestial, “Será que isso significa que posso estar
entrando em uma nova fase de minha vida?”.
Aquela pergunta incomodava o Celestial e, instintivamente, ele
segurava, em busca de conforto e segurança, o pequeno crucifixo preso por
uma corrente a seu pescoço. A fé era a única companheira que acompanhou
o Sancti em seus anos mortais e em sua vida celeste. Oito séculos de
existência tinham se passado desde a sua morte. As memórias de sua vida
passada agora eram tão vagas, restando apenas as memórias mais fortes,
aquelas que foram marcadas por emoções fortes. Segundo filho de Franklin
Fulmen, um nobre inglês, Samuel não seria o herdeiro das terras da família.
Por isso, seu pai desejava que ele levasse uma vida dedicada a Deus, e
portanto ele foi alistado entre os templários, onde aprendeu sobre os
princípios de pobreza, castidade e obediência. Com sonhos de proteger e
retomar a terra sagrada, Samuel Fulmen morreria durante a sétima cruzada,
como muitos outros. Mas nem mesmo o renascer fez com que sua fé
fraquejasse. Pelo contrário, isso a fortaleceu. Em vida ele teve dúvidas
sobre a existência de Deus e os ensinamentos da bíblia, e sua fé foi testada
muitas vezes, tendo de obedecer a ordens sádicas ou suicidas, e até mesmo
sendo forçado pelos companheiros a estuprar uma camponesa. Na morte,
ele tinha encontrado as respostas, e aquela certeza formou o escudo que
579
regeria as ações de Samuel Fulmen. Ele seria tudo o que não foi em
vida: seria um protetor, um santo, um guerreiro de Deus.
Desde então, sua nova existência passou por muitas fases,
conforme ele adquiria experiência e sabedoria. A princípio, Samuel era um
fanático, cego pelo orgulho daquilo que se tornara. Tentando ser a epítome
do arquétipo angelical, ele se tornava um protetor da igreja, lutando contra
a corrupção. Imaginando-se maior do que realmente era, Samuel se deixou
enganar muitas vezes, caindo vítima de planos demoníacos e manipulações.
Essas derrotas deram-lhe sabedoria, mas foi uma mulher que finalmente fez
com que ele mudasse. Foi quando ele conheceu o amor carnal e a paixão,
através de uma outra Celestial, Sarah.
No Rio de Janeiro do século XXI, Samuel se deitou novamente,
enquanto olhos lacrimosos continuavam a recordar fatos passados.
Memórias da morte de Sarah permeavam seus pensamentos. Aquele evento
foi a segunda grande mudança de sua vida. Foi quando Samuel se tornou
fúria encarnada, um amargo protetor às bordas da depressão e da
autodestruição. O nome do assassino até hoje ecoava em sua mente...
“Abla-Aziz”. O maldito demônio escapou da vingança de Samuel, mas seu
culto, o Triângulo de Aziz, foi caçado e dizimado pelo anjo e seus aliados
ao longo de três séculos. A fúria demorou a passar, e quando tudo aquilo
teve fim, Samuel estaria mudado pela quarta vez. E, novamente, foi uma
mulher que o fez mudar.
Lizette foi o segundo amor do anjo, um encontro do acaso que o
encantou enquanto ele percorria as ruas da velha Paris do século XVII.
Uma jovem de apenas dezesseis anos, prometida a um nobre muito mais
velho. A paixão fez com que Samuel perdesse seu bom senso, e ambos se
580
entregaram a um amor proibido. No fim, porém, Lizette se casou, aos
19 anos. O Sancti teve de deixa-la ir, com um coração partido, mas sabendo
que a mortalidade dela os separaria de qualquer forma. Muitos eram seus
inimigos, e a própria vida de Lizette estava por um triz quando a separação
se deu. Desde então, Samuel tentou esquece-la, entregando-se a amores
passageiros. Ele passou a viajar pelo mundo, vivendo pela espada e pelas
paixões que sentia. Naquele período, ele começou a se sentir arrogante
novamente, acreditando-se poderoso o suficiente para resolver qualquer
problema. A Quarta Grande Guerra no Éden fez com que ele notasse o
quão pequeno ele era, mas foi finalmente o descuido na Floresta Negra que
fez com que ele abrisse seus olhos.
Desde então, Samuel buscou aprimorar-se em disciplina e
conhecimento. Mantendo seus sentimentos sob controle, ele viajou a
lugares ainda mais longínquos, lutou em duas guerras mundiais, visitou um
Japão destruído pela guerra e conheceu grandes homens, como Philipe
Nicodemus, Gabriel Ignisancti e outros. Ele morou em vários países,
sempre mantendo, com orgulho, seu nome de batismo, mas vivendo
múltiplas vidas. Do Japão à Rússia, da Rússia à África do Sul, e,
finalmente, ele chegava ao Brasil, instalando-se no Rio de Janeiro no final
da década de 1980.
Em todos os lugares em que viveu, Samuel se dedicou a caçar as
criaturas das sombras, os cultos, vampiros e licantropos que insistem em
depredar a humanidade. No Brasil, ele conheceu mais uma paixão, a
primeira a toca-lo após tantos anos, desde o incidente na Alemanha:
Karina. Ela o lembrava a jovialidade de Lizette e do sorriso de Sarah, mas
essas lembranças também traziam melancolia. Após tanto tempo ocultando
581
seus sentimentos e mantendo uma forte disciplina, Samuel já não sabia
mais como lidar com amores e paixões. Ele tentou se afastar, o que no fim
os separou, mas ela sempre se manteve tão perigosamente próxima a ele...
“E agora”, Samuel Fulmen pensava em sua cama, “talvez eu esteja
entrando em uma nova fase de minha vida”. Pensamentos sobre o que viria
perturbavam sua mente. Pior ainda era saber que Karina estava envolvida,
que talvez ela não sobrevivesse. Ela sempre foi tão vulnerável, tão pura... O
pensamento de perde-la era pior do que a idéia de morrer.
Em breve, ambos atravessariam os portões do Inferno, na linha de
frente de uma guerra inimaginável. Apoiando a cabeça sobre os braços
cruzados, deitado em sua cama, Samuel Fulmen não podia deixar de pensar
que seus oitocentos anos de existência talvez tivessem sido apenas uma
preparação para o que estava por vir...
Parte 5 de 10: Amazarak
As escadas de Oostegor eram longas e dolorosas, como o caminho
de todo Decaído. Fosse Amazarak um mortal com sua idade aparente, ele
jamais conseguiria fazer toda aquela caminhada. As intermináveis espirais
impediam que os mais impacientes alcançassem os andares elevados da
torre, enquanto ainda permitiam a cada viajante pensar e refletir sobre
quaisquer preocupações que tomassem suas mentes. A mente de Amazarak
se enchia de perguntas. O velho Decaído continuou sua ascensão pela torre,
e a cada vitral que atravessava, a Cidade Eterna abaixo parecia cada vez
menor e mais insignificante.
As reuniões finalmente tinham terminado, e os dignitários das mais
distantes regiões do mundo já tinham deixado o santuário da Corte Negra.
582
Lá fora, os Caídos ainda trabalhavam para reerguer os monumentos
destruídos recentemente, na batalha entre Lúcifer e a traidora, Azubah. Na
mente de Amazarak, porém, ele não podia deixar de pensar que Azubah
fora a vítima, e que a real natureza do invasor jamais seria revelada aos
Caídos que viviam ali embaixo. “Que esta seja a punição dos traidores”,
foram estas as palavras que se espalharam pela Cidade Eterna. O nome do
Grande Lorde Agliareth jamais fora revelado, para que os Caídos jamais
soubessem o quão vulneráveis estavam em seu suposto “refúgio seguro”.
E era a segurança da Corte Negra que preocupava Amazarak. O
incidente mostrou o quanto a cidade estava vulnerável. Quase setenta anos
atrás, ela fora invadida uma vez, mas por humanos. Os lacaios de Hitler e
Mussolini vieram em busca de segredos ocultos, em sua campanha para
dominar armas secretas e compreender o lado oculto do mundo. Numa
expedição liderada por ocultistas da Thule Gesellschaft, os soldados
invadiram a cidade, sem saber o que os aguardava. Nenhum deles jamais
retornou para casa, e todos os documentos relacionados a essa expedição
foram queimados pelos agentes da Corte Negra ou perdidos no tempo. Mas
agora a Cidade Eterna poderia ser alvo de algo maior do que os mortais.
Dias atrás, antes de partir de Oostegor, Shemhazai-chamado-
Samyaza havia procurado Amazarak. Embora traiçoeiro, Shemhazai tinha
uma percepção apurada, e suas palavras ainda atormentavam o velho
Arcanjo Decaído. “A Estrela da Manhã brilha mais fraca, há algo
acontecendo que ainda não sabemos”. Quando, esta manhã, chegaram
notícias de que algo estranho estava ocorrendo no Éden, que as forças
celestes começavam a se armar e se concentrar, as preocupações de
583
Amazarak apenas aumentaram. Algo grande está por vir. Mas o que
poderia ser? Amazarak perguntaria à Estrela da Manhã em pessoa.
Amazarak parou diante do 13o. e último portão de Oostegor, o
“portal do trono”. O vitral logo atrás do portão não revelava mais a Cidade
Eterna, apenas escuridão, como se as mínimas luzes da cidade fossem
incapazes de alcançar tal altura... ou talvez porque uma escuridão
sobrenatural tocasse este andar da torre. Amazarak segurou a argola presa
ao portão, puxando-a e batendo-a pesadamente três vezes contra o portal de
ferro. O som ecoou e, por alguns instantes, não houve qualquer resposta.
Amazarak aguardou por alguns segundos. Afinal, o que eram alguns
segundos para alguém que viveu milênios? Dois minutos se passaram, até
que um som de algo pesado se movendo anunciou a lenta abertura do
portão, revelando além uma sala imersa numa profunda escuridão. Mais de
quinze metros à frente, duas tochas, ardendo em chamas espectrais
vermelhas, iluminavam um grande trono de pedra como se ele flutuasse na
escuridão, sobre o qual o Príncipe dos Caídos se sentava, aguardando que
seu conselheiro entrasse. As sombras tremulantes escondiam as feições da
Estrela da Manhã. “O que deseja, Amazarak?”, a voz do Decaído ecoou.
Amazarak se ajoelhou, curvando-se diante do portão, entre a luz
fraca da escadaria e a escuridão do salão. “Como seu conselheiro, desejo
saber mais para melhor aconselha-lo, meu senhor”, respondeu o velho, logo
após adicionando: “Estou muito preocupado”.
“Erga-se, irmão”, ecoou a voz de Lúcifer, que permanecia imóvel
sobre o trono. Sob as sombras, era impossível ter certeza se mesmo seus
lábios se mexiam. “Não deve rastejar por ninguém, pois é meu igual. O que
o preocupa? O que deseja saber?”.
584
Amazarak entrou na escuridão, sem medo ou hesitação. Ele e
Lúcifer conviveram por mais tempo do que ambos podiam lembrar.
Onesimus era o braço direito da Estrela da Manhã, mas Amazarak era sua
consciência, a voz que murmurava em seus ouvidos evitando que o pior
ocorresse. “É claro que algo está por acontecer. Os sinais indicam que os
tempos estão mudando. Os Gwai Wang nos atacam em massa e nos
expulsam do oriente, enquanto os Shaitani se organizam e se preparam para
algo que virá. No Éden, os Celestiais silenciosamente se preparam para
algo. No Inferno, um exército sem precedentes marcha rumo às planícies de
Gehenna. Em Oostegor, oito Celestiais são abrigados por você, e o senhor
tenta impedi-los que libertem algo ou alguém. Ao mesmo tempo, surgem
duas manifestações dos Grandes Lordes... Uma que seguia para o ocidente,
outra que nos atacou em nossa própria casa e avisa ao senhor sobre um
pacto que você tentava evitar. Meus sonhos se tornam mais caóticos a cada
noite, indicando que algo está por acontecer, algo que vai abalar as
fundações da criação divina. O que está acontecendo, meu senhor?”.
“O apocalipse, meu fiel servo. O fim de uma era, velho amigo”,
respondeu Lúcifer, sua voz estranhamente fria, indiferente. As sombras
tomavam seus olhos, mas Amazarak podia sentir o olhar de Lúcifer encara-
lo.
Um frio percorreu a espinha de Amazarak. Aos sussurros, o velho
decaído perguntou: “Que pacto você fez, meu senhor? Qual é seu papel
nesta nova era?”.
“Eu assegurei que o Inferno nunca mais entre em nosso lar,
Amazarak”, respondeu Lúcifer. “Nos tempos que virão, a Cidade Eterna
será uma ilha de estabilidade, talvez a única.”
585
“Mas a que preço?”, o ancião perguntou.
“A um preço maior do que qualquer outro pacto que tenhamos feito
com o Inferno... Mas este será o último pacto, o último acordo. Cumprida a
minha parte, começará nossa ascendência.”
“Ascendência?”, perguntou Amazarak.
“Uma guerra está se aproximando, velho amigo”, a voz de Lúcifer
ecoou murmurante, “e eles vão lutar uns com os outros novamente... mas
nós... nós sempre fomos os abandonados pelo Éden. Sempre fomos
forçados a fazer pactos para nossa segurança. Mas não mais. Eles lutarão
uns com os outros, e minha vingança contra ambos poderá começar.”
Amazarak fechou os punhos, talvez por não crer no que ouvia.
“Quando irá começar, meu senhor?”, ele perguntou, a preocupação
transparecendo em sua voz.
“Em breve”, Lúcifer murmurou friamente, “muito em breve”.
Parte 6 de 10: Armin Ansgar
Madeira se chocou com madeira. “Dê tudo de si! Use tudo o que
tem!”, gritou Ansgar, enquanto Absolon recuava, desajeitadamente após o
tremendo impacto entre as duas espadas de madeira.
“Até mesmo meus poderes?”, perguntou Absolon, seus olhos azuis
arregalados diante da força do oponente.
“Especialmente seus poderes”, Ansgar respondeu, empunhando
com ambas as mãos a longa espada de madeira, tão comprida quanto sua
espada de verdade.
Absolon fechou os olhos por um instante, concentrando-se. Ansgar
deu um passo para trás, fitando o oponente, ignorando o salão, as colunas e
586
a arquitetura árabe ao redor. Para o Venator, havia apenas a arena ali. A
arena e um amigo a ser treinado.
Aos olhos dos dois espectadores ali presentes, porém, havia mais a
ser visto. Fabrizia se mantinha calada, abraçando suas pernas, enquanto via
com apreensão o treinamento de Absolon. Al-Malik, porém, olhava
fascinado para Absolon, imaginando o quanto ele evoluíra desde que a
longa jornada do grupo começou.
Absolon avançou. Ansgar deu um passo à frente, traçando um
grande arco horizontal com a lâmina de madeira, aproveitando-se do maior
alcance de sua arma. Com um movimento rápido, Absolon jogou sua
lâmina para a esquerda, fazendo ambas as armas se chocarem. O impacto
quase desequilibrou o jovem Princeps, mas este se forçou a avançar,
usando a espada para manter a lâmina do Venator afastada, e então
chocando seu corpo contra o de Ansgar.
Ansgar desequilibrou-se com o impacto, recuando para tentar se
manter em pé. Absolon urrou, segurando firmemente a espada acima da
cabeça para dar o golpe final. O golpe seria perfeito, se o Venator não fosse
mais rápido. Madeira se chocou com madeira novamente e, com um
movimento rápido e forte, Ansgar empurrou de volta a lâmina de Absolon,
forçando-o a recuar. Mais importante, o empurrão fez com que Absolon
pendesse a arma para a direita do corpo, e um golpe rápido de Ansgar
desceu verticalmente, atingindo o ombro esquerdo do Princeps.
Fabrizia levou a mão à boca quando Absolon foi atingido. Al-
Malik ergueu a mão: “Acabou!”, gritou o Malaki.
Absolon sorriu. “Vinte e dois dias treinando, e não venci uma única
vez”, disse o Princeps num tom sarcástico.
587
“Tenho feito isso por novecentos anos”, respondeu Ansgar, seu
olhar sério, “você ainda tem muito a aprender”. A face de Ansgar não tinha
uma única gota de suor. Absolon, por outro lado, estava ofegante e suado.
Enquanto isso, os dois espectadores se aproximavam de Absolon.
Fabrizia, sorrindo, disse: “Você melhorou”, pondo-se logo à frente do
Princeps, entre ele e o Venator.
“Você nunca teve um treinamento básico nisso, não espere ter uma
vitória fácil contra um guerreiro disciplinado”, disse Al-Malik, “Mas não se
sinta mal, eu tenho treinado por muitas décadas, mas a perícia de Ansgar,
Samuel e Lo Wang me deixam envergonhado”.
Ansgar, vendo que todas as atenções se voltavam a Absolon,
entregou a espada de madeira a Al-Malik. “Treine-o um pouco, Al-Malik”.
Tendo pedido isso, o Venator se afastou.
“Aonde vai?”, perguntou Absolon enquanto o Venator se afastava,
levando a mão direita ao ombro atingido, como se só naquele momento dor
do impacto fosse sentida.
“Descansar um pouco, jovem Absolon, só descansar um pouco”,
respondeu, adentrando o corredor que levava ao hall de saída do templo.
Ansgar deixou o quartel de Masada, parando ao portão e
observando o que havia à frente. Uma grande praça retangular, ricamente
ornada com flores e plantas, e com uma imensa fonte no centro, cercada
por quatro largas avenidas e por incontáveis bazares e palácios. De certa
forma, esse lugar lembrava o Venator de Maidan-i-Shah em Isfahan. Ao
contrário da famosa praça iraniana, porém, que Ansgar visitara numa noite
tempestuosa, o Sol iluminava forte este lugar, e as almas de centenas de
muçulmanos caminhavam pela praça, pelos bazares ou avenidas ao redor.
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Muitas se reuniam numa mesquita do lado oposto, enquanto outras
compravam ou trocavam mercadorias, na maioria artesanato, nos bazares.
A Mecca do Éden lembrava muitas cidades árabes da Terra, como se fosse
um amálgama do que há de melhor e mais belo em cada uma delas. Esta
falsa “Maidan-i-Shah” era apenas um dos muitos pontos de beleza na
cidade celestial.
Mas Armin Ansgar não estava ali para apreciar a paisagem.
Sentando-se nas escadarias que levavam ao portão de Masada, o Venator
fitou o movimento das pessoas na rua e se pôs a pensar. Ele se perguntava o
que Nicodemus, Lo Wang, Karina e Samuel poderiam estar fazendo neste
período de trinta dias. Eles se encontrariam novamente, um dia antes da
abertura do portal, mas Ansgar se perguntava como eles estariam
preparados. O Venator, junto com Al-Malik, tinha passado as últimas
semanas treinando Absolon. Fabrizia, por sua vez, aparecia de vez em
quando, às vezes participando dos treinos, mas sempre mostrando ter mais
interesse em Absolon do que em técnicas de combate.
“Algo o incomoda?”, Fabrizia perguntou, surgindo do interior de
Masada. Ansgar se virou para fita-la, enquanto ela se sentou ao lado dele.
“Não, estava só pensando em Nicodemus, Lo Wang e os outros”, o
Venator respondeu.
“Posso perguntar uma coisa, Armin?”, murmurou Fabrizia,
virando-se para fita-lo.
“Claro”, o Venator respondeu sem se dar o trabalho de retribuir o
olhar da Xamã.
“Como vocês agüentam?”, ela perguntou, “Digo... Quando somos
vivos, há quem goste de ser um soldado, há quem treine por esporte, há
589
quem seja fascinado pelas técnicas e filosofias por trás disso tudo.
Mas... eu acho que sou de uma época diferente da sua. Não consigo
entender como você, Lo Wang e Samuel conseguem se dedicar ao combate
dessa maneira. E não entendo porque Achille se interessa tanto por isso
também”.
“É importante e necessário, Fabrizia”, respondeu Ansgar, fazendo
sinal de que desejava se levantar. Antes que o fizesse, Fabrizia o segurou
pelo braço.
“Espere um pouco, por favor”, ela pediu, e então ele se sentou
novamente. “Eu sei o que quer dizer. Nós todos passamos por aquilo tudo,
todos arriscamos nossas vidas. Mas... há outros caminhos. Asphael era um
homem inspirador, mas apesar de tão poderoso, ele não me parecia ser um
guerreiro. Al-Malik também fez coisas impressionantes e lutou de uma
forma exemplar, mas ele também não é como você... ou como Lo Wang ou
Samuel. Eu entendo a importância disso, mas não como conseguem viver
desta maneira... Digo, viver como guerreiros apenas, viver pela espada”.
Ansgar baixou a cabeça e parou para pensar. “Acho que está
enganada sobre Samuel... E às vezes tenho uma vaga impressão que não
chegamos a conhecer Lo Wang direito, que ele manteve seus segredos bem
ocultos de nós. Mas entendo o que quer dizer... Talvez eu seja assim devido
ao modo como vivi... ou talvez seja por culpa.”
“Como assim?”, ela perguntou, ainda fitando o rosto indiferente do
guerreiro.
“Eu vivi numa época muito diferente. Vivi servindo a Deus, e a
única coisa que eu sabia fazer era empunhar uma espada e cavalgar um
cavalo. Lealdade a meu rei, amor a família e fé em meu Deus era tudo o
590
que eu conhecia e pelo que eu vivia. Naquela época, defender essas
coisas significava matar”, respondeu Ansgar, finalmente retribuindo o olhar
de Fabrizia, “E por isso, eu estava disposto a matar e morrer”.
“Talvez isso eu possa compreender, mas você morreu, renasceu, e
sua vida mudou... Teve séculos para aprender novos jeitos de viver... Deus,
nem sei como alguém pode viver séculos sem ficar entediado. Mas você
viveu séculos se aprimorando nisso”, murmurou a Xamã.
“É a culpa”, respondeu Ansgar. Ele parou, baixou a cabeça, e então
murmurou: “O pior do que morrer pelo rei, por Deus e pela família, é
falhar. Viver pela lealdade me levou a ser traído enquanto cumpria minha
função. A traição me custou a família. E minha raiva e minha frustração me
custaram a vida, morrendo desonrado como se fosse um bandido comum.
Diante de uma nova chance, eu jurei que não seria mais influenciado por
políticas, que nenhum rei ou homem que diz saber a palavra de deus iria me
impedir de novo, e que eu continuaria a fazer a única coisa que eu sabia
fazer por toda a eternidade: defender pela espada até que eu morresse pela
espada”.
“Não quero ser chata”, interrompeu Fabrizia, “e posso estar sendo
irritante por ser uma jovem que não viveu tanto quanto você... mas, após
tanto tempo, continuar a viver apenas por causa disso, me parece um
desperdício”.
Ansgar se irritou um pouco com o comentário de Fabrizia, mas no
fundo ele sabia que ela, à sua maneira ingênua, tinha um pouco de razão,
mas talvez ele devesse mostrar melhor seu ponto de vista. “Há sempre algo
mais a se buscar, Fabrizia. Um sábio não presume que conhece tudo e pára
de buscar conhecimento. Eu vivi pelo ideal de ser um guerreiro. Sempre
591
haverá um novo desafio, sempre haverá uma maneira de me aprimorar,
e sempre haverá um inimigo em meu caminho. Novecentos anos é muito
pouco para quem já viveu tudo isso. Terão se passado milênios antes que eu
me canse de buscar mais sobre a arte da guerra”.
“Tudo bem”, disse Fabrizia, “mas quando foi a última vez que você
dançou com uma pessoa?”.
Ansgar ficou em silêncio. Imagens de bailes passaram em sua
cabeça, mas ele sequer se lembrava de quando foi. Mais ainda, ele se
lembrava de estar presente, mas estava fora de seu nicho, tímido e sozinho.
“Isso não vem ao caso”, ele respondeu.
“Quando foi a última vez que você saiu para rir com os amigos?”,
Fabrizia insistiu.
“Já fiz isso várias vezes”, respondeu Ansgar, incomodado.
“Fez mesmo?”, perguntou Fabrizia, sorrindo. A Xamã então adotou
uma postura mais séria, indagando: “Rir com os companheiros durante o
convívio é uma coisa. E quanto sair com eles sem qualquer intuito senão se
divertir? Tem certeza que não está confundindo os dois?”.
Ansgar a fitou, claramente contrariado com aquela conversa.
“Fabrizia, a que ponto quer chegar?”.
“Só acho que você não precisa ficar isolado assim. Quando isso
tudo terminar, Al-Malik, Achille e eu combinamos de continuar juntos,
como uma Falange”, ela respondeu. Em seguida, a Xamã sorriu.
“Queremos que venha com a gente”, ela acrescentou.
Ansgar sorriu, rindo. “Não precisava de tudo isso para tentar me
convencer”.
592
“Desculpe”, ela respondeu, sorrindo, “mas eu realmente acho
que você se liberar um pouco do seu fardo”.
“Talvez...”, Ansgar murmurou.
“Mas mudando de assunto, o que você acha do Achille?”, ela
perguntou.
“Está aprendendo rápido”, Ansgar disse, “Ele ainda está
procurando seu talento oculto. Talvez o caminho do guerreiro não seja o
mais apropriado para ele, mas ele realmente quer se sentir útil ao grupo”.
“E quanto a mim?”, ela perguntou.
Ansgar a olhou, pensando um pouco. “Apesar de tudo, não me
lembro de vê-la hesitar. Durante todo o caminho, você lutou como pôde.
Acho que você já conhece seus talentos, só não os desenvolveu
apropriadamente ainda”.
Ela sorriu. O Venator retribuiu o sorriso. “Logo estaremos indo
numa jornada muito perigosa”, disse o Venator, “então prometa que você e
Absolon se manterão a salvo a qualquer custo. E eu vou proteger os dois”.
“Pode deixar”, a Xamã concordou, ainda sorridente.
Ambos continuaram a olhar o movimento das almas de Mecca na
praça à frente. Talvez Fabrizia tivesse feito isso de propósito, pensou
Armin Ansgar. Ela estava certa: ele sempre viveu sozinho, talvez para não
ter mais a obrigação de se sentir preso a uma família que pudesse ser ferida
por seus atos. A idéia da falange, porém, era estranhamente atraente... ele
poderia continuar a ensinar o jovem Princeps, e, em troca, poderia aprender
muito com seus companheiros.
Parte 7 de 10: Abd Al-Malik
593
A noite estava alta, e uma brisa gentil soprava do leste, onde o
Mar de Prata se encontrava com a costa de Mecca. À noite, o calor vindo
do deserto de Hik-up-tah se dissipava, tornando o ar refrescante, e trazendo
a umidade do mar. As luzes das casas e templos compensavam pela pouca
iluminação das ruas. Acima, a grande lua do Éden brilhava majestosa,
banhando a cidade com uma fraca penumbra prateada.
À frente de uma das sacadas da ponte de Bahr Al-jebel, Al-Malik e
Ansgar se sentavam sobre grandes almofadas dispostas no chão. A ponte,
uma maravilha arquitetônica que unia as partes norte e sul de Mecca
através do rio de Bahr Al-jebel, era tanto uma via de travessia como, em
seu interior, um grande bazar.
Al-Malik liberou a fumaça do narguileh que ambos fumavam,
formando uma nuvem circular que se dissipou rapidamente. “A idéia de
uma falange foi de Fabrizia, na verdade”, respondeu o Malaki a Ansgar.
“Aparentemente, ela perdeu seus companheiros no México e, como parece
que ela e Absolon decidiram ficar juntos, eu me prontifiquei a acompanha-
los. Ela também sugeriu chamá-lo”.
“E o que você acha disso? É uma boa idéia que nós dois os
acompanhemos?”, perguntou Ansgar.
“Eu não tenho que julga-los, Ansgar”, respondeu Al-Malik, “mas
por que seria uma má idéia?”.
“A diferença de idades é muito grande”, respondeu o Venator,
“talvez não consigamos acompanhar o ritmo deles... ou pior, eles podem
não acompanhar o nosso ritmo”.
“Eu entendo sua posição, Ansgar, mas acho que temos muito a
aprender uns com os outros”, respondeu o Malaki, um sorriso expresso em
594
sua face. “Deus quer que aprendamos constantemente e que ensinemos
também. Eu tenho muito aprender com os mais jovens e, além do mais, eu
adoraria aprender com você, amigo. Não se esqueça que, embora eu seja
um Arcanjo, você possui muitos séculos de sabedoria à minha frente”.
“Eu sou apenas um guerreiro, Al-Malik”, disse Ansgar, “não um
sábio ou um juiz”.
“E ainda assim você carrega a experiência de muitos séculos de
existência, Ansgar”, o Malaki disse, “Você viu nações se erguerem e
tombarem, conheceu muitas pessoas. Você viveu muito e, portanto,
aprendeu muito. Talvez não perceba, mas é sábio ao seu próprio modo.
Mas, se ainda tem dúvidas, vamos caminhar juntos. Como sábio, posso
ensina-lo muito. Como guerreiro, posso aprender muito”.
Silêncio se seguiu, pois era a vez de Ansgar tragar a fumaça do
narguileh. Desacostumado a fumar, o Venator estranhou a sensação, mas
não tossiu como um mortal faria. Mesmo após expulsar a fumaça, Ansgar
permaneceu em silêncio.
“Algo mais o preocupa, ou você ainda não se convenceu?”,
perguntou Al-Malik, um sorriso surgindo em sua face.
“Estava pensando em Fabrizia e Absolon. Nós estamos indo para o
Inferno, Al-Malik. Eu estou com medo, mas não vou hesitar. Ainda assim,
temo que não possa protege-los lá”, respondeu o Venator.
“Medo todos temos, Armin Ansgar”, disse Al-Malik, escondendo o
sorriso, “mas não há Deus a não ser Deus, e todos os dias rezo para que Ele
nos proteja em nossa jornada pelo reino de fogo”.
“Não me leve a mal... mas eu preferiria não ter de depender disso”,
murmurou Ansgar.
595
Al-Malik fitou os olhos do Venator. “Talvez reconforte mais se
eu mudar minha maneira de falar, Ansgar. O que tiver de acontecer, irá
acontecer. Mesmo desistir simplesmente significaria que nosso destino era
não ir. Você quer desistir?”.
“Não. Eu jamais desistiria”, respondeu Ansgar.
“Então você já aceitou seu destino”, respondeu Al-Malik, “como
eu, Absolon e Fabrizia aceitamos. Ter medo agora não mudará o que há de
acontecer. Apenas rezo para que o plano de Deus seja piedoso”.
Ansgar parou e pensou nas palavras de Al-Malik. “Você está
certo”, ele murmurou. “Preocupar com o que acontecerá é inútil. Teremos
de nos preparar e ver”.
Al-Malik sorriu, e então puxou o narguileh para tragar um pouco
mais de tabaco. Antes que tragasse a fumaça, porém, o Malaki fitou
Ansgar: “Eu confiarei no plano divino, Ansgar. Deus se manifesta nas
pequenas e grandes coisas. Quando o profeta foi perseguido pelo deserto,
bastou uma aranha tecer sua teia para salva-lo. Todos nós vimos milagres
em nossa jornada, e acredito haverá muitas maravilhas em nosso caminho.
Tenha fé, se não em Deus, em você e seus companheiros. Você está pronto
para usar sua espada?”. Tendo perguntado isso, Al-Malik tragou a fumaça
do narguileh.
“Estou”, o Venator respondeu.
“Então eu não tenho nada a temer”, sorriu Al-Malik, liberando a
fumaça numa forma circular, que logo se dissiparia.
Parte 8 de 10: Urias
596
A escuridão era intensa, e os olhos do Arcanjo brilhavam
dourados para que sua visão penetrasse no véu de trevas. As paredes das
cavernas eram irregulares, os caminhos se dividiam freqüentemente, mas
Urias sabia qual direção seguir. Ele descera a estas profundezas muitas
vezes nos últimos dias, sempre preocupado com os sons que ele ouvia
emanarem das entranhas da terra. O respirar do dragão parecia cada dia
mais intenso, como se estivesse próximo do despertar.
A proximidade da Quinta Grande Guerra preocupava Urias, mas
aquilo que tomava seus pesadelos e invadia seus pensamentos não eram
cenas de uma guerra nos portões do Inferno, mas sim os urros e o respirar
constante daquilo que estava aprisionado no âmago de Libraria. As
profundezas o chamavam constantemente, e ele podia sentir a respiração do
dragão corroer rocha.
Na escuridão plena, guiado apenas pelo instinto e pelos sons do
dragão, Urias mais uma vez alcançou a câmara. Ali, no altar, estava o jarro,
cercado pelas runas fabuláricas que o selavam. Urias se sentou, apoiado na
parede, e fitou o jarro novamente, como fez tantas outras vezes no último
mês. Ele podia sentir um poder irresistível emanar daquele objeto de barro,
como se fosse uma fumaça espiritual pútrida e corrosiva. Como se
conversasse com o jarro, o Arcanjo resmungou: “Se isso é um terço do seu
poder, Leviathan, eu não posso imaginar o que é o poder de um Grande
Lorde”. Urias estendeu a mão, tocando levemente o objeto. Ele podia sentir
fúria e dor, crueldade e sofrimento. Fechando os olhos, o Arcanjo viu um
reino de fogo e guerra, ardendo em magma derretido e em sangue
derramado. E ele também sentia algo mais, uma força externa... uma
sombra à espreita....
597
O Arcanjo Urias removeu a mão do jarro, pensativo. Embora
ele posasse como Primordial, ele era muito mais do que isso. Serafim entre
os Spiritus Latro, Urias mantinha sua real associação oculta a fim de
proteger o segredo secular de seu Clero perseguido. Mas mais do que um
Spiritus Latro, Urias era um dos três sobreviventes, os únicos a
sobreviverem ao expurgo e viverem para que seu Clero pudesse continuar a
existir. Urias tinha passado por muitas experiências, e esta experiência
agora dizia a ele que algo estava terrivelmente errado em toda esta trama.
Ele não podia deixar de comparar tudo isso à sua própria história.
Ele conheceu um grande homem no passado, que viu mais do que outros
poderiam ver, que tentou redimir o Príncipe dos Caídos e, no processo,
tornou-se mais do que era. Mas Urias também viu esse grande homem ser
perseguido, quando uma mão invisível direcionou o Éden contra seu
mentor. Mais ainda, ele viu seu mentor resistir sozinho ao poder dos
Grandes Lordes e, no final, fracassar, sendo consumido, em corpo e alma,
pela monstruosidade que se manifestara no Éden. Aquela foi a
conseqüência da Quarta Grande Guerra.
E agora, a Quinta Grande Guerra começaria. Que conseqüências o
conflito traria? Talvez a tragédia de Caesar, Primus dos Protectori, pudesse
se repetir? Entre os Veritas, alguns murmuravam que tudo isso era por
Veritatis, que seu desaparecimento no fim da Quarta Grande Guerra foi o
princípio de tudo.
Mas Urias não podia acreditar nisso. Ele alertou Baltazar e Reyel
sobre suas suspeitas, e os Spiritus Latro foram comandados a tomarem
posições na guerra vindoura. O Clero oculto não iria para a frente de
batalha, mas sim permaneceria no Éden e na Terra, observando e tentando
598
ver o que os outros Cleros não podiam ver. A visão de Urias, Serafim
entre os Spiritus Latro, dizia outra coisa a ele.
“Todos acreditam que Veritatis é o centro de tudo isso”, murmurou
Urias, seu olhar fitando o jarro, como se encarasse os olhos do monstro em
seu interior. “Eles estão enganados, Uriel-chamado-Veritatis não é o centro
de tudo. É você, Leviathan. Você é o início e o fim, tudo se centra em você.
Eu vou vigia-lo, para ter certeza de que você vai permanecer aprisionado
aqui, desgraçado”.
O respirar de Leviathan tornou-se mais intenso, e Urias ouviu um
urro nas profundezas de sua mente. Poderia ser uma reação instintiva dos
fragmentos de alma aprisionados ali? Ou será que Leviathan poderia
compreender as palavras do Arcanjo?
599
Parte 9 de 10: Achille Absolon
“Jamais abandonaria meus companheiros”, Absolon pensou,
lembrando que tinha dito o mesmo tantos dias atrás, quando todos se
preparavam para entrar nas profundezas de Dur Sharrukin. Ele estava
assustado naquele dia, congelado de medo ao saber que entraria em tal
lugar, que poderia não voltar.
Desta vez, Achille Absolon iria a um lugar muito pior, a origem de
todos os pesadelos, o próprio Inferno. E, embora tivesse medo e receio, ele
não queria mais hesitar. Absolon fitou as estrelas acima, enquanto
permanecia sentado numa varanda do quartel de Masada. As ruas de Mecca
à frente estavam vazias, poucas almas caminhavam pelas vias a esta hora
da madrugada. O silêncio era confortante, mas o jovem Princeps sabia que,
em menos de três dias, haveria guerra. Os trinta dias de paz estavam
chegando ao fim.
Achille Absolon puxou sua espada, pondo-a diante de si. Ele olhou
a lâmina e o cabo prateado, e então fechou os olhos. Havia algo naquela
arma que o deixava ansioso. Tê-la em mãos dava-lhe confiança. Desde sua
vida mortal, Absolon desejava seguir o caminho do guerreiro. Ele sempre
foi fascinado pelos guerreiros medievais, pelos samurais japoneses, pela
noção de honra e força. Ele gostava de heroísmo e de heróis, e sonhava em
ser um. Sua vida nunca foi excepcional, nunca foi marcada por nenhum
evento diferente do normal, salvo talvez sua morte estúpida nas mãos de
uma gangue de valentões, aos 23 anos de idade. Ele não deveria ter reagido,
mas Absolon sempre reagiu a tudo que o contrariou na vida. Ele brigava
com os valentões na escola, discutia com quem não se dava ao trabalho de
se defender como ele. Ele gostava de se manter sempre fora de problemas,
600
mas não fugia quando os problemas vinham até ele, e isso atraiu tanto
amigos, que gostavam de sua honestidade, como colegas que admiravam a
“coragem”. Hoje em dia, Achille Absolon chamaria a impulsividade de
tolice. Certamente, o Celestial amadureceu muito desde a morte, e os
desafios da nova vida o ensinaram o valor da cautela.
Mas Achille Absolon não era um covarde. A princípio, ele seguiu o
Caminho da Liberdade, talvez por medo dos novos desafios, mas de agora
em diante, ele buscaria seu sonho, o Caminho do Guerreiro. Em Dur
Sharrukin, Al-Malik havia dito: “Todos nós temos esse medo. Não sou
guerreiro, mas porto uma espada, e conheço os perigos de empunha-la. Se
soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde, teríamos a coragem de
puxar nossas espadas e avançar, sem medo da morte?”. E Absolon sabia
que, chegado o momento, ele avançou contra Shiva e sobreviveu. Em
Jerusalém, Al-Malik tinha revelado ao Princeps: “Seu problema é que não
entende que é preciso sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma”.
Absolon finalmente podia compreender isso.
Absolon fitou a espada, que parecia brilhar ao refletir a luz prateada
da lua celeste. Nas últimas, esta espada foi uma grande companheira para o
Princeps. Em breve, ele a manejaria no Inferno, usando todo o
conhecimento que adquiriu, treinando com Al-Malik e Ansgar, dois
grandes professores. Os movimentos fluidos de ambos se repetiam na
mente do jovem Anjo. “Em breve, você fará o mesmo”, uma voz ecoou em
sua mente.
“O que você faz aqui sozinho?”, uma segunda voz, desta vez
feminina, veio por trás. Os pensamentos de Absolon cessaram
601
imediatamente e, num susto, ele se levantou, virando-se para ver quem
se aproximava.
Fabrizia riu. “Peguei você desprevenido?”, ela perguntou.
O Princeps sorriu em resposta, passando a mão no cabelo para se
recompor. Seus olhos fitaram os de Fabrizia. Ela estava linda, mas
certamente as almas de Mecca se sentiriam ofendidas se ela saísse assim na
rua em pleno dia. Seus longos cabelos negros estavam desta vez soltos, sem
nenhuma bandana ou trança para prende-los. Descalça, com um pequeno
shorts e um top, ela deixava as pernas, braços e barriga à mostra.
“Alô?”, ela murmurou, passando a mão diante da face do Princeps,
fazendo com que ele acordasse.
“Desculpe-me”, pediu Absolon, “eu estava distraído”.
“Com o quê?”, ela perguntou, e então fitou a espada que Absolon
empunhava. Vendo a arma, Fabrizia ficou um pouco mais séria.
“Nada”, Absolon respondeu, mas na verdade não quis admitir que a
beleza dela o encantava. Não foi sempre assim... No começo, Absolon tinha
olhos apenas para Karina. A atração dele por ela era forte, movida pela
aparência da Supervivente. Karina sempre se manteve distante, porém,
enquanto Fabrizia se aproximava mais e mais do Princeps. Embora algo em
Karina ainda o atraísse, Absolon agora admirava a Xamã. Eles se beijaram
pela primeira vez no Rio de Janeiro, no apartamento de Samuel, mas os
outros ainda não sabiam disso. Porém, depois daquilo, depois de Shiva,
ambos tinham se afastado um pouco. Apesar de tudo, Fabrizia se mantinha
ainda tão intimamente próxima dele...
“Você tem estado muito distante, Achille”, ela disse, se
aproximando do Princeps, “Eu só queria conversar um pouco”.
602
Absolon segurou a mão da Xamã e seus olhos se encontraram.
Indicando que ela se sentasse no banco próximo, ele disse: “Na verdade, eu
também queria conversar”. Fabrizia sorriu, sentando-se, e o Princeps se
sentou ao lado dela.
“Bem...?”, insinuou Fabrizia, esperando que Absolon iniciasse a
conversa.
“Bom... Eu tenho estado distante realmente”, ele começou, “Você
sabe muito bem o que teremos de fazer em breve... e eu quero melhorar,
preciso estar preparado. Eu não quero que nada de mal te aconteça, Fabi”.
“Eu não vou passar por nada que você também não passe, Achille”,
disse ela, tocando o rosto dele. “Você sabe disso. E sabe que também estou
preocupada com você. Eu acho que já está pronto. Só nos resta amanhã... e
no entardecer de depois de amanhã, já vamos nos encontrar com os outros,
lembra...?”.
“É por isso que eu preciso estar pronto”, ele disse.
“Você já está pronto”, ela interrompeu. “Dois dias não vão ser
suficientes para você mudar ainda mais, mas são um tempo precioso para
ficarmos juntos. Não sabemos o que pode ocorrer depois”.
Absolon baixou a cabeça. “Você tem razão”, ele iria dizer, mas
então sentiu o toque gentil dela em seu queixo, erguendo sua face. O rosto
dela estava tão próximo do dele, que a respiração de um tocava a face do
outro. Ele pensou em beija-la, fechou os olhos para faze-lo, mas então,
sentiu o dedo dela tocar seu lábio, e a face dela se afastou.
“Façamos assim”, ela disse sorrindo, “Se você quer saber se
realmente melhorou, eu e você vamos duelar”.
603
“Como é que é?”, ele perguntou, totalmente despreparado para
o que ouvia.
“Você acha que pegar numa espada é saber lutar, Achille
Absolon?”, ela perguntou, um sorriso maroto destacando-se em sua face.
“Eu vou te dar uma surra como você nunca tomou antes. Aí, quem sabe,
você pensa diferente, e me dá um pouco mais de valor”.
“Eu não acho isso necessário...”, ele respondeu, rindo.
O olhar dela permaneceu inalterado. “Vamos para um lugar onde
não vai incomodar ninguém, ok? Pegue duas daquelas espadas de madeira e
me passe sua camiseta.”
“Minha camiseta? Por quê?”, perguntou o Princeps.
“Porque estou de top, seu bobo”, ela piscou, sorrindo, “Se eu abrir
minhas asas e rasgar o top, vou ficar praticamente nua”.
“E o que há de mal nisso?”, brincou Absolon, sorrindo, mas ainda
descrente quanto ao desafio de Fabrizia.
Os lábios da Xamã se aproximaram do ouvido de Absolon,
enquanto, murmurando: “Isso, meu querido, fica para depois”.
Parte 10 de 10: Fabrizia
O céu acima estava escuro, como um véu negro que só era rompido
pela luz da lua e das estrelas. No horizonte a leste, porém, um suave brilho
vermelho anunciava que o sol se ergueria em breve. Nos céus escuros, duas
formas brilhantes, uma levemente vermelha, outra dourada como o sol que
logo nasceria, viajavam para o sul. Embora inaudíveis do chão, ambas as
figuras sorriam e riam.
604
“Pensei que seria um duelo”, indagou Absolon, vestindo
apenas uma calça bege. Sua forma celestial irradiava dourada, suas faixas
de luz se expandindo na noite, balançando em conjunto como se fossem
asas que batiam.
“Calma!”, riu Fabrizia, que vestia apenas shorts e a camiseta de
Absolon. As costas da camiseta tinham se rasgado, dando lugar a grandes
asas de cor marrom-clara. O corpo de Fabrizia irradiava vermelho, mas não
só seu corpo, como seu espírito parecia irradiar de alegria. “Estamos
chegando!”, ela avisou, mantendo-se na frente de Absolon.
Absolon se calou, observando os movimentos da companheira.
Fabrizia parecia brincar nos ares, mergulhando e elevando-se em seguida,
dando giros e, logo depois, deixando-se cair por algumas dezenas de metros
antes de voltar a tomar altitude. Os olhos do Princeps a acompanhavam
com fascinação, pois em nenhum outro momento ela tinha se mostrado tão
livre, tão alegre. Fabrizia sorria muito, tendo finalmente capturado a
atenção do companheiro.
Na mente de Fabrizia, aquilo era uma loucura. Quando ela foi
procurar Absolon durante a noite, ela já estava com a idéia na cabeça... Mas
daí a propô-la de verdade? Ela sempre teve idéias malucas... tão malucas,
na verdade, que algumas até funcionavam. Tudo pelo qual os dois passaram
desde o começo do ano fez com que ela se mantivesse quieta e reservada,
mas isso não era como ela normalmente agia. A vida deve ser alegre, e os
momentos ruins devem ser alegrados. Ela fazia isso sempre que possível. E
ela estava fazendo isso exatamente agora.
Por outro lado... talvez essa idéia não fosse tão idiota assim.
Fabrizia tinha seus talentos também... Talvez eles não fossem tão úteis
605
contra os horrores que enfrentaram, mas isso apenas significava que ela
precisava desenvolve-los mais. Algo que ela faria, ao lado de Absolon.
Um grande mar surgia à frente, a Fabrizia gritou ao companheiro:
“Estamos próximos! Vamos até a praia!”.
“Que mar é esse?”, perguntou o Princeps.
“Não é mar!”, ela respondeu, diminuindo a velocidade para que ele
se aproximasse, “É Lazurd!”. Os olhos de ambos se encontraram nos céus,
e então ela mergulhou em direção ao solo firme. Absolon pôs-se a segui-la.
O Lago Lazurd, praticamente um mar de água doce, estava logo
adiante. À margem, bosques verdejantes se espalhavam por quilômetros,
mas era possível perceber uma vila distante, suas luzes destacando-se na
noite. O sol logo nasceria, mas por enquanto a luz prateada da lua cheia
provia uma fraca iluminação.
Os pés descalços de Fabrizia tocaram o chão gentilmente, e suas
asas sumiram em seguida. A Xamã sacou a espada de madeira, observando
o companheiro enquanto os pés de Absolon tocavam o solo.
“Assim que os primeiros raios de sol nos tocarem, começaremos”,
ela avisou, enquanto o Princeps sacava sua própria arma de madeira.
Os olhares de ambos se encontraram. Fabrizia se mantenha à
distância, empunhando a arma com uma só mão, à frente do corpo. O olhar
dela era sério, mas sua face continua um sorriso. Absolon observou a
postura dela. Ela segurava a espada com firmeza, mas por usar uma só mão,
ele poderia aplicar força suficiente para desviar os golpes dela e atacar uma
parte desprotegida. Além disso, a postura dela era instintivamente
defensiva, indicando que ela não atacaria primeiro, que esperaria pelo
ataque dele. Ela queria mesmo duelar, ele pôde perceber, mas ficava
606
preocupado em machuca-la. “Está bem”, disse Absolon, segurando sua
arma com ambas as mãos, “o sol já está visível”.
“Então começou!”, ela avisou. Por um instante, ambos
permaneceram na mesma posição, um esperando o ataque do outro.
Fabrizia sorriu, seus olhos brilharam, e então ela avançou. Absolon tentou
se mover, mas sua surpresa, ambos os pés estavam presos ao solo, como se
a terra se erguesse para engoli-los.
O golpe de Fabrizia veio pela esquerda. Sem poder se jogar para a
direita, Absolon rapidamente pôs sua arma no caminho da lâmina da
adversária. O choque das armas emitiu um fraco som, e então Fabrizia
prosseguiu em seu movimento, parando às costas de Absolon.
Incapaz de se virar, Absolon segurou a espada com apenas a mão
esquerda, e tentou em vão um golpe horizontal para atingi-la, girando o
tronco o máximo que seria possível. A lâmina de madeira nada tocou,
porém, pois Fabrizia já estava à direita. A Xamã gritou um urro de batalha
misturado a riso debochado, e o Princeps sentiu a lâmina dela tocar
suavemente seu pescoço. “Bang!”, ela disse, imitando o som de uma arma
de fogo, “você morreu!”.
Absolon tentou fita-la, mas as pernas presas ao chão impediam que
ele se virasse totalmente. “O que diabos você fez?”, ele perguntou,
constrangido.
Fabrizia riu, apoiou a arma de madeira no ombro, afastando-se.
“Ora, querido, que tipo de demônio vai esperar você sacar uma espada e
depois vai duelar limpo com você?”.
“Eu sei o que quer dizer”, ele murmurou contrariado, “mas não
estava esperando isso num treino!”.
607
“Então você está treinando para o quê, afinal? As olimpíadas?”.
Tendo dito isso, Fabrizia parou, a cerca de seis metros de Absolon, e se
virou para ele, mirando em suas costas. “Vou te dar três segundos para
escapar”, ela ameaçou, “antes de eu atacar e te vencer pela segunda vez”.
Forçando-se para olhar para trás, Absolon pôde ver o sorriso de satisfação
da Xamã.
Fabrizia se preparou, enquanto Absolon fechou os olhos. Ela pôde
sentir o poder do Princeps fluir, e ela também se concentrou para fluir suas
energias. Fabrizia contou os segundos, enquanto Absolon permaneceu
imóvel, aguardando, enquanto tentava fita-la. Um... dois...
E três! A Xamã avançou, enquanto Absolon, num movimento
rápido, forçou-se para fora do solo, virando-se para atingi-la em seu
avanço. Fabrizia sorriu: nunca foi o objetivo dela atingi-lo. Parando no
meio da corrida, ela estendeu o braço à frente do corpo, e uma rajada de ar
atingiu Absolon, jogando-o no chão. Só então, Fabrizia avançou, erguendo
a arma acima da cabeça para desferir o golpe final.
A lâmina de madeira de Fabrizia desceu verticamente, mirando na
cabeça do Princeps caído. Empunhando a sua espada apenas com a mão
direita, enquanto apoiava a esquerda no solo, Absolon bloqueou o ataque e,
em seguida, usou de força sobrenatural para empurrar a lâmina de Fabrizia
para longe dele. Fabrizia recuou um passo, tentando erguer a arma para um
segundo golpe, mas com velocidade acima do normal, Absolon usou a mão
esquerda para se empurrar e se pôr em pé, desferindo um golpe horizontal,
mirando na barriga da adversária. A lâmina cortou apenas ar, enquanto
Fabrizia sorria, tendo esquivado-se de forma tão veloz que superava por
pouco a velocidade de Absolon.
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Os olhares de ambos se encontraram. Ela parecia animada, seu
olhar irradiando alegria e animação. Ele estava concentrado, mas ela pôde
perceber um sorriso momentâneo. Aquilo a deixava bem, ela estava
divertindo-se e sabia que ele também se divertia.
“Isso é traiçoeiro!”, ele disse, mas um sorriso discreto em sua face
confirmava que ele estava gostando.
Fabrizia sorriu, estendendo a mão à frente do corpo. Absolon
avançou, tentando atacar antes do próximo truque. Porém, antes que a
espada de Absolon tocasse Fabrizia, um trovão inundou os ouvidos do
Celestial, enquanto um clarão cegava seus olhos. Absolon perdeu o
equilíbrio e fechou os olhos, enquanto um raio elétrico passava
perigosamente perto, mas longe o suficiente para não feri-lo. Desnorteado,
a lâmina de madeira errou Fabrizia, que tratou de sair de seu caminho. “Eu
sou traiçoeira”, ela murmurou, mesmo sabendo que Absolon não poderia
ouvi-la...
Fabrizia ergueu a espada, afastando-se um passo, e então avançou
para o golpe final. Como se um sexto sentido o guiasse, Absolon esquivou-
se, fazendo com que a lâmina da adversária cortasse apenas ar. Os olhos de
Absolon se abriram, e então ele moveu a espada até o pescoço vulnerável
de Fabrizia. “Bang!”, ele disse, sua satisfação era clara nos lábios, “Você
está morta!”.
Fabrizia sorriu. Ele era realmente um rapaz incrível, e ela se sentia
bem ao lado dele. A Xamã largou a arma, e seus olhos fitaram os de
Absolon. Ele parecia ainda não poder enxergar direito, e levou a mão
esquerda até os olhos. “Você pegou pesado nessa”, ele murmurou.
609
“Me desculpe”, ela pediu, se aproximando dele, “mas se fosse a
sério, eu poderia fazer muito pior”.
“Tenho certeza que sim”, Absolon sussurrou, removendo a mão
dos olhos e abrindo-os. Ele piscou algumas vezes antes que demonstrasse
estar vendo bem novamente. “Quer tentar novamente?”, ele perguntou.
“Não”, ela disse, “acho que já consegui provar o que queria...”. Os
olhos dela se encontraram com os dele. “E acho que consegui o que queria
também, Achille”.
Absolon largou a arma de madeira, abraçando-a, e os lábios dos
dois anjos se encontraram, beijando-se lascivamente. Aos beijos, Absolon
se sentou no chão, e Fabrizia se sentou apoiada nas coxas dele, as pernas
dela envolvendo o quadril do companheiro. Por um momento, ela tocou o
peito dele, insinuando que ele se afastasse um pouco. Ela aproveitou o
breve momento em que os lábios se separaram para tirar a camiseta.
Pelo próximo dia, a vida de ambos se resumiria um ao outro, e o
mundo se resumiria àquela praia e ao bosque próximo. Por duas tardes e
uma noite, não haveria preocupações. Para Achille Absolon, só haveria os
lábios dela. Para Fabrizia, só haveria os braços fortes dele. Teria de ser
assim pelo tempo que restava... Pois depois desses últimos dias de paz,
nada mais seria o mesmo.
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Interlúdio Segundo: O Prenúncio do Fim
Lamúrias e gemidos ecoavam pelo salão, alcançando os ouvidos do
adormecido, que começava a despertar. Um fedor intenso de sangue e
podridão permeava o ar, penetrando em suas narinas. A dor era intensa, e
mesmo seus olhos teimavam a abrir. Demorou alguns segundos para que
ele pudesse perscrutar o salão ao redor. O sangue escorria por sua testa,
embaçando a visão e irritando os olhos, mas ele podia ver. As paredes eram
negras, toscas, e os vitrais vermelhos pareciam emitir uma luz fosca,
gerando uma penumbra avermelhada. Estacas se projetavam das colunas
que sustentavam o teto, e as almas dos condenados ali permaneciam,
gemendo e urrando, seus braços putrefatos lutando para escapar da
empalação. Outros estavam acorrentados às paredes, incapazes de se
mover, suas línguas arrancadas para não falarem, e suas mandíbulas
partidas para que sequer pudessem move-las. O sangue dos condenados
escorria pela rocha negra, sendo coletada em grandes fossas, cheias de
vísceras arrancadas e restos de animais e pessoas.
E, à frente, havia um velho sentado em seu trono obsidiano, vestido
apenas com um manto que nada mais era do que trapos cinzentos, sujos em
sangue e vômito. Suas mãos se agarravam aos braços do trono, revelando
dedos finos e longos, unhas enormes e quebradiças, e uma pele doentia,
amarelada, que se esticava sobre os ossos como se ele não fosse nada mais
que do que pele e ossos. Sob a pele, corriam veias negras e estagnadas. O
topo careca da cabeça do velho mostrava-se carcomido por lepra. E então, o
velho ergueu a cabeça. Os olhos do espectador fitaram órbitas negras e
vazias e, sob a barba cinzenta, viu uma bocarra anormal se mover,
revelando dentes afiados como os de um tubarão.
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Os olhos do anjo espectador fraquejaram, e ele baixou a
cabeça, enquanto o velho se levantava e se aproximava. O Celestial mal
tinha forças, seus braços doíam por causa das correntes que os prendiam ao
teto, enquanto ele permanecia pendendo no ar, suas pernas acorrentadas e
presas ao chão. Sangue escorria por sua cabeça, cobrindo seus olhos e
manchando sua barba branca, e ele vestia apenas uma tanga, revelando a
vermelhidão de uma hemorragia interna, causada pelas costelas quebradas e
pelos pulmões perfurados. Algo se movia sob a pele do abdômen, como se
uma massa de vermes se arrastasse por entre seus órgãos. Suas asas eram
apenas tocos retorcidos, arrancados à força, e suas penas ensangüentadas se
espalhavam pelo chão. O corpo era tomado por fungos, e a pele parecia
putrefata ou queimada em alguns pontos. Os lábios do prisioneiro se
moveram, cuspindo sangue. “Seus sonhos... foram... tranqüilos...?”, ele
indagou, hesitante, sua voz cheia de dor e fraqueza.
“Uriel...”, murmurou o velho, Astaroth, o Lorde da Dor, que se
aproximava e tocava o peito do Arcanjo prisioneiro. A voz ecoava como
um trovão, e as centenas de almas condenadas presas às colunas falavam
em uníssono com ele. “Os sinais são claros e, ainda assim, obscuros. Teria
você alguma serventia a mim, além de prover o sangue que bebo e a dor
que devoro? Meu irmão devolveu-me sua alma incondicionalmente ao
destruir sua casca mortal, e agora invade meus domínios com um exército
rastejando a seus pés. Qual é o significado disso?”.
“É medo o que sinto... emanando de você...?”, indagou o Arcanjo,
forçando-se a erguer a cabeça a fim de encarar os olhos vazios de seu
algoz.
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A mão do Grande Lorde tocou gentilmente a face do Primus,
deslizando como se a acariciasse. O arcanjo continha-se para não gritar,
conforme sua carne se grudava à pele dos dedos do demônio e era
arrancada lentamente pelo movimento suave de sua mão. Então, as almas e
o velho falaram novamente em conjunto, como um coral profano: “Sua
insolência é maior ao não gritar, do que ao tentar me difamar. Contenha-se
da forma como achar melhor, sua dor é como doce néctar escorrendo por
minha língua. Sofrimento é meu direito de nascença, minha força, meu
legado. Por maior que seja você entre seus iguais, em minhas mãos você é
só carne. No reino da carne, Uriel, eu sou supremo”. Então, o demônio
afastou a mão, arrancando ainda mais pele do rosto do Arcanjo no
processo. As vozes então urraram: “Aqui, eu sou seu senhor, seu dono!
Responda à pergunta que fiz!”.
“O Quarto Filho...”, murmurou Uriel-chamado-Veritatis, “...vem ao
seu encontro... ele me deseja...”. Tendo dito isso, ele baixou sua cabeça,
sussurrando: “Envie seus exércitos a ele... Expulse-o...”.
O Grande Lorde deu as costas ao Arcanjo, silenciosamente. Ele
estendeu o braço direito à frente de si, e então cravou as unhas da mão
esquerda na carne do braço exposto. Lentamente, o demônio rasgou sua
própria carne, pedaços de unha quebrando e ficando agarradas à carne,
provocando pústulas e corrosão. A dor penetrava a alma do Grande Lorde,
alimentando-o, trazendo clareza à sua mente.
“Não”, a voz do demônio e de seus escravos emanou, e então o
demônio se voltou uma vez mais ao arcanjo. “Eles marcham para o sul,
para Dudael, não para cá. É desespero que o faz me dar maus conselhos,
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Uriel? Ou é ódio? Ou...”, o demônio pausou, então murmurando: “É
medo que sinto emanando de você?”.
O Arcanjo nada disse, apenas fechou os olhos, sabendo que
estavam vindo por ele. Era isso que Ele queria... Aquele que planejou tudo,
vislumbrou tudo... o jogador que estava prestes a fazer seu movimento
final, cujas conseqüências mudariam o rumo da batalha eterna entre Éden e
Inferno. Uriel-chamado-Veritatis ardia em remorso, ódio e desespero, pois
ele não havia condenado apenas a si mesmo, como a todos que viriam
busca-lo. Sentindo dores que se espalhavam por seu corpo todo, o Arcanjo
podia perceber que o demônio se afastava e se sentava em seu trono negro,
pois as lamúrias e gemidos dos condenados lentamente voltavam a encher
seus ouvidos e a ecoar em sua alma.
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Capítulo 22: As Sete Trombetas
Ao leste, a escuridão se aproximava, enquanto ao oeste o sol
desaparecia lentamente num horizonte vermelho-sangue. Eu sentia frio,
mas não era um frio trazido pelo vento ou pela lua nascente, mas oriundo
de minha própria alma, de meu próprio medo. Ao sul distante, eu podia ver
Sancta Turrim estender-se às nuvens, como se fosse uma finíssima linha
que unia entre terra e céu. Ao redor, estavam apenas campos verdejantes,
estendendo-se até onde a vista alcança... a grama, porém, não se alcançava
a imediação ao meu redor. Ao invés disso, apenas terra infértil e rocha
negra cobriam aquele pequeno trecho dos Campos Elíseos... No centro
daquela área morta, havia um grande círculo, onde no passado sangue
celeste e fora derramado e o solo fora queimado para criar o selo que nos
protegeria. Agora, formando as cinco pontas de um pentagrama invisível,
cinco Arcanjos oravam.
Percebi meu fiel amigo Nicholas, meu velho companheiro em Sans
Vidya, vestindo uma túnica azul-clara, se aproximando de mim. “Senhor
Nicodemus”, ele disse, “os quatro últimos de seus companheiros
chegaram”.
Eu olhei para o leste, e pude à distância ver luzes cruzando o céu.
Eram dezenas, mas eu sabia que muitos mais viriam no decorrer da noite.
Quantos, porém, eu não tinha idéia. Dissipando os pensamentos divagantes,
eu me voltei a Nicholas: “Obrigado, Nicholas”. Então, direcionei-me ao
norte, a passos rápidos, enquanto Nicholas me seguia.
Logo ao norte, estava um pequeno acampamento, feito por anjos e
almas que se dedicavam aos últimos preparativos para o que viria a
acontecer. Seguido por Nicholas, caminhei por entre as dezenas de tendas,
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ouvindo o som de metal sendo movido, conforme centenas de armas e
armaduras eram preparadas para aqueles que viessem sem o devido
preparo. Mesmo faltando poucas horas, os ferreiros, tanto almas como
Tecnoanjos habilidosos, ainda trabalhavam nas forjas para preparar mais
algumas lâminas antes do momento decisivo. “Por aqui”, Nicholas indicou
o caminho. E, ao redor de uma fogueira, nossa Falange estava completa
novamente.
A primeira reação foi a de Absolon. “Nicodemus!”, ele exclamou,
mal me reconhecendo devido a meus trajes, “é você?”.
Sorri, retirando o elmo prateado que cobria minha cabeça e nuca, e
cuja proteção se estendia ao meu nariz, deixando apenas olhos e mandíbula
à vista. “Sim, sou eu. Estamos indo a uma guerra, afinal de contas”,
respondi. Era compreensível a estranheza dele, pois eu mesmo me
estranhava em tais trajes. Placas de metal prateado protegiam meu peito,
pernas e ombros, e sob o mesmo eu vestia trajes reforçados com couro
negro, que defendiam minhas pernas e braços. Eu usava pesadas botas de
couro e luvas resistentes. Minhas costas, porém, eram cobertas por um fino
tecido, para que minhas asas pudessem surgir desimpedidas. Sobre toda a
indumentária, eu ainda usava um manto cinzento. E, em respeito a Asphael
Veritas, sua espada reconstruída repousava embainhada em minha cintura.
Fabrizia, que chegara com Absolon, me chamou pelo nome e se aproximou,
me abraçando. E, abraçado a ela, eu pude perceber que todos vieram
prontos para a guerra.
Fabrizia e Absolon vestiam praticamente o mesmo que eu, mas
pude perceber que, ao invés de apenas couro, Absolon vestia um camisão
também de cota de malha para proteger seu ventre e braços, e não tinha um
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manto sobre a armadura. Fabrizia prendia seu cabelo num rabo de
cavalo único. Ambos portavam elmos semelhantes ao meu, mas ainda não
os tinham posto em suas cabeças. Enquanto Absolon portava a espada nas
costas, Fabrizia trazia um facão na cintura.
Ansgar havia chegado com eles também. Esperando que Fabrizia
me largasse para que me cumprimentasse, o gigante ruivo esboçava um
sorriso no rosto. Ao contrário dos demais, ele não portava armadura pesada,
protegendo-se apenas com uma placa peitoral e algumas placas nas pernas.
Por baixo, ele usava roupas de tecido comum, como se confiasse mais em
seu poder do que em metal para se proteger. Sua espada, porém,
permanecia presa a sua cintura.
Al-Malik vestia uma túnica, mas sobre a mesma, também
repousava um peitoral de aço e ombreiras de metal. Abaixo do cinto, a
túnica se partia à frente, como se fosse um sobretudo fechado até a barriga,
e eu podia ver as penas protegidas por placas de metal. À cabeça, ele levava
seu turbante, mas parte do tecido se enrolava afrouxado no pescoço. Sua
espada ele também levava na cintura.
E havia também os outros, que chegaram antes: Samuel Fulmen,
vestia-se como o templário que ele fora em vida, com uma túnica branca
sobre o camisão de cota de malha e o peitoral de aço, e o símbolo da cruz
vermelha destacando-se em seu peito. Luvas e botas resistentes protegiam
suas mãos e pés, e, como todos os outros, apenas suas costas estavam
desprotegidas, para que as asas nascessem livres. Ele não portava, porém,
nenhum elmo.
Karina vestia um manto negro com capuz, mas pude perceber o
reluzir de cota de malha sob o manto. Suas mãos eram cobertas por luvas
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grossas. De todos, ela era a que menos parecia depender de metal.
Porém, com surpresa, pude perceber que mesmo ela levava uma espada
curta na cintura.
E, é claro, Lo Wang, permanecia sentado ao lado da fogueira,
virado em oposição a ela, para que a luz não tocasse seu rosto. Ele vestia
sua típica roupa negra, que cobria todo o corpo salvo a cabeça. A máscara
demoníaca, porém, ele portava em suas mãos.
Era estranho pensar naquilo... em pleno século XXI, nos
preparávamos com lâminas e armas de metal, sem atenção para armas de
longa distância ou coletes. Porém, quando chegássemos ao Inferno, mesmo
o metal seria frágil contra as garras e o fogo de seus habitantes. Assim que
tudo começasse, estaríamos revivendo as guerras do passado, erguendo
espadas e lâminas contra nossos inimigos, bradando gritos de guerra e
investindo contra monstros. Eu não podia deixar de pensar que, sendo um
sábio, era tolice me aventurar na batalha... porém, eu não ousaria deixar de
carregar uma espada comigo, especialmente a espada de Lorde Asphael,
para me proteger contra o que quer que encontrássemos lá.
Luzes cruzaram os céus acima.
“Quanto tempo falta?”, perguntou Absolon, olhando os Celestiais
que se aproximavam.
“Algumas horas. Será pouco antes do amanhecer”, respondi.
“Está com medo?”, o Princeps me perguntou, e pude ver nos seus
olhos o mesmo o que eu sentia. Pavor.
“Se qualquer um de nós dissesse que não está com medo”,
murmurou Lo Wang, se levantando, “ele seria um mentiroso”.
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“Uma vez lá, não sabemos o que acontecerá”, disse Samuel, se
aproximando da fogueira ao centro do grupo, “portanto, cada um protegerá
o outro, com a própria vida se for necessário”. Então, tendo dito isso, ele
sacou a espada, estendendo a lâmina até a fogueira.
“Eu prometo”, disse Ansgar, sacando sua grande espada, e fazendo
com que a ponta tocasse a lâmina de Samuel, sobre o fogo.
“Que tenhamos medo de atravessar o portal, mas não de morrer por
nossos companheiros”, murmurou Lo Wang, repetindo o ato com sua
lâmina negra.
Eu saquei a lâmina de Asphael, também tocando as lâminas dos
demais, e Al-Malik e Absolon o fizeram em seguida. Fabrizia e Karina
repetiram o ato. E, com oito lâminas convergindo sobre o fogo, nos
entreolhamos. “Meu Clero preza os sinais e os símbolos”, murmurei, “e
aqui vejo um. Onde antes havia oito destinos, agora há um só. Tombaremos
ou triunfaremos juntos. Por tudo o que passamos, e tudo o que
conquistamos, o fizemos juntos, e unidos permaneceremos... À frente, resta
apenas Magna Veritas. Nós não falharemos”.
Recolhemos nossas espadas. Acima, mais luzes se aproximavam.
Mais algumas dezenas. As horas passavam, a lua se elevava mais no
firmamento, e o vento norte se intensificava. E as luzes tornavam-se
centenas. Cada um esperou à sua maneira, alguns orando, outros
aproveitando juntos os últimos momentos, e, enquanto as horas
progrediam, aqueles que vinham pelos céus eram agora milhares. Podíamos
ouvir o som de um exército se reunir nas proximidades, enquanto as
últimas batidas de martelos e bigornas cessavam, e a lua, lentamente,
começava a descer ao oeste.
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E então soaram as trombetas pela primeira vez.
O Anjo da Morte se aproximou, vindo de algum lugar nos confins
do acampamento. Por sobre a armadura negra, ele tinha ainda um grande
manto. Retirando seu capuz e revelando o rosto pálido, Azrael Veritas nos
chamou: “Venham, meus companheiros, vai começar”.
Olhei Nicholas se aproximar. “Senhor!”, ele gritou, “Espere!”.
Parei e fitei Nicholas, antes de pôr meu elmo.
“Senhor”, ele disse, “apenas queria me despedir. Cuide-se, por
favor, e eu prometo que cuidarei de Sans Vidya em sua ausência”.
Sorri, agradecendo, e em seguida, pus o elmo. Azrael, Absolon e
Fabrizia fizeram o mesmo, enquanto Lo Wang pôs sua máscara, e Al-Malik
cobriu a boca e nariz com os panos que enrolavam seu pescoço, deixando
apenas os olhos à vista. Karina, por fim, cobriu a cabeça com o capuz de
seu manto. E, guiados pelo Anjo da Morte, caminhamos rumo ao sul, onde
nosso destino nos esperava. Nicholas ficou a nos observar, enquanto nos
afastávamos.
Ao sul, começávamos a ver, na penumbra, uma grande massa de
pessoas, que parecia aumentar mais e mais conforme nos aproximávamos.
Eles falavam, milhares lado a lado, e o som era o de um exército eu nunca
vira antes. À frente do exército, havia sete almas, cada uma portando uma
grande trombeta. Entre as almas e o exército, quatro grandes homens
estavam em pé, suas faces voltadas para nós que chegávamos.
As almas nos deram passagem, enquanto três entre os grandes
homens caminharam em nossa direção. Enquanto avançávamos, passamos
sobre o círculo de terra negra. “É este o lugar?”, perguntou Absolon.
“Sim”, respondi. “Aqui é o portão para o Inferno”.
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Atravessamos o grande círculo, com dezenas de metros de raio,
e chegamos àqueles que nos esperavam. Antes que eu pudesse ver os rostos
na penumbra, eu podia sentir seu poder, pois no plano espiritual eles
brilhavam como sóis, seu poder emanando e tocando cada um ali presente.
À esquerda, estava o Arcanjo Rafael. À direita, aproximava-se o Arcanjo
Gabriel. Ao centro, se ajoelhava o Arcanjo Miguel. E, atrás, o único sem
armadura, vestindo apenas peles de animais, estava o Arcanjo Raguel.
Miguel ergueu o braço direito, com a mão aberta, e houve silêncio.
O exército se calou no mesmo instante, e apenas a brisa e o som de grilos
continuaram. “Novamente nos encontramos”, disse o Primus dos Princeps,
erguendo-se e tirando o elmo para nós, “É uma honra estar ao lado de
vocês, lutar ao seu lado. Sei que pedimos muito de vocês, mas lembrem-se:
é a sua jornada, não a nossa. Vocês são o centro disto, para testemunhar e
encontrar a verdade que mais ninguém pode ver. Hoje vocês irão ao
Inferno, mas não irão sozinhos. Nós iremos protege-los”.
E, tendo dito isso, ele pôs o elmo, enquanto as asas metálicas de
Gabriel se abriram. Um brilho azul intenso emanou de seu corpo,
inundando-nos de luz, e ele ascendeu aos céus, pondo-se à frente do
exército. Também as asas de Miguel se abriram, revelando dezenas de
faixas de luz que brilhavam douradas como o sol, espantando a escuridão
da noite. Por fim, o Arcanjo Rafael abriu suas imensas asas brancas,
também brilhando dourado. Os dois também ascenderam aos céus,
aproximando-se de Gabriel nas alturas.
Então, Gabriel sacou sua espada, apontando-a para o alto. A espada
se iluminou em chamas celestes, intensificando o brilho do Arcanjo. Poder
emanou do Arcanjo Miguel como se fosse uma torrente feroz, que nos
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banhava com força e determinação. Por um instante, pude ouvir o bater
de meu coração, e o bater dos corações dos meus companheiros. Eles
batiam em conjunto, em uníssono, e os corações de cada um dos milhares
de Celestiais ali presentes pareciam ecoar em minha mente como se fossem
tambores de guerra.
“Irmãos!”, clamou o Arcanjo Gabriel, fitando o exército, sua voz
explodindo como um trovão, tanto em nossos ouvidos como em nossas
mentes. O silêncio imperou por alguns instantes, antes que o Primus
prosseguisse: “Há jovens e antigos aqui, lado a lado. Nós demos o
chamado, e todos vocês atenderam de livre vontade! O peso que recai sobre
os ombros de vocês é maior do que qualquer peso imposto ao Éden no
passado. Vê-los unidos em armas aqui, trazidos pelo desejo de lutar, me
traz orgulho, pois o que está prestes a acontecer jamais aconteceu antes”.
“No passado”, continuou Gabriel, “as trombetas tocaram para que
descêssemos, como um dilúvio enviado por Deus, aos vivos, para lutar e
morrer, e para destruir as forças infernais que ameaçavam aqueles que
juramos proteger. Nosso sangue foi derramado para que lavássemos a Terra
de toda imundice e toda a corrupção demoníaca que a contaminava. E,
graças a nossa força e unidade, o Lorde do Sangue foi vencido!”
E os tambores de guerra se intensificaram.
“No passado”, o Primus repetiu, “as trombetas tocaram para que
defendêssemos nosso lar, e para que as almas puras permanecessem
intocadas pelos demônios do Inferno. Nós perdemos irmãos e irmãs nas
batalhas em nosso próprio reino, e muitos se sacrificaram para preservar
nosso futuro. E, apesar das perdas, nós triunfamos, nós derrotamos o Lorde
da Guerra e o expulsamos!”
622
“E agora”, o Gabriel clamou, “nós entraremos no covil do
inimigo e marcharemos pelo solo infernal! Assim que as trombetas
tocarem, os portões do Inferno se abrirão diante de nós. Saquem suas
armas, nos sigam! O inimigo nos espera! Que, desta vez, os Grandes
Lordes do Inferno tremam com a nossa presença!”.
E, tendo dito isso, o Arcanjo urrou. Os dez mil Celestiais ali
reunidos sacaram suas armas, urrando, enquanto as sete trombetas tocaram
pela quinta vez na história.
Viramo-nos para o círculo, e eu pude sentir uma energia emanar. O
selo que antes trancava a passagem se abriu, e as energias antes contidas
vazaram, emanando uma onda de calor. Eu pude sentir as energias do Éden
se enfraquecerem, como se sua pureza fosse corrompida pela presença
infernal. Uma chama vermelha emanou do centro do círculo, e então se
intensificou, tomando todo o diâmetro do mesmo. O fogo ergueu-se aos
céus, alcançando dezenas de metros de altura.
“Devemos entrar agora?”, perguntou Absolon, gritando para se
fazer ouvir em meio aos urros de guerra. As energias do portal rugiam, e o
céu acima, começava a se agitar, emitindo trovões e ventanias.
“Não”, respondeu Azrael, o Anjo da Morte, em nossas mentes, e
sem seguida se virando se volta ao exército. “Olhem e esperem!”, sua voz
ecoou.
Nos viramos. E, sob a luz dos trovões, vimos o Arcanjo Raguel,
Primus dos Xamãs nos fitar. Os Arcanjos nos flancos do exército erguiam
suas armas, e indicavam para as unidades das duas extremidades
avançassem. Atrás do exército, asas se abriam, e centenas de Celestiais
tomavam os céus, avançando pelos ares em direção ao portal. Os
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destacamentos ao centro e à frente do exército permaneciam
estacionários, enquanto as tropas de flanco avançavam em investida, e os
exércitos aéreos passavam sobre nossa cabeça. Cada destacamento tinha à
frente um Arcanjo e, eles avançavam contra o portal, atravessando-o rumo
ao Inferno. Também Rafael, Miguel e Gabriel avançaram pelos céus,
adentrando as energias vermelhas e desaparecendo de nossas vistas.
As asas do Arcanjo Raguel se abriram, e seu corpo brilhou cercado
como se relâmpagos o envolvessem. Seus olhos emanavam eletricidade, e
então ele se aproximou caminhando de nós. Os destacamentos da frente e
do centro começaram a marchar, acompanhando-o. “Agora é a hora”, sua
voz ecoou trazida pelos ventos, acompanhada de trovões, “Atravessem o
portão do Inferno e ergam-se aos céus. Juntem-se a meus irmãos e
cumpram seu destino!”. Tendo dito isso, o Primus virou-se para fitar os
exércitos que marchavam lentamente logo atrás, enquanto acima e pelos
flancos centenas investiam contra o portal. “Avancem, e levem nossa fúria
ao Inferno!”, os ventos ecoaram. Os gritos de guerra intensificaram, e os
milhares de Celestiais avançaram correndo.
“À frente!”, gritei, desajeitadamente sacando a espada de Asphael e
apontando sua lâmina contra o portal, enquanto minhas asas se liberavam e
meu brilho emanava por minha armadura. Todos, inclusive o Anjo da
Morte, avançamos em nossas formas celestes. Nossas auras brilhavam
intensas através das frestas e elmos de nossas armaduras, como se fôssemos
pura luz sob as roupas de metal. Eu corri, seguido por eles, e, conforme me
aproximava das energias vermelhas, eu podia ver algo além. Luzes celestes
tomavam os céus do outro lado, enquanto nosso exército marchava em
terra. Eu podia ver uma paisagem nebulosa, vermelha, e um céu negro.
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Fechei os olhos quando toquei o portal, e era como se fosse transpor
água quente. Eu senti a resistência das energias, mas forcei a passagem. Ao
sentir o portal ser deixado para trás, ergui-me aos céus, abri meus olhos... e
vi.
O calor era insuportável, como se o chão abaixo fosse fogo. Acima,
nuvens negras e turbulentas tomavam os céus, enquanto ventos fortes
erguiam poeira e cinzas. Entre as brechas nas nuvens, eu podia ver um céu
vermelho ardente, e um sol pequeno e fraco, enegrecido como se estivesse
próximo da morte. Abaixo, planícies mortas de rochas cinzentas e
vermelhas se espalhavam por quilômetros, enquanto cadeias montanhosas,
algumas tão altas cujos topos estavam acima das nuvens negras, se
espalhavam pelo horizonte. À distância, eu pude ver um dragão negro abrir
suas asas e voar para o norte, fugindo do exército que chegava pelo portal.
Vulcões no horizonte a leste emanavam toneladas de gases venenosos e
cinzas nos céus, intensificando as nuvens. Eu voei, seguido por meus
companheiros, aproximando-me dos três Primi à frente. Atrás de nós,
milhares ainda cruzavam a porta entre os dois mundos, urrando fúria. Foi
quando ouvi trovões e vi raios vermelhos caírem do céu. E o exército
celeste que já estava no Inferno parou e fitou aquele que atravessava o
portal.
Ninguém cercava o Arcanjo Raguel, e as tropas que atravessavam o
portal mantinham-se a um grande raio de distância, como se a turbulência
ao redor não pudesse afeta-lo. Enquanto as tropas avançavam, ele parou
logo adiante do portal, olhando o horizonte à frente. Suas asas abriram-se
totalmente, tomando quase doze metros de envergadura.
“O que ele está fazendo?”, perguntou Ansgar aos gritos.
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“Para que nada atravesse do Inferno para o Paraíso, ele será o
guardião do portal”, a voz do Anjo da Morte ecoou em nossas mentes.
Senti os céus vibrarem, e o Arcanjo Raguel cruzou seus braços,
deixando seu poder ser liberado. As nuvens acima se abriram, como se uma
explosão as empurrasse para longe. E, onde o céu se abria, o firmamento
vermelho dava lugar a um céu azul. O azul tomou um raio de quilômetros
acima do portal. “Deixem que o Inferno saiba que nós trazemos a guerra até
ele”, a voz de Raguel ecoou trazida pelos ventos e trovões, “e que eles
tremam diante do sinal de que estamos nos aproximando”.
O Arcanjo Miguel, à distância, fitou Karina, e ela fechou os olhos,
como se estivesse se concentrando. Então, ela gritou: “Para o norte!”.
“AVANÇAR!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou em nossas mentes.
“O inimigo está ao norte!”.
Fitei o norte, que era exatamente a direção que o portal apontava ao
ser atravessado, e lá eu ainda vi nuvens negras e um horizonte vermelho.
Ao meu redor, dez mil Celestiais avançavam, por terra pelos céus. As
tropas terrestres agora abriam suas asas e voavam rentes ao solo, erguendo
nuvens de poeira, para que pudessem acompanhar a velocidade do exército
aéreo. Eu podia ver espadas brilhando e ardendo e chamas celestes
incendiando asas e punhos. As energias celestes eram liberadas, conforme
cada Celestial ali presente deixava-as correr por seus corpos, se
fortalecendo. A ressonância das energias podia ser sentida por quilômetros,
provocando ventos fortes, trovões e até mesmo provocando semblantes de
vida nas plantas ressequidas e espinhosas do deserto rochoso abaixo. O que
quer que estivesse à frente, no caminho do exército divino, podia sentir
nossa presença, e sabia que milhares vinham em sua direção.
626
Os urros de guerra começavam a baixar, mas os céus ainda
traziam o som trovões vindo do norte. Logo a área de céu azul terminaria, e
alcançaríamos a negritude à frente. Apesar de todo o poder celeste que
emanava e da presença de três Primi entre nós, eu podia sentir... algo... à
frente. Algo negro, tempestuoso, poderoso. E, conforme os exércitos
voavam, também podia ver revoadas de criaturas aladas erguerem-se no
alto das montanhas, a leste e a oeste, no horizonte. Uma montanha cinzenta
se aproximava à frente, e abaixo, vinda do oeste mas seguindo para o norte
eu vi uma estrada de rochas, iluminadas por milhares de tochas que ardiam
em Fogo Negro. Ao sopé da montanha, pude perceber, em meio a uma
névoa de cinzas, uma construção colossal de obsidiana. Muralhas titânicas
de pedra cercavam um imenso coliseu e, na face norte do coliseu, uma torre
se erguia, com grandes vitrais vermelhos. Os portões de metal das muralhas
se abriam, e a leste e a oeste, eu via as revoadas negras mudarem sua
direção, convergindo para a fortaleza à frente.
Os Primi pararam, logo abaixo do limite entre os céus azul e
vermelho. Aos poucos, os exércitos celestes foram parando. As tropas
terrestres pousavam e se punham em posição, guerreiros com lanças e
armas de vara à frente. Nos céus, as tropas pairavam nos ares, voando em
círculos ao redor das tropas terrestres. O coliseu demoníaco estava a cerca
de 500 metros à frente, seus portões abertos por completo. Foi quando o
vento trouxe o som de tambores e o som do marchar de milhares de
homens. Uma massa de milhares de pessoas maltrapilhas, armadas com
lanças, arcos e espadas curtas, começou a sair da fortaleza. Entre as almas
condenadas, marchavam centenas de demônios.
627
Um brilho intenso emanou do Arcanjo Miguel, e as tropas
terrestres se iluminaram com a mesma luz. O Arcanjo desceu e, ao pousar
diante das tropas celestes, o chão tremeu. O Primus dos Princeps ergueu
sua espada, a lâmina ardendo em chamas douradas. “AVANÇAR!”, seu
grito trovejou em nossas mentes. Os gritos de guerra de milhares em ambos
os lados ecoaram em seguida, e os exércitos celeste e demoníaco
avançaram um sobre um outro. À frente de nossas forças, Miguel em
pessoa corria em investida, ambas as mãos segurando firmemente a espada,
enquanto suas dezenas de faixas de luz serpenteavam em suas costas.
“PREPAREM-SE!”, a voz do Arcanjo Rafael urrou às nossas
forças aéreas, enquanto os dois exércitos abaixo rapidamente se
aproximavam. A montanha cinzenta à frente tremeu, explodindo como um
vulcão que despertava, jogando fumaça, cinzas e pedras incandescentes
para os ares. As revoadas negras se aproximavam, revelando centenas de
criaturas colossais, voando sobre asas de couro. Os dragões, acompanhados
por enxames de insetos e morcegos infernais, rugiam, suas bocas
iluminando-se com o fogo que ardia em seu interior. “ATACAR!”, o
Primus dos Sancti urrou, e as forças aéreas voaram em todas as direções,
para atacar tanto o exército demoníaco como as criaturas de fogo e ar que
se aproximavam.
O Arcanjo Gabriel permanecia à nossa frente, parado nos céus,
apenas observando. Abaixo, o marchar dos exércitos e seus gritos de guerra
faziam a terra tremer, enquanto acima choviam fogo e cinzas dos céus. E,
então, os dois exércitos terrestres se chocaram.
Centenas de almas condenadas caíram assim que o Arcanjo Miguel
alcançou as tropas demoníacas. Brilhando como um sol, ele abria caminho
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pelas forças inimigas, cada golpe de sua espada destruindo corpos e
arremessando dezenas aos ares, enquanto suas faixas de luz agiam como
tentáculos, agarrando e arremessando a grandes distâncias os condenados
que os atacavam. Os soldados demoníacos e celestiais se misturavam no
campo de batalha, enquanto grandes rochas incandescentes caíam sobre
guerreiros de ambos os lados. Por trás das muralhas da fortaleza obsidiana,
catapultas arremessavam bolas de fogo negro, e sobre as muralhas da
mesma, milhares de almas condenadas arremessavam flechas contaminadas
por chamas infernais.
Nos céus, hostes de Celestiais voavam ao redor dos dragões, que
vomitavam fogo sobre o céu e a terra. A chuva de cinzas e chamas se
intensificava, e os enxames de insetos demoníacos ardiam em fogo, como
se fossem nuvens incandescentes que singravam os céus, consumindo tudo
o que entrava em seus caminhos. Demônios alados erguiam-se aos céus,
armados com tridentes e lanças, e as flechas flamejantes lançadas das
muralhas erguiam-se quilômetros nos céus, como setas de fogo, como se
nenhuma gravidade pudesse para-las. As forças do Éden convergiam sobre
os dragões, atacando-os em grandes números, enquanto corpos de ambas as
forças caíam sobre as tropas que lutavam em terra.
O chão tremeu novamente, e eu pude sentir um poder emanar da
torre na fortaleza. Por um momento, tive a impressão de ver um vulto
observar tudo por trás dos vitrais vermelhos. Aquele poder indescritível
avançou sobre o campo de batalha, e o chão se abriu em grandes
rachaduras, cuspindo magma incandescente e vomitando mais cinzas nos
céus.
629
Em resposta, chamas celestes voaram, explodindo grandes
raios de território onde as forças demoníacas se aglomeravam. Em meio ao
caos, eu podia ver círculos de celestiais se unirem para avançar,
decapitando e desmembrando as almas condenadas e demônios que os
atacavam. Também os demônios se uniam, cercados por milhares de almas
profanadas, e avançavam contra Celestiais solitários, arrasando-os nas
pontas de suas lanças e garras.
E nós permanecíamos ali, como que intocados pelo caos, apenas
observando atônitos algo que estava além de nossas dimensões. À nossa
frente, o Arcanjo Gabriel permanecia imóvel, como se seu único dever
fosse nos proteger... ou como se estivesse esperando por algum.
Um dragão, consumido pela aura do Arcanjo Rafael, tombou sobre
um grupo de demônios, esmagando-os. O Arcanjo então voou na direção
do enxame incandescente, penetrando no meio do fogo mortal. A aura de
chamas douradas ao seu redor consumia os insetos aos milhões, fazendo
com que uma chuva de restos caísse sobre os guerreiros no campo abaixo.
Um dragão, o maior que eu tinha visto até aquele momento, desceu
ao solo, pousando violentamente sobre a frente celeste. A criatura vomitou
seu hálito de chamas negras, enquanto avançava, esmagando e derrubando
centenas. Dezenas de Anjos voavam para amontoar-se sobre a criatura, mas
suas espadas, lanças e chamas celestes pareciam incapazes de atravessar
seu couro. Outros dragões pousavam, seguindo aquele líder. Suas
mandíbulas abocanhavam Celestiais e os arremessavam longe. Arcanjos
tentavam organizar os exércitos, enquanto almas condenadas e demônios
ganhavam terreno. Mas, mal parecia que os demônios adquiriam uma
vantagem, os poderes celestes se intensificaram. Bandos de Anjos
630
expulsavam as almas condenadas, enquanto os dragões tombavam,
alguns sendo derrotados por um Arcanjos que lutavam sozinhos em meio
ao caos.
Morcegos infernais agora tomavam os céus aos milhões agora, suas
presas e garras rasgando asas celestes, forçando centenas ao chão.
Explosões de chamas celestes e auras douradas dizimavam os morcegos às
centenas, e ventos poderosos comandados pelo Éden derrubavam centenas
ao chão, onde eram pisoteados pelos exércitos de ambos os lados.
O líder dos dragões avançava abaixo continuava a dizimar
Celestiais, enviando dezenas aos ares a cada balançar de sua cauda.
Arcanjos tentavam para-lo em vão, mas a criatura avançava, abocanhando e
pisoteando tanto demônios como anjos em seu caminho. Foi então que o
Arcanjo Miguel avançou de frente para a criatura, derrubando e expulsando
sem esforço todas as almas e demônios que se encontravam em seu
caminho. O gigantesco dragão percebeu o brilho solar do Primus, pondo-se
também a avançar em sua direção. O urro da criatura parecia se destacar no
caos, e sua bocarra se abriu, vomitando Fogo Negro contra o Primus. O
Arcanjo emergiu das chamas intocado, e a bocarra da criatura se abriu
ainda mais para abocanhar o Primus. As faixas de luz do Arcanjo Miguel
atacaram, envolvendo a boca do dragão e a fechando à força, num instante.
Então, as faixas forçaram a cabeça da criatura para o lado, expondo sua
traquéia desprotegida. O Arcanjo saltou e sua espada atravessou a couraça
do monstro sem nenhuma dificuldade. Quase decapitado, o líder dos
dragões caiu. As tropas celestes avançaram sobre o corpo do inimigo
derrubado, voltando a engajar o exército de almas que os esperava logo
além da criatura.
631
Atrás do dragão caído, o Arcanjo Rafael pousou, e seu brilhou
iluminou os caídos na batalha. Às centenas, Celestiais feridos se erguiam e
brandiam novamente suas armas, juntando-se a seus irmãos que os
aguardavam na frente de batalha.
O magma incandescente espirrou mais forte das fendas do chão,
caindo de volta como uma chuva cáustica. O campo de batalha inteiro
estava coberto por cinzas e fumaça densa. Então, mais demônios
avançaram através dos portões da fortaleza. Centenas, de formas mais
diversas, mas com armas brilhantes e armaduras de metal. Mais e mais
almas condenadas também saíam da fortaleza, mas estas eram melhor
armadas. Porém, o que mais se destacou foi a criatura que saiu da fortaleza
logo em seguida. A criatura era humanóide, mas tinha mais de três metros
de altura. Seus braços eram grandes e desproporcionais às pernas, como um
gorila, e seu couro era feito de placas de pedra sólida.
Foi então que o Arcanjo Gabriel se moveu, virando-se para nós:
“Permaneçam próximos a mim”, ele pediu, e então avançou na direção da
fortaleza. Nós os seguimos de perto, enquanto nuvens de morcegos
infernais convergiam sobre nós, mas eram queimados por chamas invisíveis
antes que nos alcançassem.
Sobrevoamos o campo de batalha, onde as duas forças ainda
lutavam desesperadamente. Mais dragões e demônios surgiam, alguns
vindos dos céus, outros surgindo da fortaleza, como se seus números
fossem infindáveis. Nos aproximando das muralhas, o Arcanjo Gabriel
pousou, e então brandiu sua espada flamejante, que ardia em chamas
celestes. Demônios e almas tombavam, enquanto ele avançava, abrindo
caminho a nós, rumo aos portões da fortaleza. Pousamos na trilha aberta
632
pelo Arcanjo, assumindo nossas formas humanas, e continuamos a
segui-lo, com Lo Wang, Ansgar, Samuel e Azrael lutando para que todos
pudéssemos continuar apenas das legiões de condenados que insistiam em
atacar nosso grupo.
Agora estávamos em meio ao caos, e eu já não podia mais
acompanhar tudo o que acontecia. Podia notar que os demônios recém-
chegados engajavam os Arcanjos das forças celestes, e o chão estava
coberto de sangue, entranhas e corpos. A cada golpe da espada de Gabriel,
rios de chamas celestes se espalhavam e dezenas de almas eram
consumidas. Foi quando a criatura avançou contra Gabriel, derrubando
arquidemônios e almas em seu caminho. Um brilho ardente iluminava seus
olhos e o interior de sua boca, como se suas entranhas ardessem em
chamas. A mandíbula, sem bochechas, revelava infindáveis dentes largos e
variados como os de um mamífero, mas suas presas se destacavam. O
punho de rocha atingiu o Primus em cheio, derrubando-o.
“O que é aquilo?”, gritou Fabrizia, surpresa.
“Um dos Nonos da Casa de An”, o Arcanjo Azrael nos disse em
nossas mentes. “Defendam-se e mantenham-se afastados, somente um
exército de Arcanjos poderia derrubar uma dessas criaturas”.
Uma explosão de chamas celestes afastou as almas que tentavam
atacar o Primus derrubado. O gigante avançou, seus passos fazendo a terra
tremer, desimpedido pelas chamas azuis que cercavam Gabriel. O Primus
se ergueu a tempo e, como um relâmpago, o punho do monstro atingiu o
local em que o Primus estava caído um segundo antes. A terra se abriu com
o golpe, cuspindo chamas e fumaça. As asas de Gabriel se abriram, ele
passou pelo gigante, sua lâmina flamejante atingindo em cheio a perna da
633
criatura. As placas de rocha se partiram, mas a perna não foi arrancada,
e magma escorreu pelo ferimento aberto. A criatura parecia não sentir dor,
virando-se para atingir novamente o Arcanjo. O punho da criatura avançou
novamente contra o Arcanjo. Gabriel girou o corpo, desviando-se e se
abaixando, ao mesmo tempo que suas asas alcançavam envergadura
máximo. Com o movimento, as asas cortantes atingiram o peito e o braço
do monstro, rasgando rocha e fazendo mais magma ser derramado. A
criatura urrou de dor, recuando. O Arcanjo, porém, avançou, erguendo-se
no ar à altura do pescoço do monstro. A lâmina flamejante traçou um arco,
e pedaços de pedra e respingos de magma emanaram da traquéia cortada. O
gigante tombou sobre várias almas condenadas que estavam logo atrás, mas
ainda rugia em fúria. Finalmente, o Arcanjo apontou sua espada para baixo,
e investiu contra o solo, a lâmina penetrando pela boca do monstro,
atravessando seu crânio e enterrando-se no solo infernal. Então, enquanto
mais magma fluía pelo ferimento mortal, uma explosão de chamas celestes
se seguiu, dizimando cada alma condenada nas proximidades, mas sem nos
ferir. Apenas os arquidemônios mais poderosos sobreviveram, mas não sem
ferimentos graves. Eles logo seriam atacados pelas forças do Éden que se
aproximavam.
O Arcanjo Gabriel se virou a nós, sua face quase invisível, oculta
pelo brilho que emanava das aberturas de seu elmo. “Avancemos”, ele
disse em nossas mentes, “Encontraremos a Verdade... e seus destinos...
adiante”.
Os primeiros destacamentos celestes, tanto aéreos e terrestres,
começavam a alcançar os portões da fortaleza, mas não sem baixas ou
ferimentos. Junto com as tropas urrantes do Paraíso, nós adentrávamos no
634
covil do inimigo. Acima, por influência de algum Arcanjo, um globo
de Fogo Celestial, como se fosse um sol azul, surgiu no alto, iluminando o
caminho pelo pátio entre as muralhas e o coliseu. A luz queimava as almas
que se aglomeravam no topo das muralhas. Sob o ardor celeste, as flechas
malditas que elas disparavam começavam a diminuir em intensidade.
Os imensos portões de ferro do coliseu estavam trancados, mas sob
a fúria dos Arcanjos que avançavam, metal partia-se como se fosse vidro.
Acima, centenas de Arcanjos avançavam pelos céus, sobrevoando o coliseu
e a torre que estava na face norte do mesmo.
“Por onde?”, gritei, ao notar que além dos portões estava um
labirinto de corredores.
“Por aqui”, apontou Karina, seu instinto a guiando.
Enquanto prosseguíamos pelo corredor apontado, as tropas celestes
se dividiam pelo labirinto, atravessando os corredores cheios de almas
guerreiras e demônios. Atravessamos corredores largos, e criaturas
demoníacas e almas guerreiras de faces esqueléticas avançavam por
corredores adjacentes, atacando de surpresa. Três cães imensos, cada um
com três cabeças, protegiam o portão adiante, enquanto lobos de sombra,
pequenos diabretes e soldados esqueléticos pareciam vir em ondas
intermináveis. Nossos guerreiros seguravam as ondas de condenados,
enquanto as lâminas de Gabriel e Azrael pareciam cortar desimpedidas as
criaturas mais poderosas. “Por Magna Veritas!”, gritou Azrael, enquanto
sua espada cortava a cabeça de um lobo espectral.
Pouco a pouco, as hordas demoníacas pareciam estar ganhando
terreno, enquanto diabretes subiam por nossas pernas ou voavam sobre
nossas cabeças. Um flash de luz se seguiu, e Fogo Celestial emanou de
635
Gabriel, reduzindo a pó todos os agressores. “Nada ficará em nosso
caminho”, disse o Primus, repetindo: “NADA!”. Ele apontou a mão aberta
para o portão à frente, havendo um estrondo em seguida. Vento soprou do
corpo do Primus, e os portões foram arrancados como se atingidos pelos
ventos de um furacão. Os portões voaram pela arena à frente, esmagando
mais almas e demônios que esperavam ali.
Adentramos a arena, enquanto Celestiais desciam dos céus para
enfrentar as centenas de almas e demônios que se acumulavam no pátio e
nas arquibancadas. Nas paredes da arena, milhares de almas estavam
empaladas em estacas, alimentando um fosso de sangue que circundava
todo o pátio. Também estacas se erguiam de pequenas “ilhas” no interior da
arena, com dezenas de pessoas empaladas e agonizando em cada uma
delas. O chão da arena estava cheio de poças de sangue e restos mortais,
tanto de criaturas demoníacas como de seres humanos.Em meio à fumaça,
eu via, do outro lado, a torre de obsidiana, e pude notar, a esta distância,
que mais corpos se amontoavam empaladas em estacas nas intersecções
entre os andares da torre.
O caos ainda reinava ao redor, mas minha mente se concentrava.
Eu podia sentir algo emanar da torre. Algo poderoso e destrutivo... Gabriel
avançou, e nós avançávamos, mas, por um momento, os sons trovejantes da
batalha cessavam, e minhas memórias se voltavam a um momento do
passado recente. Eu ouvi falar sobre esse lugar... “Ashtar” era o nome desse
coliseu. “O Pilar Central de Gehenna”, segundo o que Íblis Al-Qadim nos
contara. E, adiante, estaria Astaroth, o Lorde da Dor.
Os sons da batalha voltaram a inundar meus ouvidos, quando um
grupo de Arcanjos desapareceu na nuvem de fumaça e cinzas que cercava a
636
torre de Ashtar. Nenhum deles ressurgiu das cinzas mais. A chuva de
fogo continuava a cair dos céus, talvez até com mais intensidade aqui, e
Celestiais caíam com asas queimadas, enquanto hordas de demônios
avançavam incontidos pelo fogo. A chuva flamejante parecia não nos tocar,
mas a cada passo, eu podia sentir o poder à frente crescer e permear o ar.
Eu me sentia enfraquecer em espírito, como se as energias do Inferno se
concentrassem ali. Em meio à nuvem que cercava a torre, eu podia agora
ouvir trovões e ver relâmpagos.
Chegando ao meio da arena, adentramos na nuvem de fumaça e
cinzas. Imediatamente, nossos pulmões foram tomados por fumaça
cancerígena. Nossas naturezas imortais nos protegeriam, mas as almas
empaladas naquela região tossiam, enquanto sua carne parecia se desfazer
em tumores. Os sons da batalha pareciam mais distantes, como se a fumaça
intensa abafasse tudo o que vinha de fora. Finalmente, os portões da torre
estavam diante de nós.
O Arcanjo Gabriel empurrou os grandes portões. As paredes
tremeram, e ouvimos o som de algo de madeira se partir, como se uma
árvore arrebentasse. Lentamente, os portões se abriram. E o frio e a
escuridão adiante nos recepcionou. Por baixo dos elmos e capuzes, nossos
olhos brilharam, invadindo com pouco sucesso a escuridão densa. A espada
flamejante de Gabriel, porém, foi mais bem-sucedida em nos prover
iluminação. A batalha lá fora parecia ter se cessado por completo, tamanho
era o silêncio. Então, gemidos invadiram o ambiente.
O Arcanjo Gabriel nos fitou, seu olhar brilhante penetrando nossas
almas. Karina murmurou: “Eu sei o caminho”, e pôs-se ao lado do Primus.
Juntos, eles guiaram pelos corredores labirínticos. Restos humanos se
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espalhavam pelo caminho, e muitas almas se dispunham acorrentadas
ou empaladas pelos corredores e tetos, algumas desmembradas, outras com
a pele arrancada ou queimada, o cheiro de podridão permeava o ar, e
sangue se acumulava nas canaletas nos cantos de cada corredor. Gritos de
socorro, de ódio e de dor ecoavam pelos infindáveis corredores e pelas
escadarias, intensificando-se conforme subimos os andares da torre. O som
tocava nossos ouvidos, mas se repetia em nossas mentes. A aura do
Arcanjo Miguel já não nos tocava mais, e medo e dúvida invadia minha
mente. Eu sentia a presença do senhor daquele lugar, seu olhar nos fitando,
se alimentando de nossas dúvidas. A presença era forte, densa, onipresente.
“Aqui”, a voz de Karina soou assustada. Finalmente, à frente,
estava um grande portão de ferro, mas este estava aberto, nos
recepcionando. Adentramos o salão juntos, vendo sua vastidão, apesar das
trevas densas, que só eram quebradas por uma luz vestigial emanada pelos
vitrais vermelhos. Aquele salão praticamente ocupava todo aquele andar da
torre, e seu teto se perdia no escuro. Aquele que procurávamos estava
finalmente à nossa frente.
Como uma luz moribunda nas trevas, o Arcanjo Uriel, chamado
Veritatis, estava ao nosso alcance. Nos aproximamos dele, ignorando os
gritos de agonia das almas que se dispunham empaladas ou acorrentadas
naquela sala. O Arcanjo agonizava, preso no ar por correntes que ligavam
suas mãos ao teto, e seus pés ao chão. Suas asas tinham sido arrancadas à
força, e penas negras ensangüentadas se espalhavam pelo chão, algumas
flutuando na superfície dos poços, nos quais o sangue dos condenados era
acumulado.
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“Mestre”, murmurou Azrael, que, como nós, voltavam sua
atenção ao Primus. O sangue do Arcanjo se acumulava numa poça sob ele,
escorrendo por múltiplas perfurações nos peitos e por grandes cortes na
testa. Sua pele parecia putrefata em alguns pontos, queimada em outros, e
seu rosto revelava partes de pele arrancadas. Seu peito inchava-se devido às
costelas quebradas e a alguma hemorragia interna, e vermes rastejavam sob
sua pele. Diversas bolhas e pústulas se formavam pelos braços. A aparência
dele era suficiente para nos atordoar e nos afetar. Mais uma vez eu senti
medo.
A mão de Samuel tocou o peito de Veritatis, brilhando dourada.
“Não consigo cura-lo”, assustou-se Samuel, conforme ferimentos se
intensificavam ao invés de se curarem. O Primus tentou gritar de dor, mas
apenas sangue escoou por sua boca, abafando gemidos de agonia.
Mas então, por entre os gemidos abafados, Uriel-chamado-Veritatis
falou, sua voz rouca e fraca, e sua boca escorrendo sangue: “Vocês... não
veriam... ter vindo aqui...”.
E, tendo dito, o portão de entrada fechou-se violentamente,
emitindo um estrondo que ecoou pela sala. Karina abafou um grito
assustado, enquanto todos sacavam suas espadas. De costas para nós, ainda
à frente do grupo, o Arcanjo Gabriel intensificou as chamas celestes de sua
espada, fitando a escuridão além.
“Bem-vindos a meu lar”, uma voz demoníaca veio da escuridão,
acompanhada por um coro feito por todas as almas condenadas que
agonizavam naquele aposento. “Eu prometo a vocês que não morrerão, mas
sugiro que orem a seus deuses para que eu quebre esta promessa”.
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De um canto, um conjunto de almas torturadas murmurou: “Eu
sou Balberith”. E de outro canto, outro coro sussurrou: “Eu sou Astaroth”.
E de outro: “Eu sou Duriel”. E de um quarto coro: “Eu sou Olivier”. E, por
fim, de todos os pontos: “Eu sou o Terceiro Filho, Lorde da Dor, Senhor
das Doenças, Algoz da Humanidade. Tolos entram em meu Reino, onde
anjos jamais ousaram adentrar. Eu não tenho medo de vocês, pois sou
onipresente. Eu atormento grávidas no nascer ou no aborto de seus filhos, e
cada vez que um ferimento se abre eu regozijo em prazer e alegria. O medo
que sentem me alimenta. Eu sou o senhor da carne, suas espadas não
podem cortar vencer uma doença, seu fogo não pode extinguir um câncer”.
A face de Gabriel seguia os movimentos de um vulto que se
aproximava pelo lado oposto do salão, caminhando erraticamente. “Pelo
menos Leviathan me enfrentou em silêncio”, murmurou o Primus.
“Eu sou dor e não sangue, caçador. Eu sou medo, e não uma
espada”, o coro profano declarou. Então, das trevas, emergiu um velho
corcunda, caminhando descalço, vestindo apenas um manto maltrapilho
sujo de sangue e vômito. Não havia olhos em sua face, apenas órbitas
negras e vazias. Seus dentes eram como os de um tubarão, sujos de sangue,
que também sujava a sua barba. Sua pele era cheia de tumores e
descamava-se como se lepra o afligisse. Abriu os braços como numa
paródia do Cristo Redentor que vimos na Cidade Maravilhosa, revelando
também dedos esqueléticos e compridos, com unhas longas e quebradiças.
“Eu sou a doença, não a guerra”, os lábios dele se moveram, emitindo uma
voz poderosa, sempre acompanhada pelo coro das almas condenadas ali
presentes.
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O Arcanjo Gabriel deu um passa à frente, suas asas se abrindo
e se incendiando em chamas celestes. Sua luz penetrou e dissipou trevas,
refletindo-se na carne doentia do Grande Lorde. Metaforicamente, o poder
de Gabriel explodia, liberando-se como fogo incontido, poder bruto e
destrutivo, enquanto a negritude do Terceiro Filho, Astaroth, parecia
conter-se, placidamente aguardando o momento apropriado para ser
liberada. Os dois oponentes lentamente se aproximavam. Um trono
obsidiano, ao centro da sala, parecia ser também o meio exato na distância
entre os dois oponentes.
“Ele... planejou... tudo”, murmurou Veritatis, de olhos fechados,
sem forças para sequer erguer sua cabeça.
“Libertem-no!”, eu pedi aos outros, me voltando ao Primus
acorrentado: “Quem planejou tudo?”.
“É tarde... demais...”, murmurou Uriel-chamado-Veritatis, “o
nascimento... do Décimo Quarto Filho... está próximo...”.
À frente, os dois combatentes estavam a poucos passos um do
outro.
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Interlúdio Terceiro: O Lorde das Mentiras
O Arcanjo Urias, Serafim dos Spiritus Latro permanecia ali,
sentado na escuridão. Seus olhos brilhavam intensamente. Ele podia sentir
o respirar fluir do jarro. Embora duas horas tivessem se passado desde a
última notícia que teve, ele sabia que, naquele momento, as hostes celestes
já deviam ter adentrado o Inferno. Ele sentia as energias do Éden se
enfraquecerem, indicando que a porta entre os dois mundos estava aberta
novamente, como ocorreu nas últimas duas Grandes Guerras. O Arcanjo
Raguel, Primus dos Xamãs, guardaria o portal desta vez pelo lado infernal,
e alguns Arcanjos e Celestiais no lado celeste assegurariam que nada
passaria. A mente do Arcanjo estava perturbada, talvez por causa do sono
conturbado do último mês. Leviathan enviava a ele visões do passado e da
Primeira Grande Guerra, atormentando seu descanso. Ainda assim, a mente
do Arcanjo permanecia centrada em sua tarefa solitária.
De repente, a respiração espiritual do jarro se intensificou, como se
ofegasse. Urias ergueu a cabeça, fitando o jarro, e então fechou os olhos,
ouvindo respirar. Algo parecia incontido, como se a irracionalidade dos
fragmentos de alma ali aprisionados despertasse. Urias sentiu uma presença
se intensificar... uma sombra indescritível, trazendo consigo frio e
tormento. As poucas energias celestes presentes pareciam se dissipar
rapidamente, enquanto um poder claramente infernal aumentava nas
cavernas sob Libraria.
E então, poderoso como nunca antes, o urro do Leviathan ecoou,
fazendo as cavernas tremerem. Poeira caiu do teto da caverna, e Urias abriu
os olhos. Para sua surpresa, rachaduras se intensificavam na superfície do
jarro, e os escritos rúnicos de Fabulare nas paredes da câmara eram
642
quebrados conforme as próprias paredes também se rachavam. Urias
podia sentir o poder contigo ali emanar para fora... mas era um poder
passivo, diferente da sombra que se aproximava.
Alguém mais estava ali com Urias, ele podia sentir. Algo maior do
que qualquer Celestial ou demônio comum poderia se tornar. Urias se virou
para a entrada da câmara... e ali viu um ser coberto por mantos negros e um
capuz. A escuridão era tão densa que sua face, encoberta pelo capuz, não
podia ser vista, nem mesmo com a ajuda dos poderes de percepção do
Arcanjo. Urias deixou seu poder celeste correr por seu corpo, enquanto
suas asas se abriam, iluminando a escuridão com luz branca.
“Quem é você?”, indagou Urias, enquanto canalizava os poderes
dos antigos Protectori para se fortalecer. Ainda assim, toda a luz de Uriel
não era nada mais do que uma vela morrendo em meio à escuridão que
emanava do recém-chegado.
“Eu sou o maior e o menor”, a voz do recém-chegado emanou,
criando tremores nas profundezas. Ela soava como uma mistura de rosnado
e trovão, ecoando eternamente na mente de Urias. Nas costas do recém-
chegado, asas pútridas e doentias, quase esqueléticas, com penas negras e
murchas, se abriram. Das profundezas do capuz, o brilho vermelho de dois
olhos incandescentes emanou com intensidade. O estranho ergueu as mãos,
carcomidas e esqueléticas, cobertas por pele queimada, e levou-as até o
capuz, puxando-o para revelar seu rosto.
“Não pode ser!”, murmurou Urias, seus olhos brilhantes
arregalando-se diante do rosto que ele reconhecia, apesar das deformidades
e queimaduras. A criatura avançou, seu poder expandindo-se como um
buraco negro que engolia toda luz daquele lugar.
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644
Capítulo 23: O Lorde da Dor
“Abandonem toda a esperança, aqueles que aqui entrarem”, o coro
de almas profanadas murmurou em uníssono. Embora no exterior da torre
negra, uma guerra entre milhares urrasse furiosa, eu sabia que seria na
câmara vasta e negra que seu fim seria decidida. Enquanto sangue celeste e
demoníaco era derramado, regando as terras inférteis do Inferno, à minha
frente estavam dois seres que ultrapassavam os limites de minha
compreensão. Seus passos eram lentos, emitindo sons que eram abafados
pelo respirar conjunto de centenas de almas torturadas. Ainda assim, eram
os sons de nossos corações que ecoavam em minha mente.
À nossa frente, o Arcanjo Gabriel mantinha sua lâmina preparada e
suas asas abertas. A arma e as asas cortantes ardiam em chamas celestes,
que brilhavam com uma intensidade ofuscante. Sua luz emanava das frestas
da armadura prateada, delineando seu corpo. Fita-lo diretamente era como
fitar o sol, e eu o olhava tentando proteger meus olhos da claridade que
emanava.
E ainda assim, o demônio o encarava de face erguida, suas órbitas
vazias não sendo afetadas pela luminosidade. Veios negros pareciam se
formar sob a pele doentia, enquanto ele expunha sua mandíbula, preenchida
por dentes afiados como os de um tubarão. Aproximando-se a passos
pausados, ele lentamente abria os braços, mostrando peito e ventre abertos
e desprotegidos. O manto pútrido que ele vestia se abria, revelando sua
nudez desconcertante. Ele respirava pausada e profundamente, sendo
acompanhada por todas as almas acorrentadas e torturadas ali presentes,
como se o monstro e suas vítimas fossem um só ser.
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Lentamente, o Primus movia sua lâmina para a esquerda,
preparando braços e pernas para o golpe inicial. Parando ao lado de seu
trono, o Grande Lorde baixou a cabeça, mantendo os braços abertos, como
se desse boas-vindas ao adversários. As asas flamejantes do Arcanjo se
abriam o máximo que podiam, revelando sob o manto de fogo purificador
penas cortantes e afiadas como facas. Lentamente, o espaço entre ambos se
reduzia. A cada passo do Arcanjo, nossos corações aceleravam mais em
ansiedade. Então, os dois gigantes se aproximaram o suficiente para que a
lâmina do Arcanjo pudesse ser liberada em um golpe certeiro...
...e o que veio a seguir foi um trovão, e um arco de chamas que
cruzou o espaço entre eles. O demônio recuou, movendo-se como um
fantasma, escapando por pouco da lâmina que atravessava o ar tão rápido
que parecia um relâmpago. Aproveitando o movimento dos braços, o
Arcanjo girou por completo o corpo, e suas asas letais traçaram novos arcos
flamejantes no ar. A primeira atingiu o ventre do Lorde da Dor, cortando-o
de lado a lado. Sangue e tripas escaparam pelo ferimento, caindo ao chão.
Atingido, o demônio tombou, fazendo com que a segunda asa passasse logo
acima da cabeça do monstro. O demônio recuava arrastando-se, enquanto o
Arcanjo completava o giro e se erguia no ar, pondo a lâmina acima de sua
cabeça. Ele avançou numa velocidade incrível, deixando apenas seu rastro
de chamas, e então a espada desceu, traçando agora um arco vertical.
Astaroth rolou para o lado, escapando mais uma vez por pouco. O metal da
lâmina se chocou com o solo de mármore, emitindo um estrondo intenso. O
chão rachou e as paredes tremeram, e então um novo arco de chamas foi
traçado, desta vez ascendendo da esquerda para a direita, passando
exatamente onde o pescoço do Grande Lorde caído estaria, mas este mais
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uma vez esquivara num piscar de olhos, rolando uma segunda vez.
Apoiando-se nas mãos, o demônio se impulsionou para se erguer. Um novo
arco de chamas cruzou o ar, trovejando, e desta vez a lâmina foi certeira.
Almas e o demônio urraram quando a lâmina atingiu o ombro
esquerdo do Grande Lorde, mas o urro era de ódio, não de dor. A espada
flamejante penetrou profundamente, partindo ossos e carne, até chegar ao
coração do monstro. Ainda assim, a criatura punha-se em pé, seus músculos
e ossos partidos se reunindo e fechando o corte, prendendo a espada no
peito do Senhor da Dor. O demônio avançou contra o adversário, fazendo
com que a lâmina o atravessasse, a ponta surgindo além de suas costas. Por
onde o sangue infernal passava, porém, chamas celestes agora ardiam
verdes e corruptas. Antes que Gabriel soltasse a arma ou tentasse reagir, a
mão esquerda de Astaroth agarrou seu punho direito, enquanto a mão
direita se erguia, descendo contra o peito do Primus. As unhas quebradiças
do demônio atingiram a armadura, penetrando-a sem dificuldades e
encontrando a carne celeste abaixo. Sob o contato com a mão de Astaroth,
a armadura se enferrujava e se partia como se fosse barro seco. As garras
da criatura desceram do peito ao ventre de Gabriel, rasgando pele e carne,
mas incapazes de penetrar profundamente.
Chutando o demônio para que se afastasse, o Arcanjo puxou a
lâmina para direita, forçando-a a arrebentar a caixa torácica de Astaroth
para se livrar de sua prisão de carne. O sangue pútrido e partes de costelas
do demônio se espalharam, enquanto as chamas da lâmina tornavam-se
mais uma vez puras. Aproveitando o movimento circular, Gabriel mais uma
vez girou todo o corpo, e as asas rasgaram o ar na direção do inimigo. O
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demônio urrou, se jogando para trás para escapar das penas cortantes
que o ameaçavam.
Sangue escorria de ambos os combatentes, mas a batalha
prosseguia. Completando o giro de seu corpo, o Arcanjo Gabriel ergueu a
espada mais uma vez, avançando bravamente. O demônio Astaroth abriu os
braços, rosnando furioso, e uma explosão se seguiu. Chamas negras
emanaram de seu corpo, tomando todo um raio de doze metros ao seu
redor. A onda de ar emitida fez com que as paredes e o teto tremessem, e
rachaduras se espalharam e mesmo nós lutamos para não sermos
derrubados. Mesmo envolvido pelas chamas negras, o corpo agora
totalmente flamejante de Gabriel avançava, voando por entre o inferno de
fogo profano, tornando Fogo Negro em Fogo Celestial em seu caminho. A
lâmina flamejante atravessou certeira o demônio, mas este avançou,
desincorporando-se numa forma de puro fogo negro. Também o corpo do
Arcanjo se tornou fogo celeste por completo, e ambas as formas
flamejantes, vagamente similares às suas formas verdadeiras, começaram a
batalhar em meio a um incêndio que brilhava azul e verde. As duas formas
semimateriais, desimpedidas por peso, entravam numa dança precisa e
letal, na qual os golpes eram evitados pelas formas que se expandiam e se
contraíam, uma incapaz de vencer a outra.
“Precisamos agir!”, gritou Azrael, o Anjo da Morte, enquanto
alguns de nós se levantavam após a onda de choque emitida pelo demônio.
Adiante, os fogos se espalhavam mais e mais, ameaçando tomar toda a
área.
Deixando de lado a batalha por alguns instantes, eu fitei Veritatis.
Seu rosto ainda baixo, seus olhos fechados e sua respiração quase ausente
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me preocupavam. “Ajudem-me a liberta-lo!”, pedi, enquanto Ansgar e
Azrael tentavam partir as correntes que o prendiam ao teto.
O estrondo de metal se chocar contra rocha ecoou, me forçando a
fitar mais uma vez a batalha. Partículas de rocha caíram do teto quando a
torre tremeu. Adiante, a espada semi-material do Arcanjo Gabriel atingia a
parede, indicando que os combatentes não eram totalmente insubstanciais.
Preso entre a parede e o Arcanjo, o Lorde da Dor avançou, sua bocarra se
expandindo como a mandíbula de uma cobra, aproveitando a posição
vulnerável do Primus. As mandíbulas de chamas se fecharam sobre o
ombro esquerdo de Gabriel, penetrando profundamente. Então, o Grande
Lorde puxou de volta a cabeça, arrancando um naco de carne. Como
magma, o sangue de Gabriel espirrou, e o Arcanjo tentou recuar, mas não
antes que a mão direita de Astaroth atingisse certeiramente a face do
Primus. As chamas celestes do Arcanjo se apagaram e suas asas sumiram,
enquanto seu elmo enferrujava e era partido pelas unhas quebradiças do
demônio. O impacto do golpe jogou o Arcanjo para trás, derrubando-o e
fazendo-o rolar no chão, através da conflagração de Fogo Negro que
tomava o salão.
O demônio retornou à forma física, revelando um corpo marcado
por queimaduras e cortes. Sua face enegrecida parecia putrefata, com
pedaços queimados caindo e revelando músculos cinzentos sob a pele. Seus
dedos sangravam, com as pontas carcomidas e as unhas quebradas. De sua
barriga, escorria sangue e caíam vísceras, que se tornavam massas de
vermes ao tocar o piso. Ainda assim, o respirar das almas acompanhava sua
respiração pausada e profunda, não indicando cansaço ou dor. Lentamente,
o demônio avançava em direção ao Arcanjo derrubado. E, então, eu ouvi
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sua risada demoníaca ecoar, acompanhada pelas almas ali presentes,
penetrando em minha alma e provocando dor em minha mente. Todos, com
exceção de Azrael, pareciam ser afetados pela gargalhada, nos forçando,
por um momento, a parar nossas tentativas de partir as correntes que
prendiam Veritatis.
Lentamente, o Arcanjo Gabriel lutava para se erguer, enquanto as
chamas negras ao seu redor eram pouco a pouco substituídas por fogo
celeste. Cessando sua gargalhada, o Lorde da Dor pôs-se a andar por entre
as chamas corruptas, vagarosamente se aproximando do Primus. “Você
ainda persevera? Quão fútil!”, as almas disseram, acompanhando a voz
monstruosa de seu mestre. Gabriel se punha em pé, revelando um peito
tomado por infecções e ferimentos purulentos, e uma face rasgada por
garras cegas e cauterizantes. Seu olho esquerdo estava fechado, tendo sido
trespassado pelas garras do demônio, enquanto mais e mais partes de sua
armadura agora se rachavam e eram cobertas por uma ferrugem enegrecida.
Seu ombro esquerdo era uma massa de músculos dilacerados e sangue
grosso, que escorria por todo o lado esquerdo de seu corpo. O Grande
Lorde parou diante dele, a poucos metros, como se esperasse seu próximo
passo. Mesmo ofegante, Gabriel deixou que sua aura surgisse e suas asas
crescerem novamente, e então avançou mais uma vez contra o inimigo.
A espada de Gabriel cortou o ar rápida o suficiente para gerar um
trovão, e o Arcanjo continuou a avançar e golpear enquanto seu oponente
recuava para escapar dos ataques incessantes. Ainda assim, o Grande Lorde
parecia incansável, enquanto os ataques de Gabriel pareciam mais lentos a
cada golpe. Eu podia sentir a intensidade do poder do Arcanjo diminuir,
enquanto o Grande Lorde parecia se fortalecer com a dor lacerante que
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lentamente tomava o corpo do Primus. “Este é o santuário de Astaroth.
O poder dele é maior aqui”, murmurou Azrael, apertando os punhos em
volta do cabo de sua espada.
A espada cortou novamente o ar, seguida das asas, mas desta vez,
ao invés de recuar, o demônio avançou, abaixando-se para que a primeira
asa passasse por cima dele. Antes que a segunda asa o atingisse, Astaroth
urrou, e suas garras atingiram as costas desprotegidas de Gabriel, rasgando-
as de alto a baixo. Atingido pelo golpe, o Arcanjo perdeu o equilíbrio,
caindo de joelhos no chão, e apoiando-se sobre os braços. As mãos do
demônio incendiaram-se em chamas negras, ele então agarrou ambas as
asas flamejantes. Imediatamente, seu toque fez com que o fogo profano se
espalhasse pelas asas de Gabriel, e Astaroth apoiou sua perna nas costas do
Arcanjo, forçando as asas. O grito de dor do Arcanjo se seguiu, conforme
suas asas eram arrancadas à força. A asa direita partiu-se, derramando
sangue e definhando nas mãos do Grande Lorde. Suas penas cortantes
agora murchavam, conforme Fogo Negro as consumia e as reduzia a pó.
Antes que a asa esquerda fosse partida, porém, Gabriel reagiu, tentando
girar tronco para desferir um golpe com a espada, empunhada apenas pela
mão direita. Seu pulso, porém, foi agarrado pela mão direita de Astaroth
antes que a lâmina pudesse atingir o Grande Lorde.
“Espadas e punhos são as armas de um guerreiro”, o coro
demoníaco murmurou, enquanto a armadura de Gabriel enegrecia e rachava
a partir do braço por Astaroth. Gabriel liberou um segundo grito de dor, e
sangue espirrou de sua boca. “Eu não sou um guerreiro. Eu sou doença, eu
sou dor. Eu sou o mestre da carne. Em minhas mãos, você não é nada mais
mortal, e a febre e a dor que você sente são apenas o início”. O infernal
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então girou o corpo, arremessando Gabriel para longe. A espada do
Arcanjo caiu inerte, enquanto seu corpo voou como uma folha jogada ao
vento, atingindo uma das paredes com tanta força que a fez rachar. O
Arcanjo caiu sobre a própria asa, e os ossos da mesma se partiram com a
queda. As próprias penas cortantes agora agiam como facas, penetrando na
armadura quebradiça e rasgando a carne das costas do Arcanjo.
As chamas que restavam na sala começavam a desaparecer,
enquanto o Grande Lorde da Dor agora se aproximava do Primus
derrubado, lentamente. Gabriel tentava se erguer, mas a putrefação que se
espalhava a partir de seu peito agora chegava a seus braços, fazendo-os
fraquejar. O monstro balançou uma mão, e o chão se moveu sob o Arcanjo,
criando uma estaca, que rapidamente se elevou e trespassou o peito de
Gabriel, erguendo-o no ar. O sangue celeste escorreu pela estaca,
lentamente. Nos ignorando por completo, o demônio continuou a caminhar
calmamente na direção do Primus.
“Absolon...”, murmurei, enquanto levava minha mão à
empunhadura de minha espada. Tocar a arma me dava insegurança, medo,
receio, mas eu sentia que era meu dever, minha única escolha.
“Sim, Nicodemus”, ele respondeu, com sua lâmina já em mãos.
“Leve Karina e Fabrizia para longe daqui”, murmurei.
“Eu também quero lutar, Nicodemus”, ele pediu, sua voz
demonstrando medo, suas mãos trêmulas, mas seu olhar decidido.
O som de metal deslizando pela bainha de couro acompanhou a voz
de Armin Ansgar: “Isto não é uma luta, jovem Absolon...”.
“...é um sacrifício”, completou Al-Malik, também sacando sua
cimitarra.
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As asas negras do Anjo da Morte se abriram à nossa frente.
“Sam?”, olhou Karina para o Sancti, desconsolada. Samuel Fulmen
parou, fitou-a, seu olhar cheio de medo, e então ele a abraçou. “Cuide-se,
Karina”, ele pediu, então se afastando e pondo a espada à frente do corpo.
“Foi um grande prazer e uma grande honra conhece-los”, Lo Wang
murmurou, caminhando para frente, na direção do demônio, lentamente. A
escuridão se acumulava ao redor dele, tornando-o apenas uma sombra até
desaparecer na escuridão.
Karina segurou o choro, e Fabrizia a abraçou, enquanto Absolon se
aproximava das duas, ainda com a espada em mãos. Os três jovens se
entreolharam, e nos fitaram, enquanto dávamos os primeiros passos rumo
ao extremo oposto do salão, onde a Força de Deus agora agonizava, e a
morte nos esperava.
As mãos do Arcanjo Gabriel seguravam firmemente a estaca que o
trespassava, lutando para parti-la, enquanto o inimigo se aproximava
calmamente. “Não é irônico?”, o coro demoníaco zombou. “Não é este o
dia que todos temíamos? O dia em que começaria o fim, o Armageddon? O
sangue que se derrama logo além de minha torre é apenas o começo. Sua
ação começou tudo, começou uma guerra, e agora as profecias se
cumprirão! Os céus choverão fogo, e os mortos amaldiçoados invadirão o
reino da vida. Os mares se tornarão sangue, e os pecadores cairão sobre os
justos, arrancando-lhes as carnes e bebendo-lhes o sangue. A Quinta Guerra
começa, a última guerra. Eu os agradeço por isso”.
A lâmina de Samuel brilhou dourada, enquanto as de Azrael e
Ansgar arderam em Fogo Celestial. Eu, atrás do grupo que caminhava
rumo ao seu destino, parei e fitei os jovens que ficaram para trás. Ao
653
mesmo tempo, Gabriel reunia sua força, partindo a estaca que se
projetava de seu peito. E eu vi Veritatis murmurar para os jovens com sua
voz fraca e rouca: “O demônio inflige, mas o Arcanjo da Vida pode curar”.
Absolon fitou o Primus acorrentado, e meneou a cabeça.
O demônio chegou ao Primus que agora tentava se livrar da base da
estaca, empurrando-se para fora da haste mortal. “Tudo isso me alimenta”,
o coro demoníaco continuava, “a dor, o sangue, o desespero...”. Então, o
demônio se virou para nos fitar com suas órbitas vazias. “E as ovelhas que
vêm para o abate”.
O Anjo da Morte avançou, emitindo um grito de guerra e sendo
acompanhado por Ansgar e Samuel. Pus minha mão à frente do corpo,
liberando meu desespero na forma de um relâmpago que cruzou o salão,
atingindo o peito da monstruosidade. Ainda assim, o demônio avançava a
passos lentos, seu respirar sempre profundo e pausado.
A espada do Anjo da Morte atacou, atravessando carne e ossos
demoníacos de lado a lado to peito. Ainda assim, o demônio avançou, seus
ferimentos se fechando conforme a lâmina o atravessava. Sua garra atingiu
o rosto de Azrael, partindo seu elmo e arremessando o Arcanjo para trás. O
corpo do Anjo da Morte caiu rolando, retornando à forma humana.
Eu chamava por ajuda espiritual, enquanto Samuel e Ansgar
atacavam o demônio por flancos opostos. Das sombras, atrás do demônio, a
forma de Lo Wang surgia, atacando com a lâmina negra as costas do
demônio. Mesmo ferido, Azrael se erguia. O coro infernal gargalhava,
enquanto era atingido seguidamente por golpes de espada. Liberei o poder
espiritual que eu acumulava, e vi a carne do demônio se rasgar e sangrar,
654
mas ele não se enfraquecia, não recuava, não demonstrava dor ou
qualquer forma de fraqueza.
O demônio moveu o braço, cruzando o ar num arco à frente de
Ansgar. Ventos cortantes atingiram o Venator, arremessando-o vários
metros, e cortando sua carne e armadura. O Venator caiu pesadamente no
chão. Samuel ergueu sua espada e a cravou no chão, criando uma aura de
chamas douradas ao seu redor. Ao toque daquela aura, a carne do demônio
começava a queimar e a fumegar. O demônio se virou ao Sancti, ignorando
por um instante os ataques de Lo Wang, e ergueu a mão, e as chamas
imediatamente cessaram. Samuel cambaleou, urrando de dor, enquanto seu
ventre se partia, liberando suas vísceras e centenas de vermes. Então,
Astaroth se voltou a Lo Wang.
Al-Malik se posicionou nas proximidades da batalha. “Você que é
odiado por todos”, o Malaki gritou, “eu o puno por cada alma e Celestial
aqui presente, pela dor que causou e pretendia ainda causar!”.
A carne do demônio apodrecia e caía em pedaços, deixando
músculos e ossos expostos, mas mais uma vez ele não recuava ou
enfraquecia. “Cale-se”, o coro infernal urrou, e besouros, baratas e moscas
jorraram da boca de Al-Malik, sufocando-o. “Ajoelhe-se”, o Coro repetiu, e
os tendões das pernas de Al-Malik se partiram, forçando-o de joelhos.
Lo Wang recuou, enquanto as trevas se moviam para agarrar o
demônio. Atrás, Azrael avançava novamente, enquanto Ansgar lutava para
pôr-se em pé, apesar dos cortes que tomavam todo seu corpo. O coro
demoníaco gargalhou quando Lo Wang emitiu um grito emudecido, e as
trevas vazaram de seu interior na forma de tentáculos negros que surgiam
por sua boca e abriam caminho através de sua caixa torácica. Ao mesmo
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tempo, as trevas em tentavam engolir Astaroth se desfaziam, como se
tornassem pó ao toca-lo.
O que eu podia fazer? Fitei os três jovens atrás, tentando quebrar
um dos vitrais escarlates para escapar do salão. Apesar dos golpes da
espada de Absolon, o vidro apenas rachava, como se tivesse camadas e
mais camadas de espessura. À frente, Azrael emanava conflagrações de
chamas celestes, mergulhando o demônio em fogo purificador. Astaroth,
porém, avançava calmamente por entre as chamas, na direção do Anjo da
Morte. Entrando nas chamas, Armin Ansgar avançou na direção do
demônio, investindo não com a espada, mas com os punhos. O golpe
atingiu a cabeça do demônio, e este retribuiu com um simples tapa,
arremessando o Venator novamente contra o chão, mas também
incendiando-o em chamas negras.
Voltei a fitar os jovens. Eles precisavam escapar, mas o vidro os
resistia. Ergui minha mão na direção do vitral, concentrando-me para
liberar a fúria espiritual contra a vidraça.
O Arcanjo Azrael agora resistia sozinho ao demônio, desta vez
preocupando-se em escapar das garras do Inferno e contra-atacar sua carne
putrefata. Azrael claramente perdia terreno, conforme era forçado a recuar
mais e mais.
A visualizei a vidraça, sua estrutura e fraquezas, e preparei-me para
destruí-la com meu poder. Porém, antes que liberasse a fúria dos espíritos,
senti uma força em meu braço, vinda de dentro para fora. Uma nuvem de
respingos escarlates emanou de meu braço, conforme meus músculos eram
dilacerados e meus ossos partidos. Gritei de dor, caindo de joelhos,
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enquanto meu braço se tornava inútil. Tentei me curar, mas minha
energia se voltava contra mim, queimando e ardendo em meus ferimentos.
Adiante, Azrael desferia mais um golpe, mas Astaroth se moveu
tão rápido que conseguiu agarrar o pulso do Anjo da Morte, impedindo que
a lâmina o atingisse. A mão livre de Astaroth envolveu o rosto do Arcanjo,
e chamas negras tomaram seu corpo. Azrael gritou de dor, mas logo em
seguida houve um estrondo, causado por um impacto de força descomunal,
e o demônio recuou enquanto o Anjo da Morte caía no chão, livre das
chamas. Mesmo ferido, o Arcanjo Gabriel avançava urrando furioso e
voltava a atacar o demônio, avançando contra ele e desferindo um segundo
golpe com as mãos nuas. Um segundo estrondo se seguiu e o demônio
tombou. O Primus dos Venatores se pôs sobre o demônio caído, golpeando-
o seguidamente, fazendo o chão abaixo rachar e a torre tremer.
Azrael se levantava e se preparava para ajudar o Arcanjo Gabriel,
mas então o próprio Primus gritou: “Ajude os jovens!”. Naquele momento,
as garras de Astaroth atingiram a face do Primus, arrancando seu olho
direito e cegando-o por completo. O coro de almas urrou furioso, e a mão
direita de Astaroth envolveu o pescoço de Gabriel, pressionando-o e
fazendo as garras demoníacas penetrarem a traquéia do Arcanjo. Num
movimento rápido, o demônio jogou o Arcanjo para o lado, se erguendo em
seguida.
O Arcanjo Azrael voava na direção do vitral onde aguardavam
Absolon, Karina e Fabrizia. Astaroth fitou o Anjo da Morte. Fechei meus
olhos, tentando ignorar a dor de meu braço direito arruinado, e saquei a
espada de Asphael Veritas com a mão esquerda. Pondo-me em pé, corri na
direção do Grande Lorde, gritando. O demônio não esperou que eu desse
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um passo, e golpeou o ar com suas garras, em minha direção. Mesmo à
distância, senti suas garras rasgarem meu peito e me empurrarem com uma
força extrema para trás. Tombei, deixando cair a espada.
Astaroth voltou a fitar Azrael, e cortou o ar com ambas as garras.
As asas do Arcanjo se rasgaram, forçando-o a cair e rolar no chão.
Caminhando numa velocidade demoníaca, o Lorde da Dor se aproximava
do Anjo da Morte, abrindo sua bocarra e revelando uma língua pegajosa e
serpenteante. O coro demoníaco rosnava furioso agora, e Azrael se erguia,
apesar da dor que vinha de suas asas inutilizadas. A lâmina de Azrael se
encheu de Fogo Celestial, e ele a ergueu apenas com a mão direita, fitando
Astaroth. O demônio se aproximava ainda mais, numa caminhada tão veloz
que o fazia parecer sem substância, como um fantasma que se movia sem
tocar o chão. Ao invés de avançar para atacar o demônio, porém, Azrael
Veritas se virou para os jovens, e arremessou a espada, que cruzou os ares,
deixando um rastro de chamas azuladas. “Cuidado!”, gritou Karina,
empurrando Absolon para fora do rumo da lâmina. A vidraça estilhaçou,
enviando cacos de vidro em todas as direções, alguns deles atingindo
Karina, Fabrizia e Absolon.
Astaroth alcançou Azrael e, num piscar de olhos, rasgou o peito do
Anjo da Morte com as garras. O Arcanjo tombou, e a bocarra do Grande
Lorde da Dor se abriu ainda mais, expandindo-se. Um som grotesco
emanou, enquanto as almas urravam, e o demônio regurgitou um exército
de milhares de vermes e insetos, que caíam sobre o corpo de Lorde Azrael
Veritas. O Anjo da Morte tentava se mover e incendiar os vermes em Fogo
Celestial, mas lentamente a massa de criaturas penetrava em sua armadura
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e devorava-lhe a carne, alguns cavando em meio às entranhas do
Arcanjo para devora-lo de dentro para fora.
Astaroth fitou o vitral destruído e a nuvem negra além. Os jovens
tinham sumido. O coro infernal gargalhou, e ele se voltou a Gabriel, que
tentava se erguer e se curar, apesar de cego e mortalmente ferido. Todos os
ferimentos infeccionavam, e gangrena tomava boa parte de seu corpo. Seu
sangue jorrava pela garganta destruída. A dor era visível em seu rosto
desfigurado, mas acima de tudo, ele perseverava. Eu também tentava me
erguer, mas não era tão forte quanto ele. O máximo que pude fazer foi me
pôr sentado, fracamente apoiando-me em meu braço bom, enquanto
observava os eventos.
O demônio se aproximava lentamente do Primus. “Eu vou torna-lo
um monumento à dor”, o coro demoníaco murmurava. Alcançando Gabriel,
Astaroth o fitou, e então desferiu um chute para derruba-lo de vez no chão,
caindo de costas contra o solo de mármore. Abaixando-se ao lado do
Primus, o Grande Lorde tocou sua barriga, ainda protegida por restos de
cota de malha. A mão do demônio penetrou lentamente, ignorando a
resistência do metal e da carne, enquanto o Primus gritava. Chamas negras
emanavam da boca e dos olhos arruinados do Arcanjo, enquanto os dedos
do Grande Lorde envolviam suas tripas. “O bater de um coração, o choro
de uma criança, o respirar de um animal... eu tenho poder sobre tudo aquilo
que vive, tudo o que sofre e definha, mas a morte está além de mim.
Mortos, vocês não significam nada, mas vivos, serão meu alimento. Sua
carne é meu pão e o seu sangue é meu vinho, e eu vou devora-los por uma
eternidade”, o demônio murmurou, e então me fitou som suas órbitas
vazias.
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Respirei fundo, sentindo a dor se espalhar a partir de meu braço
e meu peito. Medo invadia minha mente... medo, desespero e memórias. O
demônio me olhava, e se levantou, caminhando lentamente em minha
direção, sua mão respingando o sangue celeste do Arcanjo Gabriel. “Você
sabe segredos que Uriel não revelou”, a coro infernal murmurou. “Seu
valor é alto, pois você conhece os planos de meus irmãos rebeldes,
daqueles que planejam sem meu conhecimento e consentimento. Eu quero
ouvir tudo, pequeno Arcanjo, incluindo seus gritos”.
“Eu não sei o que eles planejam”, murmurei.
“Mas eu posso descobrir a partir de você”, as almas disseram, e o
demônio estava cada vez mais próximo. “Sua vinda aqui hoje não é uma
coincidência, é uma afronta perpetrada por aqueles que marcham em
minhas terras, rumo a Dudael”.
O monstro parou diante de mim, baixando a cabeça para que eu
fitasse os músculos cinzentos que tapavam suas órbitas vazias. Sua carne
queimada e putrefata caía em algumas partes, e ferimentos cobriam todo o
seu corpo. O que restava dos trapos que ele vestia mal cobria seu corpo,
revelando feridas profundas, por onde escapavam vermes e pedaços de
vísceras. Ele se abaixou, e estendeu a mão até meu queixo, tocando-me
com seus dedos esqueléticos. Seu toque queimava e ardia, criando bolhas
em minha pele, e a dor se espalhava, como uma infecção. Eu gritei,
sentindo minha alma lentamente queimar diante daquele toque. Como com
Agliareth em Oostegor, eu podia sentir o demônio penetrar em meus
pensamentos, e a dor se intensificava mais e mais. Ainda assim, conforme
minha mente se perdia em pensamentos dolorosos, eu senti algo se
aproximar e forcei meus olhos a se abrirem.
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Por cima do ombro da criatura, eu vi um dos vitrais se
iluminar, e o brilho que vinha do outro lado aumentava mais e mais em
intensidade. O demônio me soltou, se erguendo e se virando, e, naquele
momento, a vidraça explodiu, atingida por uma lâmina que brilhava
dourada. “Finalmente, você vem a mim”, o coro infernal urrou furioso, e o
demônio começou a caminhar em direção ao vitral arruinado.
Iluminando-se em dourado, a Forma Celeste do Arcanjo Rafael
adentrou pela passagem, seguido por meus jovens companheiros: Absolon,
Karina e Fabrizia. O Arcanjo, cercado por chamas douradas e
fantasmagóricas, abriu suas asas e flutuou logo acima do solo, preparando a
espada enquanto avançava na direção do demônio.
O respirar das almas agora mudava, não mais pausado e profundo,
mas mais parecendo um rosnado ofegante, cheio de ódio e ansiedade. O
demônio não mais caminhava, mas sim avançava em disparada, sua bocarra
se abrindo e seus dedos alongando-se. Absolon, Karina e Fabrizia se
afastaram, dando a volta pelo salão, tentando chegar a mim enquanto se
mantinha longe dos titãs que estavam prestes a se enfrentarem. O demônio
adentrou na aura de Rafael, e sua carne começou a queimar. A criatura
saltou, e a lâmina do Arcanjo traçou um arco dourado ascendente. A espada
atingiu o peito do demônio, jogando-o para trás, mas do ferimento vazou
uma onda de chamas negras, que envolveram o Arcanjo.
Astaroth caiu, mas se ergueu rapidamente, enquanto o Primus dos
Sancti avançava através do Fogo Negro. O novo golpe de espada fez ecoar
um ruído estrondoso quando a lâmina atingiu o chão, enquanto o Grande
Lorde recuava para escapar. Mal recuara, o demônio avançou num novo
salto, agarrando o pescoço de Rafael com a mão esquerda e derrubando-o
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no chão. Pondo-se sobre o Arcanjo derrubado, Astaroth manteve o
pescoço do Celestial preso, e sua mão esquerda corroia a cota de malha no
pescoço, chegando até a pele desprotegida abaixo. O Senhor da Dor ergueu
a mão direita, desferindo um golpe contra o rosto do Arcanjo. O elmo do
Celestial se partiu, e as marcas das garras cruzaram sua face de lado a lado.
Então, o Arcanjo da Vida usou a mão esquerda para envolver o
rosto do demônio. Um brilho dourado emanou da mão, e o coro de almas
gritou de dor. Jogando o corpo para a direita usando toda a sua força,
Rafael se livrou de Astaroth, fazendo-o cair no chão e rolar. O Arcanjo se
ergueu no ar, flutuando, seu corpo ainda brilhando intenso, e eu vi os
ferimentos em seu rosto e pescoço se fecharem lentamente. Também o
demônio se erguia, e a marca da mão do Arcanjo estampada em sua face
lentamente se regenerava.
Os dois se fitaram por um instante, enquanto o coro de almas rugia
dissonante. O Arcanjo fitou sua própria espada, e então a largou. O som da
lâmina batendo contra o chão ecoou pelo salão, enquanto os próprios
punhos do Arcanjo começavam a brilhar em luz dourada. O demônio rugiu
mais alto do que todas as almas, criando uma cacofonia que ecoava sem
parar. O Arcanjo voou em direção a Astaroth, e, quando os dois se
chocaram, toda a torre tremeu.
Os socos de Rafael queimavam a carne do Grande Lorde, enquanto
as garras do monstro incendiavam a carne do Arcanjo com chamas negras.
Ao alcance da própria aura do Arcanjo, o corpo de Astaroth ruía, deixando
cair pedaços de carne fumegante, mas a carne se recompunha conforme
caía. Da mesma forma, os ferimentos de garras se regeneravam. A cada
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golpe, o impacto emitia um ruído poderoso, como se toneladas de rocha
atingissem montanhas a grande velocidade.
“Philipe!”, gritou Karina, se aproximando, seus olhos cheios de
lágrimas.
“Vocês o encontraram... Graças a Deus!”, murmurei, meio rouco
devido à dor.
“Eles nos encontrou”, murmurou Absolon, fitando o confronto.
Desviando-se de um dos golpes do Arcanjo, o demônio
rapidamente avançou através do Arcanjo, atacando sua asa direita com as
garras. Penas brancas voaram, mas não antes que Rafael se recobrasse e se
virasse, atingindo com ambas as mãos as costas do monstro. Astaroth,
cambaleou, se recuperando a tempo de esquivar-se de mais um golpe das
mãos ardentes do Arcanjo da Vida.
Ferimentos leves cobriam as faces e corpos de ambos, como se a
capacidade de regeneração deles tivesse um limite. Demônio e Arcanjo
ofegantes, eles se entreolharam, enquanto Rafael pousava, com
dificuldades em manter-se no ar devido à asa ferida. Astaroth recuou
lentamente, sem jamais fitar qualquer outra direção que não fosse a de seu
oponente.
Rafael, avançou, enquanto Astaroth emanou Fogo Negro em todas
as direções, gerando uma conflagração ao seu redor. O Arcanjo adentrou
nas chamas, golpeando o demônio. O demônio cambaleou, recuando em
meio às chamas profanas, mas então contra-atacou, rasgando a armadura e
o peito de Rafael com suas garras. Rafael, recuou, enquanto as chamas
negras tomavam mais e mais seu corpo. E, ainda assim, ele voltava a
avançar para um novo ataque, e outro, e outro, suas mãos purificadores
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consumindo mais e mais da carne demoníaca, enquanto ele próprio era
consumido pelo fogo demoníaco que o cercava. Ambos fraquejavam mais e
mais, mas continuavam a avançar e a se atacar, cada um decidido a ser o
único a permanecer em pé.
E então, lentamente, vi o Arcanjo Gabriel se erguer, cercado por
uma aura dourada, enquanto a batalha prosseguia. O Primus dos Venatores,
ainda ferido, mas com os olhos recuperados, procurou por sua espada, e viu
ao invés a espada de Rafael nas proximidades. Gabriel se ergueu, sujo pelo
próprio sangue, e moveu a mão direita, erguendo-a adiante de si. Fogo
Celestial emanou da mão, e então ele o arremessou para o alto, onde ela
explodiu, formando um verdadeiro sol de Fogo Celestial próximo ao alto
teto do salão.
Astaroth se virou ao ver que suas chamas negras eram consumidas
por um poder externo à batalha, e viu a forma de Gabriel correr em sua
direção, pegando a espada de Rafael que estava em seu caminho. “Como
pode?”, perguntou o coro de almas.
“Eu sou a renovação, a saúde e a vida”, sorriu Rafael, se afastando,
enquanto a lâmina empunhada por seu irmão traçava um arco flamejante no
ar, arrancando o braço esquerdo do demônio e atravessando o lado
esquerdo de seu peito. “E as trago em abundância”, o Arcanjo da Vida
completou, avançando e golpeando uma vez mais o demônio.
O demônio caiu, rolando no chão, mas se levantando em seguida,
seus músculos expandindo-se ao redor do ferimento e se enrolando, como
se estivessem se transformando num tentáculo para substituir o membro
perdido. Os dois Arcanjos feridos avançaram pelos flancos, cercando-o, e
então Rafael se abaixou, tocando o solo, enquanto Gabriel urrou. Do
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Arcanjo da Vida, emanou uma aura ainda mais intensa de chamas
douradas, enquanto do Arcanjo da Guerra, emanaram chamas celestes. O
corpo do demônio, cercado por ambas as energias, incendiou-se,
consumindo-se em chamas, e então o Arcanjo Gabriel, avançou, sua espada
traçando um arco final, trespassando o pescoço da criatura. As almas
urraram furiosas, enquanto a cabeça do demônio caía e rolava pelo chão,
desfazendo-se até sobrar apenas uma caveira rachada e quebradiça.
E, ainda assim, a presença da criatura não sumiu.
“Tolos!”, urraram as almas furiosas, enquanto Rafael era atingido
por garras invisíveis que rasgavam carne e alma. “Neste lugar, eu sou mais
do que fora dele”, elas rosnavam, enquanto o rosto de Gabriel, era rasgado
pelas mesmas garras espirituais. “Eu sou o Senhor da Carne, e vivo em
meus súditos”.
E meu corpo começou a arder, como se minhas entranhas fossem
fogo. Adiante, os dois Primi eram rasgados seguidamente, enquanto minha
própria carne começava a se partir e rachar. Eu gritava de dor, enquanto o
espírito de Astaroth cruzava o salão. Eu sentia ele se aproximar, seus
braços invisíveis me envolverem. Gabriel se apoiou na espada para não
tombar, enquanto Rafael se pôs de joelhos, mas ergueu a mão direita em
minha direção, como se a estendesse para mim. A mão brilhou com
intensidade, mas eu podia sentir a escuridão tentar entrar em mim. Em
minha mente, eu ouvia a voz do demônio: “Você será meu novo corpo,
Arcanjo, e com você terei os seus segredos”. Eu lutava, mas sentia minhas
barreiras mentais caírem, enquanto uma sede de sangue invadia meus
pensamentos. Eu vi imagens de uma grande sombra, e do princípio dos
tempos. Vi uma guerra contra seres de fogo e rocha, e presenciei milhões
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de almas, uma após a outra, serem torturadas, estripadas e devoradas
pela criatura que agora tentava me consumir. Mas então, um poder o
expulsou de mim, e meus olhos se abriram para fita-lo.
Rafael ainda estava do outro lado do salão, a mão voltada para
mim. Mas então eu percebi uma presença surgir poderosa atrás de mim, e
me voltei para ver a quem o Arcanjo da Vida realmente estendia sua mão.
Mesmo acorrentado, o Arcanjo Uriel, chamado Veritatis, agora
erguia a cabeça, e seus olhos brilhavam num branco puro e intenso. Seu
corpo ensangüentado se recuperava, ainda que se mantivesse sujo, e sua
expressão mostrava raiva. “Você é o mestre da carne, demônio, mas agora
é só um espírito. E no mundo dos espíritos, eu sou supremo!”, a voz do
Arcanjo emanou, ecoando pelo salão e em minha mente. O Arcanjo abriu a
boca, gritando, e as almas dos condenados gritaram em dor. Um grito
monstruoso rugiu em minha mente, mas então, senti a presença demoníaca
ser tragada, e o rugido finalmente cessou. As almas se calaram, caindo num
estado catatônico, e a torre tremeu pela última vez.
Lentamente, os Arcanjos da Vida e da Guerra, com suas armaduras
despedaçadas e sujos com o próprio sangue, se ergueram. Os ferimentos de
Rafael se curavam rapidamente, incluindo os da asa ferida, enquanto uma
aura dourada brilhou ao seu redor.
Ao meu lado, Fabrizia e Absolon me ajudavam a me levantar,
enquanto o brilho purificador do Arcanjo fechava meus ferimentos mais
severos, e minhas próprias energias tratavam de me recuperar dos cortes
menores. A voz do demônio ainda ecoava em minha mente, e memórias
que não eram minhas ainda surgiam parcialmente quando eu tentava
esquece-las.
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O Anjo da Morte se ergueu, saindo da massa de vermes e
insetos mortos que o cobria. Sua carne tinha sido parcialmente consumida,
mas agora os ferimentos se fechavam, e ele fitou seu mestre. Azrael Veritas
se ergueu, correndo em direção a Veritatis.
Karina corria até Samuel, que agora se erguia lentamente, levando
a mão direita à barriga, que até a pouco estava preenchida por vermes. Seu
olhar enfraquecido fitou a Supervivente, e ambos se abraçaram
silenciosamente.
Al-Malik se erguia, ainda sentindo a dor das pernas agora
recuperadas. Ele tossia muito e toda a sua garganta ardia com os ferimentos
provocados pelas criaturas que ele regurgitava até há pouco. Ansgar,
próximo a ele, tentava se erguer, conforme queimaduras e cortes
desapareciam lentamente. Silenciosamente, Lo Wang caminhou até o
Venator, ajudando-o a se erguer.
Sendo ajudado por Fabrizia e Absolon, eu caminhei até Veritatis,
que se libertava com a ajuda do pupilo, Azrael. Também os Arcanjos
Miguel e Rafael e os outros se aproximavam.
Ainda fraco, Veritatis se apoiou no Anjo da Morte e nos fitou, mas
manteve o foco de seus olhos em mim. “Eu sou grato a vocês... a todos
vocês... Mas eu temo que não possa trazer nada a não ser revelações
terríveis. Nós fomos enganados, desde o começo. E eu fui um tolo, ao
acreditar que podia impedir os planos daquele que jogou com nossas
vidas”.
“O que quer dizer, Lorde Veritas?”, perguntei, sabendo que a
mesma pergunta transitava na mente de todos ali presentes.
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“Há um jogador que planejou isto tudo. Ele os lançou a esta
guerra, ele me usou como uma isca, nos fez de tolos. Mas não tenho tempo
de explicar. A única coisa que podemos fazer agora é tentar impedir que a
última parte de seu plano se conclua”, ele disse. “Nós temos de ir para o
sul, para o deserto de Dudael, ou o que conquistamos aqui será em vão”.
“Dudael?”, perguntou Samuel, abraçado a Karina, mas fitando o
Arcanjo Rafael.
O Arcanjo Rafael retribuiu o olhar, demonstrando preocupação.
“Eu batalhei com Azazel nesse lugar, milênios atrás”.
“Enquanto os exércitos de Astaroth foram pegos de surpresa pelas
forças celestes”, explicou Veritatis, “o Lorde das Mentiras adentrava
Libraria e roubava o jarro, onde a sombra de Leviathan era aprisionada”.
“O Lorde das Mentiras?”, perguntei.
Veritatis me fitou. “Onze eram os filhos de Ialdabaoth no princípio,
jovem Arcanjo. Eles eram trevas, sangue, dor, ambição, caos, luxúria,
corrupção, tirania, fúria, tentação e medo”, ele disse, então pausando a
baixando a cabeça. “Mas há um décimo segundo filho, aquele que as
histórias não contam... a mentira. E por ser o menor e o maior, e por seu
nome ser uma mentira, ele jamais foi afetado pela barreira que criei. Agora,
a sombra de Leviathan está em suas mãos... e o Décimo Quarto nascerá”.
“Explique-nos melhor”, pediu Azrael.
“Não há tempo!”, disse Veritatis. “Precisamos partir agora. O
Quarto Filho já se encontra lá, é apenas uma questão de tempo antes que o
Décimo Segundo chegue até ele. Ouçam-me: a mim foi revelado tudo antes
do tempo, para que a minha maior dor fosse saber que minhas ações
desencadearam todo o processo. Se não, impedirmos o plano de se concluir
668
hoje e agora, o jogador, o Arauto, vai partir da barreira entre os
mundos, e vai caminhar entre os vivos. O fim de uma era se aproxima... e
vocês precisam escolher entre ouvir meus relatos sobre Revelação... ou
presencia-la com seus próprios olhos”.
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Interlúdio Quarto: Os Irmãos se Reúnem
Um urro trazido pelo vento infernal ecoou na mente dele, indicando
que seu irmão estava morto. Ele sorriu, sabendo que o plano se aproximava
de seu fim. Sob mantos pesados, a criatura continuou a escalar a alta
montanha de caminhos espirais, sabendo que alcançaria o cume em breve.
Fleuretti, o Quarto Filho, Grande Lorde do Proibido, Senhor de
Necropólis, continuava sua ascensão, o vento quente soprando a capa
pesada de seu manto, revelando sob ela uma criatura de forma humana. Das
sombras do capuz, seus olhos brilhavam fracamente num verde doentio. À
mão, ele portava um antigo pergaminho, enrolado. Sua mente se
concentrava em múltiplos afazeres e em múltiplas variáveis. Ele sentia o
grito de morte do Terceiro Filho, Astaroth, irromper através do Plano
Onírico e ecoar no Plano das Idéias, indicando aos pensadores e
adormecidos que algo terrível acontecia nos mundos além da vida. O plano
tinha sido cumprido com perfeição, e isto ao mesmo tempo maravilhava e
assustava. “Ele realmente conseguiu”, pensava Fleuretti, enquanto
prosseguia em sua caminhada. Acima, dragões urravam enquanto cruzavam
os céus vermelhos. Abaixo, ele via multidões e multidões, formando um
exército demoníaco que se espalhava pelo deserto de Dudael. Mas o vento
trazia mais do que o grito de morte do Lorde da Dor. Eles traziam urros de
agonia e desespero, que ecoavam pelas planícies áridas de Dudael.
Finalmente, o cume estava adiante, e os dragões acima pareciam
mais próximos. Após a longa caminhada, aquele que hoje se chamava
Fleuretti, viu diante de si, no topo da montanha espiralada, um pedestal
negro, e ouviu o som de correntes sendo movidas. À frente, estava o norte,
onde se notava um horizonte azul, indicando que o Inferno estava sob
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invasão. E, sobre o pedestal, estava a forma negra do Primeiro
Luciferite. Azazel se debatia, forçado a sempre fitar o norte, preso por
correntes obsidianas. Suas asas draconianas se moviam violentamente,
provocando ventos que carregavam seus urros de sofrimento para o deserto.
Sua pele negra refletia a luz do sol obscuro acima, e suas imensas
mandíbulas urravam e gritavam.
“Cale-se”, murmurou Fleuretti, removendo seu capuz, e revelando
uma face quase humana, de pele morena e olhos que brilhavam num verde
doentio. Azazel se calou, se virando o máximo que podia para fitar o
recém-chegado. Murmurando algo que Azazel não podia compreender,
Fleuretti se aproximou, ficando frente a frente com a monstruosidade que
tinha duas vezes o seu tamanho.
“Você sentiu a morte de seu criador?”, perguntou o Quarto Filho.
“Sim”, a voz trovejante de Azazel murmurou.
“Então sabe que, pela primeira vez em milênios, sua mente é
livre?”, o Grande Lorde questionou.
“Sim”, respondeu o anjo demoníaco.
“Você carrega a essência e a Maldição de seu criador, Azazel.
Quando seu criador planejou a destruição de Hordad-chamado-Rafael, ele
fez de você uma extensão de dele próprio”, murmurou Fleuretti.
O anjo demoníaco permaneceu em silêncio.
“Você desejou o poder por toda a sua existência, Azazel”, disse
Fleuretti, “Será capaz de agarra-lo e devora-lo quando estiver a seu
alcance? Pode tomar o poder que sempre desejou parte de si mesmo?”.
“Sim”, murmurou a criatura.
671
O Lorde da Ambição sorriu, e então fitou algo que vinha por
trás de Azazel. Uma figura vestindo um pesado manto negro vinha
caminhando pela mesma trilha que Fleuretti tomara para o topo da
montanha negra. Das profundezas de seu capuz, emanava o brilho
vermelho de seus olhos. E, em suas mãos estava um jarro rachado.
“Abaddon, meu irmão... Já faz muito tempo...”, murmurou
Fleuretti, que então se voltou a Azazel: “Dentro do jarro que meu irmão
traz, está a essência do Lorde do Sangue. Está pronto para devora-la, para
torna-la parte de si? Pronto para que Sangue e Dor tornem-se um dentro de
você, para se tornar mais do que jamais foi, e permitir que as memórias e as
vontades de Leviathan tomem seu corpo e sua mente?”.
“SIM!”, urrou Azazel.
O homem de manto negro se aproximou, pondo-se à frente de
Azazel e exibindo-lhe o jarro. Ao mesmo tempo, Fleuretti se afastou,
tomando uma posição à esquerda de Azazel, e fitando o norte, onde um céu
azul ainda prevalecia.
“Irmão, devo partir o jarro agora?”, perguntou o homem de manto
negro.
“Não, o plano deve ser seguido”, murmurou Fleuretti, abrindo o
pergaminho que tinha em mãos. “Antes que a vontade do Primeiro se faça,
e que o Décimo Quarto surja para tomar o trono e o reino do Terceiro, eu
preciso desfazer aquilo que foi feito”. E, tendo dito isso, ele começou a ler
os pergaminhos de Kthoan, tirados há muito das ruínas de Dur Sharrukin, e
um dia usados por Astaroth para criar uma porta entre dois mundos em
guerra, permitindo que três grandes guerras ocorressem. O Lorde da
Ambição então liberou palavras perdidas num misto de Fabulare e
672
cacofonia. “Que a porta se quebre de uma vez por todas”, murmurou
Fleuretti, “e que as energias do Inferno inundem e afoguem todos os
invasores que ousaram entrar em nossos domínios”.
673
Capítulo 24: A Revelação
“Legiões do Éden!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou, enquanto sua
forma dourada ascendia aos céus do Inferno. “Sigam-me!”.
Abaixo, demônios e anjos ainda guerreavam, embora as forças
infernais mitigassem. Os demônios se agrupavam em bandos, enquanto os
últimos dragões deixavam o campo de batalha, fugindo para as montanhas.
Mensageiros sobrevoavam as forças celestes e, uma vez ouvida a sua
mensagem, as tropas liberavam suas asas e se erguiam aos céus. Pouco a
pouco, o campo de batalha era abandonado, deixando algumas centenas de
almas e demônios para trás.
Dos céus, nós observávamos as forças celestes se reagruparem,
enquanto as últimas legiões demoníacas fugiam para a segurança relativa
das muralhas arruinadas do Coliseu Ashtar. Eu fitei meus companheiros, e
pude notar cansaço e apreensão, mesmo por trás de suas auras brilhantes.
Pairávamos no ar, esperando a ordem para avançar ao sul. “Para Dudael”,
conforme o Arcanjo Veritatis indicara.
“O que acontecerá agora?”, perguntou Al-Malik, fitando as forças
celestes. Apesar da vitória, o número de Celestiais sobreviventes era
praticamente a metade do número original de guerreiros que compunham
nosso exército. Certamente, muitos dos sobreviventes estavam com suas
energias esgotadas. Nós nos preparávamos para uma jornada longa, o que
certamente faria com que o sangue dos combatentes esfriasse e que a moral
do exército caísse.
“Eu não sei”, respondi, e fitei meu Primus, Uriel-chamado-
Veritatis, que se encontrava nos braços do Anjo da Morte. Embora as asas
de Rafael e Azrael tivessem se curado, aquelas arrancadas de Veritatis e
674
Gabriel não puderam ser recuperadas nem mesmo pelo Arcanjo da
Vida. Apenas o tempo poderia recupera-las. Tempo, porém, era o que não
tínhamos.
“Quanto tempo necessitaremos até que todas as forças estejam
prontas?”, perguntou Ansgar a Gabriel, que ele com honra levava nos
braços.
“Vinte minutos, talvez mais”, respondeu o Primus dos Venatores.
“Eles podem nos alcançar”, murmurou Veritatis, mas sua voz era
forte em nossas mentes. “Precisamos ir, temos pouco tempo nas mãos”.
Gabriel fitou o Primus dos Perquiratores, pensou por um instante, e
então meneou a cabeça em aprovação. “Contato que nos revele a verdade
em nosso caminho”.
“Revelarei”, respondeu Veritatis, “Este não é mais o tempo para os
segredos. Aquilo que deveria permanecer oculto já não o é mais, e aquilo
que eu ainda escondo não posso mais ocultar. Talvez seja tarde demais para
impedir o destino, mas precisamos tentar. E, para isso, vocês, meus irmãos,
precisam entender tudo”. E o Arcanjo da Verdade, do Conhecimento, dos
Segredos e da Morte nos fitou, um a um, e então fitou os Primi, Gabriel,
Rafael e Miguel, e finalmente seu próprio pupilo, Azrael. “Para o sul, para
Dudael. A revelação, eu trarei no caminho”.
“Para o sul!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou, sua aura nos
banhando com força e confiança. Ele ergueu sua espada flamejante, e então
foi o primeiro a seguir para o sul, para além do céu azul e do portal. As
tropas urraram em uníssono, e então, enquanto alguns poucos ainda
lutavam no campo de batalha abaixo, nossas forças seguiram o Primus dos
Sancti.
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Foi então que o Arcanjo Veritatis nos revelou: “Tudo começou
há dois mil e seiscentos anos atrás. Aqueles foram tempos de fogo e sangue
derramado, de males se manifestando no reino dos vivos e tempestades que
traziam mais e mais vítimas ao mundo dos mortos. Ainda naquela época, os
céus lutavam diariamente contra manifestações infernais, e sangue trazia
mais sangue, logo além de onde o olhar da humanidade alcança. E, naquela
época, nós não tínhamos idéia do que viria ou o que causava tamanho mal
ao mundo. Nós lutávamos nossa Primeira Grande Guerra e não sabíamos,
mas as verdades viriam a mim com o tempo. Era a época da Babilônia, uma
época em que tanto sangue mortal como celeste foram derramados, regando
o solo fértil da Mesopotâmia”.
“Naquele tempo”, continuou o Arcanjo da Verdade, “eu viajava
pelos caminhos espirituais da Criação, aprendendo e desenvolvendo. Eu
visitei as Cortes Elementais e me aventurei nas profundezas da Sombra do
Mundo. Em transe, minha mente vagou pelo Plano das Idéias, e meus
pensamentos recebiam as emanações do Plano Onírico. Eu caminhei, com
cuidado, pelas falhas, até chegar ao limite, e aprendi diversos mistérios,
diversos segredos. Meu interesse no mundo, na guerra, eram pequenos, se
comparados ao meu desejo pelo saber. Mas então... ah, então tudo mudaria.
Os que viveram naquele tempo ainda podem se lembrar, com certeza, pois
aquele aviso, aquele sonho, jamais deixou minha mente, e ainda atormenta
minhas lembranças, até hoje. Foi a noite em que a criação tremeu”.
“O sonho”, murmurou Gabriel.
“Sim”, disse Veritatis, “Foi a noite em que acordamos gritando,
quando sentimos que algo havia transposto os limites do mundo dos vivos.
Nós pudemos ouvir seus urros e sua gargalhada. Eu sabia que distúrbios na
676
realidade ecoam pelos planos Onírico e Mental, causando pesadelos e
premonições, mas aquilo era forte demais, e não era causado por algo de
fora, mas sim por algo de dentro da realidade, algo que deixou seu local
natural e forçou as barreiras, partindo-as de uma forma tão violenta que
ressoou por toda a criação. Até então, nós sabíamos sobre a existência dos
Grandes Lordes, mas jamais um deles havia se manifestado de uma forma
tão violenta e direta. Nós não sabíamos seus nomes, pois todas as
informações que conseguíamos eram contraditórias, e os nomes que
descobríamos eram uma infinidade. Aquela noite mudou tudo, e foi o
começo de tudo. Enquanto os exércitos celestes se preparavam para mais
sangue, morte e chamas, eu deixei meus locais de contemplação, e parti
decidido a desvendar os mistérios de nossos inimigos, antes que fosse tarde
demais”.
Acima, o céu se tornava azul, enquanto à frente surgia, distante, o
portal flamejante que nos trouxera ao Inferno. À frente do portal, o Arcanjo
Raguel permanecia vigilante. Seu olhar fitou os céus ao ver a vinda das
tropas do Éden. Ainda assim, ele não se moveu. Logo, para a surpresa do
Primus dos Xamãs, nós sobrevoaríamos o portal, não descendo a ele, e
prosseguiríamos para o sul, para além do céu azul protetor. Raguel apenas
nos observava, notando que algo estava terrivelmente errado.
O Primus dos Perquiratores, enquanto isso, continuava a nos
revelar: “Enquanto as forças do Éden jogavam a Pérsia contra a Babilônia,
eu caminhei entre os mortais, buscando primeiro aqueles que conheciam o
Inferno em sua intimidade. Entre os cultos de Babel, eu descobri e inquiri
infernalistas e infernais, mas quanto mais eu buscava respostas, mais
perguntas surgiam. Enquanto a Pérsia destruía Babel e tomava para si os
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restos do império que já tinha sido de Nabucodonosor, eu finalmente
pude vislumbrar uma solução, quando um nome chegou a meus ouvidos:
Angræ”.
“O que é isso?”, perguntei.
“Ialdabaothisitas”, respondeu Azrael Veritas, o Anjo da Morte, que
fitava o horizonte ao sul, onde o céu logo se tornaria vermelho novamente.
“Um culto de demônios que buscam suas origens e os mistérios de seu
criador. Foi mestre Uriel quem me falou deles, há muitos séculos atrás, em
Roma”.
Veritatis meneou a cabeça, confirmando. “Eu busquei saber mais
sobre o Culto de Ialdabaoth e seus segredos. Através de um processo lento
e árduo, eu busquei as origens do Inferno e de seus senhores, até que,
finalmente, minha jornada me levou pela primeira vez ao Inferno, onde eu
encontrei um templo menor do culto. Eu fiz então o que era impensável
para mim... Eu adentrei o templo e, tomado pelo desejo do conhecimento,
dizimei seus protetores demoníacos, clamando para mim fragmentos de um
texto sagrado para eles, um livro chamado Codex Tenebrosu”.
“Eu estudei as páginas do livro negro, enquanto mantinha-me em
peregrinação pela Terra, buscando mais e descobrindo mais sobre os planos
do inimigo”, disse Uriel-chamado-Veritatis, “E foi assim que encontrei os
números de nossos inimigos: nove Reinos e onze Filhos. Eu me aprofundei
no conhecimento sobre os Filhos, buscando suas forças e fraquezas, apenas
para descobrir que cada um deles é superior a cada um de nós, pois somos
limitados a apenas um aspecto infinito, enquanto eles se beneficiam de
vários aspectos cada um. Embora seus nomes reais jamais fossem
678
revelados, e cada um fosse conhecido por uma multitude de formas e
pseudônimos, eu pude encontrar seus propósitos”.
Então, o Arcanjo Veritatis fechou os olhos, como se reunisse suas
memórias. Ao redor, cadeiras montanhosas diminuíam, dando lugar a uma
planície rochosa morta. O céu vermelho ainda nos saudava no horizonte
longínquo, mas eu pude perceber os ventos infernais se intensificarem. E,
com os ventos, eu pude perceber ecos distantes, que traziam gemidos e
urros de dor. “Entramos em Dudael”, murmurou o Arcanjo Rafael.
“E aprendi que o segundo entre os filhos era o Lorde do Sangue”,
disse Veritatis, “a sombra manifesta no reino da vida. Os Grandes Lordes
do Inferno, embora poderosos, estavam ligados a seus reinos. Eles
poderiam deixa-los, mas nunca permanentemente. Leviathan, como viemos
a chamar o Segundo Filho, venceu esta limitação de muitas formas, a
princípio tomando o corpo mortal de Nabucodonosor, depois retornando
com freqüência ao Inferno, e a cada retorno causando novos e mais
freqüentes pesadelos, indicando seu ir e vir entre a Terra e seu Reino. No
Reino da Vida, eu descobri que então eram os persas que espalhavam
corrupção pelo mundo, e os macedônios os nossos protegidos, destinados a
vencer os persas com a ajuda celeste. Quando os pesadelos finalmente
terminaram, eu descobri que um portal fora aberto, ligando o mundo mortal
ao coração do reino de Leviathan, e permitindo que ele permanecesse no
mundo dos vivos indefinidamente”.
“O portal de Dur Sharrukin?”, perguntei, mesmo sabendo a
resposta.
“Sim”, o Arcanjo da Verdade respondeu, “Temendo as
conseqüências da presença de um Grande Lorde no mundo dos vivos, eu
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usei meu conhecimento para criar um rito que iria selar este mundo,
voltando o poder dos Grandes Lordes contra eles próprios. Tendo
completado os preparativos para o rito, eu retornei ao Éden, revelando a
localização de Dur Sharrukin aos Primi. Foram dados trinta dias para a
batalha que terminaria tudo. Infelizmente, esta batalha não foi o fim que eu
esperava”.
“E, ao fim da batalha, você aprisionou a alma de Leviathan no
jarro”, eu disse.
“Exato”, ele respondeu, “Eu usei o próprio poder de Leviathan para
erguer uma barreira contra os demais irmãos. Eu a ergui pensando nos nove
governantes do Inferno, mas sabendo que talvez o Primogênito e a Filha, a
Décima Primeira, talvez não fossem afetados, pois conhecia muito pouco
sobre ambos. Para proteger o jarro, eu criei Libraria, construindo níveis e
níveis sob a terra do Éden, sabendo que os Celestiais defenderiam aqueles
túneis sem a necessidade de saberem sobre a existência do jarro. Eu
mantive o rito um segredo, para que ninguém buscasse o jarro e seus
segredos, e para que até mesmo nossos inimigos jamais pudessem vir a
saber sobre sua exata localização. Por muitos outros séculos, eu continuei a
proteger e manter o segredo do jarro, até que eu pude perceber que minha
vigilância não era mais necessária. Então, voltei a procurar conhecimento,
deixando meu segredo oculto e enterrado sob a cidade que construí. Meus
atos, porém, ao mesmo tempo em que nos protegeram e aprisionaram
nossos grandes inimigos, também levaram uma nova força, até então sutil e
imperceptível, a se manifestar”.
“Que força?”, perguntou Al-Malik.
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“Aquele que manipulou todos os eventos desde então”, ele
respondeu. “Eu fui um tolo, e todos nós nos tornamos fantoches por causa
disso. Sob a falsa sensação de segurança, se iniciou um jogo de
manipulações, nas quais éramos peças úteis e descartáveis para um jogador
astuto e experiente. Aproveitando a prisão dos Grandes Lordes, ele
começou a alimentar o ódio do Inferno enquanto se movia invisível,
observando os eventos e coordenando-os, preparando tudo para que os
eventos do dia de hoje, dois mil e trezentos anos depois da morte de
Leviathan, ocorressem”.
“Quem é este... ‘jogador’?”, perguntei.
“Tudo a seu tempo. Seu nome não importa tanto quanto seus atos, e
disse todos devemos aprender uma lição importante”, respondeu Veritatis,
fitando o sul. “Quando o Inferno invadiu o Éden pela primeira vez, a mão
oculta do jogador enviou o Quarto Filho, que manipulou o rito que criou o
portal entre nossos mundos, que por sua vez era uma variação do rito que
Leviathan usara um milênio antes para unir Terra e Inferno. O portal era
eterno, sua mágica poderosa demais para ser dissipada, mas era possível
contê-lo e fecha-lo. Para isso, era preciso intensificar as barreiras do Éden”.
“E, como resultado, o poder do jarro também foi contido”, eu disse.
“Exato”, confirmou Veritatis, “o selo que mantinha os Grandes
Lordes no Inferno foi lentamente sufocado pelo próprio rito que mantinha o
Éden a salvo. Lentamente, as energias que trancavam o Inferno se
dissipavam, e ao longo dos séculos, o selo se enfraqueceu, chegando quase
a ponto de ser anulado. Sem alternativas, eu enfraqueci o rito que fechava o
Éden, na esperança de mais uma vez fortalecer o selo tempo o suficiente
para pensar numa alternativa melhor. As forças demoníacas, porém,
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estavam esperando do outro lado do portal, e a Quarta Grande Guerra
teve início”.
“Mas por que deixar o Éden? Por que entrar no Inferno novamente,
senhor?”, perguntou Azrael, que carregava o Arcanjo da Verdade nos
braços.
“Por que, desta vez, pelo portal, veio uma besta como poucas
outras que eu vi antes. Leviathan estava morto, mas sua essência pulsava no
sangue daquela besta que veio. Embora fosse apenas um avatar, pois meu
rito afetava também aquela besta, eu pude sentir que ela era algo novo, que
não existia nos tempos antigos. Como podia ser? Eu me intriguei com a
existência de um novo Filho, um herdeiro de Leviathan, que chamamos de
Mephistus. Para mostrar seu poder, ele destruiu Caesar dos Protectori e fez
chover fogo dos céus. Seus exércitos invadiram nossas cidades mais fortes,
e apenas o Arcanjo Gabriel em pessoa pôde parar aquela criatura. Mas de
onde poderia ter surgido um novo Filho, um ser além dos 11 originalmente
concebidos por Ialdabaoth em pessoa? O Inferno não possuía guardiões
para olhar por eles, para renovar seus governantes. Uma força maior existia
ali, algo que estava além de todo o meu conhecimento, talvez Ialdabaoth
em pessoa. Eu me sentia um tolo, um idiota que se deixou levar por orgulho
e conhecimento incompleto. Se eu quisesse realmente proteger a todos nós,
eu precisava saber mais, descobrir mais. E, portanto, eu fiz o impensável,
entrando novamente no Inferno, desta vez decidido a não deixa-lo enquanto
seus segredos não fossem todos meus”.
E, à frente, o céu vermelho estava cada vez mais próximo.
“Após fechar o portal mas uma vez, sabendo que as energias do
silo tinham se renovado por tempo suficiente para perdurarem por mais
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alguns séculos, eu vaguei pelo Inferno”, disse Veritatis, “Após escapar
da primeira tentativa de Astaroth em me capturar, eu busquei
conhecimento, e aprendi que Mephistus não era o Décimo Segundo Filho
como eu imaginava, e sim o Décimo Terceiro, que indicava que não um,
mas dois eram os Filhos que eu desconhecia. Eu me lembrei do que vi em
Dur Sharrukin, e de palavras que o espectro de Leviathan ainda repete hoje,
a seu serviçal, o cavaleiro Khal-Harshek: ‘Caso ouças meu grito de morte,
deixa Æternus Ignis e parte para Gehenna. Então, segue para o sul, para
além das terras inférteis. Siga as sombras de meu pai, através das
montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a voz que ecoará em
tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que, quando encontrar o
vale no qual a única caverna é guardada por um dragão, terás encontrado
o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o Primogênito. E, feito isso,
terá cumprido tua última missão’. Podia esta ser a solução do mistério? Eu
então viajei ao sul, em busca de Tenebra, onde talvez eu encontrasse
respostas, e realmente as encontrei”.
Naquele momento, os uivos e urros trazidos pelos ventos agora
pareciam mais fortes, e o céu azul já não nos protegia mais. O calor
aumentava, e chão do deserto abaixo parecia arder. Junto com os urros e
uivos, eu podia ouvir clamores de batalha à distância, e o som dos passos
de milhares marchando. Mas, mais terrível ainda, foi a estranha fraqueza
que nos acometeu. Eu pude sentir algo me sufocar, como se o próprio ar se
tornasse mais denso e incomodasse meus pulmões e nariz. Senti
desconforto e uma fraqueza extrema, e por um momento minha mente se
apagou, como se estivesse próxima do desmaio. Pude notar que todo o
exército celeste começava a se enfraquecer, conforme as luzes das auras
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celestes perdiam a intensidade. A luz de Miguel se intensificou, porém,
e nos deu certo alívio. A presença infernal, porém, se tornava mais e mais
poderosa. E, no horizonte ao norte, os céus azuis eram engolidos pelo
vermelho-sangue e por nuvens negras.
“O portal foi fechado”, disse o Arcanjo Veritatis. “A última etapa
dos planos do jogador se aproxima”.
“Como o portal poderia ser fechado?”, perguntou Azrael, “Pode
Raguel ter sido derrotado?”.
“Eles não precisam atacar o portal diretamente para fecha-lo”, disse
o Arcanjo da Verdade, “Nem sequer precisam se aproximar dele. Os
Grandes Lordes criaram o portal e têm a chave para sela-lo deste lado. Esse
era o plano deles o tempo todo. Mas não devemos recuar! Enquanto o
Décimo Quarto não nascer, teremos uma chance!”.
“Continue sua história, irmão”, pediu o Arcanjo Miguel.
“Sim...”, Lorde Veritatis concordou, “Por décadas eu caminhei no
Inferno, tentando absorver o conhecimento que eu encontrasse no caminho.
Fui além de Dudael e dos fantasmas de Sodoma e Gomorra, atravessei as
Terras Devastadas e cheguei às montanhas ao sul. Por mais décadas, eu
percorri sozinho caminhos sinuosos por entre cadeias montanhosas
intermináveis e, finalmente, eu encontrei um grande vale, cuja única
caverna tinha o formato da boca de um dragão. E, à frente da caverna,
havia um homem à minha espera. Eu perguntei, temendo a resposta, quem
era ele”. Veritatis fechou então os olhos, como se tentasse lembrar as
palavras exatas. Sem abri-los, ele disse, numa voz poderosa: “E a voz do
pai ecoou como trovões, quando em suas mãos ele ergueu a alma imortal
do primeiro governante, que regia sua tribo através de força e terror: ‘Faço
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deste meu primeiro filho e o mais poderoso de todos eles. Pois ele
governará este mundo e tudo o que se esconde nas trevas. Ele também será
aquele que escolherá quem pode se tornar meu filho, e quem me servirá.
Eu o faço Imperador deste reino por toda a eternidade, e que sua sombra
seja tudo o é preciso para que ele seja temido por todos os que aqui
viverão’.”
“Você realmente encontrou o Primeiro!”, murmurou Azrael.
“Sim. Eu encontrei a serpente, o diabo chamado Ahriman ou
Satanás, aquele chamado Satã, e proclamado Imperador”, disse Veritatis, e
sua voz mostrava medo, “e, naquele dia, meus piores pesadelos criaram
vida, pois aquele ser não é como seus irmãos, nem é como qualquer outra
criatura que caminha na Criação Divina. A caverna além, eu podia sentir,
levava para fora desta realidade, para o Abismo Além, e aquele ser era uma
mera sombra de algo que habitava ali. Ele não é apenas uma lenda, nem
apenas um Filho, ele é algo mais, uma manifestação de algo maior, algo
com o poder de criar e gerar, de destruir e transmutar. De dentro dele,
pulsavam todas as essências de todos os Filhos, e seu olhar era o suficiente
para pôr-me de joelhos. Nas mãos dele, eu era um boneco, e fui forçado a
ouvir suas palavras, enquanto ele me mostrava que, por toda a minha
jornada pelo Inferno, eu tinha sido manipulado para que eu o encontrasse”.
“E o que ele revelou?”, perguntei, considerando as repercussões da
existência de tal ser.
“O Primogênito é apenas um espectador, mas foi-lhe pedido que
participasse do jogo”, respondeu o Primus, “Ele me revelou que o jogador
me trouxera a ele, e que o jogador planejou minha captura. Ele então me
contou que eu seria entregue, como um presente, a Astaroth, que me
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procurava. Ele me revelou que, para que o Décimo Quarto nascesse,
Astaroth deveria morrer, e que os exércitos do Éden fariam isso sem que os
outros Irmãos necessitassem sujar suas mãos”.
E foi então que Veritatis cessou a revelação, e fitamos o que nos
esperava adiante. As tropas celestes se reorganizaram, algumas mantendo-
se no ar, outras descendo ao solo e formando linhas de frente para a batalha
que estava prestes a ocorrer. À nossa frente, tomando quilômetros de área
do deserto de Dudael, ao redor de uma montanha alta, parecendo um
enorme espinho que se projetava da planície morta, estavam dezenas de
milhares de demônios e centenas de milhares almas armadas. Milhares de
dragões sobrevoavam os céus, e o próprio firmamento parecia emanar luz,
como se uma tempestade de fogo se formasse além das nuvens,
imediatamente acima da alta montanha negra.
“Leve-me ao chão”, pediu o Arcanjo Gabriel a Ansgar, enquanto
Miguel também descia ao solo para liderar as tropas terrestres.
Os exércitos demoníacos estavam silenciosos e estacionários, sem
sinais de desejar avançar contra nós, e mesmo os dragões não urravam
enquanto circundavam a montanha. Os ventos pareciam vir diretamente da
montanha negra, e traziam consigo o rosnar da criatura ali acorrentada
sobre um pedestal. E eu reconheci aquela criatura de pele negra e asas de
dragão como o anjo monstruoso que vi no primeiro sonho. O Arcanjo
Rafael, que permaneceu nos ares à nossa frente, murmurou: “Azazel...”.
“Azazel”, repetiu Veritatis, “O primeiro do povo de Lúcifer”.
“O primeiro dos Luciferite”, disse Azrael.
“Não, ele não é o primeiro”, disse Veritatis, enquanto Ansgar
retornava aos céus, após deixar Gabriel em terra. E eu vi dois seres ao lado
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de Azazel, ambos cobertos por mantos e capuzes. Mesmo à distância,
eu podia sentir seu poder emanar tão forte quanto o de Astaroth. O
primeiro, à direita, nada portava, mas o segundo, à esquerda de Azazel,
tinha em suas mãos o jarro, e eu podia sentir a essência de Leviathan pulsar
em seu interior. Veritatis fechou os olhos e apontou para aquele ser que
portava o jarro, que então abria suas asas negras e doentias, e então a voz
do Arcanjo da Verdade veio em nossas mentes, e apenas em nossas mentes:
“E naquele tempo, o Primogênito sentiu o ódio e o ressentimento dAquele
que Decaiu. Como uma grande sombra, Satã ergueu-se ao mundo dos
vivos, e percorreu os desertos e as terras ermas em busca daquele que
blasfemava contra os céus. Quando a sombra encontrou a luz minguante
do Decaído, ela ofereceu poder e vingança, e a isso a Estrela da Manhã
respondeu: ‘Não serei teu escravo, nem jamais serei preso a teu Inferno.
Que minha vontade seja livre e que eu use teu poder como eu bem desejar.
Tendo estas condições, eu aceito’. E a sombra disse, tornando proporções
colossais e erguendo a Estrela da Manhã em suas mãos: ‘Em nome de meu
pai, faço deste o décimo segundo filho, o maior e o menor entre eles, o
Lorde das Mentiras, que caminhará entre os vivos sem ser reconhecido e
estenderá sua palavra a todos os povos para trazer vingança àqueles que o
traíram. Dou a ele o nome Abaddon, que é uma mentira, para que seu real
nome jamais seja conhecido’. E tendo dito isso, a Sombra o deixou, para
que ele espalhasse mentiras e acreditasse nas próprias mentiras que ele
espalhava. Que sua maldição seja a tolice, e que ele mesmo seja vítima de
suas falácias”.
Eu, meus companheiros, Azrael e Rafael ficamos sem palavras,
enquanto fitávamos o Décimo Segundo Filho, Lúcifer, Lorde das Mentiras,
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erguer o jarro acima de sua cabeça. E o outro, à direita de Azazel,
gritou, e sua voz trovejante ecoou em nossas mentes, trazida pelos ventos.
A voz nos atingiu como um raio ardente, queimando nossas mentes.
“Ergam-se, condenados e amaldiçoados. Faço deste o décimo quarto filho,
o Lorde da Agonia, que trará dor e morte aos inimigos do Inferno, e cuja
presença abrirá feridas e derramará sangue. Que sua maldição seja a dor
que renasce, e que ele reine em Gehenna por toda a eternidade! O velho rei
caiu, longa vida ao novo rei!”.
E tendo, dito isso, o Décimo Segundo esmagou o jarro em suas
mãos, e o vento trouxe a nós o urro de Leviathan. Azazel abriu sua bocarra,
urrando, e seu urro se tornou um só com o urro do Lorde do Sangue. E, nos
ares, os dragões urraram e avançaram contra nós. E, em terra, as legiões de
demônios e condenados fizeram o mesmo.
“Não temos chance!”, gritou Rafael, vendo as forças demoníacas se
aproximarem, compostas por dezenas de milhares e sentindo a fraqueza que
o Inferno impunha sobre nossas forças. “Abram portais! Voltemos ao
Éden!”, ele gritou, virando-se para as tropas celestes.
Pequenos portais começavam a surgir entre as forças celestes, mas
muitos falhavam ao conjura-los, devido às fortes energias demoníacas que
permeavam o Inferno desde o fechamento do portão entre os mundos. Os
Celestiais tentavam escapar pelos portais formados, enquanto o exército
demoníaco se aproximava mais e mais.
O próprio Veritatis abriu um portal para nós. “Entrem. É tarde
demais...”, ele murmurou. Enquanto meus companheiros atravessavam a
porta, eu fitei o exército de demônios e dragões, e pude ver Azazel
arrebentar seus grilhões e alçar vôo nos céus. O Grande Lorde encapuzado
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à direita ainda permanecia ali, mas o Lorde das Mentiras já havia
desaparecido. Abaixo, os primeiros demônios já alcançavam as forças
celestes, e a batalha começava. Os dois Primi, Gabriel e Miguel, lutavam
bravamente, decapitando e destruindo demônios às dezenas com seus
golpes. As forças infernais tomavam mais e mais espaço, cercando e
sobrepujando facilmente os Celestiais em menor número.
Mas então os céus se abriram, e uma figura relampejante desceu
como um raio, trazendo uma coluna de raios e chuva torrencial que
quebrou as linhas inimigas logo adiante do fronte celeste. O Arcanjo
Raguel se ergueu, enquanto o chão abaixo se abria, engolindo demônios às
centenas. “RETORNEM AO LAR, A BATALHA TERMINOU,
GUERREIROS!”, os ventos trouxeram a voz trovejante de Raguel. O
Primus dos Xamãs ergueu as mãos e gritou, e os ventos derrubaram os
dragões do céu, precipitando-os sobre as tropas demoníacas.
Meus olhos se arregalaram, vendo a destruição que o Primus dos
Xamãs era capaz de causar. Eu era o último do grupo a passar pelo portal,
faltando apenas Rafael, Veritatis e Azrael após, mas parei para ver aquilo.
Um dilúvio de proporções bíblicas caía logo à nossa frente, varrendo
legiões de demônios, enquanto a figura de Raguel brilhava nos céus,
iluminado por raios que partiam de seu corpo. Azazel voou na direção do
Primus, urrando, e sua presença parecia amenizar o clima, protegendo os
demônios abaixo da fúria de Raguel. “Outro dia, criança, outro dia”,
murmuraram os ventos com a voz de Raguel, que então abriu um portal e
desapareceu.
“Temos que ir, Lorde Nicodemus”, disse Azrael.
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“Sim, acabou”, eu murmurei, baixando a cabeça e voando na
direção do portal que Veritatis abrira.
“Não”, disse Veritatis, “Não acabou, mas é tarde demais para
impedir. Aquele que planejou tudo isto ainda tem uma última ação a
realizar”.
Parei logo antes de entrar no portal. “Por favor... me diga... Quem é
esse... ‘jogador’? Quem pode ter sido a semente de tudo isso?”.
“Eu não sei”, ele respondeu, e aquilo foi o que mais me
impressionou, “Apenas sei que é um dos Filhos... Quando nós acordarmos
esta noite, tomados por pesadelos, nós saberemos seu nome. Este é o último
mistério a ser revelado”, ele disse.
E, ouvindo aquilo, eu adentrei o portal e deixei o Inferno para trás,
temendo pelo que ainda estava por vir.
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Interlúdio Quinto: O Arauto
E ali, em seu trono, numa câmara negra e fria, estava ele,
finalmente, às portas do destino. À frente, o ar ondulava, ligeiramente
avermelhado, e ele podia ver imagens rápidas do que havia além. Um
sorriso discreto surgiu em seus lábios, sabendo que o prêmio estava a
poucos passos de distância. O jogo estava próximo do fim, apenas um
último ato era necessário, e nada mais poderia impedi-lo. O jogador riu
discretamente, fechando seus olhos e saboreando a vitória.
A mente do jogador voltou no tempo, lembrando-se dos detalhes
desta trama que ele teceu por dois mil e trezentos anos. Ele mentiu e traiu,
matou e criou, deu esperanças e causou desespero, superou seres maiores
do que ele, e pôs de joelhos seus maiores inimigos. Ele mentiu para o Lorde
das Mentiras e destruiu o Lorde da Dor. Ele convenceu o Lorde das Trevas,
e uniu muitos outros em sua causa. A própria verdade, Magna Veritas, foi
apenas um joguete em suas mãos. E agora, finalmente, sua prisão teria fim
e ele seria o salvador de seu povo, a ser idolatrado e seguido.
Quando o selo foi criado e ele e seus irmãos foram aprisionados em
seus próprios reinos, os outros foram tomados por frustração e raiva. Ele,
porém, viu possibilidades. Finalmente ele tinha encontrado um adversário à
altura: um Celestial presunçoso que ousava se chamar “verdade” e ousou
voltar o poder do Segundo Irmão contra os outros Filhos de Ialdabaoth. Ele
viu um novo Grande Lorde emergir para tomar o lugar daquele que caíra e
entendeu que ele mesmo poderia criar mudanças tão grandes na Criação e
no Inferno.
E então, a trama começou a ser tecida, a princípio lentamente. Ele
traçou seus planos, fez disso sinais que o mundo poderia acompanhar e se
691
questionar. Ele buscou alianças, e com isso uniu outros sob sua causa,
embora se prostrasse ante a eles e jurasse ser apenas um aliado e não seu
líder. Outros, ignorantes, se opuseram a sua aliança, e se uniram sob a
liderança de Astaroth, o Lorde da Dor. Caos, Dor, Guerra e Fúria queriam
apenas vingança e guerra contra os céus, e nisso o jogador viu mais
possibilidades, e uma forma de continuar seu grande jogo perverso.
Ele então manipulou o Oráculo de Kthoan para que este descesse a
Dur Sharrukin e recuperasse os segredos ali contidos. Como esperado,
Kthoan retornou com os rituais que permitiram, séculos antes, que
Leviathan abrisse uma porta entre o mundo dos vivos e o Inferno. O Quarto
Filho, seu maior aliado, modificou os ritos, para que eles só pudessem ser
contidos de forma que o selo que os prendia também fosse ameaçado.
Então, os ritos foram entregues por Kthoan àquele que mais desejava trazer
vingança ao Éden: o Terceiro Filho, Lorde da Dor. O jogador sabia que o
Terceiro Filho iria usar o rito em suas terras, onde ele tem mais poder, e
assim tomar para si a liderança da guerra que viria.
E assim foi feito, como deveria ser, como ele previu que ocorreria.
Sua vingança pessoal começou não quando hordas infernais varreram os
Campos Elíseos do Paraíso, mas quando o portal foi fechado. Naquele
momento, ele fez com que Uriel-chamado-Veritatis percebesse que ele não
poderia proteger o Éden e ao mesmo tempo manter o selo ativo.
E o jogador então se deu mais algum tempo para planejar seus
próximos passos. Alguns séculos seriam necessários, mas em algum
momento, o portal precisaria ser aberto novamente. Ele sussurrou nos
ouvidos dos demônios corretos, murmurou mentiras e boatos entre os
Caídos, e lentamente fez com que o Éden se distraísse com outros
692
problemas durante este período. Ele fez com que Cleros se dividissem,
e, no auge de seus planos, quando sentiu que o portal poderia ser aberto
uma vez mais, fez com que os Cleros se voltassem contra o mais novo
Primus. Quando a Quarta Guerra começou, ele continuou suas tramas,
enviando seus Caídos contra o Éden, e convencendo o Décimo Terceiro, o
Lorde da Guerra, a enviar seu mais poderoso Avatar ao Éden. Desta, forma,
ele pôde provocar e induzir as ações de duas peças-chave de seu plano.
Por um lado, havia Veritatis, o presunçoso, que encontraria seus
maiores medos ao ver que havia um Grande Lorde onde antes não existia.
O jogador sabia que, em tempos passados, o Grande Arcanjo ousou entrar
no Inferno para descobrir os segredos dos Grandes Lordes. Desta forma, ele
pretendia atraí-lo para uma armadilha.
De outro, ele trouxe a morte de Caesar, Primus dos novos
Protectori. Embora o jogador não tivesse interesses em Caesar, ele queria
provocar seu irmão bastardo, o Décimo Segundo, ao mesmo tempo em que
os Caídos sob controle do jogador levavam o Éden a acreditar que a Corte
Negra tinha se aliado ao Inferno para ataca-los. A ira do Filho Bastardo foi
terrível, iniciando uma guerra entre os dois, mas o jogador enviou o Quarto
Filho e o Décimo Filho para aplacar a Estrela da Manhã, dando-lhe certezas
de que a apoiariam contra o jogador, caso este tentasse continuar a guerra.
Em troca, Lúcifer aceitou um pacto, no qual Oostegor estaria segura contra
quaisquer ataques do Inferno, uma vez que ele trouxesse o jarro. O pacto
tinha, obviamente, suas condições, e elas se estendiam a aliados dos
pactuantes, o que incluiria o jogador em pessoa. Lúcifer deveria trazer o
jarro uma vez que o momento viesse, quando Veritatis estivesse preso no
Inferno. Obviamente, esta condição fez com que o Lorde das Mentiras
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acreditasse que podia escapar do pacto e, desta forma, enganar seus
aliados. Quão tolo! Quem seria o idiota agora? O jogador riu, lembrando-se
das tolices que o Lorde das Mentiras se forçava a acreditas.
Então, uma vez que Lúcifer estava sob controle e o Arcanjo
caminhava pelas planícies infernais, ele buscou a última peça-chave de seu
plano, aquele que Veritatis procurava. O Primogênito o recebeu, e o
jogador sabia que não poderia mentir ou enganar para Aquele que é como o
Pai. O jogador contou toda a verdade, revelou cada fio de sua trama, e fez o
Primogênito gargalhar. Então, o jogador pediu a cabeça de Astaroth, o líder
de seus opositores, para que as disputas entre os Grandes Lordes
terminassem, e todos se unissem uma vez que o selo fosse quebrado. O
Primogênito concedeu seu pedido, contanto que o jogador substituísse o
governante de Gehenna por outro mais apto.
O jogador previra isso. Ora, quem mais apto a não ser Leviathan?
O jarro, que era o próprio selo que os prendia, era também a chave que os
libertaria. Ele usaria Azazel, aquele que possui a essência da Dor pulsando
em si, e daria a ele o poder de Leviathan. Azazel seria mais do que foi,
seria Leviathan encarnado, e tomaria o lugar do Lorde da Dor.
Tendo finalmente a aprovação do Primogênito, o jogador partiu,
sentou em seu trono... e esperou.
E, mais uma vez, os eventos ocorreram como esperado. O
Primogênito trouxe o Arcanjo da Verdade a ele. A pedido do jogador, o
Primogênito contou parte da verdade ao Arcanjo, incluindo a verdade sobre
o Lorde das Mentiras, sabendo que aquelas revelações o corroeriam por
dentro e que tais revelações ainda teriam propósitos uma vez que o jogo
terminasse. Por fim, o Primeiro Filho impôs uma proibição sobre o
694
Arcanjo, impedindo-o de revelar a verdade ao Terceiro Filho, e
derrotou o Arcanjo, fazendo com que o Lorde da Dor o encontrasse
indefeso.
O plano estava próximo do fim e a nova guerra começaria em
breve, mas então, pela primeira vez, os eventos saíram de seu controle. O
Arcanjo Veritatis conseguiu escapar, usando os segredos dos próprios
Grandes Lordes para criar um Avatar para si. O jogador amaldiçoou seu
adversário, mas ele estava preparado para tais eventualidades. Ele buscou o
Quarto Filho, o Lorde do Proibido, e pediu que ele caçasse o Arcanjo. O
Quarto trouxe sua grande criação, Shiva, à vida, e lançou o tigre ao mundo
dos vivos, causando pesadelos na humanidade.
Porém, o jogador sabia que Shiva apenas não encontraria o
Arcanjo. Ele precisava da ajuda de seus inimigos, dAqueles que Vigiam.
Ele precisava manipular seres incompreensíveis, que existiam acima dele
próprio e só eram acessíveis pelos Planos das Idéias e Onírico. O jogador
reorganizou seus pensamentos e os lançou no Plano das Idéias, sabendo que
pesadelos resultariam disso e que os Guardiões os encontrariam e os
levariam aos Celestiais que poderiam encontrar Veritatis.
E assim aconteceu.
Fragmentos de seus planos chegaram aos Guardiões, e estes se
alarmaram. Sete Celestiais patéticos foram convocados para impedir o
jogador e salvar o Arcanjo da Verdade, mas Shiva já estava preparado para
seguir os passos desses salvadores. Muitos tentaram impedir o jogador, mas
no fim, seus planos tiveram sucesso novamente. Como desejado, os
salvadores alcançaram o Velho que guardava a alma de Veritatis, e assim
trouxeram Shiva até ele. O Arcanjo retornou gritando ao Inferno, enquanto
695
seus salvadores voltavam ao Éden para lamber seus ferimentos e
chamar por ajuda.
E, assim, a etapa final do plano veio a ocorrer.
Ele abriu os olhos, e sorriso em seus lábios se intensificava. O
Lorde da Dor estava morto, e o Lorde da Agonia surgia em seu lugar. Os
ventos cortantes que antes cercavam o Inferno não mais existem, e o portal
entre os dois mundos jaz morto de uma vez por todas. Os Primi agora
sabem da traição de Lúcifer e se voltarão contra ele, enquanto o Éden teme
as repercussões da Quinta Guerra que acabara de começar. O Inferno
lentamente irá se unir, e somente um campo de batalha resta entre os dois
mundos: o reino dos vivos.
O jogador se ergueu, caminhando em forma humana na direção do
portal. A vitória estava a poucos passos, mas ele desejava saboreá-la. A
passos lentos, ele viu o destino se aproximar, e levou a mão ao rosto,
lembrando-se dos golpes que o Lorde das Mentiras ousara desferir em sua
face. Quem era o tolo agora?
E ele riu, ao lembrar das palavras que o vassalo de Uriel falara para
sua manifestação na Terra: “Sua real forma está presa em seu reino, e
diante de mim está apenas uma criatura digna de pena, que engana através
de truques de névoa, sombra e medo”. Ora, não foram necessárias apenas
ilusões e medo para provocar toda essa cadeia de eventos?
Então, finalmente, o braço do demônio atravessou o portal, e
aquele evento ressoou por toda a Criação, fazendo tremer as fundações da
realidade. Ele podia sentir o caos tomar o Plano Onírico, desencadeando
pesadelos em mentes dormentes por todo o mundo, e sabia que também o
Plano das Idéias sofria, provocando premonições, loucura e medo nas
696
mentes mais sensíveis. Seu corpo transpunha o portal, sentindo uma
força tremenda tentar mantê-lo no Inferno. O jogador já tinha se precavido,
porém, e por milhares de anos se preparou para quebrar os grilhões que o
ligavam a seu reino. Ele caminharia livremente entre os homens, seria o
Arauto profetizado, que abriria as portas do Inferno a todos os seus irmãos.
Antes que o portal o engolisse por inteiro, o Grande Lorde se
lembrou de algo que disse aos Celestiais patéticos que tentaram impedir seu
grande plano. Aquilo não era uma apresentação, mas sim um aviso do que
estava por fim. Em suas mentes limitadas, porém, eles não puderam
compreender, e agora ele iria repetir aquilo novamente, para que sua voz
ecoasse pelos confins da realidade e pudesse ser ouvida por todos aqueles
que um dia ousaram tentar detê-lo.
E a voz monstruosa do demônio ecoou, assim que ele deixou, de
uma vez por todas, sua fortaleza negra e fria: “Nomes pouco dizem, a não
ser aquilo que eu quero mostrar. O que eu sou? Eu sou o Oitavo Filho.
Quem eu sou? Vocês podem me chamar de muitos nomes. Pois de Azazel
roubei o nome, e na forma de um bode o usei para ouvir os pecados do
homem. Pois antes de Hades assim se chamar, eu mesmo Hades era, e
manipulava deuses e deusas de acordo com minha vontade. Também os
romanos e os cristãos sussurravam ‘Rex Mundi’, o senhor deste mundo,
pois sabiam que minha vontade não devia ser contestada, e que meu real
nome deveria ser temido. Pela Idade das Trevas, Næbyrus, Senhor do
Profano, fui chamado, e sussurrava nos ouvidos de reis e lordes. Também
Mamon foi minha alcunha, e me chamavam de Mestre da Usura, pois pela
ganância os homens a mim encontravam, e a mim se entregavam. Nu, eu
comparecia aos Sabás com o nome de Leonardo, e, a minhas feiticeiras,
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milhares temiam. Para muitos, eu sou Nebiros, mas nesta terra, me
chamam Íblis Al-Qadim, e é por este nome que mais me temerão”.
E, no reino dos vivos, centenas de milhares despertaram gritando.
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Capítulo 25: Os Sete, Divididos
“Vocês sabem que devemos guardar segredo, não?”, perguntei.
Absolon e Fabrizia me olharam como se eu estivesse pedindo
demais deles. Os outros, porém, já entendiam o que eu queria dizer. Ali
estávamos nós, cinco dias após o início da Quinta Grande Guerra, nos
encontrando pela última vez. Todos sabíamos que aquele dia seria nossa
despedida e, de certa forma, todos estávamos tristes por isso.
“Por que guardar segredo, Nicodemus?”, perguntou Absolon, “Não
é exatamente esse tipo de coisa que permitiu que tudo acontecesse? Não é
por não ter informação que podemos ser usados tão facilmente? Eu não
entendo porque manter esses segredos para nós”.
“Um segredo contém poder, Absolon”, murmurou Lo Wang,
sentado num canto da sala, de cabeça baixa. “Enquanto nós o soubermos,
teremos vantagens sobre aqueles que não os tem. Se a verdade sobre
Lúcifer, por exemplo, vazar, Lúcifer se prepararia de acordo. Por enquanto,
o Éden possui esta vantagem e não podemos desperdiça-la...”.
“Além disso”, disse Al-Malik, que se sentava ao lado de Absolon,
“Nós devemos respeitar as decisões dos Primi. Cabe a eles organizar o
Éden, e a nós realizarmos as tarefas que temos à mão. Espalharmos essas
notícias não é a mais sábia das decisões. Faze-lo pode causar problemas
que sequer podemos prever em nossa posição atual. Acho que todos
aprendemos o quanto nossos atos podem repercutir”.
Houve um silêncio. Nós nos reunimos para nos despedir, mas
parecia que ninguém queria tocar no assunto. Já tínhamos discutido tanto...
Falamos sobre a presença de Íblis Al-Qadim na Terra, sobre a apreensão no
Éden, sobre os medos de cada um... mas não sobre a partida. Eu fitei a
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espada de Asphael, que agora adornava a parede da biblioteca de Sans
Vidya, sabendo que precisava tocar nesse assunto. “Agora que a missão
terminou”, eu suspirei, “É chegada a hora de cada um de nós prosseguir em
seu caminho. Este é nosso último encontro, mas gostaria de dizer que,
sempre que precisarem, me procurem, e eu os receberei de braços abertos”.
“Você vai sempre ser o elo que liga todos nós, Philipe”, murmurou
Karina, com um sorriso tímido no rosto.
“Nós vamos estar sempre avisando você dos nossos passos”, disse
Al-Malik, se levantando para vir até mim, já que eu andava, apreensivo, de
um lado para o outro do lugar. Ele tocou meu ombro, sorrindo. “Nossa
Falange pode se separar fisicamente, mas acredito que ainda vamos nos
reencontrar muitas vezes. Talvez a missão não tenha terminado ainda, mas
sim esteja esperando que nos aprimoremos antes de a continuarmos”.
Sorri para Al-Malik, e então fitei cada de meus companheiros. Pude
notar rostos bem diferentes daqueles que vi naquela primeira noite, quando
o chão tremeu e o urro do dragão ecoou por Libraria. Absolon cresceu em
espírito e coragem, Fabrizia ganhou confiança e Karina parece estar mais
ciente de seu papel no mundo. Posso notar um olhar pensativo em Ansgar,
e certa depressão em Samuel. Apenas Al-Malik e Lo Wang parecem ter
mudado pouco... mas, pensando bem, desde o começo eles tinham
convicção e perseverança para resistir aos desafios que enfrentamos juntos.
Novos desafios ainda esperavam por nós, mas agora nossos caminhos se
dividiriam. “Aonde cada um de vocês pretende ir?”, perguntei.
“Estou voltando ao Rio de Janeiro”, murmurou Samuel. Ele parecia
deprimido, como se sua fé falhasse após ser derrotado pelo Lorde da Dor.
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“Não sei se permanecerei por lá, porém... talvez seja hora de me mudar
novamente, para outro país. Não sei ainda... mas Karina virá comigo”.
Karina sorriu, pegando na mão de Samuel. Seu sorriso era mais
fraco do que no início e seus olhos pareciam tristes, mas eu sabia que ela
iria se superar e ajudar Samuel a se recuperar. A princípio, ele não queria
que ela o acompanhasse, mas ela acabou convencendo-o. “Eu espero que
mantenham contato, para que eu possa saber onde encontra-los, por favor”.
“Não se preocupe com isso, Philipe”, a Supervivente disse,
sorrindo para mim.
Fitei Lo Wang, que se levantava. Era estranho não vê-lo vestido
para matar. Ele usava uma roupa chinesa típica, de cor branca. Ele se
aproximou, curvou-se ante mim, e disse: “Senhor Nicodemus, foi um
prazer e uma honra lutar ao lado de vocês. Espero um dia bebermos todos
juntos em minha vila, onde poderemos rir e dançar, mas por enquanto eu
preciso rever as terras que jurei proteger. Há notícias que nossos próprios
males começam a ressurgir”.
“Sei que vocês sempre agiram sozinhos, Wang”, falei a ele, “Mas
lembre-se que somos amigos. Se precisar de ajuda em suas terras, nós
ajudaremos”.
Lo Wang sorriu. “Um dia apresentar-lhes-ei Ten Raicho e outros de
meus companheiros. Vocês vão gostar deles, são boas pessoas”.
“Tenho certeza que sim”, respondi, e então me virei aos quatro
outros: Ansgar, Absolon, Fabrizia e Al-Malik: “E quanto a vocês?”.
“Nós já dissemos, Nick”, respondeu Fabrizia, abraçada a Absolon,
“Nós vamos continuar juntos, todos nós”.
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“Se farão uma Falange permanente, precisarão de um nome
para ela”, eu disse, sorrindo.
“Nós já decidimos um nome”, respondeu Absolon, pegando a
espada, embainhada, que tinha posto ao lado do sofá em que ele se sentava
e erguendo-a a mim. “Somos a Lâmina Prateada”.
“Nomearam segundo a espada que Lúcifer entregou a vocês?”,
perguntei, estranhando.
“Não”, disse Al-Malik, “Em nome da espada que Amazarak nos
deu. Apesar de tudo, ele é um grande homem e um grande exemplo, e
talvez possa significar algo para o futuro da Corte Negra”.
Sorri. “E decidiram para onde irão?”, perguntei.
“Não sabemos ao certo”, disse Ansgar. “Eu sugeri Alemanha,
Absolon quer a França, Fabrizia preferiu o México, e Al-Malik não se
manifestou”.
Al-Malik riu. “Podemos ir a todos eles, isso não tem problema.
Temos tempo de sobra. Mas como líder da Lâmina Prateada, eu preferiria ir
à Arábia Saudita, e por isso não há consenso. Mas como dois sugeriram a
Europa, acredito que é melhor peregrinarmos por lá por algum tempo, até
acharmos um caminho”.
“E espero acharmos rápido”, disse Ansgar, “Porque parece que o
tempo corre contra nós”.
“O mundo vai mudar”, eu disse ao Venator, “Ninguém sabe o que
pode acontecer a seguir. Sempre se imaginou que, depois de eventos como
os que vivemos, haveria uma guerra. Mas talvez ela dure séculos para
começar. Por enquanto, Éden e Inferno vão estar observando um ao outro,
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cada um movendo com cuidado para se preparar para os movimentos
do outro. Devemos todos tomar muito cuidado”.
“Eu sei”, disse Ansgar, se levantando do sofá.
“É aqui que nossos caminhos partem, né?”, Absolon falou, se
levantando após o Venator, e então ajudando Fabrizia a se levantar do sofá.
Em seguida, todos vieram até mim, para nos cumprimentarmos antes de
nos separarmos.
“Estive pensando...”, murmurou Fabrizia. “Se uma Falange precisa
ter um nome... qual o nome da Falange a que todos nós oito pertencemos?”.
Fitei Fabrizia e pensei por um instante. “Meu Clero acredita em
símbolos e sinais como formas de se representar significados ocultos. Nós
trouxemos aquele que se chama Verdade e provocamos uma revelação...
um apocalipse, se preferirem.... Somos os Portadores da Verdade, e nosso
símbolo será um par de asas negras, as asas da verdade”.
“Que assim seja”, disse Al-Malik, estendendo a mão direita. Um a
um, nós formamos um círculo, unindo nossas mãos direitas, umas sobre as
outras. Permanecemos assim por alguns instantes, antes que nos
disséssemos adeus e nos separássemos. Nos abraçamos, um a um, e nos
despedimos, para um dia nos encontrar novamente, e logo todos partiram.
A jornada terminava ali, e eu sozinho fitei novamente a espada de
Asphael, presa à parede como uma lembrança de nossa jornada. Eu
colocarei algum dia ali o símbolo das asas negras, o nosso símbolo, para
lembrar nossa união. Tempos negros ainda viriam, mas um dia certamente
nós iríamos nos reunir novamente. “Quando isso acontecer, você também
estará lá, não?”, eu murmurei à espada, como se falasse com seu dono. E ali
fiquei por mais alguns minutos, antes de ter que voltar a meus afazeres.
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Fiquei ali pensando em tudo... Nos sonhos que eu ainda tinha,
nas memórias do Lorde da Dor que ainda permeavam meus pensamentos
ocasionalmente. Fiquei pensando na criatura que estava em algum lugar,
caminhando entre os vivos. Fiquei pensando nas revelações e no seu
significado, e na Quinta Guerra que apenas começou, mas como a Primeira,
pode demorar milênios antes de se concluir. Pensei nos outros que nos
acompanharam na jornada, nos Primi e seus poderes. Pensei em Amazarak
e em seu papel como o guia espiritual de Lúcifer e dos Caídos. Lembrei de
Urias, quando o acharam vivo mas severamente ferido nos confins de
Libraria. Lembrei dos rumores de que o Arcanjo Fanuel, Primus dos
Cuique Suum, tinha descido a Terra, para procurar por sinais de Íblis Al-
Qadim. O mundo continua a girar e a mudar. O temido apocalipse ocorreu,
os tempos são outros, as velhas certezas são dúvidas e os desafios serão
novos. A jornada terminou, mas eu tinha certeza que uma nova começaria
em breve.
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Epílogo
Ele caminhou pelas ruas, sentindo o sol iluminar seu rosto sob um
céu azul. Milhares de pessoas caminhavam pelas avenidas, e mais milhares
trabalhavam nos arranha-céus ao redor. Carros se moviam a uma
velocidade lenta devido ao trânsito congestionado. Ele caminhava sorrindo,
seus olhos captando as faces das pessoas. Ele podia ouvir suas palavras e
mentes, compreendendo tudo apesar da cacofonia criada por tantas vozes.
Medos e desejos se misturavam, o faziam sorrir ainda mais.
Se ele quisesse, poderia simplesmente liberar a raiva ardente que
queimava em seu interior, tornando aquela metrópole uma conflagração
única, erguendo nuvens de cinzas e fumaça que bloqueariam o sol, e
alertando ao mundo inteiro sobre sua presença.
Se ele quisesse, ele poderia fazer fogo chover ou abrir as portas do
Inferno sobre a humanidade, revelando aos mortais as verdades maiores e
mais sinistras da Criação num grande Armageddon. Ele poderia fazer os
mortos se erguerem ou dominar as mentes dos governantes do mundo.
Cada pessoa ali presente parecia ser tão pequena, tão frágil... almas
maleáveis protegidas por uma casca quebradiça de carne e sangue. Ele
poderia matar uma a uma, transformar suas entranhas em vermes que se
espalhariam pelo mundo, devorando tudo em seu caminho.
Ou ele poderia emanar seu poder, espalhando sua consciência por
aqueles no poder, tomando as cidades da Terra uma a uma forçando a ralé
da humanidade se curvar ante ele e adora-lo como um Deus. Ele seria o
flagelo das religiões, e todo o poder da fé humana se centraria nele.
E ainda assim, ele não desejava nada disso. Mostrar-se e agir seria
o mesmo que atrair a morte para si mesmo. Ele não cometeria os mesmos
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erros do passado, não faria oceanos de sangue nem faria os justos
caírem ante os perversos. Ele não era a Guerra nem a Dor. Ele sabia que
não poderia ser derrotado ou curado, pois ele podia controlar a todos,
manipular todos os eventos, prever cada movimento de seus inimigos. Ele é
a tirania, e seus inimigos não podem vencer aquele que os controla. Mas...
aqueles que ele não poderia controlar... ah, esses ainda precisavam ser
destruídos...
Com um sorriso no rosto, Íblis Al-Qadim, Grande Lorde da
Tirania, Senhor do Profano, continuou a caminhar por entre a humanidade.
Sua mente se concentrava em milhares de tarefas simultaneamente, criando
milhões de possibilidades para o futuro. Ele podia sentir centenas que o
buscavam, mas estes não o encontrariam. Em breve, ele agiria, mas por
enquanto era a hora de aproveitar sua liberdade... e planejar para o futuro.
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