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TIAGO JOSÉ “DEICIDE” GALVÃO MOREIRA ANJO: A SALVAÇÃO – DEMÔNIO: O PREÇO DO PODER Magna Magna Veritas Veritas CHEGA-SE A UM MOMENTO EM QUE NÃO SE PODE ESCAPAR DA VERDADE UM PRESENTE ESPECIAL A TODOS QUE ACOMPANHARAM E GOSTARAM DE MEU TRABALHO Anjo: A Salvação e Demônio: O Preço do Poder, seus Cleros, personagens, Reinos, Cidades, situações, eventos e todas as criações relacionadas são obra de Tiago José Galvão Moreira. Todos os Direitos

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Page 1: Magna Veritas - Tiago José Moreira

TIAGO JOSÉ “DEICIDE” GALVÃO MOREIRA

ANJO: A SALVAÇÃO – DEMÔNIO: O PREÇO DO PODER

MagnaMagna VeritasVeritas

CHEGA-SE A UM MOMENTO

EM QUE NÃO SE PODE ESCAPAR DA VERDADE

UM PRESENTE ESPECIAL A TODOS QUE ACOMPANHARAM E GOSTARAM

DE MEU TRABALHO

Anjo: A Salvação e Demônio: O Preço do Poder, seus Cleros, personagens, Reinos, Cidades, situações, eventos e todas as criações relacionadas são obra de Tiago José Galvão Moreira. Todos os

Direitos Autorais de Magna Veritas pertencem a Tiago José Galvão Moreira. Não reproduza ou redistribua sem permissão.

Para contatar o autor, entre no grupo de discussão: http://groups.yahoo.com/group/underhaven/

Page 2: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O FIM DE TUDO...

Diziam que o mundo ia acabar na virada do milênio. Profetas do

apocalipse surgiam por aí, um clima milenarista se formou em nosso

mundo. Quanta gente não comemorou ou temeu a virada do milênio?

Porém, 2001 passou e as profecias foram sendo esquecidas. O mundo não

acabou. O Apocalipse não veio... Será que não?

O Apocalipse está acontecendo. Todos podem ver isso? Ninguém

pode ver isso? Vejam os humanos. Vejam as guerras que criaram, os

abusos que cometem, o sangue que derramam. Vejam o mundo. Não seria a

marca de Leviathan? O novo milênio começou em sangue e guerra. Ouçam

o choro da natureza. Ouçam os gritos de animais e o cair de centenas de

árvores. O novo milênio começou sobre a devastação iniciada no milênio

anterior. A humanidade cresceu? As pessoas evoluíram? Ou será que a

corrupção nelas também está maior? Não seria melhor uma humanidade

ignorante, porém pura em seu âmago? O novo milênio iniciou-se podre em

sua essência. Isso é o Apocalipse?

Não, não é. Nada disso realmente marca o começo. O momento em

que tudo começou foi quando os mistérios começaram a surgir. No

momento em que um Arcanjo teve sonhos de seu mestre desaparecido. No

momento em que o Decaído vislumbrou seu maior plano. No momento em

que os Grandes Lordes viram finalmente uma chance de libertarem-se da

corrente que os prende ao Inferno.

As perguntas foram feitas. Agora é a hora de respostas. Ou será que

elas devem ser realmente descobertas? Será que a Revelação deve ser feita?

É hora de escolher entre ignorância e conhecimento. Há um ser

neste mundo que escolheu conhecimento e vislumbrou as terríveis

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conseqüências do mesmo. É muito fácil viver na ignorância, imaginando o

mundo como algo que não é. Quando este ser descobriu isso, resolveu

esconder a verdade de nós para nos proteger. Infelizmente, ele próprio

tornou-se o símbolo da verdade e teve de ocultar-se de todos.

Será que devemos encontra-lo e pedir as respostas para tudo? Será

que devemos deixar a ignorância e ver a verdade?

Quando muitos pensam em Apocalipse, imaginam destruição, dor,

caos. Estão enganados. O Apocalipse trará isso com certeza, mas não é, em

sua essência, isso. O Apocalipse é aquilo que mais tememos, mas no fundo

mais desejamos. Talvez por não sermos capazes de imaginar que a verdade,

algo tão bom, trará todo o sofrimento. As perguntas foram feitas, agora

teremos de encarar as respostas. Você sabe o que o Apocalipse realmente

significa?

Significa REVELAÇÃO.

E então? Você ainda quer vislumbrar a verdade?

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ÍNDICE

CAPÍTULO 1: ECOS DO PASSADO

CAPÍTULO 2: OS SETE

CAPÍTULO 3: AS ENTRANHAS DE LIBRARIA

CAPÍTULO 4: O CONSELHO VERITAS

CAPÍTULO 5: SOMBRAS DO PASSADO

CAPÍTULO 6: O FANTASMA DE LEVIATHAN

CAPÍTULO 7: KHRAL-HARSHEK

CAPÍTULO 8: AS CHAMAS DE ZOROASTRO

CAPÍTULO 9: REFLEXÕES

CAPÍTULO 10: VIA CRUCIS

CAPÍTULO 11: HA’IL-KANZAB

CAPÍTULO 12: SHIVA, O DESTRUIDOR

CAPÍTULO 13: A CIDADE ETERNA

CAPÍTULO 14: A ESTRELA DA MANHÃ

CAPÍTULO 15: VERDADE SEJA DITA

CAPÍTULO 16: SOB OS BRAÇOS DE CRISTO

CAPÍTULO 17: A TEMPESTADE VINDOURA

CAPÍTULO 18: O POVO DAS SOMBRAS

CAPÍTULO 19: O MOMENTO MAIS SOMBRIO

CAPÍTULO 20: OS PRIMI SE REÚNEM

INTERLÚDIO PRIMEIRO: O OUTRO LADO

CAPÍTULO 21: TRINTA DIAS

INTERLÚDIO SEGUNDO: PRENÚNCIO DO FIM

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CAPÍTULO 22: AS SETE TROMBETAS

INTERLÚDIO TERCEIRO: O LORDE DAS MENTIRAS

CAPÍTULO 23: O LORDE DA DOR

INTERLÚDIO QUARTO: OS IRMÃOS SE REÚNEM

CAPÍTULO 24: A REVELAÇÃO

INTERLÚDIO QUINTO: O ARAUTO

CAPÍTULO 25: OS SETE, DIVIDIDOS

EPÍLOGO

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Capítulo 1: Ecos do Passado

Datas como esta realmente provocam alegria e esperança em

muitos. É o símbolo da passagem, o começo do novo, o fim do velho, a

chance de evitar repetir os erros do passado e buscar um novo e melhor

futuro. Embora o mundo seja divergente em tudo, há uma grande

quantidade de pessoas que, sem dúvida, estão comemorando hoje, nas mais

diferentes culturas e fusos horários. Posso imaginar os fogos de artifício

iluminando as metrópoles da Terra quando o relógio local atingir a meia-

noite. O ano de 2001, o primeiro deste milênio, terá acabado, e as

esperanças por um ano melhor e mais farto irão se acender. Faz parte da

natureza humana ter esperança e expressa-la com alegria. Isso é bom, é

algo louvável.

Embora em épocas passadas eu também me contagiasse com essa

alegria, a idade me tornou diferente. Ainda fico alegre pelas pessoas, mas

de certa forma... quando se vê o passar de um século diante de seus olhos, é

como se um ano fosse algo tão... irrelevante. Por isso, eu me mantive aqui,

empenhado em meus estudos. Tenho certeza que milhares dançam e

cantam nas avenidas de Libertatis, rezam e festejam ao som dos sinos de

Prístina ou se admiram com o céu iluminado por fogos em Tiaohe Damen.

Mesmo entre os celestes e as almas dos mortos há essa faísca de esperança,

de comemoração, provocada pela passagem de um ano e o começo de um

novo ciclo. Eles devem se perguntar. Será 2002 melhor que seu antecessor?

Mas por mais contagiante e vibrante que seja essa alegria, eu

prefiro me manter no silêncio esta noite. Mesmo nos dias mais tranqüilos, a

biblioteca de Sans Vidya, meu lar nas profundezas de Libraria, ecoa vozes

e passos, vindos da atividade constante de meus companheiros

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Perquiratores e de outros estudiosos, tanto imortais como mortos, que têm

o acesso a este centro de conhecimento. Hoje, porém, há um silêncio ainda

mais profundo que o normal, tornando minha percepção mais aguçada e

minha concentração mais recompensadora. Hoje, as profundezas de

Libraria estão esquecidas. O imenso conhecimento guardado nesta e em

outras bibliotecas tornou-se, por hora, supérfluo. A alegria contagiante é

mais importante neste momento de mudança. O silêncio não é absoluto,

porém, pois há pequenos sons que o perturbam. Os sons que vêm do

folhear de páginas e de pés cautelosos e calmos que percorrem os vastos

corredores de minha biblioteca.

Conforme folheio as páginas deste livro, noto quanto conhecimento

pude adquirir em meu século de vida. Embora dos mais de dez mil livros,

pergaminhos, tomos, documentos e cartas guardados neste templo de

conhecimento eu não tenha lido nem um décimo, a cada novo livro que me

disponho a estudar, já conheço pelo menos o básico sobre seu assunto.

Alguns me consideram um sábio, mas fico a imaginar o quanto podem

conhecer aqueles que me superam em idade e experiência. Se para mim o

mundo parece claro, como os olhos de um Arcanjo milenar podem observar

os acontecimentos? Se para mim, com um século, é fácil prever o que uma

pessoa pensa ou como reagirá a cada situação, o que podem predizer os

senhores de meu Clero, que se dedicam eternamente à busca do

conhecimento?

É em meio a essas indagações que os tímidos pés que percorrem

Sans Vidya chegam a mim. Ergo o rosto e recebo com um sorriso um de

meus ajudantes. Nicholas foi um cientista canadense em vida e, como eu,

dedicou-se ao conhecimento por toda a vida e até mesmo após ela. Ele não

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se tornou Celestial, porém, mas contentemente se dispôs a estudar todo o

conhecimento que pudesse ter em mãos. Foi por isso que aceitei que se

tornasse um dos bibliotecários de Sans Vidya.

“Senhor Nicodemus, não vai comemorar o ano-novo?”

“Estou velho para isso, Nick, velho demais”, respondo enquanto

fecho o livro, devidamente marcando a página na qual parei. “Fico alegre

pela data e estou comemorando à minha maneira, porém”. Levanto-me da

cadeira, ainda sorridente, enquanto coço meu queixo e meus dedos

encontram minha barba curta, porém grossa. Pego o livro que lia em mãos

e me aproximo de Nicholas, tocando seu ombro e continuando a conversa.

“E você? É jovem, tem bastante a comemorar. Por que não subiu a Prístina

ou Libertatis e se uniu à multidão festiva?”.

“Eu não acho que esteja velho para isso, Philipe.” Ele sorri,

sabendo que estou sendo sarcástico. Minha aparência é de meia idade sim,

mas também emana vigor. “Ainda tem vigor e muita força... Mas eu... Bem,

eu não sei. É meu primeiro ano-novo depois do acidente. Ainda é...

estranho... pensar em comemoração. Fico pensando em minha esposa e

meu filho, sabe? Ainda sinto muita, muita saudade...”.

Meu sorriso logo desaparece, meu rosto assume uma feição mais

séria, porém compreensiva. “Não tem sonhado com eles? Não tem orado

por eles, Nicholas?”.

“Sim, eu tenho”.

“Então confie em seus sonhos, acredite em suas orações. Enquanto

você os amar, saberá se estão bem. E se algo acontecer, lembre-se de onde

você está. Sempre haverá alguém a quem pedir ajuda”.

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Nicholas sorri de leve, meio envergonhado. “É verdade, desculpe-

me pela choradeira”.

Novamente sorrio, um pouco mais entusiasmado: “Desculpar-se

por se preocupar com alguém que ficou para trás? Não se culpe por isso.

Venha, já que está aqui em busca de conhecimento, vamos conversar e

fazer nosso próprio ano-novo!” Incrível como uma simples conversa pode

melhorar nossos ânimos. Mesmo com missões tão árduas e deveres tão

gigantescos, ainda podemos sorrir simplesmente por termos companhia.

Puxo uma cadeira para Nicholas e, mesmo antes que precise pedir, ele

senta-se. Enquanto volto à cadeira na qual estava originalmente sentado, ele

se dispõe a perguntar:

“Se não for me intrometer, senhor, posso perguntar que livro é este

que está lendo?”.

“É um velho manuscrito”, respondo. “Fiquei extremamente

surpreso ao encontra-lo. É um diário antigo escrito por um dos combatentes

da Primeira Grande Guerra, um Anjo chamado Neb-seshet, na época um

Trono dos Veritatis Perquiratores”.

“Já me explicaram sobre essas guerras, as Quatro Grandes Guerras.

Mas não as compreendo. Fico imaginando a visão de anjos e demônios

lutando, mas simplesmente não consigo visualizar algo assim. Como

poderiam guerrear? São como as guerras humanas?”.

“Eu infelizmente posso me apoiar apenas nos relatos, Nicholas,

pois sou jovem demais para ter participado de qualquer uma delas... Mas

tais batalhas mais pareceriam gigantescas guerras medievais. Os relatos de

Neb-seshet são impressionantes, suas descrições são vívidas... Estar numa

destas batalhas é como estar em um turbilhão de caos. Neb-seshet

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participou da guerra por mais de 700 anos. No começo, eram pequenas

guerrilhas, depois foram crescendo, até o clímax, a grande batalha que pôs

fim a tudo”.

“A morte de Leviathan”.

“Sim, este foi o marco que finalizou a guerra. Estou no momento

lendo as passagens que precedem a batalha de Dur Sharrukin, onde tudo

terminou. Neb-seshet descreve vividamente... Penso naqueles momentos.

Como seria saber que, em 30 dias, você estaria arriscando sua vida para

eliminar um mal ancestral?”.

“Leviathan era tão poderoso assim? Eu não entendo ao certo o que

significa esse ‘poder’”.

Fito os olhos de Nicholas por um breve instante... De fato, a

palavra “poder” parece tão efêmera. As pessoas pensam em poder e

imaginam dinheiro e influência. Para alguém que nunca viu um milagre ou

uma manifestação de poder celeste, a idéia do poder místico, da centelha

divina, pode parecer inacreditável. Estendo a mão sobre a mesa, abro-a com

a palma voltada para cima, e luzes e imagens começam a se formar,

mostrando tempestades e tormentas. Então, fechando meus olhos, respondo

a Nicholas: “É verdade, você nunca viu uma demonstração real do poder

que mesmo o menor dos Celestiais pode possuir. Imagine as grandes

lendas, Gabriel, Rafael, Fanuel... Imagine cada conto bíblico em que fogo

caiu dos céus ou os mares se abriram. Imagine tempestades torrenciais,

terremotos e batalhas que podem nivelar montanhas. Esse é o poder que

possuímos. Cada ‘poder divino’ das mais diversas lendas é de certa forma

possuído por nós, em menor ou maior grau. Agora pense nos Primi, que

possuem esse poder, essa centelha de divindade, tão imensa que ofusca

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qualquer um de nós. Sequer podemos compreender as capacidades de

um Primus. Leviathan, o Lorde do Sangue, Senhor da Guerra, o Grande

Dragão... Ele era como um Primus para o Inferno. Você pode imaginar

quanta destruição um único ser destes pode causar?”

Ao abrir os olhos, noto Nicholas impressionado e pensativo. “E

como enfrentaram tal ser?”. Ele mal conseguiu gaguejar a perguntar.

“Imagine a época, Nicholas. Era cerca de 330 antes de Cristo.

Roma mal engatinhava, os Persas dominavam o Egito e a Mesopotâmia. As

antigas glórias do passado haviam decaído. Estávamos em guerra há 1500

anos, o mundo estava coberto de sangue, tanto celeste como demoníaco.

Nós fizemos a Babilônia decair para destruir os cultos infernais, os

demônios contaminavam a Pérsia e corrompiam nossa influência sobre as

grandes religiões. Gerações após gerações de Celestiais renasceram neste

tempo, e nunca tinham conhecido nada além de guerra, caos, morte. Numa

tentativa de trazer nova luz ao mundo, o Éden influenciou e fortaleceu os

Macedônios, que então, através da conquista, trouxeram um pouco de união

e paz no mundo”.

Nicholas nada falou, continuou apenas a ouvir minha história. Eu

puxo as palavras da memória, tentando lembrar da lição que meu próprio

mentor me deu há cerca de um século. Estranhamente, as palavras são

claras na memória, e meus lábios não têm dificuldades em emiti-las:

“Foi nesta época que Uriel-chamado-Veritatis retornou de uma de

suas longas viagens, trazendo uma vez mais seu conhecimento para nós.

Foi ele quem desvendou os mistérios acerca dos pesadelos que todos

tiveram séculos antes. Foi então revelado que Leviathan, Lorde do Sangue,

estava no reino dos mortais e ocupava o corpo de Nabucodonosor. Ele

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estava escondido nos subterrâneos mais profundos de Dur Sharrukin, na

antiga Assíria, e ali reunia um exército de demônios, servos mortais e

magos, para realizar um rito que abriria as portas da Terra para o Inferno”.

Paro por um instante. Novamente observo a expressão de Nicholas,

cuja atenção está voltada inteiramente para mim. “Continue”, ele pede.

“Um plano então se formou”. Eu pego o livro e abro algumas

páginas antes de onde parei de lê-lo e, então, repito as palavras do Anjo

Neb-seshet, então Trono dos Veritatis Perquiratores:

“Desde que surgi no Éden, esta loucura tem acontecido. Guerra,

batalhas, luta, sangue, morte, dor... Eles dizem que isso perdura por 1500

anos, quando os infernais começaram a tomar toda a região entre o Tigre

e o Eufrates. Em vida, sempre disseram que minha nova vida seria de paz,

mas não é. Eu tenho lutado há 700 anos contra cultos demoníacos e

imperadores guiados pelas mãos infernais. Por isso, acima de meus

desejos pessoais, de meu sonho em saber e descobrir mais sobre o mundo,

tive de aprender a lutar e desenvolver habilidades em combate, pois nunca

saberia quando precisaria delas”.

“Os mais antigos, aqueles que respeito por demonstrarem estar

acima de tudo, pela faísca de esperança que têm em seus olhos, pela sua

sabedoria e seu imenso poder, dizem que nem sempre foi assim. Houve

uma época de relativa paz, em que as disputas entre Paraíso e Submundo

eram poucas, quando o objetivo não era matar o inimigo, mas guiar os

homens. Os Antigos sonham com o retorno desses tempos, com o fim desta

guerra insana que ocorre nas sombras do mundo”.

“Alguns se recordam dos pesadelos. Eu mesmo não consigo

esquece-los. Pesadelos que nos atormentaram há tanto tempo atrás, mas

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nunca deixaram minha memória. Sonhos de sangue e dor e gritos.

Diziam que algo estava caminhando entre os homens. Algo antigo e

maligno, terrivelmente poderoso, algo que nunca tínhamos enfrentado

antes. A guerra já ocorria naquela época, mas se intensificou, conforme

Trevas cobriram o mundo. Os cultos infernais proliferaram por Babel. E

houve ainda mais sangue derramado”.

“Muitos anos se passaram. Quantos? Duzentos? Trezentos anos?

Não consigo me lembrar. O fim de Babel não havia também terminado com

os cultos? Por que as guerras continuaram? E tudo tem sido assim.

Sangue, morte, dor, num ciclo interminável. Precisamos eliminar o Grande

Mal que caminha entre os homens”.

“Há pouco mais de um mês, porém, ele retornou, ou assim dizem.

O décimo Primus, Grande Uriel guiado pelas asas da sabedoria, senhor

d’Aqueles que Procuram a Verdade, finalmente voltou, trazendo consigo

ventos de esperança e sussurros de paz”.

“Ele trouxe o nome deste mal que contamina o mundo e inspira

guerra. O nome deste mal, deste Senhor do Sangue, é Leviathan, e ele se

esconde nas catacumbas de Dur Sharrukin, onde antes o povo de Ashur

tentou criar sua capital”.

Pulo algumas passagens, para ir mais diretamente ao assunto:

“Então, finalmente, as notícias começaram a chegar a nossos ouvidos.

Seja em Prístina, em Tiaohe Damen, em Sancta Turrim ou nas incontáveis

vilas e vilarejos, a grande notícia se espalha. Haverá 30 dias de silêncio, e

então as Trombetas tocarão. Nestes 30 dias, cada um que se voluntariar

deve se preparar. Em breve, despedirei-me de meus entes queridos e

resolverei minhas questões pendentes, pois talvez eu jamais retorne”.

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“O Portal está sendo criado, os preparativos estão sendo feitos.

Dizem que todos os Primi se reuniram, algo que só ocorreu quando o Éden

foi formado e quando o Amaldiçoado Decaiu. Serão 30 longos dias. Ao fim

deles, as Trombetas tocarão. E quando isso acontecer, virá uma grande

chuva, uma tempestade de água e trovões, sangue e o som do choque de

metal contra metal, lavando Dur Sharrukin e o mal que está lá. Esta será a

batalha que terminará com todas as guerras”.

“E, para os sobreviventes, começará uma nova era de paz”.

Há um silêncio prolongado, incômodo, assim que termino de ler.

Nicholas quer saber mais, enquanto eu fico pensativo... Como se imagens

do passado inundassem minha imaginação e tomassem todos os meus

pensamentos. O que seria saber que, em trinta dias, tudo mudaria? Eu me

viro para Nicholas, voltando a conversar:

“O plano celeste consistia num ataque repentino, ao mesmo tempo

em que a Macedônia atacaria Persépolis, capital da Pérsia, assim dividindo

as forças infernais e pegando seu líder de surpresa”.

“E como foi a batalha?”

“Ninguém foi obrigado a ir, Nicholas. Mas, segundo Neb-seshet,

dezenas de milhares compareceram ao final dos 30 dias. Eles se reuniram

em Prístina, na Cúpula Sancti, e ali foi aberto, ao som das sete trombetas,

um portal para os céus sobre Dur Sharrukin. Segundo o relato, uma grande

tempestade encobriu o portal, dando passagem livre para que o exército

divino o atravessasse. Logo em seguida, o exército descendeu dos céus, em

meio à tempestade... Nas palavras dele: ‘como se chovesse luz, fúria e

gritos de guerra, nós descemos em direção a uma grande montanha’”.

“Uma montanha? Mas Dur Sharrukin não era uma cidade?”.

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“Parece que a entrada para as catacumbas sob a cidade estava no

sopé desta montanha. Pelo menos é o que indica a passagem...”

Nicholas parece entusiasmado, impressionado, como se ouvisse um

conto épico. Não se contendo, ele me apressa em continuar: “E o que

ocorreu depois?”.

“Eu ainda não terminei de ler o relato”, respondo, folheando as

páginas que faltam do livro, cerca de um quarto do mesmo. “Mas sei que

eles confrontaram um exército demoníaco nas profundezas e, enquanto as

forças do Éden e do Inferno chocavam-se, Gabriel confrontou o dragão,

Leviathan, num embate que fez a terra tremer. O dragão foi decapitado e

seu grito ecoou... Dizem que, por semanas, pesadelos a respeito do ocorrido

se repetiram, atormentando mortais e imortais, mortos e vivos. Os urros do

Leviathan morto demoraram a cessar, mas no fim, o Éden prevaleceu.”

Nicholas leva mão ao rosto, um tanto descrente. “Isso é

inacreditável... Parece... tão irreal”.

“Conte isso àqueles que lutaram. Você ainda pensa como um

mortal, ainda quer respostas e soluções racionais para tudo. A idéia de um

exército se mobilizando e descendo dos céus para confrontar monstros nos

subterrâneos da Terra pode parecer absurda, mas para mim é assustadora.

Eu não sei se teria coragem de lutar numa guerra como esta”.

Nicholas se levanta, lentamente. “Você tem razão... É assustador.

Será que, após você ler esse livro, eu poderia toma-lo emprestado?”.

Com um leve sorriso, respondo-o: “Esse é o tipo de livro que abre

muitas perspectivas novas. Será um prazer empresta-lo!”.

“Obrigado, senhor. Com licença, irei procurar algo para ler. Sabe,

por um momento, tinha me esquecido que é ano-novo...”.

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“É verdade! Eu também tinha me esquecido!” Rio um pouco.

“Bem, vá lá... voltarei à minha leitura”.

Nicholas se afasta, enquanto meus olhos voltam a percorrer as

páginas do livro, buscando o ponto em que parei. Reinicio minha leitura,

atentamente acompanhando as passagens que narram o vasto salão

subterrâneo em que o primeiro choque entre Céu e Inferno se deu naquele

dia. Fico a imaginar dezenas de milhares lutando nas profundezas da terra,

num salão tão gigantesco. Prossigo lentamente, leio os relatos das hordas

de mortos, demônios e monstros, chocando-se contra a tropa celeste, a

queda de companheiros e o avanço das tropas pela escuridão.

Então, após algumas páginas de leitura, finalmente as tropas

alcançam os limites do salão, o imenso portão que leva a níveis ainda mais

profundos da imensidão negra de Dur Sharrukin. Ali, as tropas encontram

mais uma horda inimiga e Neb-seshet descreve como um único demônio,

um cavaleiro negro, montado sobre uma besta de olhos de fogo, chama-lhe

a atenção. “Atrás da coluna adversária, meus olhos encontraram um único

infernal, apenas observando o grande conflito. Um cavaleiro de armadura

negra, armado com uma poderosa espada tão comprida quanto a altura de

poderoso Gabriel, e portando um imenso escudo coberto por espinhos

pontiagudos, seu rosto escondido por um pesado elmo de osso e metal,

montado sobre um cavalo baio tão escuro quanto a noite, cujos olhos

emanam fogos que só podem vir do Inferno. Porém, mal a batalha começa,

ele recua, atravessando os grandes portões adiante. Ninguém o segue, mas

a horda sob seu comando avança urrando furiosamente.”

Mal termino essa passagem, sinto um cansaço repentino. Tento ler

adiante, mas minha concentração some por um instante. Os olhos piscam e

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de repente, sinto-me chamado por alguém. Minha consciência some e

então noto que, mesmo estando consciente, não há mais corpo. Estou

sonhando?

Então, na escuridão, eu tenho uma revelação. Um raio atrai minha

atenção, eu olho e vejo uma grande tempestade. Seus raios iluminam um

deserto árido. Uma voz de trovão ecoa: “Olhe o passado e o futuro”.

Então, diante de meus olhos, as nuvens da tempestade se abrem, e o

exército celeste desce rumo à montanha adiante, como uma chuva de luz

que ilumina a noite e afasta as trevas. Ouço tambores invisíveis de batalha e

vejo, no topo da montanha, o Cavaleiro Negro montado na besta de olhos

de fogo, observando silenciosamente o avanço do exército de luz.

Mas então, ouço gemidos de dor e gritos de ódio. Olho em outra

direção e vejo dois anjos aprisionados num deserto. Um é acorrentado pelas

mãos, sua corrente prendendo-o a um teto invisível. Ele não tem forças para

sequer manter-se em pé, sendo mantido erguido apenas pela corrente que o

segura. Suas asas estão dilaceradas, seu corpo inteiro sangra por grandes

marcas de tortura. Seu rosto cabisbaixo fita o solo, sem forças para erguer-

se, embora ele deseje falar algo.

Então olho o outro anjo, e o deserto sob seus pés agora é alto como

uma montanha. Suas asas negras e pútridas abrem-se e ele debate-se contra

as várias correntes que prendem sua cintura, braços e pernas ao chão. Ele

grita de raiva e frustração, mas ouço apenas urros animalescos.

Então, por fim, blasfêmias ecoam, trazidas pelo vento. Volto minha

visão para uma nova pessoa, um homem velho e cansado, vestindo trapos,

gritando em desespero. “Eu não pedi por isso”, ele repete. Trevas o cercam,

mas vejo-o claramente como se ele emanasse luz. Ouço então um novo

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rugido e viro-me uma vez mais. Sobre uma montanha, um tigre urra

furiosamente, trazendo consigo nuvens e trovões. Ele fita o velho indefeso,

que se contorce no chão, gritando novas blasfêmias. O tigre então avança,

pronto para devorar o velho. Eu grito para impedi-lo, mas não tenho corpo.

Não tenho braços para segura-lo, nem pernas para correr em auxílio do

homem indefeso. Nada posso fazer a não ser gritar... Gritos que se perdem

em meio aos trovões da tempestade.

Em desespero, vejo finalmente a última revelação. Em meio a fogo

e dor, anjos e demônios lutando, o sangue divino e profano caindo e

lavando a terra. E, neste momento, ouço mais um urro. Um urro de dragão,

que faz a Terra tremer e meu sangue ferver. É um urro de agonia e dor,

clamando por vingança, pedindo por guerra. O urro do Leviathan.

Acordo gritando. Noto que estou caído no chão, dezenas de livros

sobre mim. Luto para sair dali, removendo os livros com toda a força que

posso reunir. Levanto-me ofegante. Sinto agonia, desespero, como nunca

senti antes. Olho ao redor, as luzes emanadas pelas rochas de Sans Vidya

ajudam a minha visão. As prateleiras estão caídas, os livros espalhados, as

paredes estão rachadas. Estou sonhando? Ouço Nicholas pedir por auxílio e

corro em sua direção. Ele está soterrado por livros, preso por uma estante

que caiu. Mesmo não tendo as habilidades físicas de Celestiais mais

guerreiros, esforço-me para erguer a estante tempo o suficiente para que

Nicholas saia. Felizmente, ele não está ferido.

“Nicholas, o que aconteceu aqui?”.

“Eu não sei, senhor... Ouvi um urro e então o chão tremeu. Tudo

começou a desabar de repente. Quando menos percebi, estava caído”.

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O que pode ter acontecido? Seria o livro? Não, não há magia

alguma nele. Eu teria percebido. O livro é apenas uma coincidência.

Alguma coisa despertou. Sinto que há alguma coisa... em Libraria.

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Capítulo 2: Os Sete

Ela entrou timidamente, olhando ao redor à minha procura. Ao

invés de me encontrar, porém, seus olhos apenas viam a confusão causada

pelos tremores horas antes. Meus assistentes, chamados no último minuto,

tinham acabado de deixar as festividades de Ano Novo, e já estavam aqui,

reerguendo as estantes caídas e tentando organizar as centenas de livros

espalhados pelos corredores de Sans Vidya.

Acenei, da passarela que leva a meu escritório, um nível acima dos

corredores, onde costumo ficar para observar o movimento na biblioteca.

Os olhos verdes de Karina perceberam rapidamente, e ela acenou em

resposta, com um sorriso. Ela apressou o passo, percorrendo o mais rápido

possível os corredores, em direção ao escritório. Ao mesmo tempo, desci as

escadas que levam à passarela, para encontra-la ainda no corredor.

“Philipe”, ela disse, assim que estava próxima a mim, “o que

aconteceu aqui?” Novamente, seus olhos voltam-se para as pilhas de livros

caídos, as paredes rachadas e estantes quebradas.

“Tremores de terra”, respondo, enquanto pego em sua mão e vou

subindo novamente a escada, fazendo-a vir comigo. “Seis tremores, para

dizer a verdade. O primeiro foi o mais violento e nos pegou desprevenidos.

Pelo que andei vendo, a situação está parecida em toda a região inferior de

Libraria... Mas as porções superiores e a superfície nada sofreram. Mas não

é isso que você veio fazer aqui, não é?”.

“É. Aconteceu algo muito estranho esta noite. Um sonho”.

Olhei-a seriamente. Eu sabia o que ela falaria em seguida, então

preferi tomar a iniciativa: “Os anjos invadindo a montanha, os dois

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Page 21: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Celestiais aprisionados, o tigre e o velho louco. O urro do dragão. Eu

tive o mesmo sonho, Karina, apenas o final foi diferente”.

Karina assustou-se. “Como sabia que eu tinha sonhado a mesma

coisa, Philipe?”.

“Você não é a primeira a me procurar hoje.” Assim que chegamos

à passarela, abro a porta para o escritório, onde um homem espera sentado

à mesa, lendo um livro. Assim que entramos, o homem fita silenciosamente

Karina. “Karina, este é o Anjo Lo Wang, Virtuoso dos Kage. Wang, esta é

a Anjo Karina Ariel, Ofanim Supervivente”.

Wang levantou-se, ainda silencioso, e aproximou-se. Seu olhar era

frio, sua expressão, um tanto séria. Ele é um homem baixo, não mais alto

do que Karina, e de constituição ágil. Seus cabelos e olhos negros

combinam com a roupa negra que veste: trajes de cores escuras, um misto

de quimono e capuz. Então, abaixou a cabeça, em sinal de cumprimento à

recém-chegada. “É um prazer conhece-la, srta. Ariel”. Karina retribuiu com

um sorriso.

Pedi que os dois se sentassem, e então virei-me para Karina:

“Wang chegou há algumas horas, relatou o mesmo sonho que eu e você

tivemos, mas o sonho dele terminava diferente do meu. Após o urro do

dragão, Metatron apareceu num céu escuro, diante da imagem de Cristo de

braços abertos. E o Guardião pediu que Wang me procurasse.”

Karina balançou positivamente a cabeça enquanto se sentava. “Sim,

isso mesmo. Era um Guardião diferente dos outros. Tinha asas de fogo e

uma coroa sobre a cabeça, e sua voz era indescritível. Acho que era

Metatron. Não sei com certeza, pois só tinha ouvido falar dele, nunca o

tinha visto”.

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Page 22: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Wang, já sentado, abaixou a cabeça. Apoiando os cotovelos na

mesa, colocou as mãos unidas diante do rosto, sussurrando. “Eu também

jamais vira Ele em meus sonhos. Mas pude reconhece-lo como o Rei dos

Cheng-huang. Eu sabia que precisava procurar Philipe Nicodemus.

Demorei a chegar aqui, pois nunca tinha ouvido o seu nome antes,

Arcanjo”.

“E nisso há algo interessante”, respondi. “Você diz que demorou a

me encontrar, mas chegou aqui menos de meia hora após eu ter o sonho.

Karina provavelmente veio imediatamente, mas chegou uma hora após

você”.

Karina não parecia entender meu raciocínio. “Bem, sim, eu vim

imediatamente. Apenas arrumei minhas coisas, pus tudo na mochila e vim

correndo para cá. Eu estava numa vila próxima a Nairóbi, no Quênia.

Acabei caindo no sono, acordei à meia-noite por causa do sonho”.

“Imagino que outros virão me procurar”, disse. “Os sonhos estão

ocorrendo na passagem do ano, mas isso está acontecendo em momentos

diferentes, de acordo com os vários fusos horários. Acredito que Wang teve

o sonho antes mesmo de mim”.

Wang, sem me fitar diretamente, perguntou, novamente falando

baixo e friamente: “O que acha que isso significa?”.

“Algo grande. O quê exatamente, nós temos que descobrir. Mas

estes tremores de terra não são coincidência”.

Karina tirou a mochila das costas e a colocou sobre a mesa. “Já

sabe o que faremos agora?”.

“É melhor esperarmos que outros cheguem. Tenho certeza de que

virão mais”.

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Page 23: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Eu acho que deveríamos encontrar a fonte dos tremores”, Wang

murmurou, ainda de cabeça baixa.

“Prefiro esperar que pelo menos mais dois ou três cheguem”,

respondi. Se no Quênia o ano novo acabou de ocorrer, então faltam cerca

de 14 horas para que ano novo ocorra em todo o mundo. Vamos esperar 18

horas para que os outros tenham tempo de me encontrar. Façam o que

quiserem neste período e então retornem aqui. Assim que todos estiverem

reunidos, vamos procurar a origem dos tremores”.

“Dê-me algo para ler”, disse Lo Wang, levantando-se. “Não tenho

nada a fazer neste tempo”.

Karina também se levantou. “Também não tenho muito o que fazer.

Queria tomar um banho e trocar minhas roupas, depois devo ficar aqui na

biblioteca, talvez dormir um pouco...”

Apontei para a porta dos fundos do escritório. “Ali ficam meus

aposentos, mas acho que você já conhece bem o lugar, não? Sinta-se em

casa, Karina”.

Karina sorriu e se afastou, enquanto Lo Wang se afastou, descendo

de volta à biblioteca. Eu mesmo me sentei, tentando juntar as peças deste

quebra-cabeças, mas a verdade é que sequer tinha pistas suficientes para

monta-lo. Algo tinha causado os sonhos. Algo perigoso o suficiente para

fazer Metatron, Rei dos Guardiões, se manifestar nos sonhos de muitos,

para que me procurassem. Por que eu? Serei eu o centro disso tudo? E

aquilo que causou os sonhos... Seria a mesma presença que senti em

Libraria, no momento do tremor?

As horas foram passando e novas faces adentraram minha

biblioteca, todas trazidas pelo sonho. Alguns eram antigos conhecidos,

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Page 24: Magna Veritas - Tiago José Moreira

como a doce e cheia de vida Karina, outros eram desconhecidos, que

chegaram a mim graças à minha fama entre os Perquiratores.

O primeiro surgiu menos de uma hora após Karina me procurar.

Um homem forte e vigoroso, de barba grossa e cabelos negros como a

noite. Seus olhos brilhavam com sabedoria e suas roupas, num claro estilo

árabe, denunciavam sua filiação aos Malaki. “Malaki Adb Al-Malik,

Hashmal Bin Bayt’Namus Al’lah”, como ele se apresentou, ou Anjo Abd

Al-Malik, Trono dos Cuique Suum, como nós o chamaríamos na Corte

Ocidental. Um homem de fé, no qual pude sentir uma força que ia além de

seu poder físico.

Al-Malik descreveu seu sonho, idêntico aos dos demais, e sua

certeza de que uma grande tragédia se aproximava. Oferecendo sua

sabedoria e força, ele concordou em esperar que outros viessem até mim

antes que agíssemos.

Horas mais tarde, um homem jovem, saudável, de cabelos louros e

olhos azuis, adentrou Sans Vidya, vestindo roupas ocidentais. “Anjo

Achille Absolon, Abençoado entre os Princeps”, foi como ele se

apresentou. Notei certo receio nele, talvez devido a ser tão jovem, mas

também pude perceber o desejo de desvendar aquele mistério.

Como os que vieram antes dele, Achille ofereceu sua ajuda

incondicional. Ele revelou seus medos e sua incerteza quanto a seu papel,

mas disse que precisava saber o que estava acontecendo, e me seguiria

aonde quer que fosse preciso.

Então, um velho conhecido adentrou. “Mestre Nicodemus, uma vez

mais nos encontramos”, disse meu velho amigo, ajoelhando-se em posição

de respeito. O Anjo Armin Ansgar, Elohim dos Venatores, então ergueu-se,

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empunhando sua espada, e oferecendo-a a mim para a jornada que

iríamos percorrer juntos. O imenso homem, de cabelos ruivos de tonalidade

escura e barba por fazer, então pôs-se a esperar, como os demais.

Por fim, uma mulher de aparência jovem, bela como Karina, mas

com cabelos negros e pele morena, vestindo roupas simples ocidentais,

adentrou Sans Vidya, quase no fim do prazo. “Fabrizia, Filha Virtuosa de

Ilyap’a”. Logo reconheci o nome como sendo uma das muitas alcunhas que

os Xamãs carregam. Apesar de jovem, notei uma determinação fora do

normal naquela moça.

Por mais algumas horas esperamos. Ninguém mais veio e, por fim,

determinamos que era hora de começar a fazer as perguntas e procurar

respostas. Os sete se reuniram em meu lar em Sans Vidya, em torno de uma

grande mesa. Ali buscamos finalmente um sentido para tudo aquilo.

“Caros amigos”, eu disse, já com todos reunidos à mesa. “Já

conversei individualmente com cada um de vocês, conforme vieram me

procurar. É fato que todos tivemos o mesmo pesadelo, as mesmas visões. A

diferença é que Metatron, a Voz do Lorde Sábio, pediu a vocês para me

procurar. Sei que muitos vieram aqui para me pedir respostas, mas

infelizmente não as tenho. Acredito que isso é uma busca a que estamos

destinados”.

Eles se entreolharam. Tanto o jovem Absolon como a silencioso Lo

Wang permaneceram calados e pensativos, enquanto os demais se

arriscaram a falar. Ansgar, o Venator, ergueu a voz para se destacar: “Será

que fomos apenas nós sete que realmente tivemos esse sonho?”.

“Talvez não, mas não podemos esperar mais. Enquanto

esperávamos, procurei alguns amigos em Libraria. Parece que muitos

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Page 26: Magna Veritas - Tiago José Moreira

outros tiveram sonhos esta noite, pedaços das visões que tivemos, mas

aparentemente só nós tivemos todas as visões. Somente vocês foram

avisados para me procurar. Talvez haja outros, mas não chegaram ainda e

não podemos esperar mais”.

Karina baixou a cabeça, pensou um pouco, então fitou-me: “O que

você acha que pode ser tudo isso?”

Voltando-se para Karina, Al-Malik respondeu por mim: “Segundo

os Antigos, sonhos ocorreram antes de cada grande evento. Alá envia sua

voz, porém, apenas quando algo terrível está por acontecer. As visões

possuem significados que nós devemos desvendar para nos prepararmos

para o pior. Temos uma missão”.

Eu complementei: “Se outros tiveram fragmentos do sonho,

significa que isso afetará a todos. Porém, nós estaremos no centro de tudo”.

Karina pareceu assustada. Ela nunca foi uma guerreira, dedicou

seus dez anos como Celestial apenas a viajar e a ajudar as pessoas de forma

pacífica. Ela baixa a cabeça, murmurando: “Não devíamos procurar os

Primi e os Arcanjos?”.

“Eles também devem ter sido avisados de alguma forma”, respondi.

“Além do mais, não sou eu um Arcanjo? Sei que sou jovem demais para ter

tal Coro e tanto destaque, e temo que minhas decisões venham a pesar

tanto, mas não podemos procurar os Primi ou os grandes Arcanjos, sem

antes termos pelo menos algo a mostrar a eles. Não sabemos o que virá

daqui em diante. Precisamos descobrir, e só então buscar ajuda.”

Al-Malik mais uma vez falou: “Se fomos escolhidos por Alá, então

é porque nossas habilidades serão as mais indicadas. Também tenho medo,

mas Alá estará conosco e irá nos proteger nesta busca”.

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“Provavelmente, cada um foi escolhido por ter um papel nesta

missão”, refletiu Ansgar. “Minha espada e minha força estará a sua

disposição, pois é lutar o que sei fazer melhor”.

“E temos uma guia na forma de você, Supervivente”, disse, pela

primeira vez em voz alta, Lo Wang, erguendo a cabeça e fitando Karina. “É

por isso que você está aqui. Provavelmente, seu papel será fundamental,

como o de cada um aqui reunido”.

Karina engoliu em seco, então calou-se.

“Mas o que pode significar o sonho?” A pergunta veio de Absolon.

“Temos que pensar nos fragmentos. Cada um deve ter um sentido”,

respondi. “Lembro-me de ver um exército de anjos descendo rumo a uma

grande montanha, em um dia tempestuoso”.

“A tempestade não era natural, mas criada para protege-los”, disse

Fabrizia, a Xamã. Todos a olharam. “Sei disso porque pude sentir. Era tão

real, que pude perceber isso”.

“Um exército de Celestiais...”, murmurou Al-Malik.

“A primeira Grande Guerra. A batalha de Dur Sharrukin,” eu disse.

“Quando o Éden desceu das nuvens tempestuosas, rumo ao templo

subterrâneo onde Leviathan, Lorde do Sangue, se encontrava. Li nos livros,

vi diários de guerreiros do passado e pude compreender claramente quando

vi a cena”.

“A voz que anunciou o sonho disse que iríamos ver o passado e o

futuro”, lembrou Achille Absolon, falando baixo. “Provavelmente, você

está certo, Nicodemus”.

“Ainda é cedo para dizer”, interrompeu Al-Malik, “Mas é nossa

melhor pista”.

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“E também tinha um cavaleiro, todo em negro, montado sobre

um cavalo cujos olhos eram fogo”, disse Ansgar. “Quem poderia ser ele?”.

Nenhum de nós soube responder. “Ainda é cedo para dizer”,

respondi. “Vamos nos concentrar naquilo que sabemos”.

“E depois os dois anjos acorrentados”, murmurou Karina, baixando

a cabeça, e cobrindo os olhos com a mão direita. “A dor e o desespero eram

tão reais que eu quase pude sentir. Foi assustador”.

“Lembro-me que o segundo urrava como um animal e se debatia,

como se estivesse furioso, fora de controle, e não ferido”, Lo Wang

acrescentou. “As asas dele não eram asas de Tenshi, mas de Gakido. Ele

não era um ‘anjo’. A cena foi rápida, mas pude perceber claramente”.

“Isso me lembra Azazel”, eu disse. Todos me olharam. Fabrizia

pediu que eu explicasse, então eu continuei: “É uma lenda. O primeiro

entre os Luciferite. Foi um traidor que tentou matar o Arcanjo Rafael, mas

foi aprisionado no Inferno por sua afronta. Se tivéssemos um Sancti entre

nós, ele poderia explicar melhor”.

“Mais uma vez, isso é apenas uma suposição”, interrompeu Al-

Malik. “E não explica sobre o primeiro aprisionado”.

“E havia um velho depois. E ele gritava coisas sem sentido”,

Ansgar disse, sendo complementado por Karina: “Ele estava desesperado,

fora de si. Tive dó dele. Era como se sofresse”.

Lo Wang me fitou, dizendo: “Lembro claramente:tudo ficou escuro

de repente, mas era como se ele próprio se destacasse nas trevas”.

“Talvez ele seja um Abdal”, revelou Al-Malik. “Um homem santo,

e o objetivo de nosso inimigo é encontra-lo. Um tigre veio busca-lo,

quando caía uma tempestade”.

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“O tigre não era um tigre”, disse Karina, falando muito baixo,

como se sentisse medo.

“E a tempestade não era natural, era algo maligno”, completou

Fabrizia, observando Karina.

Nos entreolhamos. “Alguns Perquiratores, eu inclusive, sonharam,

em meados de 1999, com um tigre. Havia uma tempestade de fogo. O tigre

surgiu das chamas. Foi um pesadelo profético, mas jamais encontramos um

sentido para ele”.

“E, por fim, houve guerra”, respondeu Ansgar. “Eu lutei na Quarta

Grande Guerra, e aquele conflito no sonho me lembra as batalhas pelas

quais passei. Foi o único momento do sonho em que tive medo”.

“Para mim, nada me assustou mais do que o urro”, Absolon.

Lo Wang, eu e Fabrizia concordamos com Absolon. Então, eu

disse: “Esse não foi um urro qualquer. Eu tenho certeza... era o urro de um

dragão. O urro de Leviathan”.

Todos me observaram. Al-Malik perguntou: “Como pode ter

certeza?”.

“Mesma forma que Fabrizia pôde sentir algo na tempestade e

Karina soube que o tigre não era um tigre. Eu simplesmente sei. Para vocês,

o urro pode ter ecoado no sonho, mas para mim é como se Leviathan

estivesse ao meu lado enquanto eu dormia. Imagens da primeira guerra,

imagens de sangue derramado e o uivo. Tudo nos leva a Leviathan”.

Ansgar perguntou: “E a imagem de Cristo?”.

“Não sei”, respondi, “apenas vocês tiveram essa visão, eu não.

Talvez seja outra pista que ainda tenhamos que encontrar. Mas no

momento, acho que precisamos investigar Libraria”.

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Al-Malik me interrompeu novamente. “Por que acha isso?”.

“Não ouviu o que eu disse? Para mim, era como se o urro viesse de

algo ao meu lado, algo tão próximo que eu pude sentir sua respiração. E,

quando aquilo urrou, Libraria tremeu”.

Todos novamente me olharam. Eu completei meu discurso:

“Conversei com outros Perquiratores. As profundezas de Libraria sofreram

mais com os tremores. E eu pude sentir, por um instante, enquanto dormia.

Há algo lá. Algo vivo e pulsante, urrando com tanta força que fez o chão

tremer”.

“Então, o que faremos?”, perguntou Absolon, um tanto

preocupado.

“Vamos descer às profundezas de Libraria”, respondi. “Vamos

encontrar a fonte dos nossos pesadelos”.

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Capítulo 3: As Entranhas de Libraria

Talvez fosse a primeira vez em séculos que o som de tantos passos

ecoava por aqueles corredores. Ao contrário das passagens superiores, as

profundezas de Libraria possuem corredores mais estreitos e grosseiros,

pouco iluminados e mal ventilados. Nós sete descíamos aquelas

profundezas, que pouco a pouco pareciam mais cavernosas. A

luminosidade tornava-se mínima. Não demorou para que Karina pegasse

uma lanterna, enquanto os olhos dos demais, com exceção de Fabrizia e

Absolon, brilhavam sutilmente, demonstrando que viam perfeitamente

mesmo na escuridão.

“Você pode ver na escuridão, Karina, disso eu sei. Por que usar

uma lanterna?”, perguntei.

“Não me sinto confortável, não é natural. Prefiro uma luz de

verdade. Confio mais assim”. Fabrizia, ouvindo aquilo, imediatamente

concordou. Ainda que a lanterna pudesse nos denunciar para o que quer

que pudesse habitar aquelas profundezas, resolvi não contraria-la. Sua

pureza de alguma forma me era confortável.

Lo Wang ia à frente, alguns metros adiante do resto do grupo. O

resto do grupo mantinha-se unido, mas na frente iam Ansgar e Al-Malik.

Eu, Karina e Fabrizia estávamos no meio, enquanto Absolon permaneceu

atrás. Seus olhos sem brilho indicavam que era o que menos percebia as

coisas na escuridão, tendo que se guiar pela lanterna de Karina. Por isso,

ele manteve-se sempre próximo a ela.

“Tem certeza que é aqui que devemos começar a busca?”,

perguntou Al-Malik. “Libraria é um reino gigantesco, cujas profundezas

não devem ter fim. Por que começar por aqui?”.

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“Instinto, meu caro Malaki”, respondi, “Pois o urro estava

próximo de mim, e apenas através da biblioteca de Sans Vidya poderíamos

chegar a esta parte das catacumbas. Se vocês todos foram enviados a mim,

então imaginei que a solução seria o caminho ao qual leva Sans Vidya”.

“Um pensamento perspicaz”, murmurou Al-Malik. Pude notar que

ele estava um tanto ansioso.

Quase uma hora tinha se passado desde que deixamos meu lar para

trás. Não sabia o quanto tínhamos descido nas profundezas de Libraria, mas

finalmente chegávamos às porções mais grosseiras da Cidade de Rocha. Os

ladrilhos e corredores bem talhados tinham ficado para trás, o que estava à

nossa frente era apenas um vasto complexo de cavernas e túneis escuros. E,

naquele ambiente, eu pude sentir algo pulsar. Algo fraco, distante, mas que

trazia calafrios à minha espinha.

“Eu não gosto deste lugar”, murmurou Absolon, cruzando seus

braços, nervoso, “isto faz mesmo parte de Libraria?”.

“Tecnicamente não”, respondi, “Sans Vidya é uma das bibliotecas

mais profundas. Os corredores que atravessamos são considerados o fim de

Libraria. Estas cavernas, dizem, espalham-se pelas profundezas de toda

Libraria, mas não fazem parte dela”.

Ansgar, com sua espada em mãos, riscou a parede, talvez para

aliviar um pouco a tensão distraindo-se com algo. “Por que Veritatis criaria

este lugar?”, ele perguntou.

“Talvez estas cavernas sejam os restos de Libraria que jamais

foram aproveitados. Ou talvez elas sustentem toda a cidade”, respondeu

Ansgar.

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“Ou talvez estas cavernas tenham sido construídas para abrigar

algo”, disse Fabrizia, alertando para uma possibilidade que eu mesmo não

gostaria de considerar. Ela olhava ao redor, seus olhos começaram a brilhar

num tímido tom azulado, para também ver na escuridão. “Há algo aqui

embaixo. Não sei o que, mas me sinto... desconfortável”.

Olhávamos ao redor, caminhando lentamente. Os caminhos se

dividiam, tornando mais difícil a busca. Voltei-me para Karina: “Você pode

indicar o caminho?”.

“Eu nem sei o que estamos procurando”, Ela me fitou por um

instante, incerta de sua habilidade. “Mas acho que é por ali”, disse,

apontando uma das muitas cavernas. Por ali prosseguimos.

Lo Wang prosseguiu na frente. Estávamos em silêncio, pude sentir

minhas mãos frias devido à tensão. Caminhamos por um longo corredor de

rocha que descia ainda mais nas entranhas da terra quando, por um instante,

pude ouvir o eco de um rosnado, um som muito baixo, mas inconfundível.

Naquele instante, Wang, à frente de todos sacou a espada, uma lâmina

negra e curva que carregava em sua cintura, abaixou-se e olhou ao redor,

murmurando: “Ouvi o som de passos”.

Ansgar também ergueu sua espada, incendiando-a em Chamas

Celestiais. A forte luz azulada inundou o túnel em seguida. Al-Malik puxou

sua arma, uma cimitarra, mas se contentou em permanecer atrás do

Venator. Karina e Absolon estavam nervosos e assustados, permanecendo

próximos a mim. Eu mesmo estava hesitante. Fabrizia, também nervosa,

parecia concentrar sua energia celestial.

Permanecemos parados, silenciosos, esperando que algo surgisse à

nossa frente. O rosnado repetiu-se. Como antes, era um som extremamente

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baixo, abafado como se tivesse sido emitido a quilômetros de distância.

Mas então, ouvimos em seguida passos tímidos e calmos. Sons de sapatos

tocando o chão de pedra, ecoando pelos túneis subterrâneos.

Então, adiante, vimos uma luz, inicialmente tímida, mas cuja

intensidade aumentava pouco a pouco, conforme os passos pareciam mais

próximos. Vindo da escuridão e portando um lampião, notamos um

homem. Ele vestia um manto cinzento, de barba curta e cabelos lisos e

compridos, totalmente brancos. O rosto, ofuscado pelas sombras do

formadas da luz do lampião, me era familiar, mas não pude reconhece-lo de

imediato. “Quem é você?”, Ansgar, o Venator, interrogou gritando,

enquanto Lo Wang apenas permanecia imóvel, empunhando a arma como

um animal próximo a dar seu bote.

Eu mal pude notar devido a meu próprio nervosismo, mas o homem

era um Celestial, maior do que qualquer um de nós ali presentes. Al-Malik,

porém, notou o Coro do recém-chegado e, imediatamente, ajoelhou-se no

chão, guardando sua arma. “Senhor, pedimos desculpas por termos

erguidos nossas armas a você”.

“Não se preocupem, vocês têm razão por estarem tão assustados”,

ele disse enquanto se aproximava. Sua voz era calma e até mesmo

reconfortante. “Eu mesmo estou assustado”, ele completou. Quando se

aproximou o suficiente, passando por Lo Wang, que ainda o olhava

desconfiadamente, pude finalmente ter a certeza de quem era. Não

contendo minha surpresa, apenas deixei escapar seu nome: “Senhor

Urias!”.

Todos se voltaram a mim, mas foi Absolon quem primeiro

indagou: “Você o conhece, Senhor Nicodemus?”.

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“Sim, eu o conheço. Ele é um Antigo que vive próximo a Sans

Vidya, mas ainda mais profundamente em Libraria do que minha própria

biblioteca. Seu lar também pode ser usado para chegar a estes túneis”.

“Eu sou o Arcanjo Urias, Serafim Primordial, e amigo pessoal de

alguns dos membros do Conselho Veritas. Conheço o Arcanjo Nicodemus

há alguns anos. Meu lar está nos limites de Libraria, próximo a estas

cavernas. Depois dos tremores, não pude deixar de tentar descobrir o que

houve. Perdoem-me, não era meu desejo assusta-los”.

“Não há problema algum”, disse Karina. “Sinto-me mais tranqüila

com mais um Arcanjo nos acompanhando”. Absolon e Ansgar

concordaram. Lo Wang aproximou-se, guardando sua espada, e abaixando

a cabeça em sinal de respeito, perguntou: “Com todo o perdão, honrado

ancestral, mas há algo que tenha encontrado nestas profundezas?”.

“Venham comigo”, disse Urias, tomando a frente do grupo. Seu

lampião iluminando o caminho, continuamos a percorrer as cavernas.

Conforme a presença e a sensação de medo aumentavam, Urias falava:

“Tenho sentido isto há anos, até mesmo relatei isto a um amigo entre os

Veritas. Sempre houve algo oculto nas profundezas de Libraria... mas

nunca foi tão forte”.

“Tem idéia do que seja?”, perguntei.

“Não”, respondeu Urias, “mas às vezes ouvia seus rosnados ou

urros distantes, atormentando meus momentos de sono ou meditação. Mas

sempre foram sons distantes demais. Um dos motivos pelos quais

permaneci nessas profundezas foi para vigia-las. Sempre tive medo do dia

em que isto poderia escapar”.

“Escapar?”, perguntei.

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“Não nota? Os urros são de frustração, desespero. O que quer

que exista nessas profundezas está sofrendo muito”.

“Eu notei isso também”, disse Karina, timidamente. “Mas ainda

assim tenho medo. Não é algo natural”.

“Não, não é. Venham, é aqui”, Urias disse, quando chegamos a

uma câmara um pouco mais espaçosa, com paredes de rocha sólida, na

mais absoluta escuridão. As luzes da lanterna e do lampião criavam

sombras assustadoras eram um alívio neste lugar de trevas. Ali, diante de

nós, a parede estava rachada, revelando uma abertura. Diversas rochas

espalhavam-se pelo chão, como se algo tivesse explodido, abrindo a

rachadura e expelindo pedaços de rocha para a câmara. Urias continuou:

“Por muitos anos, eu percorri essas cavernas, sei me guiar perfeitamente

por elas. Mas esta câmara é nova. A presença é mais forte ali. Tentei

adentrar mais, mas é labiríntico, temi me perder. Estava retornando, quando

os encontrei”.

Karina, ainda que assustada, tomou um passo à frente. “Eu acho

que posso guiar-nos”. Ela me olhou, insegura, mas Absolon então tocou seu

ombro, dizendo: “Não se preocupe, você irá conseguir. Aonde disser que

precisamos ir, nós iremos”. Ansgar e Al-Malik confirmaram. Ela sorriu

agradecida, mas sem esconder seu nervosismo. Ansgar, Al-Malik e Wang

uma vez mais desembainharam suas armas. Novamente, Fogo Celestial

iluminou a lâmina do Venator, adicionando uma luz pura ao local.

Timidamente, Karina adentrou a fenda, seguida de perto pelos três

guerreiros, enquanto os demais foram logo em seguida, junto comigo.

Passo a passo, caminhávamos agora por terreno totalmente

desconhecido, passagens apertadas que, muitas vezes, permitiam que

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apenas um passasse por vez. O terreno era ainda mais irregular,

descendo constantemente, dando voltas. Agora, até mesmo Urias

permanecia silencioso. E, ao conforme descíamos ainda mais nas

profundezas, eu podia sentir aquilo se tornar mais forte.

O ar tornava-se mais seco e mais denso. Sentíamos oprimidos,

como se as paredes e o próprio ar nos pressionassem. Minha respiração

parecia mais pesada, e a visão era obscurecida, como se as trevas se

recusassem a recuar diante das luzes. Mesmo meus poderes não podiam

penetrar profundamente na escuridão. O som de nossos passos ecoava, mas

então foi abruptamente interrompido por um rosnado baixo mas duradouro.

Por um instante, podíamos ouvir o som de respiração. Eu suava frio, notei

que Karina tremia e Absolon olhava nervosamente para tudo ao redor. Al-

Malik murmurava orações de proteção, enquanto Lo Wang permanecia

sempre próximo a Karina, empunhando a arma para protege-la como se a

qualquer momento algo pudesse ataca-los. Fabrizia permanecia próxima a

mim, como se buscasse proteção, e Urias constante e lentamente mudava a

posição do lampião, para que a luz pudesse alcançar todos os pontos ao

redor.

Então ocorreu um leve tremor. Sentimos pó cair do teto, mas era

como se ele desabasse. Karina gritou naquele instante, quando, junto ao

tremor, ouvimos o urro, mais alto do que jamais tínhamos ouvido-o antes.

E um calor anormal, junto a uma presença claramente infernal, inundou os

túneis. O ar que veio das profundezas, impulsionado pelo urro, apagou as

chamas celestes. Eu me sentia apavorado, pude sentir meu coração

disparar, uma sensação que há décadas não experimentava.

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Karina olhou para trás. Estava quase a ponto de desesperar, seus

olhos lacrimejavam. Fabrizia correu até ela e a abraçou. “Calma,” ela disse,

“tenha calma”. Absolon também se aproximou delas. “Melhor vocês

ficarem atrás da coluna, junto a Urias e Nicodemus.” Ele também estava

amedrontado, mas esforçava-se para manter o controle. Ansgar tomou a

dianteira, reacendendo as chamas celestes. “Se me atacarem e for algo

grande demais para que possamos parar, não hesitem em me abandonar

aqui”. Ele estava ofegante, mas sua bravura vencia o medo. Ele continuou o

caminho. Al-Malik não hesitou em segui-lo de perto, mas também

sussurrou: “Que Deus nos proteja”. Lo Wang chamou-nos para

prosseguirmos. Com os três bravos guerreiros à nossa frente, sabíamos que

deveríamos continuar.

E, a cada passo, o ar opressivo parecia tornar-se mais forte. Pude

ouvir novamente aquela respiração. Olhei então para o lado espiritual, e

notei uma névoa densa e negra nos cercando. Trevas espirituais, que se

dissipavam nas proximidades da espada flamejante de Ansgar.

Então, o estreito corredor de rocha encontrou uma câmara, menor

do que a anterior, mas grande o suficiente para que o grupo pudesse

adentra-la. Karina, Absolon e Fabrizia permaneceram na entrada da

câmara, enquanto os demais começaram a observa-la. As luzes da lanterna,

das chamas e do lampião iluminaram suas paredes e pudemos ver escritos

fabuláricos. No centro do câmara, um pequeno altar, sobre o mesmo um

antigo jarro de barro, um pouco rachado. E aquela presença inconfundível

se tornava mais forte do que nunca. Não havia mais caminho algum a

seguir, mas podíamos sentir aquela respiração, aquele rosnar. Um rosnar

não físico, mas espiritual, emanado do jarro.

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Page 39: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Intrigados, caminhamos pela câmara. Eu observei as paredes,

preenchidas por palavras fabuláricas de poder, formando um cântico: um

rito de aprisionamento. Urias parecia espantado. Então, Al-Malik se

aproximou do jarro, lendo uma inscrição no altar em que ele se encontrava:

“Aquele que aqui chegar, peço humildemente que não mova esta jarra, pois

as essências do sangue, da guerra e da morte nela estão guardadas”.

Observei o reino dos espíritos, e vi a névoa negra escapar pelas

rachaduras do jarro. Nas proximidades do mesmo, a névoa às vezes tomava

formas e se retorcia, às vezes formando bocas e olhos. Olhos que nos

observavam. Bocas que respiravam e rosnavam. Tão perturbadora era a

visão, que decidi voltar a ver apenas a região física do local. Aproximei-me

do jarro, corajosamente tocando-o. Ouvi Urias tentar me impedir, mas era

tarde. Algo invadiu meus pensamentos.

Gritei. Frustração, dor, urros. Senti minha pele queimar por um

instante e afastei imediatamente minha mão daquele objeto profano. E

todos ouvimos o urro ecoar novamente. Caí de joelhos, respirando

ofegante, e abri os olhos, apavorado. Urias e Al-Malik correram até mim.

Todos os demais voltaram suas atenções para mim. “O que houve?”,

perguntou Urias.

“É ele”, respondi, tendo respostas inundarem minha mente.

“Ele quem?”, perguntou Al-Malik, enquanto Urias calou-se

imediatamente, como se soubesse de quem eu falava.

“Sempre me disseram que Libraria foi inspirada em Alexandria, na

grande biblioteca. Isto é uma mentira”, respondi.

“Não estou entendendo”, Al-Malik disse. “Explique isso melhor”,

pediu Ansgar.

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Page 40: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Urias foi quem respondeu: “Libraria foi criada após a Primeira

Grande Guerra”. Então, completei: “Libraria foi criada para ser uma

prisão”, disse, levantando-me e fitando aquele jarro. “A prisão de

Leviathan”.

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Page 41: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 4: O Conselho Veritas

Retornar aos corredores iluminados de Libraria era como uma

benção, após aqueles momentos na escuridão. Ainda abalados pela

experiência, nós agora buscávamos o conforto de Sans Vidya. As faces de

todos demonstravam preocupação. Até mesmo o sempre calmo olhar do

Arcanjo Urias estava diferente, distante. Estávamos silenciosos, cada um

perdido em seus próprios pensamentos. Eu mesmo me perguntava o que

fazer a seguir.

“Gostaria que permanecessem em Sans Vidya um pouco mais,

meus amigos”, eu disse, assim que chegamos à biblioteca. “Eu preciso

conversar com meus superiores. As descobertas que fizemos hoje foram

graves. Por favor, descansem e tentem relaxar”.

“Vai conversar com o Conselho Veritas, Nicodemus?”, perguntou

Urias. Eu balancei a cabeça positivamente. “Então, esperarei aqui, pois

quero muito saber qual será a decisão deles”, continuou.

Karina sentou-se numa cadeira assim que chegamos a meu

escritório. Olhando-me, ainda abalada pelo medo que sentira nas entranhas

de Libraria, perguntou-me: “O que é esse Conselho Veritas, Philipe?”.

“São os líderes dos Veritatis Perquiratores, moça”, respondeu

Ansgar, que também parecia um tanto abalado. Eu continuei a explicação

de Ansgar: “São quatro dos aprendizes de Grande Veritatis em pessoa.

Cada um representa uma estação do ano, e são os homens e mulheres mais

sábios que conheci em toda a minha vida. Eles saberão nos guiar”. Então,

voltando-me a todos, disse: “Por isso, esperem-me aqui. Sintam-se em casa,

tentem relaxar. Devo demorar um pouco para voltar”.

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Page 42: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Adentrei meus aposentos em Sans Vidya, caminhando pelos

salões subterrâneos, ricamente adornados e amplamente iluminados. Em

comparação à claustrofóbica escuridão das profundezas, estar aqui era

como estar seguro e protegido. As rachaduras e objetos quebrados pelos

tremores, porém, eram um anúncio de que talvez essa escuridão possa vir a

engolir até mesmo meu refúgio.

Então, ao chegar a meu quarto, abri a arca na qual guardo meus

pertences mais valiosos. Ali, peguei uma túnica cinzenta, adornada com

símbolos fabuláricos de conhecimento e sabedoria. Vestindo-a e cobrindo-

me também com uma capa e capuz negros, dirigi-me à sala escura, que

normalmente mantenho trancada. A sala de ritos.

Fechando a porta atrás de mim, permaneci na escuridão. “Como

uma benção divina, que afasta as trevas e invoca a luz, invoco a chama do

conhecimento. Eterno e sagrado protetor, guiai-me os passos que me

levarão à divindade”, proclamei, então com o dedo indicador da mão

direita, fiz o símbolo do fogo, para que as velas do círculo se acendessem, e

foi o que fizeram. O círculo de transporte foi exposto nas trevas, revelando

suas formas e símbolos. Cautelosamente, para que as chamas não tocassem

a túnica, adentrei o círculo. Fechando meus olhos, proclamei: “Leve-me

àqueles que me mostrarão o caminho”.

Ao abrir os olhos, vi-me novamente no círculo delimitado por

chamas, mas este era maior, quatro ou cinco vezes maior do que aquele em

meu lar. As chamas iluminavam grandes estátuas de anjos com suas asas

abertas. Suas faces rochosas, obscurecidas por mantos pesados, fitavam o

centro do círculo. Diante de mim, estava o caminho e o grande portão.

Caminhei, passo a passo, rumo a ele, e então, segurando a argola de metal

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Page 43: Magna Veritas - Tiago José Moreira

na boca do gárgula ali esculpido, bati na porta três vezes. Os sons das

batidas ecoaram.

“Apresente-se”, disse a voz que ecoou. “Sou o Arcanjo Philipe

Nicodemus, Guardião e Administrador da Biblioteca do Conhecimento

Cristalino de Sans Vidya, Querubim entre os Veritatis Perquiratores”,

respondi em voz alta e com firmeza. Os portões se abriram e, além dos

mesmos, um Arcanjo me esperava, vestindo uma túnica dourada e negra.

O grande corredor adiante era iluminado por milhares de velas,

presas às paredes e às grandes colunas. Pude notar as sombras de vários

outros encapuzados caminhando por aqueles corredores, alguns carregando

pilhas de livros, entrando e saindo pelas várias portas laterais. “Eu sou o

Arcanjo Evaniel Onísofos, Guardião da Biblioteca de Cristal, Serafim entre

os Veritatis Perquiratores”, apresentou-se o Arcanjo. “O que desejas aqui,

Philipe Nicodemus?”, perguntou.

“Vim falar com o Conselho Veritas ou com pelo menos um dos

Veritas, pois trago notícias das mais graves”, respondi.

“Os Veritas estão de fato reunidos, prezado irmão, mas não

desejam receber ninguém”.

“Diga-lhes, pois, que encontrei aquilo que fez Libraria tremer”.

Os olhos do Arcanjo Evaniel arregalaram-se. “Venha, Philipe

Nicodemus”, ele disse, “eles estão esperando você”. Dando as costas para

mim, Evaniel prosseguiu pelo longo corredor. Eu o segui de perto e, pelo

caminho, pude notar que projetávamos centenas de sombras, devido às

múltiplas velas. Caminhávamos pelo corredor das trevas da dúvida e da luz

do conhecimento, até alcançarmos o portal cinzento. Dois guardas, trajando

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Page 44: Magna Veritas - Tiago José Moreira

armaduras negras e grandes lanças, que se cruzavam à nossa frente e

barravam nosso caminho.

“Quem deseja encontrar o Conselho?”, perguntou um dos guardas.

“Ele é Philipe Nicodemus. Helammelak o espera”, respondeu

Evaniel. Os guardas ergueram suas lanças, permitindo a minha passagem.

Assim que me aproximei do portal cinzento, o mesmo abriu-se. Evaniel

permaneceu onde estava. Adentrei na sala obscurecida do Conselho.

Ali, apenas duas velas eram fontes de luz. Permaneci entre as

mesmas, tentando fitar, a olhos nus, os limites do aposento. Nada havia

senão escuridão eterna, representando todos os mistérios que precisam ser

compreendidos. Então, ouvi passos, e mais velas acenderam-se, iluminando

um altar adiante, e sobre o altar uma bancada. A pouca luz fazia parecer

que eu e o altar estávamos flutuando num vazio eterno de escuridão.

Sentados à bancada, diante de mim, fitando-me, estavam os quatro

conselheiros, em suas Formas Angelicais. Quatro seres de aparência frágil e

idosa, mas cujas Formas Angelicais emanavam luz com vigor e

intensidade. Eles vestiam mantos brancos, e a luz que emitiam os destacava

nas trevas.

Primeira entre eles era Melkel, Arcanjo da Primavera e da

Sabedoria, sorrindo gentilmente, seus olhos cheios de vida, contrastando

com a aparência idosa.

O segundo dos Veritas era Helammelak, Arcanjo do Verão e das

Profecias. Com as mãos unidas, os cotovelos apoiados na bancada, e um

olhar sério, que parecia analisar-me.

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Page 45: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Em terceiro, vi Meleyal, Arcanjo do Outono e das Lembranças.

Em seus olhos, vi preocupação, e notei que se perdia em pensamentos

distantes.

Por último, fitei Narel, Arcanjo do Inverno e da Comunhão. A

única que não me fitava diretamente, Narel ao invés disso mantinha-se

cabisbaixa.

Helammelak levantou-se, abrindo suas asas. “Arcanjo Philipe

Nicodemus”, ele disse, “tu vieste a nós para trazer-nos uma notícia.

Humildemente peço, por favor, que compartilhe seu conhecimento

conosco”.

E assim comecei a descrever tudo: o sonho, o tremor, as sensações

de medo e angústia nas profundezas, o encontro com Urias e, finalmente, a

câmara nas entranhas de Libraria e o mal que havíamos encontrado ali. E,

enquanto relatava tudo, os quatro Veritas fitavam-me e analisavam-me. “Eu

estou certo do que vi ali, quando toquei o jarro. O dragão, Leviathan, está

aprisionado lá. Por algum motivo, Veritatis o trouxe para o Éden, e

construiu Libraria para aprisiona-lo”, revelei.

“É ainda cedo para chegar a tal conclusão”, discordou Meleyal,

continuando: “O que você sentiu não pode ser Leviathan. O Lorde do

Sangue está morto. O demônio foi destruído há dois milênios, vítima de

Gabriel em pessoa”.

“Eu tenho certeza do que senti, Senhor Meleyal”, respondi.

“E você já viu Leviathan antes, Arcanjo Nicodemus?”, perguntou

Narel. “Como pode ter certeza, se sequer conhece Leviathan, a não ser

através de seus sonhos? Como pode afirmar algo que não sabe? É ainda

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cedo para tirar conclusões. Poderoso Gabriel afirma ter destruído a

essência de Leviathan, como podemos negar a afirmação de um Primus?”.

Percebendo minha própria tolice, abaixei minha cabeça. Eles

estavam certos: eu fui precipitado em minhas conclusões. Pelos sonhos,

liguei o rugido e a imagem do dragão a Leviathan. Mas se não for ele?

Então, Helammelak uma vez mais falou: “Acredito estarmos diante

de um momento crucial de nossa história, caro Nicodemus. Teus sonhos e

teu destino podem vir a decidir o destino de todos nós. Por isso, também

não sejas tão rápido em abandonar suas afirmações. Embora não possamos

crer que seja Leviathan a presença que encontraste, não podemos afirmar

que não haja uma ligação entre o Lorde do Sangue e este jarro. Isto é algo

que ainda precisamos investigar”.

Erguendo novamente minha face e fitando-os, vi Narel levantar-se.

“Nicodemus, precisamos de tempo para investigar os acontecimentos. Dê-

nos sete dias. Dentro de sete dias, retorne aqui e traga todos os seus

companheiros, pois apresentaremos uma conclusão”.

“Sim, minha senhora. Ficarei honrado se puderem nos revelar o que

quer que descubram. Estamos todos ansiosos para compreender esses

acontecimentos”, respondi.

“Atenção, porém, Nicodemus”, disse Narel, com uma voz

preocupada, “Talvez nós apenas não cheguemos à verdade. Avise seus

companheiros que, provavelmente, a missão de vocês ainda não chegou ao

fim”.

“E peça-lhes que mantenham segredo sobre tudo o que viram, por

favor, pelo menos até que tenhamos chegado a uma conclusão”,

acrescentou Meleyal.

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“Sim, senhores. Que o conhecimento de Veritatis ilumine nossos

caminhos”, respondi, e pus-me a sair dali. Com a mente cheia de dúvidas,

agora tentando descobrir o que realmente estava aprisionado naquele jarro,

retornei pelo corredor de luz e sombras, rumo ao círculo de transporte.

Assim que retornei a Sans Vidya, trouxe aos demais o pedido dos

Conselheiros. Pedi que nos reuníssemos dali a sete dias. Urias, porém, disse

que não poderia vir, pois não havia sido escolhido pelos Guardiões. Ele

disse que estaria conosco, mas que não visitaria o Conselho. Por outro lado,

todos os demais concordaram em voltar em uma semana.

E assim passaram-se os dias. Sem ver nenhum dos outros seis por

este período, eu ainda tentava decifrar os sonhos e responder as questões.

Procurei por livros que pudessem iluminar minhas idéias, mas infelizmente

nada pude encontrar. Nenhum sábio e nenhum tomo puderam elucidar

essas questões. Nada jamais trazia a possibilidade de que algo estava

aprisionado nas profundezas de Libraria. E, da mesma forma, nada poderia

tirar de minha mente a idéia de que Grande Veritatis em pessoa construiu

essa cidade para ser uma prisão.

Ao fim do sexto dia, embora meu corpo celestial ainda estivesse

cheio de vigor, minha mente estava cansada. Seis dias sem dormir,

buscando respostas e convivendo com as lembranças dos sonhos que

vivenciei e das sensações que senti nas profundezas, haviam deixado-me

exausto. Sabendo do importante encontro que se seguiria no dia seguinte,

dei-me o luxo de descansar pela primeira vez desde que tudo isso começou.

Meus sonhos, porém, não me trouxeram conforto.

No momento de inconsciência, uma vez mais senti algo tocar

minha mente. Vi uma grande praça, em uma imensa cidade cheia de

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Page 48: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mesquitas e esplendor. E ecoaram, trazidos pelo vento, gritos de dor.

Pessoas estavam sofrendo. Um rosnado inconfundível se seguiu, um rosnar

de tigre. E vi paredes de pedra manchadas com sangue. Um tigre feroz

matando pessoas, uma a uma; suas garras e presas dilacerando carne e

partindo ossos; gritos de morte e horror. Então, o tigre correu por um

imenso deserto, raios e trovões o seguiam, e sua sombra projetava uma

escuridão ilimitada.

A passos rápidos, o animal atravessou a vastidão árida, rumo a uma

grande montanha. Como se visse através dos olhos do animal, o vi escalar

aquela montanha, sem que nenhum obstáculo pudesse desacelerar seu

progresso. E, do alto da montanha, contemplei uma cidade cujas glórias do

passado já haviam se extinguido, em cujas ruas dois irmãos atacavam-se

com paus e pedras. E senti pulsar nos subterrâneos daquela cidade um mal

muito grande, que inspirava a violência nas ruas. E vi ali uma via

manchada com sangue. E vi sombras do passado percorrendo-a, homens

carregando cruzes nas costas e espinhos na cabeça, sob a vigília de oficiais

romanos e diante de uma multidão feroz, que se deliciava e se horrorizava

com a visão dos condenados à crucificação.

Raios e trovões seguiram-se, conforme a cidade de antigas glórias

foi encoberta por nuvens escuras. E o tigre rugiu, fitando o horizonte. E vi,

além do horizonte, além do mar, Cristo de braços abertos, sob seus pés um

velho caído e fraco, o mesmo velho insano e desesperado de meu primeiro

sonho. Ele gritava, pedia para que afastassem dele aquele animal. O tigre

urrou novamente. O velho gritou em desespero.

Então, Cristo ardeu em chamas, das chamas nasceu Metatron, em

sua forma dourada, com suas asas flamejantes abertas e seus braços

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estendidos como se desejasse proteger aquele homem. E sua voz ecoou

em minha mente uma centena de vezes: “Este homem possui todas as

respostas. Este homem deve ser protegido”.

Despertei. Com a mensagem de Metatron ainda repetindo-se em

minha mente, levantei-me da cama, ofegante. Eu conheço aquelas cidades.

Já estive em ambas. O que é esse tigre? Quem é ele? Porque ele procura o

velho? E que respostas aquele velho pode nos dar?

Foi com esses pensamentos em mente que passei as horas enquanto

esperava que os demais chegassem. Lo Wang. Karina Ariel. Adb Al-Malik.

Achille Absolon. Armin Ansgar. Fabrizia. Um a um, todos vieram. Nas

faces de todos, pude notar o misto de curiosidade e medo, desejo de

encontrar respostas e temor do que pode estar acontecendo. Nisso, as

angústias e desejos deles se misturavam aos meus.

Levei-os aos meus aposentos, onde lhes entreguei túnicas e mantos

como os que eu usara para encontrar o Conselho. “Vistam isso, por favor”,

eu pedi, “os Veritas prezam formalidade”. Fabrizia e Karina deixaram o

quarto para vestirem-se em outro cômodo, enquanto o resto de trocou de

roupa ali mesmo. Quando todos estávamos prontos, encaminhei-os à sala

escura, onde repeti todo o ritual para que fôssemos levados ao Conselho.

“É preciso mesmo isso tudo?”, perguntou Fabrizia, enquanto eu

recitava as palavras no círculo de transporte.

“Não o desconcentre”, pediu Absolon. “Não entendo nada de

magia, mas se ele acha preciso, então é preciso”.

“Fechem os olhos”, pedi ao fim das palavras, e assim todos os

fizeram. “Abram-nos”, pedi novamente, e, ao olharem em volta, todos

estranharam surgir às portas da Biblioteca de Cristal, entre as estátuas

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encapuzadas, diante do grande portão. Pus-me à frente do grupo e bati à

porta. Desta vez, esta abriu-se sem que fosse preciso me identificar.

Arcanjo Evaniel Onísofos nos esperava.

Caminhamos uma vez mais pelo corredor do conhecimento e da

dúvida, que estava estranhamente silencioso naquele dia. Guiados por

Evaniel, nós sete caminhávamos silenciosamente. O silencio fora quebrado

pelo sussurro de Ansgar: “Que tipo de lugar é esse?”.

“Os corredores da dúvida e do conhecimento”, respondi. “O centro

da Grande Biblioteca de Cristal. Além desses corredores, estão as maiores

bibliotecas conhecidas. São centros de luz e conhecimento, mas os

corredores que as envolvem representam a dúvida. Pois é pela dúvida que

se busca respostas”.

“Aqueles do Bayt’Umma Al-Shabah sempre gostaram de

simbologia”, comentou Al-Malik, referindo-se à facção Malaki dos

Perquiratores. “Eles acreditam que os símbolos são uma forma fácil de se

compreender as criações de Alá”.

“A escrita e a linguagem são formados por símbolos”, acrescentou

Evaniel, até então calado, “e da mesma forma, toda magia e toda crença se

baseiam em símbolos. Nossa própria visão simboliza a realidade de forma

que possamos compreende-la. Por isso, Grande Veritatis valorizava o

simbolismo. ‘Tudo que não possui um significado não tem razão de

existir’, dizia ele, segundo os velhos escritos”.

Então, diante do portão cinzento, Evaniel parou. “É aqui”, ele disse

aos demais. Os guardas já estavam preparados para nossa vinda e deram-

nos passagem. Os portões cinzentos abriram-se conforme caminhamos em

direção aos mesmos.

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Page 51: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Conforme entrávamos no salão de trevas do conselho, ouvi os

comentários de meus companheiros. Desta vez, já sentados à nossa espera,

estavam os quatro Veritas, em suas formas celestiais, adiante.

Os portões cinzentos fecharam-se atrás de nós e nos posicionamos

em meio a um conjunto de 14 velas. Frente a frente com o Conselho, tomei

a iniciativa de apresenta-los a meus companheiros: “Meus amigos, estes

são o Conselho Veritas, aprendizes de Grande Veritatis e coordenadores

dos esforços de meu Clero”.

“É um grande prazer e uma grande honra”, disse Ansgar,

ajoelhando-se. Al-Malik também se pôs de joelhos, sussurrando:

“Agradeço a Alá pela oportunidade de conhecer Arcanjos de tão grande

sabedoria”. Lo Wang abaixou a cabeça em sinal de respeito e também

preparou-se para ajoelhar-se. Os demais se entreolharam e estavam prestes

a repetir o ato, porém Meleyal os interrompeu: “Não precisam se ajoelhar,

aqui, embora nos coloquemos num altar, apenas simbolizamos guias, não

mestres ou senhores. Coloquem-se em pé, e falem conosco de igual para

igual”. Imediatamente os três se levantaram, e os demais passaram a fitar o

Conselho de cabeça erguida.

Dei um passo à frente, questionando os Veritas: “Quais foram as

descobertas que fizeram? Foi elucidada a natureza daquilo que está preso

em Libraria?”.

“Terríveis descobertas fizemos, caro Nicodemus”, respondeu

Helammelak, “pois seus instintos mostraram-se verdadeiros, ao menos em

parte”.

Senti um frio percorrendo minha espinha e fitei os demais. Todos

demonstravam preocupação em suas faces. Voltando-me ao Conselho,

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perguntei: “Então, é mesmo Leviathan que está aprisionado naquele

jarro?”.

“Nada se encontra aprisionado naquele jarro, Nicodemus, nem

sequer trata-se de Leviathan”, respondeu Helammelak, “Como nossas

suspeitas indicavam, Leviathan está morto, tendo encontrado a Obliteração

nas mãos do Arcanjo Gabriel. Por isso, torna-se ainda mais grave a nossa

descoberta”.

“Não entendi”, disse Al-Malik, a princípio timidamente, mas então

erguendo a voz para falar de igual para igual com os conselheiros: “Se não

é Leviathan, então o que é? O que foram os urros, idênticos aos que

ouvimos em nossos sonhos? O que significa tudo isso?”.

A anciã Melkel levantou-se, fitando Al-Malik. “Assim como o

sangue percorre a corpo e nutre a carne, a essência percorre o espírito e

nutre a alma”.

Narel completou o que sua companheira começou a explicar: “Não

se trata da alma de Leviathan, mas de parte de sua essência. Como se o

jarro tivesse coletado o sangue de sua alma. Estão ali lembranças e as

últimas sensações de Leviathan. Todo o ódio, angústia e dor que ele sentiu

ao ser destruído estão naquele jarro, mas ali também está uma grande

parcela de seu poder”.

“E isso pode ser uma ameaça?”, perguntou Ansgar.

“Não”, respondeu Narel, “não há consciência ou malícia naquela

forma. Porém, algo de fato despertou a essência dormente, fazendo-a reagir

e explodir em fúria, causando os tremores. Acreditamos que ela está

reagindo a acontecimentos no reino dos vivos”.

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“Mas, se essa porção de Leviathan não pode fazer nada, porque

está aprisionada no jarro?”, perguntou Lo Wang. “Porque aprisionar algo

que não representa ameaça?”.

“O jarro é a morada dessa essência”, respondeu Melkel,

continuando: “é a única coisa que dá unidade a ela. Sem o jarro, ela se

dissiparia. Mas graças a ele, essa essência se dissipa e retorna, emitindo

partículas de alma que depois se reagrupam no jarro. O jarro é a razão

dessa essência ainda existir, ao invés de tocar e contaminar formas no plano

físico”.

“Mas há um rito de aprisionamento ali!”, interrompi, “Eu vi as

inscrições nas paredes. Há algo aprisionado, não apenas mantido ali!”,

“Sim, há”, confirmou Helammelak, “mas estudamos com afinco a

natureza desse rito. E lá dizia: ‘que aqueles que ferem com o fogo sejam

feridos com o fogo, que a arma de seu irmão seja voltada contra eles, que

nesta câmara esteja a chave e o selo da prisão, que os ossos de um morto

sejam as armas pelos quais serão abatidos os reis das trevas’. Há de fato um

rito, Nicodemus, mas este não afeta o jarro, nem nada que esteja naquela

câmara”.

“Então, o jarro é uma arma?”, perguntou Karina.

“Não, é um selo”, respondeu Helammelak.

“Não compreendo”, disse Fabrizia.

“Nem nós”, acrescentou mais uma vez Helammelak. “Mas algo

compreendemos: durante a Quarta Guerra, as forças do Inferno tentaram

invadir Libraria. Até então, jamais pudemos compreender a razão. Agora,

estamos convencidos de que desejavam este jarro”. O Arcanjo então se

virou para mim: “Libraria não é uma prisão, caro Nicodemus, e sim um

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cofre. Ela foi erguida para proteger o conteúdo deste jarro e o selo que

ele representa. Resta agora saber o sentido disso tudo: o significado do

selo”.

“E como saberemos?”, perguntei.

“Vocês descobrirão”, disse Melkel. Nos entreolhamos, notei que

Karina, Absolon e até mesmo Ansgar estranharam aquela resposta. Então,

Melkel continuou: “É hora de voltarmos à origem de tudo. Tudo isso

começou nas profundezas de Dur Sharrukin, quando Gabriel, Veritatis e

Miguel estiveram face a face com o Lorde do Sangue e o derrotaram. É em

Dur Sharrukin que encontraremos as respostas. É lá que vocês devem

procura-las”.

“Nós?”, perguntou Al-Malik. “Somos simples Celestiais, de todos

nós apenas um é um Arcanjo! O que somos nós para entrarmos naquele

lugar?”. Notei pavor em sua voz, nunca o vira tão abalado, nem mesmo nas

profundezas de Libraria. “Eu não venho daquela região, mas já ouvi as

histórias das maldições e perigos que habitam aquele lugar! Não seria

melhor que Arcanjos ou mesmo os Primi tomassem a dianteira?”.

Ansgar disse então: “Talvez possamos ir, mas precisamos de ajuda

de alguém maior, alguém mais experiente, por favor!”.

Os quatro Veritas levantaram-se em conjunto, mas Helammelak foi

o único que falou algo: “Nós Perquiratores acreditamos nos símbolos, nos

sentidos ocultos em cada movimento da tapeçaria que forma a criação.

Vocês foram escolhidos e, mesmo que não pareçam, são os mais adequados

a esta missão”.

“O que é Dur Sharrukin exatamente?”, perguntou Karina, assustada

após ver a reação dos demais membros do grupo.

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“A fortaleza de Leviathan, aonde as tropas do Éden e do Inferno

chocaram-se na Primeira Grande Guerra. Há lendas que contam que algo

ainda existe lá, o fantasma de Leviathan, que ainda assombra aquelas ruínas

subterrâneas”, respondi, também perturbado com a grandiosidade de nossa

missão.

“As lendas sobre o fantasma podem ser mais do que lendas”,

revelou Meleyal. “Embora suas aparições sejam contos exagerados,

acreditamos que algo de fato sobrevive lá. Se for verdade, o fantasma é a

chave do mistério”.

Fabrizia e Lo Wang permaneceram calados, mas notei que tinham

medo, muito medo. Mesmo o tão frio Tenshi mostrava-se introspectivo

demais, preocupado. Ele fitava o chão, como se tentasse reunir forças para

aceitar seu destino. Absolon falou por eles: “Não acho que sejamos assim

tão capazes quanto vocês dizem”.

“Não?”, perguntou Helammelak. “Não é o que vejo”.

“Vocês têm medo porque não conhecem o que há de grandioso

dentro de vocês”, disse Melkel, sorrindo e estendendo a mão na direção de

Karina. “Karina Ariel, por mais que tema se ferir e por mais que se julgue

um peso para os demais, você é quem poderá guia-los quando estiverem

perdidos”. Então, voltando-se a Absolon, Melkel continuou: “Achille

Absolon, você não se julga capaz de liderar ou mesmo acompanhar

Celestiais mais velhos e poderosos do que você, mas no final, sua coragem

e seu senso de dever poderão vir a destaca-lo sobre todos os do grupo.

Quando o momento decisivo vier, você vai descobrir sua verdadeira força”.

Helammelak tomou a palavra, voltando-se para Al-Malik: “Servo

do Rei, tua capacidade em ver através das mentiras e ilusões é necessária

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nesta jornada. Busca a verdade, pois apenas ti pode vê-la”. Fitando

Ansgar, Helammelak então disse: “Armin Ansgar, tu és movido pela tua

honra e teu respeito pelos demais. Em ti estarás a chama que irá fortalecer a

todos ao seu redor. Não é o poder de um Primus que irá definir uma

batalha, mas a coragem de um homem”.

Meleyal voltou-se para os demais: “Fabrizia, Filha de Ilyap’a, não é

o poder de criar tempestades ou manipular os ventos que irá leva-los à

vitória, mas sim aquilo que você não acredita ter: a força para mudar o

mundo. Tem estado calada até agora, é hora de agir”. Então, os olhos azuis

de Meleyal se encontraram com os frios e negros olhos de Lo Wang: “Lo

Wang, você sabe qual a força que tem dentro de você, e foi capaz de

ensinar lições mesmo àqueles que estavam acima de você. Não subestime

sua habilidade, lute com todas as forças, e isto será suficiente”.

Por fim, Narel me observou, também sorrindo: “Philipe

Nicodemus, já não é a primeira vez que vemos grandeza em você. É um

dos mais jovens entre os aqui reunidos, e ainda assim, de todos os seus

companheiros está em mais elevado Coro. Não o tornamos Arcanjo e

Querubim por compaixão ou simpatia, mas por sua capacidade. Confie em

seus instintos e guie todos rumo à verdade”.

“Não podemos obriga-los”, disse Helammelak, “por isso

gostaríamos que aceitassem sua missão”.

Dei um passo à frente. “Eu irei”, disse, “e chegarei às respostas

para tudo isso”.

Karina tocou meu ombro. “Acho melhor eu ir também, ou você

pode acabar se perdendo naquele lugar”.

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“Podem precisar de proteção”, disse Ansgar, “então minha

espada estará a seu serviço”.

“Se irão entrar na escuridão, então é melhor que eu os acompanhe.

Não quero ter a consciência pesada depois”, disse Lo Wang, estranhamente

sorrindo.

“Não pensem que irão sem mim”, murmurou Fabrizia.

Al-Malik fechou seus punhos e falou em voz alta: “E eu estarei lá

também. Alá estará conosco”.

Então, olhamos todos para Absolon, que ainda estava pensativo.

“Você irá?”, perguntei. “Claro que irei”, ele disse, ainda receoso, “jamais

abandonaria meus companheiros”.

Sentando-se, os Veritas sorriam. “Voltem em duas horas, quando

será noite densa naquela região. Venham vestidos para guerra”, disse

Helammelak.

Enquanto saíamos, Narel chamou-me. Paramos e nos viramos para

os conselheiros, e ela me disse: “Mas ouçam, talvez Dur Sharrukin seja

apenas o começo. Por algum motivo, acreditamos que o tigre em seus

sonhos tenha mais importância do que Leviathan”.

“Eu sonhei com o tigre esta noite”, revelei, “e vi duas cidades”.

“Então, Philipe Nicodemus, siga seus sonhos”.

Eu esperava que os Veritas me perguntassem mais sobre o sonho,

mas ao invés disso levantaram-se e saíram. Então, eu e meus companheiros

continuamos a andar, de volta ao corredor da dúvida e do conhecimento.

Apesar da súbita coragem que nos contagiou, estávamos novamente

temerosos. “Venham vestidos para guerra”, Helammelak disse, indicando

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Page 58: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que não seria uma tarefa fácil ou inofensiva. Foi com este medo nos

incomodando que retornamos a meus aposentos, em Sans Vidya.

Assim que retornamos, nos despedimos novamente. Cada um partiu

para se preparar, tanto física como psicologicamente, para o que estava por

vir. Tomei um banho e, em seguida, apenas vesti roupas mortais: uma calça

marrom, botas e uma camisa branca, de manga curta. Coloquei um

sobretudo e um chapéu, também marrons. O resultado pareceu uma roupa

de detetive, bem diferente dos mantos que costumo vestir no Éden. Embora

eu prefira minhas roupas celestes, achava que aquele traje mortal seria útil,

pois Dur Sharrukin seria apenas nossa primeira parada naquela noite.

Então, esperei pelos demais em meu escritório. Karina foi a

primeira a chegar. Estava de cabelo preso em um rabo de cavalo, vestindo

calças jeans e camiseta branca, com uma jaqueta negra por cima, notei que

surpreendentemente carregava uma pistola num coldre sob a jaqueta, e

levava uma mochila nas costas. “Nunca a vi armada antes, Karina”, eu

comentei.

“Só sei usar armas de fogo, e sou muito ruim mesmo nisso. Só

usarei se achar que realmente preciso”, ela disse.

“E o que tem na mochila?”, perguntei.

“Roupas e outras coisas que sempre carrego. Sou uma eterna

viajante, lembra?”, ela respondeu, sentando-se ao meu lado. “Não vai se

armar, Philipe?”, perguntou, fitando-me nos olhos.

“Este velho não sabe usar armas, minha querida. Porém, os

espíritos obedecem meu chamado e os elementos erguem-se para me

proteger. Nunca fui um combatente, então eles serão minhas únicas armas,

se é que precisarei usa-los”.

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Page 59: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Espero que não precisemos”, confessou.

“Eu também, Karina... eu também...”, desabafei, murmurando.

Ansgar chegou em seguida, silencioso e pensativo. Vestindo

camiseta negra, botas e calça militar, ele carregava sua espada embainhada

na cintura. Também carregava uma sacola nas costas.

Absolon veio depois, vestindo-se de forma parecida com Karina,

vestindo tênis, calça jeans e camiseta negra de alguma banda de heavy

metal. Quando perguntei que armas trouxera, ele respondeu-me: “Na

mochila, tenho uma espingarda, uma bela calibre 12. Não sei o que mais

vou precisar. Só sei que não sou guerreiro”.

Fabrizia, também de sobretudo, vestindo roupas negras por baixo,

tinha prendido o longo cabelo escuro numa trança única. Também usava

uma bandana branca na cabeça, portava uma longa faca de combate na

cintura e uma espingarda nas costas, presa à mochila que portava.

Lo Wang veio em seguida, usando roupas totalmente negras,

incluindo luvas e um capuz. Sua espada negra estava embainhada às suas

costas. No cinto e pela roupa, notei vários bolsos, quase imperceptíveis,

que sem dúvida portariam mais armas. Por fim, sob o braço direito, ele

porta uma sacola, cuja alça passa pelo ombro esquerdo. Silenciosamente,

ele une-se ao grupo.

Abd Al-Malik foi o último. A cabeça estava enfaixada em panos,

formando um turbante branco, e ele vestia roupas pesadas árabes, em tom

pastel, lembrando as figuras de beduínos, com o corpo todo, salvo mãos e

rosto, cobertos pela roupa. Uma cimitarra, maior e mais bela que a sua

arma original, está em sua cintura, e às costas traz uma sacola.

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Page 60: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Estamos todos prontos?”, perguntei. Todos disseram que sim.

Então, resolvi dar um último alerta: “Estamos indo a um lugar em que

nenhum outro Celestial pisou em dois mil anos. Há lendas e boatos sobre

Dur Sharrukin, todos envolvendo sombras do passado. Grande Veritatis em

pessoa proibiu que qualquer um voltasse àquele lugar e as entradas

conhecidas foram lacradas. Uma vez lá, estaremos sozinhos. Esta é a última

chance, para quem quiser desistir”.

Nos entreolhamos, notei que alguns hesitavam. Então, vinda da

porta do escritório, veio uma voz: “Não os assuste tanto, Nicodemus”.

Senhor Urias estava entrando, vestindo um manto branco.

“Apenas estou dizendo a verdade, Senhor Urias. Jamais iria querer

que um deles me acompanhasse sem consciência dos perigos que podemos

encontrar”.

“Ainda bem que os encontrei antes que forrem a Dur Sharrukin.

Precisava falar algo a vocês”, Urias disse.

Absolon então falou “Irá conosco, senhor? Seria uma honra. Mas

como sabia que íamos a este lugar?”.

“Eu conheço bem dois dos Veritas e ajudei-os a chegar à câmara

onde está o jarro. E não, caro Absolon, eu não irei com vocês, embora

deposite minhas esperanças em sua busca. Infelizmente, permanecerei aqui.

Com as descobertas feitas, sinto-me mais do que nunca na obrigação de

vigiar os túneis, e preciso avisar alguns companheiros sobre os

acontecimentos”.

Ao notarem que o Arcanjo recusara-se a nos acompanhar, notei que

meus companheiros novamente perdiam a esperança e se entreolhavam,

temerosos. Mas então Urias pediu nossa atenção. “Sei que estão com

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medo”, disse o Arcanjo, “sei o que sentem e o que pensam. ‘Como

podem os Arcanjos nos abandonar agora?’, não é? Pois há algo que vim

dizer a vocês”.

Urias aproximou-se antes de continuar. “Vocês foram escolhidos

para uma missão. E se um Guardião os escolheu, é porque esta é um peso

que devem carregar por si mesmos. Por outro lado, saibam: é assim que

nascem os heróis e as lendas. Vocês estão destinados a grandes feitos.

Pensem bem... Um dia, cada grande Arcanjo foi como vocês. Eles se

tornaram lendas enfrentando o desconhecido. Não são os grandes Arcanjos

que definem o rumo da história, mas vocês. Os Primi não ganhariam

nenhuma guerra se não houvesse milhares de Celestiais lutando por eles.

Enquanto vocês relacionam poder a importância, lembrem-se sobre quem

está o verdadeiro peso das decisões: os humanos. Nós apenas os guiamos.

Da mesma forma, os Arcanjos apenas estão guiando vocês, mas serão

vocês quem definirão os resultados de sua missão. Não vou mentir: talvez

vocês enfrentem situações duras. Mas não pensem que estão sozinhos. Se

vocês foram escolhidos, então quem os escolheu estará olhando por vocês.

Vocês, mais do que ninguém, deveriam saber que milagres de fato

acontecem. Por isso, eu irei passar apenas uma mensagem, e quero que a

lembrem quando chegar o momento”. Então, Urias afastou-se um pouco,

olhou cada um de nós, vendo todos os nossos medos, e disse: “Quando

chegar o mais desesperador dos momentos, acontecerão maravilhas. E,

neste momento, vocês verão que não estão sozinhos”.

Um silêncio seguiu-se. Urias então saiu, calmamente, da sala.

Antes de fechar a porta, desejou-nos boa sorte. Então, nos olhamos

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Page 62: Magna Veritas - Tiago José Moreira

novamente. Era hora de encontrar o Conselho. Ele nos indicaria o

caminho para Dur Sharrukin, e lá esperávamos encontrar todas as respostas.

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Capítulo 5: Sombras do Passado

Quando as lendas começam?

É no momento em que seus protagonistas aceitaram sua missão?

Se sim, nossa história começou naquele momento em que

estávamos diante do Conselho Veritas pela última vez? Ali nós sete

estávamos, ouvindo as palavras de Narel Veritas.

“Vocês irão agora para Dur Sharrukin, a ‘Fortaleza de Sargon’.

Mas antes, precisam entender a localização de seu destino. A verdadeira

Dur Sharrukin foi uma cidade erguida pelos Assírios em tempos antigos.

Dur Sharrukin se localiza na vila de Khorsabad, 20 quilômetros ao nordeste

de Mossul, no Iraque. Porém, o templo de Dur Sharrukin, que foi o local da

batalha final da Primeira Grande Guerra, se localiza sob a cidade assíria.

Suas únicas entradas conhecidas se davam pelas montanhas próximas, mas

estas entradas foram fechadas”.

“E como entraremos?”, perguntei.

Narel continuou: “Apenas os mais poderosos ritos podem levar ao

interior do templo, mas tais ritos são evitados, pois não se sabe quais

efeitos colaterais podem causar naquele lugar. Por isso, vocês entrarão por

uma passagem há muito escondida. Em meados de 1850 da Era Cristã, uma

expedição francesa foi enviada às ruínas da cidade assíria de Dur Sharrukin

para realizar escavações. Os Malaki não julgaram que a expedição fosse

capaz de encontrar o templo subterrâneo, visto que está a mais de cem

metros sob o solo. Porém, para a nossa surpresa, haviam galerias de

cavernas naturais no solo entre o templo e a cidade”.

Uma vez mais a interrompi com uma pergunta: “Então, os

franceses encontraram uma passagem?”.

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Page 64: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Houve um desabamento nessas cavernas, abrindo uma

passagem sob a cidade assíria. Em 1855, investigaram essas cavernas. Para

nosso desespero, abriram uma passagem para o templo. Nenhum dos

exploradores que adentrou aquele lugar conseguiu retornar. Como medida

de segurança, tomamos o cuidado de selar a entrada para as cavernas e

enviamos Arcanjos, que se revezavam anualmente, para vigiar o local e

impedir que a humanidade encontrasse aquele lugar infernal. Assim,

mantivemos o templo de Dur Sharrukin oculto pelos últimos 150 anos”.

Helammelak tomou a palavra então, levantando-se: “O Arcanjo

guardião de Dur Sharrukin deste ano irá levar-vos a esta passagem oculta.

Porém, ele irá acompanhar-vos apenas até a entrada das cavernas. Uma vez

lá, vós estareis por sua própria conta”.

As palavras de Helammelak não ajudavam a nos tranqüilizar. Eu

buscava não pensar muito nisso, tentava acreditar que tudo ficaria bem.

Narel tomou novamente a palavra: “Dur Sharrukin, o templo infernal, é

uma fortaleza subterrânea dividida em três grandes níveis. Acreditem em

mim quando lhes digo que aquele lugar é uma vastidão subterrânea como

nenhum de vocês jamais viu. Construída com arquitetura e magia infernal,

há uma escuridão densa ali, e as dimensões daquele lugar o fazem parecer

infinito. O primeiro nível é um imenso salão, com quilômetros e

quilômetros de extensão, mantido por milhares de colunas maciças. Foi ali

o primeiro campo de batalha naquele dia...”.

Narel pigarreou antes de continuar. “O segundo nível é um

gigantesco labirinto, no qual se instalavam as tropas mortais e demoníacas

de Leviathan. Quando a batalha chegou àquele lugar, o labirinto foi usado

para dividir as tropas celestes. Naqueles corredores, centenas caíram

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Page 65: Magna Veritas - Tiago José Moreira

vítimas de armadilhas mortais. Por fim, o terceiro nível leva a um salão

semelhante ao do primeiro nível. Ali ocorreu a maior das batalhas naquele

dia, quando finalmente a elite de Leviathan chocou-se com nossas tropas.

Além do grande salão, está a câmara em que ocorreu a batalha entre

Gabriel e o Lorde do Sangue. Esta câmara está selada e é ela o objetivo de

vocês. Estão preparados?”.

“Que tipo de perigos poderemos encontrar ali?”, Ansgar perguntou.

“Não é possível dizer”, respondeu Meleyal, “mas a princípio aquele

lugar está abandonado e deserto. Por milênios ele foi lacrado. Porém, é um

local impregnado de memórias de dor e violência, e certamente vocês irão

confrontar imagens do passado ali. É por isso que acreditamos que lá

encontrarão respostas”.

Observei meus companheiros, um a um. Ansgar, Karina, Wang, Al-

Malik, Absolon, Fabrizia. Então, retruquei: “Estamos prontos para ir”.

O portão cinzento atrás de nós abriu-se e um Arcanjo silencioso

entrou, vestindo um manto cinzento, com um capuz que cobria-lhe a

cabeça. Ao aproximar-se, o Arcanjo baixou o capuz, revelando um rosto de

pele escura e cabelos negros. “Eu sou o Arcanjo Adonijah, Serafim dos

Veritatis Perquiratores”, disse ele. “Eu os guiarei aos portões de Dur

Sharrukin”.

“Estamos prontos”, eu disse. O Arcanjo me fitou, então virou seu

olhar para um espaço vazio. Ali, o ar tremeu e ondulou, assumindo um leve

brilho azulado. Eu pude sentir o poder celeste manifestando-se na forma de

um portal. Então, as costas das roupas do Arcanjo rasgaram-se, liberando

suas grandes asas. Seu corpo emitia uma leve luz azulada. “Venham em

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Page 66: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Forma Celeste, pois o portal leva aos céus do Iraque”, ele disse,

adentrando a passagem que abrira.

Como que por medo, hesitamos todos a princípio, mas então, para

minha surpresa, Absolon tomou a frente. Segurando nas mãos a mochila

que carregava, sua camisa rasgou-se nas costas, seu corpo emitiu um brilho

dourado, de forma que seus cabelos louros brilhavam como se fossem

chamas celestes. Seis pares de faixas luminosas, as asas de Princeps,

nasceram de suas costas. Seus olhos azuis também brilhavam intensamente.

Silenciosamente, ele atravessou o portal.

Lo Wang foi o segundo. De suas costas, nasceram duas asas negras

e ligeiramente vítreas, como se fossem de pura obsidiana. Ao invés de luz,

ele parecia emitir sombras, pois a luz das velas pareceu enfraquecer-se ao

seu redor. Seu rosto tornara-se assustador, encoberto por sombras que

disfarçavam um pouco suas feições.

Al-Malik então liberou suas asas, que nasceram violentamente. Seu

corpo brilhava intensamente, emitindo luz branca, mas a luz era tão forte

nas asas que se dava impressão que elas eram feitas puramente de luz.

Então, a passos firmes e decididos, ele transpôs o portal.

Ansgar deu alguns passos em direção ao portal. Suas asas nasceram

lentamente, rasgando as costas de sua roupa. As asas prateadas, de penas

pontiagudas, liberavam uma aura levemente azul. Seus olhos, brilhando

com a mesma cor, nos fitaram brevemente antes que ele prosseguisse

através do portal.

Karina deu um passo à frente, então me observou, como se

esperasse por mim. Notei que ainda estava receosa, então esforcei-me para

sorrir. Retirando o sobretudo para que não se rasgasse, deixei que minhas

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Page 67: Magna Veritas - Tiago José Moreira

asas se abrissem. Meu corpo emitiu um brilho levemente azul. Karina,

então, retirou a mochila e a jaqueta e liberou suas asas. Seu corpo brilhava

dourado. Demos as mãos e atravessamos juntos.

Por um instante, era como se transpuséssemos uma cachoeira.

Então, perdemos a sensação de estarmos nos apoiando no solo. Um vento

gelado soprava e estávamos encobertos por uma grande nuvem. Era noite, e

a lua e as estrelas brilhavam forte acima. Abaixo, vimos poucas luzes,

numa vastidão negra. Estávamos no céu, lado a lado com nossos

companheiros, todos à nossa espera. Larguei a mão de Karina e ambos nos

afastamos do portal, dando passagem à Fabrizia, que veio logo depois, suas

asas marrons e seu corpo emitiam um brilho vermelho, e em Forma

Angelical Fabrizia parecia mais forte e decidida. Na verdade, todos nós

parecíamos.

O Arcanjo Adonijah, cobrindo o rosto com o capuz novamente,

então disse: “Dur Sharrukin está adiante. Voemos baixo, pois esta é uma

região perigosa, e se radares americanos nos captarem, podemos criar uma

crise internacional na Terra”.

Então, o portal fechou-se, e o Arcanjo mergulhou em direção ao

solo. Nós sete o seguimos, alcançando grande velocidade. Com o vento

gélido em meu rosto, aquela sensação de voar pelos céus, após tanto tempo

estudando no confinamento de Libraria, era para mim como sentir de novo

toda a minha capacidade.

Então, com os poderes celestes, pude ver na escuridão da noite, as

vastidões que percorríamos, naquela velocidade, até ver, adiante um

vilarejo: Khorsabad. Estávamos próximos. Elevamos a altitude, para evitar

sermos vistos, mas sem perder velocidade. Ainda rasgando a noite, não

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Page 68: Magna Veritas - Tiago José Moreira

descansamos até que Adonijah parasse. Então, descemos lentamente

rumo ao solo. Conforme descíamos, pude ver a fortaleza construída por

Sargon há 2700 anos: Dur Sharrukin.

As ruínas eram de fato impressionantes. Cercada por muralhas

maciças, cujas sete entradas eram guardadas por estátuas de touros alados

com rostos humanos. Sua glória hoje extinta, da cidade assíria de Dur

Sharrukin só restavam ruínas de antigos prédios e casas. Ainda flutuando

no ar, Adonijah dirigiu-se aos restos de uma cidadela fortificada na muralha

noroeste da cidade.

Então, quando nossos pés finalmente tocaram o solo, recolhemos

todos nossas asas, assumindo o aspecto mortal. Coloquei novamente meu

sobretudo, enquanto os que portavam mochilas colocaram-nas em suas

costas. Adonijah nos olhou, pedindo que o seguíssemos. Adentramos nas

ruínas da cidadela, percorrendo alguns poucos corredores até chegarmos a

uma escada que levava a uma espécie de porão. Tanto Karina quanto

Absolon pegaram lanternas que traziam em suas mochilas, ajudando a

iluminar o caminho. Os demais, porém, viam perfeitamente na escuridão.

Caminhamos por um corredor apertado, até chegarmos a um ponto

em que Adonijah parou. “É aqui”, ele disse, tocando uma parede, que

empurrou com força. Esta deslocou-se, mas havia apenas rocha sólida na

passagem que abrira-se. Adonijah fez um sinal, e a rocha dissipou-se,

revelando ser uma ilusão. Além da falsa rocha, estendia-se uma caverna.

“Daqui em diante, prosseguirão sozinhos”, o Arcanjo disse. “Desejo-lhes

sorte e sucesso”.

Agradeci e, como líder do grupo, tomei a dianteira. Um a um,

atravessamos a passagem. O caminho era único, e descia abruptamente,

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Page 69: Magna Veritas - Tiago José Moreira

exigindo calma e cuidado para prosseguirmos. Infelizmente, era apertado

demais para que simplesmente assumíssemos a Forma Angelical e

planássemos até as profundezas.

Cuidadosamente, descemos por aquela caverna, o caminho então se

dividia, mas antes que eu precisasse perguntar, Karina apontou-me a

direção a seguir. Estava um silencio perturbador, mas pelo menos eu não

pressentia nada. Era como se fôssemos os únicos naquele local, e isso me

deixava tranqüilo. Prosseguimos, e fomos descendo mais e mais nas

profundezas. O tempo todo, tudo estava silencioso.

Então, após descermos nas profundezas, chegamos a uma passagem

no chão, onde acabava a caverna. Imediatamente, senti um arrepio na

espinha. Abaixei-me, olhando o pequeno buraco adiante. E, mais de oito

metros abaixo, notei que o chão era pavimentado, com rochas

cuidadosamente lascadas. Não pude precisar as dimensões, mas notei que a

câmara abaixo era gigantesca. Meu coração disparou, então murmurei:

“Chegamos”.

Fora os murmúrios de meus companheiros, estava silencioso. “O

solo está distante e o buraco é pequeno demais para que usemos a Forma

Angelical”, sussurrei. “Precisamos, um de cada vez, saltar, e assumir a

Forma Angelical durante a queda para amortecermos o impacto”.

Lo Wang tocou meu ombro. “Eu serei o arauto. Vou me certificar

de que é seguro descermos”, ele disse. Eu concordei. Wang abaixou-se, na

borda da passagem. Seus olhos, emitindo um leve brilho vermelho, fitaram

o solo abaixo, tão distante. Então, sem temor, jogou-se pela passagem. Em

plena queda, suas asas abriram. O ar movido fez um som fraco, mas que

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ecoou pela vastidão da câmara abaixo. Então, suavemente, Wang tocou o

solo, abaixando-se e retornando à Forma Humana imediatamente.

Ele permaneceu ali, olhando ao redor em silencio, por alguns

instantes. Então, olhou-me, fazendo sinal para que eu descesse. Fechei os

olhos, me concentrando. Precisaria me transformar rápido, ou iria me

machucar na queda. Dando um passo à frente, deixei-me cair, mas

felizmente, a transformação foi imediata. Conforme minhas asas abriam-se

e meu brilho inundava de luz o chão abaixo, pude ver então o lugar aonde

chegávamos: o primeiro nível de Dur Sharrukin.

Conforme os outros desciam, um a um, eu comecei a analisar o

ambiente ao redor. Fora o teto, a nove metros de altura, e o solo, não

haviam outros limites até onde minha visão, mesmo aumentada com meus

poderes, alcançava. Como se a câmara tivesse quilômetros e quilômetros de

extensão. O teto era sustentado por centenas, talvez milhares de colunas,

cada uma com cinco ou mais metros de espessura, e separadas no mínimo

quinze metros umas das outras. Os sons de nossos passos e até de nossa

respiração ecoavam. O ar estava frio. Estávamos totalmente sozinhos

naquela imensidão tenebrosa. Mas a mais impressionante visão, sem

dúvida, era a da quantidade de objetos no chão: armas, ossadas e restos de

armaduras espalhados, demonstrando a magnitude da batalha que ocorrera

aqui há tanto tempo atrás. Entre as ossadas, muitas delas eram totalmente

inumanas.

“Meu Deus do céu!”, Karina murmurou. Sua voz ecoou, forçando

Wang a repreende-la, sussurrando: “Fale baixo! Qualquer som aqui ecoará

centenas de vezes antes que desapareça”. Todos estávamos impressionados

com aquela vastidão. Como tal obra pôde ser erguida nas profundezas da

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Terra? Eu olhei para o mundo dos espíritos, tentando descobrir que

influências espirituais poderiam existir neste lugar. Para minha surpresa, o

reino espiritual estava totalmente vazio, encoberto por uma névoa negra

ainda mais densa que as trevas do mundo físico.

Ansgar, afastando-se um pouco do grupo, abaixou-se para tocar

uma espada no chão. Dezenas de ossadas pequenas e monstruosas de

criaturas aladas estavam próximas. “Não consigo imaginar como seria estar

aqui naquela época”, ele sussurrou para si mesmo.

“Por onde devemos seguir?”, perguntou Al-Malik, enrolando os

panos em sua cabeça também em torno da boca, deixando apenas os olhos

brilhantes expostos. Karina olhou ao redor, ainda boquiaberta com as

dimensões do local. A luz de sua lanterna se perdia na imensidão escura,

sem nunca alcançar uma parede. Então, ela voltou-se para o lado oposto ao

qual o grupo fitava, apontando para o infinito adiante. “Por ali”.

Al-Malik e Ansgar sacaram suas espadas, e Absolon pegou a

espingarda que levava na mochila. Então, prosseguimos, com Karina e

Wang à frente. Mesmo pisando cautelosamente e desviando dos objetos no

chão, o som dos passos ecoava mais e mais. Foi então que vi surgir adiante

uma área que sofreu desmoronamento, como se uma das colunas tivesse

sido derrubada. Conforme nos aproximávamos daquele ponto, pude notar

mais e mais ossadas e restos de armas, bem como partes do solo quebradas

por explosões e colunas rachadas.

De repente, ouvimos um som distante. Minha espinha sentiu um

calafrio repentino e tive a nítida sensação de que algo nos observava.

Paramos, formando um círculo. “O que foi isso?”, perguntou Absolon.

“Passos”, respondeu Fabrizia.

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“Mas não são poucos”, alertou Wang, conforme o som tornava-

se mais forte. “É... um exército marchando”. O som estava se aproximando.

Olhando ao redor, notamos luzes na direção de onde viemos, perfurando o

véu de escuridão. “O que é isso?”, Karina perguntou. “O que está

acontecendo”.

“Olhem ao redor”, disse Al-Malik. Foi então que percebi. As

ossadas e restos no chão tinham desaparecido, a coluna derrubada estava

em pé uma vez mais. E o som de passos também começou a vir da direção

para a qual originalmente seguíamos.

“Estamos cercados?”, indagou ferozmente Ansgar, empunhando

sua arma e iluminando-a com a luz azulada intensa dos Fogos Celestiais.

Imediatamente, ele assumiu a Forma Angelical, liberando suas asas

cortantes.

“Acalmem-se todos!”, pedi em voz alta, conforme as luzes dream

lugar a um exército marchando, empunhando armas, escudos e tochas. Um

exército de Celestiais, alguns em sua Forma Angelical, que então parou a

uns vinte metros de nós. “São imagens! Imagens do passado!”, eu disse,

conforme, vindo da outra dimensão, caminhando sem a ajuda de luz nas

trevas, veio um segundo exército, desta vez de abominações. Mortos que

andam, diabretes e outros seres indescritíveis junto a demônios usando

armaduras grosseiras e empunhando armas com múltiplas lâminas e pontas.

Dois exércitos, um de trevas, um de luz, totalizando dezenas de milhares de

guerreiros, encarando-se nas profundezas da Terra. E, entre eles, estávamos

nós. “Meu Deus”, exclamou Ansgar, mal acreditando em seus olhos.

“Fiquem todos juntos!”, pediu Absolon em voz alta.

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Então, por alguns segundos, houve um silencio mortal, quebrado

apenas pela respiração de meus companheiros. Notei o vapor no ar formado

pela respiração, devido ao frio que fazia. Então, rosnados ecoaram, vindos

do exército demoníaco à nossa frente. E um grito solitário na tropa celeste

foi então seguido por um coro de guerra, gritando, enquanto o exército

celeste avançava, correndo, em direção ao grupo inimigo. A legião

monstruosa urrou, também avançando. E então, luz e trevas chocaram-se

violentamente.

“Juntos! Fiquem juntos!”, repetiu aos gritos Absolon, puxando a

mim e Karina. Um Celestial caía, coberto por dezenas diabretes, cujos

dentes e garras afiadas rasgavam-lhe a pele. Atrás de mim, ouvi um

estrondo, conforme a espada de um Arcanjo cortou um demônio ao meio,

como se sua armadura de metal não oferecesse resistência ao poderoso

golpe. Acima, chamas celestes e infernais cortavam o ar, caindo e

incendiando dezenas ao redor.

“Precisamos avançar!”, gritei. Absolon e Al-Malik ouviram-me, e

começaram a puxar os demais. “Vamos, vamos!”, gritava Absolon. E o

caos ao redor aumentava, conforme ouvíamos trovões ecoarem e o som

interminável de metal contra metal e gritos de dor. Guerreiros celestes e

infernais caíam às dezenas, mas as forças infernais eram menores,

compostas principalmente por mortos-vivos e criaturas infernais menores.

Avançamos. Atrás de nós, ouvi uma explosão e me virei para ver o

que tinha ocorrido. O verde das chamas infernais brilhava, conforme a

coluna rachava-se e caía, derrubando toneladas de terra e rocha sobre

dezenas de combatentes. Então, Al-Malik me puxou. “Venha, Senhor

Nicodemus, não percamos tempo!”.

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Page 74: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Então, conforme avançávamos, mais e mais adentrávamos no

exército demoníaco. Para minha surpresa, alguns grupos de Celestiais,

liderados por Arcanjos, conseguiam penetrar entre as forças adversárias,

atacando-os e avançando sem pausa. No meio de um desses grupos, notei

um jovem cuja face me era estranhamente familiar. Sua espada brilhando

em chamas celestes, lutando lado a lado com outros dois companheiros, ele

avançava com dificuldade, mas pouco a pouco derrubava dezenas de

inimigos. Mas quem era ele? Como seu rosto poderia ser tão familiar para

mim?

Foi então que, adiante, finalmente pudemos ver algo além de

trevas. Vimos pela primeira vez uma parede, cheia de estátuas, faces e

figuras demoníacas esculpidas em sua superfície. E também vi um grande

portão, com pelo menos 7 metros de altura e dez de largura, feito de pura

rocha. “Para o portão! Para o portão!”, eu repetia. Karina, Al-Malik e

Absolon estavam à minha frente, enquanto Fabrizia, Ansgar e Wang

estavam atrás.

Então, o exército demoníaco ficou para trás e restava apenas o

portão à frente. Podíamos ouvir o som da batalha, ocorrendo tão perto de

nós, mas fitávamos apenas o portão e aquele que o guardava. Ali, diante da

passagem, estava um cavaleiro, montado num corcel negro com olhos

flamejantes, vestindo uma armadura de metal tão escuro quanto a noite,

numa mão empunhando um gigantesco escudo com a imagem da face de

um dragão, e na outra levava uma espada longa de quase dois metros de

comprimento. O animal sobre o qual montava relinchava monstruosamente,

e das frestas do elmo negro, o brilho vermelho de seus olhos fitava a

batalha que ocorria diante dele.

74

Page 75: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“O cavaleiro do sonho!”, exclamou Ansgar.

Então, notei uma forma tênue ao redor do cavaleiro, uma forma

gasosa e serpentina, imensa, cuja ponta então se moveu como se fosse uma

boca, sussurrando nos ouvidos do cavaleiro. Os outros pareciam não poder

vê-la, mas então todos ouvimos o que ela sussurrava. E sua voz era como

um trovão que fazia nossos corações arderem, como se fossem penetrados

por lanças. “Khral-Harshek”, a voz disse, “eu preciso de você em meu

aposento”. O cavaleiro imediatamente fez sua montaria dar meia-volta, e

então partiu para a escuridão além dos portões. Logo em seguida, tudo

ficou silencioso.

Olhamos ao redor. Estávamos sozinhos. Atrás de nós, apenas os

espólios da batalha. À nossa frente, o portão ainda estava lá, aberto,

esperando por nossa passagem. Estávamos ofegantes, todos de olhos

arregalados, sentindo os corações apertados por causa daquela voz. Ansgar

retornou ao Aspecto Humano e me olhou. “Meu Deus, Nicodemus. Eu

jamais pude imaginar algo assim”.

Os outros ainda se recuperavam da experiência, quando eu ordenei

em voz alta: “Vamos continuar, rápido! O portão nos levará ao segundo

nível de Dur Sharrukin!”. Minha voz ecoou e, mais uma vez, reparei no

vapor que se formou devido à minha respiração. Estava frio... Frio demais.

“Calma, Philipe”, pediu Karina, “precisamos de mais tempo”. Os

demais concordaram.

“Vocês não entendem, não é?”, eu retruquei em voz alta,

claramente demonstrando meu nervosismo. “Memórias não surgem assim.

Não é este lugar que as está gerando! Sintam o frio! Não percebem?”. Eles

me olharam sem entender, com exceção de Wang e Al-Malik, que

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Page 76: Magna Veritas - Tiago José Moreira

demonstraram compreender o que eu queria dizer. Então, resolvi

esclarecer tudo: “Imagens do passado não surgem do nada. Este lugar é

assombrado. Vamos, rápido!”.

Eles imediatamente vieram comigo, apressando o passo. Então,

conforme eu atravessei aquele grande portão, ouvimos ecoar o som de

cascos batendo na rocha, num galopar lento e distante. Todos olharam para

a escuridão pela qual havíamos passado e, mais uma vez, não conseguimos

ver nada além de trevas. Mas em seguida ecoou um relinchar, certamente

emitido por um cavalo infernal.

“Estes sons não são ecos do passado”, murmurou Al-Malik. “Que

Alá nos proteja”.

“Vamos logo, por favor”, eu retruquei. Então, juntos continuamos

além do portão, rumo às regiões mais profundas de Dur Sharrukin.

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Page 77: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 6: O Fantasma de Leviathan

O som de nossos passos ecoava conforme descíamos aquelas

gigantescas escadarias em espiral, de degraus grandes o suficiente para que

mesmo criaturas imensas pudessem subi-las ou desce-las. Os sinais de

batalha desapareceram. “Os Infernais não seriam tolos de lutar aqui”, disse

Lo Wang, fitando a escuridão abaixo, para a qual nos dirigíamos, “pois

quem quer que viesse por cima teria vantagem na batalha”.

Devíamos estar descendo aquelas escadas há uns cinco minutos. O

silêncio só era quebrado por nossos passos e por um comentário ou outro.

O ar estava estagnado, incrivelmente frio. Nossa respiração emitia nuvens

de vapor, que se dissipavam rapidamente. “O que acha que há ali

embaixo?”, perguntou-me Fabrizia.

“O segundo nível de Dur Sharrukin, como os Veritas nos

disseram”, respondi.

“Este lugar me é inconcebível. Jamais senti tanto medo em toda a

minha vida”, confessou Ansgar.

“Pensei que já estivesse acostumado a situações assim. É um

guerreiro, não é?”, perguntou Fabrizia.

“Não me entenda mal”, respondeu o ruivo. “Lutei em muitas

batalhas, tanto em vida como na morte. Defendi o Éden na Terceira e na

Quarta Guerras. Batalhei contra muitos na Terra e nos reinos dos mortos.

Mas a batalha que vi agora há pouco... foi diferente de tudo o que já vi”.

“Também eu lutei na Quarta Guerra. E realmente foi diferente. Lá,

lutávamos para proteger nosso lar. Mas aqui, estamos no lar do inimigo.

Avançar é como... buscar a própria morte. Por isso oro para que Alá esteja

conosco, mesmo nessa escuridão esquecida pelo Criador”, disse Al-Malik.

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Page 78: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Lutou nas últimas duas Grandes Guerras?”, perguntou Karina a

Ansgar, com bastante interesse. “Tenho um amigo que também lutou. Seu

nome é Samuel. Qual é a sua história, Armin?”.

Houve um breve silêncio antes que Ansgar respondesse. Ele fitou

Karina, notou o interesse em seus olhos verdes, então respondeu: “Em vida,

eu servi o Imperador Henry V do Sacro Império Romano Germânico. Eu

morri lutando na Saxônia, por volta de nove séculos atrás. Fui um homem

leal a meu rei e minhas obrigações, e ainda me recordo dos rostos de minha

família, com a qual não tive mais contato desde então”.

“Eles não renasceram no Éden?”, perguntou Karina, tocando o

ombro de Ansgar.

“Sim, minha mulher e um de meus filhos sim. O outro, jamais, mas

pelo que soube, ele jamais foi um homem correto. Mas eu não tive a

coragem de encarar minha família. Parti para estudar sozinho os caminhos

da guerra”.

“Não entendo”, Karina murmurou. “O que leva alguém a querer

lutar assim?”.

“O que a leva a querer viajar, Karina?”, perguntei, interrompendo a

conversa.

“Não sei. É o que gosto de fazer. Quero me sentir livre, conhecer

pessoas e lugares, aprender cada dia mais, acho”, ela respondeu.

Continuei a argúi-la: “Pois cada pessoa tem um desejo. Você julga

que um guerreiro quer apenas ser forte e lutar, mas nunca estudou as

filosofias da guerra, não é?”.

“Tem razão”, Karina admitiu.

“Ser um guerreiro é mais do que participar de batalhas”, eu disse.

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Page 79: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Acha que luto para me sentir forte, para provar minhas

habilidades?”, perguntou Ansgar a Karina. Antes que ela pudesse

responder, o Venator prosseguiu: “Não. Eu luto pelas pessoas, não por

mim. Quando morri, descobri que minha vida tinha sido vazia,

impulsionada por objetivos políticos e por uma moral duvidosa. Como

homem, fui um nobre sanguinário, que achava que podia matar em nome de

Cristo e de meu Rei. Eu justificava cada ato bárbaro que cometi me

convencendo de que seguia a vontade de Deus. E depois, ao renascer, era

como ver o quanto de minha vida desperdicei. Tudo o que eu sabia fazer

era lutar e nada mais. Então, meu Mentor me ensinou o que é realmente ser

um guerreiro”.

“Esta história... realmente lembra a de Samuel”, murmurou Karina.

Sacando sua espada e fitando-a, Ansgar parou. “Há os sábios que

ensinam caminhos melhores e os corajosos que ajudam diretamente as

pessoas, mas também há inimigos que pensam apenas em violência, morte

e dor. Eu existo para proteger, para poder servir, com a minha vida e a

minha espada, àqueles que não podem se defender sozinhos. É isso o que

sou, o que tenho de fazer. É isso que significa ser um guerreiro”.

“Eu também compreendo bem o que é ser guerreiro”, murmurou

Wang, que caminhava à frente do grupo. “É querer morrer pelos outros”.

“E é por isso que nada me assustou mais do que o que vi ali em

cima”, murmurou Ansgar, então elevando seu tom de voz. “Eles lutavam

desesperadamente, sabendo que provavelmente não retornariam para o

Paraíso intactos. Não haviam inocentes lá, e à frente não havia nada a não

ser a chance de morrer. É o extremo da ideologia de um guerreiro. Eu não

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Page 80: Magna Veritas - Tiago José Moreira

tenho certeza se teria a coragem de prosseguir, se estivesse no meio

daqueles guerreiros. Por isso tive medo”.

“Medo de falhar”, disse Al-Malik. “Todos nós temos esse medo.

Não sou guerreiro, mas porto uma espada, e conheço os perigos de

empunha-la. Se soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde,

teríamos a coragem de puxar nossas espadas e avançar, sem medo da

morte?”.

“Acho que eu não teria coragem de enfrentar algo maior do que eu.

Acho que não sirvo para guerreiro”, Absolon murmurou para si mesmo.

“Espero não ter de fazer esta escolha”, sussurrou Ansgar. Al-Malik

concordou, mas Wang apenas permaneceu calado.

“Entendi”, disse Karina. “Me desculpe por questionar tanto”.

“Apenas quem não questiona deve pedir desculpas, pois quem não

busca respostas jamais irá tê-las”, eu disse. “É um velho provérbio entre os

Perquiratores”.

Foi então que deparamos com o segundo portão, tão grande quanto

o primeiro, indicando o fim da grande escadaria. “Finalmente”, murmurou

Absolon.

E, quando, atravessamos o portão, nos deparamos com o que nos

esperava. “É como os Veritas disseram”, eu disse aos demais, ao fitar um

salão do qual partiam seis grandes corredores, cada um com cerca de três

metros de altura e dois de largura. “Daqui em diante, há um número

inimaginável de corredores, formando um imenso labirinto”.

Wang, aproximando-se de um dos corredores e analisando-o,

acrescentou: “Estes são corredores da morte. No primeiro nível, os

infernais prepararam uma batalha para enfraquecer as forças celestes. Mas

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Page 81: Magna Veritas - Tiago José Moreira

aqui, eles quiseram dividi-las. Os corredores são pequenos demais em

largura para ocorrerem grandes batalhas, e há buracos na parte superior das

paredes, que levam a pequenos túneis nos quais criaturas infernais

poderiam se esconder para atacar de surpresa os grupos separados de

Celestiais. Creio que há armadilhas em toda parte neste labirinto”.

“Acha que essas armadilhas ainda podem funcionar?”, Fabrizia

perguntou, aproximando-se de Wang.

“Não sei. A ruiva pode nos guiar, mas eu precisarei tomar a

dianteira do grupo, para tentar encontrar sinais de armadilhas”, disse Wang.

Karina também se aproximou do Kage, prontificando-se a guiar o grupo.

“Qual dos corredores?”, perguntei a Karina.

“Este”, ela disse, apontando o segundo corredor, da esquerda para a

direita. Wang foi à frente, Karina e Fabrizia em seguida, e os demais logo

após. Absolon apressou o passo para ficar próximo às garotas.

Íamos a passos lentos, pois Wang precisava verificar o caminho.

Novamente, os sinais de batalha começavam a surgir. Armas caídas,

ossadas, corpos há muito apodrecidos empalados nas paredes ou em lanças

que saltavam do chão, paredes manchadas com sangue há muito

ressequido. Nenhuma das armadilhas parecia funcionar mais. Conforme

chegávamos a bifurcações ou cruzamentos entre corredores, Karina

apontava o caminho a seguir.

Eu me mantinha atento, tanto ao mundo físico quanto ao mundo

dos espíritos. Ambos mantinham-se extremamente silenciosos. O frio

continuava intenso. Por mais que tentasse, não sentia nenhuma presença

além de nossas próprias. Por mais de uma hora caminhamos naquela

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Page 82: Magna Veritas - Tiago José Moreira

escuridão, sempre acompanhados por nada mais do que restos de

batalhas sangrentas espalhados pelo chão ou presos por lanças às paredes.

Foi então que Wang parou repentinamente. “Silêncio!”, ele pediu,

sussurrando. Todos paramos. Sem os sons de nossos passos, o ambiente

tornou-se absolutamente silencioso. Esperamos, por quase um minuto, sem

nada ouvir. Então, perguntei, em voz baixa: “O que houve, Wang?”.

“Pensei ter visto algo”, ele respondeu.

“O quê?”, perguntei.

“Algo serpentino, movendo-se na escuridão no salão adiante”,

Wang disse. Seu tom de voz parecia estranhamente assustado para alguém

normalmente tão frio. Fitei o salão e não pude ver nada anormal no mesmo.

Foi quando ouvi o som de metal deslizar rapidamente. Virei-me e vi Al-

Malik, o último do grupo, removendo sua cimitarra e olhando assustado

para trás. “Não ouviram isso?”, o Malaki perguntou.

“Não”, disse Ansgar. “O que você ouviu?”.

“Era como se algo respirasse logo atrás de nós. Pude até mesmo

sentir um bafo quente tocar minha nuca”, Al-Malik respondeu. “Há algo

aqui, conosco”.

Foi então que minha espinha tremeu. Karina cruzou os braços,

como se quisesse se aquecer. “É impressão minha, ou está mais frio?”, ela

disse.

“Não é impressão”, eu disse, olhando ao redor, podendo sentir

claramente que algo que nos observava. Permanecemos ali parados naquele

corredor por mais uns instante, todos assustados. Então, olhando para trás,

pude também notar algo serpentino, como uma cauda, mover-se na

escuridão, logo além de onde minha visão alcançava. Sussurrei, ofegante:

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Page 83: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Vamos em frente”. Quando demos os primeiros passos, porém,

ouvimos um rosnado baixo e calmo ecoar, vindo aparentemente de toda

parte, fazendo com que poeira caísse do teto e das paredes.

“Oh, meu Deus!”, Karina exclamou, mostrando-se extremamente

assustada.

“Eu não sei quanto a vocês”, disse Absolon, também assustado,

“mas eu voto por correr”.

Ansgar puxou Al-Malik para trás de si, ficando por último na fila.

Empunhando sua espada, o Venator então ordenou, ainda que disfarçando

muito mal o seu medo: “Vão em frente. Eu vou logo em seguida!”. Foi o

que fizemos. Corremos através do corredor, e o Venator nos seguiu,

mantendo-se sempre por último. Mas, quando apressamos o passo, ouvimos

então um rugido ecoar pelos corredores, fazendo tudo tremer: o urro do

Leviathan. Karina gritou de susto, mas não parou de correr. Nenhum de nós

parou. Sentimos passos pesados nos seguir, mas por mais que eu olhasse

para trás, nada via, a não ser formas indistintas logo além de onde o olho

alcança. Então, mesmo tentando controlar-me, acabo liberando um apelo

desesperado: “Corram! Por favor, corram e não parem!”.

Então, deixando o corredor, chegamos a um grande salão. Assim

que entrou no local, porém, Al-Malik tropeçou em uma peça de armadura

caída no chão, tombando. “Al-Malik!”, gritou Absolon, que parou e voltou

para ajuda-lo. Ao ouvir o grito do Princeps, eu mesmo parei e me virei. Foi

quando vi Ansgar chegar ao salão que fitei aquilo que nos perseguia...

Nada.

Os demais pararam, quando notaram que eu, Absolon, Al-Malik e

Ansgar ficamos para trás. Todos, ofegantes e assustados, olhávamos ao

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Page 84: Magna Veritas - Tiago José Moreira

redor, tentando entender o que acontecera. Quase chorando, Karina

perguntou: “O que foi isso?”.

“Uma ilusão, eu acho”, respondeu Wang.

“Não”, eu discordei, “isso é bem real”.

Foi ouvimos uma respiração pesada ecoar pelos túneis que

chegavam ao salão no qual nos encontrávamos. Um rosnado seguiu-se. A

sala era vasta, de formato quadricular, com talvez dez ou doze metros de

comprimento em cada uma das quatro paredes. Cada parede possuía uma

única passagem, que levava a corredores como aquele pelo qual chegamos.

“Por onde iremos agora?”, perguntou Wang, tentando acalmar-se.

Karina apontou a passagem. “Pela direita”, disse. Quando fitei o

corredor, notei novamente algo indistinto passar pela escuridão densa numa

outra sala adiante. Algo grande, descomunal, maior do que qualquer coisa

que caberia nesses túneis e corredores. “Ele está lá”, eu disse. Um rosnado

ecoou pela passagem.

“O que é isso?”, disse, tremendo, Absolon.

“Um fantasma”, respondeu Al-Malik.

“O fantasma de Leviathan”, completei.

“Demônios não deixam fantasmas ao serem Obliterados”, disse Lo

Wang. “E reencarnam caso não tenham a alma consumida. Não pode ser

Leviathan”.

Então, tudo ficou silencioso. “Parece ter sumido”, resmungou

Fabrizia.

“Não”, murmurei, ainda sentindo que estava sendo observado.

Senti um novo calafrio e fiquei paralisado de medo. “Ele está aqui”, disse,

vendo no mundo espiritual uma forma indistinta, gasosa, percorrer o salão

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Page 85: Magna Veritas - Tiago José Moreira

em que estávamos, seus olhos provavelmente fitando minhas costas.

Pude senti seu respirar quente. “CORRAM!”, gritei em desespero.

Todos começaram a correr, em direção ao túnel que Karina

indicara. Eu mesmo tentei dar todo o impulso possível às minhas pernas

que mal me obedecia. Foi quando novamente o urro ecoou, vindo de

poucos centímetros atrás de mim. Enquanto corria, nada podia tirar e minha

mente a idéia de que iria morrer ali. Mas se eu precisasse morrer, então não

deixaria que meus companheiros ficassem à mercê daquele espírito.

Enquanto sentia aquela essência negra me tocar, continuei a correr,

e busquei me concentrar. O desespero atrapalhava, mas eu precisava tentar,

canalizando as energias divinas que percorriam meu corpo. Então, parando

repentinamente, liberei todo o poder que pude acumular, e virei-me para

fitar o espírito. A forma gasosa parou repentinamente, diante da barreira

espiritual que ergui. Pude sentir sua ferocidade, enquanto rugia e rosnava,

forçando a barreira. Eu tentava vence-lo com minha força de vontade, mas

era como se eu tentasse parar uma locomotiva com minhas próprias mãos.

Foi quando senti uma mão tocar minhas costas, agarrando-me pelo

sobretudo, e puxando-me com força. Era Wang. “Vamos!”. Continuamos a

correr, até chegarmos à sala adiante, desta vez um salão redondo, com dez

passagens. Karina já indicava o caminho, gritando: “Por aqui, rápido!”.

Ansgar esperava ao lado dela, para protege-la. Os outros já prosseguiam na

frente, correndo.

Pegamos o corredor que Karina indicara. Mas eu notei que o

espírito já não estava mais no corredor anterior. Fora nossas respirações

desesperadas e nossos passos apressados, novamente o silêncio reinava

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Page 86: Magna Veritas - Tiago José Moreira

naqueles túneis. Foi quando chegamos a mais um salão, mas este era

diferente.

Desta vez, este salão levava a outros, os quais pareciam

alojamentos. Armas penduradas em paredes, círculos ritualísticos, camas,

tochas agora apagadas... Aparentemente, aqui seriam os aposentos dos

magos negros e Infernalistas a serviço de Leviathan. Segundo os velhos

tomos, esses feiticeiros ajudaram a unir Terra e Inferno, e a passagem entre

os reinos estaria nas profundezas de Dur Sharrukin. No fundo, eu queria

investigar mais aqueles aposentos, mas Karina, quase tomada pelo

desespero, insistia para que prosseguíssemos. Tomamos então um novo

corredor, de volta ao labirinto. Voltamos a andar com mais cuidado, mas

nenhum de nós estava calmo ou tranqüilo.

Este novo corredor era excepcionalmente longo. Quando estávamos

nos aproximando de mais um salão, porém, ouvimos novamente os

rosnados ecoando do caminho adiante. “Estamos perdidos”, murmurou

Ansgar. Novamente, senti que estávamos sendo observados.

“Corram”, eu murmurei, ofegante. “Corram sem olhar, sem

hesitar”.

Ansgar questionou-me: “O quê? Você enlouqueceu, Nicodemus?”.

“Confiem em mim”, eu disse, tomando a dianteira, mesmo com

todo o medo que sentia. Eu suava frio, como se ainda fosse mortal. Se

pensar bem, eu de fato contemplava a morte naquele momento. Então,

corri. Os demais também apressaram o passo, mesmo hesitando. O urro

seguinte ecoou com força, fazendo as paredes tremerem. Assim que

adentrei aquele salão, parei, gritando aos demais: “Vão, vão!”. Eles

continuaram correndo. Karina gritou para pegarem a primeira passagem à

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esquerda. Mesmo não podendo ver, senti os olhos de Leviathan me

encararem e pude perceber sua mandíbula se abrindo.

Os demais continuaram correr, mas Absolon, o último da fila,

parou assim que chegou à entrada do próximo corredor. “Nicodemus!”, ele

gritou. Eu tentei correr, mas então parei. Absolon gritou por mim

novamente, esperando que eu corresse em direção a ele. Ao invés disso,

senti a mandíbula de Leviathan fechar-se ao meu redor. Por um instante,

senti uma dor agonizante e perdi minhas forças, caindo no chão. Em

seguida, tudo ficou silencioso...

Ouvi passos apressados. Absolon corria, não para fugir, mas em

minha direção. Pude senti-lo tocar meu ombro. Eu tremia de medo, sentia

muito frio, mas tudo estava silencioso. Ouvi um rosnado distante, ecoando

pelos túneis pelos quais viemos. Então, apoiei minhas mãos no solo frio de

pedra e me levantei, com a ajuda de Absolon. “Senhor Nicodemus, você

está bem?”, ele repetia sem parar.

Assim que me levantei, fitei o túnel adiante. “Estou bem, Achille”,

eu respondi a Absolon, “muito obrigado. Você é mais corajoso que parece”.

“Eu não sou”, ele disse, repetindo logo em seguida: “não sou”.

Então, Absolon gritou para os outros: “Estamos bem! Esperem por nós!”.

Eu ainda estava meio zonzo, meu corpo ainda doía devido à experiência e,

por isso, precisei da ajuda de Absolon para prosseguir.

Os demais nos esperavam no salão seguinte. Assim que nos viram,

correram em nossa direção. O urro do Leviathan ecoou forte, emitido de

corredores distantes, mas ainda assim fez com que poeira se levantasse. “O

que aconteceu?”, perguntou Al-Malik. Um pouco melhor, dispensei a ajuda

de Absolon e disse: “Vamos prosseguir, vou explicar no caminho”.

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Page 88: Magna Veritas - Tiago José Moreira

E assim prosseguimos, constantemente ouvindo os rosnados,

passos e uivos distantes. E pelo caminho, expliquei aquilo que pude

concluir:

“Como Wang disse, um demônio... ou um Celestial... ou é

Obliterado ou reencarna. Isso é verdade, não há o que discutir. Porém,

Leviathan não é um caso típico”.

“Por ser poderoso demais?”, perguntou Wang.

“Não. Não notaram que este espírito não possui inteligência? Esta

coisa é puro instinto. Nós, Perquiratores, graças a Grande Veritatis, somos

estudiosos do reino dos espíritos. A alma contém todas as nossas

essências... Inteligência, instinto, poder, vontade, moral e até nossos

pensamentos mais sombrios”.

“Aonde quer chegar?”, perguntou Al-Malik.

“Por milênios, pensamos que Gabriel Obliterou Leviathan. Mas

agora encontramos parte de sua essência no Éden. E encontramos este

fantasma. Isto não é uma alma”.

“E o que é?”, o Malaki questionou novamente.

“Um fragmento. No passado, a consciência de Leviathan vigiou

esses túneis. Após a morte, este fragmento continuou a percorrer os túneis

que guardava. E também são essas memórias de Leviathan que se

manifestaram na forma das visões que tivemos antes”.

Absolon arriscou então uma teoria: “Quer dizer que a alma de

Leviathan se fragmentou em duas partes? Uma está em Libraria, a outra

aqui? E o que acontece se juntarmos as duas?”.

“Eu não sei. As respostas estão adiante. Precisamos continuar...”.

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Absolon, porém, me interrompeu: “Mas como você sobreviveu

ao fantasma?”.

“Ele tentou me possuir, mas, por eu ser Celestial, pude resistir.

Essa criatura não tem inteligência, apenas segue instintivamente o

propósito de vigiar estes túneis. Ele não tem poder real, é apenas um

fragmento”.

“Foi loucura você se sacrificar daquela forma”, Karina disse.

“Eu sentia que devia fazer aquilo. Como o Arcanjo deste grupo, era

meu dever”, respondi. “Vamos continuar, por favor”.

E assim, por algum tempo continuamos a percorrer aquele

labirinto. Urros e rosnados nos acompanhavam à distância, e às vezes eu

podia sentir o olhar de Leviathan nos focalizando, deixando nossos nervos

à flor da pele. Após muito caminhar, no frio e na escuridão, a lanterna de

Karina apontou para um novo grande portão. À frente, uma nova escadaria.

“Finalmente”, resmungou Ansgar, “eu ficaria louco se

continuássemos a caminhar por estes túneis por mais tempo. Vamos descer,

por favor”. Notava-se a ansiedade e o medo em sua voz.

Caminhamos em direção às escadas. Os últimos rosnados pareciam

cada vez mais distantes, sendo deixados para trás naquele labirinto. Porém,

quando começamos a descer as escadas, Wang parou e olhou para trás.

“O que foi, Wang?”, perguntou Al-Malik.

“Silêncio! Ouçam isso”, ele respondeu.

Ficamos em silêncio. Então, além dos rosnados distantes, pudemos

discernir um outro som ecoando. Baixo, também distante, mas contínuo. O

som de cascos de cavalo batendo em rocha.

“O que é isso?”, perguntou Ansgar.

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“Há mais alguém aqui além de nós”, respondeu Wang.

“Devemos ficar para descobrir o que é?”, Ansgar novamente

questionou.

“Não”, eu disse. “Vamos continuar”.

Ansgar não escondia o medo. Concordou imediatamente comigo.

Então, prosseguimos, descendo as novas escadarias, que também se

dispunham em espiral, com grandes degraus. Os sinais de batalha pareciam

desaparecer. Passo a passo, continuamos rumo ao centro de Dur Sharrukin,

onde provavelmente encontraríamos o local em que Gabriel e Leviathan

travaram uma batalha de vida ou morte, dois mil anos atrás.

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Capítulo 7: Khral-Harshek

“O próximo portão está logo adiante”, murmurou Wang, cuja voz

ecoou pelas escadarias. Ele ia à frente do grupo, seguido de perto por

Absolon e Karina. Eu e Fabrizia permanecíamos no meio, e Al-Malik e

Ansgar guardavam nossa retaguarda. Finalmente, após vários minutos

descendo aquelas escadarias, alcançávamos o terceiro e último nível de Dur

Sharrukin. As respostas que buscávamos certamente estavam adiante.

“Continua frio”, murmurou Karina, soprando as próprias mãos para

ver o vapor de água formando-se. “Acha que o fantasma de Leviathan

ainda está próximo, Philipe?”.

“A essência de Leviathan impregna toda essa fortaleza, Karina.

Não importa onde estejamos, ele estará perto. Porém, em cada nível, ele

parece manifestar-se de forma diferente”.

“E quanto aos sons de cavalo?”, perguntou Ansgar, sempre atento

caso algo venha descendo as escadas atrás de nós.

“Eu ainda não sei. Mas tanto no sonho quanto nas memórias deste

lugar, vimos um cavaleiro”, respondi.

“Seria ele, depois de mais de dois mil anos?”, Al-Malik

resmungou. “Não creio nisto”.

“Ainda é cedo demais para concluirmos qualquer coisa, mas você

tem de concordar que o cavaleiro dos sonhos e das visões é nossa única

pista”, argumentei.

“Silêncio”, pediu Wang, enquanto forçava o grande portão à frente,

o primeiro que encontramos fechado. Ansgar e Al-Malik dispuseram-se a

ajuda-lo a empurrar as pesadas portas de pedra. Lentamente, o portão se

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abriu, fazendo um forte barulho que ecoou pela imensidão de Dur

Sharrukin. Então, eu fitei a câmara adiante, e nada consegui ver.

Trevas. Embora uma treva sobrenatural percorra toda Dur

Sharrukin, limitando o alcance de nossa visão mesmo com a ajuda de

Poderes Celestiais, a câmara adiante era impregnada por uma essência

negra. O ar estava ainda mais frio e mesmo as luzes das lanternas de Karina

e Absolon pouco conseguiam penetrar naquele ambiente negro.

“Que lugar é esse?”, murmurou Fabrizia.

Wang, à frente, deu alguns passos na escuridão. “Não há um piso

ou paredes trabalhados aqui. É uma caverna, pura e simplesmente. Até o

chão é irregular”.

“Não se afaste, Wang”, pediu Karina. “Ou vamos nos perder uns

dos outros”.

Wang retornou. “Se o segundo nível foi feito para dividir o exército

celeste em muitos grupos, esta passagem tenebrosa foi feita para dividir os

grupos”.

“Talvez”, eu disse. “Ansgar, incendeie sua espada local com Fogo

Celestial”. Assim ele o fez e, para a surpresa de todos, a luz das chamas

celestes espantava, ainda que de forma limitada, a escuridão. “Como

pensei. A energia celeste nega a escuridão infernal”, murmurei, então

erguendo a voz: “Karina, Ansgar e Wang, vocês irão à frente. Os demais

ficam juntos de mim e dão-se as mãos. Nos guiaremos pela luz de Ansgar”.

“Boa idéia”, murmurou Al-Malik.

E assim, começamos a percorrer aquela caverna de paredes

irregulares e grandes dimensões. Prosseguimos lentamente, com cuidado

para não tropeçarmos nos diversos obstáculos pelo caminho. Após um ou

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dois minutos percorrendo aquelas câmaras, Karina assustou-se com algo.

Ansgar então disse em voz alta: “Venham aqui! Encontramos algo”.

Aproximamo-nos de nossos companheiros e vi Wang abaixado, analisando

uma ossada no chão. Ossos de pessoas e animais.

“Este seria um local de sacrifícios?”, perguntou Al-Malik.

“Não, as ossadas não estão completas”, disse Wang.

“Na verdade, acho que esses são os ossos do guardião deste local”,

eu interrompi.

Karina, assustada, perguntou: “Como assim, Philipe?”.

“Eles usaram restos humanos e animais para construir mortos-

vivos. Veja como as ossadas se completam, formando criaturas com

múltiplas cabeças e membros. Já ouvi falar sobre essas... coisas... mas

nunca tinha visto algo assim. Golens de Carne”.

“Golens de Carne?”, perguntou Absolon.

“Sim. Agora sua carne já desapareceu, mas são mortos-vivos. São

incrivelmente fortes, dizem. Acredito que deviam haver dezenas, talvez

centenas deles defendendo essas cavernas”.

“Provavelmente, serviam para atrasar e ferir ainda mais os

guerreiros que chegavam a este local”, disse Wang.

“Pode ainda haver mais dessas abominações aqui?”, perguntou,

assustada, Fabrizia.

“Não”, respondi. “Após a guerra, Dur Sharrukin foi expurgado.

Qualquer demônio ou ser infernal que não tenha fugido foi destruído.

Proteções foram criadas para impedir que voltassem. Pelo menos, é o que

os livros contam”.

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Page 94: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Ouvimos então um relinchar distante, vindo das escadas que há

algum tempo tínhamos deixado para trás. “Vamos sair logo daqui”, pediu

Karina. Todos concordaram, então prosseguimos. Após mais alguns

minutos caminhando naquela densa escuridão, notamos um novo portão à

frente, desta vez aberto. “É ali”, avisou Karina. Além do portão, as trevas

densas dissipavam, de forma que pudemos apressar o passo para deixar

aquelas câmaras escuras.

Assim que atravessamos o segundo portão, chegamos a um novo

salão, novamente com piso, teto e paredes trabalhados. O ambiente era

praticamente idêntico ao primeiro nível de Dur Sharrukin: um salão

gigantesco, suspenso por grandes colunas, e de dimensões tão grandes que

não podíamos ver seus limites. “Basta seguirmos em frente”, disse Karina.

Então, prosseguimos, olhando o ambiente tão familiar. “Porque

repetir a estrutura do primeiro nível?”, perguntou Absolon, enquanto

analisava o ambiente ao redor. Novamente, notávamos as marcas de

batalha, desta vez muito mais violentas: chão rachado, armaduras caídas,

ossadas, muralhas desabadas...

“Para que aqui pudesse ocorrer uma grande batalha”, sussurrou

Wang. “Não entendeu? O primeiro nível era uma distração, para forçar os

Celestiais a usarem suas energias. O segundo, para separa-los e feri-los. A

câmara negra, para que os que chegassem a esse nível demorassem a

alcançar as tropas que estivessem mais avançadas. Tenho certeza de que

aqui, esperando pelos Celestiais cansados e divididos, estava o verdadeiro

exército infernal”.

“Então, aqui ocorreu a verdadeira batalha”, murmurou Ansgar.

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Page 95: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Foi quando ouvimos um som forte ecoar. O mesmo som que foi

emitido pelo primeiro portão ao ser aberto. Olhamos para trás, e vimos o

portão pelo qual acabáramos de passar sendo aberto. “Mas o portão não

estava aberto quando chegamos?”, perguntou Karina.

“Estamos vendo o passado novamente”, disse Al-Malik.

Assim que o portão se abriu, adentraram vários Celestiais, todos

sujos de sangue e suor, com as faces cansadas, mostrando todo o medo e,

ainda assim, toda a determinação de alcançar o centro de Dur Sharrukin.

Era um grupo de quinze ou vinte, à sua frente estava o Arcanjo que vi

antes, de face incrivelmente familiar, empunhando uma espada que

brilhava com chamas celestiais. Lentamente, mesmo cheios de temores,

eles avançaram. Aos poucos, outros Celestiais, em duplas ou trios,

conseguiam atravessar a câmara escura e se juntavam ao grupo que tomava

a dianteira.

“Vamos acompanha-los”, gritei aos meus companheiros, referindo-

me aos Celestiais que avançavam. Eles avançavam, sempre

cautelosamente, todos armados e vestindo couraças que lhes protegiam o

peito. Alguns portavam elmos. Todos, sem exceção, tinham feridas ou

marcas de sangue no corpo. Então, mal o portão de entrada sumiu nas

trevas atrás de nós, a pequena tropa de Celestiais, na maioria Arcanjos,

parou. Na escuridão além, via-se acender chamas demoníacas, tanto o Fogo

Negro como o Infernal. E então, começou a ecoar o som de um exército

marchando. Várias centenas, talvez milhares marchando, gritando e

urrando, em direção a uma tropa que não tinha nem cinqüenta guerreiros

celestiais.

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Page 96: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Então, das trevas adiante, começaram a surgir os demônios.

Alguns confiavam em sua armadura e armas naturais, enquanto outros se

protegiam com metal e espadas. Alguns montavam grandes dragões, outros

abriam suas asas de couro para voar por sobre o exército demoníaco. As

primeiras chamas negras saltavam do exército inimigo, explodindo nas

proximidades de onde o pequeno grupo de Celestiais estava. Mas era como

se um mar de demônios avançasse.

O líder dos Celestiais abriu suas asas, grandes e metálicas,

levemente enegrecidas, mas ainda refletindo a poderosa luz azul que seu

corpo emitia. “Preparem-se! Protejam-se!”, ele gritou, batendo sua espada

no chão e criando uma grande muralha de chamas celestiais à frente. Ao

mesmo tempo, um outro Arcanjo do grupo emitiu um grito, e o chão

tremeu. A rocha sob o solo ergueu-se, criando um muro por trás das

chamas celestes. Tal muro, com cerca de quatro metros de altura e ligando

duas colunas, forçaria os Infernais a darem a volta para atacar pelo chão.

Erguendo-se no ar, um terceiro Arcanjo empunhou sua espada para lutar

contra as dezenas de demônios que vinham voando. Os demais Celestiais

do grupo começaram a preparar-se, empunhando armas, erguendo barreiras

de chamas celestiais, concentrando suas energias para ganharem força e

velocidade, ou simplesmente orando. E, então, Céu e Inferno chocaram-se.

O Arcanjo líder lutava bravamente, usando tanto espada quanto

asas para atacar seus oponentes e mantê-los à distância. Demônios menores

foram os primeiros a chegar. Podíamos ver demônios serem decapitados,

mas também Celestiais caíam, um a um, diante da horda demoníaca. Karina

gritou ao ver um demônio gigantesco derrubar um Arcanjo, arrancando-lhe

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Page 97: Magna Veritas - Tiago José Moreira

a cabeça. “Recuem!”, repetia aos gritos o líder. As tropas Celestiais

começavam a recuar, incapazes de segurar um exército tão numeroso.

Da escuridão atrás, de repente, mais Celestiais começaram a

avançar, fazendo Fogo Celestial explodir e o chão se rachar e se abrir. Os

dragões desferiam golpes com as caudas e patas que incapacitavam dezenas

de ambos os lados sem distinção. Relâmpagos, fogo e luz eram usados para

tentar conter o avanço dos demônios, e mais e mais Celestiais juntavam-se

à batalha, conforme chegavam ao grande salão. Porém, conforme mais

chegavam, mais Celestiais caíam. Em maior número, os Infernais

avançavam, como se cada baixa entre os demônios de nada significasse.

Foi então que senti uma força como nunca senti antes, mesmo

estando apenas observando o passado. Pude sentir uma aura majestosa, de

coragem e força, contagiando a cada Celestial ali presente. Então, veio uma

luz, tão forte e majestosa que removeu toda a escuridão de Dur Sharrukin,

iluminando todo o campo de batalha. Gritos de guerra ecoaram, conforme

centenas de Celestiais agora se juntavam à batalha, tornando-a mais igual.

Mas nada se comparava à visão daquele que flutuava sobre o exército

Celestial. Brilhando dourado como um sol, estendendo suas faixas de luz

por dezenas de metros, o Arcanjo Miguel fitava a horda infernal adiante.

Em sua mão direita, uma espada de fogo. Em seu corpo, uma armadura

dourada, que ampliava ainda mais o brilho de seu corpo.

E bastou aquela presença para que os rumos da batalha fossem

mudados. Os infernais começavam a recuar, conforme centenas de

Arcanjos derrotavam suas forças. Foi então que vimos duas figuras aladas

sobrevoarem o campo de batalha, passando por Miguel e prosseguindo.

Alguns Celestiais, incluindo o líder do pequeno grupo que resistiu

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Page 98: Magna Veritas - Tiago José Moreira

bravamente ao exército Infernal, também ergueram vôo para

acompanhar aqueles dois Primi, um de grandes asas metálicas e prateadas,

outro com asas cinzentas: Gabriel e Veritatis.

Então, a visão terminou.

Olhávamos ao redor, tudo estava silencioso novamente. À frente,

víamos os restos destruídos da muralha que um dos Arcanjos tinha elevado.

Estávamos paralisados de medo e admiração. Absolon balbuciava: “Era

Miguel. O Arcanjo. Meu Primus”.

“Isso é algo que nunca imaginei que veria em minha vida”,

sussurrou Ansgar. “Algo ainda mais grandioso e terrível do que a batalha

que vimos no primeiro nível desta fortaleza”.

“Mas... por que a visão parou?”, perguntou Fabrizia, ainda

boquiaberta.

“Talvez porque Leviathan deixou de observar quando os Primi

interferiram”, supôs Al-Malik.

“Vamos em frente”, pedi, me recompondo. “Estamos muito

próximos agora”. Tomei a frente, os demais me seguiram. Ainda assim,

comentavam os eventos que acabáramos de ver. Eu mesmo estava

totalmente impressionado com a coragem daqueles Celestiais e

maravilhado com a presença de um Primus em uma batalha.

Assim, continuamos a caminhar por aquele gigantesco salão, indo

sempre em frente, usando as colunas para nos guiarmos. Então, após cerca

de vinte minutos de caminhada, chegamos a um último portão fechado.

Novamente, Al-Malik, Ansgar e Wang forçaram-no para abri-lo. O som do

portão de pedra sendo aberto ecoou pela imensidão subterrânea. À frente,

um corredor, pelo qual prosseguimos. Não havia mais múltiplos caminhos,

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Page 99: Magna Veritas - Tiago José Moreira

apenas um único a seguir. Chegamos então a um salão, no qual

encontramos os restos de uma pequena batalha. Uma armadura negra

estava caída, partida por golpes poderosos de espada. Porém, ao analisa-la,

notei que não era a mesma armadura que o cavaleiro usava em nossos

sonhos.

“Vejam isso”, disse Karina, apontando para a passagem adiante:

uma caverna, com cerca de três metros e meio de altura por dois de largura.

As paredes eram naturais, sem o acabamento do resto do templo. Porém,

mal este caminho começava, ele era abruptamente interrompido por uma

barreira de rocha.

“Chegamos, finalmente”, murmurei, sentindo um arrepio percorrer

minha espinha. “Eu já li relatos. Adiante, estava a câmara de Leviathan e a

passagem para o Inferno. Este local foi lacrado depois que a passagem para

o Inferno se fechou. Precisamos arrumar um meio de abrir a passagem”.

Ansgar se prontificou a tentar remover as rochas. Porém, mesmo

com a força dele, o esforço era grande e levaria muito tempo. “Não corre o

risco do túnel desabar se removermos as pedras?”, perguntou Absolon.

“Não. As pedras foram colocadas para tampar o túnel e não

sustenta-lo. O túnel não desabou, e sim foi tapado. Por isso, se as

removermos, não haverá risco algum”, respondi.

“Afastem-se”, pediu Fabrizia. “Vou tentar algo”. Obedecemos e

saímos do túnel. Então, Fabrizia concentrou-se. Pude sentir sua energia

divina manifestar-se e, então, pouco a pouco, o solo sob as rochas abria-se

para engoli-las.

“Muito bem!”, eu murmurei. O esforço para ela era grande e

levaria tempo até que todo o túnel fosse desobstruído, então Ansgar e Al-

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Page 100: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Malik começaram a ajuda-la removendo parte das pedras, assim

reduzindo o trabalho de Fabrizia. Pouco a pouco, avançamos, até que, cerca

de trinta minutos depois, a passagem estava aberta. Por ela continuamos,

até finalmente chegarmos ao centro de Dur Sharrukin.

E ali estávamos. Era uma gigantesca câmara, provavelmente com

mais de vinte metros de altura e cinqüenta ou mais de largura, de forma

irregular, escavada em rocha maciça. A cerca de setenta metros de

distância, estava a parede oposta à da entrada, na qual víamos um outro

túnel que foi tapado por um desabamento. “A passagem para o Inferno era

ali!”, murmurei.

Absolon chamou-me: “Nicodemus, veja isso!”. Então apontou para

as paredes, que estavam totalmente preenchidas por escritas fabuláricas.

Tentei ler, mas o texto estava desorganizado e deformado. Os demais

permaneceram próximos à entrada, eu me aproximei das paredes, toquei

aquela escrita. “O que é isso?”, indaguei-me. Notava que havia grandes

buracos e rachaduras nas paredes, causados por impactos muito fortes.

Ainda assim, a escrita preenchia até mesmo estes buracos e ignorava as

rachaduras. No chão da câmara, haviam canais, preenchidos por rocha

enegrecida. “O que aconteceu aqui?”, perguntei.

Foi quando um som distante ecoou, vindo do túnel de entrada. Sons

de uma batalha distante. Com o susto, todos se viraram para a entrada. Eu,

porém, reparei que a escrita havia desaparecido. Um calor repentino e uma

luz avermelhada inundaram o local. Karina gritou assustada. Voltamo-nos

para o centro da grande câmara, e ali, parado, em pé, um homem nos

observava, calado, imóvel. Ele vestia um manto negro, com um capuz que

lhe cobria a cabeça. O ar crepitava ao seu redor, e os canais que

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Page 101: Magna Veritas - Tiago José Moreira

atravessavam a câmara agora eram preenchidos por rios de magma

fervente. Pontes de rocha permitiam atravessar os rios em segurança. O

rosto do homem era cinzento, seus olhos pareciam sem vida, sua face era

envelhecida e ressequida. Atrás dele, a passagem para o Inferno estava

aberta, levando a túneis iluminados pela luz vermelha do magma.

Ansgar sacou sua espada, gritando ao homem: “Quem é você? O

que quer?”. Al-Malik, porém, o segurou, dizendo: “É outra visão”. Foi

então que entendi aquele momento. Veríamos a batalha final. Estávamos

diante de Leviathan, que possuía o corpo de Nabucodonosor II, filho de

Nabopolassar, rei da Babilônia. Eu podia sentir as energias infernais

fluírem dos túneis adiante, preenchendo a câmara com a essência do

próprio Inferno.

Por alguns minutos, aquele homem permaneceu absolutamente

imóvel, enquanto os rios de magma da câmara emitiam estrondos e furiosos

jatos incandescentes. Então, destacando-se dos sons da batalha que crescia

feroz à distância, ouvimos os sons de um cavalo em corrida, cujos cascos

batiam furiosamente contra a rocha. Mal nos viramos para ver quem vinha,

o cavaleiro negro emergiu do túnel, passando, como se fosse um fantasma,

diretamente por nós. Seu corcel demoníaco parou um pouco adiante do

homem no centro da câmara, emitindo um feroz rosnado em seguido.

“Meu Senhor”, disse o cavaleiro com uma voz demoníaca, “nossos

inimigos atravessaram todos os níveis de vossa fortaleza e agora

confrontam seu mais leal e poderoso exército. Eles em breve estarão diante

de seus portões. O que deve ser feito?”.

O homem, sem mudar a expressão fria de seu rosto, fitou o

cavaleiro. Sua voz ecoou em seguida, inundando tanto nossos ouvidos

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Page 102: Magna Veritas - Tiago José Moreira

como mentes. Era como um trovão e fazia com que nossos corações

ardessem em desespero. “Khral-Harshek, o Caçador, Marechal de Æternus

Ignis, tu foste meu mais fiel cavaleiro. Desde teu renascimento, serviste-me

como a teu pai, e seguiste minhas palavras não importasse os riscos. Por

muitos séculos, preparei-te para este dia. Agora, é a hora do acerto de

contas entre trevas e luz. Em breve, o inimigo invadirá este santuário, e

então começará minha mais difícil contenda”.

“Sim, meu Senhor”, respondeu o cavaleiro, “estou agora pronto

para morrer por ti”.

“Não, tu não estás”, disse o Grande Lorde, erguendo a voz.

Tamanha foi a força de sua voz que perdi o equilíbrio e as dores em meu

peito aumentaram. Apoiei-me na parede, enquanto Karina e Absolon não

suportaram e caíram de joelhos. Os demais conseguiram manter seu

equilíbrio. Então, Leviathan prosseguiu: “Retorna ao nosso lar e aguarda

minha volta, meu fiel servo. Porém, caso eu caia perante o inimigo, saibas

que terás uma última missão a realizar em meu nome”.

“Sim, meu senhor”, respondeu o cavaleiro, sua voz infernal abafada

pelo elmo negro. “Diga-me o que deve ser feito”.

Novamente, ouvimos a terrível voz do Lorde do Sangue: “Caso

ouças meu grito de morte, deixa Æternus Ignis e parte para Gehenna.

Então, segue para o sul, para além das terras inférteis. Siga as sombras de

meu pai, através das montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a

voz que ecoará em tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que,

quando encontrar o vale no qual a única caverna é guardada por um dragão,

terás encontrado o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o

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Page 103: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Primogênito. E, feito isso, terá cumprido tua última missão. Em

pagamento, receberás vida eterna”.

O que significaria isso? Que tipo de missão era essa? Eu não

conseguia entender. Porém, o cavaleiro, sem hesitar, pôs-se a cavalgar,

atravessando as pontes sobre o magma, rumo aos túneis que o levariam ao

Inferno. Então, o Lorde do Sangue esperou, uma vez mais imóvel, no

centro daquela câmara.

Ouvimos então um som e, de repente, veio pelo túnel de entrada

uma criatura baixa e esguia, de pele escamosa e pequenas asas vestigiais,

vestindo trapos. Era um demônio e, em sua face, mostrava pavor. Ele

buscava fugir de algo ou alguém e, em desespero, adentrara a câmara.

Então, pela última vez, ouvimos a voz de Leviathan: “Covarde tolo. Tu

serás privilegiado. Fique. Veja. Assista a História sendo feita”. Quase

nocauteado pela voz de Leviathan, o pequeno demônio parou por um

instante, mas em seguida voltou a correr, passando pelo Grande Lorde e

prosseguindo em direção às cavernas que levavam ao Inferno.

Mal a criatura alcançava os túneis além, meus companheiros

arregalaram os olhos, vendo aqueles que em seguida pelo túnel de entrada.

Sentimos suas presenças e, instintivamente, demos passagem para eles,

mesmo sendo apenas imagens do passado. Primeiro Gabriel, com seus dois

metros de altura, trajando uma armadura peitoral de couro negra, por baixo

da mesma vestia trajes brancos, e na mão direita, segurava uma grande

espada de larga lâmina, cujo comprimento rivalizava o do próprio Primus.

Em seguida, adentrou Veritatis. Embora eu jamais o tenha visto em

minha vida, pude reconhece-lo de imediato. Ele era baixo, com cabelos

castanhos e barba grossa, mas não comprida. Em seus olhos negros e

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Page 104: Magna Veritas - Tiago José Moreira

serenos, refletia-se a imagem do oponente à frente. Ele vestia uma

armadura semelhante à de Gabriel, mas por baixo vestia um longo manto

cinzento.

Mal adentraram a câmara, os dois Primi tomaram direções

diferentes. Gabriel parou um pouco à frente da entrada, fitando o

adversário, enquanto Veritatis virou à esquerda da entrada, caminhou

alguns metros e então ajoelhou-se, começando a orar algo que eu não podia

compreender. As asas cinzentas de Veritatis abriram-se, rasgando seu

manto, mas sem danificar a armadura devido à abertura que ela possuía nas

costas. Então, as asas fecharam-se em volta do Primus, como se fossem

protege-lo.

Então, houve um silêncio perturbador. Gabriel empunhou sua arma

com ambas as mãos e, passo a passo, lentamente, caminhou em direção ao

inimigo. Suas asas surgiram, como grandes lâminas prateadas, e seu corpo

brilhou. E então Leviathan urrou, liberando um rugido de raiva mais

poderoso do que todos os rugidos que já tínhamos ouvido desde que

começamos esta busca. As paredes tremeram e o magma agitou-se, e então

a pele do corpo mortal que Leviathan usava rachou-se, sangrando. Seu

corpo cresceu, rasgando o corpo mortal e roupas, e ele caiu de quatro,

crescendo, arrebentando numa explosão de sangue a casca mortal que

usava. Assumindo a forma de um grande dragão, com mais de quinze

metros de comprimento, sem contar a longa cauda, ele abriu as imensas

asas, e urrou mais uma vez, mostrando suas grandes presas e vomitando

sangue fétido. Seus olhos ardiam em chamas, fitando o inimigo à frente:

Gabriel. Então, a espada e as asas de Gabriel arderam em chamas celestiais.

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Page 105: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Em minha mente, pude ouvi-lo murmurar, assim que pisou na ponte

sobre o primeiro rio de magma: “Lorde Sábio, dai-me proteção”.

Então, começou. Como se seu tamanho descomunal nada fosse,

Leviathan avançou, atacando com as garras da pata dianteira. Gabriel voou

para o alto, enquanto a ponte foi destroçada pelo golpe. Leviathan urrou,

vomitando chamas negras sobre o Primus, mas este atacou com a espada,

gerando uma onda de chamas celestiais para protege-lo. Num movimento

tão rápido que mal pude acompanhar, Leviathan jogou o corpo para o lado ,

atingindo Gabriel em cheio com sua asa, arremessando o Primus contra a

parede com tamanha força que o impacto pareceu uma explosão, abrindo

uma grande cratera e erguendo poeira.

Novamente, mal o impacto ocorrera, o grande dragão já avançava

em direção à poeira erguida, urrando, deixando pequenas crateras a cada

passo. O Lorde do Sangue atacou em meio à poeira, mas Gabriel saltou,

também numa velocidade incrível, escapando da mordida letal do monstro,

e usando a asa cortante para rasgar o pescoço do demônio. Antes que

Gabriel reagisse, porém, a cauda de Leviathan acertou-lhe um golpe

certeiro. O corpo do Primus foi arremessado como um boneco de pano, e

pude ver suas asas sumirem, conforme ele retornava ao Aspecto Humano.

Mal Gabriel caíra, rolando pelo chão, Leviathan já avançava

rapidamente, suas passadas fazendo a terra tremer. Gabriel, num

movimento rápido, ergueu-se, mas a mandíbula do dragão já estava sobre

ele. As mandíbulas já fechavam-se, obrigando o Primus a largar sua espada

para segurar as mandíbulas com as mãos, impedindo-as de fecharem-se.

As mãos do Primus sangravam, penetradas pelas presas pontiagudas do

monstro, e eu podia sentir Gabriel fraquejar, frente à força de Leviathan.

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Mas então, Gabriel gritou, liberando chamas celestes, incendiando toda

a cabeça do Lorde do Sangue. O demônio urrou e balançou com fúria a

cabeça. Gabriel largou as mandíbulas sendo jogado à distância.

O Primus caiu violentamente no chão, rolando no mesmo, rumo à

borda da vala pela qual passava um dos rios de magma. Enquanto isso, todo

o Leviathan incendiou-se em chamas negras, apagando os fogos de Gabriel,

e procurou seu adversário, tendo perdido-o de vista por um instante.

Gabriel despencou pela borda da vala, mas conseguiu agarrar-se,

impedindo a queda sobre o magma. Leviathan avançou urrando, deixando

um rastro de chamas profanas, preparado para abocanhar o Primus.

Assim que Leviathan estava prestes a alcançar Gabriel, este

impulsionou-se para a frente, escalando a borda na qual se segurava e, no

exato instante em que o dragão deu seu bote, o Primus rolou pelo chão,

logo abaixo da mandíbula do monstro. Ficando sob o pescoço de Leviathan

e fitando sua espada uns dez metros atrás do monstro, Gabriel correu, por

entre as patas e por sob o ventre do demônio. Assim que passava sob o

peito da criatura, o Arcanjo liberou suas asas, que saíram de suas costas

como lâminas afiadas, rasgando a barriga do demônio. Urros de dor se

seguiram, conforme as tripas de Leviathan caíam, jorrando seu sangue

fétido. Mas, assim que passou pelas patas traseiras do demônio, Gabriel

tentou erguer vôo, apenas para ser atingido num golpe certeiro da cauda.

Espantados diante de uma batalha que fazia a terra tremer,

olhávamos impotentes, sentindo-nos minúsculos diante daquilo. Ainda

assim, eu notava que Leviathan estava em constante vantagem, devido às

energias que fluíam do Inferno e inundavam aquela câmara. Nos milésimos

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de segundo nos quais Gabriel estava sendo arremessado pelo golpe da

cauda, eu me virei para fitar Veritatis.

E ali, como se a batalha não o afetasse, Grande Veritatis mantinha-

se orando. Foi quando percebi, com espanto, o jarro entre suas mãos, e nas

paredes formavam-se runas fabuláricas, que a partir de Veritatis iam

surgindo, aos poucos se espalhando por toda a câmara. Um ritual. Veritatis

fazia ali um ritual!

Então, os estrondos que se sucederam me forçaram a olhar

novamente a batalha. O primeiro estrondo fora causado pelo impacto de

Gabriel contra uma parede. Os demais, pelos passos do Leviathan. Quando

meu olhar encontrou os combatentes, Leviathan desferia um golpe com a

pata dianteira, tentando esmagar Gabriel contra a parede. O Primus

recolheu suas asas, provavelmente para não danifica-las, e então amorteceu

o impacto usando ambos os braços e uma das pernas. O corpo de Gabriel

iluminou-se com chamas celestiais, para que não fosse queimado pelo Fogo

Negro que Leviathan emitia. O demônio pressionava-o mais e mais,

fazendo a parede rachar, mas sem conseguir esmagar o Arcanjo. A pressão

tornou-se tamanha que a rachadura chegou ao teto, fazendo parte da parede

ruir, e o teto desabou sobre ambos, soterrando-os sob toneladas de rocha.

Por alguns segundos, houve silêncio. Notei que magma corria por

entre as fendas do desabamento. Então, Gabriel ergueu-se voando,

removendo rocha em sua passagem. Ele brilhava, totalmente coberto por

chamas celestes, em sua Forma Angelical. Uma explosão seguiu-se,

anunciando Leviathan, que saía violentamente dos escombros, coberto de

magma, mas sem as chamas negras que antes o protegiam.

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Os dois combatentes encararam-se. Leviathan seguia o Primus,

que flutuava, ardendo em chamas celestiais, vários metros acima. Gabriel

estava ferido e sentia dores, era possível notar. Já Leviathan, mesmo tendo

recebido golpes cortantes, não parecia sentir qualquer um de seus

ferimentos. Ainda assim, o Primus, fez com que as chamas de seu corpo

migrassem para suas mãos, formando duas grandes lâminas de Fogo

Celestial. Ele então avançou, mergulhando contra o demônio, desferindo

um golpe com uma das lâminas de fogo, atingindo a face do demônio, que

se incendiava. Enquanto Leviathan urrava, Gabriel pousou, tentando

degolar o infernal com um golpe de sua asa esquerda. A asa cortou a

traquéia do dragão, mas este então atacou rapidamente, mordendo a asa,

penetrando suas mandíbulas na mesma. Gabriel gritou de dor, e suas

espadas flamejantes desapareceram.

Segurando o Arcanjo pela asa, o Grande Lorde ergue a cabeça e

começou a balança-la, dilacerando ainda mais a asa do Primus. Então, a asa

rasgou-se, arremessando Gabriel mais uma vez a uma grande distância. O

Arcanjo caiu violentamente no chão, e Leviathan avançou. O Primus se

levantou a tempo de, mais uma vez, escapar de uma mordida certeira. Num

golpe poderoso, a mandíbula de Leviathan perfurou e esmagou a rocha do

solo, enquanto Gabriel escapava com um salto.

Gabriel notou então sua espada, caída a alguns metros de distância.

Porém, Leviathan ergueu a cabeça, cuspindo a terra em sua boca, e fitou o

Primus. Ambos se encararam, como se o próximo golpe fosse o último.

Mas Gabriel estava em desvantagem.

Foi quando senti novamente aquela aura de vigor que sentira antes,

no campo de batalha. Uma luz dourada inundou o túnel de entrada à

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câmara. Por um instante, Leviathan distraiu-se, e Gabriel correu em

direção à sua espada. Ao mesmo tempo, o Arcanjo Miguel adentrava,

trazendo consigo a força que igualaria a batalha. Outros o acompanhavam,

entre eles, novamente aquele Arcanjo que liderou bravamente os Celestiais,

e que eu achava tão familiar. Mas Leviathan então começou a perseguir

Gabriel, fazendo uma vez mais a terra tremer. Seu urro ecoou e, num salto,

o Primus dos Venatores agarrou sua espada, rolou no chão, parando

abaixado, de costas para o adversário. Leviathan abriu sua boca, saltando

no ar, pronto para o golpe final. E o Arcanjo Gabriel então abriu por

completo suas asas, deixou seu corpo brilhar intensamente em luz branca e,

impulsionando-se com as pernas saltou na direção do Grande Lorde. Com a

ajuda das asas, Gabriel virou-se no ar, encarando seu adversário, e a

bocarra de Leviathan fechou-se sobre a segunda asa de Gabriel, mas era

tarde demais para o demônio. Tudo o que vi em seguida foi o rastro de

chamas de celestiais deixadas pela espada do Arcanjo atravessando o

pescoço do Grande Lorde. A asa do Arcanjo estava arrebentada, tendo sido

arrancada pelo golpe do demônio, mas então jorrou o sangue fétido, e a

cabeça decapitada de Leviathan caiu, seu corpo tombando em seguida.

Gabriel caiu de joelhos assim que pousou no chão, após aquele

último salto. Seu corpo estava ferido, uma asa mutilada, a outra arrancada,

e o sangue divino escorria de seus ferimentos. Mas ele ergueu-se triunfante,

enquanto o urro de agonia de Leviathan começou a ecoar. Todos fitavam

Gabriel, que então se concentrou. E pudemos sentir o poder de Leviathan

escoar, seus urros repetindo-se, seu espírito tentando possuir aqueles que ali

estavam presentes. Podíamos perceber o poder daquela criatura, que

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parecia ilimitada, invulnerável, rosnando e tentando sobreviver. Mas a

força de vontade de Gabriel lutava para conter aquela monstruosidade.

Mas eu me lembrei de minha visão, e naquele momento fitei o

reino espiritual. E vi a essência de Leviathan lutar, debatendo-se, mas

também vi os escritos fabuláricos nas paredes brilharem, formando uma

rede que segurava o demônio. Então, sendo puxado por duas fontes, a

essência do Grande Lorde. Senti uma explosão no mundo espiritual e fechei

os olhos. Assim que os abri, notei apenas uma fumaça negra, que se

dissipava, como se absorvida pelas paredes de Dur Sharrukin.

Veritatis então levantou-se, e os Celestiais ali presentes correram

para acudir Gabriel. Fitei Veritatis, por um instante vi o jarro, mas então o

mesmo desaparecera. Ninguém mais o vira naquele dia. As visões por fim

terminaram. Estávamos uma vez mais ali, solitários, na câmara agora fria.

Ficamos em silêncio. Al-Malik caiu de joelhos e pôs-se a orar.

Ansgar sentou-se no chão, maravilhado com a visão daquela batalha.

Karina apoiou-se na parede, respirando ofegante, quase chorando. Fabrizia

abraçou Absolon. Wang permaneceu em silêncio. E eu fiquei ali parado,

fitando o local em que Veritatis permanecera realizando o ritual.

“Gabriel de fato Obliterou Leviathan”, murmurou Ansgar. “Então,

como pode existir o jarro ou o fantasma?”.

“A alma de Leviathan partiu-se em três”, respondi. “Veritatis

interferiu na Obliteração. A maior parte foi de fato destruída por Gabriel.

Mas não tudo: sua essência, contendo parte de seu poder e memórias, foi

aprisionada no jarro por Veritatis. O pouco que escapou impregnou-se em

Dur Sharrukin, dando origem ao fantasma”.

“Como sabe?”, perguntou Al-Malik.

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Page 111: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Eu vi. Era o que eu vim ver, nosso propósito aqui. E eu vi”.

Foi então que ouvimos o som do galopar de um cavalo, vindo

através do túnel de entrada da câmara. Ansgar levantou-se imediatamente,

sacando sua espada. O mesmo fizeram Al-Malik e Lo Wang. Os demais se

afastaram, mas todos estavam preparados para lutar. Karina, Fabrizia e

Absolon pegaram suas armas de fogo.

Então, pelo túnel, entrou o cavaleiro negro, montado em sua

montaria infernal. Através de seu elmo negro, pude fitar seus olhos

vermelhos, que brilhavam intensamente. O cavalo, cuja boca exibia presas

afiadas, relinchou.

Eu, notando que o demônio manteve sua espada embainhada e

ficou à distância, dei um passo à frente, chamando-lhe a atenção: “Khral-

Harshek, eu presumo”. Ele consentiu com a cabeça. “O que deseja?”,

perguntei.

“Eu sou o Guardião de Leviathan, mesmo após sua morte continuo

leal a meu Senhor. Vocês vieram em busca de respostas, eu permiti que as

tivessem, para que soubessem que o ser que tanto idolatram, Uriel-

chamado-Veritatis, mentiu, e nisso não só prolongou o sofrimento de meu

senhor, como trouxe graves conseqüências a vocês. Agora, saiam”.

“Espere”, eu interrompi. “Ainda quero algumas respostas. Que

missão Leviathan lhe deu? O que significa cavalgar sessenta anos para o

sul?”.

“O Lorde do Sangue escolheu Khral-Harshek para guardar seu

legado. Assim, Khral-Harshek seguiu a busca que Leviathan lhe incumbira.

Por sessenta anos, Khral-Harshek viajou pelos Reinos Infernais, e onde seu

mestre dissera, ele encontrou a Sombra”.

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Page 112: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“A Sombra?”, sussurrou Karina.

“O primogênito, primeiro entre as Crias de Ialdabaoth. Ali, as

memórias que Leviathan dera a Khral-Harshek despertaram. Ali, Khral-

Harshek mudou, se tornou algo mais e algo menos do que era. Os limites de

Khral-Harshek desapareceram, mas também sua mente mudou, e, assim,

Khral-Harshek foi chamado pela sombra de ‘irmão’ e proclamado o 13o.

Filho”.

“Mas você não é Khral-Harshek? Por que se refere a ele como

outra pessoa?”, perguntei.

“Não, eu sou Khral-Harshek. O 13o. Filho ainda tinha as memórias

de sua antiga vida e, como recompensa pela minha lealdade, deu a essas

lembranças forma física. Como prometido, sou imortal, visto que o 13o.

Filho pode me recriar caso minha morte venha. Assim, retornei a Dur

Sharrukin, para novamente servir meu senhor. Tenho sido seu guardião

desde então”.

Eu não conseguia compreender totalmente. Ele falava de Khral-

Harshek como se fosse outra pessoa... outra vida, mesmo sendo ele próprio.

Desejando pensar nisto mais tarde, fiz uma nova pergunta: “Por que essas

coisas estão acontecendo agora? Por que só agora a essência de Leviathan

parece ter despertado no Éden?”.

“Seus irmãos o chamam. Ele ouviu seu chamado”, o cavaleiro

respondeu.

“Eu não entendo. Qual o sentido disso tudo? Qual a razão do vazo

existir?”, perguntou Al-Malik.

O cavaleiro então deu meia-volta. Antes de partir, disse: “Eu não

sei. Tudo o que sei, é que os Filhos de Ialdabaoth estão se erguendo.

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Page 113: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Pergunte ao causador disso tudo, aquele que chamam de verdade, mas

criou apenas mentiras. Encontrem a verdade, se quiserem respostas”.

Então, o cavaleiro pôs-se a cavalgar, desaparecendo na escuridão além do

túnel.

Eu e meus companheiros nos observamos. “Acho que nossa missão

terminou, não?”, disse Absolon. “Descobrimos o que aconteceu a

Leviathan”. Eu, porém, apenas disse: “Vamos sair daqui”.

E assim, retornamos. Uma vez mais atravessamos o grande salão, a

câmara negra, as escadarias, o labirinto e o primeiro nível. Por todo o

caminho, estávamos em silêncio, e eu permaneci pensando, tentando ligar

os fatos e encontrar as respostas. Alcançamos finalmente as cavernas que

nos levariam à superfície. Então conforme chegamos às ruínas da cidade

Assíria de Dur Sharrukin, encontramos o Arcanjo Adonijah, que nos

esperava ansioso.

“Eu estava preocupado com vocês”, disse Adonijah. “Felizmente,

noto que nada sofreram, pelo menos fisicamente. Encontraram as respostas

que procuravam?”.

“Sim”, disse Fabrizia.

“Não”, interrompi. “Encontramos peças do quebra-cabeça, mas

ainda não pudemos monta-lo”. Os outros me olharam, confusos.

“É melhor falarem com o Conselho, Nicodemus”, disse o Arcanjo.

“Não, eu não irei”, eu respondi seriamente. “Diga-lhes que é de

fato parte de Leviathan que está no jarro. Diga que nosso Primus, Grande

Veritatis, impediu que a alma do Grande Lorde fosse totalmente destruída.

Diga-lhes que ele planejou isso tudo”.

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Page 114: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Adonijah arregalou os olhos como se eu tivesse falado uma

heresia. Na posição dele, eu faria o mesmo. Então, acrescentei: “Porém,

ainda não sabemos o porquê. Ainda não sabemos qual o propósito do jarro,

nem o que realmente está acontecendo”.

Virei-me então para meus companheiros, mostrando-me

determinado. “Ainda não sabemos quem são os anjos aprisionados, nem

encontramos o sentido para o velho louco que grita em desespero. E não

sabemos o que o tigre significa. Nossa missão não acabou. Nós passamos

por muito, e acho que isso é apenas o começo. De certa forma, tudo o que

vimos... acho que foi para nos preparar. Isso significa que será perigoso, e

por isso cada um pode escolher desistir, mas eu quero continuar. Gostaria

que tomassem a decisão que fosse mais segura para vocês”.

“Está brincando, certo?”, perguntou Absolon. “Começamos isso

juntos, vamos terminar juntos”. Os demais concordaram. Acabei esboçando

um sorriso.

“Por onde continuarão essa busca?”, perguntou Adonijah.

Calei-me por um instante, lembrando-me do pesadelo que tivera na

noite anterior. Lembrei-me do tigre e dos locais mostrados na visão. Então,

respondi: “Em meu último sonho, vi o tigre matando inocentes em uma

cidade e depois se dirigir para outra. Na primeira cidade, tive a visão de um

local no qual eu já estive. Tenho certeza de que sei qual é essa cidade. É lá

que iremos começar”.

“Que lugar é esse que você viu?”, perguntou Al-Malik.

“Uma praça belíssima... Eu a reconheci como Maidan-i-Shah”,

respondi.

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Page 115: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Al-Malik imediatamente arregalou os olhos. Eu sabia que ele

conheceria o local. “A praça real de Isfahan!”, exclamou.

“Isfahan?”, perguntou Absolon.

“Eu também já estive lá!”, disse Karina, “É a segunda maior cidade

do Irã! É um lugar lindo”.

Virei-me então para Adonijah: “Por favor, Senhor Adonijah, vá e

avise o Conselho de nossa decisão”. O Arcanjo concordou e deixou nossa

presença. Voltando-me a meus companheiros, disse-lhes: “Vamos a

Isfahan. Quero descobrir mais sobre esse tigre”.

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Page 116: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 8: As Chamas de Zoroastro

O céu estava coberto por nuvens negras e pesadas, mas chuva

alguma caía. No horizonte distante, a oeste, podíamos ver pesados raios, e o

vento frio soprava do leste. Mesmo podendo ver perfeitamente na escuridão

da noite, as nuvens se estendiam de horizonte a horizonte, enegrecendo o

céu por completo, impedindo que a Lua ou as estrelas iluminassem a noite.

Prosseguíamos, voando baixo, rumo ao norte, rumo a Isfahan.

“Por que não abriu seu portal já na cidade?”, perguntou Ansgar,

falando em voz alta por causa do uivo forte do vento. Abaixo, nuvens de

areia erguiam-se. Era como se um vendaval se aproximasse.

“Faz anos que não a visito, não pude pensar em nenhum lugar bom

para abrir o portal sem que ninguém pudesse nos ver”, respondi. “Por isso,

abri o portal alguns quilômetros ao sul da cidade. Voando, chegaremos lá

em poucos minutos”.

“Espero chegar logo”, gritou Fabrizia. “Essa tempestade não é

natural”. Ela estava certa... Na verdade, apesar da imensidão das nuvens

negras, estávamos distantes do centro da tormenta. Mas ainda assim, havia

uma presença estranha no ambiente, algo que me deixava ansioso e

assustado.

Quando a luzes da cidade de Isfahan surgiram adiante, eu gritei aos

demais: “Temos que ocultar nossa presença! As pessoas podem nos ver!

Contenham a sua aura!”. Assim foi feito, uma a uma, as auras luminosas de

nossas formas celestes foram se apagando. Menos de um minuto depois,

sobrevoávamos a grande cidade de Isfahan.

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Page 117: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Parece que houve um vendaval forte, o que é atípico”,

murmurou Al-Malik, assim que diminuíamos nossa velocidade, planando

por sobre a cidade.

“Não houve chuva alguma, apenas vento e trovão”, disse Fabrizia.

“E há algo neste lugar que me dá medo”, completa Ansgar.

“Não é o local, isto eu garanto”, disse Al-Malik. “Isfahan é um

local de fé e conhecimento”.

“Mas algo esteve aqui hoje”, falei em voz alta. “Precisamos seguir

ao local que vi em meu sonho. Maidan-i-Shah, a Praça Real”.

“Por ali”, apontou Karina, tomando a dianteira. Seguindo-a,

passamos por rios e magníficas pontes, sobrevoamos grandes mesquitas e,

finalmente, após passarmos pela mesquita real de Masjid-i-Shah, chegamos

à grande praça, uma das maiores do mundo. Era madrugada, provavelmente

ainda restariam cerca de três horas antes que o Sol nascesse, e não víamos

ninguém nas ruas. Ainda assim, pedi: “Seria melhor que nos ocultássemos

para descer. Eu posso ocultar a mim mesmo, mas e quanto a vocês?”.

“Não se preocupe”, murmurou Wang, fitando-me. “Cuidarei para

ninguém possa ver o grupo”. Agradeci, então descemos. E então meus

companheiros puderam melhor fitar a beleza da Praça Real. Cercada por

bazares e galerias de lojas, a imensa praça tinha 500 metros de

comprimento por 150 de largura. Ao sul, estava a belíssima mesquita real,

imponente. Pousamos próximos a um grande chafariz, no centro da praça.

“Falem baixo”, murmurou Wang assim que tocamos o chão e

retornamos a nossas formas humanas, “e não façam nada brusco, ou a

ilusão que nos cobre será quebrada”. Concordamos. Ansgar, Fabrizia e

Absolon observavam maravilhados o local ao redor, enquanto Karina e Al-

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Page 118: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Malik permaneceram quietos, visto que já conheciam o local. Wang

continuou com sua fachada de aparente indiferença.

Me afastei um pouco do grupo, olhando ao redor. O local estava

calmo, desértico. Provavelmente, guardas o vigiavam dos bazares ou

mesquitas. Era como se nada tivesse ocorrido ali. Mas ainda assim, eu

sentia uma presença vestigial, como se algo tivesse passado por esta cidade.

Algo negro, maior do que qualquer outra coisa que eu sentira em toda a

minha vida. Al-Malik aproximou-se: “Encontrou algo, Nicodemus?”.

“Não”, respondi. “Algo ocorreu nesta cidade, mas não aqui, neste

lugar. Provavelmente, os Guardiões me mostraram a Praça porque assim eu

poderia reconhecer a cidade em meus sonhos”.

“E o que faremos?”, perguntou Wang, sentado próximo ao chafariz,

mas prestando atenção em nossa conversa.

“Eu sou um Perquirator. Os espíritos me dirão. Esperem-me aqui”.

Tendo dito aquilo, fechei os olhos e concentrei-me. Esquecer o material e

sentir a essência, buscar o fluir da vida e o vácuo da morte, encontrar a

própria alma: esse é o caminho para o mundo espiritual. E, tendo feito isso,

abri meus olhos para vislumbrar a essência de Maidan-i-Shah. E aqui, sua

beleza brilhava, iluminando a noite. A vegetação decorativa brilhava e

pulsava com vida, tamanha era o poder da fé islâmica, que raios de luz

penetravam as nuvens negras acima e iluminavam toda a extensão da praça,

das mesquitas e dos bazares ao meu redor.

Então, dei meus primeiros passos naquela paisagem espiritual,

assumindo minha Forma Angelical. Levantando vôo, elevei-me nos céus

turbulentos e pude ver que pouco restava da tempestade no mundo

espiritual. Porém, fitando para o horizonte a oeste, notei-o vermelho

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Page 119: Magna Veritas - Tiago José Moreira

sangue, e uma tempestade, tão furiosa quanto um furacão, parecia estar

se formando lá. Seja o que for que passou por Isfahan, agora estava distante

e se dirigia para o ocidente, trazendo consigo uma tormenta de energias

infernais. Por um instante, perguntei-me se realmente queria seguir esse

rastro de destruição, mas sabia que havia apenas uma atitude a tomar.

Então, abrindo meus braços, gritei: “Guardiões dos ventos,

espíritos do ar, crias da tempestade, venham! Vossa ajuda é requisitada!”.

Imediatamente, pressenti a presença dos mesmos. Senti um sopro gentil,

seguido de sussurros, e correntes de vento espiralavam ao meu redor,

carregando folhas e poeira. E um murmúrio gentil ecoou em meus ouvidos:

“Em que podemos ser úteis?”.

“Vim para descobrir as causas da tempestade que traz caos a seus

protetorados”, falei em voz alta aos elementais que me cercavam. “Pois sei

que uma presença negra percorre o mundo dos vivos. Vi em meus sonhos

que esta presença derramou sangue nestas terras. Gostaria que me

dissessem o que é este ser que deixa pegadas de tempestade, e onde tal

criatura derramou o sangue do homem”.

Os espíritos conversaram entre si, mas tudo o que eu podia ouvir

era o soprar do vento. Então, as correntes de ar se espalharam, formando

uma forte ventania, poderosa e cheia de vida. “O tigre traz tempestade”,

sussurraram os ventos. “O tigre é a morte”. Então, fitei novamente o

horizonte vermelho a oeste. Vermelho fogo. Vermelho sangue. Por algum

motivo que desconheço, uma citação bíblica veio-me à mente: “Olhei e vi

um cavalo baio e quem nele montava tinha por nome Morte e o inferno o

seguia”.

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Page 120: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“E quem foram suas vítimas? Aonde o sangue foi derramado?”,

perguntei aos elementais.

“Não sabemos”, responderam.

“Então, perguntem para a terra e as águas, por favor. Digam-lhes

que caço esta criatura que veio para trazer destruição”. Os ventos

atenderam meu pedido: pude sentir a ventania desaparecer, conforme os

elementais ao meu redor se separavam e se afastavam. Ali permaneci,

esperando uma resposta e fitando aquele distante céu vermelho. Após cerca

de quinze ou vinte minutos de espera, percebi um ponto em especial no

oeste. Mesmo estando a vários quilômetros de distância, pude discernir

uma aglomeração de vultos enegrecidos e uma névoa cinzenta sobre uma

colina. Olhando aquele ponto, tive uma sensação de tristeza e senti um frio

repentino... Um sinal de morte.

Fiquei fitando aquele ponto, quando os ventos sussurraram

novamente: “a terra bebeu sangue de homens a noite passada”.

“Onde?”, perguntei.

“Atashgah, o local do fogo”, eles responderam. Era o ponto que eu

fitava. Agradeci aos espíritos e pousei. Então, recolhendo minhas asas,

concentrei-me para retornar ao mundo da carne. Assim que meus

companheiros me fitaram, não pude esconder minha expressão de

preocupação.

“O que descobriu, Nicodemus?”, perguntaram-me.

“Abram suas asas, temos que nos apressar”, respondi,

imediatamente assumindo a Forma Angelical. Confusos, os demais me

imitaram, e parti na frente, em direção aos céus. O grupo estava logo atrás

120

Page 121: Magna Veritas - Tiago José Moreira

de mim. Notando meu estado, Karina aproximou-se. “O que está

havendo, Philipe?”, ela me perguntou.

“Estamos indo para o oeste. Sete quilômetros além da cidade, na

verdade. O local se chama Atashgah, o ‘Local do Fogo’. É um local em que

os antigos zoroástricos adoravam a Deus”.

“Eu já estive em Atashgah. Há uma vista linda de Isfahan de lá.

Mas o que aconteceu ali?”, ela perguntou.

“Há câmaras secretas no local, construídas pelos antigos magos

zoroástricos. Este local é um dos mais importantes templos do Círculo de

Uriel. Foi lá que ocorreram as mortes que vi em meus sonhos”.

Não demorou para que alcançássemos o topo da colina na qual

estava Atashgah. Fui o primeiro a pousar, próximo à pira na qual um dia as

chamas de Zoroastro foram mantidas constantemente acessas. As ruínas de

antigas muralhas nos cercavam e, à frente, estavam os restos, ainda em pé,

de uma estrutura circular. A leste, víamos as luzes de Isfahan. A oeste,

notávamos a tempestade se distanciando mais e mais.

“O que viemos fazer aqui?”, perguntou Absolon.

“Este lugar é Atashgah, não é?”, perguntou Al-Malik. “Foi um

templo zoroástrico no passado”.

“Foi aqui que ocorreram as mortes que Nicodemus viu no sonho”,

respondeu-lhes Karina.

“Temos de descer. A entrada está mais abaixo na colina”, eu disse a

todos. Como ainda estávamos na Forma Angelical, ergui-me no ar e, tomei

a frente, flutuando enquanto descia a colina. Os demais me seguiram. Foi

quando revolvi contar-lhes um pouco mais sobre a importância deste lugar.

“Algum de vocês já ouviu falar no Círculo de Uriel?”, perguntei.

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Page 122: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Eu sim”, respondeu Al-Malik. “Não é uma ordem cabalística

dedicada a estudar as criaturas da noite?”.

“Sim. Embora eu não conheça suas origens, é dito que o fundador

do Círculo teve uma visita de Grande Veritatis em pessoa. Desde seu

começo, o Círculo tem sido protegido pelos Veritatis Perquiratores, e os

mais altos membros da ordem são Acólitos que conhecem a nossa

existência. O Círculo tem o papel de estudar o sobrenatural e vigiar

quaisquer eventos que tenham alguma importância mística. São nossos

olhos entre os mortais”.

“Há alguma relação entre o Círculo de Uriel e este local?”,

perguntou Absolon.

“Sim”, respondi. “Nesta colina, há séculos, magos zoroástricos

criaram um templo subterrâneo. Após o fim da ordem, o Círculo de Uriel

redescobriu as ruínas subterrâneas e as ocultou, tornando-as uma de suas

bibliotecas e centros. Como Isfahan era o centro da Pérsia naquela época,

este se tornou um dos mais importantes templos urielitas na Ásia”.

Foi quando chegamos à face da colina na qual estava a entrada do

templo. Escondida atrás de uma grande rocha, havia uma passagem pela

qual um ser humano poderia passar, abaixado. “É aqui”, avisei, retornando

à forma humana. Os demais fizeram o mesmo.

“Deixe-me tomar a frente”, pediu Wang, cobrindo a cabeça com o

capuz. Abaixando-se e esgueirando-se pelo buraco, ele adentrou primeiro.

Fui em seguida. À frente, um pequeno túnel escavado na rocha, no qual

podíamos ficar em pé. Ansgar veio logo atrás de mim. Nossos olhares

brilhavam na escuridão, e pude perceber que à porta à frente, camuflada

para se parecer com a rocha, estava aberta.

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Page 123: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Além da porta adiante, estavam corredores antiqüíssimos

escavados na rocha. Senti um cheio ruim, uma mistura de queimado e

sangue. Karina, que vinha após Ansgar, ligou a lanterna, iluminando o

salão à frente. Caminhamos pelos salões, todos pequenos com alguns

móveis, sem luxo algum. As velas que iluminavam o local estavam todas

totalmente consumidas. Wang retrucou: “Esse cheiro... eu sugiro que não

avancem”.

“Eu preciso”, respondi. Tomando a frente, caminhei em direção à

sala adiante. O cheiro era de carniça e se tornava mais forte a cada passo.

Quando cheguei à entrada da sala, parei para observar uma cena grotesca.

Karina estava logo atrás de mim, e assustou-se quando sua lanterna

iluminou aquele lugar. “Pelo amor de Deus”, ela murmurou.

À nossa frente, estavam uma grande mesa quebrada, diversas

cadeiras destruídas e, mais impressionante, os restos mortais de um homem

espalhados pela sala. Marcas de sangue manchavam as paredes, o chão e

todo o teto, e o corpo estava tão mutilado e despedaçado que mal lembrava

um ser humano. Karina não agüentou fitar aquela cena por muito tempo,

fechando os olhos e virando o rosto. Absolon, que entrara por último do

grupo, foi até ela e, segurando sua mão, pediu que ela voltasse.

Eu, porém, caminhei à frente. O cheiro forte e pútrido da morte me

deixava enjoado, sentia meu estômago revirar, mas comecei a avaliar o

local. Wang adentrou também, assim como Al-Malik. “Pegadas”, apontou

Wang. Observei as marcas deixadas no sangue: pegadas de um felino.

“Vamos para a próxima sala, peça aos outros que permaneçam na

entrada”, pedi aos dois que me acompanhavam. Wang permaneceu comigo,

enquanto Al-Malik foi avisar os demais, para em seguida retornar. Juntos,

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Page 124: Magna Veritas - Tiago José Moreira

os três prosseguimos, apenas para ver mais carnificina. As salas adiante

tinham sido consumidas por chamas, e encontrávamos corpos carbonizados

e mutilados. Eu pude contar pelo menos oito corpos. Provavelmente, eles

estavam reunindo-se quando o ataque aconteceu. A biblioteca foi

totalmente destruída. E, por toda parte, marcas de garras que rasgavam a

rocha ou sinais e patas no sangue seco que incrustava o chão. “Não houve

qualquer piedade aqui”, murmurou Wang. “A criatura adentrou sem hesitar.

Há anos não via algo assim”. Pude notar que Wang não parecia mais tão

frio, estava desconfortável naquele lugar.

“Por quê este lugar?”, perguntou Al-Malik, observando um corpo

carbonizado. “O que o demônio buscava aqui?”.

“Eu não sei”, sussurrei. Então, parei no meio da biblioteca, fitando

as paredes manchadas de fumaça e sangue. “Talvez eu veja as respostas no

passado”.

“Tentarei o mesmo”, disse Al-Malik.

Fechei os olhos assim que vi Al-Malik concentrar-se. Desejei ver

aquele momento, canalizei minhas energias e, então, ao ouvir gritos de dor

e rosnados furiosos, abri meus olhos e encarei o passado.

E, naquele momento do passado, as luzes elétricas, alimentadas por

um gerador movido a querosene, estavam acesas, e vi três homens,

desesperados, tentando refugiar-se na biblioteca. Eles tentavam barrar a

porta, mas as batidas violentas da criatura os empurraram, derrubando dois.

O terceiro correu para os fundos. Antes que um deles levantasse, o tigre

avançou, mordendo com força sua cabeça. O outro se levantou e também

correu para os fundos. A sala anterior estava em chamas. Balançando o

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Page 125: Magna Veritas - Tiago José Moreira

homem que segurava com as mandíbulas, o tigre o decapitou

esmagando o crânio com as mandíbulas.

O rosnado do tigre seguiu-se, e bastou aquele som para que os

livros todos se incendiassem. As luzes estouraram e algumas prateleiras

desabaram, espalhando chamas por toda a parte. Um dos homens fora

soterrado sob os destroços flamejantes. O tigre avançou sobre o terceiro,

que se encontrava encurralado contra a parede. “O que você quer?”, repetia

aos prantos o homem. Nenhuma resposta. O tigre avançou sobre ele,

derrubando-o e dilacerando-o com as garras. O sangue espalhava-se pela

parede, enquanto o fogo estendia-se sobre os dois, consumindo apenas o

homem. Diante daquela crueldade, sufocado pelo cheiro de fumaça, eu

desejava parar de observar. Mas esforcei-me para manter minha vigília. O

fogo e fumaça tomavam todo o salão. O tigre rosnou novamente, e então

correu em direção à porta pela qual tinha entrado.

Despertei de meu transe. Al-Malik já estava à minha frente,

esperando que eu terminasse de ver aquela cena. “O tigre não queria nada

nesta biblioteca”, ele disse.

“Realmente”, murmurei. “Vamos observar mais”. E assim fizemos.

Porém, logo tínhamos investigado todos os quartos, salões e corredores

daquele pequeno templo. Tudo fora destruído. Dez corpos, nenhuma pista

que nos levasse ao motivo pelo qual o tigre fizera aquilo. Então, nós três

saímos daquele local e encontramos nossos companheiros na saída.

Ali, sob aquelas nuvens pesadas, sentei-me sobre uma rocha,

pensativo. Os demais perguntavam o que tínhamos descoberto. “Nada”,

respondeu Wang. “O tigre de nossos sonhos esteve aqui, mas não sabemos

porquê, nem sabemos nada sobre ele”.

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Page 126: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Seja o que for, este tigre de alguma forma está relacionado a

Leviathan, senão ele não estaria em nossos sonhos”, disse Al-Malik.

“Como os eventos se encaixam, eu não tenho idéia”.

“Então, o que temos?”, perguntou Fabrizia.

Absolon dispôs-se a responder: “Leviathan, Veritatis, o Círculo de

Uriel, o tigre. Se encontrarmos o que os liga, talvez saibamos o que fazer”.

“Veritatis aprisiona, por motivos desconhecidos, parte de Leviathan

num jarro”, eu murmuro, continuando: “E agora, um tigre... ou melhor, um

demônio em forma de tigre surge destruindo um templo da ordem de

estudiosos que Veritatis fundou”.

“O tigre persegue o velho”, disse Karina. “Pelo menos foi assim em

nossos sonhos”.

“É verdade... mas não sabemos nada sobre o velho”, eu falei.

“Talvez devamos investigar o Círculo de Uriel, então”, sugeriu Al-

Malik. “O tigre não pode ter vindo aqui por nada”.

Ouvindo a sugestão de Al-Malik, imagens começaram a vir em

minha mente. O segundo sonho! Agora me lembro da segunda cidade! “Al-

Malik, talvez você tenha razão!”, disse em voz alta, enquanto me levantava.

“Eu me lembro de meu segundo sonho! A cidade na qual dois irmãos se

apunhalavam! O caminho pelo qual homens carregaram cruzes sob o olhar

de romanos!”.

Al-Malik parecia compreender. “A Via Crucis em Jerusalém?”.

“Sim. Outro dos importantes centros dos urielitas está na velha

cidade de Jerusalém! Após a chacina em Isfahan, o tigre se dirigia para lá!

Mas havia ainda um segundo mal, que pulsava sob a cidade”.

“Então, vamos a Jerusalém?”, perguntou Absolon.

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“Não”, respondi e, sem seguida, fitei o oeste, vendo a tormenta

além. “O tigre ainda deve demorar a chegar lá. Quero aproveitar o tempo e

saber qual a ligação do Círculo de Uriel com isso. Nós vamos a Chak-

chak”. Assim que falei, assumi novamente o Aspecto Celeste, liberando

toda a minha aura luminosa.

“Chak-chak?”, perguntaram, quase juntos, Ansgar e Absolon.

“É um dos mais antigos templos zoroástricos ainda ativos. É dito

que as chamas do templo estão acesas continuamente há mais de dois

milênios. Espero que aquele local ainda esteja inteiro, que o tigre não tenha

passado por lá, mas lá está um dos mais sábios e antigos magos urielitas”.

Fitei então meus companheiros. “Vamos nos apressar. Temos que

prosseguir para o leste. Temos que atravessar o deserto de Lut antes que

amanheça”.

“Se você diz”, sorriu Absolon, abrindo suas asas em forma de

faixas de luz, “quero conhecer este local”. Os demais também assumiram

suas formas celestes e, finalmente, partimos.

E assim voamos pelos céus do Irã, atravessando regiões

montanhosas, passando por cidades e vilas. Pouco a pouco, as nuvens sobre

nós dissipavam-se e o céu tornava-se claro, conforme prosseguíamos para o

leste em grande velocidade. Logo, o grande Deserto de Lut estendia-se

sobre nós. A oeste, víamos o horizonte negro, adiante, o horizonte era

vermelho, indicando que o Sol nasceria em breve. Singrávamos a escuridão

do céu, como se fôssemos sete estrelas cadentes. Provavelmente viajantes

ou habitantes de vilarejos nos viam e teriam histórias para contar sobre

“objetos estranhos no céu”, mas aquilo não importava. O que importava era

que chegássemos antes que o Sol escaldante subisse aos céus.

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Horas tinham se passado desde que deixamos Atashgah, em

Isfahan. O Sol finalmente nascera, mas estávamos próximos. “Logo além

daquele vale”, gritei, “vamos descer!”. Assim fizemos.

Este é um lugar sagrado para zoroástricos de todo o mundo. É um

lugar de peregrinação, perdido no meio do deserto no Irã. Podíamos sentir a

aura de paz próxima, vinda do poderoso Nodo Celeste que estava logo além

do vale, alimentado pela fé de milhares. Continuamos a caminhar pelo vale,

eu coloquei novamente meu sobretudo, enquanto os outros guardavam ou

escondiam suas armas. Karina e Fabrizia soltaram seus cabelos, enquanto

Al-Malik desenrolou os panos que envolviam sua face. E então, ao fitar

aquele local, Absolon, Fabrizia, Ansgar e até mesmo Wang ficaram

maravilhados. O templo construído nas paredes de uma montanha, num

lugar isolado do mundo.

E, do templo, seus guardiões e os fiéis ali localizados fitavam

aquele estranho grupo... Sete pessoas: cinco homens e duas mulheres, das

mais diversas nacionalidades, sem meio algum de transporte, vindo

caminhando sob o Sol da manhã. O vento soprava com intensidade, e o céu

estava claro. Conforme nos aproximávamos, era como estarmos retornando

ao Éden, tamanha era a aura de paz que aquele local emanava. Felizmente,

o tigre não se atreveu a atacar este lugar.

Alguns homens vieram ao nosso encontro quando chegamos às

escadas de Chak-chak. Perguntavam se estávamos bem, preocupados com o

fato de não termos veículos. Absolon e Karina trataram de acalma-los.

Enquanto subíamos as escadas, meus companheiros observavam o deserto

pelo qual viemos. O silêncio era quebrado apenas pelo vento e pelo som de

orações. Um guardião aproximou-se de nós, pediu que lavássemos nossas

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mãos e retirássemos nossos calçados. Assim fizemos. Então,

adentramos aquele local sagrado.

Caminhamos por um corredor e, logo adiante, um homem, um

senhor de idade, com uma longa barba e usando roupas típicas. “Eu estava

esperando por vocês”, o senhor disse. “Eu sou Jamshed, e há muito não via

aqueles como vocês”.

“Jamshed!”, eu murmurei, “você é um urielita. É você quem

viemos ver”.

“A mim? Não, há alguém esperando por vocês, amigos”, o homem

disse sorrindo. Lágrimas escorriam por seu rosto. “Perdoem-me pelas

lágrimas, mas para mim é especial conversar com vocês. Nunca vira tantos

reunidos! Algo excepcional deve está ocorrendo. Por favor, há alguém que

quer vê-los, sigam até a pira, na sala adiante!”. Então, Jamshed deu

passagem. Meio confuso, resolvi obedecer e prossegui, os outros vieram

logo atrás de mim.

E adentramos num salão escuro, iluminado apenas por dezenas,

talvez centenas de velas e pela pira que exibia o fogo sagrado, aceso há

mais de dois mil anos por Zoroastro em pessoa. E ali, em meio a sombras e

luzes, um homem rezava ajoelhado, dizendo palavras na língua farsi. E

olhei aquele homem, vestindo um manto cinzento, com o topo da cabeça

careca, e seus cabelos que restavam eram grisalhos.

“Deus, o que quer de nós?”, ele orava. “Louvor ou veneração? Fale

e declare se haverá recompensa a quem ouvir. Ora, já sabemos que só o que

quer de nós é justiça e a autonomia da Boa Mente e essa é a própria

recompensa. Deus, esse é o caminho da Boa Mente que Você tem me

mostrado. É a religião do bem fazer, do que, quando justo, leva à

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Page 130: Magna Veritas - Tiago José Moreira

felicidade. Essa é a recompensa prometida, vinda só do Sábio. A

recompensa é de fato, ó Sábio, fazer a escolha de servir verdadeiramente à

comunidade de todos os seres, com ações de boa mente, e promover seu

plano de sabedoria através do bem-estar comum”.

Então, ao terminar aquela oração, o homem nos fitou com seus

olhos negros e levantou-se, mostrando-se ter cerca de 1,70 metros de altura.

Porém, foi ao levantar-se que pude realmente perceber a grandeza daquele

homem, pois era o maior homem que eu podia fitar e, embora fosse apenas

um senhor de idade, irradiava poder que superava qualquer outro ali

presente. E seus passos em nossa direção eram como passos de gigante,

tamanha era a presença daquele homem.

E, aproximando-se de nós, deixando-nos paralisados de admiração

pela sua poderosa aura, o homem ajoelhou-se, abaixando humildemente sua

cabeça e saudando-nos:

“Eu sou o Arcanjo Asphael Veritas, Serafim dos Veritatis

Perquiratores. Eu estava a sua espera, jovens, e agora estou à sua

disposição”.

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Page 131: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 9: Reflexões

“Vocês passaram por muita coisa”, disse o Arcanjo Asphael,

pensativo, após ouvir toda a nossa história. A luz do Sol da manhã entrava

pelas janelas da sala em que nos encontrávamos. Estávamos ajoelhados ou

sentados sobre almofadas no chão. Ao centro, velas. Tínhamos contado

tudo a ele: as profundezas de Libraria, o jarro, as palavras do Conselho

Veritas e as revelações em Dur Sharrukin. Então, o grande Arcanjo fitou-

nos um a um, dizendo: “Sem dúvida, sobre seus ombros está um grande

peso. Foi muito bom encontra-los, pois eu também carrego um grande

fardo, e sinto que vocês serão aqueles que concluirão minha missão”.

“Senhor Asphael”, eu me intrometi enquanto ele falava, “como

sabia que viríamos aqui? Quando chegamos, Jamshed, o Guardião, nos

disse que nos esperava”.

“Porque os vi em meus sonhos, jovem Nicodemus”, ele respondeu,

fitando-me com aqueles olhos negros, que pareciam analisar minha alma.

“E, em meus sonhos, Metatron surgiu e disse-me: ‘vá e guie esses jovens’.

Por isso vim. E agora vejo que vocês serão de maior importância do que eu

poderia imaginar”.

“Perdão por intrometer-me, Senhor”, disse Al-Malik

educadamente. “Mas você disse algo sobre sua missão. Que missão é

esta?”.

“Encontrar meu mestre, jovem. Por muitos anos, eu estive ao lado

de Uriel-chamado-Veritatis, mas nem mesmo eu podia compreender todo o

conhecimento dele. Sempre fui fascinado pelos mistérios que meu mestre

representava. Como podia um homem tão simples ser tão grande? Eu aspiro

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Page 132: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ser como ele, mesmo sabendo que nunca o serei. Quando desapareceu,

jurei encontra-lo”.

“Por isso abandonou o Éden?”, perguntei.

“Não, jovem. Por mais de um século e meio eu o procurei, mas

ainda chamava o Éden de lar. Há três anos, algo mudou. Tive sonhos,

sempre relacionados a meu mestre. Estes sonhos mais traziam perguntas do

que respostas, mas eram as primeiras pistas que eu tive desde que Grande

Veritatis desapareceu. Há um ano, porém, um sonho me levou a deixar meu

lar, pois podia sentir que meu mestre estava próximo a mim. Eu sabia que

ele estava entre os mortais, caminhava entre os vivos. Mas, acima de tudo,

eu tinha certeza de que ele sofria. Por isso deixei o Éden, pois sabia que

precisava encontra-lo o quanto antes”.

“Sonhos, você disse?”, perguntou Absolon.

“Sim... Dêem-se as mãos, e os mostrarei a vocês”, respondeu

Asphael.

Então, nos entreolhamos. Estendi minhas mãos para Karina e

Ansgar, que estavam ao meu lado. A partir de então, um a um, juntamos

nossas mãos, formando uma corrente, na qual Asphael, no lado oposto ao

meu no círculo, estava incluído. “Fechem os olhos”, pediu Asphael. Assim

o fizemos. E então vimos os pesadelos que levaram o Arcanjo Asphael a

exilar-se do Éden.

E o silêncio que se seguiu foi quebrado por um trovão. E a

escuridão que vi provinha de uma grande tempestade que cobria os céus, de

horizonte a horizonte. E veio um clarão, tão forte quanto o Sol, em meio

àquele turbilhão de ventos e chuva. Eu pude sentir uma escuridão como

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nunca senti antes, uma força irresistível e implacável, cujo rugido

ecoava na tempestade. O rugido de um tigre.

E a visão tornou-se dúbia, conforme víamos imagens de um

homem vigoroso e determinado caminhando entre chamas e escuridão. E vi

algo que eu não pude compreender. Senti um olhar terrível e infinito, e uma

sombra cuja forma é indescritível. As trevas cercaram o homem, mas não

puderam toca-lo. E um grito desesperado seguiu-se, conforme as trevas

desapareciam e um velho, caído, nu e em posição fetal, gritava de dor e

sofrimento. Os urros do tigre, agora distantes, anunciavam que a escuridão

agora buscava aquele velho.

Mas então, as imagens partiram-se e transformaram-se. Um novo

sonho, uma nova visão, surgiu diante de mim. E agora, o Sol brilhava alto

no céu, e pássaros cantavam. E vi novamente o homem vigoroso

caminhando pelos campos verdejantes. Havia paz e uma sensação

confortável de calor. A brisa soprava gentil. E então reconheci o homem

vigoroso. Grande Veritatis. Uriel. O Anjo dos Mistérios e da Morte. A Luz

Divina. Magna Veritas. E ele fitou o nada, onde pude sentir um mal pulsar.

E num gesto e algumas palavras, ele fez o solo rachar-se, deformando o

símbolo ali feito séculos antes e partindo o selo que separava Éden e

Inferno. E dos lábios do Grande Arcanjo, ouvi um murmúrio: “Perdoem-me

pelo que eu precisarei fazer”.

Escuridão inundou toda a minha visão, anunciando um novo sonho

de Asphael. E ouvi passos ecoando por uma caverna há mais de dois mil

anos atrás. E, empunhando um lampião que emitia uma poderosa luz

branca, o Arcanjo Uriel, Grande Veritatis, caminhava pelas profundezas de

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recém-criada Libraria. Sob seu braço, o jarro. Seguindo seus passos,

urros ínfimos. Os urros de Leviathan.

Mais um sonho invadiu minha mente. Os céus tornaram-se

vermelhos, anunciando uma chuva de fogo. E vi os Campos Elíseos

queimando, e as hostes celestes voando para enfrentar um exército de

pesadelos. E prédios de Prístina caíam, suas ruas eram consumidas por

chamas. Demônios e anjos confrontavam-se no Paraíso. E mais uma vez,

Grande Uriel caminhou por aqueles campos, agora cheios de chamas e

fumaça sufocante, e fitou o gigantesco portal vermelho que levava ao

Inferno. E, fitando o Abismo, Veritatis viu o Abismo fita-lo em retorno. Os

olhos do Grande Arcanjo encontraram-se com as órbitas vazias de um

velho raquítico, trajando mantos negros. E, ao sorrir, o velho mostrou sua

mandíbula cheia de presas afiadas, rindo em seguida. E aquela risada

apertou meu coração. Ao ver aquelas órbitas vazias, eu pude ver o Abismo,

a danação em sua mais pura forma.

As imagens desapareceram. Abri meus olhos, fitei Asphael, que

permanecia calmo, porém mais sério do que antes. Os demais, espantados

com as visões, ficaram calados quando Asphael começou a falar: “Foi

então que senti meu mestre. Como ignorar sonhos como estes? Eu precisei

deixar o Éden e procura-lo. Mas agora, com a vinda de vocês, descubro que

este tigre, que esteve adormecido por três anos, finalmente despertou. E, de

alguma forma, este tigre é a chave para encontrarmos meu mestre”.

“O que é o tigre?”, perguntou Ansgar, um tanto assustado.

“Uma sombra de pura escuridão”, respondeu Asphael, “criada para

um propósito que ainda desconhecemos”.

“Por que ele atacou o Círculo de Uriel em Isfahan?”, perguntei.

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“Não apenas em Isfahan”, respondeu Asphael. “Eu

investiguei... Ele tem causado o mesmo no Paquistão, na Índia e onde

surgiu, em Bangladesh. Embora esteja neste mundo há pelo menos três

anos, parece que só agora começou esse massacre. Jamshed me informou

que, no último mês, quatro outros capítulos de extrema importância para o

Círculo foram destruídos desta forma. Cada local foi atacado em espaços de

tempo cada vez menores. O tigre agora avança para seu próximo alvo”.

“Jerusalém”, murmurei.

“Exatamente”, concordou Asphael.

“Precisamos ir para lá imediatamente, então”, disse Ansgar. Eu

concordei.

Antes que nos levantássemos, porém, Asphael nos impediu: “Não.

Não se preocupem. Vocês precisam descansar antes”.

Eu interferi: “Senhor, com todo o respeito, mas se não

corrermos...”.

Asphael me interrompeu: “Está estampado em suas faces o impacto

de tudo aquilo pelo que passaram. Vocês adentraram em Dur Sharrukin,

vivenciaram imagens de um passado que chocaria a qualquer um, seja um

jovem Celestial ou um antigo Arcanjo. Estão cansados, inquietos,

impacientes e vulneráveis. Precisam descansar suas mentes e se preparar,

de corpo e alma, para o que virá”.

Asphael estava certo. Desde que tudo começou, estamos cada vez

mais calados e assustados, tomados por stress e medo. “Não se

preocupem”, ele continuou, “o tigre não chegará tão cedo a Jerusalém. Ele

viaja encoberto pela tormenta, correndo numa velocidade demoníaca, mas

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mesmo ele levará tempo para chegar a seu destino. Até lá,

descansemos. Precisam relaxar a mente e preparar seus corpos”.

Ainda que tivesse certeza de que Asphael estava totalmente certo,

eu olhava com insegurança para meus companheiros. Seus olhares

demonstravam que sentiam o mesmo. Então, não tive outra opção a não ser

concordar: “Está certo, vamos descansar”.

“Permaneçam aqui esta tarde”, Asphael pediu, “Vocês partirão

algumas horas após o anoitecer, quando a noite já estiver caindo sobre

Jerusalém. Chegarão lá ainda antes do tigre, isso posso afirmar com

absoluta certeza”.

Concordamos. Talvez fosse realmente bom descansar antes que

prosseguíssemos em nossa jornada. Desta forma, cada um decidiu dedicar-

se a alguma atividade para passar o tempo que nos restava. Ficamos ali por

um minuto ou dois, em silêncio, enquanto cada um esperava que o outro

tomasse a iniciativa de sair. Absolon, cansado de esperar pela atitude

alheia, então se levantou, pediu licença e saiu. Feito isso, os demais

perderam a desconfiança e foram deixando a sala, até que restaram apenas

eu e Asphael ali.

“Deseja ainda falar comigo, Mestre Nicodemus?”, perguntou

Asphael.

Eu, meio acanhado por ter sido chamado de “mestre” por um

Serafim tão antigo, respondi: “Não sei, senhor. Não tenho nada a perguntar

nem a dizer, mas por algum motivo acho que ainda há algo a ser dito”.

“No momento, nada há a ser dito, Nicodemus. Se meditar e pensar

no assunto, terá as respostas que quer. Mais tarde nos falaremos, no

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momento eu também vou descansar”, disse Asphael, levantando-se e

deixando a sala logo depois.

Permaneci ali sozinho, pensativo. O que me atormentava? Medo?

De quê? Talvez de encontrar o tigre? Talvez de encontrar Veritatis? Talvez

medo de falhar. Sim, eu tinha medo. A presença de Asphael fez-me sentir

pequeno. Na verdade, todos os eventos, desde o princípio, fizeram-me

pequeno. Eu me sentia num conflito de deuses. Mistérios que duraram

milênios sem respostas estavam diante de mim. Por que fui escolhido para

esta tarefa? Foi então que percebi que não era diferente dos outros...

Absolon, Fabrizia, Karina, Ansgar, Al-Malik, Wang ou eu, todos

tínhamos dúvidas de nossa capacidade. E ainda assim, todos adentramos

Dur Sharrukin e superamos seus desafios. Cada um teve um papel, seja

grande ou pequeno, e juntos superamos as dificuldades. Talvez este seja o

segredo. Se é assim, vou aproveitar o tempo que tenho para me preparar

para os novos desafios que virão. Talvez eu não seja capaz de supera-los,

mas preciso tentar, não importa o quão grande seja esse medo que sinto.

“Se meditar e pensar no assunto, terá as respostas que quer”, foi o

que disse Asphael a mim. É isso que farei. Ainda sentado sobre minha

almofada, fechei meus olhos e me concentrei, tentando ouvir os sussurros

dos espíritos ao meu redor. E, ao me ligar ao reino dos espíritos, pude sentir

novamente aquela presença...

A princípio, houve silêncio. Eu estava ali sozinho, tentando ouvir

os lamentos e sussurros dos espíritos. Mas então, ouvi trovões. Os ventos

sussurravam, indicando que um grande mal se afastava em grande

velocidade. A terra gemia com seus passos, enquanto a criatura se

deslocava em grande velocidade, rumo ao ocidente. Ele estava há milhares

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de quilômetros de Chak-chak e se afastando rapidamente, mas eu podia

sentir sua respiração, como se ela criasse ondas que se alastravam por todo

o mundo, ecoando e fazendo o reino dos espíritos tremer. E as dúvidas

repetiam-se em minha mente: “Quem é você? O que você quer?”. Para

minha surpresa, uma voz masculina e forte ecoou, trazida pelos ventos.

“Liberdade”, ela dizia. Mas não fora o tigre quem respondera. A voz veio

dos trovões acima.

Algo cavalgava a tempestade.

Abri meus olhos, perdendo o contato com o reino espiritual. Olhei

ao redor, e o silêncio tinha voltado. Além da janela, estava apenas o

deserto, e uma brisa soprava. Ouvia vozes distantes, vindas do templo. E

nada mais. Levantei-me lentamente, ainda pensativo. O que significava

“liberdade”? O que está aprisionado? Leviathan? O tigre de alguma forma

tem alguma relação com Leviathan? Foi quando a porta abriu-se. Jamshed,

o guardião urielita de Chak-chak, adentrava. “Perdão”, ele disse, fazendo

sinal que iria se retirar, “não sabia que você estava aqui, senhor”.

“Não se preocupe, Jamshed”, respondi, aproximando-me dele.

“Pode conseguir um quarto para eu descansar? Gostaria de dormir um

pouco”.

“Sim, senhor, seria uma honra”, respondeu Jamshed. “Venha

comigo”. Ele então me levou a um pequeno quarto, no qual estavam um

colchão, alguns lençóis e uma estante de madeira, cheia de papéis e livros

velhos. “Este é meu aposento, senhor. Descanse bem”.

“Obrigado, Jamshed”, respondi sorrindo. Então, toquei seu ombro e

fitei seus olhos: “É um homem muito bom, e tenho certeza de que Deus

admira sua retidão”. Jamshed sorriu, agradecendo, então saiu fechando a

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porta do quarto. Caminhei até a janela e, pensativo, observei o deserto

além. Fechei então a janela de madeira, deixando o quarto às escuras, e,

após retirar o chapéu, o sobretudo e os sapatos, deitei-me.

Um sono confortante e tranqüilo se seguiu... Na escuridão e

silêncio daquele quarto, consegui finalmente descansar, após tantas horas

desperto. Melhor ainda, nada surgiu para incomodar meus sonhos.

Nenhuma visão, nenhuma voz, nenhuma mensagem. Como se me

desligasse do mundo, pude finalmente recompor minha mente. Finalmente,

um merecido descanso.

O tempo correu, as horas passaram. Renovado, abri meus olhos

lentamente. O quarto ainda escuro, o vento ainda soprando no deserto lá

fora. Estava mais quente do que antes. Abri a janela e vi que já era tarde, e

o sol estava alto no céu. Coloquei novamente os sapatos e sobretudo,

peguei meu chapéu, abri a porta e saí, procurando pelos demais. Minha

mente estava limpa e tranqüila, embora ainda tivesse memórias de tudo.

Asphael tinha razão, precisávamos descansar. Eu estava tenso, com idéias

fixas. Aquele descanso não só me deu energias novas, como me fez pensar

com mais clareza.

Caminhei pelo corredor que levava para fora do templo. Conforme

descia a escada externa, vi Jamshed, que cumprimentou-me com um aceno.

Ao seu lado, estava Asphael Veritas, que ao ver-me caminhou em minha

direção.

“Está melhor, Mestre Nicodemus?”, perguntou Asphael. Disse-lhe

que sim, e o Arcanjo sorriu satisfeito. “Por mais dura que seja a missão de

um Celestial, não podemos deixar o descanso de lado. Por mais resistente

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que seja o corpo, a alma ainda é frágil”. Concordei, sorridente, e então

perguntei onde estavam os outros.

“Cada um está passando o tempo como melhor convém”,

respondeu Asphael. “Logo após descansar um pouco, a jovem chamada

Karina disse que gostaria de visitar Persépolis e voou para o oeste. Ela é

uma senhorita encantadora, não? Parece-me muito forte de espírito, embora

frágil em corpo”.

Persépolis... as ruínas da antiga capital Persa, destruída por

Alexandre, o Grande. Coincidentemente, a destruição da cidade ocorreu na

mesma época em que Leviathan foi derrotado. “Karina é um espírito livre,

nada a prende”, eu disse. “Ela tem viajado de lugar a lugar, conhecendo as

pessoas mais diferentes. Incrível como ela está sempre sorridente, apesar de

todas os males que já presenciou”.

“Mas ela ainda é jovem, Mestre Nicodemus”, respondeu Asphael.

“Ela deve conhecer a fome, a morte e a guerra, mas estes são males

humanos. Não duvido que, com a força do espírito, ela traga um pouco de

alívio para as pessoas. Mas não acho que esteja preparada para a guerra”.

“De fato, Lorde Asphael, ela não está. Apesar de poder se defender,

ela não está pronta para a crueldade dos infernais ou mesmo dos homens.

De todos que me acompanham, eu temo que ela é quem mais poderá ser

marcada pelas dificuldades pelas quais possamos passar”.

“Chamou-me ‘Lorde’ Asphael?”, estranhou o Arcanjo. “Não

necessito de tais formalidades, Mestre Nicodemus. Não sou mais um

membro do Conselho, embora ainda mantenha, com orgulho, o título de

Veritas. Aqui, somos todos iguais”.

“Então, pare de chamar-me de Mestre”, pedi-lhe.

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“Chamo-o assim pois irá me mostrar o caminho, por isso é meu

mestre”, disse Asphael, deixando-me confuso. Então, retornou ao assunto

anterior: “Mas sobre a jovem, acredito que esta tenha sido exatamente a

razão dos Guardiões ao escolherem-na: está na hora dela acordar para o

verdadeiro mal do mundo. Até hoje, ela lutou para curar as conseqüências,

não para impedir as causas”.

“Não acho que Karina deva perder sua inocência, Lorde... digo,

senhor Asphael”, disse-lhe.

Asphael fitou meus olhos, seriamente. “Todos devemos crescer,

Mestre Nicodemus. É duro, mas é o caminho da vida e da sobrevivência.

Todo jovem se torna adulto. Todo Anjo se torna Arcanjo. Sabedoria vem

através de experiência e das agruras da vida. Karina, em seu íntimo, não

mudará. Ela continuará sendo Karina, a menos que se corrompa. Porém, ela

precisa entender melhor o mundo e se preparar para ele”.

“Entendo”, respondi, virando o rosto e fitando o deserto adiante. “E

quanto aos demais? Onde estão?”.

“Acredito que a jovem Fabrizia precise desabafar. Ela está naquela

montanha”, disse Asphael, apontando. “Parece ainda muito tensa. Já os

homens estavam conversando quando os vi, num local sombreado no vale à

frente”.

“Obrigado, senhor Asphael, vou procurar Fabrizia”, respondi. Em

seguida, continuei descendo a escada, cumprimentei Jamshed, e caminhei

em direção ao vale. Devido à presença de fiéis e viajantes em Chak-chak,

seria melhor eu me afastar antes de assumir a Forma Angelical em pleno

dia. Assim, caminhei por alguns minutos sob aquele forte Sol, até me

afastar o suficiente de Chak-chak para que as montanhas e rochas

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pudessem ocultar minha transformação. Retirando o sobretudo, toquei

minhas costas, sentindo a roupa rasgada ali atrás. Fechei os olhos e deixei

minhas asas saírem e se abrirem. Meu corpo tornou-se leve e, um instante

após, eu já me dirigia para os céus.

Voei baixo o suficiente para poder identificar silhuetas no solo,

mas não alto o bastante para que algum observador distante pudesse me

ver. Não havia qualquer viajante pelo deserto, de forma que não precisei

me preocupar demais em manter-me oculto. Segurando meu chapéu para

que o vento não o levasse, acelerei. Abaixo, sob a sombra de uma grande

rocha, vi meus companheiros: Ansgar, Wang, Al-Malik e Absolon. O

Malaki e o Princeps estavam sentados sobre uma toalha na areia, enquanto

Ansgar e Wang empunhavam suas espadas e duelavam amistosamente.

Tive vontade de descer e conversar, mas preferi continuar a procurar

Fabrizia. Assim, continuei em direção à montanha que Asphael indicara.

Elevei meu vôo, buscando a mulher. Não precisei procurar muito,

pois logo vi uma mulher solitária, sentada sob a sombra de uma rocha.

Fabrizia fitava o horizonte a leste, além de Chak-chak. Aproximei-me,

pousando ao seu lado. Ela desviou o olhar para mim, enquanto minhas asas

recolhiam-se e desapareciam. “Posso me sentar?”, perguntei, sorrindo

discretamente. Ela afastou-se um pouco, dando lugar para mim sob a

sombra. Ali sentei. “Está preocupada, Fabrizia?”.

“Estou”, ela sussurrou.

“Todos estamos”, disse-lhe. “É por isso mesmo que precisamos

relaxar e nos preparar”.

“Mas preparar-nos para quê?”, ela perguntou. “Sinto-me inútil

perto dos outros! Al-Malik e Wang possuem mais de uma centena de anos.

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Ansgar me disse ter uns oito séculos de vida! E você é tão antigo e

sábio... Me sinto tão...”.

“Pequena?”, perguntei, completando sua frase.

“É”, ela respondeu, fitando o horizonte. “Sabe, eu fazia parte de

uma Falange no México. Eram jovens como eu, nos dávamos bem. Era

bom viajar com eles, conversar com eles, mas aqui... me sinto tão

deslocada”.

“E você acha que os demais não se sentem assim? Já parou para

pensar em Absolon e Karina?”.

“É diferente. Todos vocês já passaram por tanta coisa”, ela disse.

“Sim, mas nenhum de nós se sente preparado para a tarefa que foi

confiada a nós. Acho que todos nós estamos aqui para descobrir nossa

capacidade”.

“E se eu for uma inútil? E se só atrapalhar os que são mais

capazes?”, ela perguntou, abraçando as próprias pernas, ainda olhando para

o além ao leste.

“Quando estávamos diante do Conselho, você disse: ‘não pensem

que irão sem mim’. Quando eu disse que iria a Isfahan, você não hesitou

em me seguir. Por que então fez isso, se tem tanto medo?”.

“Eu não sei”, ela disse. “Achei que estaria sendo covarde se só

abandonasse o grupo”.

Fitei-a: “Se você se sente tão inferior, porque veio?”. Ela calou-se.

“Eu sei porque veio, Fabrizia”, continuei, “você está aqui para provar a si

mesma que é capaz. Você não quer ficar para trás. Não quer ser inferior a

ninguém”.

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Ela me olhou, só então notei que olhava o horizonte para que

eu não a visse chorando. Agora, porém, pude notar as lágrimas percorrendo

seu rosto. “Você não é pior ou melhor do que nenhum de nós. Pode ser

menos experiente, mas isso não importa. Enquanto quiser nos acompanhar,

vai estar dando o melhor de si. Experiência e sabedoria não vêm com a

idade, mas com as dificuldades que enfrentamos. Não desista agora, ou vai

continuar se sentindo inferior”.

“Tenho medo, senhor”, ela confessou.

“Eu também”, eu disse.

Ainda me fitando, Fabrizia desabafou: “No México, meus

companheiros foram mortos, Nicodemus. Aquela coisa que enfrentamos...

era muito poderosa... Eu nunca me senti tão inútil quanto naquele

momento. Até então, ser Celestial era um sonho. Mas vi o quanto eu era

pequena. Tenho medo que isso aconteça de novo... que eu seja incapaz de

fazer a diferença desta vez também”.

Toquei seu ombro, segurando-o com firmeza, e fitei seus olhos

seriamente: “Não se preocupe, Fabrizia. Nenhum de nós vai morrer”.

“Como sabe disso, senhor?”, perguntou Fabrizia.

Sorri, lembrando-me das palavras do senhor Urias, e disse a

Fabrizia: “Por que não estamos sozinhos”. Levantei-me em seguida, fitando

o horizonte que antes Fabrizia observava. “Vamos até os outros?”.

“Está bem”, ela respondeu, ainda segura. Levantou-se em seguida.

As asas de ambos abriram-se, e descemos graciosa e lentamente a

montanha, flutuando em direção ao deserto abaixo.

“Sente-se melhor?”, perguntei, enquanto descíamos.

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“Não muito, mas você está certo”, ela confessou. É nestas

horas que eu gostaria que um Líber nos acompanhasse... Eles sempre são

capazes de elevar os ânimos dos outros. Tudo o que eu podia fazer era dizer

palavras de encorajamento, mas sei que nem sempre elas são suficientes

para superar o medo e a insegurança.

Assim que tocamos o chão, recolhi minhas asas e coloquei

novamente o sobretudo. O Sol escaldante com certeza poderia debilitar

uma pessoa, mas felizmente ele não incomoda muito a um Celestial.

Fabrizia, que vestia naquele momento blusa, bermuda e tênis, deixando os

cabelos soltos, estaria totalmente vulnerável ao sol se fosse uma mortal.

Caminhamos por alguns minutos, conversando. Ela me contou um pouco

mais sobre seus companheiros e sobre o demônio que atacaram, embora

não desse nenhum grande detalhe. Após pouco tempo, já víamos nossos

companheiros na sombra à frente.

Ansgar ergueu o braço, acenando para nos cumprimentar. Al-

Malik, sentado sobre a toalha no chão, sorriu quando nos aproximamos.

Wang nos acompanhava com o olhar, enquanto Absolon, segurando a

grande espada de Ansgar, pediu que nos juntássemos ao grupo. Fabrizia

sentou-se sobre uma das toalhas que estavam no chão, enquanto eu preferi

permanecer em pé. “O que estão fazendo?”, perguntei.

Absolon, sorridente, juntando forças para empunhar, com ambas as

mãos, a espada de Ansgar, respondeu: “Ansgar e Wang estavam treinando.

Resolvi aproveitar para aprender a manusear uma espada”.

Cruzando os braços e sorrindo, perguntei: “E como está se

saindo?”.

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“Ainda nem comecei. Essa espada do Ansgar pesa demais”,

respondeu Absolon, esforçando-se para manter a espada erguida. A arma,

com quase dois metros de comprimento, lâmina com dois gumes e cabo de

metal e couro, ao estilo medieval europeu, parecia desajeitada nas mãos do

Princeps.

“Aprenda uma coisa, Absolon”, interrompeu Ansgar. “Embora

tanto a minha arma como a de Wang sejam espadas, elas são usadas de

forma bem diferente. A lâmina de Wang é curva, mais curta e leve, com um

único corte, permitindo ataques rápidos e mobilidade. Minha arma é mais

pesada, dificulta a mobilidade e, se um ataque falha, você perderá muito

tempo para colocar novamente a espada na posição de ataque, deixando sua

defesa aberta”.

Wang sorriu. “Com uma arma assim, você tem que se concentrar

em atingir no primeiro golpe. Se errar, você perde”. Wang em seguida

colocou sua espada negra à frente do corpo, empunhando-a usando ambas

as mãos. “Está pronto?”, perguntou.

“Estou”, respondeu Absolon, mantendo a espada à frente do corpo,

pendendo levemente para a direita.

“Então ataque!”, disse Wang, permanecendo parado.

Absolon emitiu um grito, então se arremeteu na direção de Wang.

Ansgar deu um riso discreto, balançando a cabeça negativamente. Absolon

primeiro jogou os braços para a sua direita, e então deu um golpe horizontal

para a esquerda. Wang pôde escapar simplesmente recuando, e então

ergueu sua arma acima da cabeça, avançou e desferiu um golpe que

atingiria o ombro direito, totalmente exposto, de Absolon. A espada de

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Page 147: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Wang parou pouco antes de atingir o Princeps, que não tivera sequer

tempo para reagir.

Ofegante, Absolon fitou Wang. Ansgar riu, dizendo: “Não ouviu

nada do que eu disse? Sua arma é lenta, se errar, você perde. Mas para

piorar, você atacou antes de estar pronto!”.

“Não entendi”, disse Absolon, virando-se para Ansgar e baixando a

espada. “Achei que já estava pronto para atacar”.

“Você atacou sem estar preparado”, elucidou Ansgar. “Tanto que

manteve a arma à frente do corpo e só no instante do ataque preparou o

golpe horizontal. Isso deu tempo a Wang de escapar facilmente. Você só

deveria atirar-se contra o oponente quando o golpe já estivesse pronto,

quando nada mais a fazer a não ser atingi-lo. Só mantenha a espada à frente

do corpo caso queira se defender, entendeu?”.

“Tudo bem, desculpe”, disse Absolon, erguendo novamente a

espada, desta vez já colocando os braços para a direita, deixando a espada

pendendo horizontalmente, pronto para desferir um golpe semelhante ao

original. “Podemos ir novamente?”, o Princeps perguntou. Wang se

preparou também e confirmou que sim, balançando a cabeça.

Absolon emitiu o grito novamente, avançando contra Wang. Então,

quando aproximou-se o suficiente, desferiu o golpe para a esquerda. Porém,

antes que sua espada pudesse atingir o Tenshi, este jogou-se para a frente,

atingindo com o ombro o peito de Absolon, fazendo-o perder o equilíbrio e

cair, largando a espada. Ansgar riu novamente.

Wang, sorrindo discretamente, estendeu a mão ao seu oponente

caído, ajudando-o a se levantar. “O que fiz errado desta vez?”, perguntou.

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Wang respondeu: “Sua arma é longa, você deveria ter desferido

o golpe antes. Foi bem melhor que o primeiro, se tivesse feito

corretamente, seria difícil escapar. Mas você se aproximou muito, me

permitiu avançar para ataca-lo. Entrei no seu espaço de ataque e desferi o

golpe antes de você. Se fosse uma luta de verdade, teria perfurando seu

peito com minha espada”.

“A arma é tão grande por um motivo, Achille”, disse Ansgar a

Absolon. “Ela serve para atacar mantendo o oponente longe. Toda arma

tem esse objetivo. Se você deixa o oponente entrar num espaço menor ao

do seu ataque, ele conseguirá atacar mais rápido”.

“Entendi”, disse Absolon, pegando a arma caída. “Posso usar meus

poderes desta vez?”, perguntou.

“Fique à vontade”, disse Wang. “Mas usarei os meus se achar que

está com vantagem demais”.

Novamente, os dois se afastaram e se fitaram. Desta vez, Absolon

ergueu a espada acima de sua cabeça. Seu braço a princípio tremia, devido

à força necessária para erguer aquela arma, mas em seguida senti sua

energia fluir. Uma brisa fresca soprou em pleno deserto, e a espada parou

de tremer, conforme Absolon tornava-se mais forte. Olhei sua aura e vi um

brilho amarelado circundar o Princeps. O olhar de Absolon parecia mais

determinado. Os dois oponentes fitaram-se. Wang, sorrindo levemente,

parecia ansioso pelo embate com o inexperiente Celestial.

Absolon avançou. Embora não estivesse mais rápido, pude

perceber que estava mais atento e preciso. O Princeps deferiu um golpe

vertical, de cima para baixo, parando a espada quando esta estava

perpendicular ao corpo, forçando Wang a jogar-se para a esquerda para

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Page 149: Magna Veritas - Tiago José Moreira

escapar. O Kage então desferiu um golpe horizontal, na altura do

ombro de Absolon. Por incrível que pareça, o Princeps reagiu a tempo,

girando o corpo para a esquerda e recolhendo a espada, de forma que

ambas as lâminas se chocaram. Ambos em seguida recuaram, afastando-se

e fitando-se. Wang sorria.

“Muito bom”, comentou Ansgar. “Ele reagiu rápido, e a força

adicional o ajudou a manipular a espada com mais precisão”.

Absolon estava ofegante, sorridente por ter feito um movimento tão

surpreendente. Wang sorria ainda mais, satisfeito com o resultado. Então, a

face do Kage tornou-se séria, ele fitou seu oponente, e arremeteu-se em sua

direção. Absolon pôs a espada verticalmente à frente do corpo para

defender-se, mas Wang foi mais rápido, atacando o ombro esquerdo do

Princeps com um golpe de perfuração, forçando-o a jogar-se para a direita.

O golpe do Kage erra, dando ao Princeps a chance de atingir as costas do

oponente. Assim que prepara o golpe, jogando os braços para a direita,

porém, Absolon cai no chão, perdendo o equilíbrio. Conforme Absolon

tenta se levantar, amaldiçoando-se por ser tão desajeitado, o Kage gira o

corpo, desferindo um golpe horizontal que pára pouco adiante da cabeça do

oponente caído.

“Você esqueceu que sua arma é grande e pesada, Absolon”, disse

seriamente o Kage, fitando os olhos do Princeps. “Ao se jogar para o lado,

já tinha perdido parte do seu equilíbrio. Ao tentar atacar tão rápido, nem

sua força foi suficiente para manter-se de pé. A espada serviu como um

peso, tirou todo o seu equilíbrio”.

Ansgar aproximou-se, pegando a espada que Absolon deixara cair.

“Com esta arma, você precisa dar ataques precisos e com segurança. Ela

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Page 150: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não serve para contra-ataques rápidos. Se usasse uma arma leve e

menor, como a cimitarra de Al-Malik ou a espada de Wang, talvez tivesse

se saído bem”.

“Mas neste caso eu não teria feito o mesmo ataque”, disse Wang,

sorrindo sarcasticamente.

“Bom, desisto”, riu Absolon, levantando-se. Eu ri um pouco, vendo

todo aquele treino e pensando que eu não tinha a menor aptidão para

combate. Aproximei-me dos duelistas, congratulando Absolon pela

performance. Absolon agradeceu, e então virou-se para Wang,

perguntando: “Você usou seus poderes ao me atacar?”.

“Não”, respondeu Wang. “Não achei necessário”.

Absolon riu. “Assim você me humilha. Ainda tenho muito a

aprender”.

"Ele tem idade, experiência e perícia maiores, dificilmente você ia

vence-los, a menos que seus poderes ofensivos fossem mais

desenvolvidos", comentei.

Uma vez veio por trás de nós: “Lutou bem, Achille”. Era Karina,

que chegava, sorridente. Tinha uma bandana na cabeça, vestia jaqueta,

calça e blusa, e levava sua mochila nas costas.

“Oi, Karina”, cumprimentei-a. Absolon aproximou-se também,

perguntando como foi o passeio dela a Persépolis. “Ótimo, Achille. Você

devia ter vindo”.

“Que tal continuarmos o nosso treino?”, perguntou Ansgar. “Não

quer aprender a usar espada, Karina?”.

Karina riu. “Não, obrigada, não preciso disso. Não quero aprender

a usar. Sei me defender, acho”.

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Page 151: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Sabe lutar, Karina?”, perguntou Al-Malik. “Não sabia”.

“Bom, sei me defender um pouco. Quer dizer. Não sou boa em

nada relacionado a violência, mas sei defesa pessoal. Um pouco, pelo

menos”.

“Entendo”, respondeu Al-Malik.

Ansgar dirigiu-se ao Malaki então: “E quanto a você, Al-Malik?

Por que não treina conosco?”.

“Estou aprendendo ao observa-los, Ansgar”, respondeu Al-Malik.

“Talvez mais tarde eu participe. Por que agora não tenta empatar com Lo

Wang?”, perguntou.

“Empatar?”, questionei.

“Sim, Lo Wang e Armin Ansgar já duelaram três vezes hoje. O

Tenshi teve duas vitórias”, respondeu Al-Malik, rindo.

Ansgar empunhou sua espada e fitou Wang, que sorria

discretamente. “Por mim, tudo bem”, disse o Kage. Ansgar então aceitou o

desafio. Os dois se afastaram e então se fitaram. Ansgar, empunhando sua

espada com ambas as mãos, a ergueu um pouco acima do ombro direito.

Wang empunhou a espada à frente do corpo, em posição defensiva, mas

pendendo-a levemente para a direita, o que lhe permitiria armar um ataque

rapidamente, se necessário. Ambos permaneceram parados por alguns

instantes, cada um analisando seu oponente. Então, num movimento rápido,

Ansgar avançou, emitindo um urro de batalha.

Então, assim que chegara a uma distância adequada do oponente,

Ansgar atacou, desferindo um golpe em diagonal, da esquerda para a direita

e de cima para baixo. Wang reagiu rapidamente, dando um passo para trás

e curvando o corpo para evitar a lâmina do oponente. Ansgar lançou seu

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Page 152: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ataque a uma distância exagerada, permitindo ao oponente recuar.

Wang lançou-se ao contra-ataque, mas então Ansgar sorriu, também

recuando e, ao mesmo tempo, desferindo um golpe contrário ao original, da

direita para a esquerda e de baixo para cima, contra o oponente que acabara

de entrar no alcance de sua lâmina. Notando que caíra na armadilha do

adversário, Wang tentou bloquear o ataque, e as lâminas chocaram-se.

Foi quando Lo Wang foi derrubado. A espada leve e ágil de Lo

Wang não conseguiu conter a força do golpe de Ansgar, fazendo com que o

Tenshi perdesse o equilíbrio e caísse. Ansgar recolheu a espada para a

esquerda de seu corpo, apontando-a para o adversário caído. Então, quando

Lo Wang se levantou, num salto, Ansgar avançou, deixando a ponta de sua

espada próxima à garganta do Tenshi.

Karina aplaudiu, e Absolon, Fabrizia, Al-Malik e eu o fizemos em

seguida. “Incrível”, disse Absolon.

“Ataquei-o a uma grande distância sabendo que o forçaria a recuar

para não ser atacado”, disse Ansgar. “Planejava exatamente atingi-lo no

contra-ataque. Minha espada é maior e mais pesada, e minha força também

supera a de Wang. Então, foi fácil derruba-lo”.

Wang estava sério, fitando o Venator mas logo começou a rir.

“Parabéns, você realmente me pegou”, disse Ansgar ao estender a mão ao

Tenshi, que o cumprimentou. Então, ouvi um aplauso lento e solitário.

Viramos e fitamos Lorde Asphael, que se aproximava, caminhando pelo

deserto. Estranho como ninguém tinha visto o Arcanjo aproximar-se e, de

repente, ele estava ao nosso lado.

“Foi uma bela demonstração”, disse Asphael.

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Page 153: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Obrigado, senhor”, disse Ansgar, abaixando a cabeça. Wang

fez o mesmo.

“Vim avisa-los que partirão à meia-noite”, disse Asphael. “Será

cerca de onze horas em Jerusalém. Acredito que ainda assim chegarão antes

do tigre”.

Agradeci pela informação. Ainda tínhamos várias horas pela frente,

o que era bom. Estava divertido passarmos este tempo juntos. Não tivemos

tempo antes para nos conhecermos melhor e adquirirmos qualquer laço

mais forte de companheirismo. Essas horas seriam fundamentais para que

eu e meus companheiros nos enturmássemos melhor.

Então, quando pensei que Asphael iria se retirar, ele aproximou-se

de Ansgar e Wang. “Gostaria de também participar deste treinamento”,

disse o Arcanjo. Todos o olharam espantados. “Posso?”, ele perguntou,

sorrindo gentilmente.

“Claro, senhor”, hesitantemente respondeu Ansgar.

Asphael voltou-se para Al-Malik: “Pode me emprestar sua

cimitarra, Mestre Al-Malik?”, perguntou. “Claro”, respondeu o Malaki,

meio sem jeito, que então levantou-se, sacou sua espada e entregou-a ao

Arcanjo.

Asphael afastou-se dos outros dois guerreiros, virou-se para eles e

empunhou a cimitarra com ambas as mãos, ereta diante do corpo. Ansgar

perguntou-lhe: “Com quem gostaria de duelar primeiro, senhor? Eu ou

Wang?”.

“Ambos”, respondeu Asphael. “Gostaria de saber se ambos são

capazes de agir em conjunto, pois já sei que são excelentes guerreiros”.

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Page 154: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Todos os espectadores se entreolharam. Sendo um Arcanjo de

tão avançada idade, eu tinha certeza que este não era um blefe nem um

sinal de arrogância. Porém, Asphael Veritas sempre foi um grande

estudioso, nunca um guerreiro. Eu, como Perquirator, jamais vi a mim ou

outros de meu Clero como grandes lutadores. Talvez observar Asphael

pudesse ajudar-me a mudar esta visão limitada de meu Clero.

Ansgar e Wang se fitaram, então Wang deu um passo à frente,

segurou com ambas as mãos sua arma negra e começou a se aproximar

lentamente do Arcanjo à frente. Ansgar ergueu sua arma, também com

ambas as mãos, acima da cabeça, preparando-se para um poderoso golpe.

Pude notar tensão nos olhos de ambos, mas a face calma de Asphael

transmitia uma serenidade sem igual. Passo a passo, Wang avançava,

cautelosamente. Ansgar mantinha-se a certa distância, mas também deu

alguns passos à frente. Então, todos pararam repentinamente.

Um duelo silêncio se seguiu, tanto Wang como Asphael se

encarando, cada um analisando seu oponente. Ansgar deu mais passos à

frente, buscando dar a volta pela esquerda de Asphael. No momento em

que o olhar de Asphael desviou-se para o Venator, Wang avançou,

silenciosa e repentinamente.

As espadas chocaram-se, e Wang recuou um passo, então atacou

novamente. E mais uma vez as espadas chocaram-se. Um novo recuo do

oriental. Ao mesmo tempo, a cada defesa que realizava, Asphael movia-se

um pouco para a direita, de forma a deixar sempre Wang à frente de

Ansgar, impedindo um ataque do Venator. Asphael então recuou,

direcionou a espada à direita de seu corpo, e avançou, desferindo um golpe

horizontal, da direita para a esquerda. Wang tentou bloquear o ataque, mas

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Page 155: Magna Veritas - Tiago José Moreira

as lâminas chocaram-se com tamanha força que Wang foi empurrado

para a esquerda de Asphael, perdendo o equilíbrio, cambaleando e caindo.

Com Wang caído, Ansgar avançou, atacando repentinamente,

desferindo, com toda a força, um golpe vertical contra o ombro esquerdo de

Asphael. O Arcanjo, porém, ergueu sua espada, segurando-a

horizontalmente acima de sua cabeça, e apoiando as costas da lâmina com

sua mão esquerda. O estrondo do choque de metal com metal foi forte, e

notei que a lâmina da cimitarra estava danificada, quase se partindo, mas

Asphael bloqueara o golpe com sucesso, mesmo usando uma espada mais

leve e frágil. Wang se levantou num salto, enquanto Ansgar e Asphael

permaneceram na mesma posição. O Venator tentava forçar sua espada

contra a lâmina de Asphael, para mantê-lo um alvo fácil.

Então, no momento em que Wang preparou seu ataque, Asphael

ergueu ainda mais a mão direita, que empunhava a arma, e abaixou a mão

esquerda, que apoiava a lâmina, jogando o corpo para a direita. A própria

força que a espada de Ansgar exercia serviu para faze-la deslizar pela

lâmina curva de Asphael, permitindo que não só Asphael escapasse da

armadilha, como também que a lâmina de Ansgar entrasse no caminho do

ataque de Wang, forçando o oriental a adiar seu golpe.

A lâmina de Ansgar bateu violentamente contra o solo do deserto.

Não tendo tempo para ergue-la novamente, Ansgar foi surpreendido por um

ataque de Asphael, que girou o corpo e a lâmina, parando-a próxima ao

pescoço do Venator. Ansgar observou o Arcanjo, ainda sereno, e então caiu

de joelhos, sabendo que tinha sido derrotado. Asphael então voltou sua

atenção a Wang.

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Page 156: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Lo Wang permaneceu imóvel, nervosamente observando o

adversário. A serenidade de Asphael ainda era a mesma, o Arcanjo parecia

intocável, como se tivesse pleno controle da situação. Wang por um

instante observou os espectadores. Foi quando Asphael avançou, saltando

por cima da lâmina caída de Ansgar. As espadas chocaram-se. Wang tentou

recuar, mas Asphael atacou novamente. A cada ataque, o Arcanjo parecia

exercer mais força e se mover mais veloz, forçando Wang a reagir apenas

recuando e bloqueando os golpes incessantes. Não durou até que Wang

perdesse o equilíbrio e caísse no chão, após bloquear um golpe

extremamente forte. Asphael apontou sua lâmina para Wang, ainda sereno.

O Tenshi sabia que tinha perdido.

“Vocês se saíram muito bem”, disse Asphael, sorrindo

amistosamente. Em seguida, ele deu meia-volta e caminhou em direção a

Al-Malik. Enquanto se aproximava, o Arcanjo deslizou sua mão pela

lâmina da cimitarra, restaurando-a por completo, como se a arma tivesse

sido forjada há poucas horas. Então, entregou-a ao Malaki, agradecendo.

Wang e Ansgar levantaram-se e se aproximaram do resto do grupo.

Absolon comentou: “Gostei de usar a espada. Acho que vou tentar treinar

mais quando tiver a chance”.

“É uma boa escolha”, disse Asphael, “Mas não apenas a espada,

vocês devem todos expandir seus horizontes. Os guerreiros precisam

adquirir conhecimento, os sábios precisam se defender. Embora cada um

aqui tenha sua especialidade, é preciso estar preparado para tudo. Eu não

sou guerreiro, sou apenas um estudioso, mas a necessidade me fez aprender

muito sobre a arte da guerra”.

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Page 157: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Mas”, interrompeu Fabrizia, “e se precisarmos lutar agora? Eu

não sei nada sobre espadas... Tenho uma arma, mas duvido que seja tão

eficiente. O que vamos fazer?”.

Asphael a fitou seriamente. “Hoje tivemos um duelo de espadas,

mas isso não significa que espadas ou machados sejam armas reais. Elas

são apenas utensílios”. Então, um vento forte soprou, erguendo colunas de

areia, e os olhos de Asphael Veritas brilharam como o Sol. “Vocês são

armas. Cada uma de suas habilidades pode ser usada a favor do grupo.

Danificar o oponente não é sempre necessário. O que se busca é a vitória,

não obrigatoriamente morte. Você, jovem Fabrizia, tem toda a natureza

como arma. Eu jamais consideraria você como inofensiva, e você jamais

deveria se considerar desarmada”. O vento então cessou, Asphael fechou

seus olhos. “Agora, tudo o que precisam fazer é esperar. Conversem, riam,

treinem, discutam, conheçam-se, pois a união de vocês vai ser fundamental

se desejam agir em conjunto”.

Sorri, agradecendo pelos conselhos. Asphael então pediu licença e

retornou a Chak-chak. Pelas horas seguintes, permanecemos juntos.

Contamos histórias, assistimos a mais duelos e treinamos. As horas

passaram-se, o Sol se pôs. Então, cada um tomou seu rumo, para preparar a

retomada de nossa missão.

Encontramo-nos mais tarde, cada um já preparado. Cada um

novamente vestido para guerra. Armin Ansgar, Achille Absolon, Karina

Ariel, Fabrizia, Lo Wang, Abd Al-Malik e eu, Philipe Nicodemus, nos

reunimos ao redor do fogo sagrado e ali oramos, pedindo proteção e boa

sorte em nossa jornada.

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Page 158: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Por fim, quando caiu a meia-noite, descemos pelas escadarias

de Chak-chak. Todos sérios, mas mais tranqüilos do que quando tudo

começou. Ali, na base da escadaria, dois homens nos esperavam: Jamshed e

Asphael. Quando chegamos a eles, Asphael deu alguns passos à frente,

aproximando-se de mim. Notei que vestia um manto cinzento, parecido

com um sobretudo, e por baixo roupas árabes, de cores claras. Na mão,

portava uma grande espada, menor que a de Ansgar, com dois gumes,

lâmina firme e pesada e cabo prateado.

“Senhor Asphael, viemos agradecer-lhe por tudo o que fez por

nós”, eu disse em nome do grupo.

“Agradecer-me? Eu que os agradeço”, ele respondeu, cravando a

espada no chão, logo à minha frente. “Gostaria de fazer-lhes um pedido”.

“Sim, seria uma honra atender a um pedido seu”, disse-lhe.

Então, Asphael Veritas ajoelhou-se, abaixando a cabeça e

segurando o cabo da espada com ambas as mãos: “Mestre Nicodemus, eu

humildemente peço a honra de acompanhar-lhes em sua missão. Este servo

se põe a seu dispor”.

Por um instante, fitei meus companheiros, então olhei o Arcanjo

Asphael Veritas, Serafim entre os Veritatis Perquiratores, e respondi-lhe:

“Será uma honra lutar ao seu lado”.

Desta forma, Asphael Veritas uniu-se a nossa Falange.

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Page 159: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 10: Via Crucis

Assim que atravessei o portal de Asphael, um trovão saudou minha

chegada. O chão desapareceu sob meus pés e minhas asas me sustentaram.

Então, vendo o Arcanjo à minha frente distanciar-se, acelerei, planando em

sua direção. Um a um, nossos demais companheiros atravessaram o portal e

puseram-se a nos seguir pelos céus turbulentos. Assim que o último, Al-

Malik, atravessou a passagem, esta se fechou. O Arcanjo aumentou a

velocidade seu vôo, sua aura ampliou-se, tornando-se um brilho dourado

tão intenso que deixava um rastro de fogo espectral pelos céus de

Jerusalém.

Prosseguíamos por entre nuvens negras, sendo atingidos por

rajadas de vento intensas e ouvindo o som de milhares de trovões. Não

chovia, mas era como se uma tempestade de proporções catastróficas se

aproximasse da cidade santa. Abaixo, víamos as luzes da cidade, tão

distantes. Acima, apenas a negritude da noite. E, à frente, eu podia sentir

algo se aproximar. Algo negro e pútrido como nunca sentira antes. Apesar

de estar a quilômetros de distância, aproximava-se rápido. Chegaria esta

noite, acompanhando a tormenta. O tigre estava vindo. Eu podia ouvir seu

rosnar ecoando pelos reinos espirituais.

Então, Asphael elevou-se em vôo vertical, abrindo os braços e

girando. Senti um vento quente e poderoso formar-se, então girando e

ascendendo ao nosso redor, acompanhando o movimento do Arcanjo.

Quando Asphael parou, de braços abertos, a coluna de ar formada

continuou, abrindo um vão nas nuvens, uma área de calmaria em meio ao

céu tempestuoso. Fitando-me, Asphael falou tanto em nossos ouvidos como

mentes, com voz de trovão: “Meus amigos, chegamos agora a um ponto

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Page 160: Magna Veritas - Tiago José Moreira

crítico em nossa jornada. Ainda que eu tenha me juntado a vocês há

apenas algumas horas, posso afirmar que nada do que presenciaram pode se

comparar ao que talvez iremos ver agora”. O Serafim apontou para o leste.

“Só agora é possível perceber que há mais nesta criatura do que podíamos

imaginar. Nenhuma manifestação infernal teria tanto poder, a menos que

estivesse envolvida em uma missão de extrema importância. Quando decidi

me unir a vocês, eu sabia que algo de grandes dimensões estava para

ocorrer. Agora vejo que meu julgamento estava certo”.

“O que faremos?”, perguntou Karina, gritando para se fazer ouvir

em meio ao vento e aos trovões.

Asphael respondeu: “Estamos sobre a velha Jerusalém, a cidade

sagrada para três religiões, sobre cujas ruas foi derramado tanto o sangue

de um Messias como o de centenas de milhares de fiéis. O tigre busca algo

aqui, neste templo de fé. Acredito que uma pista importante para

encontrarmos o significado de seus sonhos está em algum lugar nesta

cidade. Precisamos impedir que o tigre chegue. Iremos ao seu encontro”.

“Espere!”, gritei. “Meus sonhos mostravam mais do que apenas o

tigre! Quando vi Jerusalém, também senti algo escondido aqui. Um mal

que alimentava a violência desta terra!”.

Os demais me olharam, e Asphael disse-me: “É verdade. E não

descarto que este mal seja exatamente a pista que procuramos. O tigre

procura o velho de seus sonhos, e este é o nosso objetivo também. Talvez

este mal tenha as respostas que desejamos. Nem nós nem o tigre fomos

atraídos para Jerusalém à toa”.

“Então iremos caçar o tigre e depois buscar esse mal?”, perguntou,

também aos gritos, Ansgar.

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“Não”, disse-lhe Asphael. Então, sua voz tornou-se ainda mais

poderosa e seu brilho intensificou-se: “Eu proponho nos dividirmos. Eu irei

para o leste e procurarei pelo tigre. Vocês descerão à cidade sagrada e

buscarão o mal que permeia este templo”.

“Não pode nos deixar sozinhos agora!”, gritou Fabrizia.

“Precisamos de sua ajuda”.

“Vocês não estarão sozinhos, jovem Fabrizia”, respondeu Asphael.

“Estarei com vocês a cada instante. Retornarei assim que encontrar o tigre.

E, se vocês encontrarem o que buscam, eu também saberei. Confiem em

mim”.

“Vamos descer”, gritei aos demais. Então, pus-me à frente do

grupo, percorrendo o céu negro e reduzindo minha aura para não ser visto

por mortais. Os demais me seguiram. E, conforme descíamos rumo ao solo,

vi a redoma de tranqüilidade ser engolida pelas nuvens trovejantes, e o

Arcanjo Asphael rumou para o leste, deixando para trás apenas um grande

rastro luminoso.

As luzes abaixo nos guiavam. Cercada por muralhas seculares de

quase 12 metros de altura, exibindo arquitetura e construções que

sobreviveram ao tempo, estava nosso destino: Antiga Jerusalém, cidade

sagrada para as três grandes religiões monoteístas do mundo. Conforme

descíamos, pude sentir uma aura estranha, um resquício de santidade. O

mesmo sentimento de santuário que temos quando em um Nodo Celeste,

mas aqui algo contaminava tal pureza. O sangue derramado e o ódio racial

contaminam este local sagrado, assim como uma aura negra de violência.

Fui o primeiro a tocar o chão de pedra de uma das apertadas ruas da

cidade sagrada. Recolhi minhas asas e pus meu sobretudo e chapéu,

161

Page 162: Magna Veritas - Tiago José Moreira

enquanto meus companheiros, um a um pousavam ali. Assim que

pousou, Al-Malik ajoelhou-se e beijou o solo, então se levantou e fitou-me.

“Há muito tempo não venho a Jerusalém”, ele disse a mim. Estávamos

numa ruela de pedra, estreita, sem calçadas. Diversas lojas se dispunham

pela extensão da rua, dando-lhe a aparência de uma galeria comercial. Os

prédios antigos e baixos faziam parecer que havíamos voltado no tempo.

“Estamos no Bairro Armênio”, disse a meus companheiros.

“Daqui, precisamos decidir aonde iremos e o que buscaremos”. Trovões

ecoaram, mostrando que o centro da tempestade estava cada vez mais

próximo. “Não temos muito tempo a perder”, acrescentei.

“Esta cidade não é segura”, disse Al-Malik, fitando-me. “Israel está

em estado de alerta. O número de atentados terroristas tem aumentado, as

forças de segurança israelenses estão paranóicas. Aos olhos deles, nós

seríamos apenas estrangeiros ilegais, sem identificação e armados”.

“Tem razão”, concordei. “Estamos próximos a uma biblioteca do

Círculo de Uriel. Tudo indica que este lugar será o alvo do tigre. Seria

melhor que fôssemos para lá e, após conversarmos com seus guardiões,

tomarmos as decisões do que precisamos fazer”.

“Sim”, respondeu-me Al-Malik. “Mas devo também alerta-los de

outra ameaça, muito maior do que as forças israelenses”.

“Como assim?”, perguntou Ansgar, tocando o ombro do Malaki.

Al-Malik virou-se para Ansgar. “Esta é a terra de Íblis Al-Qadim”,

respondeu. “Quando o Profeta trouxe união, paz e fé a estas terras, os

demônios e falsos deuses que antes eram adorados pelas tribos árabes

revoltaram-se, iniciando uma guerra. Os exércitos de Al-Jannah, liderados

por Gabriel-chamado-Jibril, desceram à Terra e lutaram com os demônios,

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Page 163: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que foram expulsos. Assim, nasceu a Corte Malaki, para proteger estas

terras da ameaça dos Djinni, Ifriti, Shaitani e Maridi”.

“O quê significam estes nomes?”, perguntou Wang.

Al-Malik respondeu-lhe: “Djinni são os seres da noite, tanto

aqueles que mudam de forma como os que sugam o sangue do vivo, bem

como os monstros que espreitam nos desertos. Os Maridi são aqueles que

provém do Inferno e buscam a corrupção de almas. Shaitani são os

Decaídos que posavam de deuses e abusavam dos mortais que seguiam as

velhas crenças. E Ifriti são os Decaídos que se venderam ao Inferno”.

“Entendo”, disse Wang.

Al-Malik em seguida deu uma pausa, fitou pensativo os céus

turbulentos acima, e continuou: “Porém, os demônios e falsos deuses, que

antes lutavam entre si, foram reunidos pela maior das sombras: Íblis Al-

Qadim, Grande Lorde da Tirania. O demônio tornou-se um deus negro para

essas criaturas da noite, formando um exército de trevas para combater os

seguidores do Profeta”.

Acrescentei aquilo que eu conhecia: “As Cruzadas, a ocupação

Européia, as crises entre Judeus e Palestinos, o terrorismo alimentado pelo

fundamentalismo, os ditadores sangüinários, as ocupações e conflitos...

Tudo isso é alimentado por Íblis, não é?”.

“Exato, Nicodemus”, respondeu-me Al-Malik. “O deus negro dos

Shaitani não pode agir diretamente, então envia seus demônios e falsos

deuses para semear discórdia e conflito. E ele não é o único”.

“Como assim?”, perguntei.

“Também a Corte Negra de Lúcifer tem interesses nesta terra,

Nicodemus”, o Malaki acrescentou. “Por séculos, enviados de Lúcifer têm

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Page 164: Magna Veritas - Tiago José Moreira

combatido os Shaitani e Maridi, buscando estender a influência da

Corte Negra para o Oriente Médio”.

“Então, o que devemos fazer, sabendo de tudo isso?”, perguntou

Fabrizia.

“Vamos tentar passar despercebidos neste conflito”, respondi. “Não

quero que nos envolvamos nessas políticas conturbadas dos Impuros.

Vamos o quanto antes encontrar a biblioteca dos Urielitas”.

“Talvez seja melhor procurarmos o Principado de Jerusalém,

Nicodemus”, disse Al-Malik. “Eu o conheço há muitos anos Ele é um bom

homem, temente a Deus. Ele poderá nos dar informações mais precisas

sobre a cidade”.

“Iremos primeiro aos Urielitas”, insisti. “Precisamos nos reunir

num local seguro para decidir o que fazer. Depois procuraremos o

Principado. Acho melhor não envolvermos os Celestiais dessa terra em

nossa missão, pelo menos até termos uma idéia do que procuramos nesta

cidade”. Al-Malik concordou.

“Onde fica a biblioteca?”, perguntou Karina.

“É próxima à Igreja do Santo Sepulcro, no bairro cristão”,

respondi. Então, por curiosidade, perguntei: “Já esteve em Jerusalém,

Karina?”.

“Sim, já”, ela disse, “mas faz muito tempo...”.

Assim, percorremos as ruelas de Jerusalém, evitando as vias

principais. A cidade adormecida estava silenciosa, embora o som do vento

uivando percorria as ruas e becos. Os trovões acima me davam a impressão

de que os raios da tormenta caíam todos nas proximidades da Cidade

Velha.

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Page 165: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Enquanto caminhávamos, Al-Malik parecia saudoso. Ansgar

aproximou-se do Malaki, perguntando: “Você nasceu nessas terras, Al-

Malik?”.

“Não, Ansgar. Venho de Medina, mas Jerusalém é uma terra

importante para mim. Na verdade, seja no Iraque, na Palestina ou na Arábia

Saudita, eu me sinto em casa e lembro-me, ao ver os seguidores do Profeta,

de minha vida passada”, respondeu o Malaki. “Eu já fui um Imã em

Medina e tenho muitas memórias daquela época”.

“Quando você viveu, Al-Malik?”, perguntou Fabrizia,

interessando-se pela conversa.

“Eu já sou um pouco velho, jovem Fabrizia”, Al-Malik disse. Ele

então coçou sua barba, calculando sua idade, e continuou: “Morri há um

século e trinta e três anos. Sou jovem demais para ter presenciado a Quarta

Grande Guerra, mas velho o suficiente para ter vivenciado muitos fatos e

muitas tristezas”.

“Deve ser incrível ter vivido tantas épocas”, comentou Fabrizia.

“Fico imaginando como deve ser viver tanto, aprender tanto...”.

“Realmente, é incrível. Aprendi tanto sobre as pessoas, os povos e

as religiões, que me sinto privilegiado”, respondeu Al-Malik, “mas ainda

sinto que há tanto diante de mim que não consigo perceber. No fundo, sou

tão inseguro quanto vocês mais jovens. Sempre há alguém acima de nós...

mais experiente, mais sábio, mais confiante e mais justo. Devemos nos

inspirar nestas pessoas”.

“Como os Primi?”, perguntou Absolon. Houve silêncio logo em

seguida, visto que ninguém realmente sabia como continuar a conversa.

Continuamos a percorrer as ruas de Jerusalém. Foi quando Absolon

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Page 166: Magna Veritas - Tiago José Moreira

continuou: “Fico imaginando... Os Primi podem tudo, são tão

superiores, tão poderosos... Por que então nós somos necessários? Digo...

um Arcanjo ou um Primi poderia resolver os problemas com muito mais

facilidade do que qualquer um de nós”.

“Porque nós também precisamos evoluir e atingir a grandeza”,

respondi. “É isso que percebo, visto que sou também um Arcanjo, ainda

que um tanto jovem e inseguro. Eu já sei muito, já conheço muito, já vivi

muito. E por isso mesmo, acho melhor que os mais jovens também

experimentem muito para evoluírem. Cada um precisa aprender a caminhar

com as próprias pernas, ao invés de ter de ser constantemente protegido e

guiado. Não é por isso que mantemos o Segredo? Os que ainda vivem

precisam evoluir por si mesmos, ao invés de ficarem esperando milagres ou

ajuda divina”.

Absolon, porém, ainda tinha uma dúvida: “Mas há certas

dificuldades que só eles podem vencer. Ainda assim, eles parecem jamais

se envolver diretamente com nada”.

Foi neste instante que senti um calafrio percorrendo minha espinha.

Fiz um sinal para que Absolon ficasse em silêncio por um instante. “O que

foi?”, sussurrou Wang.

“Senti algo estranho”, respondi, olhando ao redor, tentando

identificar formas invisíveis ou auras nas proximidades. Não havia nenhum

espírito notável, nem pude perceber qualquer ser oculto, porém. “Há perigo

por perto”, acrescentei.

Ficamos sem silêncio. Ansgar, Wang e Al-Malik sacaram suas

respectivas lâminas e cercaram o grupo, enquanto Fabrizia, Karina e

Absolon permaneceram no centro. Tomei a dianteira, cuidadosamente

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analisando o ambiente ao redor. Nada, mas a sensação de perigo

permanecia. Era um mal estar sutil, como se algo nos observasse ou nos

espreitasse. “Vamos prosseguir com cuidado”, sugeri, “a biblioteca dos

Urielitas está logo na próxima rua”.

Dobrei a esquina, sendo seguido de perto por meus companheiros.

A rua à frente era estreita, com cerca de três metros e meio de largura. As

construções eram todas antigas, construídas em pedra há séculos atrás. Os

prédios, todos com dois a quatro andares, faziam com que a rua parecesse

um longo e alto corredor. A rua era irregular, feita em vários níveis, com

escadas de pequenos degraus ligando-os. Estava escuro e silencioso. Minha

visão percebeu uma forma humana à frente, escondida numa sombra. Um

relâmpago revelou ali um homem, vestindo um longo sobretudo e chapéu,

bem à frente da porta do local ao qual nos dirigíamos.

Encarei aquele homem, que permaneceu imóvel, mesmo sabendo

que tinha sido visto. Wang fez sinal de que iria avançar, mas eu pus o braço

à frente dele, forçando-o a ficar. Ansgar gritou, perguntando quem era ele,

exigindo que saísse das sombras. Eu pude sentir seu Coro. Era um

Celestial? Pude perceber ser bem poderoso, quase tanto quanto eu, mas

havia algo estranho... Algo podre. Foi quando a informação mais

importante foi-me dada por Al-Malik: “É um Caído. Posso ver a marca em

sua testa brilhando como se fosse fogo”.

“Fiquem preparados para tudo”, pedi, caminhando em direção

àquele homem, sabendo que aquilo poderia ser uma emboscada. O homem,

vendo que me aproximava, também caminhou em minha direção, com as

mãos nos bolsos do sobretudo. Caminhava tão perfeitamente em sincronia

comigo que suas roupas quase faziam parecer que eu olhava um espelho.

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Page 168: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Então, quando ele estava próximo, fiz um movimento rápido com

minha mão esquerda, traçando um arco ascendente no ar, e um globo de luz

intensa surgiu entre nós. O homem, cegado pelo evento inesperado, virou o

rosto e cobriu os olhos. “Quem é você e o que quer?”, perguntei

serenamente, mas fitando-o seriamente. Estranhamente, eu não sentia medo

algum, mas uma confiança em minhas ações que era quase incomum.

Ansgar, com espada em punhos, aproximou-se, assim como Al-

Malik e Absolon. Os demais permaneceram um pouco mais atrás. “Não sou

seu inimigo aqui”, disse o homem, recuperando-se da cegueira temporária.

Era um homem alto, de cabelos compridos, negros, e olhos verdes. Sua

barba era mal feita, ele tinha um aspecto sujo. Sua face mostrava certo

desprezo por nós. “Eu sou Onesimus e, acredite se quiser, vim em seu

benefício”.

“E como podemos confiar em você, Impuro?”, perguntou Ansgar,

de forma claramente hostil.

“Ele diz a verdade”, murmurou Al-Malik.

“Bah”, disse o homem, “não me importo se acreditam em mim ou

não. O que importa é que eu entregue a mensagem a vocês. Vocês precisam

sair desta cidade imediatamente”.

“E por quê?”, perguntei.

“Vocês não vieram aqui à toa. Estão sendo manipulados e nem se

dão conta”, disse Onesimus. “Talvez não imaginam o que está

acontecendo, mas foram atraídos para cá. É uma armadilha, e vão perecer

aqui”.

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Fitei Al-Malik, que fez um sinal positivo com a cabeça,

olhando-me seriamente, indicando que o Caído falava a verdade.

“Explique”, pedi a Onesimus.

“Aquele que me enviou não me deu detalhes, mas ele deseja

encontrar vocês. Eu preciso levar vocês a ele imediatamente”, ele disse.

“Levar a quem?”, perguntou Ansgar, mais uma vez hostil.

“Não devo revelar”, respondeu o Caído. “Mas ele me deu a palavra

de que não iria machuca-los. Ele sabe muito sobre o que está acontecendo e

está disposto a compartilhar tal conhecimento”.

“E você acha que iríamos abandonar nossa missão para nos

encontrarmos com alguém que sequer sabemos quem é?”, perguntou

Ansgar. “Você só deve estar louco ou tramando algo”.

“Nem uma mentira escapou-lhe da boca”, disse Al-Malik,

interrompendo o Venator.

“Não pensem que estou fazendo isso por simpatia a vocês”, disse

Onesimus, com um tom de desdém. “Eu preferiria deixa-los aqui para

morrer nas mãos dos Shaitani, mas tenho ordens expressas para alerta-los e

leva-los ao meu senhor”.

“Não iremos”, eu disse.

“O quê?”, perguntou ofendido Onesimus. “Deixe-me explicar algo

a você, Arcanjo. A Corte dos Shaitani foi alertada que vocês viriam, eles

estão à espera de vocês e virão ao seu encontro. Você sequer imagina o

quanto os Shaitani estão preocupados. A vinda de vocês foi mencionada em

uma profecia na qual eles acreditam”.

“Como sabe de tudo isso?”, perguntou Al-Malik.

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“Meu senhor possui relações com os Shaitani, mas também os

têm como inimigos. Ele sabe muito, inclusive sabe que alguém vários

pastores de Íblis estão espalhando boatos a respeito de vocês. A prova cabal

de que eu falo a verdade é o fato de que estou aqui, à sua espera. Venham

comigo”.

“Já disse que não iremos”, afirmei a ele. Então, fitei seus olhos e

ergui o tom de voz: “Não vamos abandonar uma missão em um momento

crítico como este. Se seu mestre deseja o nosso bem-estar, então que mande

anjos da guarda para nos ajudar, mas nós não iremos abandonar esta

missão”.

“Então espero que morram todos quando os Shaitani chegarem a

vocês”, disse Onesimus, dando-me as costas e se afastando. “Vocês são

Celestiais imbecis, que seguem sonhos obscuros e se sacrificam por coisas

que sequer compreendem. Espero que se arrependam dessa tolice quando

estiverem às portas da morte”.

Vendo-o se afastar, disse em voz alta. “Não vamos morrer”.

O Caído parou, virou-se lentamente e me fitou. “Olhem para o céu

e me digam se podem enfrentar o que está se aproximando desta cidade.

Têm certeza de que não irão morrer?”, ele perguntou.

“Sim, pois não estamos sozinhos”, respondi.

“Muito bem”, Onesimus retrucou, “meu trabalho aqui era leva-los a

meu mestre. Se sobreviverem, com certeza vocês terão diversas perguntas

que ele pode responder. Se vocês se arrependerem de sua tolice e mudarem

de idéia, ou se conseguirem sobreviver esta noite, vão a este local”. Em

seguida, ele retirou um cartão do bolso do sobretudo e o jogou no chão,

afastando-se logo após, até virar a esquina e sumir de nossa vista.

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Page 171: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Aproximei-me do cartão deixado e, utilizando o globo de luz

que criei anteriormente, olhei seu conteúdo: um cartão postal. Li em voz

alta uma legenda presente sob a foto de uma ruína romana: “Domus Aurea,

Roma”. Atrás do cartão, escritas à mão, em Fabulare, estavam runas que

diziam “Passagem segura permitida pelo senhor desta casa”.

“O que significa isso?”, perguntou Al-Malik, aproximando-se de

mim.

“Significa que alguém muito poderoso entre os Caídos tem

interesses em nos ajudar... ou quer nos fazer desistir de nossa missão”,

respondi.

“Mas, segundo Al-Malik, o tal Onesimus disse a verdade o tempo

todo”, disse Ansgar. “Então, não poderia ser uma ajuda?”.

“O emissário apenas disse aquilo que acredita”, interrompeu Al-

Malik. “Isso não significa que seu mestre contou-lhe a verdade”.

Absolon fez um sinal para que os demais se aproximassem. Logo

em seguida, o Princeps voltou-se para mim: “O que faremos agora?”.

Virei-me para a porta adiante. “Vamos seguir o plano original”,

respondi. Então, bati na porta. Enquanto não vinha resposta, pedi que todos

guardassem suas armas e fui prontamente atendido. Bati uma vez mais na

porta, com mais força.

O visor na porta abriu-se, revelando um par de olhos negros e

cansados de um rosto envelhecido, com sobrancelhas brancas. “Quem está

aí?”, perguntou o homem atrás da porta.

“Meu nome é Philipe Nicodemus”, respondi. “Sou um viajante que

segue as asas negras do Arcanjo Uriel”.

“E o que o traz a esta humilde casa?”, o homem indagou.

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Page 172: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Busco o conhecimento dos séculos e os mistérios do mundo,

como nosso guia, Magna Veritas”, respondi.

A porta se abriu. Atrás dela, um homem velho e cansado, com cara

de sono, barba grossa, já branca, e o topo da cabeça careca. “Seja bem-

vindo, irmão. Eu sou Avram Ben Baruch, o mantenedor desta casa”. Ele

então deu passagem para que entrássemos. A sala adiante era pequena,

tinha um televisor, dois sofás e alguns quadros, e adiante estava um

corredor que continha duas portas: uma em seu fim, outra em sua extensão.

“De que Capítulo vem, Philipe Nicodemus?”, perguntou Avram.

“Sou um mensageiro dos Veritatis Perquiratores”, respondi.

Imediatamente, Avram arregalou os olhos. “Senhor! É uma honra,

uma sincera honra, tê-lo nesta casa! Deus com certeza abençoou-me no dia

em que o enviou a mim. O que deseja deste humilde servo?”.

“Informação, apenas, caro Avram. Gostaria de conversar sobre os

acontecimentos nesta cidade”, disse-lhe.

“Sim, senhor”, disse Avram, enquanto trancava a porta. “Venha

comigo. Vou leva-lo à nossa biblioteca, no subsolo. Os demais, se quiserem

descansar, fiquem à vontade”. Avram então se dirigiu ao corredor adiante.

Notei que Karina sentou-se para descansar, enquanto Absolon e Al-Malik

me seguiram, pedindo para ir comigo. Todos os demais ficaram para trás.

Assim que Avram abriu uma das portas no corredor, virei-me para meus

companheiros: “Permaneçam alertas”. Ansgar, que ficara na sala, fez um

sinal positivo com a cabeça. Assim que passamos a porta, Avram a fechou.

Nós entramos numa outra sala, uma espécie de escritório. Havia

uma escada para o andar superior, onde provavelmente ficavam os quartos,

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Page 173: Magna Veritas - Tiago José Moreira

assim como outra para o andar subterrâneo. “Há outros Urielitas

acordados?”, perguntei.

“Não”, respondeu Avram. “Estão todos descansando”. Em seguida,

o senhor de idade, começou a descer as escadas para o subsolo.

“Tem acontecido algum evento estranho na cidade ultimamente,

Avram?”, perguntei.

“Não, senhor, tem havido uma estranha calma, apesar de ser difícil

dizer com certeza. A Intifada tem deixado as forças de Israel em estado de

alerta, então está difícil separar a violência causada pelo conflito entre

palestinos e israelenses dos atos dos Djinni”.

Avram então chegou à base da escada, onde se localizava uma

porta de metal. Pegou uma chave de seu bolso e a abriu, adentrando e

acendendo as luzes. Naquele instante, aquela sensação de perigo iminente

voltou a me incomodar. No momento em que a porta se abriu, senti-me

ansioso, olhei ao redor, buscando sentir alguma presença... Avram deu

alguns passos à frente na sala seguinte, pediu que o seguíssemos. Foi

quando a sensação tornou-se insuportável. Absolon e Al-Malik

prosseguiram, mas então Al-Malik parou, me fitando. Ouvi em minha

mente sua voz. “Algo errado?”. Fiz sinal positivo com a cabeça. Absolon,

porém, prosseguiu, adentrando a sala adiante. Eu corri até ele. “Absolon,

espere!”, gritei, tocando em seu ombro. Porém, ambos já estávamos dentro

da sala.

“O que foi?”, perguntou Absolon, enquanto Avram parou

repentinamente, olhando-me sem entender. A sala já era a biblioteca, tinha

provavelmente uns quinze metros de comprimento por dez de largura, mas

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não era possível ter certeza, visto que as estantes enfileiradas impediam

ter uma idéia exata de toda a sua extensão.

“Há algo errado aqui”, disse a Absolon. Nesse momento, a face de

Avram passou de uma expressão de surpresa para raiva, e o velho avançou

contra mim. Antes que eu reagisse, ele agarrou meu braço direito e meu

pescoço, puxando-me e jogando-me contra a estante à frente. Minhas costas

se chocaram contra a mesma com tamanha força que os livros nela

dispostos caíram sobre mim.

Absolon ficou imóvel, indeciso quanto ao que fazer. Demorou

demais para sacar a espingarda que levava nas costas, dando tempo a

Avram para agarrar a arma antes que fosse disparada, retira-la das mãos do

Princeps e empurra-lo com violência, derrubando-o no chão. Com a

espingarda em mãos, Avram a apontou para Al-Malik, que sacara sua

cimitarra, mas ainda estava nas escadas e não dentro da biblioteca.

“Entre”, disse o velho.

“Atire, se tiver coragem, discípulo de Íblis”, respondeu Al-Malik.

Percebi movimento na biblioteca, atrás de nós. Outros três homens

surgiram correndo, antes ocultos pelas estantes, todos com aparência idosa

ou de meia-idade. Dois deles se aproximaram de Absolon, agarrando-o

pelos braços e erguendo-o. Um deles retirou a mochila de Absolon, o outro

o algemou, com as mãos nas costas, e o imobilizou para que não se

mexesse. O terceiro dos homens aproximou-se de mim e também me

imobilizou, algemando-me. Apenas pude notar que a força dele não era

humana, embora o corpo fosse, então preferi não reagir.

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“Shaitani”, disse Al-Malik, ainda encarando Avram. “Mesmo

quando tomam os corpos de homens inocentes, as marcas incandescentes

em suas testas me são muito bem visíveis”.

“É por isso mesmo que eu fui enviado para recepciona-los”, disse

Avram. “Como Ifrit, você não poderia me perceber dentro deste corpo”.

Então Avram ergueu a voz, ordenando: “Agora entre, Malaki, ou vai querer

ferir o corpo de um homem inocente?”.

“Como sempre, os vermes de Íblis utilizam estratagemas covardes

para atingir seus objetivos”, disse Al-Malik, adentrando a sala.

“Ora, que eu saiba, os covardes não seriam os seguidores do

Profeta, que vestem bombas no corpo e se suicidam matando pessoas

‘inocentes’?”, devolveu, num tom sarcástico, o monstro que controlava

Avram, ainda apontando a espingarda para o Malaki. Enquanto isso, um

dos homens forçou Al-Malik a largar a cimitarra, e em seguida também o

algemou com as mãos nas costas.

Avram fechou a porta de metal, trancando-a em seguida. Cada um

de nós três estava imobilizado por um dos homens possuídos. Fitei Avram,

indagando-o: “Se estão nos algemando e nos desarmando, é porque nos

querem vivos, não? Por quê?”.

“Apenas você, Arcanjo, deveria permanecer vivo. Há alguém que

deseja vê-lo, e fui incumbido de leva-lo a ele. Só você deveria me seguir.

Esses outros dois são lixo, só estão vivos por enquanto”, respondeu Avram,

afastando-se um pouco. “Sua vinda estava em nossas profecias. ‘Quando as

trevas cobrirem os céus da cidade sagrada, quando a serpente despertar de

seu sono, será a hora do rei erguer-se’. Nós queremos saber o que você

sabe, o que os sonhos contaram a você. E você dirá!”.

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“Eu jamais diria algo a vocês”, respondi.

Em ira, Avram ergueu a mão, cujos dedos tornaram-se garras

peludas e quitinosas. Ele acertou-me a face, rasgando meu rosto. O sangue

escorreu, incomodando a visão de meu olho esquerdo. “Não dirá a mim,

nem precisa dizer. Mas não há nada que meu senhor não possa descobrir”.

“Nicodemus”, ouvi em minha mente, mais uma vez, a voz de Al-

Malik. “Temos de fazer algo”.

“Espere”, respondi, aproveitando o elo espiritual que o Malaki

havia criado. “Avise Absolon para esperar meu sinal”, disse-lhe. Ele

concordou.

“O que vai fazer com os estudiosos deste lugar?”, perguntei a

Avram.

“Eles morrerão, assim como vocês, quando não tiverem mais

utilidade. Esses tolos tomaram muito de nosso tempo para descobrirmos

onde se escondiam”, respondeu Avram.

Avram aproximou-se de mim, agarrando-me pelo pescoço e me

erguendo. A sensação de estar sendo sufocado, conforme ele me enforcava,

era insuportavelmente dolorosa, mas graças à minha natureza Celestial, não

era nada mais do que uma impressão, não danos reais. “Você virá comigo.

Os demais não têm valor”, ele disse.

“Acha que não sei porque não quis mata-los ainda?”, disse, com

dificuldade devido à falta de ar. “Você está com medo de atrair atenção dos

outros que estão lá em cima!”.

“Errado”, respondeu Avram. “Estou apenas esperando os outros

chegarem. O exército de Íblis está solto esta noite, e quer beber sangue

divino”.

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Droga. Tínhamos pouco tempo para sair dali. Se há uma hora

para agir, a hora é esta. E, infelizmente, eu teria de ferir um homem

inocente para isso... Que Deus me perdoe... Fechei meus olhos, esqueci a

dor. Apenas concentrei todo o poder da minha alma. E liberei, para que os

bastardos soubessem que este Arcanjo não cairia facilmente em seu ardil.

Avram gritou de dor e recuou, me largando, ao sofrer o choque

causado por meu corpo, que brilhava como se a energia da tempestade nos

céus estivesse contida em mim. O outro que antes me segurava sofrera o

mesmo efeito, recuando.

Naquele exato momento, Al-Malik partiu as algemas que prendiam

seus pulsos. O homem que o segurava reagiu, golpeando-lhe a nuca e

fazendo-o cair no chão.

Absolon, porém, ainda estava indefeso. Aquele que o segurava

jogou-o contra o chão e correu para chutar Al-Malik, que estava indefeso.

O Princeps caiu, ainda incapaz de escapar das algemas. Já Al-Malik rolou

no chão com o impacto do chute.

“Idiotas, o que acham que conseguirão agindo assim?”, disse o

monstro no corpo de Avram. Empunhando a espingarda como se fosse um

bastão, ele desferiu um golpe em minha cabeça, me derrubando. Mesmo

atordoado, meu corpo ainda brilhava com faíscas elétricas da armadura

cintilante que eu gerara. Ele pretendia me deixar inconsciente para me

levar, e isso eu não poderia permitir. Quando ele preparou-se para me

golpear novamente, deixei mais uma vez a energia fluir. Tornei-me como

ar, uma forma fantasmagórica, deixando para trás as algemas e escapando

ileso do novo golpe. Então, flutuei no ar, atravessando a estante e

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materializando-me, em pé, atrás dela, num corredor formado entre a

estante original e outra, também cheia de livros.

Avram praguejou. Pelos vãos entre os livros, vi que Al-Malik

estava sendo golpeado pelos três homens. Avram fitou-me através dos

livros, e notei uma névoa surgir de sua boca e olhos, atravessando a

prateleira e tomando forma à minha frente, revelando a verdadeira forma do

meu inimigo. O corpo inocente de Avram caiu inconsciente, agora livre do

demônio que o possuía.

O monstro me fitou. Embora sua forma fosse humana, suas feições

eram monstruosas. Seu corpo, encoberto por couro grosso, peludo e negro,

bem como seus membros finos e longos, davam-lhe uma aparência

insectóide. As mãos e pés possuíam garras longas e quitinosas, e a face

tinha seis olhos, bem como grandes presas, como as de um animal

carnívoro. Ele possuía asas, parecidas com as de morcego, que nasciam de

suas costas, e vestia uma túnica cinzenta, toda rasgada. “Você não irá

escapar”, disse, aproximando-se.

Foi quando uma treva repentina inundou a biblioteca, sufocando as

luzes, tornando-as globos fracos que deixavam tudo em penumbra. Foi

quando, silenciosa e precisa, uma sombra saltou por sobre a prateleira e,

antes que pousasse suavemente à minha frente, arremessou uma adaga

contra a testa do demônio. A sombra pousou, enquanto a criatura urrou de

dor, recuando alguns passos. Era Wang, com suas vestes negras e seu o

capuz cobrindo-lhe a cabeça. E, quando o demônio arrancou a adaga que

penetrava seu crânio, Wang avançou.

“Wang!,” gritei, enquanto o Kage perfurava sua lâmina no peito do

demônio, “Como chegou aqui?”. O demônio urrou novamente de dor, mas

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então chamas espalharam-se a partir de seu corpo, formando um círculo

de fogo que atingiu o Kage em cheio. Wang, em chamas, recuou,

arrancando a espada que cravara no coração do inimigo. As chamas

infernais, que brilhavam num tom avermelhado, começaram a espalhar-se

pelas estantes e livros.

Wang, arrancando o manto em chamas, retrucou: “Vim por um

portal. Os outros já estão chegando”. Foi quando ouvi um impacto na porta

de metal da biblioteca.

“Não deixem que entrem aqui!”, ordenou o demônio aos três

homens. Pelos espaços entre os livros, vi que os três largaram Al-Malik,

ferido e caído e correrão para segurar a porta. Um outro impacto forte se

seguiu, arrebentando a tranca, mas os três forçavam a porta, para que não se

abrisse.

O demônio avançou rapidamente, deixando o círculo de chamas, e

agarrou o pescoço de Wang, batendo-o ferozmente contra a segunda estante

que formava o corredor em que estávamos. A estante caiu, derrubando as

que estavam atrás da mesma, numa reação em cadeia até a última estante

no fim da biblioteca. “Pare!”, gritei, erguendo a mão, fazendo com que uma

rajada de vento atingisse com grande força o monstro, forçando-o a recuar,

mas ele continuava a segurar Wang pelo pescoço.

Foi quando houve o terceiro impacto na porta de metal, desta vez

causando um estrondo. Quando me virei para fitar a porta, vi os três

homens sendo arremessados pelo ar, e a porta abrindo-se, distorcida pela

força com que fora golpeada. Por ali entrava Ansgar, com sua grande

espada em punhos. Os três homens caíram violentamente no chão, um

pouco afastados um do outro.

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Enquanto isso, o demônio pressionava o pescoço de Wang,

fazendo-o sangrar enquanto as garras de sua mão direita cortavam-lhe a

pele. Então Wang tornou-se uma sombra imaterial e disforme, escapando

das mãos letais do monstro e descendo rapidamente ao solo, onde se

materializou. O demônio preparou-se para atacar com as garras da mão

esquerda, mas um tentáculo negro, quase invisível na penumbra da

biblioteca, agarrou o pulso do demônio, vindo da escuridão atrás do

monstro. Outro tentáculo surgiu em seguida, também vindo das sombras

além, agarrando o outro pulso. Ambos puxaram os braços do demônio para

trás, deixando seu peito desprotegido. Wang preparou-se para atacar, mas o

demônio vomitou chamas infernais, formando um cone de fogo tão

comprido que me forçou a jogar-me no chão para escapar. Wang, porém,

foi pego em cheio pela rajada de fogo.

Entrementes, Ansgar aproximou-se de um dos homens caídos. Um

outro, atrás de Ansgar, ergueu a cabeça, e uma névoa saiu de sua boca e

olhos. Sem que o Venator percebesse, uma forma humana se materializava

atrás dele, a partir da névoa. Um homem de túnica negra, armado com uma

espada longa e pesada, semelhante a, porém maior que, uma cimitarra, e

com uma pintura facial sob os olhos e boca, dando-lhe um aspecto sombrio.

O homem ergueu a arma, pronto para atingir Ansgar pelas costas. Mas

então um trovão ecoou, não vindo da tempestade lá fora, mas de dentro da

própria biblioteca. Fabrizia adentrava, alvejando o homem Anjo Caído

armado com um raio. Ansgar, alertado pelo disparo, virou-se, desferindo

um golpe horizontal contra o pescoço do Caído, decapitando-o. Seu corpo

tornou-se pó antes mesmo que atingisse o solo.

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Wang ergueu-se, mesmo com suas roupas em chamas. As

chamas porém, cessavam rapidamente. O demônio arrebentou os tentáculos

que o prendiam, fazendo-os se desmaterializar. Wang estava seriamente

ferido, eu podia perceber que se mantinha em pé com dificuldade. Por isso,

ergui-me também. O demônio me fitou: “Esta batalha é inútil, Arcanjo. Em

breve, outros estarão aqui, não perderei mais meu tempo com vocês”.

Então, seu corpo começou a se distorcer, rapidamente assumindo uma

forma humana, de um homem forte e sadio, com feições egípcias e barba e

cabelos negros, compridos, ainda vestindo os mesmos trajes rasgados. “Eu

sou Ha’il-Kanzab, o Devorador de Sonhos. Guarde meu nome, pois ainda

esta noite virei mata-los”. Então, sua forma tornou-se pó, que rodopiou

como num redemoinho, desaparecendo por completo.

Ansgar agarrou um dos homens caídos. “Você vai ferir o corpo de

um homem inocente para me matar, Celestial?”, provocava o homem.

“Não”, respondeu Ansgar.

“Então o que fará?”, perguntou o homem, rindo, “Pois não sairei

deste corpo”.

“Pois quero que fique aí mesmo”, disse Ansgar, incendiando o

corpo do homem em Fogo Celestial. O homem gritou de dor e pânico,

desmaiando pouco depois. As chamas apagaram-se, seu corpo estava

intacto, porém livre do espírito do Anjo Caído que há pouco lhe possuía. O

homem, agora com a mente livre, olhou ao redor, vendo a biblioteca em

chamas. “O que aconteceu aqui?”, perguntou em desespero.

Eu me aproximava, ajudando Wang a caminhar. “Sugiro que saiam

deste lugar, ele não é mais seguro”.

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Ansgar colocou o homem no chão. Pedi que pegasse Avram,

que ainda estava inconsciente, bem como o outro que antes tinha um

espírito maligno controlando seus atos. Foi quando lembrei-me do terceiro

homem, que ainda restava. Fitei-o: estava inconsciente. Havia batido a

cabeça ao cair no chão. Ali perto, apoiado em uma parede, Al-Malik curava

suas feridas. “Al-Malik”, chamei-o, “pegue este homem. Se ele caiu

inconsciente antes que o possessor escapasse do corpo, significa que o

espírito está preso nele até que desperte”. Al-Malik concordou.

Fitei então a biblioteca atrás de nós, e levei a mão ao rosto, que

ainda sangrava graças às garras do Ifrit. Com certa tristeza, olhei os livros

sendo consumidos pelo fogo, que se espalhava rapidamente. “Ansgar”,

chamei, “pegue os outros dois homens inconscientes e vamos sair daqui

antes que o fogo se alastre ainda mais”.

Absolon, até a pouco caído ali perto, se levantou e aproximou-se.

“Nicodemus, me desculpe”, pediu. “Me desculpe mesmo, eu não consegui

fazer nada”.

“Não se preocupe, Absolon, você fez o que podia”, disse-lhe,

apoiando minha mão em seu ombro. O Princeps abaixou a cabeça, sem

ânimo e com o orgulho ferido. Ainda com as algemas prendendo seus

pulsos, eu as toquei e invoquei um encantamento simples para abri-las.

Então, pedi a Absolon: “Leve Wang lá para cima enquanto ele se

recupera”.

Então, virei-me às chamas que se espalhavam rapidamente pelos

livros. “Saiam daqui e levem essas pessoas”, pedi aos demais, e chamei

Fabrizia. “Fabrizia, crie uma névoa neste local, o mais úmida possível.

Tente então baixar a temperatura rapidamente”.

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“Vou tentar”, Fabrizia disse, concentrando-se. Enquanto isso,

os outros saíam. Absolon, indo por último, pegou os objetos que os Caídos

haviam tomado de nós: sua mochila e espingarda, e a cimitarra de Al-

Malik. Assim que Absolon saiu, uma névoa densa e fria começou a tomar o

local.

“Continue assim, Fabrizia”, pedi. A temperatura caída mais e mais,

forçando as chamas a recuarem e molhando os livros que ainda não

estavam em combustão. Procurei extintores de incêndio nas paredes e,

como eu previa, os Urielitas tiveram o cuidado de deixa-los bem à vista.

Peguei então um dos extintores e procurei focos em que o fogo estava mais

forte, para apaga-lo. A temperatura continuava a cair. Após alguns minutos,

o fogo havia sido controlado.

“Obrigado”, agradeci a Fabrizia. Ela sorriu e logo após subimos as

escadas. Voltamos à sala onde estavam os sofás. Ali estavam os dois

homens inconscientes, incluindo Avram. O outro homem, ainda possuído

por um Anjo Caído, estava inconsciente, no ombro de Ansgar. Karina, que

permanecera na sala durante o combate, sorriu aliviada ao me ver. Wang

curava-se de suas feridas, lentamente. Al-Malik estava plenamente

recuperado. Porém, notei na face de Absolon uma frustração sem igual.

Aproximei-me do homem desperto e perguntei seu nome. “Sou

Yosef, um dos estudiosos deste lugar. Seus companheiros me contaram o

que se passou aqui, senhor Nicodemus. Teremos de nos mudar”.

“Sei que é difícil abandonar tudo para trás, mas a vida de vocês

corre perigo”, disse-lhe.

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“Sim, eu sei. Assim que Avram e Amos despertarem, sairemos

daqui. Mas e quanto a Micah? Me disseram que um espírito ainda habita

seu corpo”, disse Yosef.

“Não se preocupe, nós iremos purifica-lo”, disse-lhe. Yosef

agradeceu. Então chamei meus companheiros: “Vamos para o terraço deste

prédio”. Tomei a frente, mas ao ver que Wang ainda tinha queimaduras

terríveis na face e andava com certa dificuldade, pedi que fossem na frente.

Caminhei até Wang, toquei-o e fiz fluir através de mim as energias do

mundo espiritual, para que curassem seu corpo. Embora o dispêndio de

energia fosse grande, eu me esforcei para deixar seu corpo plenamente

curado. Yosef, vendo aquela cena, fez o sinal da cruz.

“Obrigado, Nicodemus”, agradeceu Wang, murmurando. “Aquele

demônio era mais poderoso do que fazia parecer”.

“Eu sei”, disse-lhe, “você aplicou-lhe dois golpes mortais, mas ele

pôde continuar lutando como se nada tivesse acontecido. Normalmente,

demônios a serviço de ‘mestres’ são bem mais fracos. Fico imaginando

quem pode ser o senhor daquele ser”.

Em seguida, deixamos Yosef e subimos as escadas do prédio, até

chegarmos ao terraço, a quatro andares de altura. Ali, os demais esperavam.

Eu pedi: “Ansgar, segure nosso prisioneiro. Al-Malik, por favor, fique por

perto. Os demais se afastem e fiquem preparados para qualquer espécie de

resistência”.

Ansgar segurou o homem, que segundo Yosef chamava-se Micah.

Então, toquei sua testa, fechei meus olhos e invoquei um encantamento,

dando-lhe consciência. Seus olhos abriram-se repentinamente, assustado.

“Temos perguntas a fazer, Shaitan”, disse Al-Malik.

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“Eu posso escapar”, ele resmungou.

“Não”, disse Al-Malik. “Agora que conheço a marca em sua testa,

posso encontra-lo aonde quer que seja”.

“Queremos saber quem o enviou”, eu disse.

O Caído começou a rir. “Quem me enviou? É só isso? O Ifrit que

os atacou chama-se Ha’il-Kanzab. Foi quem me deu a ordem de captura-

los. Ele é um dos grandes Sacerdotes de Íblis, seu poder nestas terras é

inquestionável. Dizem que a profecia está prestes a se concretizar e que

precisamos de você, Arcanjo, para que se torne verdade”.

“Que profecia?”, perguntei.

“O momento de nossa ascensão se aproxima!”, respondeu o

Shaitan. “Quando o Arcanjo da Verdade for capturado, a profecia se

concretizará! Vocês são a chave para encontrarmos o Arcanjo. É por isso

que Ha’il-Kanzab deseja vocês”.

“Ele disse que desejava me levar a alguém. Quem?”, perguntei.

“Eu não sei, mas o Sacerdote nos disse que, caso ele fosse

derrotado, deveríamos leva-lo a seu templo”, respondeu.

“Onde?”, perguntou Al-Malik.

“Eu não sei...”, respondeu, mas antes que terminasse de falar, sua

boca calou-se. Ele tentava dizer, mas não conseguia, como se fizesse um

esforço sobre-humano para falar.

“De sua boca sairão apenas verdades, exilado”, disse Al-Malik. “Eu

sou um filho da Casa da Lei Divina, sou um Anjo da Verdade. A mim,

nenhuma mentira pode enganar. Fale!”.

“Não direi!”, gritou o Caído.

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“Então, por possuir o corpo de um homem de bem, eu o

condeno”, disse Al-Malik. O homem gritou em agonia, como se sua alma

fosse ferida pelas palavras do Malaki. “Fale, ou cada crime que já cometeu

se voltará contra você”.

“Eu não vou falar!”, insistiu o Caído.

“Então, por tentar nos matar, eu o condeno”, disse Al-Malik. O

Caído gritou em agonia novamente. “E por servir a demônios, eu o

condeno”. O homem contorcia-se em dores.

Foi então que me recordei mais uma vez do sonho que tive, dos

sinais que vi. Homens carregando cruzes e o mal que emanava do solo.

“Este lugar, fica sob a Via Crucis, não é?”, perguntei.

O Caído arregalou os olhos, notando que eu sabia. Tentou mentir,

negando, mas sua boca não conseguiu falar. “Onde, exatamente?”,

perguntei.

“Malditos”, o Caído resmungou. Então, abriu a boca, e dela e de

seus olhos saiu névoa. O Shaitan pretendia escapar, provavelmente

materializando-se o mais longe possível. Porém, concentrando meus

poderes sobre o mundo espiritual, eu golpeei a linha formada pela névoa

com meu punho, e era como se o atingisse em cheio. Ele materializou-se

diante de mim, sendo nocauteado pelo golpe. O Caído era um homem

magro, de pele escura e traços árabes.

“Eu sou Philipe Nicodemus, Querubim dos Veritatis Perquiratores.

Seus truques não são nada para mim”, ameacei. “Agora fale”. Ansgar

entregou o desacordado Micah nas mãos de Al-Malik, e então agarrou o

braço do Caído, puxando-o e imobilizando-o.

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O Caído me fitou nos olhos. “Você pretende entrar lá esta

noite?”, perguntou.

“Sim”, respondi.

“Vão para a Via Dolorosa. Procurem o Mosteiro da Flagelação.

Com certeza encontrarão mais Shaitani. Muitos estão se reunindo ali. Eles

os levarão ao templo. É o plano deles. É o que desejam. Eles querem que

você adentre no templo”, ele disse.

“Já está bom?”, Al-Malik perguntou a mim.

“Sim”, respondi. “Iremos ao Mosteiro da Flagelação”.

“Então, é hora de dar a este renegado sua sentença”, disse Al-

Malik. “Shaitan, por agir contra o povo desta terra, por trazer violência e

morte, eu o condeno à morte”.

Os demais olharam Al-Malik, estranhando sua frieza. O Caído

debateu-se, mas Ansgar pôde contê-lo facilmente, mantendo-o imobilizado.

O Shaitan começou a gritar: “Quem você acredita ser para me julgar? Seu

covarde hipócrita! Você e sua laia de ‘puros’ se julgam defensores desta

terra, mas abandonou o nosso povo para sofrer e se humilhar nas mãos de

estrangeiros!”. Al-Malik não deu atenção às palavras do Caído. Erguendo

sua cimitarra, o Malaki cortou a cabeça do Caído e em seguida se afastou,

dando-lhe as costas enquanto o corpo do Caído caiu em seguida, tornando-

se pó e deixando apenas suas roupas.

Ansgar perguntou a Al-Malik: “Por que não o Obliterou?”.

“Tive pena dele”, respondeu o Malaki. “Ele é apenas um peão, um

servo de demônios, cego por seu ódio. Estou dando a ele meses para a

reflexão, enquanto sua carne e sangue se refazem”.

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Levei a mão ao meu rosto, já curado, mas ainda ensangüentado.

“Temos de nos apressar. Iremos ao Mosteiro da Flagelação e

encontraremos respostas”.

“Há outros Shaitani nesta cidade”, disse Wang. “Tem certeza

disso?”.

“Sim. Iremos com cuidado. De uma forma ou de outra, eles virão

atrás de nós, então é melhor que nós estejamos na ofensiva desta vez”,

respondi.

“Acha que devo ir?”, perguntou Absolon, aproximando-se. “Eu...

não fui útil aqui. Na verdade, apenas atrapalhei”.

“Achille Absolon, se quiser continuar sendo inútil, fique aqui”,

respondi seriamente. Ele olhou-me, esperando uma resposta mais gentil,

mas eu apenas complementei: “Coragem eu sei que tem, senão não teria

nos acompanhado até este ponto. Vontade eu sei que tem, senão já teria ido

embora. O único que pode julga-lo inútil ou não é apenas você mesmo. Se

quiser continuar sendo inútil, fique aqui. Se quer nos ajudar, saiba não há

ninguém aqui o julgando. Queremos a sua companhia. Agora decida se

vem ou não. Estamos todos arriscando nossas vidas”.

Absolon suspirou. “Está bem, eu vou. Vou tentar mais uma vez”.

Al-Malik falou a Absolon: “Seu problema, jovem Absolon, é que

não entende que é preciso sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma.

Entenda uma única coisa: todos nós estamos arriscando nossas vidas. Se

não arriscar a sua, nunca irá se superar. Se não estiver disposto a tudo, não

alcançará nada”.

Observei meus companheiros. “Estão prontos?”, perguntei a eles.

“Como sempre”, disse Ansgar. Os demais ficaram calados.

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“Então, empunhem suas armas. Mais do que nunca, preparem-

se para uma guerra...”.

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Capítulo 11: Ha’il-Kanzab

“Você está certo de que é isto que devemos fazer?”, indagou

Ansgar. Sua voz mal podia ser ouvida, tão diminuta era diante do uivo dos

ventos e dos estrondos dos trovões, que se tornavam cada vez mais fortes.

“Sim, nosso tempo é curto”, respondi, fitando o horizonte e

sentindo o mal que se aproximava. “O tigre está cada vez mais próximo.

Precisamos indagar Ha’il-Kanzab antes que o monstro chegue. Senão,

talvez nossos problemas se somem”.

“É arriscado”, disse Ansgar, nervosamente segurando sua espada.

“Estaremos adentrando nos domínios dos Shaitani. O que sabemos sobre

eles?”.

Todos os presentes estavam com medo. Karina me olhava

apreensiva, assustada, com medo do que estava por vir. Seus longos

cabelos ruivos, mesmo presos num rabo de cavalo, eram erguidos pelo

vento. Seus olhos me evitavam, talvez para esconder seu medo. Atrás,

calada, sentada e cabisbaixa, estava Fabrizia, pensativa. Ainda perturbado

por sua derrota, Absolon permanecia calado, mas se mantinha em pé, ao

meu lado, buscando reunir forças e coragem.

Então, Al-Malik, que estava à minha direita, deu um passo à frente.

“Se vamos enfrentar os Shaitani em seu território, então lhes contarei o que

sei sobre eles. Pois, como Malaki, há gerações luto contra esses Impuros”.

Ansgar e eu fitamos o Malaki. Al-Malik coçou sua barba, fitou os

céus furiosos, e começou: “Quando Íblis Al-Qadim reuniu os seus

seguidores, fossem eles Shaitan, Marid, Ifrit ou Djinn, ele os instigou ao

fanatismo. De todos, os Shaitani, com seu orgulho ferido e seu prestígio

perdido, foram aqueles que mais caíram nas garras do Deus Negro. Disso,

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surgiu um fervor religioso, que logo se tornou um culto entre os

amaldiçoados”.

“Assim, os Shaitani formaram uma vaga estrutura religiosa.

Aqueles que mais estavam próximos dos Maridi se tornaram sacerdotes. Os

mais jovens e fracos buscaram esses sacerdotes em busca de apoio, tutela e

aliados. Desta forma, os infernais e os Impuros tornaram-se mais ligados do

que no ocidente. Onde antes havia grande rivalidade, surgia cooperação. E

disto, nasceu uma força poderosa e fanática, que incitou a violência no

Oriente Médio por séculos”.

“Hoje, portanto, há dois tipos de Shaitani que podemos esperar

encontrar: os que agem solitariamente e os que pertencem a um culto. Os

solitários são mais sutis e até mesmo mais perigosos, pois se escondem

facilmente. Os cultos, porém, possuem força em números. A maioria dos

cultistas são Shaitani mais jovens e fracos, mas seus sacerdotes costumam

ser excepcionalmente poderosos, graças a favores infernais e a séculos de

experiência como Impuros”.

“E hoje, enfrentaremos um destes sacerdotes”, disse Ansgar. “É

isso que quer dizer, não Al-Malik? Ha'il-Kanzab lidera os Shaitani da

Velha Jerusalém. Pelo menos, aquele Shaitan que interrogamos o chamou

de sacerdote...”.

“Verdade,” disse Al-Malik. “Porém, a idéia de um culto nos faz

pensar que são muitos Impuros juntos, mas isto não é verdade. Impuros são

raros, Shaitani mais ainda. Já destruímos três deles, não me admiraria se os

que sobram forem menos do que nós sete”.

Todos olhávamos Al-Malik, nos esforçando para discernir suas

palavras, abafadas pelos sons da tormenta. Foi quando uma voz ergueu-se

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atrás de nós, pegando-nos de surpresa. A voz falou alto, mas sem gritar,

num tom frio e direto: “Encontrei mais dois que vigiam a Via Dolorosa”.

Viramos de repente e vimos uma sombra vagamente humanóide

diante de nós. Abaixado, apoiando suas mãos no chão, com as pernas

encolhidas, e suas grandes asas negras abertas. Não havia face ou traços

distintos. Na forma de trevas, Lo Wang dava vida ao nome de seu Clero:

Kage, a Sombra.

“Onde estão?”, perguntei, aproximando-me do mesmo.

“Como aquele Caído nos disse, vigiam o Mosteiro da Flagelação.

Tomam o corpo de guardas, mas seus espíritos os denunciam. Não parecem

ser melhores do que aqueles que enfrentamos aqui há pouco”, respondeu o

anjo das trevas.

“E o que recomenda?”, perguntei.

“Temos duas escolhas... Podemos captura-los e descobrir seu

esconderijo... Ou extermina-los e atrair os demais para fora”, disse Wang.

Eu tentava fitar seus olhos, mas era impossível discerni-los na massa negra

que estava diante de mim. “De qualquer forma”, ele continuou,

“precisamos agir agora”.

Foi quando um brilho intenso foi emitido atrás de mim. Virando-

me, observei as grandes asas prateadas de Ansgar abrirem-se, enquanto sua

aura azul brilhava intensamente. “Vamos”, ele disse, erguendo sua espada

com ambas as mãos.

Observei os demais, cada um deles assumindo sua Forma

Angelical. Alguns realizaram rituais particulares para se preparar

psicologicamente para a batalha: Al-Malik cobriu a face com os panos de

seu turbante, deixando apenas os olhos expostos, enquanto Absolon

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empunhou sua espingarda. Apenas Karina hesitou, mas Fabrizia

estendeu-lhe a mão, encorajando-a. Mesmo com medo, ela abriu suas asas,

logo após retirar o sobretudo, e deu um passo a frente para aproximar-se de

nós.

Então, em uníssono, erguemos vôo, em direção aos céus negros,

cobertos por nuvens pesadas. Antes que pudéssemos elevarmo-nos demais

no céu, porém, Lo Wang disparou para o leste. Com dificuldade,

tentávamos seguir a forma negra, que parecia ser absorvida pela escuridão

da noite, apenas revelando-se quando a luz dos relâmpagos iluminava a

noite. Um a um, abafamos nossas auras, tentando singrar imperceptíveis

pelo ar.

Abaixo, seguíamos a Via Dolorosa, o caminho de dor que o Cristo

supostamente percorrera dois mil anos atrás. Víamos casas e ruas,

discerníveis apenas pela fraca iluminação da milenar cidade. Eu algumas

raras pessoas na rua, talvez guardas israelenses, mas minha impressão era

de que a cidade estava morta. A tempestade expulsou a vida das ruas...

Mesmo havendo um número incontável de pessoas abaixo de nós, em suas

casas, era como se esta noite esta cidade fosse só nossa. Nossa e do

inimigo.

Foi então que, à nossa frente, o Anjo Sombrio rodopiou no ar e

desceu, desaparecendo de nossa vista. Abaixo, estava a Segunda Estação da

Via Dolorosa... e o Mosteiro da Flagelação. Sob um arco da Via Crucis,

percebi duas pessoas. Ouvi o grito de Al-Malik: “Vejo a luz de fogo em

suas testas!”. Eram Caídos: Shaitani sob a carne de oficiais do exército

israelense. Mas onde estava Lo Wang?

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Foi quando o inesperado ocorreu. Absolon, desceu

repentinamente, separando-se do grupo. Na metade do caminho, acendeu

sua aura com toda a intensidade e abriu seus braços, iluminando a noite

com um brilho dourado. Tão intensa era sua aura, que suas faixas de luz

pareciam estar em chamas. E, de braços abertos e pernas unidas, ele desceu

suavemente, na direção dos dois guardas abaixo. Os dois correram em

direção ao Celestial, deixando o abrigo que o arco lhes proporcionava e

apontando fuzis na direção do jovem Princeps.

Por um instante, os dois guardas encararam o jovem, que

permanecia imóvel, majestoso, suas faixas de luz ondulando suavemente

pelo ar, seus pés tocando levemente o chão. Porém, nenhum deles podia

mover-se. Absolon estava a apenas uns seis metros dos guardas, mas eles

não atiravam, e pareciam hesitar a aproximação. Foi quando um trovão

ensurdecedor atordou-me, e a luz intensa de um relâmpago ofuscou minha

visão. Senti uma manifestação celestial intensa, e virei-me para fitar

Fabrizia, a única do grupo não surpreendida pelo raio que caíra sobre o

arco, pouco atrás dos dois guardas.

Então, Ansgar e Al-Malik desceram imediatamente. Novamente

fitei a Via Crucis, e vi Absolon aproximar-se dos dois guardas caídos.

Apesar de estarem sendo conduzidos por Anjos Caídos, seus corpos

humanos, atingidos em cheio pelo estrondo de um trovão tão próximo, não

puderam resistir ao atordoamento causado pelo forte som. Absolon agarrou

um deles pela roupa, e com uma força anormal forçou-o a levantar-se e

jogou-o contra o muro de pedra que limitava aquela parte da Via Dolorosa.

Então, o Princeps segurou sua vítima pelo colarinho e encostou o cano de

sua espingarda na cabeça do guarda.

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Enquanto isso, o segundo guarda se esforçava para levantar-se.

Tonto, o Caído que conduzia seu corpo não estava acostumado com a

súbita vulnerabilidade de sua condição. Ele tentou pegar seu fuzil e apontar

para as costas de Absolon, mas neste momento Ansgar alcançou o chão,

atingindo a arma com sua espada. O impacto do golpe desarmou o guarda.

Imediatamente, com uma velocidade surpreendente, o Venator agarrou o

guarda pelo pescoço, e o corpo do homem incendiou-se em chamas

azuladas. O Caído no interior gritou, escorchado pela chama celestial. Em

seguida, o guarda caiu, inconsciente, sem ferimentos, já livre da presença

profana que controlava sua alma.

Voltei a fitar Fabrizia, que sorria alegremente. “Vocês planejaram

isso?”, gritei para que os ventos fortes não abafassem minha voz,

indagando-a. Ela apenas balançou a cabeça negativamente, ainda sorrindo.

Karina, logo atrás, estava tão surpresa quanto eu. Liberei minha aura e

desci. As duas me seguiram.

Quando me aproximei do campo de batalha, tocando meus pés no

caminho santo percorrido por Jesus, pude ouvir Ansgar gritar nervosamente

para Absolon: “No que diabos você estava pensando? E se eles atirassem

em você?”.

“Eles não atirariam”, Absolon respondeu, sem deixar de fitar o

guarda rendido com seus olhos brilhantes. Sua face estava séria. Ele não

sorria, mas não parecia ter medo também. “Eu sou um Princeps, também

tenho poderes, e sei que eles hesitariam antes de me ferir, pois tenho a

Benção de Miguel. E sabia que vocês iriam interceder por mim, dei a vocês

a distração necessária. Tive medo sim, mas não quero mais ser um inútil”.

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Al-Malik riu, congratulando o jovem Princeps, e em seguida

aproximando-se do guarda que Absolon rendia. “Onde está Ha'il-Kanzab,

Shaitan?”, perguntou o Malaki.

“Eu não tenho motivos para contar”, gritou nosso refém. “Essa

arma pode matar meu hospedeiro antes de conseguir me eliminar,” ele

disse, referindo-se à espingarda de Absolon, “e vocês são fracos demais,

incapazes de exterminar uma vida para alcançar seus objetivos”.

“Pois eu o condeno...”, disse Al-Malik, mas antes que terminasse a

frase, Ansgar tocou seu ombro, pedindo passagem, e dizendo: “Eu cuido

disso”. Então, aproximou-se do guarda, tocando o dedo indicador de sua

mão esquerda no pescoço do homem. Uma leve faísca azulada emitiu-se do

dedo, e o homem gritou. O corpo do guarda nada sofrera, porém. “Não

preciso ferir o israelense para te matar”.

O guarda olhou assustado para o Venator, que exibia uma feição

fria. Então, fitou Absolon, o único de nós que se mantinha em Forma

Angelical, mas encontrou apenas os olhos flamejantes do Princeps fitando-

o com determinação. Por fim, fitou a mim, e a Fabrizia, que estava ao meu

lado, com os braços cruzados. Com certeza meu rosto velho e calmo não o

assustou, mas o sorriso perverso de Fabrizia sim.

“Riam enquanto podem, porcos, pois conseguiram o que

desejam!”, gritou o guarda, sua voz alterada pelo espírito que o dominava.

“Porque esta vitória será vazia diante da grande derrota que virá! Eu os

levarei ao meu senhor, mas verão que isso será a sua perdição”.

“O que quer dizer?”, perguntou Absolon, pressionando a

espingarda contra a têmpora do guarda.

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“O momento da Revelação se aproxima! Os exércitos do

Inferno começaram a se mover! Hordas empunham armas e marcham sobre

o solo infernal, esperando o momento. Será em breve!”, ele continuou a

gritar.

Absolon jogou o homem no chão, para a direita, ao alcance de

Ansgar. O Venator então o levantou, retirando as armas que o guarda ainda

portava no corpo, e, agarrando-o pelo braço, disse: “Leve-nos aonde

queremos chegar”. Eu apressei meu passo e tomei a frente, pronto para

intervir caso o Caído tentasse abandonar o corpo que possuía.

“Há uma prisão”, disse o Caído, “que leva a catacumbas”,

continuou, pausando por um instante. “E as catacumbas levam a túneis,

criados a ferro e fogo. Os arqueólogos descobriram as catacumbas, mas nós

isolamos os túneis, e ali fizemos nosso santuário, onde o Bom Deus não

pode ver ou ouvir. É lá que Ha'il-Kanzab diz a vontade do Deus Negro a

nós”.

“Quantos mais estão lá?”, perguntou Absolon, finalmente

retornando à sua forma humana. A luz dourada desapareceu, assim como as

majestosas faixas luminosas que nasciam de suas costas.

“O sacerdote e dois servos, seus mais fiéis agentes. Muitos Maridi

vinham freqüentemente para nos trazer notícias, mas agora eles

desapareceram. Íblis os chamou para se unirem ao exército que marcha no

Inferno”.

Virei-me para Al-Malik. “Ele diz a verdade?”, perguntei.

“Nada além da verdade”, disse Al-Malik, em tom de preocupação.

“E isso é o que mais me assusta”.

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O guarda sorriu, rindo discretamente. “Saiba que uma guerra se

aproxima. Suas ações aqui pouco significarão”.

Minha mente se encheu de perguntas. Por um instante, um mar de

dúvidas inundou meus pensamentos. Mas um trovão ecoou, trazendo minha

mente de volta à realidade. Olhei o céu e senti o tigre próximo, sua

respiração ofegante mais forte, seus passos mais rápidos, seu rosnar mais

alto. “Precisamos nos apressar”, lembrei a todos. “Nos leve aos túneis”,

ordenei ao Caído.

“Havia duas passagens originais. Uma pela prisão, outra pelos

túneis arqueológicos. A prisão tornou-se quase inacessível quando o

mosteiro foi construído sobre ela. Os túneis tornaram-se perigosos quando

o governo Israelense começou a protege-los. Portanto, tivemos de construir

nossa própria entrada. Sigam-me”, ele disse. Novamente, fitei Al-Malik,

que fez um sinal positivo com a cabeça, indicando que devíamos acreditar

no Caído.

“Aonde iremos?”, perguntou Karina.

“Não distante daqui há um bazar, e ali há uma antiga residência”,

revelou o Caído, “há um grande porão na velha casa, onde escavamos

passagens para os túneis. Usamos nossa influência para impedir que essa

passagem clandestina fosse descoberta”.

Seguindo o Caído, deixamos a Via Crucis e adentramos uma

pequena passagem, que nos levou a ruas milenares, apertadas, cheias de

escadarias, por entre prédios e casas antigas. Desconfiado, fechei meus

olhos e concentrei minhas energias, me sintonizando com o ambiente ao

redor. Uma emboscada poderia ocorrer a qualquer momento, e melhor seria

se eu estivesse preparado. Porém, não pressenti perigo algum, a não ser o

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tigre. Eu podia ouvir seus passos, a centenas de quilômetros... Mas

sabia que ele chegaria a Jerusalém em pouco mais de uma hora...

“E quanto a Wang?”, perguntou Fabrizia, “ele desapareceu depois

que nos trouxe aqui”.

“Ele é assim... Também desapareceu quando estávamos na casa dos

Urielitas”, disse Ansgar, “enquanto nós corríamos para ajudar Nicodemus,

não se lembra? Quando chegamos à biblioteca, ele foi o primeiro a chegar”.

“Esse é o caminho dos Kage”, eu disse. “Eles caminham na sombra

e nós na luz”.

Continuamos a caminhar por entre becos e ruelas. Ao contrário de

mim, Al-Malik não conseguia eliminar de sua mente as dúvidas geradas

pelas palavras do Shaitan que nos guiava. Voltando-se ao Decaído, ele

perguntou: “O que quis dizer com um exército marchando no Inferno?”.

“Está com medo, Malaki?”, perguntou o Caído, num tom

zombador. Um trovão ecoou, e o relâmpago iluminou as ruas de Velha

Jerusalém. “Dezenas de milhares neste instante, reunindo-se e preparando-

se para o que está por vir”.

“E o que está por vir?”, perguntei.

“Vocês querem respostas? Perguntem a Ha'il-Kanzab, não é ele que

procuram? Pois ele é o único que foi digno de ter toda a revelação”,

respondeu o Shaitan, em seguida apontando para mim: “E é por isso que ele

deseja você, Arcanjo, pois você também teve uma revelação”.

“Qual é a minha importância nisto tudo?”, perguntei.

“Você sabe onde está a chave do Inferno”, ele respondeu.

Mais perguntas inundaram minha mente... A chave do Inferno? A

que se refeririam? Seria o velho? Seria Veritatis? Ou seria... O jarro? Meus

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Page 200: Magna Veritas - Tiago José Moreira

olhos arregalaram-se com uma súbita revelação. Seria esse o

significado do jarro?

Mais um trovão urrou nos céus, assim que chegamos à frente de

uma pequena construção de dois andares. Esta rua, durante o dia, era um

bazar, onde comerciantes vendiam bijuterias, arte, comida e artigos locais,

principalmente para turistas. O andar de baixo servia de loja e ficaria aberto

durante o dia. Agora, porém, estava totalmente fechado. Fitei a porta,

tentando pressentir qualquer mal ou presença sobrenatural em seu interior.

Nada pude sentir... Talvez não houvesse nada. Mas talvez a presença cada

vez mais forte do tigre, simbolizada pela tempestade, estivesse distraindo

meus sentidos. “Eu tenho a chave”, disse o Caído, “mas preciso deixar este

corpo, pois a carrego em minha forma verdadeira”.

“Não”, respondi, proibindo-o de deixar aquele corpo. Eu não podia

permiti-lo abandonar o corpo, pois ele poderia aproveitar a forma etérea

para escapar de nós. Então, aproximei-me da porta, toquei sua tranca e

balbuciei certas palavras. Minha energia celeste fluiu pelo meu braço,

passando por meu dedo e tocando a porta. E, usando uma imagem mental,

forcei a tranca a abrir-se. Mais uma vez, meus conhecimentos nas formas

mais simples de Spiritus Magica mostraram-se úteis.

Assim que adentramos a loja, a escuridão tornou-se forte demais

para que olhos comuns pudessem ver claramente. Em instantes, nossos

olhos começaram a brilhar. Absolon pegou sua mochila e procurou por sua

lanterna, mas intervi: “Não use luzes, Achille”. Fabrizia aproximou-se de

Absolon, segurando sua mão. “Vem, eu te guio”, ela disse, sorrindo.

“Está sorridente hoje, Fabrizia”, comentei, murmurando.

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Page 201: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Estive pensando no que conversamos em Chak-chak, e no que

Al-Malik disse a Achille”, ela respondeu. “Estou sorrindo pra disfarçar o

medo. Mas também porque estou me sentindo útil ao grupo. Ajudei a

derrubar três Shaitani”. O guarda olhou nervosamente ao ouvir isso.

“Há outros mais perigosos à frente”, disse Ansgar. “Você não devia

sorrir ainda”, completou, antes que se voltar ao Caído, fitando-o com seus

olhos que brilhavam em tom azulado: “Agora, indique o caminho, estou

sem paciência com você”.

“Pois bem”, disse o Shaitani, nos levando aos fundos da loja,

caminhando com certa dificuldade devido à escuridão. Ali, abriu um grande

alçapão no chão de madeira, abaixo estando uma escada de pedra. “É por

aqui”. Al-Malik tomou a frente, seguido por Absolon e Fabrizia. Eu e

Ansgar, que acompanhávamos nosso refém, fomos em seguida, e por fim

desceu Karina. Ainda não havia um sinal sequer de Wang.

Abaixo encontramos um depósito, onde artesanato, tanto pronto

como incompleto, e ferramentas e matéria-prima estavam organizados em

velhas prateleiras de madeira que se apoiavam nas paredes de pedra. Era

uma câmara retangular, com cerca de 10x15 metros quadrados. Apenas

uma pequena porção da parede não era preenchida com prateleiras. Foi

naquela direção que o Caído, no corpo do guarda, caminhou. “É aqui”, ele

disse. “Construímos um túnel rudimentar que nos leva aos subterrâneos”.

Em seguida, ele agarrou uma pedra retangular que compunha a parede e a

removeu, fazendo um pouco de força. A pedra, embora larga, não possuía

muita espessura. Logo atrás da mesma, estavam três buracos e, logo além, a

escuridão de um túnel. “Veja por si mesmo”.

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Page 202: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Aproximei meus olhos de um dos buracos, e minha visão pôde

perceber além um túnel rudimentar, de cerca de dois metros de altura por

um e meio de largura, descendo obliquamente, como uma rampa, para

profundezas que eu não conseguia ver. O túnel era mantido por alicerces de

pedra e madeira, dispostos nas paredes do mesmo. “Como abrimos a

passagem?”, perguntei.

“Ali”, ele respondeu, apontando para a parede oposta.

“Empurrando aquela prateleira, verão que há um vão na parede, e nele uma

alavanca. Girando-a, vocês podem acionar o mecanismo de correntes que

abre a porta, mas é preciso muita força para tal. Somente um mortal

extremamente forte conseguiria”.

Observei a parede que o Caído indicara. Al-Malik começou a

caminhar em direção da mesma. Foi então que tive uma sensação repentina.

Voltei-me ao guarda e, para minha surpresa, vi uma névoa densa sair de sua

boca e olhos, adentrando os buracos que levam ao túnel além. “Ansgar!”,

gritei, alertando-o. O Venator também havia se voltado para a parede

apontada pelo Caído e, por um breve momento, distraiu-se, possibilitando

ao Shaitan a chance de escapar. Tentei impedir que o espírito do Caído

escapasse, mas era tarde: quando meus dedos tocaram o guarda, a névoa já

tinha se dissipado no túnel além. A risada do Shaitan ecoou, seguida pelo

som de passos apressados que se afastavam rapidamente.

“Merda”, amaldiçoou Ansgar.

“Ele vai alertar o Ifrit”, disse Al-Malik.

Porém, minha preocupação era outra... Sem o espírito do Caído no

corpo, a consciência do guarda retornava. Assustado e atordoado, ele

gritou: “Quem são vocês?”, e tentava escapar da potente mão de Ansgar,

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Page 203: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que segurava seu braço. Naquela escuridão, ele via apenas vultos e

nossos olhos brilhantes, o que certamente era assustador. Ele tentou pegar

alguma arma, mas não portava nenhuma. Absolon tentou acalmar o

homem, mas era inútil. Ele lutava futilmente para se livrar de Ansgar, que

buscou contê-lo. A força do homem não era páreo para a do Venator,

felizmente.

Meus olhos se encontraram com os dele então, e brilharam ainda

mais fortes. “Um raio atingiu o arco em que você e seu companheiro

estavam para se protegerem da tempestade”, eu disse, com voz alta e firme.

“Você estava procurando ajuda, pois seu companheiro desmaiou. Volte e

lembre-se que você não viu nada estranho aqui”. A mente dele, hipnotizada

pelo brilho, deixou-o por um instante fora de si. Então, pedi que Karina o

levasse para fora e depois retornasse. Ela atendeu prontamente, segurando o

guarda pela mão e guiando-o. Ele, atordoado pelo meu Domínio, se deixou

levar sem resistência.

“Como vamos atravessar a parede?”, perguntou Fabrizia,

analisando-a.

“O Shaitan disse a verdade quanto a uma alavanca na parede

oposta”, respondeu Al-Malik, continuando em direção à parede citada.

“Não há tempo”, disse Ansgar, elevando sua voz. “Afastem-se”.

Afastei-me da parede, enquanto Fabrizia puxou Absolon. Foi

quando Ansgar começou a empurra-la, fazendo um grande esforço. Senti

sua energia explodir, conforme ele a canalizava por seu corpo e a parede

começou a ceder, os blocos de pedra se desfazendo. Mais energia celestial

fluiu, conforme Al-Malik aproximou-se e somou sua força à do Venator.

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Page 204: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Então, a parede cedeu, caindo no túnel à frente. Nesse momento,

Karina retornava.

“Vamos”, ordenei. Ansgar empunhou sua arma, seus olhos

brilhando na escuridão emitiram uma leve luz azulada que a lâmina refletia.

Também Al-Malik sacou sua cimitarra. Ambos tomaram a dianteira. Eu e

Karina fomos sem seguida, enquanto Fabrizia, atrasada por Absolon, ficou

na retaguarda.

O túnel adiante descia suavemente para as profundezas. Havia

muita poeira, que irritava meu nariz, e nenhum som além de nossos passos

nervosos. Eu queria apressar o grupo, mas sabia o risco que tal ação

representava, ainda mais lembrando que Absolon estava praticamente cego

naquela escuridão. Karina segurou minha mão, dizendo: “Aquele guarda...

o Domínio que você exerceu sobre ele... Acho que precisava ser mais

refinado”.

“Eu sei”, respondi. “Mas estamos sem tempo... A mente dele

certamente vai se lembrar do lugar onde estava e até mesmo vai se lembrar

de estar num local escuro e ser conduzido para fora, mas agora não tenho

tempo para pensar nisso. Infelizmente, corremos um risco muito maior do

que as memórias do guarda representam”. E, tendo dito isso, chegamos a

um corredor, mais antigo, mais trabalhado. Uma catacumba, com paredes

de pedra, construída nas profundezas da Velha Cidade. “Qual caminho

seguir, Karina? Direita ou esquerda?”.

Karina parou por um instante. Então, após uma breve concentração,

disse: “Direita. Quem procuramos está ainda mais profundo no solo”.

Al-Malik e Ansgar apressaram o passo. Eu e Karina tentamos

acompanha-los, mas precisávamos esperar por Absolon e Fabrizia. A Xamã

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Page 205: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ainda conduzia o Princeps pela escuridão. Eu podia sentir um

pressentimento ruim, uma sensação de estar sendo vigiado, e também podia

perceber uma aura de medo ao nosso redor, como se estivéssemos por

adentrar terreno profano.

“Que tipo de túneis são esses?”, perguntou em voz alta Fabrizia,

que se esforçava para acompanhar o resto de nós. Sem diminuir o passo,

respondi: “Acredito que guardavam os mortos em compartimentos nas

paredes... e que se escondiam aqui quando a cidade era atacada, talvez. Não

tenho idéia de quão antigos são esses túneis, mas podem muito bem ter

mais de dois milênios”.

“Peguem o caminho da direita!”, avisou Karina. Pouco depois, o

caminho dividiu-se, e os que estavam à frente seguiram as instruções dela.

O caminho começou a tornar-se mais irregular. Eu podia ouvir o som de

água ecoar. Foi então que vimos uma fraca luz adiante. “É ali, onde estão

as luzes”, avisou Karina. Ansgar aproximou-se da entrada do corredor

iluminado... e permaneceu ali parado.

O grupo todo se reuniu diante da passagem seguinte: uma caverna.

“Não imaginava que um lugar assim existisse sob Jerusalém”, comentou

Karina. Presas nas paredes da caverna, algumas tochas iluminavam a

passagem, mas a luz do fogo também gerava sombras tremulantes.

Algumas gotas d´água caíam do teto e, ao tocarem o chão, emitiam um som

que ecoava pelos túneis.

Ansgar tomou a frente, caminhando cautelosamente. Logo em

seguida prosseguiu Al-Malik. Absolon, não mais limitado pela falta de

visão, aproximou-se de mim, e Fabrizia continuou na retaguarda do grupo.

Ambos empunhavam suas espingardas. Mesmo Karina sacou uma de suas

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Page 206: Magna Veritas - Tiago José Moreira

pistolas. Cuidadosamente, prosseguimos, pisando com cuidado para

não gerar sons demais.

A caverna se dividia em múltiplos caminhos, mas seguíamos o

caminho traçado pelas tochas nas paredes. Uma sensação crescente de

medo e angústia me tomava... Mais ainda, eu sentia uma inconfundível

presença infernal permear as paredes daquele lugar.

Finalmente, nosso destino chegava, conforme avistei adiante uma

grande câmara. E, quando aproximamo-nos mais, nada pôde nos preparar

para a surpresa que nos esperava.

À frente, estava a grande câmara arredondada, com cerca de seis

metros de altura e uns vinte e cinco metros de diâmetro. As paredes

irregulares abrigavam pequenas piras, cujas chamas traziam luzes e

sombras tremulantes a todo o local. O chão era regular, como se moldado

por uma força não natural, gerando um piso sólido e quase liso, mas não

escorregadio. Múltiplas estalactites pendiam do teto, ajudando a criar mais

sombras tremulantes. Do outro lado, os túneis continuavam, descendo ainda

mais nas trevas da terra. E, aproximadamente no centro da câmara, uma

formação de rocha formava um trono rudimentar, cercado por estalagmites

que reforçavam o destaque daquele local. Ali, um homem esperava por nós.

Pude imediatamente reconhecer aquele homem de barba e longos cabelos

negros, com pele morena e feições inconfundíveis, ainda vestindo os trapos

que vestia em nosso primeiro encontro. Ha'il-Kanzab era o homem sentado

no trono.

Ansgar tomou a frente, a lâmina de sua espada incendiando-se em

chamas celestes, adicionando a forte luz azul à iluminação tremulante da

câmara. “Cria de Íblis Al-Qadim!”, gritou Al-Malik, colocando sua

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Page 207: Magna Veritas - Tiago José Moreira

cimitarra à esquerda do corpo, em posição de ataque, “renda-se à nossa

vontade!”.

Então, pela câmara ecoou um som de passos... Cascos batendo no

chão rochoso. De trás do trono surgiu um animal pequeno e negro, com

grandes chifres. Um bode, que caminhou calmamente até que sua cabeça

chegou ao alcance da mão esquerda de Ha'il, que começou a acaricia-lo

suavemente. Ha'il gritou: “Vocês entram em minha casa para ameaçar-me?

Que tipo de tolo acham que sou? Vocês estão aqui porque permiti que

viessem, mas tenho assuntos a tratar apenas com você, Arcanjo”. Sua voz

ecoou pela câmara, mas eu não conseguia deixar de observar o animal,

praticamente ignorando as palavras do Luciferite. A criatura possuía pêlos

oleosos, negros e eriçados, e seus olhos brilhavam num tom avermelhado.

Olhei sua aura, mas ela parecia tão inocente quanto a alma de um bebê.

Senti um calafrio percorrer minha espinha quando a criatura berrou, e

aquele som do animal também ecoou, tanto na câmara como em minha

alma.

Ansgar começou a caminhar, avançando a passos lentos na direção

de Ha’il. “Se deseja falar com Nicodemus, terá primeiro de passar por

mim”, disse, empunhando a espada flamejante adiante do corpo. “Então,

MORRA”, gritou Ha'il. Al-Malik gritou para alertar Ansgar, conforme um

assassino caiu do alto, vindo de uma pequena plataforma no teto,

impossível de ser vista pelo túnel que levava à câmara. Eu mal pude notar o

vulto descendente, que caía sobre Ansgar, mas percebi o brilho da lâmina

que carregava, pronta para atingir a cabeça do Venator. Então, numa

velocidade que meus olhos não podiam acompanhar, Ansgar virou-se,

girando o corpo para a direita, emitindo um urro de batalha, e traçando um

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Page 208: Magna Veritas - Tiago José Moreira

arco ascendente com sua lâmina, deixando um rastro de chamas

celestes. O choque das lâminas ocorreu logo acima da cabeça de Ansgar,

emitindo um som forte como um trovão. Tamanha foi a força do golpe do

Venator, que seu atacante foi jogado para o alto e para a direita, e sua

lâmina partiu-se. O atacante, um Shaitan vestindo um manto negro, caiu

violentamente no chão, uns três metros de distância do Venator.

Um tiro de fuzil, então, veio do túnel atrás de nós, atingindo

Fabrizia pelas costas. A força do disparo abriu um buraco em sua barriga e

a fez cair de joelhos com dores. Absolon virou-se, gritando o nome da

moça. Antes que eu pudesse reagir, senti um vento formar-se atrás de mim,

conforme braços fantasmagóricos me abraçavam e se materializavam.

Karina gritou com o susto, e em seguida meus braços estavam

imobilizados, conforme uma pessoa enorme e tremendamente forte me

segurava. Al-Malik avançou contra ele, tentando cortar suas costas com a

cimitarra, mas ele então saltou uns três metros de altura, em direção ao

centro da câmara, não só escapando do ataque do Malaki, como também

pousando na metade do caminho entre a entrada do local e o trono de Ha’il.

Então, me jogou violentamente no chão, e virou-se para os meus demais

companheiros, sacando uma grande lâmina que portava nas costas. Caído,

fitei-o, e vi que era um homem enorme, sem camisa, apenas calça,

descalço, cabeça raspada e sem barba. Sua pele era negra, bem escura, e

sua lâmina parecia com uma cimitarra, mas com curvatura menos

acentuada, e mais grossa, longa e pesada. Nas costas dele, vi grandes

cicatrizes, deixadas pela extração de suas asas.

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Page 209: Magna Veritas - Tiago José Moreira

No túnel, ecoaram os sons de tiros, conforme Karina e Absolon

disparavam contra o Caído que atingiu Fabrizia. A forma do Caído

desapareceu na escuridão, porém.

O grande Caído avançou, sua lâmina erguida sobre a cabeça,

atacando Ansgar. Ambos os combatentes urraram quando suas lâminas se

chocaram. As lâminas se prendiam, cada guerreiro forçando o seu oponente

a recuar. O primeiro que fraquejasse seria o primeiro a ter seu sangue

derramado.

O Shaitan de negro, antes derrubado por Ansgar, levantou-se,

avançando contra as costas do Venator, que ainda estava no confronto de

força. Seus dedos tornaram-se garras cortantes e pontiagudas, mas antes

que chegasse ao Venator, a Al-Malik desferiu-lhe um golpe vertical com

sua cimitarra. Para minha surpresa, o homem de manto escapou do golpe,

girando seu corpo com facilidade. Al-Malik repetiu o ataque de novo e de

novo, mas o homem parecia escapar dos ataques com tremenda facilidade,

ainda que não contra-atacasse em momento algum.

E, enquanto Ansgar fitava seu oponente, ainda tentando vence-lo

em força, enquanto Al-Malik tentava atingir em vão seu adversário, e

enquanto Karina e Absolon buscavam o vulto do Caído que os atacou, ouvi

os passos de Ha’il, cada vez mais próximo. “Não tenho tempo a perder

aqui, Arcanjo”, ele disse, “nem desejo ver o fim desta contenda. O que

quero é você. Iremos embora deste lugar”.

Ainda caído, me virei para encarar aquele homem. Ele estava

próximo de mim, e caminhando cautelosamente. Asas nasciam em suas

costas, e sua boca tornava-se uma grande mandíbula. Quatro novos olhos

surgiram em sua testa, e seus braços afinavam-se e alongavam-se, nascendo

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Page 210: Magna Veritas - Tiago José Moreira

grandes pêlos sobre a pele que tornava-se cada vez mais negra e

resistente. Abaixando-se sutilmente, suas garras quitinosas estavam prestes

a tocar meu rosto. Foi quando uma sombra silenciosa começou a erguer-se

atrás de Ha’il-Kanzab, nascendo das trevas tremulantes da câmara, abrindo

suas asas negras, que mais pareciam mantos tremulantes de trevas. A

sombra moveu-se silenciosa e mortalmente, fazendo sua lâmina negra

cortar as costas do demônio, causando-lhe um rasgo mortal pelo qual fluiu

seu sangue fétido, e até mesmo cortando uma das asas da monstruosidade.

O urro de dor do Caído foi extremamente alto. Não fosse sua armadura

quitinosa, Ha'il poderia estar incapacitado com aquele único golpe. O

demônio cambaleou para a frente, para minha direção. Eu me arrastei,

tentando afastar-me, e então Ha’il virou-se para encarar seu atacante. A

sombra deu lugar a roupas negras, e a face de Lo Wang surgiu das trevas. O

que surgiu não foi sua face mortal, porém, e sim uma máscara cinzenta,

com feições monstruosas, incluindo uma grande boca com presas. Por trás

da falsa boca da máscara era possível ver a real boca do Celestial. O adorno

tornava o Kage tão monstruoso quanto o próprio ser que ele combatia.

Porém, a batalha ainda continua furiosa na entrada da câmara. O

Caído que Karina e Absolon procuravam de repente surgiu atrás deles,

desfazendo sua invisibilidade no instante em que disparou no tórax de

Absolon. O sangue voou por seu peito, seu coração perfurado, dando-lhe

uma súbita sensação de fraqueza. Absolon perdeu as forças, mas apoiou-se

na parede rochosa para não tombar no chão. Karina gritou, tentou virar-se

para atirar no atacante, mas foi mais rápido, empurrando-a contra Fabrizia,

ainda ajoelhada. Ambas caíram. O Caído voltou-se para Absolon, dando

um, dois, três, quatro outros disparos a queima-roupa. “Você não me parece

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Page 211: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mais tão poderoso agora, não é mesmo?”, gritou o Shaitan, um homem

que vestia um sobretudo marrom e tinha cabelos curtos e nenhuma barba,

tendo uma aparência mais ocidental do que seus outros companheiros. A

cada disparo sofrido, o sangue de Absolon se espalhava mais e mais pelas

paredes, pintando-as de rubro. Karina, caída, apontou sua pistola, e

disparou contra o ombro do Caído. O maldito não gritou diante do

ferimento sofrido, que parecia bem menor do que o esperado, e então se

voltou para a jovem, fitando-a raivosamente. Ela disparou novamente,

atingindo-lhe no peito. Mas ele apenas avançou contra ela, chutando a

pistola. Enquanto isso, Absolon caía quase inconsciente, sua barriga e peito

severamente feridos, seu sangue escorrendo pelas paredes.

Também Al-Malik enfrentava dificuldades. Seu oponente movia-se

como vento, escapando dos golpes de cimitarra com grande facilidade. O

Shaitan de manto negro recuava, em direção à parede, tentando manter

certa distância do Malaki. Quando o Caído tocou a parede, Al-Malik teve a

certeza de que ele não teria por onde escapar. A cimitarra veio da esquerda

para a direita, num golpe certeiro contra o pescoço do homem de negro.

Mas então, o braço do homem parou a lâmina, emitindo o som de metal

batendo contra rocha. Por trás do capuz, podia-se notar a boca sorridente do

Caído, que havia atraído Al-Malik para a sua armadilha. Sua pele tornava-

se como rocha, e mesmo a espada não podia feri-lo. Com o braço

impedindo que Al-Malik avançasse com a espada, e vendo o pescoço do

Malaki desprotegido, o Shaitan negro desferiu um golpe com as garras da

mão esquerda, que estava livre. Para a sua surpresa, porém, o Malaki, numa

velocidade incrível, largou a cimitarra, que empunhava com ambas as

mãos, e com a mão direita agarrou o pulso do atacante antes que suas

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garras pudessem cortar a garganta de Al-Malik. O Caído, surpreso,

tentou atacar, com a mão direita agora livre, uma vez mais o Malaki. Mas

este, novamente mais veloz, usou a mão esquerda para agarrar seu pulso.

Segurando ambos os pulsos do Shaitan, Al-Malik fitou-lhe a face e, em voz

alta, condenou-lhe: “Por tentar derramar sangue divino e por ser um

assassino vil, eu o castigo”. O homem de negro gritou de dor, contorcendo-

se. Foi quando Al-Malik jogou-o ao chão. “Suas artimanhas não são nada

perto de quem pode ver a verdade. Sua pele de rocha não é nada além de

uma armadura que restringe sua velocidade”. Então, o Malaki ergueu as

mãos, e as puxou para baixo, traçando dois arcos de fogo descendentes

diante do corpo. O fogo então projetou-se contra o Caído, incendiando

tanto a ele como a suas roupas. “E mesmo a pele de rocha não resiste a

fogo purificador”, completou Al-Malik, diante dos gritos de dor do Shaitan

em chamas.

Já Ansgar permanecia em seu duelo de força, sua espada tentando

forçar a lâmina do gigante a recuar. Foi quando o Shaitan tornou-se um

espectro de vento. A força que Ansgar exercia agora voltava-se contra ele,

jogando-o para frente, uma vez que não havia mais a lâmina do adversário

para segura-lo. Ansgar perdeu o equilíbrio, cambaleando, quase caindo.

Quando, neste movimento, Ansgar atravessou o espectro, este se

materializou, girando o corpo para a esquerda, sua lâmina certeiramente

atingindo o ombro direito de Ansgar, cortando-lhe carne e músculos,

resvalando no osso. Ansgar gritou de dor e, combinado o golpe sofrido com

o seu desequilíbrio, caiu no chão, largando sua espada, que deixou de

iluminar-se em chamas celestes.

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À minha frente, demônio Ha’il encarava o Kage mascarado.

“Desgraçado!”, gritou o anjo infernal, avançando com fúria, suas mãos

incendiando-se em chamas avermelhadas, que traçavam desenhos conforme

suas garras avançavam contra Lo Wang. O Kage, com suas asas negras

ainda abertas, voou para trás, afastando-se antes que as garras o atingissem.

Com apenas uma asa intacta, o demônio foi incapaz de segui-lo, tendo de

correr em sua direção. Em pleno ar, Wang recolheu suas asas, caindo

suavemente sobre o trono de pedra. Ha’il, avançando furiosamente,

desferiu um golpe potente com a mão direita, mas o Kage saltou para trás,

numa cambalhota, e a mão do demônio encontrou em seu caminho apenas a

resistência do encosto do trono de rocha, que partiu-se em vários pedaços.

Wang pousou uma vez mais, suavemente, atrás do trono, mas Ha’il já

saltava sobre o mesmo. Surpreso com a velocidade do atacante, Wang

saltou contra ele, preparando um golpe contra seu peito. Mas os braços

longos de Ha’il tinham um maior alcance que a lâmina do Kage. Quando

ambos estavam em pleno ar, num golpe poderoso de seu braço direito, Ha'il

arremessou o guerreiro celeste para a sua esquerda. Tamanha foi a

violência do golpe que o Kage caiu no chão como um boneco sem vida,

rachando o solo rochoso e quebrando vários de seus ossos. A lâmina negra

do Kage caiu ainda mais distante. “Vocês não são melhores do que simples

mortais, que se escondem atrás de armas de metal”, gritou o demônio.

Chamas de múltiplas cores surgiram ao seu redor, num círculo,

precipitando para o alto da câmara, iluminando-a intensamente. E, ao lado

esquerdo do trono semi-destruído, ainda estava o bode, intocado, sentado,

tranqüilamente me fitando com seus olhos vermelhos, como se nada

ocorresse ao seu redor.

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Atrás, o Caído de sobretudo, aquele que antes possuía o guarda

e havia agora derrotado Absolon, erguia Karina pelos cabelos, usando sua

mão livre, enquanto a outra mão ainda empunhava o fuzil. A moça gritou, e

o Caído forçou-a contra a parede. “Me largue!”, gritava Karina. O maldito

ria e, com a mão livre, tocou o peito de Karina, apertando seus seios. “Você

é uma mulher muito idiota por ter vindo aqui”, ele dizia rindo. Naquele

momento, Fabrizia, caída logo ao lado dos dois, já recuperada do ferimento

sofrido, estendeu sua mão esquerda, agarrando a perna do homem, que se

voltou para olhar quem o tocara. Faíscas e um grito de dor e surpresa se

seguiram, conforme o toque de Fabrizia transmitia um poderoso choque

elétrico. O choque também afetou Karina, mas com menor intensidade,

pois o homem retirou seu toque assim que começou a dor. E, ferido, o

homem virou-se. “Cadela!”, gritou, preparando para disparar com seu fuzil.

Fabrizia rapidamente ergueu sua espingarda, apontando a queima-roupa

para o cotovelo do braço que empunhava o fuzil, e disparou, partindo o

braço em dois e desarmando o inimigo. “Vá se foder!”, devolveu Fabrizia.

O Caído recuou, segurando o ferimento com seu braço ainda bom. Um

grito feminino se seguiu. Karina urrava como um animal, seus olhos

tornavam-se vidrados como os de uma fera selvagem. Sua forma não se

alterou, mas sua beleza parecia assustadora. Tendo finalmente liberado seus

poderes e o Instinto que carrega, a jovem avançou contra o Caído sem

braço, rasgando-lhe a garganta com as próprias unhas da mão. O Caído

caiu, Karina sobre ele, ela atacando-o com as unhas, rasgando-lhe o rosto e

os olhos. Fabrizia levantou-se, correndo em direção aos dois, e teve de

retira-la à força de cima do homem, mas a força de Karina parecia maior

que o normal, e ela estava fora de si. Assim que Fabrizia puxou a

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companheira, ela voltou a si. O homem, caído, cego e ferido, não

resistiu quando Fabrizia aproximou-se, apontou com raiva a espingarda

para a sua cabeça e, com um último tiro, destruiu sua forma física. Seu

corpo tornou-se pó pouco depois, deixando apenas ossos frágeis, roupas e o

sangue derramado por seus ferimentos.

Enquanto esses confrontos prosseguiam, o grande Caído, de pele

negra e poderosa lâmina, ergueu a mesma sobre a cabeça, pronto para

desferir um golpe fatal contra a cabeça desprotegida de Ansgar, caído à sua

frente e com as costas totalmente indefesas. “Em nome de Íblis, nosso

Deus!”, gritou o Shaitan. Porém, assim que avançou para o ataque, o Caído

ouviu um grito de guerra de um atacante que vinha por trás, e suas costas,

na altura da cintura, foram rasgadas pela cimitarra de Al-Malik, que

deixava o homem de manto para trás, ardendo em chamas. O corte da

cimitarra não atingiu a coluna do Shaitan, mas rasgou-lhe carne e órgãos

vitais, até que a lâmina surgiu através da barriga. Corte fora lateral,

horizontal, e tamanha foi a força do impulso de Al-Malik ao realiza-lo, que

o Malaki foi parar um pouco à frente de seu alvo. O Shaitan desabou de

joelhos, largando a lâmina e levando as mãos ao ferimento, conforme suas

tripas teimavam em tentar escapar pela imensa fenda em seu abdome. “Não

há Deus a não ser Deus”, gritou Al-Malik, decepando a cabeça do gigante,

“e Maomé é seu profeta!”.

“Obrigado”, agradeceu Ansgar, erguendo-se e pegando sua espada.

O ferimento no ombro do Venator começava a se fechar, mas ainda levaria

algum tempo para se curar por completo. “Não me agradeça”, respondeu

Al-Malik, apontando sua cimitarra ao Caído de manto, que agora erguia-se,

ainda com as roupas em chamas. “Vá ajudar o Kage”, completou o Malaki.

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Ansgar nada disse, apenas novamente banhou suas lâminas em chamas

celestes, empunhou-a com ambas as mãos, e correu em direção ao demônio

Ha’il.

O Ifrit ainda concentrava suas chamas, que se espalhavam pela

pedra como se esta fosse inflamável. O Kage tentava erguer-se, mas tanto

uma perna como um ombro estavam quebrados. Ha'il avançou, rosnando

em fúria e bufando chamas, deixando um rastro de fogo infernal por onde

passava. Porém, neste instante, Ansgar gritou seu nome. Incrivelmente, o

demônio teve a agilidade e a velocidade suficientes para escapar do golpe

da espada incandescente de Ansgar. O eco do som de metal contra rocha foi

refletido pela câmara, conforme o chão se partia diante do golpe que

Ansgar desferiu. O demônio recuou, cuspindo chamas infernais, mas

Ansgar balançou sua lâmina, intensificando as chamas na mesma, criando

um rastro de luz celeste que barrou o avanço do Fogo Infernal. Ansgar

avançou, elevando sua espada para cima da cabeça, na tentativa de atingir a

barriga do demônio durante o movimento. O demônio recuou, uma vez

mais escapando. Agora com a arma sobre a cabeça, Ansgar novamente

golpeou, de cima para baixo e da esquerda para a direita, tentando atingir a

cabeça de seu adversário. Porém, novamente Ha'il-Kanzab escapou do

golpe, curvando o corpo para a esquerda. Antes que Ansgar pudesse

preparar um novo ataque, Ha’il deu um passo a frente, e com a mão direita

golpeou o rosto do Venator, rasgando-lhe com as garras e queimando-lhe

com o fogo. Ansgar recuou três passos. Foi quando lembrei das lições de

combate em Chak-chak, e percebi porque Ansgar não conseguia atingir o

inimigo: os braços do demônio eram longos demais, impedindo que Ansgar

se aproximasse o suficiente para desferir golpes certeiros. Após o recuo do

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Page 217: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Venator, o anjo infernal urrou, abrindo seus braços e preparando suas

garras para seu próximo ataque. “É outro que se esconde atrás de metal.

Um a um, vocês todos morrerão, não importa que armas usem”, provocou o

demônio, sua boca sendo iluminada por chamas infernais que dela saltavam

conforme ele falava.

No túnel de entrada, Karina, de joelhos, chorava, olhando suas

unhas quebradas e cheias de sangue. “Eu odeio usar aquela habilidade”, ela

revelou, aos prantos, Fabrizia abraçada a ela, tentando conforta-la. “Perco o

controle por completo”, Karina continuava.

“Calma, Karina”, Fabrizia dizia. “O desgraçado mereceu”.

Absolon, sentado no chão, apoiado na parede, sujo com seu próprio

sangue, observava o que acontecia na câmara. Ele respirava com

dificuldade, conforme usava suas energias para curar-se dos múltiplos

ferimentos. Sem olhar para as duas moças, ele falou, com dificuldade:

“Todos fizemos o que podíamos... Agora é com eles”, disse, fitando

aqueles que ainda batalhavam.

Al-Malik avançou, cimitarra em punhos, contra o Shaitan de

manto. Com o manto em pedaços, era possível ver o homem que o vestia:

magro e baixo, com longos cabelos encaracolados, mas sem pêlos no rosto.

Sua pele não mais era feita de rocha. Os vestígios de fogo não mais o

incomodavam, como se ele tivesse se tornado imune às chamas após o

ataque inicial. Antes que Al-Malik avançasse, o homem balançou a mão, e

uma forte rajada de vento atingiu o Malaki. Perdendo o equilíbrio, Al-

Malik caiu, mas logo se levantou. O homem tinha desaparecido, mas

através de meus poderes eu ainda podia vê-lo. Oculto por sombras e

artimanhas sobrenaturais, ele movia-se com dificuldade, mancando, devido

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Page 218: Magna Veritas - Tiago José Moreira

a seus ferimentos. Al-Malik tentava procura-lo, mas não o encontrava,

mesmo com ele estando bem diante de seus olhos. O Shaitan deu a volta,

evitando o Malaki, posicionando-se alguns metros atrás do mesmo. Então,

ergueu as garras, pronto para um ataque... Pensei em gritar para alerta-lo,

mas lembrei de algo que certamente o Shaitan tolo não sabia. E,

certeiramente, no momento de seu silencioso ataque, o pulso que atacava

foi cortado pela cimitarra de Al-Malik, que virou-se girando o corpo,

desferindo o golpe certeiro. Um Cuique Suum sempre vê a verdade,

sempre. Revelado por seu ataque, sem sua mão direita, o Caído recuou.

Sem piedade ou hesitação, Al-Malik avançou... Seu primeiro golpe cortou o

peito do Caído, fazendo-o tombar. O segundo golpe atingiu seu pescoço,

cortando-lhe traquéia, artéria e veias. Em seguida, mal o sangue começou a

ser derramado, seu corpo desmanchou-se em pó. Al-Malik abriu os braços,

fechou os olhos e concentrou-se: que a alma daquele ser impuro jamais

retornasse para atormentar os vivos. E, feito isso, o juiz condenou o Shaitan

à Obliteração.

Restava apenas um oponente em pé. Ha’il-Kanzab e Ansgar se

encaravam, os múltiplos olhos do demônio fitando sua presa. O corte no

rosto de Ansgar não sangrava devido à cauterização causada pelo Fogo

Infernal, mas estava próximo o suficiente do olho de Ansgar para

prejudicar sua visão. Uma parede de chamas infernais surgiu

repentinamente, entre os dois, ascendendo do solo explosivamente. Ansgar

recuou, parcialmente cego pelo brilho das chamas, mas então o demônio

emergiu do fogo profano, suas garras quase alcançando o pescoço do

Venator. Ansgar escapou, tentou desferir um golpe contra o ventre do

demônio, mas novamente foi incapaz de atingir a criatura, pois precisava se

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Page 219: Magna Veritas - Tiago José Moreira

manter distante das garras. Ha'il ria e rosnava ao mesmo tempo, pois

após o golpe mal sucedido do Venator, o mesmo precisava posicionar a

pesada espada novamente para atacar. Ao invés de atacar diretamente o

Celestial, porém, Ha’il agarrou a lâmina da arma com ambas as mãos. Fogo

Celestial da lâmina e Fogo Infernal das mãos se tocavam e se anulavam, e

então o anjo maldito girou o corpo para a esquerda, puxando a lâmina sem

se cortar na mesma. Pego desprevenido, Ansgar largou a espada, vendo-a

ser arremessada a dezenas de metros.

Ansgar recuou. “Sem armas de metal para se protegerem, sua

coragem desaparece?”, provocou o demônio, que avançou contra o

Venator, atacando o rosto com uma das garras. Ansgar jogou o corpo para

trás, escapando do ataque. Ha’il gargalhou, conforme Ansgar recuava

lentamente, e ergueu a outra mão, mostrando as potentes e compridas

garras. O demônio avançou, num urro, pronto para desferir outro golpe,

mas o grito de dor que se seguiu era dele próprio, conforme uma sombra

saltava silenciosamente, materializando-se em pleno ar para ganhar

substância e, empunhando uma adaga negra como a noite, feita da própria

essência das trevas, golpeou a mão de Ha’il, cortando-lhe os dedos e garras.

Wang caiu logo atrás do Caído, os dedos do demônio caíram inertes no

chão, desfazendo-se ao baterem no solo. Sangue fétido escorreu, e o

demônio recuou. Não mais tendo insubstancialidade, Wang sentiu o peso

do corpo sobre a perna quebrada, mas teve força o suficiente para jogar-se

no chão, saindo do caminho do demônio que recuava.

Ansgar, num impulso, avançou contra o Caído. O Venator agarrou

o pulso da mão boa de Ha’il, tirando seu braço do caminho, e então

desferiu um soco certeiro no queixo do demônio, quebrando-lhe a

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Page 220: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mandíbula. “Quem não tem suas armas agora?”, provocou o Venator,

desferindo um segundo golpe no rosto do infernal. Agora que tinha

ultrapassado o alcance das garras do demônio, os braços compridos do

mesmo eram uma desvantagem para o mesmo. Ele tentou recuar, mas

Ansgar agarrou sua cabeça com ambas as mãos, então girou o corpo,

voltando-se para trás, usando o movimento para adicionar força aos braços

e erguer o pesado infernal por sobre a sua cabeça, arremessando-o

violentamente no chão. O chão rachou com o impacto. Ha’il, ferido, tentou

mover-se, mas Ansgar pisou violentamente em seu pescoço, pressionando-

o contra o chão. “Está acabado”, disse, suas mãos agora irradiando chamas

celestes, formando duas espadas de puro fogo purificador.

Corri em direção a Ansgar, passando pelo trono de pedra. O bode

que ali estava tinha desaparecido. Al-Malik e Fabrizia, enquanto isso,

ajudavam Absolon a se levantar. Logo depois, os três mais Karina também

seguiram em direção a Ansgar. Atrás de Ansgar, Wang se erguia, com

dificuldade, enquanto sua perna começava a recuperar-se. O Kage retirou

sua máscara, aproximando-se mancando de mim. “Por que a máscara?”,

perguntei.

“Quando caça nas trevas, um Kage deve ser como os monstros que

nelas vivem, é uma velha tradição”, respondeu.

“Malditos seres que se julgam abençoados”, praguejou, com voz

enfraquecida, o demônio. “Julgam-se melhores, acham-se os protetores da

inocência, mas destroem não uma, mas duas vezes a vida daqueles que

querem o melhor para os homens”.

Al-Malik, mais próximo e ainda ajudando Absolon, respondeu:

“Quem é você para julgar-nos, cria das trevas? Vendeu seu corpo e sua

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Page 221: Magna Veritas - Tiago José Moreira

alma a um falso Deus, traiu tudo o que acreditava em nome de poder!

Quem pensa que é para saber o que é melhor para os homens?”.

“HIPÓCRITAS”, Ha’il-Kanzab gritou com as forças que lhe

restavam. “É isso o que são! Arrancaram minhas asas e minha dignidade

por amar os homens mais do que vocês! Destruíram meu orgulho por eu ter

ousado dar-lhes conhecimento para afasta-los do mal! Expurgaram-me do

Paraíso por eu ser melhor do que vocês! Mas não era o suficiente, não?

Vocês não queriam apenas me expulsar, queriam me destruir ainda mais!”.

“Cale-se”, ordenou Ansgar.

Ha’il, porém, prosseguiu: “Eu conquistei minha tribo, me tornei um

deus bondoso e forte. Ensinei meu povo a temer-me e, em meu nome, eles

iriam crescer e prosperar, longe de pecados e da falsidade do mundo. Mas

então vocês enviaram seu falso profeta, cujas palavras enganaram meu

povo e levou os últimos fiéis a serem perseguidos e mortos brutalmente.

Depois disso, eu sabia que não descansariam enquanto não me destruíssem.

Por isso, jurei destruí-los antes, e dei minha alma ao único que estendeu sua

mão para mim”.

“Íblis Al-Qadim”, murmurou Al-Malik.

“Me matem”, ordenou o demônio, “pois não direi nada além de

minha história! Me matem, sabendo que vocês são traidores, monstros sem

piedade que buscam nada além de domínio sobre os homens, através da

ignorância e falsos profetas! Me destruam, pois nada mais direi. Morrerei

sabendo que servi meu mestre e meus propósitos por todos esses séculos”.

“Façam-no”, pediu Al-Malik. “Dêem a ele esse último pedido”.

“Irei Oblitera-lo”, disse Ansgar, “e assim teremos todas as

informações que precisamos. Mesmo tendo de agüentar os pensamentos

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desta coisa em minha cabeça pelos próximos minutos, precisamos fazer

isso para termos respostas”.

Concordei. Naquele momento, Ansgar pressionou ainda mais seu

pé contra o pescoço do demônio, quebrando-lhe a espinha e esmagando-lhe

a garganta. A criatura começou a desfazer-se, e o Venator fechou os olhos,

concentrando-se. Eu podia sentir a alma do Venator atrair a do demônio,

prestes a devora-la e destruí-lo de uma vez por todas, mas antes que a

Obliteração se concluísse, as paredes tremeram, e senti uma sensação como

nunca sentira antes. Medo. Trevas. Ódio. Dor. Todos num só, permeando o

ambiente como se o Inferno em si estivesse se abrindo naquele lugar.

Então, uma voz ecoou. Uma voz humana e bela, calma, mas forte, como

um líder que grita a seus seguidores. E a voz disse: “Já chega!”.

Ansgar perdeu a concentração, recuando. Karina gritou: “Quem

está aí?”. E, do trono, desceu o bode, silenciosamente. “O que é esse

animal?”, perguntou Ansgar, empunhando defensivamente suas lâminas de

chamas.

“Vocês não o viram antes?”, perguntei.

“Não”, respondeu Al-Malik. “Não o tinha visto antes”.

Meu coração pareceu ser pressionado pelo medo, minha garganta

ficou seca. Nem mesmo Al-Malik pôde ver a criatura antes, apenas eu. Por

quê? Mas então, o bode abriu sua boca, que durante o movimento parecia

ganhar lábios humanos. “Este é um bom servo”, disse a criatura, “vocês o

entregaram a mim, não permitirei que o tomem de volta”. Sua voz era bela,

calma, estranhamente humana. Nada de vozes trovoantes, nada de sussurros

e ecos em nossas mentes, nada de tremores de terra que a acompanhavam.

Era apenas... uma voz. E, de repente, a face do bode parecia estranhamente

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Page 223: Magna Veritas - Tiago José Moreira

humana. Sua pata dianteira abria-se, revelando dedos humanos, e ele

crescia em tamanho, lentamente erguendo-se em duas patas.

“Quem é você?”, perguntou gritando Al-Malik.

“Quem sou eu?”, a criatura disse, sua essência espalhando-se pelo

local. No mundo espiritual, uma negritude impermeável se formava e os

espíritos que restavam fugiam ou eram contaminados pela mesma. Agora

ele tinha um metro e oitenta de altura, apoiando-se nas patas traseiras, que

ainda eram como as de um bode, com pêlos negros e densos. Os pêlos do

resto do corpo, salvo a longa cabeleira negra, desapareciam, revelando uma

pele negra e lustrosa. Suas mãos e rosto, porém, tinham a cor de pele

humana, bem clara. Suas mãos eram totalmente humanas, sem garras ou

qualquer outra ferramenta demoníaca. Também sua face era humana e

belíssima, mas sua gengiva sangrava, e seus dentes eram pontiagudos. Os

olhos possuíam um tom avermelhado, e sobre a cabeça, os chifres de bode

ainda permaneciam, maiores e mais majestosos. Grandes asas de morcego

nasciam, abrindo-se até atingirem mais de quinze metros de envergadura.

Também a cauda do bode permanecia, mas crescia, tornando-se

extremamente longa, e serpenteava atrás do corpo, movendo-se

suavemente. “O que querem de mim? Um nome?”, perguntou.

“Diga logo, desgraçado!”, ameaçou Ansgar, mostrando suas armas

flamejantes. Notei que Al-Malik tremia, e eu mesmo permanecia paralisado

de medo.

A criatura, porém, apenas balançou a mão, calmamente, e as

chamas celestes nas mãos de Ansgar tornaram-se esverdeadas. O Venator

caiu de joelhos, gritando de dor, mas então o Fogo Negro apagou-se,

levando consigo as armas flamejantes do Celestial. “Cale-se, pequena

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Page 224: Magna Veritas - Tiago José Moreira

criatura”, disse o ser, “pois não sabem o que pedem. Nomes são apenas

designações mortais, nenhum nome me limita ou pode me definir”.

Al-Malik murmurou: “O que é você?”.

“Essa sim é uma pergunta válida”, disse a criatura, dando alguns

passos em nossa direção. Os cascos de suas patas batiam no chão, fazendo

um barulho que ecoava pela câmara. “Pois nomes pouco dizem, a não ser

aquilo que eu quero mostrar. O que eu sou? Eu sou o Oitavo Filho. Quem

eu sou? Vocês podem me chamar de muitos nomes. Pois de Azazel roubei

o nome, e na forma de um bode o usei para ouvir os pecados do homem.

Pois antes de Hades assim se chamar, eu mesmo Hades era, e manipulava

deuses e deusas de acordo com minha vontade. Também os romanos e os

cristãos sussurravam ‘Rex Mundi’, o senhor deste mundo, pois sabiam que

minha vontade não devia ser contestada, e que meu real nome deveria ser

temido. Pela Idade das Trevas, Næbyrus, Senhor do Profano, fui chamado,

e sussurrava nos ouvidos de reis e lordes. Também Mamon foi minha

alcunha, e me chamavam de Mestre da Usura, pois pela ganância os

homens a mim encontravam, e a mim se entregavam. Nu, eu comparecia

aos Sabás com o nome de Leonardo, e, a minhas feiticeiras, milhares

temiam. Para muitos, eu sou Nebiros, mas nesta terra, me chamam Íblis Al-

Qadim, e é por este nome que mais me temerão”.

A criatura se aproximava, calma e seriamente. Al-Malik orava a

Deus. Ansgar se levantava, recuando cautelosamente. Calado, Absolon

apenas observava, ainda apoiado a Fabrizia, e Karina levou a mão à boca, o

medo aflorando em sua pele. Atrás, Wang permanecia em silêncio, mas sua

face demonstrava claro medo. Restou a mim perguntar: “O que veio fazer

aqui?”.

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Page 225: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Vim trazer as respostas que tanto quer, Philipe Nicodemus.

Respostas eu trago, mas garanto que um preço será pago por elas. Direi a

vocês o destino de seu precioso Arcanjo, Uriel-chamado-Veritatis, a

mentira encarnada. Mas saibam que esta revelação os levará à perdição.

Tolos são vocês, que não compreendem sonhos ou avisos de perigo, e não

perceberam que a presença sombria desta terra não era outro a não ser eu.

Tolos são aqueles que, mesmo vendo a caveira da morte, adentram onde

anjos deveriam temer se aproximar. Destruição se aproxima nas patas de

um tigre, mas ainda assim desviam-se de seu caminho para me procurar.

São tolos, pois uma vez que tenham as respostas, eu não permitirei que

saiam daqui vivos. Esta é a minha vontade, e minha vontade não pode ser

contestada”.

E, assim diante do Grande Lorde Íblis Al-Qadim, oitavo entre os

Filhos de Ialdabaoth, finalmente teríamos as respostas... Porém, da mesma

forma, nossas esperanças ali terminariam...

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Page 226: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 12: Shiva, o Destruidor

E ali estávamos, diante de nosso destino, cada um ferido em corpo

ou alma, diante de algo maior que nós. Minha mente divagava, não

conseguindo compreender a sensação de escuridão que tomava aquele

lugar. Não eram as sombras tremulantes geradas por piras que me

assustavam, nem as trevas que tomaram o reino espiritual, mas aquela

sensação que percorria meu corpo, que me fazia suar frio e tremer. Aquela

sensação de estar diante de algo além de minha compreensão, frente a

frente com um destino inevitável e cruel. Metaforicamente, estávamos

sendo enolidos por trevas, e mesmo com toda a nossa glória e todo o nosso

poder, não éramos mais do que fracas velas numa noite escura.

Ao meu redor, meus companheiros também se mostravam

surpresos. Ansgar estava de joelhos, suas mãos inutilizadas por terríveis

queimaduras, sua face cortada pelas garras do demônio Ha'il. Seus olhos

não acreditavam no que viam, e seu corpo parecia frágil. Ele finalmente

sabia que estava indefeso naquela situação.

Um pouco atrás, Wang lutava para permanecer de pé, tentando

recuperar-se da fratura em sua perna quebrada. Sua face demonstrava

surpresa e medo, assim como revolta por se sentir tão pequeno. Ele que se

orgulhava por caminhar livremente nas trevas agora se via perdido nelas.

Também Al-Malik, até então mostrando toda a sua majestade,

agora parecia pequeno. O único que não fora ferido pelo terrível combate

que há pouco ocorrera na câmara agora se via catatônico, paralisado diante

de seu maior medo e daquele que seria seu maior inimigo.

Absolon ainda curava-se dos tiros que sofrera. Seu semblante sujo

de sangue, suas roupas rubras pelo líquido derramado por seu próprio

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Page 227: Magna Veritas - Tiago José Moreira

corpo. Ajudando-o a permanecer em pé estava Fabrizia, também com

as roupas sujas. Ele nada fazia a não ser olhar, incapaz de sequer mover-se,

enquanto ela futilmente apontava sua espingarda na direção daquele mal

que estava diante de nós. Sua mão tremia, incapaz de conseguir mirar

precisamente a arma.

Karina também estava sem esperanças. Suas mãos sujas com

sangue impuro, sua mente tentando conciliar o fato de que se perdeu para a

raiva e a violência.

E, como se não bastasse, eu ainda podia sentir a tempestade acima,

ainda que estivéssemos a dezenas de metros sob o solo. Eu ainda podia

ouvir os passos e a respiração do tigre, cada vez mais próximo.

Desta vez, estávamos realmente sozinhos.

Diante de nós, Íblis Al-Qadim, Oitavo entre as Crias de Ialdabaoth,

balançava suas asas, gerando um poderoso vento que rodopiava e percorria

a câmara. Ele caminhava lentamente, os cascos em suas patas inferiores

criando um som repetitivo ao bater na rocha, como se fossem os ponteiros

de um relógio que indicava o tempo que ainda tínhamos de vida. Mais

próximo ele estava, e seu corpo continuava a transformar-se. Pouco a

pouco, sua pele negra tornava-se alva, e seus olhos vermelhos tornavam-se

azuis. A monstruosidade se tornava humana, seus cascos mudavam em pés,

suas pernas de cabra contorciam-se até terem um aspecto de humanidade.

Os chifres diminuíam até sumir, e as asas mudavam, diminuindo, ganhando

penas negras. Seus cabelos negros continuavam, porém, longos e lisos. Nu,

ele se tornava um belo homem, com asas negras de anjo, porém ainda

doentias, cujas penas mal-formadas caíam uma a uma em intervalos

irregulares.

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Page 228: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Nada mais têm a dizer ou perguntar?”, questionou o Grande

Lorde, aproximando-se ainda mais. “Nada mais têm a fazer?”, indagou. Eu

comecei a recuar, conforme mais próximo ele chegava. Então, quando

estava a menos de dois metros de nós, o demônio parou. “Pois então,

aceitem o destino”, ele disse.

O demônio me fitou, seus olhos azuis encontraram-se com os meus.

Ele então falou em voz alta: “Então, é chegada a hora da revelação,

Arcanjo Nicodemus, Querubim entre os Veritatis Perquiratores. É hora de

contar a verdade sobre aquele que buscam, o Senhor da Mentira, Uriel-

chamado-Veritatis, e sua história de traição, bem como seu miserável

destino”.

“Seu destino?”, perguntei, sem querer, como se meus lábios se

movessem contra minha vontade.

“Você tem perguntas”, ele disse. “Faça-as. Quero que morra

sabendo todas as respostas. Quero que tenha tempo para descobrir todas as

mentiras. Quero que sinta o quão pequenos são, o quão insignificantes

foram, e o quão pouco suas ações influenciam o futuro deste mundo. Quero

que morram com o desgosto de terem sido usados e que tudo o que

acreditaram nada mais era do que uma mentira”.

Dei um passo para trás. Então, murmurei minha primeira pergunta:

“O que é o jarro?”.

“Uma afronta”, ele disse, “uma humilhação que será retribuída, e

pela qual Uriel pagou e ainda pagará”.

Silêncio.

“Vocês realmente não sabem, não é?”, perguntou Íblis, que então

balançou o braço direito, suavemente, como se jogasse areia para o alto.

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Page 229: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Imagens ondularam ao nosso redor, ouvimos gritos de guerra e sons de

batalha, e então Leviathan surgiu por um instante, urrando furioso e

desaparecendo em seguida, engolido pelas trevas da câmara. “Mas Uriel

sabia. Por uma eternidade houve equilíbrio, uma tênue linha intransponível

que nenhum dos lados podia ultrapassar. Pois poderes iguais podiam agir

neste reino, tanto pelas trevas como pela luz. Este era um jogo, uma disputa

que, pelas regras, manteria o homem em seu lugar e impediria que a

humanidade se pusesse acima da Criação. Porém, ele ousou quebrar as

regras e, ao faze-lo, destruiu a linha que separava trevas e luz, trazendo o

brilho ofuscante ao Inferno, um ultraje pelo qual ele pagaria”.

“Por quê? O que ele fez?”, perguntei, minha voz fraca, tomada pelo

medo.

Então, a voz de Íblis rugiu como um trovão, fazendo a terra tremer

e meu coração se apertar. “ELE OUSOU NOS TRANCAR NUMA

PRISÃO!”, sua voz divina disse, ferindo nossas almas e ecoando em nossas

mentes. Karina e Al-Malik tombaram de joelhos, e eu mesmo me esforcei

para manter-me em pé. Absolon e Fabrizia recuaram, mas Wang

permaneceu onde estava, ainda que não intocado pela fúria do Grande

Lorde.

Eu não podia compreender.

A voz de Íblis uma vez mais se tornou humana, mas era como se o

fogo do ódio a contaminasse. Com convicção e raiva, ele revelou: “Pois, no

sangue da alma de meu irmão, ele encontrou a chave para quebrar o tênue

equilíbrio. Nas entranhas do Paraíso, ele ergueu uma fortaleza de rocha e

falsa sabedoria, e ali colocou a tranca dos portões do Inferno. Ele selou

com palavras arcanas e direcionou a fúria de Leviathan contra seus próprios

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irmãos. Os últimos vestígios do Primeiro Filho espalharam-se, criando

ventos cortantes, dilacerando aqueles que, entre nós, ousasse ultrapassar os

portões do Inferno. E, por dois mil anos, estivemos presos em nossos

próprios lares, incapazes de tocar diretamente o reino dos homens,

reduzindo o poder de Ialdabaoth neste reino, dando a vocês, tristes tolos, a

chance de moldarem este mundo à sua imagem e semelhança”.

“Aprisionados?”, perguntei, então erguendo timidamente minha

voz, tentando impor meu ponto de vista: “Uma mentira, pois Hades e

Mephistus se manifestaram e ergueram-se contra o Éden, e em momento

algum tivemos um único segundo de tranqüilidade nos dois últimos

milênios”.

Íblis então suavemente ergueu sua mão esquerda, e sons de

milhares de vozes orando inundaram nossos ouvidos. Pedidos de fé, choros

inocentes, cânticos gregorianos, sinos eram ouvidos às centenas, mas pouco

a pouco se tornavam blasfêmias, palavras de ódio, gritos de dor e sons de

guerra. “Em sua tolice, Grande Uriel se esqueceu que nós ainda podíamos

sussurrar através das paredes de nossa prisão. Pois, se nossos corpos não

podiam abandonar a prisão, então nossos espíritos criariam cascas para nos

manifestarmos além dos portões do Inferno. Todas as vitórias que seus

preciosos Primi tiveram foram sobre cascas vazias e sem valor, facilmente

substituíveis, enquanto nossos reais corpos e nossos reais poderes

permaneciam trancados em nossos reinos. Mas não é aí que está a maior

das tolices de Uriel. Não, sua maior tolice foi dar poder aos homens”.

Eu não podia compreender o significado daquela afirmação. Antes

que eu perguntasse algo, porém, o Grande Lorde ergueu os braços e o rosto,

dizendo em voz alta: “Pois o homem guarda em si a essência divina e, se

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Page 231: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não guiado, torna-se o agente que destruiria a criação. Uma vez que o

Inferno perdeu poder, a humanidade cresceu para tomar o vazio deixado

para si. Sem Inferno e Éden para criar um equilíbrio, o homem cresceu,

saiu do controle. Veja o que a humanidade criou em dois mil anos, quanto

poder adquiriu, o quanto moldou esse mundo. E encare a única e irrefutável

verdade: o homem está levando a criação divina à ruína”.

“Isso não é verdade!”, disse Karina, chorando de joelhos.

“Você está mentindo”, eu gritei, mesmo não tendo argumentos para

contraria-lo. Em minha mente, vinham apenas verdades: a humanidade

divorciando-se da espiritualidade, voltando-se para o egoísmo e tornando-

se maior do que o mundo que a sustenta. E não pude deixar de pensar que,

com ou sem Éden, com ou sem Inferno, a humanidade cresceria até um

ponto em que a criação não mais pudesse contê-la e sustenta-la, e naquele

momento, a própria humanidade se destruiria, deixando uma criação estéril.

“É bem verdade que sussurramos nos ouvidos do homem”, disse

Íblis, uma vez mais me fitando. “É bem verdade que o incitamos a tornar-se

o que é. Pois, se nosso poder não mais nos servia, iríamos nos vingar

usando o poder do homem. Mas isto não é o que realmente importa aqui,

pois nossa vingança não está ainda completa. Pois queríamos o retorno de

nossa glória. Nosso poder seria nosso uma vez mais”.

“E então, vocês tentaram destruir o jarro”, eu disse, entendendo o

que ele queria dizer.

“Exato!”, Íblis sorriu. “Pois o mesmo rito de Leviathan que abriu

os portões do Inferno na Terra poderia ser usado no Paraíso. Um de nós,

Astaroth, terceiro entre os Filhos, Senhor da Dor, reuniu os ritos. Com a

ajuda de outros, ele abriu um portão entre Éden e Inferno, e nossos servos

231

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foram então enviados para trazer dor e sofrimento ao Paraíso. Assim,

começou a Terceira Grande Guerra”.

“Mas não conseguiram o que desejavam”, murmurei.

“Sim, nós conseguimos”, sorriu o Grande Lorde. “Pois Fleuretti,

meu quarto irmão e mais fiel aliado, mesmo sendo inimigo de Astaroth,

também contribuiu secretamente com o rito. Uma vez criado, o portão não

mais podia ser fechado, a menos que fosse constantemente mantido

trancado. E fizemos questão de que o selo do portal pudesse ser facilmente

descoberto”.

Meus conhecimentos sobre a Terceira Guerra vinham à mente...

Lembranças de ter lido sobre a grande batalha em torno do portal, quando

Veritatis Perquiratores e Mors Sancta, sob o comando de Grande Veritatis

em pessoa, fizeram um poderoso rito para tranca-lo.

“E O TOLO CAIU EM NOSSA ARMADILHA”, gritou Íblis, sua

voz fazendo a terra tremer uma vez mais. “Pois, ao selar o portal, ele criou

um paradoxo. O Éden estava protegido contra as forças do Inferno... Mas e

a Terra?”.

“Não entendo”, respondi.

“Foi minha sugestão e o gênio de Fleuretti que permitiram a

concretização de nossa mais irônica vingança. Os dois ritos se anulam,

jovem Arcanjo. Ao selarem o Éden, vocês impediram que a tranca de nossa

prisão continuasse a agir por muito tempo. A essência de nosso Irmão foi

aprisionada no Paraíso, impedida de continuar os ventos cortantes que nos

dilaceravam. Lenta, mas inexoravelmente, os ventos cessariam, e uma vez

mais seríamos livres. Porém, esse processo levaria alguns séculos, pois

poderosas eram as proteções que Veritatis originalmente ergueu sobre o

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Page 233: Magna Veritas - Tiago José Moreira

jarro. Fleuretti e eu sabíamos que em algum momento, a Selo que

fechava o Éden deveria ser aberto, ou senão nossa prisão ruiria. E, quando

Veritatis percebeu que estávamos prestes a ser livres uma vez mais...”.

“Ele desfez o Selo”, concluí, “e uma segunda invasão começou”.

“A Quarta Grande Guerra”, Ansgar murmurou, ainda de joelhos.

“Eu me lembro”.

“Culpa de seu precioso Primus. Ele sabia que viríamos. Para

continuar a esconder a verdade, deixou que viéssemos e, em troca, fizemos

o Éden provar de seu próprio veneno”, revelou o Grande Lorde. “Enquanto

nossa destruição alastrou-se sobre suas cintilantes cidades sagradas,

tentamos alcançar os restos de nosso irmão, em vão. Pois as proteções da

fortaleza subterrânea se mostraram mais poderosas do que prevíamos, e

nenhum de nós poderia ali adentrar pessoalmente. Mas o próprio Uriel

estava em sua encruzilhada particular. Pois ele sabia que aquilo se repetiria,

de novo e de novo, até que em algum momento nós alcançássemos nosso

objetivo. Então, ele buscou a única saída possível”.

“O que ele fez?”, perguntei. Era o momento da verdade, a

revelação do destino de Veritatis. Finalmente, eu saberia a resposta, o que

aconteceu a ele após a Quarta Guerra.

“Ele veio a nós”, respondeu calmamente o Grande Lorde, seus

olhos então começando a brilhar vermelhos. “E encontrou um de nós”. Íblis

ergueu a cabeça e abriu os braços, gritando. O grito de repente parecia o

som de uma batalha distante, e imagens se formaram. Imagens

assustadoramente familiares ao que vi nos pesadelos de Asphael.

E vimos diante de nós o Éden, e o grande portal vermelho à nossa

frente, diante de um céu vermelho fogo. Os Campos Elísios ardiam em

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Page 234: Magna Veritas - Tiago José Moreira

chamas, e o um Arcanjo solitário e sombrio caminhava pela vastidão

fumegante. Veritatis. E ele aproximou-se do portal, tocando-o. Além das

ondulações e do brilho vermelho, uma planície devastada o esperava. E,

logo adiante, ele viu o vulto de uma pessoa. Ali estava um velho careca e

de barba branca, vestindo trapos e magro como se há dias definhasse. Ele

não tinha olhos, apenas órbitas vazias pelas quais escorria sangue, e seus

dentes eram como os de um tubarão. Seus dedos eram magros e compridos,

com unhas longas e quebradiças, manchadas em sangue. Sua pele era

pálida, cheia de feridas e tumores. Aquela visão me enchia de nojo e me

fazia me sentir fraco, como se meu corpo fosse tomado pelo peso da idade.

E o velho sorriu quando Veritatis atravessou o portal em sua direção.

A imagem então se distorceu, mudando para uma batalha. Veritatis,

com suas asas negras abertas, lutava contra o velho nas planícies infernais.

O chão tremia e os céus urravam no Inferno, e os dois se combatiam diante

de uma fortaleza. Ao toque do velho, a carne de Veritatis rachava-se e

sangrava, e vermes surgiam para devorar-lhe os órgãos. Ao toque de

Veritatis, o velho queimava, mas lutava como se dor alguma o afetasse. As

paredes daquela poderosa fortaleza rachavam-se diante da batalha violenta,

e Veritatis aos poucos tombava, seu corpo sendo debilitado pelo poder da

morte que aquele velho possuía. Foi então que Veritatis caiu, sobre as

muralhas derrubadas na batalha. O velho aproximava-se...

“Veritatis foi destruído!”, murmurei, com olhos arregalados, meu

coração apertado. Eu sentia um grande vazio, conforme via o velho

aproximar-se, sangrando, ferido, mas incansável, do corpo quase morto do

poderoso Primus.

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Page 235: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Não”, Íblis disse sorrindo. “Ele sobreviveu, vitorioso, à

batalha”. Então, naquele momento, Veritatis ergueu a mão, e o chão tremeu

e os céus sopraram. Uma ventania poderosa se formou, enquanto o chão em

si rachava e erguia-se sob o velho. E, num movimento, Veritatis ergueu-se

no ar, abrindo suas asas, ignorando toda a debilidade de seu corpo, e gritou.

As nuvens negras do Inferno abriram-se, revelando o céu vermelho acima,

e uma explosão se seguiu, derrubando mais muralhas e comprometendo

toda a fortaleza. O velho foi jogado, gritando em fúria, mas ainda sem

nenhuma dor, contra o portal, que estava a centenas de metros de distância.

Os demônios e Condenados ali presentes fugiram diante da visão

radiante de Veritatis, seu corpo incapacitado mas seu espírito intocado, sua

aura de luz iluminando o Inferno a centenas de quilômetros de distância,

ofuscando todos os que o viam. E então, a luz, e o poderoso Arcanjo,

desapareceram em seguida.

As imagens sumiram. Íblis continuou: “Uriel-chamado-Veritatis

usou todas as suas forças para escapar da morte. Mais do que isso, quase foi

bem sucedido em destruir permanentemente Astaroth, Lorde da Dor e

terceiro dos Irmãos”. O ar ondulou e as imagens voltaram, agora no Éden,

além do portal, onde o velho agora se erguia. Mas mal ele se erguia, após o

terrível golpe de Veritatis, sua carne começava a se cortar. Ele urrou de dor,

pela primeira vez sentindo seus ferimentos, conforme sua carne queimava e

se desfazia, e seu sangue caía, contaminando o solo do Paraíso. Ele

cambaleava, totalmente enfraquecido, tentando alcançar o portal e retornar

à segurança do Inferno, conforme os Ventos Cortantes gerados pelo Jarro o

destruíam rapidamente. Mas então, diante dele, o portal se fechou, selado

mais uma vez. O velho tombou, restando apenas ossos e poucos músculos.

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Page 236: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Urrou mais uma vez, e desapareceu, antes que fosse completamente

despedaçado.

Então, Íblis revelou: “Por poucos segundos, Astaroth escapou da

morte, transportando-se para as catacumbas de sua fortaleza. Três dias

demorou para ele ter forças para erguer-se. Mais cinqüenta anos se

passaram antes que ele estivesse totalmente recuperado. Por aquela afronta,

Astaroth caçaria Uriel até os confins da Criação”.

“E Veritatis?”, perguntei.

“Naquele momento, Uriel já entendia o significado e a futilidade de

seus atos. Ele entendia que seus atos não atingiram os objetivos desejados.

Ao nos enfraquecer, ao invés de terminar a Guerra Eterna, ele apenas tinha

condenado o Éden e a humanidade à perdição. Nós retornaríamos, é o curso

natural da criação, e nem mesmo ele podia mudar as regras do jogo. Ele

percebeu que era uma das peças do tabuleiro, que apenas se julgava um dos

jogadores. Ele não podia mais compreender o significado daquilo tudo.

Como você, ele buscou a única coisa que poderia conforta-lo e lhe

permitiria corrigir seus erros... a verdade”.

Novamente, minha visão ficou turva, e o ar ondulou. Vi a imagem

de uma vastidão vermelha, sob um Sol enegrecido e o céu vermelho.

Ventos fortes sopravam, erguendo uma tempestade de areia, e um homem

de manto, caminhando com a ajuda de um cajado, atravessava um vasto

deserto que antes fora uma grande floresta. Seus pés eram espetados por

espinhos, e ele fracamente se esforçava para atravessar aquela floresta

morta. “Ele então seguiu a única indicação que poderia leva-lo a alguém

que saberia o significado de tudo. E por mais de um século e meio, Uriel

caminhou do Reino de Gehenna, domínio de Astaroth, para o sul...”.

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Page 237: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O sul! Lembrei-me das palavras de Leviathan a Khral-Harshek:

“Então, segue para o sul, para além das terras inférteis. Siga as sombras de

meu pai, através das montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a

voz que ecoará em tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que,

quando encontrar o vale no qual a única caverna é guardada por um dragão,

terás encontrado o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o

Primogênito. E, feito isso, terá cumprido tua última missão”.

Íblis riu: “Lá, Uriel-chamado-Veritatis encontrou seu destino”.

Logo em seguida, a risada se tornou uma gargalhada.

“O que aconteceu a ele?”, perguntei.

Os olhos de Íblis encararam os meus, brilhando intensamente.

Apesar da forma humana, seu rosto agora era demoníaco, com feições

angulares, pele avermelhada e escamada, nariz pontiagudo e dentes

disformes, “Como vocês, ele encontrou respostas que não esperava. E meu

irmão mais velho ali estava à sua espera. Finalmente, Uriel-chamado-

Veritatis, como vocês agora, encontrou sua própria insignificância. E,

exaurido de suas forças, finalmente as hordas de Astaroth o alcançaram”.

“Astaroth o alcançou?”, perguntei apreensivo.

“Astaroth ou Duriel, Balberith ou Olivier, o nome não importa, mas

sua Maldição sim. Pois ele é o Senhor da Dor, e seu toque definha. Sua

fúria fora alimentada por quase dois séculos, e finalmente ele encontrava

sua presa. Como previsto, Astaroth esperava vingar-se lentamente, e assim

Uriel-chamado-Veritatis foi levado de volta ao Coliseu Ashtar, fortaleza de

Astaroth e Pilar Central de Gehenna, para ali ser torturado por uma

eternidade”.

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Page 238: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O silêncio que se seguiu foi tão perturbador quanto aquela

revelação. Observei cada um de meus companheiros, todos imóveis diante

das palavras de Íblis.

“Sim”, disse Íblis, “seu precioso Primus está no Inferno, sua carne

sendo constantemente dilacerada pelas presas de meu irmão. Por trás das

muralhas do Coliseu Ashtar, Uriel-chamado-Veritatis nada mais é do que

um boneco nas mãos de um mestre da dor. Ou, pelo menos, ele foi. Pois

nem mesmo Astaroth poderia conter o poder e a sabedoria de Uriel para

sempre”.

Ergui minha cabeça, uma vez mais encontrando os olhos de Íblis.

Sua face era agora novamente humana, seus olhos azuis friamente me

observando. Então, sem nada perguntar, esperei que ele me desse a resposta

que eu desejava:

Íblis prontamente respondeu: “Uriel-chamado-Veritatis é supremo

no plano espiritual. Não foi difícil para ele descobrir o truque que por

milênios utilizamos para fazer a nossa vontade no mundo dos homens. Se

seu corpo era vulnerável, seu espírito poderia ser livre. E assim, há dois

anos e meio, ele criou uma casca mortal para si no reino dos homens, e sua

alma ali se refugiou”.

Dois anos e meio? Durante o ano de 1999? Foi quando Asphael

abandonou o Éden, quando ele pressentiu que Veritatis estava próximo.

“É óbvio que a fuga de Uriel não poderia ocorrer impunemente.

Astaroth enviou suas legiões ao plano mortal, à procura da casca mortal do

Primus. Qualquer um de nós ou qualquer um de seus Primi poderia

pressentir a presença de um ser do nível de Uriel. Porém, para escapar de

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Page 239: Magna Veritas - Tiago José Moreira

seus perseguidores, uma vez mais Uriel demonstrou sua genialidade... e

sua tolice”.

Íblis deu uma pausa, observou cada um de nós, esperando uma

pergunta. Era óbvio o que desejávamos saber... Antes que qualquer um

falasse algo, ele prosseguiu: “Ele suprimiu seu próprio poder, sua própria

personalidade. Deu à casca mortal vida e mente própria, ainda que não

tivesse alma. No interior daquele homem, a alma de Uriel adormeceu, suas

memórias vindo apenas para atormentar os pesadelos da casca mortal. Um

estratagema perfeito para não ser detectado, mas que ao mesmo tempo

essencialmente significaria que Uriel-chamado-Veritatis não mais existia,

até que sua alma fosse resgatada e libertada daquela prisão auto-imposta”.

De repente, tudo pareceu claro: o velho do sonho! A imagem de

Metatron pedindo-me para protege-lo! O homem que gritava blasfêmias,

enlouquecido por seus sonhos, que lhe mostravam o Céu e o Inferno e as

faces dos Filhos de Ialdabaoth. Ele era Veritatis! Não! Ele possuía a alma

de Veritatis!

“Mas Astaroth, Senhor da Dor, foi também um tolo. Por todos

esses séculos, ele se considerava o realizador de façanhas... Ele não sabia a

origem da prisão que nos mantinha no Inferno, nem sequer imaginava que

o portal que criou foi a chave para atrair Uriel. Ele também foi um idiota ao

imaginar que conseguiria manter em segredo o aprisionamento do Primus

ou sua fuga... Outros entre nós também desejamos ter a alma de Veritatis

em nossas mãos. Afinal, nossa vingança ainda não está plena. Por isso,

Fleuretti, também chamado Baal-phegor, uma vez mais usou seus

conhecimentos para interferir em nossa vingança... Ele criou um poderoso

agente e o libertou neste mundo para encontrar a alma de Uriel”.

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Page 240: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“O tigre”, eu murmurei, sentindo que a tempestade acima se

intensificava.

“Shiva, o Destruidor”, revelou Íblis. “Porém, mesmo Shiva não

sabia por onde começar sua busca. Então, dei-lhe a dica... ‘Elimine o

Círculo de Uriel, venha a Jerusalém’. E assim, atraí vocês para cá. Pois o

seu sonho, Arcanjo, contém a localização de Uriel-chamado-Veritatis, e eu

agora a conheço. Eu sei onde encontrar seu precioso Primus. Ele é o único

que sabe que, se o Selo entre Inferno e Éden permanecer fechado, logo

poderemos retornar a este mundo. Tendo ele em nossas mãos, nós não

precisamos mais destruir o jarro para conseguir a liberdade, nossa prisão de

dois milênios terá um fim”. Então, mais uma vez a voz de Íblis estremeceu

as fundações do plano físico: “E IREMOS RECLAMAR NOSSO REAL

PODER!”.

A câmara tremeu com a voz de Íblis, pequenas lascas de pedra e

poeira fina caíam sobre nossas cabeças. Protegi minha cabeça com as mãos.

Foi quando Íblis nos condenou: “E agora que sabem tudo isso, é chegada a

hora de encontrarem seus destinos!”.

“NÃO!”, gritou Ansgar, num impulso erguendo-se e saltando em

direção a Íblis. Suas mãos ainda estavam queimadas, mas ainda assim ele

fechou o punho para golpear com toda a sua força, gritando como um

guerreiro furioso. “SILÊNCIO”, gritou Íblis, fazendo um leve movimento

com as asas. O vento poderoso gerado repeliu Ansgar como se ele fosse

uma pedra levada por um furacão. O Venator voou por metros, batendo

violentamente contra a parede da câmara, rachando a rocha, e em seguida

caindo como uma boneca de pano. Ele ainda se mantinha consciente,

porém.

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Page 241: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Íblis ainda fitava o Venator, quando Wang avançou,

silenciosamente, as trevas formando uma espada de pura escuridão em suas

mãos. Porém, sem ao menos olhar para seu atacante, o Grande Lorde fez

com que as sombras formassem uma dezena de poderosos tentáculos, que

nasceram das fendas no chão. Os tentáculos envolveram o Kage, prendendo

suas mãos e pernas, enrolando-o, entrando em sua boca e enrolando-se em

torno de sua cabeça. Então, os tentáculos o puxaram contra o chão,

prendendo-o ao solo, e espinhos começaram a nascer naqueles tentáculos

tenebrosos, perfurando sua pele. Por fim, os tentáculos retornaram ao solo,

rasgando a pele do Kage por onde os espinhos de escuridão deslizavam,

deixando-o ali às portas da morte, também consciente, mas mortalmente

ferido, suas roupas rasgadas e seu corpo debilitado.

Mesmo cheia de medo, Fabrizia então atirou, o disparo da

espingarda ecoando na câmara. Mas Íblis nada sofreu. Fitou-a como ela

fosse um ser sem importância. “Você pode jogar os céus e a terra contra

mim, mas prefere usar aparatos de mortais?”, ele provocou. Então, Fabrizia

gritou de dor, conforme seu corpo se contorcia e queimava com choques

internos. Absolon, que se apoiava nela, também foi atingido pelo choque,

causando uma grande faísca. Em seguida, ambos caíram. Ambos ainda se

mantinham conscientes.

Al-Malik, Karina e eu ali permanecemos, sem nada poder fazer.

Íblis nos olhou um a um. “Aqueles que ousaram erguer a mão contra mim

serão os últimos a morrer. Eles testemunharão suas mortes, mas sofrerão

muito antes que eu os abençoe com o mesmo destino”.

Então, diante daquela noite escura que era Íblis, senti surgir uma

poderosa luz. Passos calmos ecoaram pela câmara, e notei o semblante de

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Page 242: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Íblis mostrar surpresa. Íblis se virou para trás, gritando em fúria e

fazendo a terra tremer: “QUEM É VOCÊ?”.

A passos calmos, e com seriedade na face, Asphael adentrava,

arrastando sua espada, então ergueu-a, empunhando-a com ambas as mãos.

A lâmina brilhou em tom azul, e então as asas de Asphael surgiram, sua

aura dourada irradiando-se como fogo, enchendo aquela câmara de luz. “Eu

sou o Arcanjo Asphael Veritas, Serafim entre os Veritatis Perquiratores.

Metatron me tornou guardião destes bravos Celestiais. Enquanto eu viver,

nenhum deles morrerá!”.

“Idiota!”, provocou Íblis, caminhando na direção de Asphael.

“Pequena criatura rastejante. VOCÊ SABE QUEM SOU?”. Tão poderosa

era a voz de Íblis, que não a suportei mais, caindo de joelhos.

“Sim”, disse Asphael, caminhando em direção a Íblis, lentamente.

“Eu ouvi toda a conversa”, completou.

As patas de Íblis uma vez mais eram como as de bode, e suas asas

tornavam-se como as de um morcego, chifres nasciam em sua cabeça. Ele

retornava à sua forma monstruosa, mas agora suas mãos tinham garras

vermelhas, e sua face também era rubra, mostrando as feições monstruosas

que há pouco vi. “COMO VOCÊ OUSA...?”. O Grande Lorde avançou,

chamas negras formando-se em seu rastro, o chão tremendo diante de seus

passos. Era como se a câmara fosse desabar sobre nós.

Asphael também avançou, mas majestosamente, flutuando logo

acima do chão. Sua espada se iluminou, banhada em poderosa luz branca.

No meio do turbilhão que Íblis representava, Asphael avançava como se

intocado pelo caos. Então, Íblis parou na metade do caminho, erguendo as

mãos, fechando-as, e baixando-as, e o chão abaixo de Asphael partiu-se e

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Page 243: Magna Veritas - Tiago José Moreira

chamas negras ergueram-se, enquanto o teto acima ruiu e grandes

blocos de pedra caíram sobre o Arcanjo. As trevas intensificaram, e

centenas, talvez milhares de tentáculos de escuridão se formaram,

avançando contra o Arcanjo. E, então, as pedras de caíram desabaram sobre

o Arcanjo, e as chamas o consumiram. Os tentáculos serpenteavam ao

redor da armadilha.

Mas então, as pedras foram erguidas por mãos poderosas, e o

Arcanjo emergiu do oceano de chamas intocado, dançando por entre os

tentáculos, destruindo-os com os golpes poderosos de sua espada. Os

tentáculos que o envolviam não conseguiam para-lo, rompendo-se

conforme o Arcanjo avançava velozmente, deixando um rastro luminoso

dourado. “NÃO!”, urrou Íblis. Asphael o alcançou, desferindo um golpe

contra a sua cabeça, não com a lâmina, mas com a ponta da empunhadura

de sua espada, como se fosse um soco feito com ambas as mãos contra a

têmpora do demônio. O impacto fora tanto que o Grande Lorde foi

arremessado para a direita de Asphael, tombando violentamente no chão.

Ainda flutuando, o Arcanjo segurou a espada com apenas a mão direita,

apontando sua lâmina para o demônio caído, e ordenando: “Cale-se,

impostor!”.

Eu estava boquiaberto, vendo Íblis ser derrubado com um único

golpe. Meu coração batia forte, Asphael, ainda com semblante pacífico, era

agora como um gigante de luz. Íblis se erguia lentamente, e o Arcanjo

então falou, também em voz de trovão, mas ao invés de terror, sua voz nos

trazia força: “É uma ilusão, casca de Íblis. Pelo medo e pelas suas

armadilhas você manipula a mente e nubla seu raciocínio, mas eu tenho a

mente clara e posso ver o que realmente é”.

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Furioso, Íblis avançou, sua boca espumava veneno, suas garras

deixavam traçados de fogo. Majestosamente, Asphael golpeou o ar à frente,

pouco antes de Íblis alcança-lo, fazendo com que o demônio interrompesse

o ataque. Porém, ao mesmo tempo em que atacava, Asphael avançava e,

quando sua espada completou um semi-círculo e seu braço direito estava

esticado ao lado do corpo, ele golpeou a face de Íblis com o punho

esquerdo. Íblis novamente tombou.

“Acha que não posso ver através de suas ilusões?”, perguntou

Asphael, continuando: “A essência de Leviathan ainda dorme em Libraria,

e sua prisão ainda se mantém em pé. Sua real forma está presa em seu

reino, e diante de mim está apenas uma criatura digna de pena, que engana

através de truques de névoa, sombra e medo”.

Íblis, caído, urrou de frustração, tentando erguer-se. Mas assim que

ergueu sua cabeça, Asphael avançou, chutando-a. Então, o Arcanjo parou,

flutuando acima da barriga de Íblis, e apontou sua espada para o pescoço do

demônio, tocando sua garganta. “Agora, é hora de dissipar as ilusões que

criou”.

O demônio rosnou em fúria, mas logo em seguida começou a

gargalhar. Corri para me aproximar, e assim Al-Malik também o fez. O

demônio ria, mas o semblante sério de Asphael não se alterava. Então, o

infernal disse, numa voz inumana, mas não mais poderosa: “Tolos, sua

vitória aqui é vazia! Estão numa encruzilhada como a que Uriel-chamado-

Veritatis estava. Têm duas escolhas, igualmente dolorosas. Pois Shiva

agora perseguirá a alma de Veritatis e não poderão simplesmente ignora-la.

Mas se conseguirem-na, o que farão? Poderão proteger um homem louco e

mortal para sempre, e nunca mais ter seu precioso Arcanjo? Ou tentarão

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libertar sua alma, assim fazendo-a retornar ao real corpo, que está nos

domínios de Astaroth, governante de Gehenna? Façam sua escolha, de uma

maneira ou de outra, eu terei vencido no fim”.

“Cale-se”, disse Asphael, sem se sensibilizar com as palavras do

infernal. Em seguida, a cabeça do demônio foi separada do corpo por um

golpe poderoso da lâmina do Arcanjo. Conforme o corpo tornou-se pó,

deixando apenas seus ossos quebradiços e restos de sangue pútrido

espalhados no chão, ouvimos um urro espiritual que tardou a desaparecer.

Al-Malik e eu nos aproximamos de Asphael. Minha voz estava

fraca, minhas mãos trêmulas, meus olhos arregalados. “Senhor, agradeço”,

foi a única coisa que fui capaz de dizer. “Temos de ajudar os outros”, disse

Al-Malik, seu estado não muito diferente do meu.

Asphael Veritas nos observou, suas asas desapareceram e sua

poderosa aura se dissipou. Ele caiu lentamente, em pé, sobre os ossos

quebradiços de Íblis, esfarelando-os. Então, caminhou em direção aos

outros. “Nós temos pouco tempo, Mestre Nicodemus, a Destruição se

aproxima”.

“Shiva! Você o encontrou?”, perguntei.

“Sim, está mais distante do que imaginávamos, logo além do Mar

Morto, mas chegará aqui em uma hora na velocidade em que se encontra.

Como o falso Íblis, trata-se de um Avatar, uma casca criada pelos Grandes

Lordes para se manifestarem. Shiva não é como o farsante, porém. Há

muitos níveis de Avatares. O farsante foi criado para engana-los, mas Shiva

é uma criação mais antiga e poderosa. Quando me aproximei dele, senti

algo que só pude sentir uma única vez”.

“O que sentiu?”, perguntou Al-Malik.

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Sem nos olhar, Asphael continuou a caminhar. “O mesmo que

pressenti quando Mephistus adentrou o Éden. O mesmo que senti quando

os céus de Prístina choraram fogo. Mas não apenas isso. Senti que Shiva

não está sozinho. Algo cavalga a tempestade, algo que não consegui

identificar, nem tem forma física, nem uma aura, mas eu podia sentir”.

“Algo que deseja liberdade”, murmurei, lembrando daquilo que

senti em Chak-chak.

À nossa frente, Wang se erguia, sua roupa não mais destruída,

nenhum ferimento em sua carne a não ser pequenas escoriações. Fabrizia

agora era ajudada por Absolon a se levantar. Também Ansgar se levantava,

sua face mostrava confusão. O Venator olhava suas mãos, não mais

queimadas, e os únicos ferimentos em seu corpo eram escoriações e a

marca das garras de Ha’il em sua face.

“Ilusões e truques da mente!”, disse Al-Malik, “mas como eu não

pude perceber?”.

“Por que, embora fosse uma casca limitada, o falso Íblis tinha

poderes imensos”, respondeu Asphael. “Não se enganem, ele poderia

destruí-los, pois suas ilusões confundem-se com realidade. Apenas com a

visão clara e o poder que adquiri em milênios de existência me permitiram

ver através das enganações do demônio”.

Karina ainda estava muito abalada. Aproximei-me dela, ajudando-a

a se levantar, e a abracei. Ela chorava e eu sentia vontade de fazer o

mesmo, mas tentei demonstrar uma força que não tinha. Eu estava

aterrorizado. Todos nós estávamos, nossos corações ainda batendo fortes,

nossas mentes incapazes de se livrarem das memórias do que aconteceu

aqui, e do que nos foi revelado.

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“Curem-se de seus ferimentos”, disse-nos Asphael, “esta noite

ainda não terminou. Sei o que sentem, mas a verdadeira batalha está à

nossa frente. Não queria pedir isso de vocês, mas somos os únicos que

podem parar a Destruição que está vindo”.

Asphael então ergueu sua voz, que mais uma vez era como um

trovão. “Bravos companheiros, é chegada a hora. Sei muito bem o medo

que sentem e o terror que enfrentaremos, e eu digo que também sinto medo.

Mas eu prometo a vocês, que morrerei antes que qualquer um de vocês.

Minha vida aqui existe apenas para proteger vocês. Por me darem as

respostas que eu procurava, agora posso morrer feliz. Mas ainda nossa

busca continua, pois precisamos separar verdades de mentiras”.

“Companheiros”, continuou Asphael, erguendo sua espada, “o

segredo para vencermos é termos nosso propósito em mente. O medo

ofuscou seu julgamento e permitiu a um mestre das trapaças engana-los.

Não mais! Tenham convicção! Enquanto tiverem coragem e sabedoria,

terão a força necessária para transpor seus limites. Agora, precisamos ir,

para encontrar a destruição personificada, o tigre de nossos pesadelos. Eu

não posso obriga-los a virem comigo, mas sozinho não conseguirei derrota-

lo. Por isso, humildemente peço que me acompanhem. Me ajudem”.

Lo Wang olhou ao redor, então caminhou para longe, dando-nos as

costas. Olhei-o, imaginando que desistiria, mas então ele pôs novamente a

sua máscara, virou-se para Asphael, e disse: “Irei pegar minha espada”.

Ansgar tocou os ferimentos em sua face, tentando cura-los. “Estou

com medo”, ele disse, “mas sei que prometi ir até o fim disso”. Ele então

caminhou em direção à sua espada, jogada por Ha’il a vários metros de

distância.

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“Eu não tenho a menor idéia do que farei lá”, disse Absolon, se

aproximando de Asphael, “mas eu vou. Eu quero me tornar melhor do que

sou”. Fabrizia, abraçada a ele, concordou.

“Karina?”, perguntei, olhando-a. Ela ergueu a cabeça, seus olhos se

encontraram com os meus. “Não sei, Philipe... o que farei lá?”.

“Está na hora de acordar, jovem Supervivente”, disse Asphael.

“Até quando vai se esconder?”.

Absolon afastou-se de Fabrizia e tocou o ombro de Karina. “Sei

como se sente, mas também não se sente inútil? Eu, Fabrizia e você...

somos jovens entre Anjos seculares. Mas você não deseja ser como eles?”.

Karina abaixou a cabeça. “Eu vou”, murmurou. Absolon tocou a

mão de Karina, segurando-a e puxou-a para seu lado. Fabrizia se

aproximou dos dois. Notei por um instante a Xamã observando fixamente,

um tanto cabisbaixa, as mãos dadas de Karina e Absolon.

Voltei-me para Asphael: “Vamos”. Asphael deu-nos as costas,

começando a caminhar lentamente para a saída. Um a um, seguíamos o

Arcanjo. Todos caminhavam lentamente, com medo e incerteza. Seguíamos

o caminho pelo qual viemos. Enquanto andávamos, eu ouvia os sussurros

de meus companheiros.

“O que acha que vai acontecer, Achille?”, perguntou Fabrizia a

Absolon, aproximando-se dele enquanto ele ainda puxava Karina pela mão.

“Não sei”, respondeu o Princeps. “Mas eu quero ver o que

acontecerá. Ainda que não possa fazer nada, eu quero ver”.

“E se morrermos?”, Fabrizia perguntou gaguejando, entrando na

frente de Absolon e fitando seus olhos.

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Page 249: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Então morreremos, mas eu prefiro não pensar nisso. Quanto

mais pensar nisso, maior a chance de acontecer. Estou indo lá para viver,

não para morrer”, Absolon disse.

“Belas palavras, Absolon”, interrompeu Al-Malik. “Eu também

tenho medo de ir até o tigre, mas o que ocorreu há pouco me deu nova

perspectiva. Nós sobrevivemos ao impossível, então eu nunca mais

desistirei, não importa quão grande for a barreira que estiver diante de mim.

Terei em mente meu Deus e os ensinamentos do Profeta, e irei me agarrar à

vida mesmo que não tenha mais esperança”.

“E agora estamos indo ao encontro do maior desafio de minha

vida”, disse Ansgar. “Se eu morrer, morrerei com a glória de não ter fugido

diante do inimigo”.

Então, chegamos às ruas de Velha Jerusalém, deixando para trás as

profundezas tenebrosas da cidade. Ensangüentados, sujos, feridos em alma,

mas com mais um desafio diante de nós. Asphael abriu suas asas, liberando

toda a sua aura, então se ergueu aos céus, deixando um rastro dourado. O

segundo erguer-se aos céus foi Absolon, seguido por mim, Fabrizia e Al-

Malik. Ansgar hesitou, mas agarrou firmemente sua espada e ascendeu

rumo à tormenta. Wang silenciosamente o seguiu. A última a partir, ainda

cabisbaixa e silenciosa, olhos manchados por lágrimas, foi Karina.

“Escutem!”, a voz de Asphael ecoou, fazendo-se mais forte do que

a própria tempestade. Naquele momento, adentrávamos as nuvens bravias,

atravessando os céus contra a vontade dos poderosos ventos. “Pois o

inimigo agora está nas montanhas de Moab. Sob motivo algum podemos

deixa-lo chegar à cidade”.

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Page 250: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Então, Asphael desceu abaixo das nuvens negras. Em grande

velocidade seguíamos seu rastro de luz. Ao descermos, prosseguíamos em

frente, rumo ao leste. Abaixo, a cidade já desaparecia de nossa vista, sendo

deixada para trás. À frente, vimos um turbilhão de poeira, gigantesco em

extensão, subindo até os céus. Ali, raios caíam freqüentemente, iluminando

a noite tempestuosa. Porém, como na cidade, nenhuma gota de chuva

precipitava-se sobre a terra. Nas montanhas à frente, eu podia sentir o tigre,

e sua presença era uma escuridão que ofuscava até mesmo a do falso Íblis.

Porém, nas nuvens acima, eu sentia algo mais... Embora não pudesse sentir

o quê, eu sabia que olhos tenebrosos nos observavam.

Adentramos o turbilhão de poeira, minha visão ali se tornou turva,

tão fortes eram os ventos, e a poeira atingindo nossa pele parecia cortar-

nos. Mas então, abaixo, percebi um rastro de poeira que era erguido e então

varrido pelos ventos, espalhando a areia por todo o céu. E, embora minha

visão estivesse comprometida demais para ver com clareza, eu sabia que à

frente daquele rastro estava o tigre, prosseguindo incansavelmente em

velocidade feroz. Era chegada a hora da batalha.

Então, a voz de Asphael ecoou nos ventos, quando ele ergueu sua

espada, orando para todos nós: “Venha a mim, ó Lorde Sábio, ser presença

real através de felicidade e bons pensamentos, assim serei ouvido além da

irmandade e seremos, através de nossas ações, oferta de vida para o mundo.

Ser firme como a Imortalidade, ser substancial como a Integridade, é a

minha intenção, o que busco pelos bons pensamentos. É essa a palavra e é

esse o cântico que queremos oferecer a Você, a vida de acordo com a

felicidade”. O Arcanjo então nos disse: “Choremos depois pelas perdas,

mas lutemos agora em nome de nosso futuro”. E, num grito que se

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Page 251: Magna Veritas - Tiago José Moreira

confundiu com um trovão, Asphael avançou, reduzindo altitude,

empunhando sua arma com ambas as mãos, e seguiram a ele Ansgar e Lo

Wang. Eu, Al-Malik e Absolon fomos logo depois, e por último seguiu-nos

Karina.

O tigre prosseguia, suas patas atingindo como pistões o chão,

causando estrondos, numa velocidade que superava qualquer animal

terrestre. Os ventos convergiam sobre ele, ascendendo e carregando poeira.

Então, a forma brilhante de Asphael surgiu dos céus, descendo em direção

ao tigre e, em pleno vôo, o Arcanjo golpeou o monstro com sua espada,

atingindo-o pelo lado, jogando-o violentamente a várias dezenas de metros

de distância. O tigre caiu violentamente no chão, rolando. Asphael pousou,

avançando correndo, mas então Shiva se ergueu, e urrou. Naquele instante,

Asphael Veritas parou, fitando o demônio, a cerca de dez metros à sua

frente.

Ansgar sobrevoou o campo de batalha, sua espada iluminada em

chamas celestiais. Então, desceu à direita do animal, a cerca de seis metros

de distância do mesmo. Lo Wang fez o mesmo, mas à esquerda. As trevas

ergueram-se ao redor do Kage, suas asas desapareceram, e sua espada foi

engolida pelas trevas, tornando-se uma lâmina de pura escuridão, ganhando

um corte muito mais poderoso e letal do que qualquer arma comum poderia

possuir. Eu e Al-Malik também pousamos, ambos retornando à forma

humana, cerca de quinze metros atrás do tigre. Karina, Fabrizia e Absolon

permaneceram sobrevoando o campo de batalha. Shiva permaneceu parado,

apenas sua cabeça movendo-se para fitar aqueles ao seu redor. Ele rosnava

como um animal acuado.

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Page 252: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Por um instante, era como se nem o vento nem os trovões

fizerem barulho. Houve um silêncio repentino, absoluto, ou talvez fosse

apenas eu que estava concentrado demais na batalha à nossa frente. Al-

Malik empunhou sua arma, pronto para avançar caso necessário, enquanto

eu tentava me recordar de cada truque que conheço, caso fosse necessário

me envolver. Por alguns instantes que pareciam uma eternidade, a posição

dos combatentes no chão não se alterou. Todos estavam com medo de

avançar, e mesmo Shiva permanecia em seu lugar, cercado por todos os

lados.

Shiva fitou Asphael, poderoso Arcanjo erguendo sua espada em

posição de ataque. Sua face serena, suas asas abertas, sua aura irradiando-se

poderosa. Então, fitou o sombrio Kage, cercado por uma nuvem negra de

sombras tremulantes, empunhando uma arma negra como a noite. Por fim,

olhou Ansgar de asas também abertas, cuja espada, ardendo em chamas

azuis, era mantida em posição defensiva, à frente do corpo. Então, os olhos

do tigre brilharam vermelhos, e o animal urrou. Poeira e pedras foram

jogadas ao ar numa explosão, e os ventos convergiram sobre o local, como

se um vácuo se formasse. Da explosão de poeira, o tigre avançou contra o

Venator.

Shiva saltou, urrando, mostrando suas garras e presas, pronto para

cair sobre o Venator. Então, poeira ergueu-se conforme Ansgar, em grande

velocidade, voou, para o alto e para trás, abrindo braços e asas, deixando a

mão esquerda livre enquanto a direita ainda segurava a espada. Shiva caiu

onde Ansgar antes estava, erguendo ainda mais poeira. Então, quando os

olhos vermelhos do monstro fitaram o Venator se afastando, a mão

esquerda de Ansgar brilhou azul, gerando um globo de chamas celestiais,

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Page 253: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que foi arremessado contra o tigre. Ao atingir seu alvo, o globo

explodiu, levantando ainda mais poeira e emitindo uma poderosa luz azul.

Poeira cobria o campo de batalha, tornando impossível ver

precisamente o que acontecia. Ansgar já estava a oito metros de altura,

quando então Shiva emergiu da nuvem de poeira, saltando contra o

Venator. Tão rápido foi o tigre que Ansgar não conseguiu reagir. As garras

do tigre penetraram nos ombros de Ansgar, e o impacto fez o Venator

perder o controle de seu vôo. Na nuvem de poeira erguida Ansgar caiu,

suas costas bateram violentamente contra o chão. Shiva estava sobre ele.

Ansgar gritou de dor e o tigre freneticamente rasgava-lhe a carne do peito

com suas garras.

Eu corri em direção à nuvem de poeira, seguido por Al-Malik,

tentando ver o que acontecia em seu interior. Os trovões me impediam de

ouvir os gritos de dor de Ansgar. Adentrei na poeira e pude ver a forma do

tigre, ainda sobre Ansgar, erguendo sua cabeça e abrindo sua boca,

preparando-se para abocanhar a cabeça do Venator. Mas então, duas formas

tenebrosas ergueram-se do chão. Os dois tentáculos de trevas se enrolaram

no pescoço do tigre, empurrando-o para trás. Ansgar, ainda empunhando

sua espada flamejante, aproveitou a deixa para erguer seu braço direito,

atingindo em cheio o pescoço do demônio. O tigre caiu para a esquerda de

Ansgar, livrando o Venator, mas, para nossa surpresa, nenhum corte foi

feito em seu pescoço.

Ansgar se afastou, retornando à forma humana e arrastando-se no

chão, sem nunca largar sua arma. Ele gemia de dor, e seu sangue pintava o

solo de vermelho. Corri em sua direção. Shiva se ergueu, os tentáculos

ainda tentando mantê-lo caído, mas a força deles não era páreo para a de

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Page 254: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Shiva. O tigre urrou para mim, conforme eu me abaixava para ajudar

Ansgar, e se preparou para o bote. Mas então, a voz de Al-Malik foi

ouvida. “Pelos Urielitas de Atashgah, eu o puno!”, ele gritou. Para nossa

surpresa, o tigre recuou, algumas porções de sua pele rasgavam-se,

revelando feridas abertas. Porém, aquela pequena distração não foi o

suficiente para parar o monstro.

Shiva fitou Al-Malik, mesmo eu e Ansgar estando mais próximos,

e avançou contra ele, partindo os tentáculos que o prendiam. As formas

tenebrosas desintegraram-se logo em seguida. Al-Malik se preparou,

correndo contra o tigre, gritando, pronto para desferir um ataque suicida.

Antes que ambos se encontrassem, porém, a terra tremeu e rachou, e as

rochas se ergueram formando uma barreira entre os dois. Al-Malik parou

diante do obstáculo, fitando sua criadora: Fabrizia, que flutuava vinte

metros acima do campo de batalha. O tigre, ao contrário, não hesitou, nem

parou seu avanço, atingindo a barreira em grande velocidade. A parede

desmoronou diante daquele golpe, e o tigre a transpôs sem se ferir, mas o

impacto o fez parar por um instante. Com o impacto, as rochas que

formavam a parede foram arremessadas como se atingidas por uma

explosão. Um bloco de pedra atingiu em cheio a cabeça de Al-Malik, que

caiu, largando sua arma. Shiva urrou, mas seu urro foi interrompido por um

poderoso trovão. Um raio atingiu o tigre, fazendo-o recuar um passo, mas

não o ferindo. Fabrizia, acima, gesticulava com as mãos, e gritava,

enviando um segundo e um terceiro raio contra o tigre. O som

ensurdecedor dos trovões me atordoava, mas eu ainda tentava ajudar

Ansgar a se levantar.

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Page 255: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Assim que o quarto raio atingiu Shiva, este ergueu a cabeça,

fitando sua agressora. O monstro urrou uma vez mais, e os ventos

convergiram contra Fabrizia, formando ondas de poeira que a atingiram

com força. A Celestial foi arremessada mais de vinte metros para o alto, e

então caiu descontroladamente, precipitando-se contra as rochas abaixo.

Antes que atingisse o chão, porém, Absolon a alcançou, e conseguiu

agarra-la. Fabrizia abraçou forte o Princeps, e suas asas desapareceram logo

em seguida, retornando à forma humana, enquanto Absolon a levava para o

chão.

De volta ao campo de batalha, eu tentava me recuperar do

atordoamento causado pelos trovões. “Pode se levantar?”, gritei a Ansgar.

Ele fez sinal que não. Agarrei seu braço esquerdo e tentei puxa-lo, para que

o Venator se apoiasse em mim. Sem largar a espada flamejante, Ansgar

levantava-se com dificuldade. Também Al-Malik tentava erguer-se, mas o

tigre estava muito próximo. Shiva caminhou lentamente em direção ao

Malaki caído. Foi quando, atrás de Shiva, Lo Wang saltou silenciosamente,

em meio à poeira, pousando sobre os restos do muro de rocha erguido por

Fabrizia. Enquanto Shiva fitava Al-Malik, Wang segurou firmemente sua

lâmina negra, revestida com trevas. Então, ergueu-a sobre a cabeça, a

lâmina apontando para frente, e saltou, caindo sobre as costas do tigre, a

lâmina penetrando-lhe no pescoço, emergindo através da garganta do

animal.

Shiva rosnou em fúria, e imediatamente Wang saltou, retirando a

lâmina. Mal Wang saiu das costas do animal, uma coluna de chamas negras

saltou do mesmo. Wang girou no ar, caindo à frente do tigre, de frente para

o mesmo. Shiva avançou num salto, garras prontas para rasgar a carne do

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Page 256: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Kage. Wang saltou uma vez mais, dando uma cambalhota para trás. O

tigre caiu no local em que Wang se encontrava originalmente, e então

prosseguiu avançando contra o Kage. Este, no meio da cambalhota, apoiava

os braços no chão, e se impulsionou novamente para trás quando a tigre

estava preste a atingi-lo. O tigre parou, e Wang, assim que pousou os pés

no chão, recuou um passo, apontando defensivamente sua lâmina para o

adversário.

Os dois permaneceram se fitando por alguns segundos. O tigre

rosnava, furioso, sujo tanto com o sangue de Ansgar como o seu próprio. A

tempestade se intensificou, os raios pareciam mais fortes e o uivo do vento

se tornava mais alto. O tigre vomitou uma onda de chamas negras, mas esta

se dissipou antes de atingir Wang. Das chamas, porém, emergiram seis

formas flamejantes, que pareciam fantasmas esverdeados incorpóreos,

apenas com tronco, cabeça e braços, e uivavam ferozmente. Os fantasmas,

compostos por Fogo Negro, ascenderam aos céus, urrando, e então se

separaram, cada um tomando uma direção. Logo em seguida, todos

convergiram contra Wang.

Wang recuou para escapar do primeiro fantasma, que lhe atacou

pelo flanco esquerdo. O segundo, o Kage golpeou com sua arma, fazendo-o

explodir ao contato. A arma de Wang se incendiou em chamas negras, que

dissolveram o revestimento de trevas que a protegia. Wang girou o corpo

para a direita para escapar do terceiro, e usou esse mesmo movimento para

atingir o quarto, que também explodiu ao contato. Era como em uma dança,

o Kage rodopiando, saltando e recuando para impedir que os espíritos de

chamas o tocassem.

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Page 257: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Enquanto isso, Al-Malik se ergueu e pegou sua cimitarra caída.

Sua cabeça sangrava, manchando o turbante branco, mas o Malaki parecia

não sentir dor. O Cuique Suum avançou para atacar o tigre, que permanecia

parado, observando Wang esquivar-se dos espíritos. Antes que Al-Malik

atingisse Shiva, porém, este se virou para o Malaki, abrindo sua boca e

urrando. Imediatamente, o Malaki, a três metros de distância, foi engolido

por chamas negras, e o urro o tigre o arremessou para trás. Al-Malik caiu

rolando no chão, inconsciente. As chamas negras em seu corpo se

apagaram logo em seguida.

“Al-Malik!”, gritou Ansgar, tentando reunir forças para avançar,

mas mal se agüentando em pé, ainda se apoiando em mim. Foi quando

Absolon pousou diante de nós. “Me dê a arma”, pediu, referindo-se à

espada de Ansgar.

“Você não tem chance”, disse o Venator.

“ME DÁ A ARMA”, ordenou Absolon, estendendo a mão.

Ansgar entregou a arma flamejante ao Princeps. “Tome cuidado”,

disse o Venator. Então, Absolon a empunhou com ambas as mãos. “Não

pretendo ter cuidado”, disse Absolon, “mas pretendo sobreviver”.

Wang continuava a escapar dos espíritos. O primeiro espírito o

atacou por trás, mas ele abaixou para escapar. Em seguida, quando o sexto

espírito veio de cima, ele rolou para a direita. O espírito atingiu o chão,

explodindo em chamas. Dois espíritos convergiram contra o Kage, mas este

saltou, dando uma cambalhota para trás. Os espíritos se atingiram, mas não

se explodiram, um atravessando o outro sem nada sofrerem. Mal o Kage

terminou sua cambalhota, o terceiro espírito veio por trás, urrando, e então

o Kage girou o corpo, virando-se e atingindo em cheio o atacante com sua

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Page 258: Magna Veritas - Tiago José Moreira

espada. O espírito explodiu sem causar ferimentos. Naquele instante,

quando Wang deu as costas a Shiva, o tigre avançou. Wang se virou, mas o

tigre já o alcançava. As garras do tigre estavam prontas para atingir o peito

do Celestial, mas este assumiu sua forma de sombras. Shiva atravessou a

forma incorpórea de Wang, suas garras passando através do tórax do

Celestial. Porém, mas Shiva pousou, Wang cambaleou, retornando à forma

humana. Pela boca de sua máscara, Wang cuspiu sangue, e um ferimento

gravíssimo de garras cortava seu peito, rasgando até mesmo suas costelas.

Wang caiu no chão, inerte.

“LO WANG!”, gritou Absolon, avançando em forma angelical,

flutuando rente ao solo. As faixas de luz que formavam suas asas

tremulavam, e as chamas celestes em sua espada deixavam um rastro

azulado traçando seu caminho. O tigre se virou para Absolon, e correu em

sua direção. Antes que os dois se encontrassem, um raio atingiu Shiva, não

vindo dos céus, mas das mãos de Fabrizia, que estava onde Absolon a

deixara, observando a luta. Shiva se distraiu com o ataque parando por um

instante, e então Absolon atingiu a face do tigre com a espada flamejante, o

golpe traçava um arco de fogo no ar. Shiva recuou, ainda sem nenhum

ferimento, a não ser poucas queimaduras onde Ansgar e Absolon o

atingiram, alguns cortes na pele causados por Al-Malik, e o pescoço

perfurado pela lâmina de Wang.

Shiva fitou Absolon. Os dois espíritos flamejantes restantes

ergueram-se nos céus, e convergiram contra Absolon uivando de dor e

fúria. Então, eu ergui minha mão. “CHEGA!”, gritei, gesticulando com a

mão livre, e então a apontei para os espíritos. Um deles explodiu. O outro

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Page 259: Magna Veritas - Tiago José Moreira

continuou a avançar, mas Karina, desceu dos céus, entrando em sua

frente. O espírito atingiu Karina, seu corpo incendiou-se e caiu no chão.

Aproveitando a deixa, Absolon avançou com raiva, desferindo

outro golpe na cabeça de Shiva. A espada atingiu-o em cheio, mas nada

mais fez do que queimar seus pêlos. Shiva recuou. Eu gesticulei

novamente, invocando o poder que eu tinha sobre os espíritos daquele

lugar, e convergindo toda a fúria espiritual contra o tigre. Shiva urrou em

dor, sua carne recebia novos ferimentos, ainda que pequenos. Porém,

mesmo que conseguíssemos derramar seu sangue, era como se nada

pudesse para-lo.

Furioso, Shiva urrou novamente. A partir do tigre, rachaduras

começaram a se espalhar pelo chão, em padrões aleatórios, cuspindo

chamas negras explosivamente. Absolon foi engolido pelas chamas e, em

seguida, arremessado ao ar. A espada de Ansgar caiu no chão pouco antes

de Absolon. Sua faixas de luz perderam parte do brilho e caíram como

trapos inertes sobre ele, conforme Absolon perdia suas forças. O tigre se

aproximava lentamente do Princeps caído...

Mas então, meus olhos se desviaram para um brilho repentino que

vinha do meio das nuvens de poeira que eram erguidas pelo vento. Shiva

também fitou aquela luz, e urrou furiosamente. E, ali, vi Asphael, parado,

ainda na mesma posição em que estava desde o começo do combate. Suas

asas estavam em chamas, seus olhos brilhavam com o Sol. Sua espada era

envolvida por luz branca intensa, e de sua lâmina saltavam raios que

envolviam o Celestial. O chão sob ele rachava-se e tremia, conforme

Asphael absorvia toda a resistência do solo para si mesmo.

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Page 260: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Asphael avançou, emitindo um grito furioso. Shiva urrou,

também avançando contra o adversário. Mas, quando ambos se

encontraram, foi a espada de Asphael que prevaleceu. O golpe atingiu o

pescoço do demônio, de baixo para cima, emitindo um clarão intenso e

jogando o tigre para o alto e para trás, como um boneco de pano. O tigre

caiu violentamente no chão, rolando. Para a minha surpresa, seu pescoço

sangrava intensamente, e queimaduras estendiam-se por todo o lado do

corpo atingido pelo golpe, que possuía a força da terra, do fogo, do

relâmpago e da luz combinados. A espada de Asphael se partiu com o

golpe, incapaz de agüentar tamanho golpe.

O tigre se levantou, cambaleando em dor. Asphael deu um passo à

frente, ainda empunhando a espada. A lâmina da mesma crescia,

reconstituindo-se. Os dois se encaravam, conforme a carne de Shiva

também se regenerava, e o tigre urrava em fúria. Os trovões urravam e os

raios se intensificavam. Eu podia notar que, mesmo com Asphael ali, Shiva

ainda não tinha sido ferido o suficiente para termos uma luta equilibrada, e

as forças que Asphael concentrou em seu primeiro golpe tinham sido

dispersadas quando a lâmina da espada se quebrou e precisavam ser

reunidas novamente. Então, inesperadamente, Shiva urrou uma última vez,

e um torvelinho de poeira envolveu o tigre, este próprio se tornando pó e

ascendendo aos céus, carregado pelo vento. Imediatamente após a poeira se

dissipar, os trovões pararam e a ventania diminuiu. A presença de Shiva

desaparecera por completo.

“Ele ainda pode nos atacar”, disse Ansgar, esforçando-se para falar.

“Tenham cuidado”.

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“Não”, respondi. “Ele não está mais aqui. Nem a força na

tempestade eu sinto mais”.

Asphael retornou à forma humana, abaixou sua espada e caminhou

em nossa direção. Ele agora parecia cansado, não mais tão calmo quanto

antes. Sua face mostrava preocupação, temor. Ao mesmo tempo, Fabrizia

corria em nossa direção.

“Acabou?”, perguntei a Asphael.

“Não”, ele disse, ofegante. “Isto não é o fim. Acho que está apenas

começando”.

“Não é possível!”, Ansgar retrucou.

Fabrizia, enquanto isso, ia ajudar Absolon. “Achille, você está

bem?”.

Absolon murmurou, parte de sua pele queimada, mas ele próprio

sorridente: “Não muito. Me ajuda a levantar?”. Fabrizia respirou aliviada e

ajudou o Princeps a se levantar.

Asphael fitou o horizonte. “Shiva se escondeu. Está em algum

lugar. Sabe que terá oposição e tentará cumprir sua missão agora.

Precisamos encontrar a alma de Mestre Veritatis antes do tigre”.

“Mas onde procurar?”, perguntou Ansgar.

Ao mesmo tempo, Fabrizia e Absolon caminhavam em direção a

Karina, também caída. “Karina, você está bem?”, perguntou Absolon.

“Não”, disse Karina, também parcialmente queimada,

especialmente no braço direito, o ponto em que o espírito de chamas a

atingiu.

“O que você fez foi loucura”, Absolon comentou.

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“E daí?”, Karina disse, sua voz fraca e trêmula. “Eu não ia

servir pra mais nada. Se você se defendesse do fantasma, o tigre iria mata-

lo”.

Asphael, respondendo a Ansgar, comentou: “Eu não sei onde

encontraremos meu mestre. Mas você, Mestre Nicodemus, tem em seus

sonhos a resposta”. Asphael me fitou seriamente.

Eu tentei pensar, tentei me lembrar dos detalhes de meus sonhos,

mas estava nervoso. Minha cabeça não conseguia decifrar o significado das

imagens que eu vi. Onde? Onde está a pessoa que possui a alma de Uriel?

Onde está o velho dos meus sonhos, protegido sob os braços de Cristo? “Eu

não sei”, respondi.

Ali perto, Absolon se ajoelhou para ajudar Karina. “Vá ver se Al-

Malik e Wang estão bem”, ele pediu a Fabrizia, que correu em direção aos

outros dois.

Asphael então olhou o céu. “A tempestade não possui mais um

poder que a mantém, irá se dissipar, e o rastro de Shiva será perdido. Ele

está à nossa frente. Íblis irá informa-lo de tudo o que descobriu em sua

mente, Mestre Nicodemus. Precisamos continuar, mas para isso precisamos

de um lugar aonde iremos continuar a busca”.

Observei nosso grupo. Ouvi Fabrizia gritar: “Eles estão bem! Estão

só inconscientes!”, referindo-se a Al-Malik e Lo Wang. Olhei para Ansgar

ao meu lado, seus ferimentos profundos ainda sangrando. Olhei Absolon e

Karina, juntos, ambos queimados pelas chamas do inferno. Então, voltei-

me a Asphael: “Nosso grupo precisa se recuperar”.

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Page 263: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Eu irei ajuda-los”, disse Asphael, caminhando em direção a

Karina e Absolon. “Ajude Ansgar enquanto isso, e pense. Pense aonde

iremos agora”.

Concordei. Abaixei-me logo depois, para deitar Ansgar. Assim que

o Venator se deitou no chão do deserto, toquei seus ferimentos e fechei

meus olhos, concentrando o que restava de minhas energias para chamar os

espíritos e pedir suas forças vitais. Pouco a pouco, os ferimentos de Ansgar

se fechavam, ao custo de minhas próprias forças. Quando abri meus olhos,

o peito de Ansgar estava quase recuperado.

“Eu mesmo posso curar o que resta”, disse Ansgar. “Poupe suas

forças, Nicodemus”.

Eu me sentei ao lado do Venator, observando Asphael curar

Karina, enquanto Absolon recusava a ajuda para curar-se sozinho. Pensei,

mas não conseguia concluir nenhum pensamento. Então, lembrei-me de

palavras que me foram ditas nesta mesma noite: “Meu trabalho aqui era

leva-los a meu mestre. Se sobreviverem, com certeza vocês terão diversas

perguntas que ele pode responder. Se vocês se arrependerem de sua tolice e

mudarem de idéia, ou se conseguirem sobreviver esta noite, vão a este

local”. Então, levei minha mão a um dos bolsos internos do sobretudo, e

retirei o cartão postal que Onesimus, o Anjo Caído, me entregara em

Jerusalém. A primeira face do cartão que vi foi o verso, no qual runas

fabuláricas diziam: “Passagem segura permitida pelo senhor desta casa”.

Então virei a face do cartão, onde vi uma figura, e sua respectiva legenda:

“Domus Aurea, Roma”.

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Page 264: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 13: A Cidade Eterna

Senti água tocar meu rosto, mas sem me molhar. Num instante, os

sons da tormenta sumiram. Não havia mais trovões, nem raios, nem ventos

poderosos. Não havia mais fúria, mas ainda permanecia o medo. O incerto

estava à nossa frente e eu não tive coragem de atravessar o portal de

Asphael de olhos abertos. Dei mais passos à frente, deixando a sensação de

atravessar água para trás. E ouvi algo que imaginei nunca mais ouvir:

serenidade.

Uma brisa suave e gelada tocou meu rosto. O frio trouxe-me

calafrios, mas estes, comparados com os calafrios do medo e do desespero

que senti há poucos minutos, eram uma bênção. O frio não incomodava,

nem sequer o silêncio era inoportuno. Eu ouvi o som de passos, conforme

meus companheiros atravessavam o portal atrás de mim, mas o som mais

alto era o de galhos de árvores balançando ao vento, suas folhas emitindo

uma cacofonia suave e, para minha mente tensa, estranhamente relaxante.

Então, abri meus olhos para ver aquilo que me cercava.

Meus olhos primeiro viram um bosque, no qual estava a clareira em

que nos encontrávamos. Olhei para o céu, e vi poucas nuvens flutuarem no

vazio distante, estrelas brilhando majestosamente na escuridão. Virei-me ao

sentir o portal atrás de mim fechar-se, conforme Asphael o atravessava. Ali

estávamos os oito, feridos em espírito e sujos com poeira, sangue e cinzas.

Nenhum de nós conseguia esconder a tensão ou o medo, nem nenhum

poderia jamais esquecer aquilo que vimos e ouvimos nesta noite

interminável. Mesmo poderoso Asphael agora parecia cansado e duvidoso,

ainda que tentasse exalar uma presença confiante. Eu sentia que seu grande

poder havia diminuído, exaurido pela batalha com Shiva.

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Page 265: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Onde estamos?”, perguntou Fabrizia, que se aproximava de

Absolon e tocava-lhe o ombro. Absolon virou-se para a jovem, sua mão

tocou a mão dela, sobre seu ombro, mas ele não sorriu. O cansaço do

Princeps era claro, bem como seus temores.

“Villa Borghese”, murmurou Karina, que se afastava timidamente

do grupo. Seu olhar fitava o chão, suas mãos ensangüentadas tocavam seus

próprios braços, que ela pressionava contra o peito, como se estivesse se

abraçando para se confortar. Fosse ela mortal, eu imaginaria que estava

com frio, mas eu sabia que ela estava insegura, sentindo-se a mais baixa

entre nós, a única que não foi capaz de pegar uma arma e lutar.

“Sim”, disse Asphael. Sua voz agora mais baixa, menos grandiosa.

“A jovem Supervivente tem razão... Sem dúvida, já esteve aqui para

reconhecer este lugar tão facilmente. Estamos em Roma, uma cidade que já

foi tanto de trevas como de luz. Eu amo e odeio esta cidade”.

“Por quê?”, perguntou Al-Malik, que retirava o turbante sujo,

deixando seu rosto à mostra. Seus longos cabelos negros e encaracolados

caíram sobre os ombros. Ao seu lado, Lo Wang removia sua máscara.

Silenciosamente, o Kage fitava a face demoníaca que até há pouco usava.

“Aos meus olhos, esta cidade representa a humanidade, jovem Al-

Malik”, respondeu o Arcanjo. “Ela representa glória, beleza, iluminação e

conhecimento, mas também representa a corrupção, a farsa e as mentiras do

ser humano. Aqui nasceram impérios, tanto de luz como de trevas”.

“O que faremos agora?”, perguntou Ansgar. O poderoso Venator

segurava o cabo de sua espada com a mão direita, mas não a erguia. Ao

contrário, a mantinha apoiada ao chão, arrastando-a como se ela tivesse

grande peso.

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Page 266: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Iremos a Domus Aurea”, respondi, olhando o cartão postal em

minhas mãos. “É nossa única pista, talvez nossa única esperança. Íblis disse

que meus sonhos eram a chave para encontrarmos Veritatis, mas eu não

consigo decifrar minhas visões. Quanto mais penso nelas, menos claras se

tornam, mas ainda assim acho que os Guardiões estão nublando meus

pensamentos, pois algo me mim me diz que estou ignorando aquilo que é

mais óbvio. Enquanto eu não conseguir desvendar meus sonhos, tudo o que

temos é este cartão postal”.

“E, infelizmente, não temos tempo”, murmurou Absolon.

“Eu queria que tivéssemos todo o tempo do mundo”, resmunguei.

Minha voz tornou-se rouca e fraca. “Eu queria dar a vocês tempo para

descansar, tempo para pensar. Eu queria poder pensar num curso de ação

melhor... Mas se Íblis realmente invadiu minha mente e roubou meus

sonhos, então talvez já seja tarde demais”.

Olhei para meus companheiros, observando cada um. “Vamos orar

ao Lorde Sábio para que encontremos respostas, Mestre Nicodemus”,

Asphael disse, assim que meus olhos se encontraram com os dele.

“Mas tenhamos cuidado”, eu disse enquanto minhas asas se abriam,

sem encontrar resistência em minhas roupas já rasgadas nas costas. “Eu sei

que Roma, embora longe de conflitos étnicos, não é muito diferente de

Jerusalém. Aqui também é lar de povos antigos e uma cidade que já foi um

centro de fé. Aqui também Anjos Caídos detém grande poder. Vamos

torcer para que a Corte Negra nos seja amigável, pois certamente ela deseja

algo conosco esta noite”.

Ergui vôo, suprimindo minha aura para que nenhum mortal me

visse. Meus companheiros fizeram o mesmo. Em conjunto, elevamo-nos

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Page 267: Magna Veritas - Tiago José Moreira

aos céus. Assim que estávamos a grande altura, eu olhei para as luzes

da cidade abaixo. Esta noite parecia interminável, mas não era de se

surpreender... Primeiro do Irã para Israel, depois de Israel para a Itália,

avançávamos junto com a noite... Certamente, mesmo tendo passado

diversas horas desde que saímos de Chak-chak, o horário em Roma deveria

ser aproximadamente o mesmo em que chegamos a Israel... Era como se o

tempo não passasse.

Fiquei algum tempo observando, perdido, para as luzes abaixo, sem

saber o que era norte ou sul, ou para onde seguir. Karina percebeu minha

confusão, e então apontou para o horizonte além. “Para lá”, ela disse, sua

voz baixa e sem forças. Agradeci, e então pedi que ela tomasse a frente. Ela

passou então a guiar o grupo pelos céus, mas seu ânimo não se alterou.

Prosseguíamos através dos céus. O vento frio atingia nossos rostos,

e as luzes da cidade se moviam abaixo de nós. A noite plácida parecia tão

silenciosa e tão diferente da tempestade que há pouco enfrentávamos.

Fechei meus olhos por um instante, lembrando-me de tudo o que nos

atormentava...

Abri os olhos, fitando a escuridão do horizonte. Em algum lugar

deste mundo estava um velho homem assustado, atormentado por

memórias de uma vida que não era a sua. Um ser sem alma nem passado,

mas pensamentos distintos, carregando a alma dormente do Arcanjo que

admirei por toda a minha existência celeste. Uriel-chamado-Veritatis,

Primus dos Veritatis Perquiratores e dos Mors Sancta, Arcanjo da sabedoria

e da vida além da morte. Eu sempre o imaginei como um ser divino,

infalível, inigualável. Mas então, ele era apenas um homem, um homem

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Page 268: Magna Veritas - Tiago José Moreira

falho, que errou, e em seu erro criou um pesadelo que afetou e ainda

afetaria toda a humanidade.

E, assim como o velho, também em algum local estava seu algoz,

caminhando com patas de tigre. Fechei meus olhos uma vez mais, e senti

uma estranha escuridão distante, que vinha de leste, oeste, norte e sul. Algo

maior até mesmo do que o tigre. Aquele que cavalgava a tempestade

parecia mais forte agora que a tempestade tinha se dissipado. E nós oito

éramos aqueles destinados a impedir que essa escuridão se apossasse do

velho e da alma do poderoso Arcanjo. Seríamos capazes? O que o destino

realmente nos reservava?

Minha mente deixou de divagar quando Karina descendeu ao solo.

Nosso grupo logo a seguiu. Fitei Roma abaixo, conforme as luzes da cidade

tornavam-se mais próximas, e lembrei uma vez mais do homem que nos

atraiu aqui: o Caído, Onesimus. O que seu povo poderia desejar conosco?

Que respostas poderiam nos dar?

Abaixo, estava uma antiga colina. Pousamos numa área deserta do

parque, em meio a ciprestes. O vento frio e suave balançava suas folhas

suavemente. Assim que Karina tocou seus pés no chão, suas asas

desapareceram. Ela deu alguns passos à frente, cabisbaixa. O segundo a

descer foi Asphael, seguido de perto por Absolon e Fabrizia. Os demais os

seguiram, e por último vim eu. Todos, um a um, retornamos às nossas

formas humanas.

“Estamos próximos das Termas de Trajano”, disse Karina,

suspirando. “É um lugar lindo. A Domus Aurea também está próxima...”.

“Eu me lembro quando a ‘casa dourada’ de Nero ainda era um

gigantesco palácio, construído sobre as cinzas de Roma”, disse Asphael.

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Page 269: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Nero foi um ser desprezível, um homem vil e covarde, assombrado

por demônios e espíritos. Ele era cruel e traiçoeiro, matando por prazer e

por poder. Muitos acreditam que ele incendiou Roma apenas para construir

seu palácio, e eu não duvidaria disto”.

Observei Asphael. “Às vezes esqueço-me o quanto viveu e o

quanto vivenciou, Lorde Asphael”, comentei.

“Há muitas memórias que tenho, Mestre Nicodemus”, ele

respondeu, fitando o horizonte, “mas não é hora de lembrar do passado”.

“Karina, pode nos guiar?”, pedi-lhe, lançando a ela um olhar

preocupado. Ela concordou com a cabeça e tomou a frente.

Karina nos conduziu pelo parque, por entre árvores e grandes

jardins, e estátuas e construções de mármore. Caminhávamos em silêncio, e

eu aproveitei o momento para novamente observar as faces cansadas de

meus companheiros. Cansados, mas determinados, apenas Karina

demonstrando vontade de desistir.

“O que faremos quando encontrarmos Onesimus?”, perguntou

Ansgar.

“Não sei”, respondi. “Vamos ouvir o que eles têm a dizer

primeiro”.

De repente, Karina parou, fazendo sinal para ficarmos quietos. Ela

parecia assustada. “O que houve?”, perguntou Fabrizia, que caminhava ao

lado de Absolon.

“Ouvi algo”, disse a Supervivente, que olhava atentamente ao

redor. “Vozes sussurrantes e passos próximos”.

Ansgar ergueu sua espada, empunhando-a com ambas as mãos. Seu

movimento foi acompanhado por Asphael, Al-Malik e Wang, que também

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Page 270: Magna Veritas - Tiago José Moreira

empunharam suas lâminas. Karina recuou para perto do grupo, e eu

comecei a observar o ambiente ao redor, buscando por qualquer presença

oculta. “Ali”, ouvi Al-Malik murmurar, fitando uma estátua a cerca de

vinte metros de distância, fracamente iluminada. Observei e notei uma

sombra, um homem jovem e forte, vestindo um sobretudo cinzento. Sua

forma era quase indistinta, oculta por alguma forma de ilusão. Ele se movia

lentamente, cuidadosamente.

“Você!”, gritou Al-Malik, tomando a frente e apontando sua

cimitarra na direção da estátua. “Mostre-se!”.

O homem se surpreendeu por ter sido encontrado e, num salto,

afastou-se, em seguida correndo pela escuridão da mata. Al-Malik se

preparou para segui-lo, mas então Wang saltou à sua frente. Em meio ao

salto, o Kage se tornou sombra, e, num instante, desapareceu nas trevas da

noite. “Wang!”, gritei, “precisamos permanecer juntos!”.

“O que era aquele homem?”, perguntou Karina, assustada.

“Um Anjo Caído”, respondeu Al-Malik. “Pude ver a marca

flamejante em sua testa, indicando seus pecados”.

“Há outros mais”, disse Asphael, olhando ao redor. Acompanhei

seu olhar, e vi outros dois vultos atravessarem o bosque dando a volta por

nós a uma distância segura.

“Estão nos cercando”, eu disse. “Temos que ter cuidado”. Ao

mesmo tempo, vi outro homem aproximar-se pela frente. Este, também

oculto por ilusões, portava uma foice negra de metal. Seus olhos me

fitavam friamente.

“O que faremos?”, perguntou Absolon. Ao seu lado, Fabrizia

sacava sua espingarda.

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“Vamos mostrar a eles a luz”, disse Asphael, erguendo a mão

esquerda para o céu. Um brilho intenso se seguiu, iluminando em luz

branca tudo ao nosso redor. Tocados pela luz, os vultos se revelavam, suas

ilusões sendo quebradas pelo poder do Arcanjo. Alguns tampavam os

olhos, cegados pelo brilho intenso. Eu mesmo mal pude enxergar a

princípio, mas então a luz sumiu, e todos ao nosso redor agora se

mostravam descobertos. Para minha surpresa, eram mais de dez pessoas.

Eu mesmo não pude ver através das ilusões de todos... Com certeza, eram

poderosos ou, no mínimo, habilidosos. Alguns portavam espadas, outros

escopetas ou submetralhadoras. Um possuía uma foice, e outro um grande

machado. Todos vestiam roupas modernas, fossem sobretudos, jaquetas ou

paletós, mas todos usavam cores escuras. Alguns cobriam o rosto, outros

não. Havia homens e mulheres. Eu podia sentir grande poder em alguns

deles.

Ao lado do homem de foice surgiram outros dois Anjos Caídos: um

homem e uma mulher. Com suas ilusões desfeitas, o homem, o único

desarmado do grupo, fitou-me. “O que desejam aqui, Celestiais?”, ele

disse. Eu não conseguia tirar os olhos da mulher, porém, que portava duas

maças negras, e trajava um vestido negro. Ela sorria, seus olhos negros

demonstrando um desejo por sangue. Seus longos cabelos negros eram

erguidos pelo vento frio.

“Estamos indo para a Domus Aurea”, disse Absolon, ao notar que

eu nada respondi. “Procuramos um homem chamado Onesimus”.

“Onesimus, você diz?”, o homem perguntou intrigado. Seus olhos

azuis fitaram Absolon. “O que querem com ele, vestidos com trapos e sujos

de sangue? Quem os enviou?”.

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Page 272: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“O próprio Onesimus”, respondi. “Ele me deu este cartão”,

disse em seguida, erguendo o cartão postal. O homem se aproximou,

cuidadosamente, e pegou o cartão. Ansgar e Al-Malik fitavam o homem,

analisando cada movimento do mesmo.

O homem leu a mensagem no cartão, e então olhou em meus olhos.

“Então, vocês são aqueles que esperávamos. Mas Onesimus nos disse que

eram sete, e não oito”.

“Ele não encontrou todos nós quando nos entregou o cartão”, eu

respondi.

O homem olhou cada um de nós, liberou um suspiro, e falou,

calmamente: “Muito bem. Eu sou Millard, Dominação entre os Veritatis

Alliatos. Fui enviado para esperar por sua vinda”. Millard então afastou-se,

dando um sinal para os demais baixarem a guarda. “Vocês são convidados

de honra. O nosso senhor garantiu a vocês passagem segura e, por mais que

alguns de nós discordem de sua presença aqui, somos obrigados a

cooperar”. A mulher à nossa frente virou o rosto em claro sinal de

desprezo, e nos deu as costas. Os demais Caídos se afastaram e, neste

momento, Wang surgiu das sombras, aproximando-se de nós. Ele estava

mais próximo do que eu imaginava.

“Venham comigo”, pediu Millard. “E perdoem os modos de meus

companheiros. Eles estão guardando a região esta noite. Há algo muito

importante aqui”.

“O quê?”, perguntei.

“Vocês verão”, respondeu Millard, repetindo a frase em seguida

num tom mais baixo: “vocês verão”.

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Page 273: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Millard caminhou pelo bosque. Nós o seguíamos de perto, e

com ele iam a mulher e o homem de foice. “Perdoem minha falta de

educação”, disse Millard, continuando: “mas estes são os encarregados de

guardar esta região por esta noite. Este é Surial, um Trono, e ela é Azubah,

uma Serafim. Ambos pertencem à ordem dos Angelus Destructores”.

A mulher, Azubah, virou-se para olhar-nos novamente. Seu olhar

era frio, sua expressão demonstrava incômodo. Ela era incrivelmente bela,

seus cabelos negros pareciam refletir a fraca luz das entrelas, e seu rosto era

perfeito, sem qualquer falha ou cicatriz. A pele era alva, quase pálida. Ela

vestia um longo vestido negro, sem mangas e com grandes fendas nas

laterais da saia, indicando que poderia mover-se agilmente apesar da roupa.

Em suas mãos, as maças negras de metal pareciam possuir alguma

propriedade sobrenatural. Eu imaginava que tipo de guerreira ela seria, e

não podia deixar de pensar que ela seria uma oponente mortal.

Já Surial caminhava sem nos fitar. A foice de metal prateado era

ricamente adornada com detalhes e inscrições na lâmina e no cabo. Ele

vestia uma capa de chuva negra, seus cabelos eram loiros, e seus olhos

azuis. Sua pele, como a de Azubah, era alva. Sua face, porém, era feia,

esguia, com um nariz fino e comprido e olhos profundos. Os cabelos eram

longos, caindo desarrumados sobre o rosto.

Conforme caminhávamos, eu percebia que outros Caídos passavam

por nós, nos observando, alguns nos acompanhando à distância. “Nunca vi

tantos Anjos Caídos em um único lugar”, murmurei. Normalmente, uma

cidade grande típica não tem mais do que três ou quatro Anjos Caídos, mas

aqui eu via cada vez mais.

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Page 274: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Esta é uma data especial”, disse Millard. “Muitos dignitários

foram convocados. Shemhazai, Abdiel, Ramuel, Sarakmyal, Turial,

Urakabarameel, Armen e muitos outros vieram. Com eles, trouxeram suas

comitivas. Eu diria que, pela primeira vez, mais de metade de toda a Corte

Negra em todo o mundo se reúne em um único local”.

“Se reúne?”, perguntou Asphael, sua voz demonstrava medo. “Se

reúnem para quê?”.

“Eu ainda não sei, Arcanjo”, o Caído respondeu, calmamente, “mas

algo está para acontecer. Correm boatos que um exército marcha no

Inferno. Nossos contatos infernais confirmam que, neste exato momento,

batalhões se reúnem entre os reinos de Gehenna e Necrópolis”.

“Não está falando demais, Dominação Millard?”, perguntou

Azubah, num tom áspero. “Eles não merecem saber de tudo isso”.

“Me perdoe, minha senhora”, respondeu Millard, “mas tenho um

fraco por repartir conhecimento. Além do mais, Onesimus disse que estes

Celestiais têm uma grande importância para um dos dignitários”.

“Quem enviou Onesimus para nos procurar?”, perguntou Absolon.

“Eu não sei”, respondeu Millard, “mas logo saberemos”.

Após algum tempo de caminhada, sempre acompanhados por

olhares de Anjos Caídos, chegamos à entrada da Domus Aurea. Uma pista

de asfalto levava à entrada, ricamente arborizada e gradeada. Normalmente,

turistas só podem visitar a Domus em horas marcadas e grupos pequenos e

controlados, mas esta noite, o que víamos era um pequeno grupo de Anjos

Caídos guardarem a entrada. O portão estava aberto. Logo atrás das

árvores, eu vi o topo das ruínas da Domus. A maior parte do palácio,

porém, se encontrava soterrada na colina. Conforme nos aproximávamos,

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Page 275: Magna Veritas - Tiago José Moreira

os olhares dos Caídos se fixavam em nós. À frente do portão, estava

parado, em pé, um rosto conhecido. Os mesmos cabelos compridos e

negros, e olhos verdes que me fitavam friamente. Ele ainda vestia o mesmo

sobretudo que usava em Jerusalém. Assim que nos viu, Onesimus disse, em

voz alta: “Estou impressionado que tenham sobrevivido, Arcanjo”.

“Nisroch!”, murmurou Asphael, ao fitar Onesimus. “Então é pelo

nome de Onesimus que atende agora?”.

Onesimus pareceu surpreso. “Asphael Veritas! Então, não é de se

surpreender que os tolos tenham sobrevivido esta noite. Eu não esperava

vê-lo”.

“Asphael Veritas?”, perguntou Millard, também surpreso. “Bem

que eu o achei familiar”. Outros Caídos ao redor também demonstravam

surpresa. Murmúrios se seguiram, tanto de admiração como de ódio.

“Não é comum alguém como você ter acesso à Cidade Eterna”,

disse Onesimus.

Azubah protestou: “Você irá leva-los à Cidade Eterna? Isso é

loucura!”. Os murmúrios dos Caídos elevaram-se, alguns questionando a

decisão de Onesimus.

“É uma questão de segurança. Não podemos permitir Celestiais na

Cidade Eterna!”, disse Surial, finalmente quebrando seu silêncio.

“Eu também não gosto dessa decisão”, disse Onesimus, elevando a

voz, “mas como senhor dos exércitos de Oostegor, eu tenho que cumprir

com as ordens que recebo”. Os outros ainda protestaram. Onesimus perdeu

a paciência, e ergueu ainda mais a voz: “E não cabe a vocês questionar a

vontade da Estrela da Manhã!”.

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Um silêncio repentino e perturbador se seguiu. Não pude

deixar de demonstrar surpresa, e meus companheiros estavam boquiabertos.

Notei nervosismo em Asphael.

“Ele?”, perguntou Millard, gaguejando.

Onesimus não se preocupou em responder. “Venham”, ele pediu a

nós. “Eu os levarei à Cidade Eterna”.

Onesimus nos deu as costas, adentrando a Domus Aurea, a Casa

Dourada de Nero. Nosso grupo o seguiu, e atrás de nós vinham Millard,

Azubah e Surial. “De onde conhece Onesimus?”, perguntei a Asphael,

conforme atravessávamos os portões da antiga ruína.

Asphael murmurou: “Ele era conhecido como Nisroch em minha

época, um grande general dos Princeps. Eu era jovem quando ele já era um

Arcanjo, mas por ser o companheiro e fiel aprendiz de Lorde Veritatis, eu

pude conhecer Nisroch pessoalmente antes de sua queda”.

“Ele era de meu Clero! Por quê ele caiu?”, perguntou Absolon.

“Por amar os mortais mais do que vocês”, disse Onesimus, que

ouvia a conversa. Ele mantinha-se de costas para nós, guiando-nos através

dos salões e corredores escuros da Domus Aurea. Sua voz áspera e cheia de

ressentimentos continuou: “Eu acreditei que era melhor nos revelarmos,

não como Lúcifer fez, não para domina-los, mas para convivermos com

eles, para tornar o mundo como era o Éden. Nos tornaríamos exemplos e

protetores da humanidade”.

“E, por isso, seguiu a loucura de Shemhazai-chamado-Samyaza”,

completou Asphael. Minhas memórias tentavam lembrar do que li sobre

Shemhazai. Ele fora o líder da segunda grande rebelião, tomado por seus

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desejos obsessivos e seu excesso de zelo. Duzentos Celestiais decaíram

na rebelião, e nisso fortaleceram as legiões de Lúcifer.

“Para onde estamos indo?”, perguntou Karina. Ela se mantinha

próxima a mim. Onesimus nada respondeu.

Os corredores da Domus Aurea eram largos o suficiente para

permitir ao grupo atravessa-los sem problemas. Porém, a escuridão era

incômoda, nos forçando a usar nossos poderes para melhor ver. Os olhos de

todo o grupo brilhavam, menos os de Absolon, que era guiado por Fabrizia.

Ambos caminhavam de mãos dadas e, embora Absolon não notasse, ela

parecia sorrir ao estar com ele. Estava frio e muito úmido, nossa respiração

liberava pequenas nuvens de vapor. As paredes continham motivos

decorativos da antiga Roma. Não demorou para que chegássemos a um

corredor no qual a escuridão era ainda mais densa.

“Esta não é uma escuridão natural”, murmurou Lo Wang. Eu

concordei, vendo que nossos poderes não conseguiam penetrar na nuvem

negra à frente.

“Venham”, insistiu Onesimus, atravessando a escuridão. Ansgar foi

em seguida, e depois Absolon e Fabrizia. Os demais então tomaram

coragem para segui-los.

Assim que atravessamos a escuridão, eu senti vertigem. Fechei

meus olhos por um instante e, ao abri-los, notei que estávamos não mais no

corredor da Domus Aurea, mas sim numa caverna. Olhei para trás e,

embora o grupo estivesse todo ali, não vi mais a nuvem de escuridão, e sim

que a caverna continuava até onde a vista alcançava. “Estamos a

quilômetros de onde estávamos”, Karina revelou.

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“Não podíamos mostrar a vocês a entrada real de nosso lar”,

disse Onesimus, que continuava a caminhar. “Por isso, criamos uma

entrada temporária. Venham”. O Caído prosseguiu.

A caverna era larga, com espaço suficiente para dez pessoas

caminharem por ela lado a lado, e o teto estava a mais de três metros de

altura. O solo era maciço, sem grandes reentrâncias ou irregularidades

notáveis, o que permitiria até mesmo que veículos a atravessassem. Não era

uma caverna natural, provavelmente feita por magia. E meus sentidos

podiam sentir uma tênue força ao nosso redor, algo bloqueando o acesso ao

mundo dos espíritos e, ao mesmo tempo, fortalecendo o espaço da caverna.

Nenhum portal poderia ser aberto aqui. Não tínhamos como escapar se

precisássemos.

Azubah, Surial e Millard permaneciam atrás de nós, seguindo-nos

em silêncio. A mulher mostrava desgosto, até mesmo ódio, por estarmos

ali. Procurei ignorar seu olhar e me concentrar no caminho.

Então, logo à frente, notei uma passagem. Onesimus a atravessou,

abriu os braços, e disse: “Bem-vindos sejam, Celestiais. Bem-vindos à

Cidade Eterna”.

E, conforme atravessávamos a passagem, ficávamos estupefatos

com a visão que tínhamos. A entrada da caverna era adornada por um arco

de mármore, e o chão à frente era ladrilhado com rochas negras,

perfeitamente esculpidas. Um vale à frente continha a cidade, uma imensa

maravilha construída em estilo romano, cortada por rios subterrâneos e

preenchida por templos, praças e palácios. Suas ruas eram largas,

iluminadas por tochas que ardiam em chamas espirituais que jamais

paravam de arder, sem no entanto queimar a tocha e o óleo que as

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mantinham. Acima, a caverna era tão imensa, tão infinita, que eu via

apenas escuridão, mesmo com meus poderes especiais. Era como se aqui

fosse eternamente noite. O ar era puro, como se estivéssemos no alto de um

planalto sob o céu, e árvores cheias de vida embelezavam toda a cidade,

mesmo sem jamais terem visto as luzes do Sol. Havia movimento,

conforme centenas de pessoas andavam, solitárias ou em pares, pelas vastas

avenidas, e estátuas gigantescas, tão altas quanto os próprios templos,

demonstravam a imponência dos Anjos Caídos. Mas nada adiante se

comparava com a construção que tomava o centro exato da grande cidade.

Uma imensa torre, em forma ligeiramente cônica, feita de mármore negro e

a mais pura obsidiana, mais alta do que qualquer arranha-céu que eu tenha

visto na Terra, podendo ser vista de qualquer ponto da Cidade Eterna. O

palácio negro se misturava à escuridão, tornando-se quase invisível, mas

milhares de tochas o circundavam, dando-lhe uma forma distinta, como se

fosse uma coluna de escuridão cercada por fracas luzes que a limitavam.

Al-Malik, surpreendido, murmurou: “Tamanha beleza... Não

imaginei que seria assim”.

“E o que pensava, Malaki?”, perguntou Millard. “Uma cidade

demoníaca cheia de apologias à violência que sofremos? Um reino de dor e

caos? Queremos paz, não destruição”.

Onesimus continuou a caminhar, descendo uma grande escadaria

que nos levaria à cidade. “Vamos à Fortaleza Oostegor”, disse, se referindo

à grande torre. Logo ao fim da escadaria, um arco indicava a entrada da

cidade. À frente, a avenida era ladrilhada por pedras bem esculpidas. Em

ambos os lados do arco de entrada estavam grandes estátuas de dois metros

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de altura, uma feminina e outra masculina, nuas, dispondo-se como

dessem boas-vindas aos que chegavam.

A cidade tinha uma beleza inigualável, mas emanava um ar de

silêncio e tristeza, como se fosse um lugar morto. Embora muitos

caminhavam nas ruas, estavam sempre em pequenos grupos, ou mesmo

solitários. Seus olhares acusadores se voltavam sobre nós, observando

conforme prosseguíamos rumo ao castelo negro à frente. A admiração

inicial deu lugar a uma sensação de frieza, de morte, de extrema tristeza...

A Cidade Eterna era calma e quieta, o mais perfeito local para a

contemplação e a meditação, mas também não tinha vida. Eu sentia solidão

enquanto caminhava silenciosamente por aquela avenida. Logo após uma

ponte, que atravessava um rio subterrâneo, estava uma grande muralha

negra. Quando estávamos na metade da ponte, os portões de ferro se

abriram, rangendo. Adiante estava um estranho jardim.

“Meu Deus!”, exclamou Al-Malik. O jardim do castelo não tinha

plantas ou vida, mas sim centenas de estátuas negras representando uma

grande batalha. Eram imagens de celestiais açoitando pessoas de joelhos,

de heróis do passado lutando entre si, de figuras ameaçadoras apontando

para pessoas caídas, pedindo clemência.

“O jardim das memórias”, disse Millard. “Eu sou novo demais para

lembrar-me desta época. A grande revolta”.

“Uma visão distorcida do passado”, disse Al-Malik.

“Ou simplesmente uma perspectiva diferente da sua, Celestial”,

respondeu Onesimus, “ou talvez seja a sua visão que esteja distorcida”.

Al-Malik, ofendido, devolveu: “Crueldade é um defeito que

aprendi a evitar, Anjo Caído, e não acredito que meus companheiros sejam

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tolos de abraçarem tal barbárie. Eu não vejo verdade alguma neste

jardim”.

“Tome o cuidado com o que diz, Malaki”, ameaçou Azubah,

erguendo suas duas maças negras.

“Por quê?”, Al-Malik perguntou, virando-se para encara-la. “Quem

não concorda com sua verdade deve ser calado?”.

“É coragem ou tolice o que o faz erguer sua voz contra nós aqui?”,

perguntou Millard, seus olhos brilhando em cor dourada.

“Isso é uma ameaça?”, perguntou Ansgar, dando um passo em

direção a Millard, fitando seus olhos.

“Chega!”, ordenou Onesimus. “Azubah, Millard, calem-se! Suas

provocações não valem nada aqui, sabem que estes Celestiais não devem

ser tocados! E quanto a vocês, Celestiais, respeitem os senhores da casa que

os acolhe”.

“Sim, senhor Onesimus”, disse Al-Malik, baixando a voz.

“Venham”, Onesimus ordenou impacientemente, em seguida

dirigindo-se ao imenso castelo. Por alguns minutos, atravessamos o jardim

de estátuas negras, até chegarmos ao portal de entrada. O portal era

ricamente adornado, com formas belamente esculpidas, e se encontrava

aberto, revelando um interior bem iluminado, de paredes brancas como o

marfim do interior da fortaleza. Esperando-nos à porta estava um velho,

que vestia um manto cinzento e tinha uma longa barba branca.

O senhor exclamou ao nos ver, falando serenamente: “Saudações,

Nisroch-chamado-Onesimus, é bom ver que tua missão foi bem sucedida”.

Ele colocou as mãos atrás do corpo, caminhando calmamente em nossa

direção.

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“Saudações, Lorde Amazarak”, respondeu Onesimus, dando

passagem ao velho.

O velho fitou-nos serenamente, abriu um sorriso amistoso, e se

apresentou: “Eu sou Amazarak, Serafim Decaído entre os Primordiais

Impuros. Meu Senhor pediu que os recebesse”. Então, virando-se para os

Caídos que nos acompanhavam, pediu: “Onesimus, Azubah, Surial e

Millard, deixe-nos a sós”.

Os quatro Caídos obedeceram a Amazarak sem questionar.

Sorridente e ainda calmamente, o velho pediu que o acompanhássemos, e

caminhou em direção do interior de Oostegor. A presença de Amazarak me

deixava mais tranqüilo, seu sorriso era estranhamente amigável, seu olhar

calmo era muito diferente dos olhares cheios de incômodo e ódio dos

demais.

Adentramos um grande salão, iluminado por diversas tochas

douradas e grandes lustres. O teto do salão tinha a forma do interior de uma

abóbada, e suas paredes eram puramente brancas. Vitrais, que no exterior

pareciam apenas janelas de vidro negro, pelo interior eram belos vitrais,

mostrando imagens gloriosas do passado, ricamente coloridas. Assim que

entramos, o portal de Oostegor fechou-se atrás de nós. O salão era imenso,

provavelmente reservado para grandes reuniões. Nas paredes, além de mais

vitrais, estavam grandes quadros ou imagens em alto-relevo, também

mostrando a Rebelião, mas menos trágicas e mais heróicas. O salão era

mantido por grandes e grossas colunas, que se erguiam até o teto. As

colunas estavam dispostas em duas linhas, entre elas um imenso tapete

vermelho-sangue, que levava do portal de entrada a um segundo portal a

mais de uma centena de metros à frente. Fora esse segundo portal, não

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havia portas neste andar. Ao invés disso, diversas escadarias

adentravam as paredes, levando a um segundo andar, que nada mais era do

que uma espécie de sobreloja, de era possível ver todo o salão abaixo, e se

tinha acesso a inúmeros outros portais bem trabalhados, que provavelmente

levariam aos interiores da fortaleza. Alguns Caídos caminhavam por este

segundo pavimento, observando-nos conforme cruzávamos o grande salão

abaixo. A visão daquele local era inspiradora, quase sagrada. Se o exterior

de Oostegor indicava escuridão e vergonha, o interior era luz e glória.

Porém, o clima de tristeza e silencio permanecia. Nossos passos ecoavam,

conforme nos dirigíamos para o outro lado do salão, de onde partiam duas

escadas para um segundo andar, e entre as mesmas um outro grande portal.

Amazarak parou no meio do salão, virando-se para nós. “O que

acham da Cidade Eterna, meus amigos?”.

“É linda”, disse Fabrizia.

“Surpreendente”, acrescentou Ansgar.

“Mas falta vida nela”, completei, fitando o velho diante de nós. De

alguma forma, sua presença me acalmava, ele parecia amigável,

respeitável, um Celestial tão pleno quanto nós.

“Essa é a maneira como somos, caro Arcanjo”, respondeu

Amazarak. “Tentamos ser belos, majestosos, tentamos ser o que podermos

ser de melhor. Mas no fundo, sentimos que falta algo, algo que perdemos

há muito tempo. Esta tristeza, esse silêncio, está em nós. E, embora o

silêncio incomode, nos inspira à reflexão”.

“À reflexão do quê?”, perguntei.

“Para encontrar um caminho é preciso refletir, jovem Arcanjo”,

disse Amazarak. “Oostegor leva a muitos caminhos, tanto física como

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espiritualmente. Estamos sob Roma, mas Oostegor leva a todos os

cantos do mundo, e aqui cada Caído encontra o caminho a trilhar, seja um

caminho iluminado ou obscuro. Não é para encontrar seu destino que

vieram aqui esta noite?”.

Quando chegamos ao segundo portal, Amazarak parou e nos fitou:

“Eu ainda não os conheço, meus amigos, gostaria que se apresentassem”.

Nos apresentamos, um a um, primeiro eu, então Asphael, seguido

por Ansgar, Absolon, Fabrizia e Lo Wang. Finalmente, Al-Malik e Karina

se apresentaram. Amazarak sorriu: “É um prazer conhece-los. Devem estar

cansados, pelo que vejo em suas faces. Também noto que passaram por

grandes provações. Meu senhor deseja falar-lhes mais tarde, mas gostaria

que estivessem com a mente limpa e os corpos descansados, para que

melhor pudessem analisar suas palavras”.

“Não acredito que tenhamos tempo para descansar”, respondi,

tentando ser o mais gentil possível para não ofender o Serafim Decaído.

Amazarak sorriu: “Por quê? E o que farão sem nós? Quanto tempo

perderão até encontrarem o caminho? Acredite em mim, Philipe

Nicodemus, que o tempo que usufruirão aqui será compensado pelas

respostas que terão. O inimigo que enfrentam mente, e quer que não

tenham tempo para refletir estas mentiras”.

Olhei para meus companheiros. Ansgar e Lo Wang permaneciam

quietos, evitavam me olhar, talvez para não demonstrar fraqueza, mas

Absolon, Karina e Fabrizia pediam por descanso. Al-Malik balançou

positivamente a cabeça. “Amazarak fala com sabedoria”, disse o Malaki.

Virei-me para Asphael, que concordou: “Precisamos repor nossas forças e

fortalecer nosso espírito”.

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Amazarak sorriu gentilmente, e então se virou de costas,

abrindo o portal adiante. As grandes portas de metal dourado se abriram,

emitindo um som característico. Em seguida, mais uma vez nos vimos

maravilhados, conforme o som de água corrente inundou nossos ouvidos e

ecoou pelo grande salão. Vapor d’água atravessou o portal aberto, bem

como grande umidade. A grande porta levava a uma escadaria, e à frente da

mesma vimos um ambiente surreal. Fontes jorravam água aquecida para o

alto, enquanto das paredes caíam pequenas cachoeiras. A água corria por

canais, e se acumulava em diversas piscinas não muito profundas. Por cima

dos canais passavam pontes ricamente ornadas, e entre as várias piscinas

haviam praças, preenchidas por esculturas e estátuas ricamente ornadas. O

som da água ecoava pelo imenso salão, criando uma sinfonia calmante.

Alguns Caídos caminhavam pelas pontes e praças, enquanto outros

banhavam, nus ou seminus, nas piscinas. Alguns se sentavam à beira

d’água ou em plataformas nos cantos das piscinas, enquanto outros

limpavam o corpo, a água profunda o suficiente para tocar-lhes o peito.

“O que é este local?”, perguntou Al-Malik, observando enquanto

Amazarak caminhava à frente, fazendo sinal para que o seguíssemos.

“Este é um local de purificação, o chamamos de Termas de

Lucibel”, disse o velho Caído, que atravessava uma das pontes por sobre os

canais, dirigindo-se à uma praça adiante, que se ligava a outras iguais

através de mais pontes. “Este é o local aonde vamos quando precisamos

limpar o corpo e a alma, como vocês”.

“Não imaginava um lugar assim”, comentou Absolon.

Amazarak sorriu: “Admito que este local não é uma obra de

Lúcifer, mas de outros sábios, que viram que nós, por mais resistentes que

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tentemos ser, também precisamos liberar nossas tensões”. Reparei num

casal de Caídos, ambos nus, se beijando numa piscina abaixo da ponte pela

qual passávamos. Por onde passávamos, eu via mais Caídos, alguns

meditando, outros se limpando, e outros simplesmente passeando pelas

Termas. De repente, a voz de Amazarak se tornou mais ríspida. “Nós

estamos entre trevas e luz, não fazemos parte de nenhum, mas tomamos

parte no conflito entre ambos. Estamos sozinhos e só podemos contar

conosco. É fácil cair em desespero”. Então, quando atravessava uma outra

ponte, sua voz novamente se tornou amigável e confortante: “Meu senhor

já reservou um local para vocês descansarem, bem como toalhas e roupas

se assim desejarem”.

“Que tipo de roupas?”, perguntou Absolon.

“O que desejarem, iremos providenciar, até mesmo equipamento

que tenham perdido em sua jornada. É uma prova de nossa boa vontade

para com vocês, e de que meu senhor os tem como hóspedes importantes”,

respondeu Amazarak, neste instante descendo uma escada, rumo a uma

plataforma mais baixa. Ali, adiante, estava uma grande piscina, no centro

da mesma uma pequena ilha de mármore, com estátuas que erguiam potes,

dos quais jorrava água sobre a piscina, formando pequenas quedas d’água.

“Eu tenho um conjunto de roupas extras em minha mochila”, disse

Absolon, “mas eu gostaria que me conseguisse uma espada”.

Amazarak se mostrou surpreso. Também Al-Malik e Ansgar

olharam Absolon com certa descrença, mas notei Lo Wang sorrir

sutilmente. “Uma espada, Anjo Achille?”, perguntou o Caído.

“Sim. Uma menor e mais leve do que a de Ansgar, se possível”,

respondeu o Princeps.

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Amazarak concordou com a cabeça, então se virou aos demais:

“E o que vocês desejariam?”.

“Não preciso de nada”, disse Fabrizia, “também tenho roupas

extras comigo”. Outros concordaram. Parecia que apenas eu precisaria de

roupas novas, visto que não trouxe nenhuma mochila comigo. Então,

resolvi pedir: “Poderiam conseguir roupas como as que uso agora?”.

Amazarak sorriu. “Sim, claro. Se não precisarão de mais nada, vou

me retirar. Retornarei em breve. Descansem agora e reflitam sobre sua

missão. Há toalhas sobre o balcão próximo àquela estátua. Não se

preocupem, pois ninguém além de mim virá aqui. Mas, quando eu retornar,

será a hora de seu encontro com meu senhor”.

“Sim, obrigado”, eu respondi. Amazarak se retirou logo em

seguida. Assim que o Caído sumiu e vista, olhei a redor, notando que

estávamos sozinhos naquela parte das Termas de Lucibel.

“Que situação estranha”, comentou Ansgar, “será que devemos

confiar neles?”.

“Uma vez que estamos dentro do território deles, não temos mais

escolha”, disse Wang, que se afastava do grupo, removendo sua sacola e a

camisa negra. Suas costas nuas mostravam uma bela tatuagem, de um

grande dragão chinês, cujo corpo enrolava-se em uma montanha, e cujas

garras eram mostradas ameaçadoramente.

“Lo Wang está correto”, disse Asphael, que se sentou no chão,

cruzando suas pernas, e colocou a espada ao lado do corpo, deitada. “Se

isto é uma armadilha, então estamos mortos. Nós adentramos na Cidade

Eterna. Se as palavras de Millard forem corretas, então há dezenas de

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Caídos cuja idade, sabedoria e poder superam todas as minhas

capacidades”.

Notei Karina afastar-se do grupo, ainda em silêncio, dirigindo-se

para um canto mais distante da piscina. Observei-a tirar os sapatos e puxar

as pernas da calça, sentando-se à beira da piscina e mergulhando os pés na

água quente. Ela parecia pensativa, distante, desanimada. Porém, a voz de

Fabrizia chamou minha atenção em seguida: “Melhor então jogarmos o

jogo deles, não é?”, ela disse. “Qualquer ofensa que fizermos pode se

tornar um pretexto para agirem contra nós”.

“Tem toda a razão”, disse Al-Malik, que retornava, trazendo uma

toalha branca para si. “Estamos diante daqueles que foram julgados por

nós. Muitos deles nos odeiam. Sinceramente, algo me diz que Amazarak

não deseja nosso mal, mas os olhares de Azubah e Onesimus não me

deixam confortável. Se os mestres não nos desejam mal, não posso dizer o

mesmo de seus servos”.

“Então, tomemos cuidado”, disse Ansgar.

“Não acho que cuidado apenas nos salvará”, completou Absolon.

“Ainda assim, não temos escolha”, disse Al-Malik, “a não ser ter

cuidado”. Em seguida, o Malaki se afastou. “Com licença, vou me limpar.

Não estou acostumado a presenciar a nudez de outros, prefiro limpar-me

sozinho”.

“É”, disse Fabrizia, caminhando em direção às toalhas. “Acho que

farei companhia a Karina, e os homens podem permanecer aqui, juntos”.

“Um momento, Fabrizia”, pedi, “vou falar com Karina. Espere um

pouco antes de ir até lá”.

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“Está bem, Nicodemus”, ela respondeu, sorrindo. “Vou ficar

aqui, vendo os rapazes tomarem banho”, ela disse brincando, descontraída,

mas notei que direcionou o olhar a Absolon. Sorri, concordando, e me

direcionei a Karina.

Dei a volta na piscina, até que encontrei Karina ali, ainda mais

distante do que antes, num ponto que não era visível do local em que o

grupo estava. Ela estava na piscina, refrescando-se sob uma pequena queda

d’água. Fiquei um pouco sem graça por surpreende-la nua, mas por outro

lado, não era a primeira vez que a via assim. Karina jamais teve vergonha

de mostrar seu corpo, embora jamais tenha sido vulgar. Ela sempre agiu

com naturalidade, e eu sabia que ela se afastou do grupo não por vergonha

de mostrar-se, mas sim por vergonha de suas ações. Karina me notou, e

então nadou em minha direção, chegando à borda da piscina, mas manteve

o corpo submerso. “Quer falar comigo, Philipe?”.

Sentei-me no chão e me virei de costas, por respeito a ela. Embora

seu corpo fosse uma visão agradável e acendesse em mim atração, eu não

sentia nada a não ser amizade por Karina, algo que eu não desejaria, de

maneira alguma, profanar. Ela sempre foi uma protegida minha, uma quase

filha, e jamais pensei nela de outra forma. De certa forma, olha-la assim era

mais incômodo do que prazeroso. “Sim, Karina. Sei o quanto está sofrendo,

o quanto sente medo da situação em que está. Mas por que a vergonha?”.

“O que posso fazer, Philipe? Eu não sei, não consigo acompanhar

vocês... Me sinto inútil, tão pequena... Eu não sirvo para isso”, ela

respondeu.

“Não serve para quê, Karina?”, perguntei.

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“Para lutar. Me desculpe, mas é verdade. Eu sou inútil, nunca

desenvolvi nenhuma habilidade voltada para isso. Mal sei portar uma

arma”, ela respondeu, “e vendo vocês... me sinto pequena... incapaz de

ajudar. Do que adianta acompanha-los se me torno um peso que vocês são

forçados a carregar?”. Notei tristeza na voz, que se tornava rouca. Ela

segurava o choro.

“Não sabe portar uma arma? Sei muito bem que Samuel ensinou

você a se defender, que você sabe tanto portar uma arma de fogo como

qualquer arma improvisada”, eu disse. Meu desejo era olha-la em seus

olhos verdes e força-la a ver a verdade, mas continuei evitando virar-me

para ela.

“Sei me defender contra pessoas”, ela disse, “mas e contra o que

encontramos? O que eu pude fazer? No máximo, servi de escudo para

Absolon, e ainda assim, do que adiantou?”.

“Karina, eu entendo como se sente... Sei que é muito boa em tudo

aquilo que gosta de fazer. Sei que conhece os caminhos do mundo como

ninguém, que já ajudou pobres, famintos e desesperados. Me lembro de

cada conto seu, de cada aventura que me contou, até dos perigos que já

enfrentou. Mas você é como eu, dedicada naquilo que gosta, mas inepta

naquilo que teme”.

Ela nada disse. Um silêncio desconfortável se seguiu, e então eu

decidi revelar: “Acho que é hora de pegarmos em armas e aprendermos a

usa-las”.

“O quê?”, Karina perguntou, não surpresa, mas descrente de

minhas palavras.

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“Em parte, decidi isso quando vi Lorde Asphael lutar. Ele

mesmo disse que é preciso aprender a arte da guerra, mesmo que não seja

para usa-la. Também é um incentivo ver a força de vontade de Absolon.

Ele não é diferente de nós, mas ao mesmo tempo está decidido em fazer o

que for preciso fazer. Mas o que realmente me fez pensar nisso é esse

sentimento que compartilho com você: a sensação de que não somos

realmente úteis”.

“Você é útil, Philipe, sabe muitas coisas”, ela respondeu.

“Mas não sei pegar numa arma, nem sei usa-la quando for preciso.

Karina, eu não queria ter de aprender isso, mas cem anos já se passaram, e

não vejo mais como evitar esse conhecimento. Al-Malik disse que é preciso

estarmos dispostos a nos sacrificar, e a isso tanto eu quanto você estamos

dispostos. Mas não podemos nos sacrificar em vão. Precisamos saber lutar,

mesmo que tentemos evitar isso a todo custo”.

“Eu não queria ter de pegar em uma arma”, Karina murmurou.

“Nem eu, Karina. Eu não quero, mas às vezes é preciso. Se for para

defendermos algo precioso, nós precisamos”.

De repente, uma terceira voz interrompeu nossa conversa. “Ora,

então é isso que veio falar com ela?”. Virei-me para encarar Fabrizia, que

se aproximava, seus cabelos negros soltos e seu corpo escondido apenas

pela toalha branca.

“Pedi que esperasse, Fabrizia”, eu disse, um tanto chateado por ela

ter desobedecido.

“Me desculpe, mas vocês estavam demorando tanto que achei que

estava rolando alguma sacanagem”. Ela sorriu, piscando. “Ok, ok, na

verdade, eu quero tomar um banho, e você estava demorando muito”.

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“Já estou de saída então”, eu disse, me levantando.

“Pode deixar que irei continuar sua conversa com Karina, Nick”,

disse Fabrizia, sentando-se à beira da piscina, mergulhando seus pés na

água. “Eu entendo também o que sentem, mas acho que se eu falar de

mulher para mulher, ela pode compreender um pouco melhor”.

“Obrigado”, eu respondi. Notei que Fabrizia parecia mais confiante

do que no começo... Talvez ela estivesse recuperando sua força de vontade,

descobrindo a si mesma... talvez por ter encontrado alguém como ela e por

quem eu acho que ela sentia algo, mas ela estava diferente. Não só mais

confiante, como menos séria, mais descontraída, mesmo à face dos perigos

que enfrentávamos. Mas também porque no começo éramos todos

estranhos e, após tudo o que passamos, agora Fabrizia confiasse o

suficiente em nós para revelar sua verdadeira face.

Caminhei, seguindo a borda da piscina, até o local onde os outros

estavam, deixando Karina e Fabrizia para trás. Wang, vestido apenas com

roupa de baixo, estava sentado sob uma queda d’água, observando Absolon

e Ansgar, ambos sem camisa, treinarem. Absolon empunhava a espada de

Asphael, enquanto Ansgar, com movimentos lentos, o ensinava a portar e

mover a espada. Ambos conversavam enquanto treinavam, e eu notava

satisfação no olhar de Absolon. Já Asphael permanecia ali, na mesma

posição em que estava quando saí, sentado, as pernas cruzadas, orando ou

meditando. Talvez por efeito de magia, ele parecia estar limpo, como se sua

meditação o purificasse em corpo e alma. Eu notava sua roupa limpa, sua

pele perfeita, e a poeira do deserto e o sangue derramado espalhando-se ao

redor do local em que ele estava.

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Tirei meus sapatos e também sentei-me à beira da piscina. As

águas límpidas emanavam vapor e eu fiquei fitando o fundo branco da

piscina. Os sons de água e de metal se chocando gentilmente se repetiam e

eu pensava em tudo o que passamos. Nossa jornada ia continuar... Notei

que meus companheiros agora pareciam mais calmos, suas forças

parcialmente recuperadas por pouco menos de meia hora de descanso.

Talvez fosse bom eu também relaxar. Tendo isso em mente, decidi tirar

minha roupa e mergulhar, deixando a água levar para longe os medos que

me atormentavam...

E, mal mergulhei nas águas das termas, minha mente pôde pensar

claramente. O que tínhamos passado até agora? Nós desafiamos a vontade

dos governantes do Inferno. O que nós oito poderíamos fazer diante dos

poderes que agora estariam comprometendo nossa missão? Talvez Lúcifer

e os Caídos de Oostegor pudessem se tornar poderosos aliados... se é que é

esse o objetivo de Lúcifer.

O tempo passou rápido. Amazarak enviou um servo, que me trouxe

roupas novas. Um a um, cada um de nós foi se preparando. Me senti como

no começo, quando estávamos prestes a adentrar em Dur Sharrukin. Mas

agora, cada um de meus companheiros originais parecia um pouco maior,

um pouco mais preparado do que no começo.

Assim que terminei de me vestir, fui até eles, e pude fitá-los um a

um. O primeiro que vi foi Absolon, que agora parecia mais adulto. Seu

tênis era o mesmo, bem como sua calça, ainda suja de areia, mas agora, por

cima de uma camiseta negra, passava não só as alças de sua mochila, mas

também a tira de couro que prendia às suas costas a bainha de sua nova

espada, uma lâmina com dois gumes, de tamanho médio e sem curvatura,

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com uma empunhadura prateada ricamente ornada. Seus olhos azuis

agora brilhavam com determinação e não medo, e ele parecia emanar uma

aura de poder que antes não o acompanhava.

Ao lado de Absolon, estava Fabrizia. Mais uma vez, ela tinha uma

bandana, desta vez negra, na cabeça, e seus cabelos estavam presos numa

única longa trança que caía quase até sua cintura. Ela também vestia o

mesmo sobretudo que usou durante nossa jornada, cujas costas já estavam

rasgadas devido às muitas vezes que suas asas se abriram. Notei que ela

ainda levava a espingarda nas costas, mas desta vez deixava a faca de

combate mais à vista.

Ansgar vestia uma jaqueta negra por sobre uma camisa branca, e

ainda usava calças militares e botas. Agora, porém, ele deixara a mochila

para trás, assim como as roupas usadas. Seu único pertence agora era a

espada, que levava com orgulho na cintura.

Al-Malik usava uma roupa parecida com a original. Porém, seus

trajes, tipicamente árabes e de cores claras, agora eram acompanhadas por

uma mistura de sobretudo e capa, sem mangas, e de cor marrom escura.

Mais uma vez, ele enrolou panos na cabeça, formando um turbante que

escondia seus longos cabelos. Sob a capa-sobretudo, ele escondia sua fiel

cimitarra.

Karina parecia mais calma agora. Vestia uma camiseta vermelha e

calça cinza escura. Levava a pistola num coldre no peito, e prendia os

cabelos vermelhos em um rabo-de-cavalo.

Já Lo Wang permanecia com roupas negras, idênticas às que

originalmente usava. Ele apenas trocara as roupas rasgadas por outras

novas. Sua lâmina negra permanecia embainhada em sua cintura.

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Por fim, estava Asphael que finalmente levantava-se de sua

meditação. Suas roupas estavam restauradas, e seu aspecto emanava saúde

e confiança. Sua face serena era apenas a de um homem de idade, mas

mostrava que carregava uma grande força dentro de si.

Pouco conversamos depois, mas não demorou para que Amazarak

viesse nos buscar. Ao seu lado, vinham Azubah e Onesimus.

“Estão prontos?”, perguntou Amazarak, sua voz ainda serena e sua

face calma. Os olhares de Azubah e Onesimus, porém, mostravam

descontentamento.

“Sim, estamos”, respondi.

“Venham”, Amazarak disse, sorrindo.

Quando deixamos as Termas, adentramos novamente o grande

salão de entrada de Oostegor. Desta vez, porém, o longo salão era

preenchido por atividade, conforme dezenas de Caídos caminhavam por

ele. Subimos as escadas laterais até a sobreloja do salão, e então

adentramos por um grande portão. Uma longa escadaria, que subia

espiralando pela grande torre de Oostegor, estava à nossa frente. “As

escadas de Oostegor são longas e dolorosas, como o caminho de cada

Decaído”, disse Amazarak, “este é o preço que Lúcifer cobra daqueles que

o procuram. Mas desconcentrem suas mentes, não pensem nos degraus à

frente, e a jornada será curta”.

A escadaria de fato parecia interminável, embora nossos corpos

imortais não se cansassem. Ela era escura, e Amazarak ergueu uma tocha,

que brilhava em fogo espiritual, de cor prateada. A escadaria passava por

várias janelas e vitrais, através dos quais podíamos ver a extensão da

Cidade Eterna ali fora. Também passava por diversos portões, os quais

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Amazarak nomeava um a um. O portão da morte, o portão do

renascimento, o portão da glória, o portão da perda, o portão da queda...

Era como se cada portão levasse a uma parte diferente de Oostegor, e

conforme ascendíamos em Oostegor, nos aprofundávamos nos caminhos

dos Impuros. Quando a jornada parecia interminável, e a Cidade Eterna lá

fora parecia se perder na escuridão da caverna, salvo por algumas fracas

luzes lá embaixo, Amazarak parou diante de um portão dourado. “O portão

da realização”, disse, conforme a luz do fogo espiritual iluminou o portão.

Reparei, porém, que a escadaria negra ainda continuava adiante, mesmo

que nossa caminhada terminasse ali.

O portão da realização se abriu, iluminando a escura escadaria com

a forte luz do salão adiante. Era uma grande antesala, o teto estava a mais

de quatro metros de altura. Millard e Surial nos aguardavam ali. Um belo

vitral decorava toda a face leste da sala, expondo a imagem de um anjo e

um homem batalhando. Millard nos cumprimentou, e Amazarak continuou

a caminhada, até o portal que se localizava no lado oposto do corredor.

“Daqui em diante, vocês caminharão sozinhos”, disse Amazarak.

“O quê? Sozinhos?”, perguntou Azubah, claramente contrariada,

“Não temos sequer o direito de saber o que o Mestre deseja com eles?”.

“Não, não têm”, respondeu Amazarak, calmamente, abrindo o

portal. Ali adiante estava um grande salão escuro. “Entrem, caros amigos”,

disse Amazarak a nós, “e encontrarão respostas”.

Assim que os oito atravessaram o portal, Amazarak fechou a

pesada porta atrás de nós. O som ecoou na sala. A escuridão era densa,

sobrenatural, mas no centro estava uma mesa iluminada por velas, dispostas

em belos castiçais, também ricamente esculpidos. Caminhamos até ela. O

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silêncio era tanto que nossos passos emitiam ecos. Havia nove cadeiras

ao redor da grande mesa, que tinha um formato retangular. Quatro cadeiras

se dispunham em cada uma das duas bordas maiores da mesa, e numa das

menores estava uma cadeira maior e mais suntuosa, quase um trono.

Olhávamos uns aos outros, em silêncio, sem saber se devíamos nos

sentar. Foi então que o senti. Não como um grande sol iluminado, nem

como uma treva eterna, mas como uma grande, infinita penumbra. Não

senti nem glória, nem terror, mas uma profunda melancolia, acompanhada

de uma espécie de silêncio espiritual que não consigo definir bem com

palavras. Um portão se abriu, do lado oposto ao do portão pelo qual

entramos, trazendo um pouco de luz à escuridão. E ali, vimos o vulto de um

homem. Ele. O portão se fechou, ecoando. Os sons seguintes eram de seus

passos. E eu sentia aquele ser, que caminhava como homem, mas tinha

passos de gigante, se aproximar, sua presença quase nos esmagando, nos

forçando a baixar nossas cabeças. E ainda que houvesse um resto de glória

naquela presença, uma luz fraca em meio à penumbra, eu também podia

sentir uma pequena treva, ocultando algo que eu não podia decifrar.

Ele se sentou em seu trono, diante de nós, e as luzes das velas o

iluminaram por completo. Ali, eu vislumbrei, pela primeira vez, a face do

Mais Belo dos Anjos. E a Estrela da Manhã era como uma forma perfeita,

seu rosto impecável, sem marcas ou falhas, e seus olhos, negros, brilhavam

com sabedoria e poder. Seus longos cabelos negros caíam até a altura dos

ombros, perfeitamente penteados. Sua face era máscula, viril, mas ainda

assim suave, bela. Sua pele, levemente morena, não era maculada por barba

ou pêlos faciais, salvo as sobrancelhas. Ele vestia um manto negro com

detalhes brancos. Porém, sua beleza e perfeição eram maculadas pelas

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sombras tremulantes geradas pelas velas. Aquela escuridão, porém,

apenas o tornava mais divino, mais misterioso. Assim que se sentou,

Lúcifer apoiou os cotovelos nos braços de seu trono, e uniu as pontas dos

dedos das mãos, abaixando um pouco a face para observar suas próprias

mãos. “Então”, disse Lúcifer, sua voz soando ao mesmo tempo divina e

humana, poderosa e suave, “vocês são os campeões que Metatron escolheu.

Vocês são aqueles destinados a encontrar uma resposta, um sentido. São os

que foram escolhidos para impedir que os planos de um jogador insano se

concretizem”.

Silêncio se seguiu. Lúcifer ergueu a cabeça, continuando: “Mas o

que sabem sobre os atos daqueles que têm manipulado vocês? O que sabem

sobre verdades e mentiras, ou sobre os reais perigos que os cercam?”.

“Se você sabe as respostas”, eu interrompi, “diga-nos”.

Lúcifer me fitou. Sua feição não mudou. Ele não parecia nem

contente, nem raivoso, não demonstrava nada a não ser frieza. “São as

respostas que irão destruí-los, jovens Celestiais. É a missão que significa

seu fim. Vocês estão numa jornada suicida. Pois contaram mentiras a

vocês. Continuem em seu caminho, e ocorrerão calamidades. Eu não os

trouxe aqui por compaixão, mas porque o futuro deste mundo depende de

suas ações”.

“Conte-nos o que sabe”, eu pedi novamente.

“Que assim seja”, Lúcifer disse, “mas uma vez que tenham ouvido

minhas palavras, espero que estejam preparados para fazer uma escolha.

Pois, para salvarem este mundo, vocês não podem salvar seu querido

Primus. Para que este mundo viva, Uriel-chamado-Veritatis não deve ser

salvo!”.

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Capítulo 14: A Estrela da Manhã

Perguntas subiram à minha mente. Dúvidas, indagações, era tudo o

que eu podia pensar. Ainda assim, eu mal tinha coragem de dizê-las. Á

frente, eu via apenas o olhar de determinação da Estrela da Manhã. Seu

rosto ainda era frio. As sombras tremulantes o tornavam quase demoníaco,

mas ainda assim um ar divino o cercava. E sua presença era tamanha, a

ponto de quase me forçar a manter-me calado. Mas eu então arrisquei

indagar: “Por quê?”.

O Príncipe dos Caídos abaixou a cabeça por um instante,

escondendo seus olhos sob os cabelos que caíram-lhe à face. Suas mãos

permaneciam unidas, à frente da cabeça, os cotovelos ainda apoiados nos

braços de seu trono. Então, ele ergueu o rosto, fitando-me. Seus olhos

negros pareciam brilhar como fogo, mas o brilho logo desapareceu. Então,

Lúcifer disse: “Vocês estão entrando em um jogo perigoso, controlado por

criaturas cuja natureza vocês não podem compreender. Estão mantendo-nos

constantemente sob pressão, sob tensão, exigindo que corram contra o

próprio tempo rumo a seu objetivo, sem tempo para indagar ou para

questionar suas motivações, seus propósitos. Vocês estão sendo

enganados”.

“E que tempo temos para gastar com charadas?”, perguntei,

continuando: “Enquanto descansamos ou conversamos, Shiva avança, sem

que ninguém o impeça. Viemos aqui atrás de respostas, para continuarmos

em nossa missão...”.

“Vocês foram enganados”, interrompeu-me Lúcifer. “E sua missão

está fadada ao fracasso. Digam-me, pequenos benfeitores, porque

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acreditam que sua sobrevivência, até este ponto, se deve às suas

próprias habilidades?”.

Calei-me, e então comecei a compreender a revelação de Lúcifer.

Outros, porém, ainda não podiam compreender. Absolon a princípio

gaguejou, mas então ergueu a voz, tentando demonstrar determinação:

“Aonde quer chegar? Quer dizer que não sobrevivemos graças a nossos

próprios esforços?”.

Lúcifer voltou-se para o jovem Princeps. Seu olhar parecia agora

preencher-se de ódio, não por Absolon, mas talvez pelo seu Clero, o Clero

fundado pelo maior dos inimigos do Príncipe dos Caídos. “Em parte, jovem

Princeps, seus esforços foram suficientes para mantê-los todos vivos.

Enfrentaram inimigos poderosos, e é surpreendente que todos tenham

sobrevivido até aqui. Mas agora os questiono. E, se pensarem

profundamente nas respostas, saberão que estou correto”.

Lúcifer se ergueu do trono, e sua voz se intensificou: “Vocês

acham realmente que poderiam derrotar Íblis Al-Qadim? Vocês acreditam

cegamente que Shiva, o Destruidor, fugiu por medo?”. Lúcifer então

apontou para mim, seus olhos brilhando como fogo, seu corpo iluminando-

se fracamente, como um distante sol poente vermelho-sangue. “Eles o

querem vivo, Veritatis Perquirator. Por que, sem você, não alcançarão seus

objetivos. Esta é a única verdade. Dentro de você estão as respostas que

todos queremos”.

“A localização de Veritatis?”, perguntei.

“Sim”, Lúcifer respondeu.

“Mas Íblis entrou em minha mente, roubou a resposta de mim”,

respondi. “E agora, eles têm a informação que eu não consigo encontrar”.

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Page 301: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Mentiras, jovem Arcanjo”, disse Lúcifer, sua voz voltando a

um tom calmo, sua aura desaparecendo, conforme ele se sentava em seu

trono, retornando à posição original. “Mentiras fortalecidas por verdades.

Pois Íblis revelou a verdade a vocês, exceto quando disse a razão de ter

atraído-os a seu templo. Desde que entrei neste recinto, pequeno Arcanjo,

eu estive observando sua mente, lendo seus pensamentos, conhecendo seu

passado e seu futuro. Sei agora seus sonhos e forças, suas vontades e

desejos, suas fraquezas e temores. Mas há algo que não posso ler, não

importa o quanto eu tente. Algo que supera todo o meu poder, e diante

disso não sou nada”.

Arregalei meus olhos. “O que há dentro de mim?”, perguntei.

“A vontade de Metatron! Ao tentar ver o que ele te mostrou, senti

apenas dor e fogo, e a chama divina tocou minha alma, me forçando a

desistir. É impossível roubar de você aquilo que Metatron revelou”.

Arrisquei revelar minha conclusão: “Então, o único que pode

encontrar Veritatis...”.

“É você”, Lúcifer completou, “mas esta é uma resposta que você

não deve buscar”.

“Por quê?”, perguntei.

“Por que estão todos os olhos do Inferno agora se voltam sobre

você, Arcanjo. Sinta! Feche os olhos e sinta quantos olhares se voltam a

Oostegor agora! O tigre e o bode o observam, esperam o momento certo, a

revelação final. Todos querem a resposta que apenas você tem. Um segredo

é um segredo apenas enquanto não puder ser decifrado. No momento em

que outros souberem a resposta, eles também poderão saber, e tirarão esse

segredo de você”.

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Page 302: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Absolon, porém, tentou contestar a Estrela da Manhã. “Mas, se

nós pudermos alcançar o velho antes de nossos inimigos? E se pudermos

leva-lo ao Éden antes que Shiva o alcance?”, ele disse, esforçando-se para

erguer a voz diante de Lúcifer.

“Uma tola esperança”, Lúcifer respondeu. “Vocês acham que eles

não planejaram seus movimentos? Vocês esperam superar a astúcia e os

dons dos Grandes Lordes do Inferno? Essa esperança é a arma deles, e essa

ingenuidade será a sua perdição”.

“Devemos desistir?”, perguntei a mim mesmo, em voz baixa e, em

seguida, repetindo a pergunta mais alto, a meus companheiros.

“Por que acreditar nele?”, perguntou Ansgar. “O que nos garante

que ele nos diz a verdade? O que nos garante que ele não está ao lado do

Inferno?”.

Lúcifer ergueu sua voz, mas não se mostrou ofendido: “Eu faço

muitas barganhas com o Céu e com o Inferno, Venator, mas não pertenço a

nenhum deles. Sou minha própria sombra, e ninguém a não ser eu dita

meus atos. Não nego que negocio com os Infernais, mas também o faço

com seu próprio povo. Não pertenço nem às trevas nem à luz, e abomino

ambos igualmente. Mas, para meu povo sobreviver, para a Corte Negra se

manter, precisamos manter diplomacia com ambos os lados, ou seríamos

massacrados por um deles. Tentem julgar minhas palavras não porque vêm

de mim, mas porque digo a verdade. Eu sei de muitas coisas porque tenho

meus elos infernais, mas acredite, o que faço aqui se volta contra os

interesses infernais. Arrisco meu próprio povo ajudando vocês, mas como

eu disse, não o faço por compaixão, mas para sobrevivermos”.

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“Nós temos uma missão a cumprir”, eu disse, “não podemos

desistir dela. Nós iremos encontrar a alma de meu Primus”.

Lúcifer balançou a cabeça negativamente. “Por que se recusam a

ouvir minhas palavras? O que acha que poderão fazer, quando os Grandes

Lordes conseguirem o que querem? O que os leva a cometer essa

loucura?”.

“Fé”, respondi, “um amigo disse que passaríamos por grandes

provações, mas que não estaríamos sozinhos. Você disse que Metatron

protege aquilo que sei, e acho que isso basta para mim ter fé que, no final,

seremos bem-sucedidos. Não vamos estar sozinhos quando precisarmos”.

Asphael sorriu com satisfação diante de minhas palavras. Meus

companheiros mostraram reações diversas. Notei apreensão nos rostos de

Karina e Wang, mas satisfação em Absolon e Ansgar. Fabrizia estava

receosa, mas ao notar a reação de Absolon, também sorriu. Al-Malik,

porém, continuou sério e calado.

“Vocês nunca mudam, nunca crescem”, disse Lúcifer,

resmungando a si mesmo. “São como mortais... cegos, tolos, vivendo de

crenças infundadas. Vocês estão sozinhos. Onde estão seus brilhantes

Primi? Onde estão seus poderosos Arcanjos? Por que Metatron escolheu

vocês e não outros mais capazes?”.

“Você não tem o direito de critica-los”, Ansgar ergueu a voz.

Al-Malik, ainda sério e quieto, disse a Lúcifer: “Quem é você para

criticar a maneira como agimos? Não é mais um de nós, caiu por ser

incapaz de nos compreender, porque se deixou cegar por poder. Sei que

disse a verdade até aqui, mas é apenas a sua verdade, aquilo em que

acredita. Você não tem o direito de condenar nossas crenças e atitudes”.

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O olhar de Lúcifer ardeu em ódio. “Eu sempre agi em prol de

uma causa maior. E suas palavras são a prova de que minhas atitudes

sempre foram corretas. Eu sei daquilo que não sabem, reparto esse

conhecimento com vocês, dou um alerta, e o ignoram por completo?”.

“Agradecemos sua preocupação”, respondi, “mas não somos

obrigados a cumprir com sua vontade. Temos o direito de escolher nosso

caminho”.

A voz de Lúcifer se elevou, ele se ergueu de sua cadeira,

novamente iluminando-se em vermelho-sangue. “Eu não vou permitir que

ponham todos os meus esforços a perder por causa dessa cegueira”.

Asphael se ergueu, jogando sua cadeira para trás e sacando sua

espada, e fitando o Príncipe dos Caídos: “Eu posso morrer aqui, Lúcifer

Estrela da Manhã, mas não vou permitir que sequer toque em meus

companheiros!”.

“Isto não é coragem, mas tolice”, respondeu Lúcifer, fitando

Asphael. E eu percebia que todo o poder do Arcanjo não era nada agora...

Se antes ele era uma grande luz, agora a penumbra o ofuscava até quase se

perder. “Enquanto desejarem continuar sua missão, eu os proíbo de deixar

Oostegor. Nenhuma porta se abrirá a vocês, e nenhuma janela poderá ser

atravessada. Nenhum homem ou mulher neste reino jamais irá ajuda-los, e

nenhum pedido de socorro será ouvido fora destas paredes. Vocês não

deixarão este lugar,enquanto não tiverem o desejo sincero de abandonar sua

obrigação”.

“Você não pode nos obrigar a isso!”, respondeu Absolon, também

se erguendo.

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“Eu os estou protegendo, jovem Princeps”, respondeu Lúcifer,

calmamente. “O que vocês fariam em meu lugar? O que fariam se

soubessem que iriam falhar, mas ainda assim se recusassem a acreditar

nisso? Vocês Celestiais falam em fazer algo maior em troca de sacrifício

pessoal, mas agora se mostram incapazes de abandonar um Celestial para

proteger todo este mundo. Não vêem que estão fazendo a vontade dos

Grandes Lordes? Eu posso ser chamado de vilão, posso ser odiado, mas

tenho firme crença naquilo que preciso fazer. Quer acreditem em mim... ou

não”.

“Fará conosco o que quis fazer com a humanidade?”, perguntou

Asphael, ainda empunhando sua espada. “Nos privará da escolha? Nos

forçará à sua vontade?”.

“E eu por acaso estava errado naquela época, Asphael Veritas?”,

perguntou Lúcifer. “Ou vocês se tornaram tão cegos por sua preciosa luz,

que são agora incapazes de ver o mundo dos homens? O que o homem se

tornou quando deixado para viver suas próprias decisões? Este mundo está

morrendo, Asphael Veritas, e é culpa do homem. Íblis bem disse uma

grande verdade, ao dizer que o homem está crescendo fora de controle, até

sufocar toda a Criação. Mas ele não cresceu em grandeza interior, apenas

em poder. E poder corrompe. A humanidade é uma abominação, que

poderia gerar maravilhas, mas planta apenas guerras, fome e morte. Eu

queria tornar este mundo um segundo Éden. Tentei fazê-lo pela força sim,

mas os fins justificam os meios, e eu não me importava de sacrificar meu

nome em troca desse objetivo maior”.

“A humanidade cresceu corrupta porque o Inferno a manipulou”,

respondeu Absolon.

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“Não, o homem cresceu corrupto porque, ao invés de lidera-lo,

vocês decidiram encher-lhe de parábolas e restrições. Resolveram contar-

lhe histórias e ficaram protegendo-o das agruras do mundo. Deram-lhe

profetas e mandamentos, mas nunca as respostas que eles realmente

desejavam”.

“Só cresce aquele que aprende por si mesmo”, contestou Asphael,

“nenhum destes jovens Celestiais se tornará grande se não enfrentar o

mundo e conseguir suas respostas com seu próprio esforço. Eles jamais se

tornarão grandes Arcanjos se os grandes Arcanjos estiverem sempre

presentes para fazer o trabalho por eles. Assim também ocorre com a

humanidade. O homem deve se tornar grande com o nosso exemplo, não

por causa de nossa vontade”.

Lúcifer ergueu a voz, mas ainda se mantinha controlado. “Eu

conheço bem a filosofia celeste, Arcanjo Asphael, mas pela prática sei que

ela não funciona com a humanidade. O homem, se não for controlado, não

segue a ninguém a não ser a si mesmo...”. Então, de repente, ele parou,

olhando para trás, sua face demonstrou surpresa. Imediatamente, percebi

que havia algo errado.

“O que houve?”, perguntei.

Lúcifer olhou para os lados, mexendo a cabeça lentamente. Ele

fechou os olhos, e sua face demonstrou raiva. “Há uma sombra

esgueirando-se em Oostegor”.

“O quê?”, perguntei, surpreso, mesmo compreendendo o

significado.

“Eles vieram atrás de vocês”, disse Lúcifer, então, ele ergueu a voz:

“Fiquem aqui! Pensem sobre tudo o que conversamos! Reflitam! Eu

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invocarei os exércitos de Oostegor e expulsarei esta sombra de minha

cidade!”. Então, Lúcifer nos deu as costas. Seu manto branco agora se

erguia como uma capa conforme, a passos rápidos, ele se afastava. A porta

adiante abriu-se, trazendo luz ao salão escuro, e assim que Lúcifer

atravessou-a, ela se fechou, emitindo um som ecoante.

E ali, nos vimos sozinhos novamente, ao redor da mesa, cercados

por escuridão, iluminados por velas. “O que acham de tudo isso?”,

perguntei a meus companheiros.

“Vamos sair daqui”, disse Ansgar. “Não temos porquê ficar aqui”.

“Não podemos”, respondi, “as palavras de Lúcifer não foram

apenas vento, mas uma maldição. Não seremos capazes de deixar Oostegor,

por mais que tentemos”.

“Somente a vontade de Lúcifer ou um poder igual ou maior poderia

nos libertar agora”, respondeu Asphael, que baixava finalmente a sua arma.

“A questão não é essa”, disse Al-Malik, ainda sério, pensativo. Ele

não havia se levantado da cadeira, e agora punha as mãos diante do rosto,

apoiando os cotovelos sobre a mesa. “O que mais me assusta é que Lúcifer

não mentiu. Quando Íblis nos falou, senti um terror não-natural... algo tão

profundo que não pude separar verdades de mentiras, mas Lúcifer não

parecia me manipular. Ele queria realmente nos convencer, e disse apenas

verdades”.

“Apenas verdades, ou apenas aquilo em que ele próprio acredita?”,

perguntou Asphael.

“Talvez um, talvez outro, mas não podemos negar que Lucibel é

um ser de grande conhecimento”, disse Al-Malik. “Ele pediu que

julgássemos suas palavras, não que o julgássemos. Ele estava certo. Me

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sinto estranho por concordar com ele, mas aí penso em julgar apenas as

palavras e não quem as conta... E realmente ele parecia sincero”.

“Mas não podemos desistir”, disse Absolon.

“Não pretendo desistir”, disse Asphael.

“Nem eu”, respondeu Ansgar.

O som de portas se abrindo ecoou em seguida. Não o portal pelo

qual Lúcifer deixou a sala, mas aquele pelo qual originalmente entramos.

Luz inundou o salão, conforme vimos silhuetas de pessoas entrando... Não

uma ou duas pessoas, mas sim dúzias. Seus passos ecoavam, fazendo

parecer que um exército se aproximava. Viramo-nos para os recém-

chegados, e aqueles que ainda estavam sentados se levantaram. Ansgar,

Absolon, Wang e Al-Malik sacaram suas espadas, preparando-se para se

defenderem, enquanto Asphael mais uma vez ergueu sua lâmina,

empunhando-a firmemente. Até mesmo Fabrizia puxou sua faca de

combate, até agora mantida guardada.

Silêncio se seguiu por alguns segundos, conforme os recém-

chegados se organizavam. Uma voz ecoou, murmurando em Fabulare

arcaico: “Faça-se luz”. Em seguida, tochas iluminaram-se nas paredes, uma

a uma, rapidamente revelando a verdadeira extensão do salão antes escuro.

As paredes não continham janelas, mas eram adornadas por desenhos de

figuras poderosas empunhando espadas e lanças, usando elmos e

armaduras, feitas em auto-relevo. Ali, em frente à multidão, estava Millard,

o autor do feitiço, uma de suas mãos erguida.

“Mil perdões pela intromissão”, disse Millard, “mas recebemos

ordens”. Neste momento, a mão feminina de Azubah tocou seu ombro, e

Millard deu licença para que ela tomasse a frente. Também Surial,

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empunhando sua foice metálica, pôs-se à frente do grupo, ao lado de

Azubah.

“Arcanjo Philipe Nicodemus e sua Falange”, disse Azubah, seus

olhos queimando em ódio, suas palavras firmes e decididas, “vocês nos

ofendem com sua presença aqui. Meu senhor Lúcifer ofereceu-lhes

respostas, deu-lhes a nossa hospitalidade. E sua resposta foi negar a

sabedoria de suas palavras. Por decreto da Estrela da Manhã, vocês não

sairão daqui com vida!”.

“Os três à frente são poderosos”, murmurou Asphael para nós,

“mas os que os seguem são jovens. Há algo mais aqui, porém, não

compreendo”. Então, Asphael ergueu a voz, respondendo a Azubah: “Seu

senhor nos garantiu passagem segura por sua casa! Você não o direito de

nos ameaçar, Impura! Suma de nossa frente, antes que seu mestre retorne e

descubra a sua traição”.

O ódio em Azubah cresceu. “Como ousa falar comigo assim?”. A

multidão atrás dela, composta de cerca de trinta Anjos Caídos, ergueu

armas, gritando com raiva. E imediatamente, tive uma revelação, conforme

ouvi sussurros ecoando na sala. Sussurros inumanos, monstruosos, quase

incompreensíveis, mas que emitiam uma mensagem de ódio que apenas eu

podia ouvir. “Ele os ridiculariza!”, diziam os sussurros, e a voz de Azubah

os repetia: “Eles nos ridiculariza! Os ‘Puros’ se imaginam superiores a nós,

nos expulsaram, nos humilharam! Aqui temos a chance de destruir dois

grandes Arcanjos e toda a escória que os protege!”. A multidão gritou,

brandindo armas. “Mas deixem aquele vivo, a Estrela da Manhã deseja algo

que somente ele possui”, ela completou, apontando para mim. Azubah deu

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um passo à frente. “Entreguem-se a seus destinos, rendam-se, e

morrerão rapidamente”.

Asphael tomou a frente, colocando sua lâmina diante do corpo,

firmemente segurando a espada com ambas as mãos. “Terão de passar por

mim antes de tocarem em um deles”, disse o Arcanjo. Azubah riu,

caminhando em direção a Asphael. O Arcanjo, a passos lentos, se

aproximava da mulher.

“Que assim seja”, respondeu Azubah. Ela abriu bem os braços,

mostrando suas maças negras, que em seguida incendiaram-se em chamas

negras. Senti um vento frio soprar, mas ao mesmo tempo notei o poder de

Asphael crescer e, com ele, um brisa quente. Os poderes dos dois de ambos

pareciam quase iguais... quase. Antes que eu pudesse avaliar direito o poder

de ambos, ouvi novamente os sussurros. “Matem a todos”, a voz

monstruosa ecoou em minha mente.

Três dezenas de Caídos urraram gritos de batalha, empunhando

lanças, espadas e machados. À frente, Surial deu o primeiro passo,

empunhando sua foice prateada, símbolo da morte. Seu manto negro

ergueu-se devido à velocidade com que corria. Atrás dele, a horda de

Caídos o seguida.

“In nomine Veritas!”, gritou Asphael, jogando-se para a frente,

traçando um arco horizontal com sua lâmina. Azubah saltou para trás,

escapando por poucos milímetros da espada do Arcanjo. A multidão

passava pelos dois combatentes, avançando furiosa, mas sem perturba-los.

Quando a lâmina de Asphael passou por Azubah, a mulher avançou,

erguendo a maça da mão direita, mirando contra a cabeça do Arcanjo.

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“Cubram-me”, disse Ansgar, vendo a multidão se aproximar

furiosa. Então, notei algo se manifestar... Uma aura tímida, mas que nos

fortalecia, me senti mais atento e menos hesitante, mais corajoso, e percebi

que aquilo vinha de Absolon. Ele estava usando o poder de seu Clero.

“Será uma honra”, respondeu Absolon. Ansgar avançou e, com ele, fomos

todos nós.

Os Caídos também avançaram, seus gritos ecoando, formando uma

cacofonia infernal. Surial ergueu sua foice, saltando à frente do grupo,

pronto para atingir o Venator que avançava. Porém, sua foice foi atingida

em pleno ar pela lâmina de Wang, que saltou para interceptar o ataque do

Caído. O impacto das armas fez um estrondo, e, em seguida, ambos foram

lançados violentamente contra o chão, caindo desajeitadamente.

O Venator não parou, continuando seu avanço. Ele segurou sua

arma com ambas as mãos, colocando-a à esquerda do corpo. Sua lâmina

banhou-se em Fogo Celestial. Um relâmpago percorreu a sala em seguida,

vindo das mãos de Fabrizia, atingindo a multidão à frente. Alguns caíram

diante da fúria elétrica, mas aquela última distração foi suficiente para que

Ansgar alcançasse o bando furioso. Um Caído ergueu sua espada para

atingir Ansgar, mas o Venator foi mais rápido. Um arco de chamas celestes

traçou o golpe de Ansgar, que percorreu a barriga de um Caído, cortou ao

meio aquele que tentava ataca-lo e ainda rasgou o peito de um terceiro.

A maça de Azubah errou a cabeça de Asphael por pouco, deixando

um rastro de chamas negras em pleno ar. O Arcanjo, após o golpe

horizontal que dera, recuou, mas continuou a girar o corpo, num

movimento incrivelmente rápido. Sua lâmina brilhou em luz branca e,

conforme o movimento de seu corpo completava 180 graus, Azubah teve de

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abaixar-se para impedir que sua cabeça fosse decepado pelo segundo

golpe de Asphael.

Enquanto isso, Wang levantava-se do tombo que sofrera. Surial,

porém, fora mais rápido, erguendo-se num pulo e preparando a foice para

um novo ataque. A lâmina de Surial avançou contra a cabeça de Wang, mas

Al-Malik interviu, barrando o caminho da lâmina com sua espada. O

impacto das armas fez com Al-Malik recuasse, porém deu tempo o

suficiente para que Wang recuperasse seu equilíbrio e se preparasse para o

combate que viria.

E então começou.

Um estrondo foi emitido quando a espada de Absolon interceptou a

lâmina de um Caído, prestes a atingir Ansgar pelas costas. Por sua vez,

Absolon era protegido por Fabrizia, que rasgou a barriga de um outro

oponente que tentava se aproximar do jovem Princeps pelo flanco. Um

Caído, avançou contra Ansgar, erguendo um grande machado sobre a

cabeça. Antes que alcançasse o Venator, este avançou com a espada diante

do corpo, largando-a assim que sentiu a lâmina penetrar a frágil carne do

oponente. A lâmina atravessou o peito do Caído, o Fogo Celestial

cauterizou suas entranhas, e o inimigo tombou sobre outro Impuro que

vinha logo atrás, a lâmina da espada penetrando no ombro do segundo. A

espada de Absolon bloqueou outra lâmina, desta vez dirigida ao próprio

Princeps. A força do Caído, porém, fez com que o Absolon recuasse,

perdendo o equilíbrio por instantes. O Caído avançou, erguendo a lâmina,

mas Fabrizia intercedeu novamente. A faca da Xamã rasgou a garganta do

Caído, forçando-o a recuar. Porém, mais e mais Impuros surgiam para

cercar o trio.

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Forçada a se abaixar para escapar do segundo ataque de

Asphael, Azubah atacou as pernas desprotegidas do Arcanjo. Asphael

saltou, escapando do ataque, mas Azubah contra-atacou, também saltando.

O movimento circular da lâmina de Asphael fez com que seu corpo pende-

se para a direita no ar, deixando seu ombro esquerdo totalmente

desprotegido. A maça de Azubah atingiu o braço esquerdo de Asphael. O

Arcanjo perdeu o controle do salto, caindo desajeitadamente, logo após ter

o osso do braço esmagado pelo impacto sofrido. Azubah pousou

suavamente no chão, seus olhos fixamente voltados para o Arcanjo que caía

violentamente. O impacto da queda, mais o braço quebrado, fez com que a

espada de Asphael escapasse de suas mãos, deslizando em direção ao caos

de Anjos Caídos que avançavam contra nós.

Um Caído se aproximou se mim, tendo uma espada de cabo

vermelho-sangue e dupla lâmina em mãos. Ele ergueu a arma para me

atacar, mas encontrou minha palma aberta no caminho. Antes que pudesse

me atingir, o Caído foi arremessado ferozmente por uma corrente de ar que

gerei, derrubando ainda outro Caído que corria em direção a Al-Malik. Foi

quando ouvi um grito.

Wang avançou gritando contra Surial, enquanto Al-Malik

preocupava-se em se desviar do caminho da lâmina de uma lança de

combate, empunhada por outro Caído. A lâmina negra do Tenshi se chocou

com o cabo prateado da foice de Surial, e o Caído negro empurrou a arma

contra a lâmina de Wang, fazendo-o recuar. A lâmina da foice atacou em

seguida, com velocidade e precisão surpreendentes. Wang reagiu rápido,

jogando-se para trás, mas ainda assim a lâmina penetrou em sua barriga,

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cortando-a superficialmente de lado a lado. O sangue celeste caiu sobre

o piso branco.

A cimitarra de Al-Malik bloqueou o caminho cortante da lança que

o atacava. Ainda assim, o comprimento da arma o impossibilitava de se

aproximar para contra-atacar. Eu ergui a mão esquerda e comecei a

gesticular. No limiar dos meus sentidos, ouvi os urros furiosos dos espíritos

da terra e do ar. Concentrei toda aquela fúria e liberei, terminando os gestos

necessários. O Caído puxou sua arma novamente, pronto para atacar com

um golpe perfurante, mas em seguida urrou de dor. Sua pele rompia-se e

sangrava. Al-Malik, confuso, me olhou, e me encontrou apenas apontando

os dedos indicador e médio da mão esquerda para o Impuro. Dilacerado

pelos espíritos sob meu comando, o Caído tombou. Al-Malik voltou suas

atenções para Wang, então...

Wang cambaleou, levando uma das mãos ao ferimento em sua

barriga. Surial avançou, mas Al-Malik, agora livre de oponentes, preparou

para ataca-lo pelo flanco esquerdo. Para a minha surpresa, Surial girou o

corpo para a esquerda, numa velocidade impressionante. A lâmina da foice

serviu como um gancho, atingindo a cimitarra de Al-Malik e removendo-a

facilmente das mãos do Malaki. A direita do Caído negro ficou vulnerável,

e Wang avançou, aproveitando a brecha, mas então Surial mais uma vez se

moveu tão rápido quanto um pensamento, retornando sua arma para

golpear como se fosse um bastão a cabeça do Kage. Lo Wang foi jogado

pelo impacto, caindo violentamente no chão. Sua lâmina negra caiu de suas

mãos.

Eu ergui minha mão esquerda, pronto para repetir em Surial o

feitiço espiritual que usara antes. Antes que pudesse completar os gestos,

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Page 315: Magna Veritas - Tiago José Moreira

porém, senti uma força me arremessar no ar, derrubando-me. Millard

caminhava em minha direção, suas mãos já preparando algum outro feitiço

cuja natureza eu era incapaz de decifrar. “Desista, Nicodemus. Não tenho

nada contra você, mas ordens são ordens”.

E, em meio ao turbilhão, Asphael e Azubah se encaravam,

intocados pelo caos ao redor. O Arcanjo fitava sua oponente com respeito,

caído diante. A Caída, porém, mostrava com orgulho seu par de maças

negras, um sorriso cruel nos lábios. “É isso o melhor guerreiro que o Éden

pode me oferecer? Lorde Lúcifer os teme sem motivo, então!”, ela

provocou. “Levante-se!”.

Asphael se ergueu, lentamente, e então encarou sua oponente,

fitando-a seriamente, e levando a mão direito ao ferimento no braço

esquerdo. “Ah, não irá se curar, maldito!”, ela gritou, avançando. Uma

seqüência de golpes se seguiu, conforme Azubah avançava cada vez mais,

girando o corpo e usando uma maça após a outra para atacar. Os rastros de

Fogo Negro de seus ataques formavam uma espiral interminável, um

turbilhão de chamas rodopiantes, forçando Asphael a recuar.

Uma espada medieval perfurou o ombro esquerdo de Ansgar. O

atacante sorriu, arrancando a espada violentamente, fazendo o sangue de

Ansgar escorrer. Antes que atacasse novamente, o punho do Venator

atingiu sua face. O nariz do Caído se partiu. Antes que Caído caísse

atordoado pelo golpe, Ansgar agarrou-o pela roupa, puxando-o e jogando-o

contra outro que vinha pela direita. Uma lâmina rasgou-lhe as costas, mas

ele ainda avançava... Cada vez se colocando mais e mais no meio da

multidão de Caídos.

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Absolon caiu. Ele tinha derrubado um oponente, mas sua

inexperiência e falta de treinamento com a espada não o tornava páreo para

enfrentar tantos oponentes. Na tentativa de ao mesmo tempo bloquear os

ataques incessantes e recuar, ele perdeu o equilíbrio e tombou. Um dos

oponentes ergueu sua lança, pronto para atravessar o corpo do Princeps,

mas então um grito feminino o distraiu. Karina foi de encontro ao atacante,

atingindo-o com o ombro. O atacante perdeu o equilíbrio e caiu, enquanto

Karina recuou, cambaleante. Um dos atacantes de Absolon observou a

Supervivente, voltando-se contra ela. Antes que se aproximasse o suficiente

para corta-la com a espada, Karina ergueu sua pistola. O estrondo do tiro

ecoou, a bala atingindo a cabeça do adversário, que tombou. Karina parecia

assustada mas ainda assim decidida. Ela tentava se manter séria, conforme

mirava num terceiro atacante que se aproximava. O som do tiro se repetiu,

o disparo atingindo o peito do guerreiro que se aproximava, mas isso não

parecia diminuir sua velocidade ou determinação. Karina se jogou para o

lado para escapar do golpe da lâmina do oponente. Então, para sua

surpresa, a arma brilhou em Fogo Negro. Karina recuou, tentando um

segundo disparo...

Caído no chão por causa do truque de Millard, Apontei a mão para

o Caído que se preparava para atingir Karina. Antes que pudesse liberar

meu poder, porém, senti meu corpo arder, dor me tomando como se eu

fosse queimado, mas não havia chama alguma. “Esta é uma batalha

perdida”, disse Millard, colocando-se à minha frente, gesticulando como se

amarrasse uma corda imaginária à sua frente. Eu sentia meu corpo pesado,

incapaz de me mover. “Vocês não têm a menor condição de vitória”, ele

murmurou.

316

Page 317: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Um novo relâmpago iluminou a sala. O Caído que atacava

Karina tombou diante do disparo de Fabrizia. Infelizmente, para salvar a

companheira, Fabrizia deu as costas a um outro Caído, que conseguiu

agarra-la, prendendo seus braços. O próprio atacante, porém, gritou de dor,

conforme uma chuva de faíscas saltou de seu corpo. Fabrizia conseguiu se

livrar, mas não a tempo de desviar de mais um ataque, vindo de outro

Caído. Uma lança perfurou o peito de Fabrizia, a lâmina emergiu através de

suas costas. A jovem gritou, agarrando o cabo metálico da arma. Seu

atacante urrou em seguida, mais uma vítima dos ataques elétricos da Xamã.

A moça e seu atacante caíram juntos no chão, ambos muito feridos. Tentei

gritar o nome de Fabrizia, mas consegui emitir apenas um grito de dor,

conforme os grilhões invisíveis de Millard me apertavam.

Wang se esforçava para levantar, seu rosto sangrando devido ao

impacto da pancada que sofrera. Ele virou-se para Surial a tempo de vê-lo

empalar Al-Malik com um ataque certeiro. Desarmado, Al-Malik se tornou

um alvo fácil. A lâmina penetrou por sua barriga, arrebentando a coluna

vertebral e emergindo em suas costas. Surial recolheu a arma em seguida,

puxando-a com força. Livre da lâmina, Al-Malik tombou.

Millard mantinha-me preso em seu feitiço. Meu corpo não se

movia, e ardia como se estivesse em chamas. A boca de Millard

pronunciava palavras que eu mal compreendia. Ele parecia sério, não

parecia sentir prazer e sim incômodo naquela situação. Olhei os olhos de

Millard por um instante... e, de repente, ouvi novamente os sussurros

monstruosos. “Sua busca termina aqui, Philipe Nicodemus”, a voz

demoníaca dizia. Meu corpo ardia em dor, mas pensei em Fabrizia. Ouvi

um tiro, seguido de um grito de dor. Karina caía, sua barriga trespassada

317

Page 318: Magna Veritas - Tiago José Moreira

por uma lâmina. Ansgar caiu de joelhos quando uma espada perfurou

suas costas. Os inimigos o cercavam por todos os lados. E, em minha

mente, vi uma figura de fogo se formar... Em seguida, vi o velho. Abri bem

meus olhos, fitei Millard, e contra a dor, contra toda a força de seu feitiço,

apontei minha mão contra ele. Millard se surpreendeu com minha

resistência repentina, mas não teve tempo de reagir. Senti minha energia

explodir através de minha mãos, e um relâmpago saltou de mim. A corrente

elétrica atingiu Millard, mas então saltou sobre outro Caído, e mais outro. E

um quarto e um quinto também. Millard recuou, ferido, enquanto eu sentia

seu poder sobre mim diminuir. Tendo liberado um poder que até o

momento eu desconhecia possuir, eu me levantei, e fitei o caos novamente.

Eu não ia deixar meus companheiros morrerem. Teriam de me matar

primeiro.

Os golpes incessantes de Azubah prosseguiam. Finalmente, a

mulher atingiu o rosto de Asphael. Senti os ossos do crânio do Arcanjo se

partirem, enquanto seu olho direito era cauterizado pelas chamas negras.

Asphael cambaleou, sua face sangrando, mas para minha surpresa não caiu.

Azubah parou, confiante, rindo. “Você é um guerreiro patético”, ela

provocou, e então atacou, com toda a força e fúria que tinha, direcionando a

maça ao braço de Asphael.

Um estrondo poderoso se seguiu. Metal se chocou com rocha,

conforme Asphael golpeou, com o braço nu, a maça que vinha em sua

direção. A arma se partiu em milhares de pedaços, e os olhos de Azubah se

arregalaram, indicando sua surpresa. Antes que ela reagisse, os dedos da

mão esquerda de Asphael penetraram em sua garganta, tamanha a força

com que o Arcanjo apertava seu pescoço. “Eu não sou guerreiro”, disse

318

Page 319: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Asphael Veritas, assumindo sua Forma Angelical, seus olhos

transbordando em luz dourada. “eu sou um sábio”.

Absolon se ergueu, tentando escapar do caos, conforme vários

Caídos avançavam contra ele. O Princeps tentava alcançar Fabrizia, que

estava caída inconsciente, a lâmina da lança ainda atravessando seu peito.

Um machado atacou as costas de Absolon, mas o jovem Celestial

conseguiu escapar, virando-se para encarar seu oponente. Outros dois se

aproximavam do Princeps pelas costas. Foi quando o corpo de Azubah

atingiu o Caído que empunhava o machado. Arremessada por Asphael, a

mulher derrubou facilmente o Caído, e ainda atingiu violentamente a

parede a mais de dez metros de distância, rachando-a. Absolon e os outros

dois Caídos fitaram Asphael.

Surial atacava Wang ferozmente. O Kage se esforçava para se

manter longe do oponente, mas a foice tinha um alcance muito grande. A

lâmina avançou, atingindo certeiramente o braço de Wang. Porém, ao invés

de decepar o membro do Celestial, a lâmina o atravessou sem causar danos.

Tornando-se uma sombra imaterial, Wang avançou, conforme o ataque do

oponente passava através de seu corpo. Em seguida, retornando à forma

material, o Kage atingiu o peito do oponente com o cotovelo. Surial,

porém, nem recuou. Pelo contrário, avançou, como se o golpe de Wang

sequer o tivesse atingido. Surial atingiu Wang com o ombro, jogando-o no

chão, e então ergueu a foice para o golpe final.

Foi então que uma voz ecoou, sobressaindo-se em meio ao caos.

“JÁ CHEGA!”, exigiu Lúcifer Estrela da Manhã, que adentrava

pelo portal deixado aberto pelos invasores. Agora, ele portava consigo uma

grande lança prateada, ornada com uma lâmina negra e comprida. “Como

319

Page 320: Magna Veritas - Tiago José Moreira

vocês ousam profanar minha casa e desobedecer a minha vontade?”. À

direita de Lúcifer estava Onesimus, à esquerda, Amazarak. Os três

adentraram o salão a passos rápidos, seus rostos sérios.

“Quem é o responsável por esta traição?”, exigiu saber o furioso

Onesimus.

“A estes Celestiais foi garantida a passagem segura por esta casa”,

disse Amazarak. “Nós exigimos uma explicação”.

Surial recuou de seu ataque imediatamente, fitando os recém-

chegados: “Meu senhor, mil perdões!”, ele repetia, sua voz claramente

demonstrando medo. “Azubah nos comandou até aqui, disse estar

obedecendo à sua vontade”.

“E vocês acreditaram?”, Onesimus disse erguendo a voz. Sua face

mostrava fúria, e ele ergueu a mão. A foice de Surial se partiu ao meio,

também explodindo nos cabos em que Surial a empunhava. Farpas de metal

penetraram nas mãos de Surial, que caiu de joelhos, suas mãos sangrando

inutilizadas. Os outros Caídos recuavam com medo, alguns caindo de

joelhos. “E quanto a vocês?”, gritou Onesimus, voltando-se àqueles que

ainda cercavam Ansgar, que estava caído no chão, lutando para se levantar,

ferido por diversas lâminas mas ainda consciente. Os Caídos ao redor de

Ansgar arderam em chamas negras, gritando de dor, e caindo de joelhos.

“Como ousam acreditar nas palavras daqueles que dizem fazer a vontade da

Estrela da Manhã, ainda que tenham ouvido dos próprios lábios de nosso

senhor que estes Celestiais não devem ser feridos?”.

“Chega, Onesimus”, disse Amazarak, calmamente segurando o

braço do companheiro. “Deixe que nosso senhor os julgue como for sua

320

Page 321: Magna Veritas - Tiago José Moreira

vontade. Quanto a nós, devemos apenas oferecer cura, descanso e

desculpas a nossos convidados”.

“Ajuda-los?”, disse Onesimus, raiva em sua voz, mas então seus

olhos se encontraram com o olhar decidido de Amazarak. Imediatamente,

Onesimus baixou a voz e a cabeça. “Sim, senhor”. Onesimus caminhou em

direção a Ansgar, Karina, Fabrizia e Absolon, enquanto Amazarak se

aproximou de Al-Malik e Lo Wang. Asphael permaneceu aonde estava, em

pé, seus ferimentos já se curando, seus olhos dourados fitando a Estrela da

Manhã.

Próximo de mim, Millard, apoiando-se na parede, olhava com

terror aos recém-chegados. Lúcifer o fitou, o que apenas aumentou seu

medo. “Explique suas ações, Dominação Millard, dos Veritatis Alliatos”,

pediu a Estrela da Manhã.

“Meu senhor”, ele disse, “Azubah nos trouxe aqui, nos disse que

foste traído por seus convidados e que exigiu suas mortes, menos a do

Arcanjo Nicodemus. Eu tentei argumentar, mas as palavras dela foram

persuasivas. Mas, agora que está aqui, eu sinto que minha mente estava

sendo nublada por um poder maior”.

Uma risada se seguiu. Os presentes imediatamente fitaram Azubah,

que se erguia, rindo. Seu pescoço e sua boca sangravam, e seu corpo estava

ferido pelo impacto contra a parede, mas ela ria, gargalhava. A gargalhada

ecoava, se tornava mais poderosa, menos feminina, até se tornar a voz que

ouvi em minha mente, os sussurros que acompanhavam a voz da mulher.

“Quem é você?”, perguntou Onesimus, claramente assustado agora.

Ansgar, sendo curado pelo Caído, se levantava com dificuldade, mas

sussurrou: “Mais um deles. Não é possível...”.

321

Page 322: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Pela Estrela da Manhã!”, murmurou Millard, ainda mais

nervoso e assustado.

Lúcifer deu um passo à frente, empunhando sua lança com ambas

as mãos, apontando a lâmina negra para a mulher. “Eu sabia que um de

vocês estaria aqui”, disse a Estrela da Manhã, seu olhar emitindo uma

poderosa luz vermelho-sangue.

A voz monstruosa de Azubah disse: “Estou grato por vê-lo

novamente, irmão. Já faz um bom tempo. Não fique nervoso com minha

presença, afinal eu fui convidado a entrar. Afinal, eu estive caminhando por

este mundo, atendendo os desejos tanto de mortais como de imortais. Eu

pude ouvir os desejos de muitos aqui, milhares desejando vingança,

dezenas de milhares desejando retribuir a dor que sofreram. Eu vim atender

a seus desejos”.

A voz de Lúcifer não se alterou, continuou séria, firme. “Lorde

Agliareth, você veio aqui apenas para impedir que minhas ações

atrapalhassem seus planos... Mas estes Celestiais agora são MEUS. Eles

não sairão de Oostegor, nem serão feridos por você e seus irmãos. Agora,

abandone minha casa”.

Um rosnado ecoou, conforme os olhos de Azubah brilharam em cor

amarela e sua boca se abriu, exibindo dentes pontiagudos. Uma língua

comprida, grossa, gelatinosa se estendeu para fora da boca, balançando

como uma serpente pendendo da boca da mulher. “Por que não conta toda a

verdade a eles, irmão? Porque não revela que estou aqui para que cumpra a

sua parte no pacto? Acha que impedindo que as condições ocorram estará

livre de sua obrigação?”.

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Page 323: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Asphael fitou Lúcifer, o olho cauterizado se abriu, agora

curado. Ao mesmo tempo, Al-Malik se erguia, também olhando Lúcifer,

sua mão tocando a barriga, há pouco transpassada pela lâmina de Surial,

agora curada por Amazarak. Novamente, minha mente se enchia de

perguntas e dúvidas. Que pacto seria esse?

Lúcifer nada disse, apenas continuou a fitar a mulher, que agora

não mais parecia uma mulher. Sua pele se tornava como escamas de um

réptil, seus olhos eram como os de uma cobra, e grandes asas de dragão

nasciam de suas costas, rasgando-as. Sua altura já alcançava três metros, e

suas mãos agora tinham garras com trinta centímetros ou mais de

comprimento.

“Não tem nada a dizer, irmão?”, provocou a mulher-coisa. “Nada a

dizer sobre seus crimes? Nada a dizer de minhas provocações? Sua

pequena serva se entregou a mim, pois eu podia dar a ela o que ela tanto

queria! E, através das mãos dela, eu irei puni-lo por sua tentativa vã de

fugir ao pacto! Esta noite, sua preciosa Oostegor não existirá mais, e sem

Oostegor, a prisão destes tolos Celestiais não mais existirá. Eles serão

nossos, de uma forma... ou de outra”.

O monstro urrou, e o chão tremeu. Rachaduras começaram a se

formar sob os pés da criatura. A torre de Oostegor rangia, conforme seus

últimos momentos se aproximavam...

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Page 324: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 15: Verdade seja Dita

Rachaduras se espalharam pelas paredes e pelo teto do salão.

Pequenas quantidades de poeira caíram, e eu sentia a torre de Oostegor

tremer, como se estivesse sendo lentamente espremida por gigantescas

mãos invisíveis. Eu sentia a torre resistir, mas lentamente e

inexoravelmente o aperto dessas mãos parecia se tornar mais e mais forte,

aos poucos vencendo a resistência sobrenatural da torre.

Ansgar se erguia enquanto as rachaduras aumentavam. Ele ficou de

joelhos, mãos apoiando no chão, e observou aquilo que há pouco era

Azubah. A silhueta era vagamente feminina, mas não mais havia a beleza

de antes. Agora, em seu lugar estava uma monstruosidade escamada, seus

olhos de cobra fixados em Lúcifer. O Príncipe dos Caídos, porém,

permanecia parado, sua mão direita empunhando a lança de batalha ao lado

do corpo. Ele nada dizia, nada fazia, a não ser observar o demônio adiante,

que ria enquanto proclamava vitória.

“Como é possível?”, perguntou a si mesmo Asphael. “Mesmo uma

Caída não poderia ser possuída por um demônio! Como ele a tomou? Isso

não faz sentido”.

Amazarak, que acabara de curar Ansgar e agora corria em direção

de Karina, caída ali perto. “Ele a tomou porque ela se ofereceu a ele!”, o

ancião decaído disse.

Asphael se virou para Amazarak, surpreso, mas então voltou-se

novamente para o demônio que espremia Oostegor. Amazarak murmurou:

“Sem que soubéssemos, em algum momento o ódio de Azubah cresceu a

ponto dela desejar se entregar ao Inferno. Ela se tornou uma Luciferite, mas

não sabíamos disso”.

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Page 325: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O demônio riu, conforme os tremores aumentaram. “Foi muito

fácil trazê-la a mim”, o demônio disse. “Pois eu sou aquele que realiza

desejos. Eu sou o Senhor dos Pecados, e ouvi os clamores de vingança

desta jovem. Sua posição na Corte Negra foi apenas uma pequena

vantagem, perto dos poderes que ela adquiriu ao longo de oito milênios. Eu

sabia que ela seria útil, e finalmente foi! Ela se tornou uma comigo”.

Absolon enquanto isso estava de joelhos, segurando a mão de

Fabrizia. A Xamã abriu os olhos, e murmurou o nome dele, fracamente.

Absolon tinha removido a lança que atravessava o peito da mulher, mas ela

ainda estava gravemente ferida. “Calma, Fabi... Você vai ficar bem”, o

Princeps disse, então voltando seu olhar para o demônio.

“Este é o verdadeiro propósito de cada Luciferite”, continuou o

demônio. “Eles se vendem em troca de poder e aceitação, se entregam por

ódio ou em nome de vingança. E aceitam que nós os fortaleçamos com

nossa própria essência. Não damos poder a eles, pobres tolos, nós os

tornamos nossos Avatares. Eles acreditam ser livres, mas nós falamos em

suas mentes, e seus corpos são nossos. Nós os deixamos ser livres, até o

momento em que achamos necessário nos manifestar. Esta é a terceira vez

na história que um de nós faz isso”. Então, voltando-se mais uma vez para

Lúcifer, o demônio proclamou: “Mas em breve, não mais necessitaremos

deles. Não mais iremos precisar desses bonecos de carne, desse Povo de

Lúcifer”.

Ouvi um estrondo, causado por um pequeno bloco de pedra que

caía do teto, partindo-se ao atingir o chão. “Eles não são meu povo, são

traidores”, respondeu Lúcifer. Sua face ainda estava inalterada e sua voz

não demonstrava medo, apenas raiva. “E estou cansado de ouvir você”,

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Page 326: Magna Veritas - Tiago José Moreira

disse a Estrela da Manhã, erguendo lentamente o braço esquerdo diante

do corpo, e mostrando a palma da mão ao inimigo. As tochas do local se

enfraqueceram, sua luz sendo consumida pela presença do Príncipe dos

Caídos. Uma penumbra sobrenatural obscureceu a sala, e em seguida, uma

aura vermelha circundou Lúcifer, emanando como chamas, mas a luz que

emitiam não se refletia no ambiente ao redor. Imediatamente, os tremores

cessaram e o ranger da torre parou. “Você está em meus domínios, Lorde

Agliareth, Senhor dos Pecados, e eu ordeno que saia imediatamente.

O monstro abriu os braços, mostrando suas garras, curvando o

corpo para a frente. Uma cauda longa e fina, que só agora eu percebia,

serpenteava atrás dele, e suas asas abriam-se por completo. Ele urrou, seus

olhos emitindo uma luz amarela, e então provocou: “Se quer me ver fora de

seu domínio, me expulse, irmão!”.

O demônio permaneceu onde estava, sua língua pegajosa

serpenteava para fora da boca, salivando uma espécie de veneno. Lúcifer

deu o primeiro passo, caminhando lentamente em direção ao oponente,

agora colocando a lança adiante do corpo, empunhando-a com ambas as

mãos.

Amazarak pegou Karina, já curada e consciente, mas ainda

atordoada e fraca, nos braços, e então gritou ao resto dos presentes: “Se

afastem, rápido!”. Absolon também se apressou para erguer Fabrizia e

correu para um dos portões do salão. Onesimus ajudava Al-Malik, já

curado, a se levantar, enquanto, para minha surpresa, Millard agarrou os

braços de Wang, ainda inconsciente, e começou a arrasta-lo para longe.

Surial se afastou rapidamente, e eu segurei Asphael pelo braço, pedindo

para apressar-se. Os passos lentos de Lúcifer eram como uma contagem

326

Page 327: Magna Veritas - Tiago José Moreira

regressiva, conforme ele se aproximava do oponente. Os Caídos

presentes se esforçavam para se afastar, uns ajudando os outros.

Ainda que todos se afastassem, também a curiosidade nos forçava a

manter os combatentes em nossas linhas de visão. Como se há pouco não

tivéssemos nos enfrentado, Caídos e meus companheiros agora

permaneciam juntos, reunindo-se nos dois portões do salão. Apenas os mais

poderosos, Onesimus, Amazarak e Asphael, ousaram permanecer no

interior do salão, ainda que a uma distância considerável. Cinco passos

separavam Lúcifer e Agliareth. Entrei na sala, mesmo tomado pelo medo, e

me apoiei contra a parede, logo ao lado do portão. Quatro. A mão esquerda

de Lúcifer segurou a lança na ponta do cabo, enquanto a direita a segurava

na metade. A grande lâmina, com dois gumes, foi apontada na direção do

oponente. Três. O demônio gargalhou, provocante. Dois. Senti trevas e

penumbra se tocarem no mundo dos espíritos. Um. O demônio rugiu, e

então a batalha começou.

Lúcifer arremeteu-se à frente, libertando a lança de uma das mãos,

segurando-a apenas pela ponta do cabo, numa tentativa de perfurar o peito

do oponente. O demônio recuou um passo, e girou o corpo para a direita,

fazendo com que a lâmina da lança atravessasse o ar logo à sua frente. O

chão rachou com o passo da criatura, que então avançou, sua mão veio por

cima, caindo sobre Lúcifer, mas o Caído também recuou. As garras do

demônio atingiram o chão, partindo a rocha, lançando lascas para todos os

lados. Assim que o braço atingiu o chão, o demônio se apoiou nele, girando

o corpo na tentativa de atingir o Príncipe dos Caídos com sua cauda.

Lúcifer também girou o corpo, abrindo sua mão livre. Cauda e mão se

atingiram, emitindo um estrondo. A mão de Lúcifer agarrou a cauda e,

327

Page 328: Magna Veritas - Tiago José Moreira

continuando o movimento circular do corpo, puxou o braço,

arremessando o demônio contra a parede do outro lado do salão. A parede

ruiu, erguendo uma nuvem de poeira. O impacto foi suficiente para o

demônio atravessar a parede e cair na sala adjacente.

Lúcifer mais uma vez empunhou a lança com ambas as mãos, e

então curvou o corpo, lâmina apontada para a frente, e correu em direção

do imenso buraco que foi aberto na parede. Um urro furioso ecoou, vindo

do buraco, e da nuvem de poeira emergiu Agliareth, saltando furiosamente.

Assim que os pés do demônio tocaram o chão, este rachou. Lúcifer

avançava, mas antes que alcançasse o Grande Lorde, ambas as mãos do

demônio atingiram o chão, ruindo-o. O chão sob Lúcifer, com mais de três

metros de espessura, ruiu como se fosse barro seco. Os Caídos e Celestiais

que estavam nos portões do salão lutavam para se afastar, conforme as

rachaduras se espalhavam e se aproximavam. Na confusão, alguns caíam e

eram pisoteados.

O Lúcifer caiu mais de seis metros, atingindo o solo do salão

abaixo. O Decaído rolou após atingir o chão, parando de joelhos. O

demônio saltou, seu impulso destroçando ainda mais o chão, e precipitou-se

sobre Lúcifer. Antes que a imensa forma da criatura esmagasse o Príncipe

dos Caídos, porém, a pequena forma de Lúcifer rolou para a direita. Assim

que o demônio atingiu o chão, este novamente ruiu. Ambos os combatentes

caíram no salão logo abaixo.

Corri para me aproximar da borda do buraco formado no salão, a

fim de ver a luta. Outros entre os expectadores se também aproximaram,

cautelosamente. O novo impacto de Agliareth com o chão criou mais

rachaduras, mas desta vez o piso resistiu e não ruiu. Lúcifer tentou se

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Page 329: Magna Veritas - Tiago José Moreira

levantar após a queda, mas o demônio, que caíra em pé, atacou antes.

As costas da mão do demônio atingiram o rosto de Lúcifer, jogando-o

longe. As costas da Estrela da Manhã atingiram uma parede, rachando-a,

mas não arrebentando-a. O demônio avançou contra Lúcifer. Para verem

melhor o combate, Asphael, Onesimus e Amazarak saltaram para o andar

abaixo. Resolvi segui-los, mas inseguro quanto à minha capacidade de

suportar uma queda de nove metros sem ferimentos, assumi minha Forma

Angelical, descendo suavemente.

Em seu avanço furioso, o demônio deixava suas pegadas na rocha,

emitindo seguidos estrondos. Seu urro se fortaleceu conforme suas garras

se aproximavam de Lúcifer, mas então o Caído ergueu sua mão esquerda.

Mesmo sem ser tocado pelo movimento de Lúcifer, Agliareth foi atingido

por um impacto fora do comum, tão poderoso que reverberou pelos salões,

rachando ainda mais as paredes. O corpo do demônio foi jogado pelo

impacto como se fosse uma folha ao vento. O pesado corpo do infernal

atingiu o chão com força, rolando em seguida. Os ossos de suas asas

quebravam conforme o pesado corpo rolava por cima delas. O demônio só

parou de rolar quando suas garras fincaram no chão e, num movimento

rápido, ele se pôs em pé novamente.

Mal o demônio se punha em pé, Lúcifer já avançava, erguendo sua

lança sobre a cabeça, empunhando-a apenas com a mão direita, na metade

do cabo. A escuridão e as chamas vermelhas da aura de Lúcifer se

concentravam na lâmina, que brilhava num vermelho intenso, cuja

intensidade se comparava apenas ao brilho vermelho dos olhos do Caído.

Num movimento rápido, o Príncipe dos Caídos arremessou a lança, que

traçou uma linha vermelha pelo ar obscurecido. A lâmina perfurou o peito

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Page 330: Magna Veritas - Tiago José Moreira

do demônio, que então urrou de dor, recuando dois passos. Lúcifer,

porém, continuou a avançar. Assim que estava próximo o suficiente, o

Caído saltou contra o inimigo, punhos abertos, emitindo um grito de guerra.

O punho esquerdo de Lúcifer se fechou em meio ao salto, conforme

sua trajetória se aproximava da face do inimigo. Esperava ouvir um

estrondo emitido pelo impacto seguinte, mas a mão do demônio se fechou

ao redor do braço direito da Estrela da Manhã. Em seguida, o demônio

puxou seu braço, parando bruscamente a trajetória do salto do Caído. Podia

jurar que tal movimento quebraria o braço de Lúcifer, mas aparentemente o

Caído nada sofrera.

O imenso demônio ergueu Lúcifer no ar pelo braço, e então bateu-

o, como se fosse um boneco inerte, contra o chão, ruindo-o. Antes que

ambos caíssem novamente num andar inferior, porém, o demônio saltou,

conforme o chão sumia sob seus pés, e abriu suas asas. Mesmo quebradas e

abrindo distorcidas, asas bateram, emitindo poderosas rajadas de vento. O

infernal ergueu vôo, passando por nós e continuando a subir. Ainda com

Lúcifer em suas mãos, o demônio agarrou também o outro braço do Caído,

e ergueu-o acima de sua cabeça. O vôo do demônio prosseguiu, usando o

corpo de Lúcifer para atingir o teto acima, atravessando-o. Não bastando

isso, o teto do outro andar também foi atravessado, e de um terceiro andar

também, sempre usando Lúcifer para absorver o impacto.

Tentando manter meus olhos na batalha, ergui vôo, seguindo a

trajetória de Agliareth. Asphael abriu suas poderosas asas, sua aura dourada

emanando forte, e fez o mesmo. A nós se juntou Ansgar, que empunhava

sua espada. Amazarak gritou para o esperarmos, mas não ouvimos.

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Page 331: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Prosseguimos, eu usando meus braços para me proteger dos destroços

que caíam.

Conforme o corpo de Lúcifer atravessava o teto de um sétimo

andar, Agliareth urrava sadicamente, seu urro parecendo uma gargalhada

monstruosa. Com ambos os braços presos, o Príncipe dos Caídos puxou

suas pernas encostando seus joelhos em seu peito, e então chutou com toda

a força a face do demônio. O impacto reverberou pela torre, o pescoço de

Agliareth se quebrou, e o demônio, atordoado, largou seu inimigo, caindo.

Ambos precipitaram sobre nós, mas Lúcifer conseguiu se agarrar à borda

de um dos rombos abertos pelo oponente. Agliareth caiu como um cometa,

mal nos dando tempo de desviar. As asas de Ansgar quase foram atingidas

pelo demônio. Abaixo, o demônio atingiu com força o chão, quebrando

mais um andar da torre. Ele continuou a cair, mas antes que destruísse o

piso de outro andar, sua queda parou bruscamente. Olhei para cima, e vi a

Estrela da Manhã brilhando com intensidade. Uma das mãos segurava

firmemente na borda do buraco no teto, impedindo que ele caísse. A outra

parecia agarrar seu oponente, impedindo-o de continuar a destruição da

torre. Em seguida, Lúcifer abriu a mão, e Agliareth caiu sobre o piso,

rachando-o, mas não o destruindo.

“Agliareth sabe que, como um Avatar, não pode vencer Lúcifer

diretamente”, murmurou Asphael, conforme nós pousávamos num dos

andares atravessados pelos combatentes. “Por isso, está usando a batalha

para destruir Oostegor”. Abaixo, Agliareth se erguia, sempre fitando o

oponente. Acima, a Estrela da Manhã intensificou seu brilho e se jogou

pelos vãos abertos, caindo rumo ao inimigo. Agliareth preparou suas garras

para interceptar a queda do oponente, antes que o Caído o atingisse.

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Page 332: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O punho de Lúcifer se fechou novamente, conforme ele caía

pelos andares destruídos. As garras de Agliareth traçaram o ar,

atravessando em cheio a cabeça do Caído. Porém, ao invés de penetrarem

na carne e crânio do oponente, as garras passaram diretamente, sem nada

tocar. Tornando-se uma forma indistinta, quase uma nuvem de brilho

avermelhado, Lúcifer passou ileso pelo ataque de Agliareth, pousando

suavemente no chão logo à frente do inimigo. Então, o punho de Lúcifer

avançou, tornando-se material, e atingindo em cheio o estômago do

demônio. A criatura recuou com o impacto. Suas passadas pesadas

rachavam o piso. A Estrela da Manhã ergueu a mão direita, e novamente

um impacto poderoso atingiu o demônio, jogando-o longe. Ouvi um

segundo estrondo, provavelmente causado pelo impacto de Agliareth contra

uma parede. Amazarak e Onesimus saltaram para baixo, assim que Lúcifer

sumiu de vista, correndo na direção em que arremessou o oponente. Eu,

Asphael e Ansgar descemos o mais rápido que pudemos. Alguns dos

Caídos que observavam a luta correram na direção das escadarias para

também descer.

Assim que alcançamos o piso do andar em que a batalha

prosseguia, eu vi um buraco na parede próxima. Do salão adjacente,

vinham os sons da batalha. Nós e os Caídos corremos em direção ao

buraco, e vislumbramos o combate continuar.

Desta vez, Lúcifer recuava, conforme o inimigo avançava, suas

garras iluminando-se em chamas negras, seus movimentos ainda mais

rápidos do que antes. Desarmado, o Caído tentava se manter longe do

alcance dos longos braços do inimigo. Numa dança violenta, com

movimentos rápidos e precisos, ambos os combatentes lutavam naquela

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Page 333: Magna Veritas - Tiago José Moreira

penumbra. O demônio cuspiu uma rajada de chamas negras, fazendo

Lúcifer recuar ainda mais. Em seguida, Agliareth urrou, curvando o corpo

para a frente, e abrindo bem os braços. O urro atingiu Lúcifer como facas

cortantes, criando rasgos em suas vestes e cortes em sua carne, partindo a

rocha do chão e do teto. Lúcifer, arremessado pelo impacto, atingiu a

parede atrás de si, atravessando-a. O demônio avançou, deixando um rastro

de pegadas flamejantes atrás de si.

Corremos atrás de Agliareth, conforme sua imensa forma atingiu a

parede, aumentando o buraco formado pelo impacto de Lúcifer. Adiante

estava uma câmara menor, mais escura, por onde passam as escadarias que

circunda Oostegor. Lúcifer se erguia, mas as garras flamejantes do

oponente penetraram seu peito. Mesmo atingindo o inimigo, Agliareth

continuou avançando, fazendo o Caído, empalado pelas garras, atingir a

parede logo atrás. Esta parede se quebrou, e ambos os oponentes caíram no

vazio além, deixando a torre de Oostegor.

Corri em direção ao rombo. Caídos vinham pela escada, parando

nos vitrais para ver a batalha que transcorria ali fora. Um rastro de fogo

negro erguia-se no espaço negro acima da Cidade Eterna. Abaixo, eu via

multidões se movimentarem, tentando ver o espetáculo. O demônio voava

para o alto, Lúcifer ainda preso às suas garras. O demônio fez um

movimento rápido com a mão, traçando um arco para o alto. Com este

movimento, Lúcifer foi arremessado a dezenas de metros para o alto, seu

corpo girando desgovernado no espaço negro.

O urro do demônio ecoou por toda a Cidade Eterna. Chamas se

formaram ao redor do Infernal, que então voou em grande velocidade na

direção do indefeso inimigo. As garras de Agliareth atingiram a Estrela da

333

Page 334: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Manhã, interrompendo sua queda e arremessando o Caído ainda mais

para o alto.

Asphael gritou: “Lúcifer não tem chance fora do solo”. Onesimus,

porém, agarrou o ombro do Arcanjo, interrompendo-o. “Ele está longe de

estar indefeso”.

De fato, enquanto o Infernal fazia um loop no ar para aumentar a

velocidade e atacar novamente o Caído, Lúcifer parou de repente,

interrompendo sua trajetória desgovernada. A aura da Estrela da Manhã

intensificou e, para minha surpresa, asas luminosas se formavam nas costas

do Caído. “Como é possível?”, indaguei a mim mesmo, meus olhos

arregalados. Não era uma asa de carne e penas, mas sua aura criando uma

asa de trevas, circundada de luz vermelho-sangue. Os olhos de Lúcifer

brilharam quando Agliareth ascendeu em sua direção, e o Caído levou a

mão direita para a esquerda de seu corpo, em seguida trançando um arco de

luz vermelha diante de si, conforme puxava a mão de volta para a direita. O

demônio gritou em dor, sua ascendência parando bruscamente, conforme

um arco de luz idêntico surgiu diante de seu peito. A lança de Lúcifer, até

então presa ao peito do demônio, arrancou-se, sendo puxada pelo arco de

luz, rasgando ainda mais a carne do demônio. Imediatamente, a lança

surgia na mão de Lúcifer, puxada por ele. O arco era um portal.

O infernal começou a cair após o último ferimento. “Agora que o

inimigo não mais está em Oostegor”, continuou Onesimus, “meu mestre

não precisa mais se preocupar com a destruição de sua casa”. Lúcifer

avançou contra o corpo decadente do inimigo, a lâmina da lança à frente de

seu corpo. Os dois oponentes se chocaram em pleno ar, e o demônio urrou

conforme a lança penetrava seu pescoço. Mais ainda, o urro prosseguiu,

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Page 335: Magna Veritas - Tiago José Moreira

conforme ambos, impulsionados pela Estrela da Manhã, caíram sobre a

Cidade Eterna, deixando um rastro vermelho no espaço negro. Os dois

inimigos caíram sobre um domo, causando uma onda de choque poderosa.

O domo ruiu, erguendo uma nuvem de poeira e lançando escombros a

centenas de metros de distância. A poeira nem tinha começado a baixar

quando vi uma forma, provavelmente o demônio, ser arremessada para fora

da nuvem, atravessando diversas casas e um prédio, que ruiu com o

impacto.

Tentei me jogar pelo buraco na parede da torre, a fim de voar em

direção à batalha. Porém, senti uma força me impedir. Como se atingisse

uma parede invisível, meu corpo recuou atordoado. Asphael me segurou,

impedindo que eu perdesse o equilíbrio e caísse. “Não podemos deixar

Oostegor”, Asphael murmurou, “enquanto Lúcifer não nos liberar”.

Um outro estrondo ecoou, vindo da Cidade Eterna. Porém, não

olhei para a batalha, e sim para trás, conforme senti algo se formar atrás de

nós. Meu coração parou e senti um calafrio. No mundo dos espíritos,

pressenti uma grande escuridão. E, sem me surpreender, uma voz

monstruosa ecoou nas mentes de todos que estavam próximos a mim. “É

exatamente isso que eu esperava que ocorresse”, a voz disse. Era a voz de

Agliareth.

Em terror, eu, meus companheiros que estavam presentes e os

Caídos próximos fitamos a criatura que nos observava da sala adjacente,

através dos buracos formados na batalha. A criatura movia-se sem emitir

som algum, e mesmo sua voz ecoava apenas em nossas mentes. Sua forma

era vaga, era como um ser transparente, a luz refratava ao atravessa-lo,

dando-lhe um contorno luminoso como se ele fosse feito de gás ou líquido.

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Page 336: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Sua forma era indistinta, mas semelhante à forma demoníaca que lutava

com Lúcifer naquele exato momento. “Agora que a Estrela da Manhã pensa

que está me derrotando, mantendo-me longe de sua fortaleza, eu posso

conseguir aquilo que realmente vim buscar”.

A criatura avançou, estendendo o braço à frente do corpo,

mostrando a mão aberta, seus dedos com garras pontiagudas. Ansgar emitiu

um grito, sua espada iluminando-se em chamas celestes. Num salto, o

Venator alcançou o demônio, desferindo um golpe que atravessou o

pescoço da criatura. O demônio, porém, nada sofrera, e continuou a

avançar. Sua mão se aproximava de minha face, conforme o corpo

translúcido do demônio passava através dos muitos Anjos Caídos em seu

caminho, sem feri-los. Asphael tentou agarrar o pulso do demônio antes

que sua palma me alcançasse, porém também a mão de Asphael atravessou

o demônio sem poder toca-lo. Assim que a palma da mão do infernal

alcançou meu rosto, sues dedos cortantes envolveram minha cabeça.

Embora ninguém pudesse tocar Agliareth, para mim ele era tão sólido

quanto rocha.

Embora até então a criatura fosse transparente, minha visão foi

bloqueada quando sua mão agarrou minha cabeça. Senti o monstro me

puxar com força, me erguendo do solo. Senti como se meu corpo batesse

com violência contra uma superfície d´água. Porém, meus sentidos me

diziam que na verdade eu tinha atravessado a barreira que separa matéria e

espírito. Pude perceber as emanações do mundo espiritual, obscurecidas

pela presença do demônio. Oostegor emanava tristeza e solidão, seus

espíritos murmuravam parcialmente insanos, abandonados e sozinhos.

Assim que fui puxado para o mundo dos espíritos, senti a mão de Agliareth

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me libertar, conforme fui jogado violentamente contra o chão.

Instintivamente, retornei à Forma Humana, fazendo desaparecer minhas

asas, antes que eu atingisse o piso.

Meu corpo rolou com o impacto, sofrendo múltiplas escoriações.

Meus olhos se abriram assim que parei de rolar, e fitei as paredes decrépitas

da versão espiritual de Oostegor. “Dentro de você”, disse Agliareth em

minha mente, “está a chave para libertar a todos nós”. Fitei o demônio,

agora um pouco mais sólido, como se fosse semimaterial. Sua forma era

sólida, claramente discernível, mas levemente transparente, indicando que

o que estava à minha frente era apenas seu espírito, não seu corpo. Ele era

ligeiramente diferente da forma de Azubah, seu corpo claramente

masculino, sua face parecendo com uma mistura de rosto humano e

crocodilo. Ao contrário da forma de Azubah, ele tinha chifres, e era menor,

tendo pouco mais de dois metros de altura.

“Lúcifer tinha razão”, murmurei. “Vocês não têm como encontrar

Veritatis sem mim!”.

O demônio se aproximou. “Lúcifer é um mentiroso”, sua voz

surgiu em meus pensamentos. Sua face não se movia. “Um mentiroso que

acredita nas próprias mentiras que conta, um ser incapaz de falar a verdade.

Por acaso, teria ele contado a respeito do pacto que fez?”.

Tentei escapar da mão de Agliareth, que se aproximava de mim.

“Que pacto?”, perguntei. Neste momento, a mão do demônio agarrou meu

pescoço, pressionando-o firmemente.

“Quando a hora chegar, Lúcifer fará a parte dele. Este é o pacto do

qual ele tentou escapar. Este é o destino que ele tenta evitar. Ele não deseja

o melhor para vocês, nem a salvação de seu precioso Primus desaparecido.

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Page 338: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Ele é um tolo que faz acordos por poder, pensando que pode escapar de

suas obrigações”. Os olhos do demônio se encontraram com os meus.

Fiquei em silêncio, pensando no que poderia fazer. No canto de

minha visão, vi uma forma materilizar-se. Uma forma masculina, poderosa,

que avançou contra o demônio. Unindo ambas as mãos unidas, Asphael,

agora também no plano dos espíritos, atingiu com violência o ombro de

Agliareth. A criatura cambaleou para a direita, mas não perdeu o equilíbrio

nem me soltou. O demônio se virou para Asphael.

“Pobre criatura”, disse o Grande Lorde, “eu não tenho a intenção

de lidar com você”. O chão tremeu, conforme escuridão parecia brotar de

rachaduras, crescendo rapidamente na forma de tentáculos. Antes que

Asphael pudesse reagir, um tentáculo o atacou por trás, envolvendo sua

cabeça, tapando sua boca. Outros envolveram seus braços e pernas. Pouco a

pouco, a escuridão crescia sobre Asphael. Das trevas, criaturas parecidas

com aranhas se formavam. Suas centenas de olhos vermelhos fitavam o

Arcanjo.

Enquanto Asphael lutava para escapar dos tentáculos de trevas,

Agliareth me fitou novamente. “Dentro de você estão as respostas que

procuro. Onde meus irmãos falharam, eu clamo vitória!”. Senti algo

estranho, uma sensação de estar me afogando. O olhar de Agliareth brilhou

com intensidade e senti o aperto em meu pescoço diminuir. Foi quando

percebi que uma névoa densa emanava da boca do Grande Lorde. Essa

névoa me envolvia e adentrava pela minha boca, preenchia meus pulmões.

Meu corpo todo doía, e sentia meus sentidos lentamente se apagarem.

Asphael gritou quando conseguiu livrar a boca da massa densa de

trevas. Com força, ele arrancava os tentáculos, arrebentando-os. Suas asas

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Page 339: Magna Veritas - Tiago José Moreira

se abriram, seu corpo emanou luz dourada. Aos poucos, as trevas iam

queimando, tornando-se fumaça.

Diante de mim, Agliareth se tornava mais e mais translúcido. De

repente, a pressão em meu pescoço desapareceu por completo, e caí no

chão. Sem forças, tombei de joelhos.

As aranhas atacavam Asphael vorazmente, conforme mais e mais

tentáculos surgiam para impedir seu avanço. Asphael caiu, mas continuava

lutando, tentando me alcançar. De repente, seu corpo brilhou ainda mais. O

Arcanjo gritou meu nome: “MESTRE NICODEMUS!”. Então, houve uma

explosão, e um clarão tão intenso que perdi minha visão. A explosão não

me feriu, nem senti qualquer impacto. Porém, com ou sem ela, eu já não

tinha mais forças, e tombei, meu peito batendo contra o chão frio.

Conforme o clarão desaparecia, eu via Asphael correr até mim. As

trevas e criaturas tinham sumido. Porém, quando o Arcanjo tocou minha

cabeça e tentou me erguer, as últimas forças deixaram meu corpo. Houve

apenas escuridão. Até mesmo os gritos de Asphael desapareceram,

conforme se tornavam cada vez mais distantes.

Em seguida, não senti nada. Não havia mãos me segurando, nem

um chão para me apoiar. Não estava quente nem frio, nem havia luz ou

sombra. Ouvi uma gargalhada infantil e vozes de alegria, que logo em

seguida se tornaram choros desesperados e gritos de ódio. Alguém, uma

criança, orava a Deus, pedindo que seu anjo da guarda a protegesse esta

noite. Ao mesmo tempo, um homem reclamava por já ser manhã e ter de

acordar. Senti medo e felicidade, tristeza e pesar. Um casal de namorados

declarava seu amor, enquanto uma mulher chorava ao apanhar de seu

marido. Alguém sonhava com o presente que ganharia em seu aniversário,

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Page 340: Magna Veritas - Tiago José Moreira

enquanto outra pessoa se preocupava com a perda de seu emprego.

Teorias científicas e ritos mágicos eram pronunciados ao meu redor. Não

era uma voz, nem duas, nem uma dezena ou uma centena. Eram milhões de

vozes, bilhões, formando uma cacofonia ensurdecedora, enlouquecedora.

Abri meus olhos, vendo apenas uma paisagem branca, sem solo ou céu,

infinita. Ao meu redor, imagens se formavam. Eram sonhos, pesadelos e

desejos. E vi rostos conhecidos e desconhecidos, ouvi palavras de

preocupação.

Eu já tinha ouvido falar deste lugar. Enquanto flutuava sem rumo

no vazio eterno, tentava desesperadamente tapar meus ouvidos para não

ouvir as milhões de vozes. O plano das idéias. O mundo astral. Sim, já ouvi

falar deste reino. Aqui, cada pensamento da humanidade ecoava. Aqui se

formam sonhos e pesadelos. Aqui está toda a memória da criação. Alguns

místicos podem acessar esses pensamentos para adquirir conhecimento,

mas ninguém a não ser o mais insano dos magos ousa tocar este plano por

mais do que alguns segundos. Nada pode sobreviver em meio aos

pensamentos de bilhões de seres humanos.

Foi quando adiante de mim vi meu reflexo. Ao contrário de mim,

ele estava calmo, controlado, seus olhos fechados. Por um instante, as

vozes cessaram, e perguntei: “Quem é você?”.

Meu reflexo agarrou-me pelo colarinho, seus olhos abriram-se,

emanando chamas. E então, as milhões de vozes falaram como se fossem

uma só voz: “Eu sou Agliareth, Senhor dos Pecados, e estamos no limite da

criação. Este é o reino das idéias, a última camada entre a criação e o Nada

Além. É um plano etéreo, sem forma, sem matéria. Nada que possa existir

no mundo da carne pode existir aqui, e mesmo as criaturas que aqui nascem

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Page 341: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não podem interagir a não ser em sonhos e pesadelos com os vivos.

Este é o limiar entre o ser e o não ser, uma camada mal formada que separa

Tudo e Nada”.

“Porque estamos aqui?”, pensei.

“A barreira que Uriel ergueu não se estende a este semi-plano.

Aqui, meus poderes são quase tão plenos quanto em meu Reino. Por

milênios percorri este plano, ouvindo os pensamentos e desejos da

humanidade. Mesmo antes da barreira, eu vinha aqui para encontrar aqueles

que me serviriam. A partir deste plano, seus sonhos e pesadelos eram meus,

e a partir deste conhecimento, pude compreender a verdadeira natureza do

homem. Aqui, Arcanjo Nicodemus, eu sou supremo. Aqui, entre o Tudo e o

Nada, eu sou rei! E você agora é meu brinquedo”.

“Não”, pensei em desespero, lutando para me livrar do toque do

demônio. Assim que as mãos da criatura me soltaram, a cacofonia de

bilhões de vozes voltou a invadir minha cabeça. Eu gritei em desespero,

incapaz de suportar aquela invasão. Minha alma parecia tremer e queimar,

tamanha era a força emitida pelos pensamentos da humanidade. Eu flutuava

desgovernado, girando sem rumo pela eternidade.

Meu vôo desgovernado foi impedido, porém, quando senti algo me

envolver. Eu estava sobre uma palma de uma mão gigantesca. À minha

frente, Agliareth, agora na forma de um imenso dragão, olhava para mim.

As bilhões de vozes novamente falaram como um só ser: “Aqui, você não é

nada, Celestial. Aqui, sua mente é um livro aberto para mim, escrito na

mais clara e direta linguagem. Há apenas uma única informação que desejo,

porém”.

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Page 342: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O dragão fechou sua mão, me envolvendo em escuridão.

Quando a escuridão desapareceu, estava novamente à minha frente meu

reflexo, segurando-me pelo colarinho. Seus olhos flamejantes fitaram os

meus e então por um instante me largou. Antes que eu pudesse me afastar,

voltando à enlouquecedora cacofonia, porém, suas mãos envolveram minha

cabeça. Os polegares tocaram as minhas bochechas, enquanto as pontas dos

demais dedos encostaram-se a meu rosto. E então, senti os dedos do Grande

Lorde penetrarem minha carne e crânio. Eu tentei gritar de dor, mas não

conseguia. Sequer podia me debater.

Conforme a dor se tornava mais forte, ouvi trovões e o rugido do

tigre. Minha mente voltou no tempo, trazendo flashes de um passado

distante. Revi, por um segundo, minhas experiências arcanas em vida e, em

seguida, me vi morrer novamente, vítima dos meus próprios atos tolos. Vi-

me na escuridão, cercado por seres de luz, e uma voz me dizia que eu era

especial. Vi-me renascer. E, um a um, vi os desafios que superei durante

meu século de existência celeste. Ouvi novamente os trovões. Com as

forças que me restavam, eu tentava impedir que o demônio alcançasse meu

sonho. Eu tentava esquecer o sonho, mas quanto mais me esforçava, mais

claramente a visão surgia em minha mente.

O sonho veio. A dor impediu que eu pudesse resistir mais. O

demônio finalmente tocou aquilo que estava guardado dentro de mim... E vi

uma grande praça, em uma imensa cidade cheia de mesquitas e esplendor.

E ecoaram, trazidos pelo vento, gritos de dor. Pessoas estavam sofrendo.

Um rosnado inconfundível se seguiu, um rosnar de tigre. E vi paredes de

pedra manchadas com sangue. Um tigre feroz matando pessoas, uma a

uma; suas garras e presas dilacerando carne e partindo ossos; gritos de

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morte e horror. Então, o tigre correu por um imenso deserto, raios e

trovões o seguiam, e sua sombra projetava uma escuridão ilimitada.

A passos rápidos, o animal atravessou a vastidão árida, rumo a uma

grande montanha. Como se visse através dos olhos do animal, o vi escalar

aquela montanha, sem que nenhum obstáculo pudesse desacelerar seu

progresso. E, do alto da montanha, contemplei uma cidade cujas glórias do

passado já haviam se extinguido, em cujas ruas dois irmãos atacavam-se

com paus e pedras. E senti pulsar nos subterrâneos daquela cidade um mal

muito grande, que inspirava a violência nas ruas. E vi ali uma via

manchada com sangue. E vi sombras do passado percorrendo-a, homens

carregando cruzes nas costas e espinhos na cabeça, sob a vigília de oficiais

romanos e diante de uma multidão feroz, que se deliciava e se horrorizava

com a visão dos condenados à crucificação.

Raios e trovões seguiram-se, conforme a cidade de antigas glórias

foi encoberta por nuvens escuras. E o tigre rugiu, fitando o horizonte. E vi,

além do horizonte, além do mar... eu vi... fogo.

Senti meu corpo queimar por dentro, por inteiro, como se minha

alma estivesse sendo destruída. Gritei. Um som de desespero foi emitido

pelo minha boca, conforme sentia meu corpo inchar, como se algo

insuportavelmente causticante surgisse em mim. Meu grito foi tão forte que

o Grande Lorde me soltou, afastando-se em confusão, seus dedos saindo de

minha carne como se eu fosse feito de argila. Abri meus olhos, e fitei meu

corpo queimar. Eu estava envolto em chamas. Meu grito atormentado

tomou todo o plano astral, ecoando infinitamente. Senti algo entalar em

minha garganta, engasguei. Mas então, conforme a necessidade de vomitar

me tomou, liberei aquilo que estava dentro de mim.

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Page 344: Magna Veritas - Tiago José Moreira

E, com o horror, o demônio, usando minha face, recuou.

“Não”, milhões de vozes gritaram, “não é permitido que você esteja aqui!”.

As chamas saltaram de minha boca, expandindo e tomando forma. E, entre

eu e o demônio, surgiu um colosso gigantesco, que fazia minúscula mesmo

a forma dracônica que o demônio usara há pouco. Sua luz emanava por

todo o vazio infinito, suas asas imensas eram puro fogo, e sobre a cabeça

estava sua coroa. À mão estava uma espada de chamas, que ele usou para

apontar para a forma diminuta do demônio. Metatron nada disse, apenas

fitou o inimigo. “Você não pode protegê-los sempre! Você não tem poder

dentro da criação! Avise ao seu Criador, se é que ele ainda vive, que não

importa o que façam, nosso momento ainda chegará!”. Metatron ergueu a

espada, mas antes que pudesse atacar, Agliareth urrou, sua forma tornando-

se uma multitude de morcegos e insetos, espalhando-se pelo infinito,

desaparecendo segundos depois.

Eu flutuava inerte pelo infinito, minha alma ardendo em dor. Meus

olhos se fechavam, lentamente, conforme a cacofonia voltava a me atacar.

Metatron virou-se para mim, estendendo sua mão. Eu caí em sua palma. E,

conforme a dor sumia e a mão de Metatron se fechava, ouvi sua voz:

sussurrando como uma brisa suave, podendo ser ouvida apenas no meu

subconsciente. “Sinto muito por tudo o que você tem de passar. Sinto muito

por ter de colocar tamanho fardo em suas mãos. Mas saiba que você não

está sozinho. Nenhum de vocês nunca está sozinho”.

Escuridão se seguiu. E um confortável silêncio.

Ouvi um som de água corrente... Meus olhos se abriram

lentamente. Uma luminosidade fraca os atingiu, fazendo-os piscar. Senti

meu corpo fraco, meus braços caíam sem força ao meu lado. Eu estava nos

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braços de Asphael. À minha frente, estavam os meus companheiros,

todos eles. Meu olhar os percorreu, um a um, todos expressando

preocupação. Millard estava com eles, assim como Onesimus e Amazarak.

Ali perto, estava Surial. Estávamos novamente no salão principal de

Oostegor, o som de água vinha do portão das termas, que estava aberto.

Outros Caídos estavam por perto.

“Você está bem, Mestre Nicodemus?”, perguntou Asphael, pondo-

me no chão. Minhas pernas fraquejaram, mas Asphael me ajudou a manter-

me em pé.

“Sim”, eu disse, minha voz ainda fraca. “Minha mente deixou meu

corpo, estive à mercê do demônio, mas fui salvo”.

“É um homem especial, Philipe Nicodemus”, a voz de Lúcifer

ecoou pelo salão. Virei-me para o Príncipe dos Caídos, que adentrava. Suas

roupas tinham vários rasgos e seu sangue manchava o tecido. Sua lança

também pingava sangue, mas a Estrela da Manhã em si parecia intocada,

seu cabelo perfeito, seu rosto limpo, sua face inalterada pela batalha que

acabara de enfrentar. “É de fato um ser que tem mais do que mostra e é

mais do que sabe”, Lúcifer murmurou.

Encarei a Estrela da Manhã. O salão estava bem iluminado, a aura

vermelha do Príncipe dos Caídos já tinha desaparecido. “Lucibel, você

precisa nos dar permissão para deixar Oostegor”.

“Depois de tudo o que ocorreu?”, perguntou Lúcifer. “Será que

vocês são incapazes de entender que, se continuarem, darão a eles o que

desejam?”.

“Sim, eu entendo”, respondi. Mesmo fraco, me esforçava para

erguer a cabeça e encarar os olhos frios de Lúcifer. “Entendo que apenas eu

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Page 346: Magna Veritas - Tiago José Moreira

tenho o conhecimento que eles desejam. Entendo que a única forma de

conseguirem tal conhecimento é mantendo-me sob vigilância. Entendo que,

se deixar Oostegor, serei uma presa fácil para o tigre”.

“E ainda assim, quer continuar em sua missão? O que o faz

acreditar que pode supera-los? O que carrega em si para ter tamanha

confiança?”, a Estrela da Manhã indagou.

“Eu sei que não estarei sozinho”, respondi, sem desviar meu olhar.

Lúcifer parou, sua expressão mudou de frieza para desgosto. “Fé”,

ele disse, “Só a fé o mantém nessa busca. A mesma fé que ensinam aos

mortais. A mesma crença infundada, baseada no impossível, facilmente

corruptível. Ainda assim, acreditam nessa besteira”.

“Eu não entendo como um Primus pode dizer isso”, respondi.

“Você com certeza viu muitas maravilhas em sua existência. Viu e

acreditou”.

“Ser traído abriu meus olhos”, respondeu Lúcifer, com rancor.

“Mas verdade seja dita, o que me pede é uma tolice. Você é como uma

criança que deseja contrariar o pai por pura inocência. Vocês próprios

sabem que, por mais que tentem guiar os mortais, eles os ignoram

simplesmente por ignorância. Por acreditarem que são donos de si, por

pensarem que são livres, preferem sacrifícios e dor à proteção daqueles que

são mais sábios e mais experientes. Vocês são para mim como os mortais

são para vocês. Vocês são para mim o que uma criança é para um pai. Eu

não permitirei que deixem este lugar para sacrificarem tudo. Eu não vou

deixar que esta fé cega, esta ignorância traga morte e destruição”.

“Assim como quis fazer com os mortais? Conduzi-los pela força,

pelo medo, por ser mais forte?”, indaguei.

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Os olhos de Lúcifer Estrela da Manhã brilharam vermelhos. “É

assim que deve ser. Pelo futuro, é preciso conduzi-los, impedi-los de tomar

as decisões que os ferirão. E assim será com vocês. Vocês não têm a menor

chance de serem vitoriosos”.

Argumentos escapavam de minha mente. Embora minha convicção

me dizia que Lúcifer estava cego pelo orgulho, pela crença que conhecia o

único caminho correto, eu não sabia como convencê-lo, como vencer essa

barreira entre mim e ele. Antes que eu pudesse falar algo, porém, a voz

feminina de Karina se ergueu: “Mas você pode!”.

O brilho nos olhos de Lúcifer desapareceu imediatamente. Ele se

voltou para Karina, ainda olhando com frieza. A jovem se aproximou, a

passos lentos, um pouco temerosa. “Você pode enfrenta-los. Você sabe o

que eles querem. Você os entende melhor do que nós”. Uma lágrima caiu

pela face da Supervivente.

“O que está dizendo?”, perguntou Lúcifer, demonstrando surpresa.

“Por favor, nos ajude!”, Karina pediu. “Venha conosco. Você já foi

um de nós, já foi um dos maiores entre nós! Mesmo que não queira estar

com os outros no Éden, por favor, nos ajude!”.

Lúcifer recuou, esperando tudo, menos uma súplica. “Por quê...?”,

ele murmurou, então erguendo a voz: “Por que eu os ajudaria?”.

“Você fala em ajudar”, disse Karina, “fala em se preocupar com o

futuro, em nos guiar. Então nos guie! Você fala em ser como um pai, então

nos acompanhe como um pai faria! Um pai que ama seus filhos saberia

estar ao lado deles quando eles precisassem”. A Supervivente falava quase

chorando, talvez pela emoção de suas palavras, talvez pela tensão que se

formou ao longo desta noite infernal. Suas lágrimas escorriam, seus olhos

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fitavam Lúcifer Estrela da Manhã, deixando-o surpreso, sem resposta.

“Se não somos grandes o suficiente para caminharmos sozinhos, caminhe

conosco. Por favor, nos ajude!”.

Lúcifer virou as costas para Karina, talvez por ser incapaz de fita-

la, talvez por sua mente se lembrar de um tempo há muito esquecido,

quando ele jamais negaria um clamor como este. Então, para minha

surpresa, as palavras de Lúcifer vieram fracas, murmurantes: “Há certas

decisões que não têm volta, há certos erros que não podem ser corrigidos.

Vocês estão livres para ir. Mesmo que falhem, esta foi a escolha de vocês,

lembrem-se disso. E me perdoem pelo que terei de fazer em breve”. Dito

isso, Lúcifer se afastou, diante dos olhares perplexos dos Caídos presentes.

O Príncipe dos Caídos saiu silenciosamente, subindo as escadas que

levavam ao andar superior do salão.

Amazarak sorriu, murmurando: “Já faz muito tempo que alguém

conseguiu tocar Lucibel”. O ancião pediu que Onesimus cuidasse de

Oostegor, então se voltou a nós: “Venham, meus amigos, eu os levarei até a

saída”.

Deixamos os portões de Oostegor, atravessando o jardim de

estátuas. A escuridão acima envolvia a Cidade Eterna, novamente

silenciosa e plácida. Pelas ruas, multidões de Anjos Caídos observavam a

destruição causada pela batalha. Prédios ruíram, casas foram destruídas,

monumentos foram irreparavelmente danificados. Deixávamos para trás a

torre negra de Oostegor, um monumento solitário, delineado por milhares

de tochas, como se fosse um atestado ao ar depressivo e solitário do lar dos

Anjos Caídos.

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No meio do caminho, Absolon perguntou a Amazarak: “Senhor

Amazarak, posso fazer uma pergunta a você?”.

“Claro, jovem Princeps”, disse Amazarak.

“Você não é como os outros, parece mais um de nós”, disse

Absolon, “porque ainda é um Anjo Caído?”.

“Não tenho certeza se posso voltar ao Éden, nem se quero, jovem

Princeps”, disse Amazarak. “Talvez me aceitem, mas meu medo está

sempre me dizendo que não. De qualquer forma, não acho que devo

abandonar a Corte Negra. Eles precisam de mim”.

Asphael concordou. Então, Al-Malik disse: “Pode se considerar um

Puro, Amazarak, pois a marca em sua testa sumiu há muito tempo. Me

surpreendi quando pela primeira vez vi você”.

Amazarak olhou surpreso para Al-Malik. “Então, é ainda mais

importante que eu fique, para ajudar os meus irmãos a encontrarem paz.

Um dia, Al-Malik, eu fui como Azubah, me vendi. Por milênios, fui

consumido por orgulho e ódio, até que, em um momento, senti que não

restava mais nada em mim. Como lenha, tudo o que eu tinha foi queimado

pelo meu ódio, pelo meu senso de vingança. Foi então que decidi expurgar

os demônios dentro de mim”.

“Foi um Luciferite?”, perguntei, surpreso. “Pensei que eles não

tinham mais salvação”.

“Mesmo demônios têm salvação, Philipe Nicodemus, mas nem

todos eles. Eu fui uma exceção... Sinto, bem no fundo, que desde o começo

não era meu destino ser um deles, houve uma hora que percebi que estar

com eles era como ser nada”.

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Page 350: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Naquele momento, subíamos as escadarias que levavam às

cavernas para fora da Cidade Eterna. Assim que subimos a escadaria,

chegando ao topo, eu me virei para fitar aquele lugar pela última vez.

Nuvens de poeira e fumaça ainda se erguiam, resquícios da batalha recente.

Então eu disse a Amazarak: “Realmente, acho que você tem que guia-los”.

Amazarak retrucou, como se murmurasse a si mesmo: “Digo-lhes

que só me sentirei pleno quando tiver expurgado os demônios de Lúcifer

também. Meu mestre é um bom homem, eu o acompanho desde o começo,

sei o quanto sofre com as decisões que tomou”. Então, ele se virou para a

caverna, esticando o braço esquerdo à frente do corpo. “É hora de vocês

irem... Boa sorte em sua missão”. Ao alcance da mão de Amazarak, o ar

ondulou como se fosse uma superfície aquosa. O portal emanava um leve

brilho dourado, perceptível apenas nas ondulações que se formavam.

“Obrigado”, agradeci, apertando a mão de Amazarak. Um a um,

meus companheiros fizeram o mesmo. Então, logo depois adentramos o

portal. Primeiro Absolon, ao lado de Fabrizia. Em seguida Ansgar, depois

Lo Wang e Al-Malik. Karina segurou minha mão, pedindo para me

apressar. Ambos atravessamos o portal, deixando apenas Asphael para trás.

O Arcanjo viria logo depois.

Quando senti a superfície aquosa do portal me tocar, foi como

atravessar suavemente uma pequena queda d’água. Fechei meus olhos ao

ter aquela sensação... Mas então, ouvi uma voz ecoar.

“Philipe Nicodemus”, ouvi. Estava escuro, eu flutuava no vazio.

Abaixo, notei as luzes de uma cidade distante. Um vento frio tocou meu

rosto, mas então senti o calor de fogo. “Os perigos ficaram para trás,

estamos um passo à sua frente”, disse Metatron, se formando diante de

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Page 351: Magna Veritas - Tiago José Moreira

meus olhos. Tamanha era sua magnitude que seus pés tocavam no

chão, quilômetros abaixo, e sua cabeça estava quilômetros acima. Suas asas

flamejantes encobriam todo o horizonte atrás dele. Ele apontou sua espada

de fogo, e então minha visão se distanciou na direção em que a espada

apontava. Como se eu voasse em alta velocidade, percorri o Mar

Mediterrâneo e sobrevoei parte do noroeste africano, alcancei o Oceano

Atlântico e prossegui, sempre na direção que Metatron apontara. Foi

quando vi, além do oceano, uma baía, e uma cidade iluminada, uma cidade

maravilhosa. E, no alto de uma montanha, um segundo gigante me

esperava: Cristo, de braços abertos me saudando. “Agora, temos que

alcançar o Arcanjo da Verdade antes de nossos inimigos”.

Abri meus olhos, levando minha mão à cabeça, meio tonto. Notei

meus companheiros me cercando. A brisa fria da noite tocava meu rosto, e

o portal de Amazarak já tinha se fechado. “Philipe, está tudo bem?”,

perguntou Karina.

Olhei ao redor. Estávamos no parque aonde encontramos os Caídos

pela primeira vez. Estávamos próximos a Domus Aurea. Provavelmente, o

portal para a Cidade Eterna por onde entramos originalmente já não mais

existia. Sorri, ao ver o rosto de Karina, e então olhei cada um dos meus

companheiros.

“Eu sei aonde devemos ir agora”, respondi. “Tive uma última

visão, uma última revelação! Agora que nossos inimigos falharam ao tomar

a frente da busca, nós estamos em vantagem, e finalmente eu pude entender

qual o local em que está Veritatis”.

“Aonde?”, perguntou Al-Malik.

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Page 352: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Não é um lugar sagrado, tampouco um local que eu esperava”,

respondi, abrindo um portal diante de mim. Minhas energias estavam fracas

após tantas provações, e tenho certeza que meus companheiros também já

estavam exauridos após tantos combates, mas me dei o luxo de poder criar

este último portal. “Vamos”, pedi, indicando que fossem em frente, “Cristo

nos aguarda de braços abertos”.

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Page 353: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 16: Sob os Braços de Cristo

Aquela foi a mais longa das noites, quando o véu negro do céu nos

acompanhou por mais horas do que o normal. Do Irã a Israel, de Israel à

Itália, e agora da Itália ao Brasil, por horas e horas estivemos combatendo,

fugindo, questionando. Quanto tempo foi? Oito horas de escuridão? Ou

mais? Eu nem sei. Eu me lembro de quando deixamos Chak-chak para trás,

mas parece fazer tanto tempo... como se fosse outro dia, e de fato era.

Agora que mais uma vez atravessávamos um portal, que nos levou ao oeste,

é irônico lembrar que regressamos pelo menos quatro horas no tempo, e

que esta maldita, interminável noite estava apenas começando de novo. De

fato, se era madrugada de um novo dia em Chak-chak há horas atrás, agora

estávamos no dia foi ontem, e o novo dia em Chak-chak só chegará ao Rio

de Janeiro dentro de algumas horas. Estava exaurido, e uma frase se repetia

em minha mente: “Eu estou cansado, muito cansado”.

Eu sabia que meus sete companheiros pensavam o mesmo. O que

presenciamos naquela noite interminável estava além de tudo o que

presenciamos em todas as nossas vidas. Contemplar o poder de três

Grandes Lordes sendo manifestos na Terra era algo impensável,

imprevisível. Presenciar a força do Príncipe dos Caídos também foi uma

experiência impressionante. Mas agora tínhamos a sensação de que os

males tinham ficado para trás, que nossa longa jornada se aproximava do

fim. Agora, enquanto atravessávamos os céus do Rio de Janeiro, Cristo nos

saudava de braços abertos.

“E agora?”, perguntou Absolon, sua voz obviamente cansada e

fraca, “Qual é o próximo passo que devemos seguir?”.

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Page 354: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Eu fitei o jovem Princeps, observando a fraca aura dourada que

circundava seu corpo e as faixas luminosas que formavam suas asas.

Apesar de meus poderes nos ocultarem dos mortais que poderiam nos ver

do solo, nós podíamos nos perceber sem dificuldades. E eu podia

claramente notar que não apenas Absolon, mas todos s outros também

tinham auras fracas, um reflexo de seu estado de espírito. Todos estavam

exaustos, não de corpo mas de alma. Todos se mantinham na busca apenas

por determinação, por força de vontade. Apenas um de nós ainda brilhava

com intensidade, enquanto ia à frente, seu corpo brilhando como fogo

dourado. O Arcanjo Asphael Veritas se mostrava um pilar de confiança e

devoção, sua força tendo apenas crescido desde que as várias provações

começaram.

“Eu não sei Absolon”, respondi, “Metatron apenas me mostrou o

nosso último destino, mas ainda precisamos descobrir onde procurar”.

“Por algum lugar precisamos começar”, disse Al-Malik, parando

em pleno ar. “Não podemos simplesmente procurar em todos os cantos

desta cidade. O Velho está aí em algum lugar, mas onde? Deve haver

alguma pista!”.

Todos paramos, formando um círculo luminoso nos céus. Asphael,

que tomava a frente, retornou para reunir-se com o grupo.

“Eu não sei nada sobre esta cidade”, disse Armin Ansgar.

“E nem eu”, murmurou Al-Malik.

“Confesso eu também não compreender esta terra, nem o Novo

Mundo”, disse Asphael Veritas, “meu tempo e meu povo eram outros.

Conheço as velhas terras que um dia foram a Suméria ou a Persa, conheço

as areias onde se construíram pirâmides, e sou familiar com os locais onde

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Page 355: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Roma e Grécia se estabeleceram. Mas aqui... aqui é uma terra nova que

só conheci através de contos, ou pelas quais passei apenas ligeiramente”.

“Temos pouco tempo”, eu disse, “em minha visão, Metatron me

disse que estávamos finalmente à frente de nossos inimigos. Mas ainda

assim eles podem nos alcançar a qualquer momento. O que decidirmos

fazer, precisamos fazer logo”.

“Talvez...”, sussurrou Karina. “Talvez devêssemos descansar um

pouco”.

“Certamente a jornada se prova árdua”, respondeu-lhe Asphael,

“mas podemos nos dar este luxo?”.

“Não podemos”, respondi, mesmo sabendo que não seria uma

resposta agradável. “Eu ainda sinto ele se aproximar”, disse, fechando

meus olhos. E num local distante, ouvi o rugido do tigre, a milhares de

quilômetros de distância, seguido de trovões e o uivo de uma ventania. “Ele

virá até nós”.

“E se alguém puder procurar por nós?”, Karina questionou, sua voz

demonstrando um pouco mais de ânimo, seus olhos brilhando com

intensidade, enquanto sua própria aura se intensificava. “E se

procurássemos o Samuel?”.

“Fulmen?”, perguntei, mesmo sabendo exatamente a quem ela se

referia.

“Não é arriscado envolvermos mais pessoas em nossa busca?”,

perguntou Al-Malik. “Desde o começo, estivemos sob constante perigo.

Não acho seguro colocarmos mais pessoas em risco”.

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Page 356: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Fitei Al-Malik, e então fitei a cidade abaixo de nós, pensando

na proposta de Karina. Fitei as luzes do Rio de Janeiro, e então o Cristo tão

próximo, e então voltei-me a Karina: “Vamos procura-lo”.

Antes que pudessem contestar minha decisão, mergulhei em

direção à cidade, então novamente ganhando altitude e tomando a frente.

Talvez fosse o cansaço que me fez cometer tal ato, pois só depois percebi

que não esperei qualquer opinião de meus companheiros. Em silêncio, eles

tomaram formação nos céus, me seguindo. O vento da noite batia em meu

rosto conforme cruzávamos os céus, em meio a poucas nuvens e sob um

céu estrelado. Minha cabeça estava cheia demais para pensar direito. Tudo

o que eu conseguia me concentrar era no Velho, a chave para chegarmos a

Veritatis e concluir nossa busca. Ele estava em algum lugar lá em baixo,

em meio às luzes do Rio de Janeiro. Ele estava próximo, mas onde? Por

onde começaríamos? Quem procuraríamos? Perdido em pensamentos, às

vezes vozes desconexas do Plano das Idéias se repetiam em minha mente,

lembrando-me da traumática experiência que Lorde Agliareth me impôs.

Eu tentava evitar as vozes, me manter concentrado, mas o cansaço me

impedia.

“Philipe! Philipe!”, uma voz feminina se repetia. Só após ecoar na

minha mente pela terceira vez que percebi que não era um devaneio ou uma

lembrança desagradável. Karina me chamava. “Aonde está indo? Samuel

mora em algum lugar abaixo”. Parei imediatamente, fitando-a, notando que

por um momento minha mente tinha se perdido no mar de pensamentos.

“Você está bem, Philipe?”, ela perguntou, me fitando, assim que parei.

“Estou bem, Karina, apenas cansado”, respondi, primeiro

observando-a, então olhando os companheiros que nos seguiam.

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Page 357: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Precisamos descer mais”, ela pediu. “Daqui não conseguirei

reconhecer o prédio de Samuel. Quer que eu tome a frente?”.

Movi a cabeça positivamente. Karina sorriu, talvez por desejar se

reencontrar com Fulmen, talvez por eu ter dado a ela a posição de líder do

grupo, nem que fosse apenas para mostrar o caminho... Então, minha mente

se lembrou do que Melkel Veritas disse a ela, quando nossa missão nos foi

revelada: “Karina Ariel, por mais que tema se ferir e por mais que se julgue

um peso para os demais, você é quem poderá guia-los quando estiverem

perdidos”. Finalmente começo a ver que o Conselho estava certo sobre

todos nós. Estávamos perdidos, sem saber nosso rumo. Encontrar Fulmen

era o melhor que poderíamos fazer.

Karina deu meia-volta, fiz um sinal para que os outros a seguissem.

Ela olhou o horizonte a leste, onde o mar e o céu negro da noite se

tocavam, e então fitou as luzes da cidade abaixo. Então, disparou, sua aura

azul tornando-se mais forte. Aceleramos, conforme a jovem se direcionava

a nosso destino.

Logo as luzes abaixo se tornavam mais próximas. Se não fosse

pelos poderes ilusórios de Lo Wang, certamente os mortais abaixo notariam

nossas oito formas luminosas sobrevoando logo acima de seus edifícios de

concreto. Abaixo, os carros percorriam as múltiplas avenidas, e era difícil

distinguir sobre que parte da cidade sobrevoávamos. O mar preenchia o

horizonte ao leste, sendo difícil perceber onde as águas escuras tocavam o

céu negro. A noroeste, o corcovado despontava, e eu por um momento

novamente fitei a figura distante de Cristo, iluminada em meio à escuridão

do céu e da montanha. Onde estávamos? Sobre o bairro de Laranjeiras? Ou

sobre Botafogo? Faz tanto tempo que eu passei por aqui pela última vez

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Page 358: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que é até mesmo difícil saber como posso me lembrar dos nomes. De

qualquer forma, esta não era uma noite comum, e as vozes em minha

cabeça a todo momento me lembravam do passado, mesmo aquele que

deveria ser esquecido.

Karina prosseguia sem hesitação, seus poderes de Supervivente

guiando-a com precisão impressionante. Enquanto para mim todos os

prédios pareciam iguais e as ruas abaixo apenas se repetiam, ela sabia

exatamente qual seria nosso destino. Então, de repente, ela mergulhou,

nosso grupo acompanhando-a de perto. Um prédio menor do que os demais

que o cercavam estava logo ao nosso lado, e mesmo eu pude reconhece-lo.

Quanto tempo faz que estive aqui? Cinco anos? Oito anos? Talvez mais.

Não me recordo exatamente quando, só sei que fui eu quem apresentou a

Samuel o apartamento. De repente, minhas palavras naquele dia retornaram

em minha mente: “Um lar como outro qualquer na grande metrópole, num

bairro de classe média, mas próximo à riqueza e pobreza, um local perfeito

para se deslocar, pelas ruas ou pelos céus, a qualquer região da cidade”.

O chão estava mais próximo agora, e nossas auras irradiavam luz

que tocava a lateral do prédio. Graças a Lo Wang, mesmo tal luz era

ignorada pelos mortais que poderiam estar observando. Karina foi a

primeira a ter seus pés tocando o chão. Ela pousou logo já dentro do prédio,

ao lado de um pequeno jardim, no caminho que passava ao lado do posto

do vigia do prédio, e que levava do portão, vigiado com câmeras, ao hall de

entrada. O vigia, vendo alguma novela ou série na minúscula televisão que

possuía, não percebeu nada, e nem poderia, a não ser que seus sentidos

superassem as Ilusões de nosso Kage. Imediatamente, as asas de Karina

desapareceram, recolhendo-se para além dos rasgos em suas roupas, e a

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Page 359: Magna Veritas - Tiago José Moreira

jovem Supervivente adentrou o Hall, dando espaço para que, um a um,

nós também pousássemos.

As portas de vidro que levavam para o hall de entrada estavam

abertas, e ao adentrar Karina acabou acionando as luzes, que ligaram ao

sentirem movimento no local. Lo Wang podia enganar mentes, mas não

máquinas. Assim que pousei, tratei de verificar a presença de câmeras.

Felizmente, nenhuma à vista, a não ser no portão, observando a rua. Então,

olhei o vigia, que ainda se mantinha entretido pelo programa de TV e não

percebeu a luz acender. Sorte, pois se sua atenção se voltasse para nós, o

véu místico que nos protegia poderia ser descoberto, e seria difícil não só

explicar nosso surgimento ali, como explicar nossas roupas rasgadas e

ensangüentadas pelo conflito com os Caídos em Oostegor. Segui Karina,

então, enquanto Absolon e Fabrizia pousavam praticamente juntos e lado a

lado. Asphael veio em seguida, e então Ansgar e Lo Wang. O último a

descer foi Al-Malik.

Ansiosa, Karina pressionou o botão do elevador. Eu tinha minhas

dúvidas se oito pessoas caberiam ali. Antes que as portas se abrissem,

porém, Absolon perguntou: “Como é este tal Samuel?”. Ao mesmo tempo,

por precaução, eu apertava o botão para chamar o segundo elevador.

“Ele é um Sancti”, respondeu Karina, “e um grande amigo meu. Na

verdade, é uma das melhores pessoas que já conheci. Ele é um Elohim, um

grande guerreiro... e tem muitos séculos de experiência”.

“Não muito diferente de mim”, disse Ansgar, “pelo que me lembro

que você comentou sobre ele, em Dur Sharrukin”.

O meu elevador tinha chegado, mas nem sinal do elevador de

Karina. Segurei a porta, esperando que ela terminasse de descrever Samuel.

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Page 360: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Ele foi um cruzado”, ela disse, “e a história dele não é muito diferente

da sua, Armin”.

O segundo elevador chegara, e Karina adentrou-o. Vendo que parte

do grupo entrava no primeiro elevador, ela avisou: “É no oitavo andar”.

Apoiei-me na parede oposta à porta do elevador, observando

Absolon, Al-Malik e Fabrizia entrarem. Conforme a porta se fechava, Al-

Malik me fitou. “Me sinto exausto, Nicodemus. Como se meu tempo como

Celestial fosse pequeno, e meu poder fosse diminuto”, disse o Malaki,

levando as mãos ao rosto, esfregando-as nos olhos.

Observei Absolon e Fabrizia. Absolon estava pensativo, distante,

enquanto Fabrizia tinha um aspecto de tristeza. Ela tentava se apoiar nele,

pendendo a cabeça sobre o ombro do Princeps. Ao notar meu olhar,

Fabrizia forçou um falso sorriso, que infelizmente não consegui retribuir.

“Todos estamos cansados, pelo visto”, eu disse. “Não é surpresa alguma.

Mas se Deus permitir, poderemos descansar esta noite”.

“É uma boa idéia?”, perguntou Absolon. “É uma boa idéia

pararmos a busca? E se o tigre, ou um outro, vier?”.

“Estamos à frente do inimigo desta vez, Achille”, respondi, fitando

a luz no teto do elevador. “Temos tempo...”, eu murmurei. Embora minha

preocupação era a mesma de Absolon, no fundo eu sabia que, no estado de

fadiga mental em que estávamos, não conseguiríamos prosseguir.

Quando a porta do elevador se abriu, Karina já se encontrava à

frente, no corredor. O grupo mal cabia no pequeno espaço. Adiante,

estavam três portas, uma delas levando às escadas. Karina tocava a

campainha do apartamento 802.

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Page 361: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Houve uma certa demora. Atravessando por entre os membros

do grupo, me pus ao lado de Karina, ansioso por ver Samuel Fulmen

novamente. “Um momento”, a voz dele disse, vinda de algum cômodo nos

fundos do apartamento. Alguns segundos depois, o som de chaves, e a

fechadura da porta se abrindo. Então, Samuel abriu a porta.

Samuel tinha mudado pouco, e ao pensar nisso, me veio um sorriso

nos lábios. Quando o conheci, eu era jovem e ele também, pelo menos em

aparência, mas mais de sete séculos de existência nos separavam. Agora, eu

era um velho, e ele ainda era o mesmo. O mesmo caucasiano, de pele muito

clara, sem barba alguma. Suas feições claramente masculinas e angulares,

seus olhos negros ainda brilhando com determinação. Seus cabelos lisos e

negros, porém, agora eram compridos, caindo até a altura dos ombros.

Engraçado como ele continuava um pouco mais baixo que eu, um fato do

qual eu sempre fiz questão que ele lembrasse, devido às nossas constantes

provocações amistosas que fazíamos um ao outro. Ele vestia calça jeans e

sapatos, e uma camiseta negra, com os dizeres “Cry Havoc”. Tinha um

relógio prateado no braço, e sua face mostrou surpresa ao nos ver.

“Karina?”, ele murmurou e, antes que pudesse sorrir, ela o abraçou,

exclamando: “Samuel!”. Engraçado como sorri ao ver aquela cena.

Samuel a abraçou com força, a princípio nem ligando para a

presença dos demais. Então, ainda com Karina nos braços, ele me fitou, sua

face se tornando imediatamente séria, seus olhos fitando os meus. “Sinto

cheiro de sangue, Philipe Nicodemus”, disse ele seriamente, até mesmo de

forma ameaçadora.

Fiquei calado, apenas o fitando. Senti uma certa tenção em meus

companheiros, como se Samuel tivesse algo sério a me dizer, ou alguma

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Page 362: Magna Veritas - Tiago José Moreira

repreensão. Um silêncio incômodo se seguiu... até que não agüentamos

e ambos rimos. Era apenas mais uma de nossas brincadeiras. Samuel se

afastou de Karina e pôs a mão em meu ombro, sorrindo. “Entrem”, o Sancti

disse, “a casa é de vocês, mas não reparem a bagunça”.

Uma modesta sala de tevê era o primeiro cômodo no apartamento.

Uma estante continha a televisão e alguns adornos, especialmente relíquias

como brasões e estatuetas. Um sofá de três lugares ficava de frente à tevê,

com uma pequena mesa à frente, sobre a mesma um conjunto de anotações

e jornais. Dois outros sofás, de dois lugares cada, formavam um “U” com o

sofá de três lugares. Um deles se apoiava na parede, ao lado da porta de

entrada, enquanto atrás do segundo estava o que seria uma sala de jantar, de

formato retangular e um pouco maior que a sala de tevê. Na verdade,

ambas seriam uma sala só em formato de “L”, não fosse o sofá para separa-

las. A sala de jantar com uma bela mesa de madeira de cor escura, e atrás

da mesma uma outra estante. Do lado direito da estante havia uma porta de

vidro, que levava à pequena sacada do apartamento. À esquerda da estante

estava um corredor que levava a quartos e banheiro. De frente a esse

corredor, na parede oposta, eu sabia, pelas lembranças que tinha do lugar,

que estava a porta que levava à cozinha.

Samuel se dirigiu ao seu quarto. “Fechem a porta ao entrarem, e

desculpem não poder dar-lhes atenção”, ele disse. Absolon se sentou no

sofá, seguido por Fabrizia, que se mantinha perto dele. Os outros foram

entrando, timidamente, até Ansgar, o último a entrar, fechando a porta. A

televisão, que estava ligada, estava sintonizada em um canal de notícias.

“O que houve, Samuel?”, perguntou Karina, seguindo em direção

ao quarto, um tanto desapontada pela falta de atenção. Eu fui logo atrás, e

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notei o olhar de Al-Malik, que ainda estava na sala de tevê, me

acompanhar. Enquanto isso, Lo Wang sentou-se no chão da sala de jantar,

baixando a cabeça como se meditasse. No sofá, Fabrizia conversava algo

em voz baixa com Absolon. Os outros procuravam algum lugar para se

acomodarem.

“Eu tenho algo a fazer, Karina”, disse Samuel, retornando do

quarto enquanto vestia um sobretudo negro por cima das roupas. “Eu

gostaria muito de saber o que os trouxe aqui, e porque estão neste estado,

mas simplesmente não há tempo”.

“Temos uma missão muito importante, Sam”, Karina avisou.

“Eu também, Ka”, ele respondeu, repetindo: “eu também”. Samuel

se aproximou dela, mas então se voltou a mim e aos demais. “Mas posso

perceber que precisam descansar. Ia ser uma honra se esperassem por meu

retorno aqui em meu apartamento. Por favor, sintam-se à vontade, eu

retornarei em algumas horas. Se tivessem chegado um pouco mais tarde,

vocês não me encontrariam aqui”.

“Algum problema em que possamos ajudar, Samuel?”, perguntei,

estranhando sua pressa.

“Não, Nicodemus, muito obrigado”, ele respondeu, retornando ao

quarto. Logo em seguida, ele voltou, sua espada longa em mãos, a lâmina

recentemente polida brilhando intensamente ao refletir a luz.

Imediatamente, a bela espada atraiu o olhar de Ansgar, Asphael e Al-Malik.

“Esta noite, eu sairei para caçar uma presa muito importante”, o Sancti

disse, guardando sua arma numa bainha oculta sob o sobretudo.

“E que presa requer tanta pressa?”, perguntou Ansgar.

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“Crias de Lucifugo”, respondeu Samuel, se dirigindo à porta.

“Haverá um encontro em menos de uma hora. Duas facções rivais, ambas

buscando um acordo após serem quase esmagadas pelo novo Patriarca do

Rio de Janeiro”.

“Uma guerra entre ghûls?”, perguntou Al-Malik.

“Mais como um massacre”, disse Samuel. “Eu quero aproveitar o

caos este encontro para tentar chegar ao novo Patriarca das criaturas, e esta

é uma chance única. Sabe-se lá quando terei outra oportunidade como esta.

Já estou investigando isso há quase dois anos, quando tudo começou, desde

então as noites desta cidade têm sido um inferno”.

“Tem certeza que não quer ajuda, Sam?”, perguntou Karina,

segurando a mão dele. “Podemos ajudar”.

Samuel sorriu. “Não se preocupe, Karina, voltarei logo. Fiquem

aqui e descansem. Conversaremos dentro de algumas horas”. Karina, um

tanto entristecida, afastou-se. “Vejo-os em breve”, disse Samuel Fulmen,

deixando o local.

“Nem tivemos tempo para nos conhecer”, murmurou Absolon.

“Ele é muito ligado ao dever”, disse Karina, de braços cruzados.

“E quem aqui não é?”, perguntou Lo Wang, de olhos fechados,

sentado em posição de lótus, como se estivesse meditando, mas ainda

atento a tudo a seu redor.

Ansgar se sentou à mesa de jantar, olhando para os demais no sofá.

“O que faremos aqui?”.

“Descansar”, disse Fabrizia, se levantando e tirando a bandana que

cobria a cabeça. Em seguida, ela soltou os longos cabelos, e levou a mão ao

buraco no peito da blusa, antes trespassado por uma lança, e ainda com as

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Page 365: Magna Veritas - Tiago José Moreira

roupas ao redor ensangüentadas. “Vou tomar um banho e vestir roupas

novas”, ela disse, então murmurando: “E depois dormir um pouco, se não

se importarem... e se eu conseguir dormir...”.

“Vá, é melhor todos relaxarem um pouco”, eu disse.

“Também vou tomar um banho”, murmurou Karina. “Há um

banheiro no corredor, e outro na suíte do quarto do Sam. Fabrizia, você

pode usar o banheiro do corredor, por favor?”. Fabrizia concordou, e então

Karina disse aos demais: “Quem quiser tomar banho depois, espere um

pouco, ok?”.

Absolon concordou, demonstrando interesse em mudar para roupas

mais limpas, menos sujas por conflito. Também Ansgar concordou com a

cabeça. Mal as garotas deixavam saíam, porém, Al-Malik, que mexia nos

jornais e anotações sobre a pequena mesa da sala de tevê, murmurou:

“Talvez não possamos descansar ainda”.

“O quê?”, perguntei, me aproximando. Ansgar, Asphael e Absolon

também mostraram interesse. Al-Malik se ergueu, mostrando um bloco de

notas, no centro da folha de papel um nome em destaque, sublinhado, e

escrito na língua-mãe de Samuel: “The Mad Prophet?”.

“O Profeta Louco?”, murmurou Absolon.

Seria o Velho? O homem cuja alma era a mesma de Uriel-

chamado-Veritatis? O homem que, em nossos sonhos, pronunciava

insanamente blasfêmias? Fitei Al-Malik. “Algo me diz que Samuel Fulmen

estava envolvido em nossa busca antes mesmo que nós o procurássemos”,

disse o Malaki.

Virei-me para Lo Wang, apenas para ver que ele não mais estava

no chão. Meu olho se voltou para a sacada, agora com a porta de vidro

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Page 366: Magna Veritas - Tiago José Moreira

aberta, e Lo Wang se apoiava, leve como uma pena, sobre a borda do

parapeito da mesma, fitando a cidade abaixo. O Kage me fitou enquanto

colocava sua máscara demoníaca: “Não se preocupe, meu senhor, as

sombras vigiarão Samuel Fulmen esta noite”. Então, suas asas de trevas se

abriram, conforme ele saltava em direção ao vazio em frente,

desaparecendo na noite.

“Vamos com ele?”, perguntou Absolon, já saltando do sofá,

deixando sua mochila para trás.

“Não há necessidade”, respondeu Asphael. “Vá descansar”.

“Mas não seria melhor...”, ia perguntar o Princeps, quando Asphael

o interrompeu: “Não se preocupe. O importante não é o que Sancti irá fazer

esta noite, mas o que ele está investigando. Karina nos trouxe ao local

correto, é aqui que teremos respostas, não nas ruas”.

“Entendo”, disse Absolon.

“Vá descansar, Achille”, eu pedi ao jovem Princeps, “seria bom

você fazer companhia a Fabrizia, ela ainda não se recuperou da última

batalha, e quer sua companhia. Quando ela sair do banho, tome um banho e

depois vá conversar com ela”.

“Conversar com a Fabi...?”, murmurou Absolon, então dizendo

numa voz ainda mais baixa: “Tudo bem, tem razão... E Karina?”.

“Ela está bem, e terá toda a companhia que realmente quer quando

Samuel voltar”, respondi.

Asphael fechou os olhos. Seus lábios murmuravam palavras

inaudíveis, sua face não tinha expressão. Mas enquanto os outros mal

percebiam, eu parei para fita-lo. E, no mundo dos espíritos, ele era como

um furacão, os espíritos do ar cercando-o e circundando-o, sua aura

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Page 367: Magna Veritas - Tiago José Moreira

brilhando como um farol. Ninfas tocavam-lhe a face, e o vento em si

urrava em resposta. E suas palavras eram trovões para os espíritos, como

um deus pedindo, poderoso mas ainda assim gentil: “Serenidade, Boa

Mente e Equilíbrio ouçam-me, sejam graciosos para comigo e que eu seja a

Recompensa do alegre agir. Sábio, surge dentro de mim, dá-me serena

coragem, apóia-me, revela-me suas bênçãos”.

Antes que eu pudesse entender o propósito do Arcanjo, Al-Malik

chamou-me: “Veja, Nicodemus, as anotações de Samuel”.

Fitei novamente o Arcanjo, que parecia distante, seus olhos

fechados vendo apenas o mundo dos espíritos. Um vento quente e úmido

soprou pela porta aberta da sacada. Então, fui até Al-Malik, sentando-me ao

seu lado no sofá de dois lugares. Enquanto isso, Ansgar, no sofá de três

lugares, e Absolon, no sofá oposto ao nosso, também investigavam as

pistas que tínhamos à nossa frente.

Peguei um jornal, tentando lembrar o suficiente de português para

tentar lê-lo. Mais uma vez, minha visita ao Reino das Idéias se provou útil,

aguçando as memórias e a compreensão, pois as palavras logo se tornaram

incrivelmente claras. Eram notícias do início de 2000. Os jornais seguiam

uma lógica clara, que começava com pequenas notícias de assassinatos em

áreas diversas da cidade. Em seguida, brigas de gangues e traficantes de

drogas emergiram entre as notícias destacadas ou recortadas.

As notícias às vezes estavam presas, através de grampos ou clipes

de papel, a algumas anotações. Nomes surgiam entre as anotações, bem

como lugares. Seriam as vítimas? Seriam os algozes? Havia lembretes,

mensagens com nomes e encontros, locais e datas. Havia fotos destacadas,

de celebridades, políticos e outros, mas os rostos circulados eram sempre

367

Page 368: Magna Veritas - Tiago José Moreira

de pessoas desconhecidas, seus nomes anotados no rodapé de cada

imagem.

“Pelo visto...”, disse Al-Malik, lendo anotações em inglês, “Houve

um encontro entre Fulmen e um padre chamado Inácio Alves de Lima, no

começo do ano de 2001. As anotações falam de um seqüestro em princípios

de 2000, de um homem sob os cuidados de Inácio”.

“Que homem?”, perguntou Absolon, enquanto ele próprio fuçava

entre anotações.

“Um homem louco, que tinha uma estranha consciência para

presenciar seres sobrenaturais”, respondeu Al-Malik. “Ele não tinha nome,

era chamado apenas de ‘o Profeta Louco’”.

Olhei as anotações que Al-Malik segurava. Aparentemente, o padre

era um Azarias da Sociedade de Tobit. “Fulmen chegou ao padre ao

investigar caçadores de seres sobrenaturais agindo no Rio de Janeiro”,

continuou Al-Malik, “Os caçadores estavam em busca do Profeta Louco,

após seu rapto no começo do ano. Parece que vampiros estavam

envolvidos”.

“E parece que há uma guerra lá fora”, respondeu Ansgar, mexendo

em velhas manchetes. “O português é diferente daquele que conheço, mas

entendo as palavras. Os jornais estão muito bem organizados, parece que

Fulmen estava revisando todas as suas anotações antes de sair para sua

caçada. Está bem claro que começaram com assassinatos de pessoas

influentes em 99, seguidas por brigas de traficantes em favelas e de

gangues em bairros ricos”.

“Lembram-se do que Fulmen disse?”, perguntou Absolon, “Que

uma facção de vampiros foi quase massacrada nesta cidade?”.

368

Page 369: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Talvez hoje seja o ponto culminante de suas investigações”,

eu pensei em voz alta, “por isso sua ansiedade e pressa. Após dois anos

estudando os eventos, eu também estaria ansioso pelo fim”.

“Há mais aqui,” disse Absolon, arregalando seus olhos ao abrir um

envelope de papelão. Em seu interior, uma coleção de fotos. Em todas elas,

uma mesma parede, suja de sangue, sua tinta arranhada por dedos fortes e

insanos, formando uma escrita que mortal nenhum poderia desvendar.

Olhei o envelope, que era endereçado a um certo padre Gervas Norbert, na

Alemanha. O remetente era Inácio Alves de Lima. Aparentemente, a carta

nunca chegou a seu destino, e o conteúdo da mensagem que estava no

envelope se perdeu, mas as fotos em si eram uma algo impressionante. Nas

paredes, estava uma escrita em Fabulare. Samuel numerou a seqüência das

fotos ao tentar desvendar a mensagem, e pude então coloca-las em ordem

rapidamente. E a mensagem fez minhas mãos ficarem geladas. Eu li em voz

alta:

“Em meus sonhos vejo as imagens da perdição, do momento em

que tudo irá ruir. Vejo o desespero que virá e as mortes que causarei. Sim,

eu vejo, de oriente para ocidente, a maré de sangue e loucura avançando.

Tudo por causa de um erro, tantos milênios atrás.

“Correndo sobre quatro patas, a destruição em si se aproxima de

mim. Imagens me vêm em mente e não as compreendo. Outra vida. Outra

pessoa. Anjos e demônios lutando uns contra os outros numa batalha

interminável. E sangue. Muito sangue.

“Quisera eu... ou seria ele... não ter feito tudo aquilo. Quisera que

ele jamais tivesse me criado. Quisera que ele não estivesse em mim. Somos

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Page 370: Magna Veritas - Tiago José Moreira

dois. Eu sou ele e ele está em mim. E ainda assim, os erros dele me

atormentam até hoje... eu não fiz nada... Foi apenas ele.

“Me chamam de louco porque sei. Porque sei de toda a mentira e

de toda a verdade. Sei o que nos protegeu por todos esses milênios, o que

nos manteve à salvo, e ainda assim, acabou por nos condenar. Sei o que

cada um deles planeja. Sei de tudo. Sei mais do que era saudável saber.

Ele pôs essas memórias em mim.

“Eu grito ao lembrar do que eu... do que ele viu. Ele não grita...

ele é supremo, infalível, mas eu... eu sou apenas uma casca que ele criou

para se proteger... para escapar da tortura e da morte nas mãos da Dor

Eterna. Eu sei agora que eles estão atrás de mim. Sei que me buscam,

porque através de mim podem liberta-lo uma vez mais, e conseguirem as

respostas que quero. Preciso fugir.

“Estou vendo todos os peões neste grande tabuleiro. Cada um

achando que é um jogador, sem ver o rosto daquele que dita seus

movimentos. O senhor das mentiras foi iludido e o maior dos

manipuladores está sendo manipulado. Sob a fachada séria, o jogador ri,

pois sabe que não tem adversário. Ele move ambas as cores, o negro e o

branco, enviando-os uns sobre os outros, destruindo as peças uma a uma.

“E quando conto isso às pessoas, elas me chamam de louco. E eu

grito, grito para que ouçam, mas apenas me ignoram. Eles ignoram a voz,

as memórias em minha mente. Me contando toda a verdade. Talvez estejam

certos... talvez eu seja louco, mas é porque sei. Sei mais do que uma pessoa

deveria saber.

“Mas sinto que estão próximos de me encontrarem... mas quem

virá primeiro? Será que alguém conseguirá desafiar o jogador e vence-lo,

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Page 371: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ou será que ele continuará a manipular o jogo de xadrez sozinho? Vou

sentar aqui, no escuro, e esperar. Esperar para ver se encontro salvação

ou morte. Se eu morrer, todos estarão perdidos, pois ele vai voltar... Se eu

viver, então ninguém saberá quem é o jogador...

“Que escolha deve ser feita? E se simplesmente não houver

salvação?”.

“Nós estamos perto”, murmurou Al-Malik. Não pude dizer nada a

não ser concordar com a cabeça.

“Quem vai ser o próximo?”, uma voz feminina veio da porta.

Fabrizia entrava, aparentemente mais relaxada, vestindo uma blusa branca

e um short vermelho. Estava descalça, e ainda enxugava os longos cabelos

negros na toalha. “Desculpem a demora, eu acabei perdendo noção do

tempo lá. Precisava limpar a mente”.

Olhei para Absolon, que então se levantou e foi em direção a ela.

Antes, porém, ele apenas me avisou: “Me mantenha informado, por favor”.

Concordei com a cabeça. Absolon sorriu para Fabrizia, dizendo que iria

tomar usar o banheiro e trocar de roupa.

Fabrizia nos olhou. “Precisam de mim para algo?”.

“Não, Fabrizia, não se preocupe. Estamos apenas tentando juntar as

pistas que temos. Eu sugiro que durma um pouco”, respondi.

Ela sorriu. “Estou precisando. Vou usar o quarto de hóspede, mas

deixarei a porta entreaberta. Caso precisem de mim, é só chamar”. Assim

que consenti, Fabrizia saiu da sala, indo para o quarto.

“O que faremos agora?”, perguntou Ansgar.

“Eu os encontrei”, murmurou Asphael, finalmente abrindo seus

olhos e deixando seu transe.

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Page 372: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Quem?”, perguntei.

“Samuel Fulmen e Lo Wang, Mestre Nicodemus”, respondeu o

Arcanjo, caminhando em nossa direção. “Os espíritos os encontraram, e eu

posso vê-los”.

“Iremos atrás deles?”, perguntou Ansgar.

“Não é necessário, Mestre Ansgar”, respondeu Asphael Veritas,

sentando-se na ponta do sofá de três lugares, entre Ansgar e Al-Malik.

Então ele estendeu as mãos aos dois. “Mas nós poderemos vê-los. Dêem-se

as mãos e fechem seus olhos, e deixem os ventos falarem em suas mentes”.

Ansgar hesitou, mas então apertou a mão de Asphael, fechando

seus olhos. Al-Malik fez o mesmo, e então estendeu a mão livre para mim.

Eu apertei sua mão, e então, fechando meus olhos, deixei minha

consciência ser levada pelo fantástico poder de Lorde Asphael.

E me vi voando. Os sons mais vivos, as luzes mais fortes, as trevas

tão transparentes... Abaixo, as ruas do Rio de Janeiro se moviam tão rápido.

Eu não voava como um anjo de grandes asas, mas como uma corrente de

vento, numa fluidez sem precedentes, sem corpo. Olhei ao redor, vendo o

céu acima e o asfalto abaixo, e então pensei em Samuel. Imediatamente,

minha consciência mergulhou entre os edifícios, aproximando-se da

avenida, desviando-se dos veículos e ultrapassando-os uma forma tão

natural que eu não precisava pensar no que fazer. Então circundei um

motoqueiro. Embora o capacete cobrisse seu rosto, o sobretudo era

indistinguível. Samuel pilotava em alta velocidade, um pouco acima, mas

não exageradamente além dos limites impostos pela sinalização. Minha

consciência elevou-se alguns metros, a fim de desviar do carro que Samuel

ultrapassava. Eu não precisava ter desejo consciente, minha mente apenas

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Page 373: Magna Veritas - Tiago José Moreira

respondia a todos os estímulos, como se cavalgasse uma ninfa ou fosse

levada pelo vento. Um espírito do ar me levava, e o espírito ainda tinha sua

própria vontade, mas estava ali para me fazer ver o que eu queria ver.

A moto prosseguiu, entrando em uma rua secundária, então se

aprofundando no labirinto de vias menores, por entre bares, restaurantes,

lanchonetes e boates, e também estabelecimentos comerciais que agora se

encontravam fechados. Então, finalmente, o Sancti reduziu a velocidade,

numa rua escura e deserta, mas cheia de carros e motos estacionados. Logo,

Samuel Fulmen avistou um local para estacionar, e o fez. Senti a força do

pisar de Samuel, quando seu pé direito tocou o chão, e então ele desceu do

veículo. Um garoto de dezesseis anos, talvez um pouco mais ou menos, se

aproximou: “Quer que guarde?”, perguntou, estendendo um pequeno cartão

de cartolina, enquanto Samuel tirava o capacete e o prendia à moto.

“Sim, obrigado”, respondeu Samuel, forçando-se a um curto

sorriso, enquanto pegava o cartão. Enquanto se afastava do local a passos

rápidos, Samuel fitou a face da cartolina: três reais pela vigília. “Não sei se

é desespero...”, murmurou Samuel, “ou simples desbrio”.

Samuel continuou caminhando após colocar o cartão num dos

bolsos do sobretudo. Ele cruzou a esquina, adentrando uma rua um pouco

mais movimentada, e prosseguiu através dela. Alguns jovens se

posicionavam apoiados a uma parede, rindo, bebendo e fumando. Carros

passavam com freqüência, buscando um lugar para estacionar. Samuel

checou o relógio no braço direito: quase meia-noite. Ele apressou o passo,

passando pelos jovens. Uma garota entre eles, claramente bêbada, fixou seu

olhar no rosto do Anjo, apreciando sua beleza de uma forma lasciva. Um

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Page 374: Magna Veritas - Tiago José Moreira

dos rapazes, com os braços muito tatuados, provocou com xingamentos

o Sancti. Samuel apenas o ignorou, continuando em frente.

O movimento se tornou mais intenso assim que Samuel Fulmen

alcançou a rua seguinte, esta mais larga, com carros em quantidade se

movendo a uma baixa velocidade, conforme seus motoristas e passageiros

analisavam os bares e restaurantes ao redor. Pessoas de ambos os sexos,

principalmente jovens, caminhavam pela calçada ou se acumulavam nas

mesas de bar, bebendo, rindo ou simplesmente se beijando lascivamente. O

anjo prosseguiu, enquanto os sons das músicas e conversas dos bares

invadiam minha consciência.

O anjo então finalmente parou, após atravessar a fachada de um

edifício comercial, agora fechado. À frente, uma multidão fazia fila diante

de uma boate. Ouvi a música vibrante saindo do interior, abafada pelas

paredes, mas ainda assim forte. Samuel Fulmen fitou o nome do

estabelecimento: Deluge. Passo a passo, Fulmen se direcionou à entrada,

caminhando paralelo à fila de pessoas que se empurravam, esperando por

sua chance de entrar. Então, murmurante, o Elohim dos Sancti começou a

orar: “Senhor Sábio que está nos céus, santificada seja minha causa...”

Ele fitou os seguranças, enquanto subia os três degraus que

separavam a entrada da calçada e se aproximava dos cordões de isolamento

que limitavam a entrada de pessoas. Ele continuou a oração: “Guie eles ao

seu Reino e que seja ouvida a sua palavra, tanto nesta Terra como no Céu”.

Assim que Fulmen tocou os cordões de isolamento, o segurança se

voltou ao Anjo: “Ei, bonitão, pegue a fila como todo mundo”.

“Deixe-me entrar, por favor”, pediu Samuel, fitando os olhos do

segurança. Por um instante, seus olhos brilharam dourados, preenchidos por

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Page 375: Magna Veritas - Tiago José Moreira

luz divina, e então o segurança removeu o cordão de isolamento,

deixando Fulmen prosseguir. Fulmen continuou, passando pelo segundo

segurança, que olhava sem entender a decisão do colega, enquanto as

pessoas na fila reclamavam ou se perguntavam se Fulmen seria uma pessoa

famosa ou importante, ou mesmo da família dos donos da boate. Então,

Fulmen prosseguiu sua prece: “A força que eu preciso, dai-me agora...”.

“...para protege-los do mal, amém”, terminou Fulmen, abrindo seus

braços para que o terceiro segurança o revistasse, antes que ele finalmente

adentrasse o local. As mãos do segurança tatearam a espada sob o

sobretudo, mas sua mente era incapaz de sentir qualquer objeto oculto.

Após receber um cartão eletrônico que iria marcar seu consumo dentro da

boate, Fulmen prosseguiu, finalmente adentrando aquele local. E, aos olhos

do meu espírito-guia, eu via uma escuridão tangível por entre as luzes

intensas que ali vibravam e dançavam.

Repentinamente, sob o som de batidas potentes e ritmadas, o

mundo parecia mover-se em flashes de luz, como se a dança frenética fosse

mostrada quadro-a-quadro, conforme as luzes piscavam de forma

hipnotizante. Mesmo minha velha alma sentia aquelas batidas acelerando

meu coração, e me sentia inquieto, como se levado pelo ritmo frenético. E,

num dos flashes de luz, vi uma figura monstruosa espreitar atrás de

Fulmen, oculto por suas ilusões. A figura sumiu nas sombras antes que

flash seguinte relampejasse, mas sua face, na verdade uma máscara, ainda

estava em minha mente. Lo Wang tinha conseguido manter o Sancti sob

vigilância.

Samuel caminhou pelo dilúvio de jovens, inalterado pelo ritmo

frenético, seus olhos buscando calmamente alguém naquela multidão, em

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Page 376: Magna Veritas - Tiago José Moreira

meio à fumaça, sua face demonstrando uma frieza sobrenatural. Uma

névoa de gelo seco bloqueava a visão, servindo de refletor para as luzes

dançantes. O centro do salão estava cheio demais, apertado demais, e

Samuel se deslocava para os cantos, buscando um espaço mais livre para se

locomover entre as mesas e poltronas onde os vários grupos de

freqüentadores se reuniam quando não estavam dispostos a participar da

dança no centro. O bar, no canto do salão oposto à entrada, estava cheio de

pessoas, umas sentadas nas cadeiras à frente do balcão, outras em pé,

pedindo bebidas ou tira-gostos. O olhar de Fulmen então fitou o segundo

andar, o qual continha uma maior quantidade de mesas e poltronas e, pelo

grande vão no centro, era possível ver toda a movimentação da pista de

dança. Ali, uma pessoa atraiu a atenção de Fulmen. Não era um jovem

rapaz em busca de paquera, mas sim alguém que poderia ser confundido

com um segurança da boate, não fosse a vestimenta tão diferente dos ternos

negros usados pelos seguranças. Aquele usava um sobretudo aberto e uma

camisa social, e sua face era fria, sua atenção estava longe da multidão, e,

ao lado dos freqüentadores da boate, que vibravam com vida e emoção,

aquele homem mais parecia um homem morto e cinzento, com emoções há

muito perdidas. Os olhos de Samuel se fecharam por um instante, e então,

ao se abrirem, viram algo que nenhum mortal poderia perceber. O Sancti

então colocou as mãos nos bolsos do sobretudo e pôs-se na direção das

escadas para o segundo andar.

Enquanto subia as escadas, Samuel Fulmen olhava as pessoas ao

redor. Num canto, uma garota fumava algo que era claramente ilegal,

enquanto em outro um casal se deixava levar pela lascívia. Logo acima,

quando chegou ao andar superior, o anjo fitou um grupo de arruaceiros

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Page 377: Magna Veritas - Tiago José Moreira

empurrando pessoas enquanto passavam. Um deles quase esbarrou em

Samuel quando ambos se encontraram no topo das escadas. Porém, todas

essas distrações não eram suficientes para manter o olhar de Samuel

afastado do seu alvo. O vampiro se apoiava no parapeito, olhando as

pessoas abaixo. Apesar de seus 1,70m de altura, rosto fino e físico esguio, a

criatura demonstrava força, tanto física como profana. Mas, ao invés de ir

em direção a ele, Fulmen caminhou a uma mesa logo atrás, onde um

homem de aspecto vigoroso, barba por fazer e cabelos brancos permanecia

sentado. Não havia uma única bebida ou tira-gosto naquela mesa, nem

nenhuma outra pessoa com quem aquele senhor, aparentando um porte

invejável para alguém de 40 ou 50 anos, pudesse conversar. Ele permanecia

ali, impaciente, suas mãos unidas enquanto os braços se apoiavam sob a

mesa. A poltrona, apoiada na parede, o fazia fitar diretamente para o

primeiro vampiro. Ele estava claramente incomodado por aquele barulho e

pelo movimento incessante. Aquele senhor também era uma Cria de

Lucifugo.

Samuel caminhou a passos rápido até chegar à mesa daquele

senhor. Rapidamente, ele tirou as mãos dos bolsos, puxando a cadeira e

sentando-se, frente a frente com o impaciente vampiro. O rosto frio da

criatura demonstrou surpresa, e imediatamente Samuel sentiu o toque frio

do cano de uma pistola tocar sua nuca. O vampiro maior, com aspecto mais

bruto, pressionava a arma de fogo contra a cabeça de Samuel, mantendo o

corpo próximo o suficiente para bloquear a visão da maioria dos

freqüentadores e impedisse que vissem a arma. Os olhos do vampiro

sentado se estreitaram, fitando os de Samuel enquanto o sanguessuga

analisava o recém-chegado. “O caçador!”, exclamou o senhor, numa voz

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Page 378: Magna Veritas - Tiago José Moreira

alta o suficiente para que Samuel o ouvisse naquele local barulhento,

“Você é muito corajoso por vir aqui. Por anos você tem me aniquilado os

de meu sangue. Veio, afinal, buscar minha caveira?”.

Samuel sentiu a pistola ser pressionada contra sua cabeça com

maior força, e então respondeu, falando baixo e lentamente, sabendo que a

Cria de Lucifugo de alguma forma iria entendê-lo, independente do ruído

local: “Eu adoraria eliminar este câncer que são os Anunnaki, Alexandro,

Cria de Aloísio Domos de Oliveira, antigo Patriarca do Rio de Janeiro, mas

esta noite procuro outro. Eu busco o Profeta Louco”.

Os olhos de Alexandro, o vampiro, brilharam por um instante

vermelhos, conforme sua face se tornava mais bestial, suas feições

tornando-se mais angulares e primitivas. Os longos caninos ficaram à

mostra por um instante antes que sua face retornasse ao aspecto humano e

frio. “Você é um homem perigoso, Caçador. Vejo que sabe muito sobre os

de meu sangue... É arrogância ou coragem que o traz até mim?”.

Samuel fixou o olhar nos olhos de Alexandro, respondendo-o com

outra pergunta: “É confiança que me traz aqui esta noite, e quanto a você?

É tolice ou inocência que o traz ao domínio de seu inimigo?”

“O que quer dizer, Caçador?”, perguntou o vampiro, intrigado.

“Eu quero a cabeça de Hagan Gudrun”, respondeu Samuel.

O vampiro continuou inexpressivo, seu olhar encarando Samuel

como se, durante o diálogo, estivesse tentando desvendar as emoções do

Anjo, buscando medo ou hesitação. Alexandro encontrava apenas uma

força de vontade que ele não podia compreender. Após alguns segundos em

silêncio, o vampiro ergueu a mão, fazendo um sinal ao subalterno, que

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Page 379: Magna Veritas - Tiago José Moreira

guardou a arma que apontava para a cabeça de Samuel Fulmen. “Hagan

Gudrun? O que você sabe sobre a Morte Carmim?”

“Eu sei apenas os resultados do Feudo de Sangue que ele criou,

pois o Rio de Janeiro está cada vez mais nas mãos desse bruxo”, disse

Samuel, cruzando os braços e apoiando-os na mesa, enquanto o lacaio

vampiro afastou-se, voltando à sua posição de vigília no parapeito de onde

via a frenética pista de dança abaixo. O Sancti prosseguiu: “Seu progenitor

caiu ante as presas de Gudrun, não é mesmo? Pois eu digo que agora

Gudrun quer o seu crânio, Alexandro, e sua guerrinha sangrenta logo terá

um fim”.

“Se sabe de tantas coisas, Caçador”, murmurou o vampiro, então

erguendo a voz para se fazer ouvir: “então deve saber que Gudrun possui o

Profeta Louco”. Samuel meneou a cabeça positivamente. “Eu não sei onde

nem um nem o outro está!”, concluiu o vampiro.

“Eu não vim aqui atrás de você, Alexandro”, disse Samuel.

“Então...”, murmurou o sanguessuga, quando então seu subalterno

se aproximou, abaixando-se ao seu lado e dizendo em voz alta ao lado de

seu ouvido: “Senhor, ele chegou”.

Samuel interrompeu o subalterno: “Esta noite, a cabeça que

procuro é a de outro. Eu e você viemos em busca de George Matos. Ele não

irá ajuda-lo, Alexandro, mas sim traz seus lacaios para elimina-lo esta

noite. George serve a Gudrun agora. O bruxo foi muito persuasivo”.

“Mentiras!”, exclamou Alexandro, furioso.

“Senhor”, disse o subalterno, “ele não está sozinho”.

“O quê?”, perguntou Alexandro, erguendo-se imediatamente. O

vampiro e seu subalterno prosseguiram até o parapeito a passos rápidos.

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Page 380: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Minha visão os seguiu, e então vi aqueles que acabaram de entrar. À

frente, quase chegando às escadas, vinha um homem de terno, barba grossa,

o topo da cabeça já careca, usando óculos espelhados. Ele era magro,

esguio, e uma grande cicatriz vertical atravessava sua face esquerda,

começando em sua testa e passando por sobre o olho e a boca, até chegar ao

queixo. Outros dois o seguiam. Os homens eram rapazes jovens, vestindo

camisetas de cores vivas, calças jeans e tênis. Um deles tinha barba por

fazer e cabelos longos, negros, enquanto o outro tinha cabelos curtos, de

um tom castanho. Eles tinham jaquetas de couro, sob as quais poderiam

estar escondendo armas. Foi quando o subalterno de Alexandro apontou

uma garota que vinha pela escada presente no outro lado. “Ela entrou com

eles”, disse. A mulher tinha cabelos curtos tingidos de vermelho e uma pele

tão alva que se destacava na multidão. Seus braços eram tatuados com

símbolos tribais, e tinha um piercing no nariz. Ela trajava uma blusa

vermelha e calças jeans, e sob o braço possuía uma bolsa negra de couro.

Alexandro fitou Samuel, após notar a presença da mulher, e então correu

até o Anjo. “Aquela é uma das crias de Gudrun!”, gritou Alexandro a

Samuel, “Sua assassina número um!”.

“Vocês precisam chegar ao bar no primeiro andar e pular o balcão.

Invadam a cozinha, prossigam pelos depósitos e poderão escapar pela saída

dos fundos. Não retorne ao seu lar esta noite, Alexandro. Busque um lugar

alternativo”, Samuel disse, levantando-se. “Eles estarão esperando, caso

consiga escapar”.

“Eu? Fugir? Por que não ficar e lutar?”, perguntou Alexandro.

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“Por que se neste tiroteio morrer qualquer outra pessoa nesta

boate, eu mesmo irei me encarregar de sua morte, Anunnaki”, respondeu

Samuel, virando-se para as escadas por onde George e seus capangas

vinham.

O vampiro se ofendeu com a ameaça. Sua face mostrou desprezo

por Fulmen, mas apenas perguntou: “E como sairei daqui? Saltando pelo

vão e caindo sobre as pessoas abaixo?”.

Samuel se pôs a andar, rumo à escada. “Eu abrirei o caminho”, ele

murmurou, mesmo sabendo que o vampiro não escutaria.

Os três vampiros abriam caminho pela escada, empurrando as

pessoas pelas quais passavam. A música do local diminuiu de intensidade

gradativamente, até sumir por completo. Do outro lado do salão, a mulher

alcançava os primeiros degraus e começava sua escalada rumo ao segundo

andar. Um súbito silêncio tomou a multidão presente, e era como se toda a

boate parasse. Samuel deu seu último passo, parando no topo da escada por

onde os vampiros subiam. Através de seus óculos espelhados, George

Matos fitou o Anjo acima, e sua mente foi tomada por surpresa. “Você!”.

Samuel ergueu a mão esquerda. Então, houve mais um segundo de

silêncio... E uma nova música começou. A multidão urrou, acompanhando

o novo ritmo, mais violento e frenético. George Matos tentou apressar seu

passo, mas uma rajada de vento o atingiu, jogando-o contra os capangas

que o seguiam. George e um dos capangas rolaram escada abaixo, enquanto

o outro conseguiu segurar-se ao corrimão. Samuel correu escada abaixo,

pedindo perdão ao empurrar alguém em seu caminho. O vampiro que ainda

estava em pé rosnou, quando Samuel Fulmen saltou em sua direção. O pé

de Samuel atingiu em cheio o rosto do sanguessuga, derrubando-o escada

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abaixo. O morto-vivo rolou pelos degraus, caindo aos pés de George,

que já se levantava.

Gritos se seguiram, e as pessoas na escada tentavam se afastar de

Samuel, assustadas. Samuel apressou seu passo, correndo para a base da

escada, quando George sacou uma pistola de um coldre oculto sob o paletó.

A visão da arma foi o bastante para provocar gritaria e correria na multidão,

tentando se afastar. As pessoas se empurravam, alguns tentando se afastar,

outros, mais curiosos, buscando se aproximar para melhor ver o que

acontecia. No andar superior, uma multidão se reunia para ver o que ocorria

abaixo. A arma disparou duas vezes, seus disparos atingindo o Anjo, mas

não eram o suficiente para impedi-lo. O punho de Samuel atingiu em cheio

a face de George, arrebentando seus óculos espelhados. O vampiro recuou,

cambaleante, enquanto seu capanga, o de barba por fazer, se erguia para

golpear Samuel. Enquanto isso, os seguranças da boate lutavam para

atravessar o dilúvio de pessoas, tentando chegar aos combatentes.

O capanga que se erguia tentou desferir um soco contra as costelas

do Anjo. Samuel desviou para o lado, erguendo o braço e fazendo a mão do

vampiro atingir a lâmina de aço da espada oculta sob o sobretudo. A

surpresa do vampiro permitiu que Fulmen o agarrasse pelo colarinho com a

mão direita. Em seguida, o anjo girou o corpo, puxando o vampiro e

jogando-o contra a parede. O amorteceu o impacto com os braços, mas não

teve reflexos rápidos o suficiente para se afastar da parede antes que o

Sancti usasse a mão esquerda para agarrar a nuca do sanguessuga e

golpeasse a cabeça da criatura contra a parede.

George demonstrava surpresa. Seu nariz estava quebrado, mas

pouco sangue descia por seu rosto. Ao ver seu capanga tombar após ter seu

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Page 383: Magna Veritas - Tiago José Moreira

crânio partido, o vampiro demonstrou pânico, dando meia-volta e

saindo correndo, sem se importar em usar sua força sobre-humana para

empurrar ou derrubar quem estivesse em seu caminho.

Alexandro e seu subalterno se puseram a correr escada abaixo, na

esperança de alcançar o balcão do bar antes que a assassina, que estava nas

escadas do outro lado, pudesse percebê-los. Da mesma forma, Samuel

começou a correr atrás de George, deixando para trás o segundo capanga,

que ainda se erguia. Foi neste momento que um dos seguranças alcançou o

Anjo, agarrando-o por trás enquanto este se preparava para correr.

Do outro lado do salão, a assassina observava a cena. Ao perceber

seu alvo correr pelas escadas, a mulher apoiou-se no corrimão, saltando por

sobre ele e caindo com agilidade e graça na pista de dança abaixo, num

espaço vazio deixado pelos freqüentadores, que ou tentavam escapar pela

entrada da boate ou se espremiam para ver a briga.

O segurança tentava derrubar Samuel, mas sua força não era párea

para a força sobrenatural do Elohim. Samuel agarrou os braços do

segurança, e um brilho dourado repentino retirou todas as forças do

homem, que largou Samuel e caiu de joelhos no chão. O segundo capanga

agora avançava contra o anjo, atingindo-lhe no rosto com o punho. Samuel

recuou, notando que o primeiro capanga, caído após quase ter seu crânio

partido, começava a se erguer. Alexandro e o subalterno passaram correndo

pelos combatentes, e então começaram a empurrar a multidão para tentar

chegar ao balcão do bar.

O capanga em pé tentou desferir um segundo soco contra a cabeça

de Samuel Fulmen, mas o anjo desviou facilmente, chutando o estômago

do vampiro para afasta-lo. O golpe do anjo, por mais poderoso que fosse,

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Page 384: Magna Veritas - Tiago José Moreira

fez o sanguessuga recuar, mas não causou nenhum dano aparente. O

outro capanga, com o rosto todo ensangüentado, finalmente se ergueu, e fez

menção de que iria puxar alguma arma de dentro da jaqueta, quando a

assassina finalmente conseguiu atravessar a multidão. Um outro segurança

da boate também chegava agora, avançando contra Samuel.

Samuel se virou jogando o corpo para a direita e pressionando a

mão esquerda contra o peito do segurança. A força de Samuel mais o poder

elemental do ar que ele invocou derrubou imediatamente o segurança, sem

feri-lo. O Anjo se virou de volta aos capangas, apenas para ver a assassina

passando por eles. “Idiotas!”, ela gritou, “Peguem Alexandro!”. O capanga

mais próximo olhou Samuel e, não o vendo avançar, virou-se para seguir

sua mestra. Da mesma forma, o outro, com o rosto sujo com seu próprio

sangue profano, correu para segui-la. Os vampiros correram para o bar, e as

pessoas abriam caminho para eles, conforme o vampiro ensangüentado

disparava para o ar com a pistola que sacara. Samuel deu as costas a eles, e

correu em direção à entrada, procurando encontrar o fugitivo George,

enquanto a assassina e seus lacaios saltavam o balcão e avançavam pela

porta que levava à cozinha, deixada aberta por Alexandro e seu subalterno.

Lembrando de Alexandro, meu guia espiritual voou através da

porta e da cozinha, até alcançar o vampiro e seu subalterno, que

prosseguiam pelo depósito de alimentos e utensílios, logo além da cozinha.

Logo à frente, ele viu a porta de saída, correndo em direção a ela. Estava

trancada, mas a força do vampiro a arrombou com facilidade, quebrando a

fechadura. Adiante estava um corredor largo, longo e mal iluminado, já ao

ar livre, formado pelo muro que limitava o terreno da boate e as paredes da

própria boate. Ao fim do corredor havia um portão gradeado, que levava à

384

Page 385: Magna Veritas - Tiago José Moreira

calçada. Meu pensamento se voltou ao outro vampiro, George, e mais

uma vez o guia espiritual me mostrou o que eu desejava. Voando através do

portão gradeado, cheguei à calçada, onde uma multidão observava,

tentando entender o que ocorria no interior da boate, e da calçada fui levado

pelo corredor de entrada da boate, por onde George fugia, derrubando os

seguranças que tentavam impedi-lo de sair sem pagar.

Minha consciência voou através do corredor de entrada, onde

estava o caixa da boate, e vi Samuel, que tentava atravessar a multidão

concentrada na entrada, tentando seguir George. As pessoas reclamavam,

conforme o anjo tentava empurra-las sem feri-las. Finalmente chegando à

entrada, Samuel jogou o cartão de consumação e todo o dinheiro que tinha

no bolso para o caixa, e continuou correndo, empurrando as pessoas, às

vezes se desculpando. Os seguranças, já derrubados por George, não

ofereceram resistência.

Vendo Samuel chegar à calçada, minha consciência se fixou no

portão gradeado ao lado da boate. Alexandro alcançou o portão e, sem

reduzir o passo, atravessou as grades do mesmo, por um momento

tornando-se uma espécie de névoa ou espírito e retornando ao aspecto

sólido em seguida. Seu subalterno, incapaz de repetir a façanha do mestre,

escalava as grades, quando a assassina e os dois capangas surgiram pela

porta de chegada ao corredor. Os três correram na direção de Alexandro e

do subalterno, e Alexandro continuou a correr. O subalterno saltou do ato

do portão, caindo suavemente na calçada e tentando acompanhar seu

senhor. A assassina apressou o passo, sua velocidade tornando-se

sobrenatural. Mas então, as sombras se moveram, tentáculos se

entrelaçaram à frente, formando uma rede de escuridão, bloqueando o

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Page 386: Magna Veritas - Tiago José Moreira

caminho. A assassina, incapaz de desviar-se, foi pega pela rede.

Imediatamente as sombras tentaram agarra-la, moldando-se ao redor de

seus braços e pernas, como se aquilo fosse uma teia de aranha. Os dois

capangas pararam, olhando atônitos para aquela feitiçaria tenebrosa. A

assassina lutava para escapar da teia de sombras, urrando como um animal

selvagem, enquanto uma sombra em particular emergia do chão, logo atrás

dos dois capangas, tomando a forma de um demônio negro mascarado.

Enquanto a mulher rugia, seu rosto deformando-se, assumindo

formas angulares e grotescas, e seus dedos tornavam-se alongados e

afiados, ela se debatia, tentando escapar da rede de trevas. Seus rugidos

fizeram os dois capangas recuarem lentamente, imaginando que um frenesi

a tomava. Foi quando uma sombra feroz avançou, passando velozmente

entre eles. O da esquerda não teve tempo de gritar, seu braço direito e

metade do tórax cortados pela lâmina negra de uma katana de trevas. O

corpo do vampiro tombou inerte, sua carne desfazendo-se, deixando apenas

um cadáver putrefato. Mal atingira o primeiro capanga com o golpe mortal,

Wang girou seu corpo para a direita, num ataque circular contra o peito do

segundo capanga. Este, o de rosto ensangüentado, gritou com o susto

repentino, recuando a tempo para escapar da lâmina negra.

A mulher começava a arrebentar a teia de sombras, enquanto o

capanga gritava, perguntando o nome de seu agressor. Segurando o cabo da

lâmina de trevas com ambas as mãos e colocando a lâmina levemente

tombada frente ao corpo, o Kage fitou o inimigo. O vampiro urrou, atirando

seguidamente com a pistola. O Kage avançou, suas feições demoníacas

tornando-se negras como a noite. Os tiros atravessaram seu corpo tenebroso

sem causar danos, atingindo a parede atrás. Em seguida, assim que o

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Page 387: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Celestial das trevas passou por seu inimigo, o corpo do vampiro

tombou, sua cabeça rolando e se desfazendo até se tornar um crânio

quebradiço. O mascarado parou, lentamente se virando para fitar o único

inimigo que restava.

A mulher conseguiu libertar um dos braços, virando-se o suficiente

para ver o Kage. Lo Wang flexionou as pernas, pendendo a katana negra

para a esquerda do corpo, e avançou rapidamente. O assassina urrou,

abrindo a bocarra e mostrando as presas, e a espada de Lo Wang atravessou

o local da teia em que ela estava, cortando de lado a lado. A lâmina não

cortou carne porém, pois a vampira transformou-se numa névoa espessa,

englobando o Kage. A névoa se moveu rapidamente, como se tornando

uma corrente de ar, e a mulher se materializou seis metros atrás de Wang.

Wang se virou para encara-la. Não havia mais a face animalesca, nem as

garras longas, apenas a forma feminina, sua face presa numa expressão que

misturava raiva e terror.

“Onde está Hagan Gudrun?”, perguntou Wang, sua voz baixa,

sussurrante, sem emoção.

“O que você quer com ele?”, perguntou a assassina, também

contendo suas emoções. Enquanto isso, ela levava a mão à barriga, sobre

um corte leve provocado pela lâmina negra enquanto atravessava a vampira

em sua forma de névoa.

“Uma chuva de sangue”, respondeu o Kage.

“Eu posso providenciar isso!”, gritou a vampira, sua boca

tornando-se uma bocarra cheia de dentes afiados. Ela curvou o corpo para a

frente, abrindo a mandíbula monstruosa, e Wang liberou um grito abafado

de dor. A carne do Kage se partiu, especialmente no pescoço, pulsos e

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Page 388: Magna Veritas - Tiago José Moreira

peito, e seu sangue formou uma correnteza, sendo sugado pela

mandíbula da criatura. A dor fez Wang cambalear, e a vampira avançou,

seus dedos crescendo em garras, desta vez sangrentas, seus braços se

alongando ligeiramente. Wang tentou se jogar para o lado, mas as garras

alongadas atingiram seu braço. O sangue das garras queimava a carne de

Wang. A vampira saltou após atingir o golpe, indo de encontro à parede.

Seus braços e pernas tocaram a superfície de tijolos, e ela começou a

caminhar pela parede como se fosse uma aranha.

Wang se ergueu enquanto a vampira movia-se com agilidade pela

parede. O olhar da morta-viva fixava-se na máscara do Kage. A lâmina de

trevas dissolveu-se de repente, e o Kage levou a mão do braço direito,

ainda bom, ao ferimento causado pelas garras da criatura no outro braço. A

assassina abriu a bocarra mais uma vez, o branco de seus olhos tornando-se

vermelho-sangue, e da boca saiu uma espécie de chicote carmim, como se

fosse uma longa língua feita de sangue. O chicote, com mais de três metros

de comprimento, atacou as pernas de Wang num movimento horizontal. O

Kage saltou, escapando do primeiro golpe, mas então, antes que tocasse o

solo novamente, a ponta do chicote carmim girou e avançou contra o peito

do Celestial, transpassando seu tórax, perfurando o pulmão direito. Wang

caiu de joelhos, o chicote sendo recolhido para um novo golpe de

perfuração. A ponta do chicote ergueu-se no ar, girando mais uma vez para

descer sobre o anjo caído, que se apoiava com as mãos no chão. Antes que

a arma sangrenta completasse seu giro e se arremetesse contra as costas

desprotegidas do Celestial, a vampira sentiu uma força a impedir. A mão do

braço ferido de Wang se pressionava contra o chão, sobre a sombra do

chicote, como se segurasse a arma cortante através de sua inofensiva

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Page 389: Magna Veritas - Tiago José Moreira

sombra. A vampira arregalou os olhos vermelhos ao ver Wang estender

seu braço direito, os dedos unidos, e uma treva longa e fina se formar entre

o indicador e o dedo médio. “O destino não sorri para você”, murmurou o

Kage, arremessando a adaga tenebrosa contra a testa da vampira. A

assassina tentou desviar o rosto, mas o chicote paralisado a impediu. A

lâmina perfurou seu crânio, desfazendo-se em seguida. O chicote de sangue

se desfez tornando-se líquido e caindo sobre o chão na forma de gotículas

inofensivas. As mãos e pernas da vampira se libertaram da parede, sua

carne se desfazendo em cinzas, e seu esqueleto quebradiço se partiu ao

bater violentamente contra o chão. Wang se ergueu, lenta e dolorosamente,

sentindo o cheiro forte de sangue. Por trás da face demoníaca, ele sorriu, e

então sombras surgiram em suas costas, formando asas, enquanto as trevas

emergiam de seu corpo, e logo ele se tornava uno com a escuridão.

Meus pensamentos se voltaram a Samuel Fulmen, e imediatamente

minha consciência se arremeteu para os céus, deixando para trás o corredor

ensangüentado e a boate. Meu espírito-guia girou no ar, buscando Samuel,

e então fitou um ponto adiante, avançando uivante, como uma rajada de

vento, em direção a um conjunto de prédios com uma média de dez a

quinze andares. Eu sobrevoei os prédios, vendo carros de polícia passando

pela avenida, indo na direção da boate. Meu guia sobrevoou um prédio,

descendo rapidamente, como se estivesse em queda-livre, até eu avistar

Fulmen. Ele corria por uma rua estreita e deserta, com prédios comerciais,

a esta hora fechados, em ambos os lados, e uns poucos carros estacionados.

O espírito chegou ao solo, seguindo Fulmen, quando de repente o Sancti

parou, no meio da rua estreita rua. “Apareça, Matos!”, gritou o Anjo,

fitando uma árvore na calçada.

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“Caçador!”, uma voz ecoou, forçando Samuel a olhar para os

lados, tentando localizar sua origem, “Sua espada degolou muitas de

minhas crias”.

“Apareça, Matos!”, repetiu Samuel, agora num tom bem mais

baixo. “Eu quero Hagan Gudrun. Diga-me o que quero, e esta noite

deixarei que você parta”. Samuel girava o corpo lentamente, os olhos

atentos buscando a posição de George Matos.

“Gudrun, o Sacerdote de Sangue? Gudrun, a Morte Carmim?”,

ecoou fracamente a voz de George Matos, vinda de algum lugar atrás de

Samuel. O Anjo virou-se rapidamente, curvando o corpo levemente para a

frente e levando a mão direita para o cabo da espada oculta sob o

sobretudo. “Ele é um lunático, o auto-proclamado Sacerdote dos antigos

Anunna”, ecoou novamente a voz, desta vez vindo de uma outra direção.

Samuel não se virou desta vez porém, embora seus olhos continuassem

procurando George Matos. Então, a voz disse num tom de sarcasmo e ódio:

“O Precursor do Sangue! Ah!”.

“Mas ele tem poder”, resmungou Samuel Fulmen.

Um silêncio perturbador se seguiu, mas Samuel permaneceu

fitando a mesma direção, apenas seus olhos se movendo. Após alguns

segundos, a voz de George Matos veio mais baixa, resmungante. “Seu

sangue é negro, e sua reputação o precede! Ele vem da Europa, e pelo que

sei, é mais antigo do que o mais experiente Progenitor do Rio de Janeiro!

Mas ele está aqui por possuir inimigos poderosos além-mar!”.

Samuel deu alguns passos em direção a um carro estacionado.

Logo além do carro, um vão entre dois prédios formava um pequeno beco

390

Page 391: Magna Veritas - Tiago José Moreira

onde as sombras se acumulavam. “Onde o encontrarei?”, perguntou o

Sancti.

Um novo silêncio, e então uma voz murmurante, vinda de lugar

algum: “Você procura morte ou danação, Caçador? Eu sei que não é

humano, mas nem mesmo o mais insano dos Anunnaki busca o Desfazer

com tanto empenho”.

“Onde?”, repetiu Samuel, sem erguer a voz, dando as costas para o

beco escuro e caminhando lentamente em outra direção.

“Cosme Velho”, disse o vampiro, sua voz agora surgindo do beco

escuro. No entanto, Samuel continuou dando as costas para o beco, ainda se

afastando do mesmo. “Mas acredito que seu real refúgio pode estar em

algum lugar em Cerro-corá”.

Samuel se virou de repente para a esquerda, voltando a observar a

rua. Do outro lado, as sombras de uma árvore se mexiam, conforme os

galhos e folhas se moviam levados pelo vento. “Acha que o Profeta Louco

está lá?”. Um carro virou a esquina, entrando na rua, seu farol ajudando a

eliminar parte das sombras. Samuel fitou as sombras do outro lado, mas a

luz não revelou nada. Assim que o carro passou, o Sancti perguntou

novamente: “Onde está o Profeta Louco?”.

“NINGUÉM”, gritou o vampiro, sua voz vinha do outro lado da

rua, continuando então num tom mais calmo: “Ninguém é permitido saber

sobre o Profeta”.

“Eu o encontrarei”, murmurou Samuel. “Eu juro por Deus!”.

“Você soa como o padre decrépito que guardava o Profeta”, a voz

veio de lugar nenhum, então o tom de voz ergueu-se até se tornar um urro:

“Como ele, seu lugar é entre os MORTOS”. Samuel se virou para a

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Page 392: Magna Veritas - Tiago José Moreira

esquerda, de onde George Matos surgiu como se viesse do nada. A

boca do vampiro se abriu e seus caninos alongados e pontiagudos

perfuraram a carne do pescoço do Anjo enquanto seus braços envolviam

Samuel Fulmen num abraço mortal. Samuel tentou recuar, mas o vampiro

já o prendia com força. Sangue celeste era sugado com fúria, mas então o

vampiro urrou, seus lábios queimando como se ácido tivesse caído em sua

boca. O vampiro recuou, assustado, seus olhos arregalados, enquanto os

lábios queimados expunham a mandíbula. De sua boca escorria sangue e

saía uma fumaça fétida, resultado de suas entranhas queimadas. Samuel

Fulmen também recuou, levando a mão ao ferimento aberto no pescoço,

que imediatamente se fechava. “Que maldito sangue é este?”, questionou o

vampiro.

“O sangue de Cristo”, murmurou Samuel, encarando o vampiro.

Sua mão direita puxava finalmente a longa espada, que então empunhou

com ambas as mãos, erguendo-a à esquerda do corpo, a lâmina apontada

para cima, mantendo o cabo à altura de seu peito. As pernas do Anjo se

flexionaram, prontas para um impulso rápido para a frente.

O vampiro rosnou, recuando alguns metros sem virar as costas ao

adversário. Sua barba grossa parecia crescer, tornando-se maior e eriçada,

enquanto a boca se expandia a proporções monstruosas, seus dentes se

tornando presas afiadas. Os olhos do monstro brilharam vermelhos,

enquanto a pele enegrecia e as orelhas se tornavam pontiagudas e longas.

Seus dedos também se estenderam, tornando-se finos e pontiagudos, com

articulações grossas. Em resposta, a lâmina da espada de Samuel Fulmen

ardeu numa fantasmagórica chama dourada que emitia fraca luz. “O que

diabos é você?”, perguntou o vampiro.

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Page 393: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O Elohim avançou, negando uma resposta ao sanguessuga. O

vampiro abriu os braços, abaixando o corpo, preparando-se para um contra-

ataque mortal com as garras. De repente, em meio à corrida, Samuel

inverteu a posição de sua espada, apontando a lâmina para baixo. A três

metros do vampiro, o Anjo ergueu a espada acima da cabeça, e então se

jogou de joelhos ao chão, a ponta da lâmina tocando a calçada. O vampiro

avançou, mas então um círculo de chamas douradas cercou o Celestial. As

chamas fantasmagóricas tomavam tudo em um raio de alguns metros, mas

nada queimavam a não ser o morto-vivo, que recuou imediatamente,

uivando em ódio, para escapar do círculo de fogo purificador. Ainda

ajoelhado, Samuel ergueu a cabeça, seus olhos brilhando como o Sol. O

medo transpareceu na face do morto-vivo ao ser fitado pelo Anjo, e então

George Matos recuou ainda mais, mostrando presas e garras como se fosse

um animal acuado. O Celestial se ergueu e as chamas ao seu redor

desapareceram quando Samuel deu seu próximo passo, sempre fitando o

vampiro com seus olhos brilhantes. “QUEM DIABOS É VOCÊ?”, urrou o

vampiro.

Samuel não se preocupou em responder, ao invés disso dando mais

um passo na direção de George. O olhar de Samuel mudou, o brilho

sumindo de seus olhos, dissipando-se lentamente. A espada, porém, ainda

brilhava com intensidade, e era erguida por ambas mãos, à esquerda do

corpo. O morto-vivo o fitava apreensivo, o olhar vermelho não perdendo a

intensidade.

Os dois se encararam por alguns segundos, nenhum ousando se

aproximar mais. Então, o vampiro urrou, avançando, suas garras preparadas

para o ataque. O golpe horizontal de Samuel Fulmen traçou um arco

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Page 394: Magna Veritas - Tiago José Moreira

dourado no ar, atravessando o tórax do vampiro com perfeição. Porém,

a forma do vampiro se desfez numa cortina de sombras, dissolvendo-se

rapidamente. Foi quando o verdadeiro vampiro emergiu do nada, atacando

pela esquerda desprotegida de Samuel. O Anjo tentou escapar, mas não

antes que as garras da mão direita do vampiro rasgassem a carne de seu

pescoço e parte de sua traquéia. Fulmen recuou, levando a mão esquerda ao

ferimento, e ao mesmo tempo atacou com a espada, agora empunhada

apenas com a mão direita, com o intuito de forçar o monstro a se afastar.

Num recuo rápido, o morto-vivo escapou facilmente do ataque da lâmina,

desaparecendo em seguida.

“Por que diabos você simplesmente não morre?”, veio ecoante a

voz do vampiro, ao notar que a perda de sangue não enfraquecia Samuel, e

o ferimento mortal não o fez sequer cair de joelhos.

A mão esquerda de Samuel brilhou em leve luz dourada, e o

ferimento no pescoço se fechou parcialmente, estancando o sangramento

mas ainda deixando um corte sangrento. Então, o anjo voltou a segurar sua

arma com ambas as mãos, e permaneceu ali, imóvel, seus olhos buscando

qualquer sombra que se movesse.

“Você não é humano”, a voz do vampiro sussurrou no ouvido

esquerdo de Samuel. O Anjo não ousou se mover, porém. “Eu desconfiava

disso”, disse a voz, desta vez num tom alto, vinda do outro lado da rua. O

Elohim permaneceu apertou as mãos com mais firmeza no cabo da espada,

preparando-a para um golpe rápido. A voz veio do beco próximo: “Por

anos, você tem derramado o sangue dos Anunna, mas o que você é? Não é

um de nós”.

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Samuel se virou de repente, dando meia-volta. Não havia nada

por perto. “Os mortos sussurram que você brilha com vida”, disse o

vampiro, sua voz vinda de lugar nenhum. “Mas o Profeta não diz uma só

palavra sobre você”.

Os olhos de Fulmen se moviam lentamente, buscando algo ou

alguém. O Anjo moveu a cabeça lentamente para direita, buscando fitar

algo que poderia estar atrás dele. O rosnar do vampiro veio em seguida,

vindo por trás. A criatura surgia do nada, suas garras próximas do coração

de Samuel. O Anjo rapidamente moveu sua arma, girando o corpo para a

direita, sua lâmina traçando o ar, mas não atingindo a criatura que vinha

por trás, e sim o vampiro invisível à frente. A marionete de sombras, usada

como chamariz, dissipou-se antes de tocar Fulmen, mas o verdadeiro

George Matos sentiu a lâmina penetrar seu tórax, partindo suas costelas e

cortando parte de seu coração. O vampiro tombou em seguida, surpreso e

derrotado.

A face de George Matos retornava ao seu aspecto humano, e suas

garras uma vez mais pareciam dedos inofensivos. O frio sangue vampírico

escorria pelo ferimento, não em quantidade, mas o suficiente para manchar

suas roupas. “Que Deus tenha piedade de sua alma”, murmurou Samuel,

invertendo a posição da espada, fazendo a lâmina apontar para baixo.

“...pois eu não terei”, continuou o Sancti, perfurando o crânio do vampiro

com a lâmina. O morto-vivo emitiu seu último grito, e em instantes seu

corpo começou a se deteriorar, como se fosse um cadáver com meses de

idade. Samuel Fulmen fez o sinal da cruz, e logo depois puxou um pano de

um dos bolsos, limpando a lâmina da espada, e em seguida a embainhou

sob o sobretudo.

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Samuel fitou o cadáver de George Matos por alguns segundos.

“Que sua Alma encontre um caminho que não o Inferno”, sussurrou. Em

seguida, ele se abaixou, revistando o corpo. No bolso, encontrou um

celular. Em outro, estavam as chaves do carro e a carteira. Samuel se

levantou, abrindo a carteira e olhando os documentos. Todos eram falsos.

Samuel jogou a carteira e as chaves sobre o corpo, mas manteve em suas

mãos o celular e os documentos.

De repente, um carro de polícia virou a esquina, entrando na rua,

suas luzes de alerta ligadas, mas sem sirene. Samuel pensou em correr, mas

então uma voz murmurante disse: “Não se preocupe”. O Sancti se virou

repentinamente para encarar Lo Wang, agora sem máscara, mas ainda com

as roupas apresentando cortes, rasgos e outros sinais das batalhas contra os

Caídos de Oostegor e os vampiros do Rio de Janeiro. “Eles não nos verão”,

disse Lo Wang. De fato, o carro passou sem nota-los. Por sorte, ou talvez

pela vontade de Lo Wang, também não perceberam o corpo de George

Matos.

“Você é um dos companheiros de Nicodemus”, disse Samuel

Fulmen.

“Tenshi Lo Wang, Virtuoso entre os Kage”, apresentou-se o anjo

negro, abaixando a cabeça em sinal de cumprimento e respeito.

“Anjo Samuel Fulmen, Elohim entre os Sancti”, respondeu Samuel.

“Meus companheiros desejam falar com você, Anjo Fulmen”, disse

Lo Wang, “Pois acreditamos que a sua busca é a nossa”.

“E o que vocês buscam?”, perguntou Samuel Fulmen.

“O Profeta Louco”, disse o Kage, “mas ao contrário de você, nós

compreendemos o que buscamos. Acredite em mim, Curandeiro, que há

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mais perigos nesta busca do que você imagina, e que o destino de mais

do que apenas os vampiros de uma cidade dependem de nosso sucesso”.

“O que quer dizer?”, perguntou perplexo Fulmen, seu olhar

paciente demonstrando curiosidade.

“Que você busca um louco e não a Verdade”, disse Lo Wang, “mas

acredito que Nicodemus poderá explicar melhor”. Então, o Anjo das Trevas

deu um passo para trás, uma sombra rapidamente cobrindo-o, e sua forma

desaparecendo por completo.

“Espere!”, pediu Fulmen, estendendo a mão para o local em que

Wang antes estava. Ao notar que não houve resposta, Samuel Fulmen

guardou o celular e os documentos no sobretudo, e então, colocando as

mãos nos bolsos do sobretudo, caminhou, pensativo, pela rua escura.

Pouco a pouco, minha consciência se elevou, e meu espírito-guia se

afastou do Anjo solitário. Samuel continuou caminhando, cada vez mais

distante, enquanto minha visão já se mantinha acima dos prédios.

Rapidamente, senti minha consciência ser puxada de volta, talvez chamada

por Asphael Veritas. O espírito arremeteu-se em grande velocidade, de

volta ao apartamento. Porém... havia algo... Eu olhei para o leste, e vi a

escuridão da noite tocar o oceano negro. Mas havia... algo... que não podia

ser visto. O horizonte estava plácido, mas eu pressenti que vinha uma

tempestade. Talvez o espírito do ar pudesse me levar, mas eu sabia que,

estando tão longe, mesmo o espírito não a alcançaria a tempo.

E ouvi trovões e o som de ventos extremos e chuva torrencial. O

som era tão distante, um simples eco, mas ao mesmo tempo era claro em

minha mente. Estava além da visão, além da percepção comum, mas minha

alma ouvia. Uma tormenta urrava, num local muito além do horizonte. E

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ouvi, em meio à tempestade, o urro do tigre, acompanhado do poderoso

bater de asas de alguma criatura, logo acima das ondas furiosas.

Ele nos encontrou. Shiva estava vindo.

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Capítulo 17: A Tempestade Vindoura

Meus olhos se abriram lentamente, enquanto o som de uma voz

feminina alcançava meus ouvidos. “Há a previsão de chuvas fortes esta

noite em todo o Sudeste brasileiro”. Meus olhos se abriram lentamente,

meu corpo parecia pesado. A luz do dia trazia alívio. Eu estava deitado no

sofá na sala de Samuel. O Sol já tinha se erguido, e sua luz entrava pela

porta de vidro da sacada. Aquela longa noite finalmente teve um fim, e eu,

mesmo que sem querer, tinha sucumbido ao sono. Alguém se sentava no

sofá ao lado, assistindo televisão, enquanto a moça do noticiário matinal

alertava: “Os meteorologistas alertam para uma tempestade que está se

formando em alto-mar. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, este

acontecimento é fora do comum e ainda precisa ser estudado. É possível

que a tempestade que atingirá o Sudeste, especialmente o Estado do Rio de

Janeiro, seja uma das mais fortes tempestades dos últimos anos”.

A pessoa no sofá ao lado retrucou: “Mais mortes, mais barracos

soterrados, mais alagamentos, mais desabrigados... Como se já não

bastassem as chuvas do ano-novo”. Reconheci a voz como sendo de

Samuel. Me levantei lentamente, fitando-o. Vestido de bermuda e camiseta

regata, com os cabelos presos em um rabo-de-cavalo, Samuel me olhou,

abrindo um sorriso. “Bom-dia, Philipe. Karina preparou um belo café da

manhã para fortalecer seu ânimo”, ele disse, mostrando o copo de vidro que

tinha à mão, com ainda um pouco de suco. “Que tal um suco de

maracujá?”, ele perguntou, sorrindo, em seguida falando em voz alta para

os outros que estavam no apartamento: “Ele acordou!”.

Sentei-me no sofá, apoiando a cabeça em minhas mãos, esfregando

bem meus olhos. Sentia-me renovado, não o suficiente, mas sabia que tinha

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recuperado as forças necessárias para continuar nossa busca. Karina

entrou, vinda da cozinha, seu rosto sorridente. Ela vestia um top negro e

bermuda, e sua beleza parecia mais radiante que o normal. Seus cabelos

ruivos se mantinham presos atrás da cabeça, e ela veio o mais rápido

possível até mim. “Philipe!”, ela disse, se ajoelhando à minha frente,

“estávamos preocupados!”.

“O que aconteceu?”, perguntei a ela, mas também fitei Samuel em

busca de uma resposta. No canto de meu olho, vi outra pessoa entrar na

sala, vinda dos quartos. Era Al-Malik, que foi rápido em me responder:

“Quando saímos de nosso transe durante a noite, você caiu desacordado,

Nicodemus”.

“Eu estava preocupada”, disse Karina, “pois quando tinha saído do

banho, vi vocês, Asphael e Ansgar em transe. Fiquei esperando aflita, mas

quando os outros acordaram, você caiu inconsciente”.

“Me desculpem por preocupar vocês”, pedi. “Mas agora estou

bem”.

“Sim, Lorde Asphael disse que você estava exausto”, disse Al-

Malik. Eu fitei o Malaki, vendo que ele tinha conseguido roupas novas.

Para minha surpresa, ele desta vez vestia roupas ocidentais, e não portava o

turbante na cabeça, deixando seus cabelos longos e negros à mostra.

“Onde estão os outros?”, perguntei.

“Lá em cima”, disse Samuel. “O apartamento é meio apertado para

tantas pessoas. O Princeps queria aprender a usar sua espada, e o Venator

quis ensina-lo. Os outros foram acompanha-los para ver”.

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Sorri pensando no entusiasmo de Absolon. Al-Malik,

entendendo meus pensamentos, comentou: “Achille Absolon mudou muito

desde que isso começou”. Concordei meneando a cabeça.

“Nicodemus”, interrompeu Samuel, enquanto Karina se sentava ao

seu lado no sofá. “Precisamos conversar”, ele disse, seriamente.

“Sim, precisamos”, respondi, “mas não aqui. Vamos subir. O que

temos a conversar é do interesse de todos”.

Samuel concordou. Ao me levantar, aproveitei para tirar o

sobretudo e olhar o buraco em minha camisa, causado pelas minhas

próprias asas. “Poderia me emprestar uma camiseta, Samuel?”, pedi. O

Sancti foi rápido em me oferecer uma camiseta branca.

Pegamos o elevador para o último andar, e então de lá usamos as

escadas para chegar ao topo do edifício. O acesso é normalmente restrito,

mas a tranca da porta para o exterior estava aberta. Além da porta, vimos a

cidade à frente. Nosso edifício era pequeno e antigo se comparado aos seus

vizinhos, mas mesmo dali era possível ver um pouco daquela grande cidade

de concreto. No topo do prédio, tínhamos a caixa d´água, um acesso ao

fosso do elevador e antenas e pára-raios. O chão era de concreto, e às

bordas do prédio estava uma pequena mureta, com cerca de um metro de

altura. Assim que passei pela porta, ouvi o som de metal se chocar com

metal, e desviei minha visão para a direita, vendo nossos companheiros.

“Mais forte!”, dizia Ansgar, sua espada sendo golpeada pela lâmina

de Absolon. “Não basta velocidade! Prefira um golpe mortal a vários

golpes leves!”. O Venator estava sem camisa, usava apenas tênis e calça

jeans, possivelmente emprestadas de Samuel ou pegas de algum outro

lugar.

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Lo Wang, por sua vez, estava de braços cruzados ali perto.

Também com roupas comuns, usando uma calça preta e uma camiseta sem

mangas, descalço. Ele sorria, vendo o treinamento do jovem Absolon.

“Você está deixando a guarda aberta ao atacar tanto”, ele disse. “Afaste-se

do oponente após o golpe, arme o segundo ataque e espere o momento

certo. Se o primeiro golpe falha ou é bloqueado, o oponente irá contra-

atacar. Isso não é um desses filmes americanos de ninjas e samurais”.

“Bom-dia, Nicodemus”, disse Absolon, se afastando um pouco de

Ansgar, sem dar as costas ao Venator, e então usando uma das mãos para

tirar o suor da testa. Os outros pararam para nos olhar, enquanto eu, Karina,

Al-Malik e Samuel nos aproximávamos.Vendo que o treinamento parava,

Absolon baixou a arma. Ele vestia uma camiseta colorida, uma bermuda

azul e chinelas.

Fabrizia estava sorridente, seus cabelos negros e lisos reluziam sob

a luz do Sol. Ao ver o fim do treinamento, ela se levantou da mureta, onde

estava sentada, e se aproximou de Absolon. A Xamã ainda vestia a mesma

blusa e short com que tinha ido dormir. Seus cabelos soltos eram erguidos

pelo vento, às vezes uma mecha caindo diante de seus olhos. Ao chegar a

Absolon, Fabrizia tocou seu ombro, então se apoiando o peso do corpo no

Princeps. Absolon virou-se para fita-la, sorrindo em seguida.

“Onde está Lorde Asphael?”, perguntei a Absolon.

“Ele estava aqui”, respondeu o Sancti.

“Estou aqui”, veio a voz de Asphael, vinda por trás de nós. O

Arcanjo surgiu vindo de trás da caixa d’água. “Eu estava orando e

meditando”, disse ele, que ainda vestia a mesma túnica árabe de antes, com

o mesmo manto cinzento, mas estranhamente limpos e reparados de todos

402

Page 403: Magna Veritas - Tiago José Moreira

os danos. “Chegou a hora de contarmos ao Sancti?”, perguntou o

Arcanjo.

Meneei uma resposta positiva com a cabeça, e nos reunimos sob a

sombra de um prédio maior, para evitar o calor do Sol enquanto

conversávamos. Ali, com todos reunidos, alguns sentados na mureta de

segurança que limitava o edifício, outros em pé, eu fitei Samuel Fulmen:

“Samuel, estes são meus companheiros, creio que já conheceu todos eles

enquanto eu dormia”. Samuel confirmou que sim, então continuei: “Nós

estamos aqui numa missão de extrema importância, e não acho que você

está realmente preparado para conhecer nossa busca, mas precisamos de

sua ajuda. Me ouça com atenção, pois quem nos enviou aqui não foi um

Anjo ou Arcanjo, nem foi a provocação de um demônio ou uma Cria de

Lucifugo. Quem nos trouxe até o Rio de Janeiro foi Metatron, a Voz do

Lorde Sábio em pessoa.

Samuel pensou em dizer algo, mas se calou. E eu continuei,

começando do princípio. Eu contei a ele sobre nossos sonhos, e sobre os

terremotos em Libraria. Eu narrei nossa jornada pelas profundezas do Éden,

e o tesouro que encontramos ali. Eu revelei o conteúdo daquele tesouro,

aquele jarro que continha a essência aprisionada do próprio Lorde do

Sangue. Fitei os olhos de Samuel, esperando alguma pergunta, mas vendo

que ele nada tinha a dizer, continuei, descrevendo nosso encontro com o

Conselho Veritas, e a nossa invasão ao templo esquecido de Dur Sharrukin.

Contei a ele, uma a uma, cada visão que tivemos naquele lugar profano, e

repeti, da melhor forma que a memória me permitia, as palavras que Khral-

Harshek, o cavaleiro, nos disse. Então, lembrei-me sobre Isfahan e Chak-

chak, e nosso encontro com o Arcanjo Asphael, antigo pupilo do próprio

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Page 404: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Grande Veritatis. Minhas memórias se tornavam mais vivas, e minhas

revelações mais intensas, conforme eu me recordava dos eventos que

transpiraram na Longa Noite, na qual chegamos a Jerusalém para impedir o

avanço do Tigre. Contei a ele sobre o que encontramos nas profundezas da

cidade sagrada, sobre o terrível encontro com Íblis Al-Qadim e o combate

mortal com o tigre, que então descobrimos se chamar Shiva. Eu falei sobre

o Velho, aquele chamado de Profeta Louco pelos Anunnaki do Rio, e sobre

a alma de Veritatis, aprisionada naquela forma frágil e mortal. Então,

descrevi as maravilhas da Cidade Eterna, e contei sobre a traição de

Azubah em Oostegor. Lembrei-me também das palavras de Lúcifer, e

finalmente decidi falar, tanto ao Sancti como aos meus demais

companheiros, o que realmente aconteceu no Plano das Idéias, e as palavras

que Metatron me disse naquele momento.

“Nós buscamos Veritatis, Samuel”, concluí, continuando: “Estamos

perto de encontrar Uriel-chamado-Veritatis, Primus dos Veritatis

Perquiratores e Mors Sancta, construtor de Libraria. E, para isso,

precisamos encontrar o Profeta Louco antes que Shiva chegue a ele. Não

estamos enfrentando vampiros, mas a ira dos Grandes Lordes do Inferno”.

Samuel ficou boquiaberto. “Um dos Primi!”, ele murmurou. Karina

segurou sua mão, confirmando minhas palavras, sua face triste e séria, seus

olhos quase revelando os horrores pelos quais passamos. “Mas por que

somente vocês? Como um peso desses pode estar sobre apenas vocês? Os

outros precisam saber! Os Arcanjos! Os Primi!”.

“Não”, revelei. “Porque eu finalmente entendi, quando o Grande

Lorde Agliareth quase me possuiu no Plano das Idéias. Um segredo deve

ser um segredo. Não há tempo, não há ajuda. Quantos mais vierem nesta

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Page 405: Magna Veritas - Tiago José Moreira

busca, mais facilmente os Grandes Lordes nos alcançarão. Quantos

mais descobrirem o paradeiro do Velho, mais mentes o Inferno terá à

disposição para ler. É preciso haver silêncio. E entenda, que esta noite isso

terminará”.

Todos me olharam sem entender, com exceção de Asphael, que

compreendia o que eu quis dizer. “Ele está vindo”, revelei, “Shiva está

vindo e trás o Inferno consigo. Se não encontrarmos Veritatis esta noite, o

tigre o alcançará”. Eu olhei para o céu claro acima, com apenas algumas

nuvens. Por mais poluída que estivesse a atmosfera, o azul ainda tinha

beleza. “Em breve as nuvens começarão a chegar, e a tempestade vai cair

novamente”.

“Nicodemus”, murmurou Samuel, me olhando seriamente. “O que

faremos? Ou seria... O que devo fazer?”.

Eu sorri. “Bem-vindo à nossa Falange. O que era Sete agora são

Nove. Nenhum de nós está aqui por acaso”. Então, fitando os olhos negros

de Samuel Fulmen, disse: “Por favor, amigo, nos conte tudo, desde o

princípio, que está acontecendo nesta cidade”.

“Com prazer”, disse Samuel. “Começou em 1999. Naquela época,

o Patriarca vampírico do Rio de Janeiro era um ancião chamado Aloísio

Domos de Oliveira. Aparentemente, ele era antigo o suficiente para ter

chegado ao Brasil por volta do século XVII. Pelo que consegui descobrir,

Aloísio pertencia era um Ereshkigal, e era um homem moderado. Eu tinha

poucos problemas com ele. Normalmente ele influenciava a política do Rio

e tinha negócios escusos com o tráfico de drogas, mas em geral se mantinha

longe da violência e não atraía os olhares dos Celestiais cariocas. Desde o

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Page 406: Magna Veritas - Tiago José Moreira

fim da ditadura militar, porém, o poder de Aloísio vinha decaindo, com

o surgimento de facções rebeldes”.

“Que tipo de facções rebeldes?”, perguntou Absolon.

“A maioria se apoiava no poder do tráfico de drogas”, respondeu

Samuel. “Porém, as facções eram pequenas e desorganizadas. Além disso,

desde o fim da ditadura, Aloísio tinha dificuldades em manter influência na

prefeitura da cidade, e alguns rivais se aproveitaram disso para enfraquecê-

lo. Porém, apesar da violência e dos constantes conflitos vampíricos, até 99

a situação estava sob controle. A maioria dos Celestiais cariocas, eu

incluso, estávamos mais preocupados com o crime organizado e com

licantropos. Mas então surgiu um novo elemento que desequilibrou a

situação”.

“Hagan Gudrun?”, perguntou Lo Wang, de braços cruzados e

apoiando-se na mureta.

Samuel fitou o Kage. “Não”, respondeu o Sancti. “Hagan Gudrun

era um problema ausente. Eu já tinha ouvido falar dele uma ou duas vezes.

Parece que ele é mais antigo que qualquer outro vampiro no Rio, mas se

mantinha isolado, e suas crias apoiavam o Patriarca em troca de serem

mantidas fora das políticas da cidade... O que realmente iniciou tudo foram

caçadores. Não que eles não fossem ausentes antes, mas de um momento

para outro, era como se conhecessem os movimentos e os objetivos dos

seres sobrenaturais cariocas. A princípio, poucos se importavam com a

presença dos caçadores, pois eles estavam eliminando peixes pequenos.

Um Anunnaki aqui, um licantropo ali. O problema começou quando os

caçadores finalmente conseguiram invadir uma reunião de uma das mais

influentes crias de Aloísio”.

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Samuel parou por um momento, observando o olhar de Al-

Malik. Vendo que o Malaki não ia perguntar nada, o Sancti continuou. “As

coisas se tornaram piores com o tempo. A morte de vampiros influentes fez

com que as facções vampíricas começassem a se culpar, e uma guerra

começou. Se os sanguessugas estivessem apenas se matando, eu não

ligaria, mas tudo se tornou um caos quando começaram a assassinar ou

seqüestrar pessoas influentes, bandidos, políticos e empresários, a fim de

enfraquecer seus rivais. Para tornar ainda pior a coisa, mais esconderijos de

vampiros importantes estavam sendo invadidos pelos caçadores”.

“E onde o Profeta Louco entra nesta história?”, perguntou Ansgar.

“Ele foi a origem de tudo”, respondeu o Sancti. “Distraído pela

guerra vampírica, eu não dei muita atenção aos caçadores. Ao invés disso,

me aproveitei da vulnerabilidade dos vampiros para ataca-los. Houve uma

invasão de vampiros de Gudrun na Catedral de São Sebastião, por volta de

Abril de 2000, se não me engano. Para o público, foi uma invasão de

bandidos fugindo de uma facção rival. Para minha surpresa, os próprios

párocos sustentavam esta versão. Minha investigação não me revelou

muito, até que, no fim de 2000, um dos padres foi atacado repentinamente

na rua. Isso me levou a Inácio Alves de Lima. O bom padre estava no

hospital, às portas da morte. Eu conversei com ele duas vezes, mas ao me

Revelar, quando ele estava para morrer, ele finalmente confessou toda a

verdade para mim”.

“E o que você descobriu?”, perguntei, mesmo sabendo

parcialmente da resposta, após termos analisado as anotações e recortes de

Samuel na noite passada.

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Page 408: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“O padre era um Azarias da Sociedade de Tobit”, respondeu o

Sancti.

“Sociedade de Tobit?”, questionou Fabrizia. “O que são eles?”.

“É uma ordem secreta dentro da Igreja Católica”, respondi.

“Poucos sabem sobre ela. Na verdade, quase ninguém ouviu falar dela.

Quando a Inquisição acabou, alguns Arcebispos, talvez até mesmo o Papa,

ainda tinham acesso aos arquivos dos inquisidores, que detalhavam seus

sucessos na caça aos monstros europeus. A Inquisição foi uma iniciativa

falha, destinada ao extermínio do sobrenatural na Europa, mas que logo se

tornou uma ferramenta política. Alguns conservadores dentro da Igreja

resolveram recria-la sob uma nova face, de forma que suas atividades não

fossem ligadas à Igreja. Assim nasceu a Ordem de Tobit. Seus membros

são sempre chamados Azarias, e eles não agem diretamente na Caça. Ao

invés disso, eles financiam e fornecem informações e equipamento aos

caçadores”.

“Exato”, confirmou Samuel. “Padre Inácio era o Azarias de quatro

caçadores cariocas. Um dos caçadores tinha sido morto cerca de mês antes

da invasão da Catedral, mas pelo visto Hagan Gudrun utilizou alguma de

suas bruxarias para arrancar dele o conhecimento sobre a presença de um

Azarias. Investigando o Padre Inácio, Gudrun descobriu sobre a existência

do Profeta Louco”.

“O Velho estava com o padre?”, perguntou Karina.

Samuel continuou, respondendo a Supervivente: “Sim. Inácio

cuidava desse ‘Velho’ desde que o encontrou nas ruas da cidade, por pura

compaixão. Pelo que Inácio me disse, antes de morrer, o ‘Velho’ era

assombrado por fantasmas, e às vezes falava sobre o Céu e o Inferno. Mais

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do que isso, Inácio descobriu que o ‘Velho’ tinha o dom de sentir a

presença do sobrenatural e prever acontecimentos. Foi aí que o nome

‘Profeta Louco’ foi dado a ele”.

“Então, o Azarias usava as profecias do Velho para guiar seus

caçadores”, murmurou Al-Malik.

“Exatamente”, confirmou Samuel. “Mas então o Profeta Louco

caiu nas mãos de um vampiro”.

“Hagan Gudrun”, disse Ansgar.

Samuel moveu a cabeça afirmativamente. “Ele é mais poderoso do

que parecia, e sua intervenção nos eventos fez a guerra vampírica atingir

níveis insuportáveis. Em pouco mais de seis meses, o Patriarca estava

morto, e quase metade dos vampiros mais influentes da cidade tinha sido

destruída ou foi forçada a se aliar a Gudrun”.

“E esta é a situação atual?”, perguntei.

“Quase”, respondeu Samuel. “Gudrun é esperto e cauteloso. Ele se

utiliza de suas crias e de fantasmas para fazer a sua vontade. Ele raramente

aparece, e eu nunca vi seu rosto, embora já tenha ouvido descrições. Pelo

que me parece, ele é um Namtar, e é conhecido como um bruxo. Ele tem

utilizado o Profeta Louco para prever os passos de seus inimigos, mas pelo

que Inácio me disse e pelo que observei, o Profeta nunca fala nada sobre

atividades Celestiais no Rio de Janeiro”.

“Precisamos encontrar Gudrun para podermos prosseguir”, eu

disse, “Há alguma esperança de conseguirmos encontra-lo esta noite?”.

“Eu nunca estive tão perto de chegar a Gudrun como agora,

Nicodemus”, respondeu Fulmen. “Ontem meu objetivo era tomar as

respostas de um dos aliados de Gudrun. George Matos, meu alvo de ontem,

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possuía uma formidável influência entre algumas quadrilhas de

traficantes de drogas cariocas. Até pouco tempo atrás, George era um

opositor de Gudrun e queria a posição de Patriarca. Só que, após ter boa

parte de sua influência roubada ou destruída, ele assegurou sua vida

prometendo a Gudrun eliminar seu maior opositor, a Cria do antigo

Patriarca, um Anunnaki chamado Alexandro”.

“E você descobriu algo?”, perguntou Karina.

“George disse que Gudrun se esconde em Cosme Velho ou talvez

na favela de Cerro-corá”, respondeu Samuel, “Isso bate com as suspeitas de

outros vampiros e com o pouco que descobri durante estes anos todos. O

problema é que ainda é muito pouco para o encontrarmos. Eu tenho o

celular de George Matos e alguns de seus documentos, e posso tentar usar

esta informação para descobrir onde ele tem ido e com quem tem falado,

mas isso levará muito tempo”.

“E nós temos pouco tempo...”, murmurei, baixando a cabeça para

pensar em alguma solução.

Foi quando ouvi um murmúrio, e ergui meus olhos para fitar os

lábios de Al-Malik se moverem suavemente, como se ele repetisse algo a si

mesmo. Al-Malik se virou para mim, murmurando: “É meu momento,

então, é o que Helammelak me disse em Libraria. Eu nunca esqueci aquelas

palavras...”. Então, ele se voltou aos demais, sua voz erguendo-se: “Karina!

Samuel! Nicodemus e Lorde Asphael! eu precisarei de vocês”.

“O que tem em mente, Al-Malik?”, perguntou Karina.

“Samuel tem o conhecimento sobre os ghûl, e você pode nos guiar

como ninguém mais, Karina”, disse Al-Malik. “Já Nicodemus saberá

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Page 411: Magna Veritas - Tiago José Moreira

decifrar os sinais que estiverem à nossa frente... Mas eu, eu posso

arrancar verdades mesmo do mais terrível dos Djinni”.

“E quanto ao resto de nós?”, perguntou Ansgar.

“Seria melhor que ficassem aqui, Ansgar, e continuassem com seus

treinamentos”, respondeu o Malaki. “Tornem Absolon um guerreiro, pois

mais tarde precisaremos de todos vocês”.

“E quanto a mim?”, perguntou Asphael Veritas.

“Venha comigo também, Lorde Asphael”, pediu Al-Malik. “Eu sou

só seu serviçal, grande Arcanjo, mas precisarei de suas habilidades”.

“Que assim seja”, disse o Arcanjo.

Al-Malik pediu que nós o seguíssemos, enquanto os demais

ficaram para trás. Descemos novamente ao apartamento de Samuel, onde o

Malaki nos pediu que nos vestíssemos para sair. O próprio Cuique Suum já

estava pronto desde o início, vestido com calça e terno. Sua aparência,

embora claramente árabe, lembrava um homem de negócios. Asphael

também não precisava se trocar, já vestido com a mesma roupa que usou

em toda a nossa jornada. Karina, porém, foi se trocar no quarto de

hóspedes, enquanto eu e Samuel entramos no mesmo quarto.

“O que o Malaki tem em mente?”, perguntou Samuel, enquanto eu

trocava a camiseta emprestada por uma camisa branca, e em seguida

procurava um paletó que combinasse com minha calça, por mais suja que

ela estivesse.

“Não sei”, respondi, enquanto Samuel colocava uma camiseta azul

escura e trocava a bermuda por calças jeans. “Mas se Al-Malik tem um

plano, então é melhor que pelo menos tentemos. Nosso tempo é curto”.

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Page 412: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Samuel olhou para sua espada, jogada sobre a cama. Então,

pegou o sobretudo e o vestiu, em seguida indo à direção da arma. “Estou

nesta busca há dois anos e meio, Philipe, e de repente descubro que o

tempo acabou”. Por fim, ele embainhou a arma.

“Que acabe esta noite”, eu murmurei.

“Que acabe esta noite”, ele repetiu.

Quando saímos do quarto, Karina, Asphael e Al-Malik já nos

esperavam. Karina usava calças jeans, uma blusa de várias cores vivas e

uma jaqueta. Sob a mesma, pude perceber um coldre de pistola. Seu cabelo

ruivo estava preso num longo rabo de cavalo. Notei que o olhar de Samuel

se fixava nela. Já o Malaki esperava sentado no sofá, segurando sua

cimitarra.

“E então, Al-Malik Bin Bayt’Namus Al’lah, qual é seu plano?”,

perguntou Samuel, sentando-se num dos sofás. Karina se aproximou de

Samuel, sentando-se ao seu lado. Eu preferi permanecer em pé, e cruzei

meus braços, apoiando-me na estante da televisão.

“Nós precisamos reunir nossos conhecimentos e poderes para

encontrarmos uma solução, Samuel Fulmen dos Sancti”, respondeu o

Malaki. “Precisamos apenas de um primeiro passo, uma primeira pista, e

poderemos prosseguir. O único que pode nos colocar no caminho correto é

você, Elohim. Precisamos encontrar alguém que tenha tido contato recente

com Hagan Gudrun ou uma de suas crias”.

Samuel parou um momento para pensar. “Encontrar uma Cria de

Lucifugo durante o dia? Eu poderia leva-los aos campos de caça de

algumas durante a noite, mas agora seria impossível”, disse Samuel.

“E George Matos?”, perguntou Asphael.

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“Ele está morto. Eu o destruí na noite passada, já se

esqueceu?”, respondeu o Sancti.

“Mas você possui pistas dele”, disse o Arcanjo.

Samuel parou para pensar. “O celular e os documentos, e só”, ele

murmurou. “Eu os peguei para poder investigar mais sobre suas atividades

e contatos, mas isso por si só levaria dias”.

“É o suficiente”, respondeu Al-Malik.

Samuel olhou o Malaki, e então o Arcanjo Veritas. “Está bem, eu já

venho”, disse o Sancti, logo em seguida se levantando para buscar o celular

e os documentos em seu quarto.

“Acha que conseguiremos?”, perguntou Karina a Al-Malik,

enquanto fitava Samuel se afastar.

“O primeiro passo é não dizer que é impossível, jovem Karina”,

disse o Malaki. “O segundo passo é começarmos. Não há nada que nossa

vontade não possa fazer. E, diante de tudo o que tem acontecido, não temos

outra escolha a não ser confiarmos em nossa capacidade”.

“Se falharmos”, eu disse, “não será por termos desistido”.

“Aqui está”, disse Samuel, já retornando com os objetos em mãos.

“A identidade traz o nome ‘Márcio Luiz de Macedo’”. Al-Malik estendeu a

mão enquanto o Sancti se aproximava, e Samuel entregou-lhe os

documentos e o celular, em seguida se sentando ao lado de Karina.

“Devemos investigar suas propriedades?”, perguntei.

“Talvez”, disse Al-Malik, “mas isso certamente levaria tempo. Eu

quero simplesmente saber por onde este celular andou. Eu posso olhar o

passado do objeto, mas imagens distorcidas não me ajudarão a localizar o

local”. Então, o Malaki fitou Karina: “Mas ajudarão a você”.

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Karina compreendeu o propósito de Al-Malik, porém tinha

suas dúvidas: “Mas eu não posso observar o passado”.

Al-Malik sorriu gentilmente. “Você se esquece que não estamos

sozinhos aqui”. Então, ele estendeu o celular a Asphael, que se mantinha

em pé, logo ao lado do Malaki.

Asphael sorriu, pegando o objeto, e então se aproximou de Karina,

estendendo a mão a ela. “Me dê sua mão e feche seus olhos, Karina Ariel”,

pediu gentilmente o Arcanjo.

Karina estendeu a mão, tocando Asphael, e seus olhos verdes se

fecharam lentamente. Asphael também fechou seus olhos, e segurou

firmemente o celular com a outra mão. Samuel olhou a garota apreensivo,

esperando que ela deixasse o transe, mas logo sua paciência começou a

diminuir, conforme os segundos passavam.

“Calma, Samuel dos Sancti”, pediu Al-Malik. “As visões poderão

levar alguns minutos, pois Karina precisará analisar bem o que vê”.

“Eu sei”, disse Samuel, “mas isso não diminui minha ansiedade”.

Al-Malik estendeu a sua cimitarra a Samuel. “A propósito...

Enquanto esperamos, gostaria que guardasse minha cimitarra para mim.

Estas roupas não permitem que eu a oculte facilmente”.

Samuel fitou o Malaki, balançando positivamente a cabeça, e

pegou a cimitarra. “Vou dar um jeito de guarda-la dentro do sobretudo”,

disse o Sancti.

“Você é um homem de Deus, não Samuel?”, perguntou Al-Malik.

Samuel se mostrou surpreso e intrigado com a pergunta. “Por que a

pergunta? Por quê agora?”.

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“Por que eu posso sentir. E por causa desse pequeno crucifixo

que porta consigo”, disse Al-Malik, se referindo a uma corrente prateada ao

redor do pescoço de Samuel. A corrente caía por dentro da roupa,

impossibilitando ver o crucifixo de prata que o Sancti portava.

“Eu tenho minha fé”, disse Samuel, “e acredito que Deus me deu

uma segunda chance de viver em nome dele”.

Al-Malik sorriu. “Você ora muito também”, disse ele. “Como fez

ontem, e como fez esta manhã”.

Samuel ainda se mostrava intrigado, observando aquele sorriso de

satisfação no Malaki. Ele perguntou: “E quanto a você, Al-Malik? Ora?”.

“Sim”, respondeu o Malaki, “e me encho de satisfação alguém

honrar a Deus com palavras, para mostrar que não me esquecemos d’Ele

apesar de nossas constantes missões. Eu orei bastante nas duas últimas

manhã. E, sempre que há um momento de desespero, eu murmuro uma

frase que me conforta”.

“E o que murmura?”, perguntou Samuel.

“La ilaha illa ‘llah”, sussurrou o Malaki.

“Não há Deus a não ser Deus”, repetiu o Sancti, um sorriso tímido

surgindo em sua face.

“Viu só?”, disse o Malaki, “já o fez sorrir. E pensar em Deus ajuda

a superar as dificuldades. Veja só. Ela já está saindo do transe”.

Samuel virou-se para olhar Karina. Os olhos da Celestial se abriam

lentamente, enquanto Lorde Asphael Veritas já a fitava. Karina levou a

mão à testa, baixando a cabeça. “Eu sei o vampiro se escondia”, ela

murmurou.

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Eu sorri, me afastando da estante e me aproximando de meus

companheiros. “Você pode nos levar lá?”, perguntei a ela.

“Claro, Philipe”, ela respondeu enquanto se levantava. “Era em

Copacabana. O desgraçado vivia em Copacabana”.

Estranhei a maneira de Karina falar, e fitei Lorde Asphael, que me

devolveu o olhar: “Acabamos vendo algumas das atividades da criatura,

Mestre Nicodemus”, ele explicou.

Al-Malik se levantou. Karina olhou o Malaki, compreendendo o

que devia fazer. Ela se levantou também. Eu me direcionei à porta, mas

então notei que Karina caminhou rumo ao centro do salão. “Abram suas

asas”, ela pediu, enquanto estendia a mão direita para a frente. Logo

adiante da mesa de jantar, o ar ondulou e cintilou, e ela pôs-se de lado para

que passássemos antes dela.

“Não seremos vistos se voarmos em pleno dia?”, perguntou Al-

Malik.

“Não se preocupem, eu cuidarei disso”, disse Asphael, que foi o

primeiro a passar. Conforme sua forma desaparecia, intensificando as

ondulações, as roupas se rompiam em suas costas, suas asas abrindo. O

Arcanjo desapareceu antes que as asas saíssem por completo, porém.

Eu tirei meu paletó, esperando por ocultar a camisa rasgada sob ele

quando chegássemos a nosso destino. Enquanto caminhava em direção ao

portal, vi Karina e Al-Malik também tirarem o paletó e a jaqueta,

respectivamente. Então, atravessei o portal. Minhas asas surgiram quando

senti o chão sumir sob meus pés, logo após a sensação de atravessar uma

parede aquosa.

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O Sol brilhava acima e o vento batia com força, me forçando a

fechar os olhos, enquanto as asas lutavam para me manter estável no ar.

Olhei para baixo, e sob a cobertura das nuvens, vi a Cidade Maravilhosa.

Al-Malik atravessava o portal agora, seguido por Samuel. Eu fitei o

horizonte a leste. Ele começava a enegrecer.

“Quantas horas são?”, gritou Al-Malik, sua voz lutando para

superar o som do vento forte que vinha do leste. Enquanto isso, Karina

atravessava o portal, que se fechou logo após.

“Cerca de nove horas!”, eu gritei em resposta.

“Vamos!”, insistiu Karina, tomando a frente.

Não houve muito o que dizer. Apenas seguimos a Supervivente.

Ironicamente, dois Arcanjos e dois Anjos centenários agora seguiam uma

jovem que foi abençoada há pouco mais de uma década. A ironia me fazia

sorrir de satisfação, ainda que a negritude que vinha do leste enchesse

minha mente de preocupações. Além disso, ainda que uma nova noite de

pesadelos estivesse para começar, havia um certo conforto em voarmos sob

o Sol da manhã.

Nós seguimos Karina através das nuvens do Rio de Janeiro, meu

olhar às vezes desviando-se para baixo, onde via o movimento incessante

das avenidas. Poucos minutos se passaram antes que eu visse uma grande

praia com milhares de minúsculas pessoas caminhando em suas areias.

Karina, porém, não avançou rumo à praia. Ao invés disso, desceu

subitamente, rumo a um conjunto de prédios altos e luxuosos um pouco

afastados do mar.

A Supervivente pousou no terraço de um prédio luxuoso, de cor

branca com faixas horizontais azuis. O terraço em si continha uma larga

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área descoberta, com uma bela piscina. Uma faxineira lavava o terraço

naquela hora. Samuel foi o segundo a descer, pousando próximo à

faxineira, que não podia nos perceber. Eu, Al-Malik e Lorde Asphael

descemos em seguida.

“É neste prédio”, murmurou Karina, caminhando através do vasto

terraço, rumo à porta que levava ao segundo andar do apartamento de

cobertura do prédio. Samuel se mantinha próximo a ela, enquanto os

demais os seguiam próximos a mim. Fitei o rasgo nas roupas de Samuel,

provocados pelo nascimento de asas, enquanto eu mesmo cobria minhas

costas com o paletó. Notei, com certo ciúme, admito, que Karina tocou a

mão de Samuel, e ambos prosseguiram de mãos dadas.

A porta, que estava aberta, nos levou ao interior luxuoso do

apartamento. Os móveis eram novos e bem cuidados, e a decoração

continha tanto tapetes caros como quadros belíssimos. Karina continuava

em frente, sem se importar com a decoração. Passamos por uma mulher de

meia-idade, vestindo roupas formais, que olhava pela janela enquanto

discutia com alguém pelo celular. A Supervivente prosseguia, primeiro nos

levando através das escadas para o andar inferior do apartamento, e então,

finalmente, à porta que nos levaria ao elevador do prédio. Karina soltou a

mão de Samuel e tocou na fechadura, tentando abri-la sem sucesso. Então,

ela se virou para nós. “A porta está trancada”, murmurou.

Lorde Asphael já se preparava para dar um passo à frente, quando

eu tomei a iniciativa, fazendo sinal para que a jovem me desse licença.

“Permita-me”, eu sussurrei. Murmurei palavras no Fabulare Arcaico e

toquei a tranca. Um som abafado se seguiu, vindo da fechadura que se

destrancava, e então eu abri a porta, dando licença para que a jovem Karina

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passasse. Ela sorriu para mim, agradecendo, e então entrou no curto

corredor adiante, chamando o elevador em seguida.

Após todos passarem, eu encostei a porta. Mesmo não podendo

tranca-la da mesma forma que a abri, seria melhor deixa-la encostada para

evitar sermos vistos. Esperamos pelo elevador, que não demorou. Logo

chegamos ao 11o. andar. “O apartamento dele é este”, disse Karina, abrindo

a porta do elevador.

Karina tomou a frente, mas logo deu passagem para mim. Adiante,

estava a porta do único apartamento do 11o. andar. Mais uma vez,

murmurei o Fabulare Arcaico, tocando a fechadura e, em seguida, abrindo

cuidadosamente a porta. Senti um ar frio soprar do interior do apartamento.

O interior estava escuro, coberto por uma densa penumbra. Parei por um

instante, olhando de canto a canto buscando qualquer movimento. Não

sentindo perigo, adentrei.

A sala de entrada era vasta, em forma de “L”. Logo à frente da

porta de entrada, estava a porção da sala que servia como sala de estar, com

dois sofás, um de frente para o outro, e duas poltronas, e uma pequena

mesa no centro. A mesma sala, de tão vasta, ainda tinha uma mesa de oito

lugares, para o jantar, e, por mais estranho que parecesse, uma lareira, com

um sofá voltado para ela. Cortinas pesadas cobriam as janelas e a varanda,

deixando apenas uma luz solar mínima escapar pelos cantos. Com as luzes

apagadas, era como estar num ambiente noturno. Embora a penumbra

dificultasse a visão, ainda era possível ver os objetos com clareza, ainda

que detalhes ficassem obscurecidos.

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Page 420: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Devemos tomar cuidado, Nicodemus”, sussurrou Al-Malik, o

segundo a entrar no apartamento. “Ghûls com freqüência possuem lacaios

para cuidar deles durante o dia. Pode haver alguém aqui”.

“Eu sei, Al-Malik”, respondi num tom baixo, ainda analisando o

ambiente ao redor. Eu procurava um interruptor para acender as luzes.

Seria melhor do que usarmos nossos poderes, pois a visão no escuro nos

privaria da capacidade de distinguir cores com clareza. Porém, ao

responder o Malaki, o que notei foi vapor sair de minha boca.

“Está frio aqui”, murmurou Karina, abraçando-se para conter os

arrepios. Ela estava certa. O frio não me incomodava como a ela, mas eu o

sentia. Estava frio demais, mesmo para um apartamento fechado e escuro.

“Este lugar é assombrado”, murmurei ao notar, por um instante,

uma sombra se mover próxima à lareira. Minha visão se aguçou, conforme

invocava meus poderes para ver além do véu da morte. De repente, teias de

aranha surgiram onde antes não havia nenhuma, e o ambiente se tornou

cinzento e abandonado. A decoração aparecia rasgada e envelhecida, e ouvi

um som de ventania forte soprando do lado de fora. Uma figura magra e

translúcida nos observava à distância, sua face pouco mais do que um

crânio ressequido. Os dedos ossudos se moviam lentamente, enquanto a

criatura flutuava, sem pernas, sobre uma névoa negra que era emitida de

suas costelas expostas. Eu ouvi o ecoar de um murmúrio distante, e me

virei para fitar uma segunda criatura, esta sendo quase invisível, pouco

mais do que uma forma humanóide cujas feições eram definidas apenas

pelas sombras que a cercavam. “Espectros!”, eu disse, revelando a natureza

das criaturas a meus companheiros.

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Page 421: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Eu também vejo”, murmurou Al-Malik. “O Ghûl deve tê-los

criado para proteger seu lar. Mas por que não nos atacam?”.

“Porque eu não permitiria”, disse Lorde Asphael, que agora tomava

a frente do grupo. Ele brilhava como fogo no mundo dos mortos e,

conforme avançava, os espectros recuavam temerosos, como se a presença

do Arcanjo fosse anátema para as criaturas. “Asha me dê força, através da

Boa Mente, para que a vontade do Bom Sábio seja feita, e que o mal se

dissipe diante de minhas boas obras”, murmurou Asphael, erguendo a mão

direita, então a fechando com força e, ao baixa-la, o primeiro espectro

urrou, sua forma esquelética se desfazendo em pó. O Arcanjo então fez os

mesmos gestos com a mão esquerda, e o segundo espectro se desfez em

silêncio, conforme as sombras que o definiam se dissipavam. Em seguida,

Asphael Veritas nos fitou: “Vamos continuar nossa procura, mas ainda

assim tomem cuidado”.

Meneei a cabeça positivamente, primeiro dando um passo para me

afastar do grupo, e então me virando para fitar Al-Malik. “O que pretende

fazer?”, perguntei.

“Procurem por qualquer documento, qualquer pista que nos leve a

outros vampiros”, pediu Al-Malik. “Deve haver algum contato, talvez

alguma pista sobre o local em que George se encontrava com Hagan ou

suas crias”.

“Certo”, concordei, então me virando aos demais, “Samuel, fique

com Karina. Sugiro que procurem um escritório ou algo parecido. Al-Malik

e eu vamos procurar pelo quarto ou qualquer local que servisse de descanso

para o vampiro”. Virei-me então para Asphael: “Tem algum plano, Lorde

Asphael?”.

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Page 422: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Este lugar pulsa com memórias”, disse Lorde Asphael,

analisando o ambiente, “e os mortos possuem muitas histórias a contas.

Deixem-me sozinho por um momento. Talvez eu possa encontrar algo”.

Concordei. Enquanto minha visão voltava ao normal, Karina e

Samuel se afastavam para outros cômodos. Virei-me para Al-Malik: “Tome

a frente, amigo”, pedi.

Caminhamos por uma porta que levava à sala de tevê. Do outro

lado, Samuel e Karina procuravam pelas estantes por qualquer informação

que pudesse ser útil. Eles tinham acendido a luz e ligado a televisão, talvez

para que a luminosidade e o som espantassem quaisquer espíritos. De fato,

o frio intenso que antes sentíamos começava a desaparecer.

Continuamos em frente, adentrando um pequeno hall com quatro

portas. Abri a primeira delas, acendendo a luz em seguida. Era apenas uma

suíte, mas sem móveis ou cama. Uma inspeção nos guarda-roupas os

revelou vazios. Apenas um quarto sem uso. Al-Malik me chamou assim

que abriu a segunda porta. Indo até o Malaki, percebi que era uma segunda

suíte, mas estava sendo usada como um escritório. “Pode ter algo aqui”,

murmurei, vendo a escrivaninha cheia de papéis, e as estantes cheias de

livros.

“Nicodemus, Pedirei que Samuel e Karina verifiquem este cômodo

após terminarem na sala da televisão”, disse o Malaki. “Eu sugiro procurar

o local de descanso dele enquanto isso. Se não encontrarmos nada, aí

retornaremos aqui e verificaremos toda essa papelada”.

Concordei. Al-Malik se afastou. Retornando ao hall, abri a porta

oposta à que levava ao pequeno escritório. Acendi a luz do cômodo, fitando

a pesada cortina. No cômodo havia uma cama de casal, que eu podia notar

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Page 423: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não ter sido tocada há muitas semanas. Verifiquei os criados-mudos

que estavam em ambos os lados da cama, mas estavam vazios. Então,

abrindo o armário, notei que continha roupas e outros pertences. Nas

gavetas, encontrei relógios e outros documentos falsos, assim como uma

caixa com jóias. Uma das gavetas me surpreendeu, estando cheia de armas

de fogo de pequeno calibre e pentes de balas.

Continuei abrindo outras portas do armário, até que uma delas, para

minha surpresa, me levou a um closet escuro, onde certamente, com as

portas fechadas, nenhuma luz solar poderia adentrar. Além de mais

armários no closet, havia uma porta. A porta levava a um luxuoso banheiro,

com uma grande banheira. A pequena janela, ainda que coberta para

encobrir a luz, certamente não tornava tal lugar seguro para o descanso de

um vampiro. Fechei a porta do banheiro, investigando os armários internos

do closet. Estavam vazios, mas percebi que as três portas dos armários

levavam a um só compartimento comprido. Notando que o chão dentro do

compartimento estava à cerca de meio metro acima do piso do closet,

comecei a revista-lo. “Nicodemus, está aí?”, perguntou Al-Malik, que já

estava retornando. Foi neste momento em que encontrei uma pequena

reentrância no chão do compartimento, forçando-a para cima. “Al-Malik,

eu encontrei!”, eu disse em voz alta, enquanto o assoalho de madeira se

abria, revelando uma pequena câmara escura e acolchoada, com lençóis e

um travesseiro, comprida e larga o suficiente para que uma pessoa dormisse

ali.

O Malaki se aproximou. Por alguns minutos, começamos a

vasculhar tanto a câmara, buscando qualquer coisa oculta sob o acolchoado,

como toda a suíte, por documentos ou papéis. Encontramos um

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Page 424: Magna Veritas - Tiago José Moreira

compartimento sob o acolchoado, onde estavam mais jóias, cerca de

oitocentos reais em notas de 50,00, e uma pequena caderneta com nomes,

endereços e telefones. Retornamos ao quarto, onde Al-Malik abriu as

cortinas para que a luz do Sol entrasse. Então, comecei a investigar os

nomes, lendo as descrições sobre eles. Eram contatos, amigos e bandidos,

bem como pistas sobre onde conseguir armas, passagens de avião, drogas

ou dinheiro emprestado em casos de emergência. Após cerca de trinta

minutos analisando os nomes e comparando-os com a agenda do celular de

George, acabamos separando alguns dos nomes no celular que não

constavam na caderneta. A caderneta não parecia ter nenhuma referência a

vampiros. Talvez os nomes no celular, porém, pudessem nos levar a outras

Crias de Lucifugo.

Al-Malik buscava mais papéis ou compartimentos nos armários do

quarto e eu ainda analisava o celular e a caderneta, quando Karina

adentrou. Pela porta, dava de ver Samuel no escritório, analisando mais

papéis e agendas. “Philipe, dê uma olhada nisso”, pediu Karina, que me

estendeu uma carta com um pequeno cartão. “Encontramos na sala da

tevê”.

Observei a carta, que usava um papel-cartolina branco e resistente.

Um selo, na forma de um círculo vermelho com as letras ‘H’ e ‘G’

finamente desenhadas no seu interior a assinava. Eu li em voz alta, para que

Al-Malik pudesse ouvir o conteúdo da mesma. “A George Matos, Herdeiro

do Sangue de Nergal. É de nosso mais desejado interesse que nossa aliança,

assim como vossa subserviência, sejam de uma vez por todas formalizadas

em uma reunião formal na data de 09 de Janeiro de 2002. O Mais Alto

Patriarca do Rio de Janeiro, Hagan Gudrun, faz questão de vossa presença,

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Page 425: Magna Veritas - Tiago José Moreira

bem como a de outros dignitários, para resolvermos as questões que

pendem em seu domínio. O encontro se dará às nove horas da noite de 09

de Janeiro, quarta-feira, na Casa Sabina”.

“Casa Sabina?”, perguntou Al-Malik, “Do que se trata?”.

Olhei o pequeno cartão, na qual estava o nome da Casa Sabina e

seu endereço. “Aparentemente, é uma mansão para aluguel. Usada em

festas, casamentos, formaturas...”, respondi, de acordo com o que eu via no

cartão.

“Nós poderíamos ir a Casa Sabina e descobrir quem a alugou na

quarta-feira”, disse Karina.

“Faremos isso”, eu disse, “mas não agora. Ainda teremos tempo.

Vamos primeiro encontrar todas as pistas que pudermos aqui neste

apartamento”.

Continuamos nossas buscas. Após o quarto, retornamos ao

escritório, onde nós quatro continuávamos verificando os vários registros,

cartas, agendas e livros. Havia conexões com o tráfico de drogas, ordens de

assassinatos, pagamentos de propina a policiais, nomes de mercenários, até

mesmo relatórios sobre carregamentos de armas contrabandeadas, muitos

deles disfarçados como se fossem carregamentos de materiais mais

inofensivos. George Matos com certeza mantinha suas mãos sujas no

submundo do Rio de Janeiro. O dinheiro e a influência que ele possuía

podia não ser das maiores, mas com certeza ele era um oponente

respeitável na arena política e policial da cidade. As vantagens de ter um

servo desses seriam óbvias para Hagan Gudrun. O fato de Hagan ter

amedrontado esse vampiro a ponto de fazê-lo jurar subserviência, porém,

apenas me faz temer o inimigo que teremos de enfrentar em breve. “Assim

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Page 426: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que terminarmos de procurar aqui, seria bom darmos um telefonema

anônimo para a polícia”, murmurou Samuel Fulmen. Eu concordei.

As horas começaram a passar. Não sei exatamente quanto tempo,

mas eu sentia que, mesmo nos apressando para olhar todos os papéis, o

tempo ainda passava rápido demais. Aos poucos, porém, mais pistas

surgiam. Quase sempre guardados em pastas no fundo de pilhas,

começamos a achar anotações e referências. Algumas delas falavam sobre

Hagan Gudrun, sobre as suspeitas de que a “Morte Carmim” se escondia no

bairro do Cosme Velho durante o dia, e de como o Profeta Louco levou os

opositores de Gudrun quase à extinção. Inclusive, haviam alguns relatos de

perdas severas por parte de George, na forma de aliados políticos

assassinados, traficantes presos pela polícia e o dinheiro em suas contas

desaparecendo misteriosamente. Havia também um relatório detalhado

sobre Alexandro, Cria do antigo Patriarca, inclusive com suspeitas dos

locais em que ele poderia se esconder durante o dia e quais contatos e

influências ele possuía na política do Rio de Janeiro. Em meio aos papéis,

encontrávamos referências a outros vampiros, inclusive a uma cria de

George. Infelizmente, a maioria deles, segundo Samuel ou os próprios

papéis, tinham sido destruídos na guerra contra Gudrun.

“Isso é inútil”, resmungou Samuel, “eles tomam cuidado para não

deixar rastros. Gudrun não confia em George, e portanto não

encontraremos nada que possa nos levar a ele”.

“E a casa Sabina?”, perguntou Karina. “É nossa única pista

concreta até o momento”.

“Realmente”, concordei, olhando o cartão que dava o endereço.

Para minha surpresa, ela ficava no bairro do Cosme Velho, o mesmo que

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Page 427: Magna Veritas - Tiago José Moreira

George Matos suspeitava de abrigar o refúgio de Gudrun. “Eu irei até

lá”.

“Sozinho?”, perguntou Karina.

“Lorde Asphael é o único que pode ocultar a todos nós, e sei que

você e Samuel não possuem poderes para ficarem despercebidos, Karina”,

respondi. “Me indique o caminho. Eu posso voar pela cidade sem ser visto,

mas não posso fazer o mesmo com você ou Samuel. Se eu tiver problemas,

farei o que todo turista perdido faria... chamarei um taxi”.

Karina conseguiu um mapa da cidade em uma lista telefônica, me

indicando a localização do Cosme Velho. Agradeci, pedindo que ligassem

para o celular de George Matos caso tivessem alguma novidade. Antes de

partir, voltei ao local de descanso de George Matos, pegando um pouco do

dinheiro ali guardado, caso eu precisasse. Em seguida, voltei à sala de estar,

onde o Arcanjo Asphael se mantinha na escuridão, num estado de transe.

Caminhei em direção à varanda, mas por um momento olhei o mundo dos

mortos. Almas penadas cercavam Asphael, que, embora de olhos fechados,

murmurava a eles. Permaneci ali por alguns segundos, intrigado, mas

depois saí, me esgueirando atrás da pesada cortina que tampava a porta de

vidro para a varanda. Abri a porta usando meu truque mágico e, na varanda,

tirei meu paletó, subindo no parapeito da sacada. Fechei meus olhos, me

concentrando, desejando me manter oculto diante dos olhares dos milhares

de cariocas que passavam pelas ruas abaixo. Minhas asas surgiram e eu

saltei no vazio. Minhas asas bateram forte, me elevando aos céus.

O Sol tocou meu rosto enquanto eu acendia, após alguns instantes

oculto pelo véu de nuvens. O astro-rei estava alto nos céus. Já passava do

meio-dia, e o tempo continuava correndo. Parei minha ascendência assim

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Page 428: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que me elevei acima dos prédios, e fitei o céu acima e o horizonte a

leste. A negritude ainda tomava o horizonte e as nuvens começavam a tapar

os céus acima. O Sol tinha dificuldade em se mostrar, sendo

constantemente encoberto por nuvens cinzentas. Eu precisava me apressar.

Fitei o noroeste, buscando a visão do Cristo Redentor. A princípio não

conseguindo vê-lo, eu me elevei mais ainda nos céus, prosseguindo para o

norte. Logo, os braços abertos de Cristo surgiram. Eu segui até a estátua e,

ao alcança-la, tomei o caminho para o Cosme Velho, conforme Karina

indicara.

A princípio, tive dificuldades para me deslocar pelos céus do

bairro. Sem conseguir me localizar pelo alto, tive de descer. Colocando o

paletó para cobrir as roupas rasgadas e desfazendo minha ocultação, pedi

ajuda às pessoas na rua, para que me indicassem como chegar a meu

destino. Felizmente, não estava distante.

Caminhei por cerca de meia hora, até estar diante de uma grande

mansão. Grades altas e um portão gradeado limitavam a propriedade. Havia

um pequeno jardim, com flores e algumas árvores frondosas, e adiante

estava a entrada da mansão. “Mansão Sabina”, dizia o letreiro no portão

gradeado. A mansão estava fechada. A rua em frente à mansão era bem

arborizada e, mesmo tendo movimento constante, poderia ser considerada

calma se comparada com as movimentadas avenidas da cidade. Um lugar

perfeito para reuniões daqueles que querem privacidade...

Procurei um lugar ou rua mais tranqüilo, a fim de não chamar

atenção, e fechei meus olhos, me concentrando a fim de adentrar o Reino

dos Espíritos. Meus olhos se abriram para fitar a paisagem espiritual

daquela cidade. Embora as árvores vibrassem com vida, o ambiente estéril

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Page 429: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ao redor aparecia cinzento e apático. Retornei à mansão, voando por

sobre as grades e pousando no jardim. Então, pelo reino dos espíritos,

comecei a vasculha-la.

Não demorou até eu terminar de vasculhar o local. A mansão

consistia, além do jardim, consistia basicamente de um imenso salão, com

um segundo andar onde havia acesso a um bar, no momento inativo. Havia

também uma grande cozinha, com acesso tanto ao bar como ao salão, uma

despensa e um palco com bastidores, além de banheiros. Eu invoquei os

espíritos do ar e da terra, mas eles nada puderam encontrar. Não havia

passagens ocultas ou quartos secretos.

Saí da Mansão Sabina pouco mais de trinta minutos após adentra-

la. Assim que cheguei a uma rua mais tranqüila, retornei ao mundo

material. O que fazer a seguir? Dúvidas permeavam minha mente. Eu puxei

do bolso o cartão da Mansão Sabina, olhando o telefone para contatos.

Talvez, se investigássemos quem alugou a mansão na quarta-feira

passada... Usei o celular de George. Do outro lado da linha, um homem

atendeu, e eu revelei que tinha interesse em alugar a Mansão para uma festa

particular. O homem me passou o endereço de seu escritório, não muito

distante da mansão em si. Procurei a avenida mais próxima, onde peguei

um taxi para o local.

A caminho do escritório, o celular tocou. Num impulso, o atendi,

ouvindo a voz de Karina: “Philipe, descobrimos algo!”.

“O que encontraram?”, perguntei.

“Asphael nos deu uma resposta”, ela respondeu. “Ele descobriu

onde George guardava seus documentos mais importantes. Tem muita coisa

aqui, Philipe, inclusive os contatos entre ele e Gudrun”.

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“Tudo bem, Karina”, respondi. “Estou indo para aí, só preciso

verificar uma coisa antes. Vejam o que mais podem descobrir e esperem

por mim”.

O taxista parou. “É aqui, senhor”. Perguntei em quanto ficou a

corrida e, ao receber a resposta, entreguei-lhe algumas notas. “Fique com o

troco”, eu disse, vendo a expressão de surpresa dele ao receber duas notas

de cinqüenta. Ele agradeceu enquanto eu descia do veículo e, ao notar que

eu fitara o céu antes de fechar a porta, comentou: “Vai vir uma chuva brava

hoje”.

“É”, concordei, fitando os céus cada vez mais cinzentos. “Uma

tremenda tempestade”.

Segui ao escritório do representante da Mansão Sabina, no quinto

andar de um prédio de escritórios. Devido à minha pressa, a conversa foi

curta. Usando alguns de meus poderes, o convenci facilmente a me dizer o

que eu queria. Infelizmente, não descobri muito... A mansão não tinha sido

alugada na última quarta-feira, de forma que não havia nenhum registro

sobre atividades nela. Além disso, o próximo uso da mansão seria só na

semana que vem, de forma que, ou os vampiros tinham algum acesso

especial a ela, ou se tivessem que aluga-la só o fariam quando nosso prazo

já estivesse esgotado. Agradeci ao homem, apagando parte de suas

memórias para que se lembrasse de mim apenas como um interessado em

alugar a mansão, e parti. Ao entrar sozinho no elevador e verificar a

ausência de câmeras, me concentrei no apartamento de George, abrindo um

portal para o local e o atravessando.

Ressurgi na escurecida sala de estar de George Matos. Segui em

direção ao escritório, onde os outros estavam. Anunciando minha chegada,

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Page 431: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Al-Malik foi o primeiro a perguntar sobre meu sucesso. “Infelizmente,

não encontrei nada. Os vampiros aparentemente têm acesso livre à Mansão

Sabina, mas não se escondem lá. Não é possível seguir seus rastros por lá...

Ou melhor, poderia ser possível, mas vai levar mais tempo do que

dispomos”.

“Tivemos um pouco mais de sorte”, disse Samuel, com alguns

papéis na mão. “Parece que George estava estudando as posições das crias

de Gudrun na cidade. Ele estava anotando posições de contatos. Asphael

encontrou os documentos”.

“Eu apenas consultei aqueles que poderiam saber onde estavam”,

murmurou o Arcanjo.

“Certo”, disse Samuel em resposta a Asphael, continuando em

seguida: “mas o importante é que há um vampiro que, segundo os relatos

de George Matos, não é uma das crias de Gudrun, mas tem muito

conhecimento acerca delas. Não só isso, mas foi ele quem levou Gudrun ao

Profeta Louco em primeiro lugar”.

“E como encontraremos este vampiro?”, perguntei.

Samuel sorriu ao responder, seus olhos brilhando em determinação:

“Aí está o mais interessante, Nicodemus. Parece que Gudrun resolveu se

livrar da criatura após ter conseguido a posição de Patriarca. George estava

oferecendo abrigo a ela em troca de informações sobre Gudrun. Ele está

sendo escondido num armazém no Morro dos Cabritos”.

Não foi preciso muito para que saíssemos dali, mas não antes de

Samuel coletar toda a papelada sobre vampiros e ligar para a polícia, dando

uma denúncia anônima sobre o local. Saindo pela varanda do apartamento,

erguemo-nos nos céus, protegidos da visão alheia pelos poderes de Lorde

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Page 432: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Asphael. O ar estava mais frio agora, e o céu mais obscuro. Uma

ventania soprava e no horizonte os primeiros relâmpagos iluminavam o véu

negro que vinha do leste.

“Philipe!”, gritou Samuel, tentando superar o som constante do

vento, enquanto voávamos para noroeste. “Isto tudo é obra de Shiva?”.

“Sim”, respondi, “mas isto é apenas o começo”.

Os ventos incomodavam, atrapalhando o vôo. Karina preferiu

baixar a altitude, voando entre os paredões de prédios, sobre as grandes

avenidas. Não demorou até que o Morro dos Cabritos se aproximasse,

analisando o aspecto rochoso e, ainda assim, verdejante. Por um momento,

me lembrei de histórias de Karina, na qual ela me contava das trilhas e

caminhos pelo morro, e pela vista magnífica que era possível ter ao se

alcançar o Mirante de Sacopã. Porém, não era o morro em si o nosso

destino, mas uma comunidade ali localizada. Uma favela, como tantas

outras no Rio.

Deixando a proteção dos paredões de edifícios, o vento forte nos

atingiu novamente. Karina parou, por um momento analisando o conjunto

de casas abaixo, procurando, com os olhos e com suas habilidades inatas, o

nosso destino. Ela apontou a direção, chamando a nossa atenção, e

mergulhou rumo a um pequeno galpão, talvez com 15x8 metros, quase nos

limites da favela. Pousamos pouco após os pés de Karina tocarem o chão de

terra nos fundos do galpão. As asas da Supervivente desapareceram, e ela

imediatamente cobriu as costas nuas com a jaqueta.

Havia apenas uma porta nos fundos. As únicas janelas estavam a

mais de dois metros e meio de altura, com aparência retangular, longas e

finas. Os vidros as mesmas estavam quase todos rachados ou quebrados,

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Page 433: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mas tábuas de madeira tinham sido pregadas pelo lado de dentro, a fim

de evitar invasores. Aproximei-me da porta, mexendo na fechadura apenas

para confirmar que ela estava trancada. Comecei meu rito para destranca-la,

mas a mão de Al-Malik tocou meu ombro. “Não faça isso”, pediu o Malaki.

“Eu abrirei nossa própria porta, mas evitemos que a luz solar entre.

Precisamos dele vivo”. Concordei, e Al-Malik caminhou até a parede,

tocando-a gentilmente. Imediatamente, a parede ondulou, conforme um

portal interligava ambos os lados. Al-Malik pôs-se de lado, para que

Samuel fosse o primeiro a entrar.

“Segure isto por favor, Philipe”, pediu o Sancti, entregando-me a

pasta em que ele guardara os papéis de George Matos. Então, Samuel

desembainhou sua espada, atravessando o portal. Em seguida, entrei eu, e

depois Asphael e Karina. O Malaki passou por último, o que fez com o que

o portal se fechasse assim que ele chegasse ao interior do armazém.

O ambiente estava escuro, embora uma luz fraca entrasse pelas

frestas entre as tábuas que tapavam as vidraças quebradas. Se fosse um dia

ensolarado, certamente a luz solar impediria que um vampiro permanecesse

aqui durante o dia, já que as estantes vazias e as caixas jogadas no chão não

ofereciam qualquer proteção adicional. O local parecia abandonado há

anos. “Que lugar”, murmurou Karina, checando o chão e as paredes

próximos, “deve haver muitos ratos por aqui”.

Al-Malik fechou os olhos. “Ele está próximo, abaixo de nós”,

revelou. “Eu sinto”. O Malaki abriu os olhos, procurando qualquer

passagem para o subsolo. Caminhamos próximos a eles, todos atentos a

qualquer movimento ao redor, ou a qualquer sinal de uma passagem. Vez

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ou outra, o som de um rato correndo entre o entulho no chão chamava a

atenção, mas nada que pudesse dispersar nossa concentração.

“Karina”, perguntou Samuel, “você pode encontrar a passagem?”.

A Supervivente respondeu, mantendo-se atrás do Sancti: “Estou

tentando, Sam, mas sempre que me concentro na direção a seguir, meus

instintos apenas apontam para o subsolo. É difícil se concentrar numa

passagem pequena. É fácil achar um local ou um caminho, mas posso

encontrar apenas direções gerais”. De repente, ela parou, se afastando um

pouco dos demais, o que atraiu os olhares de todos. “Esperem”, ela pediu

sussurrando, “talvez nossos observadores possam nos dizer”.

“Observadores?”, perguntou Samuel.

Karina fez um sinal gentil para que houvesse silêncio, e então se

abaixou, ajoelhando-se próxima a uma pilha de entulho. Houve um silêncio

inicial, mas em seguida pequenos sons vieram da pilha. Diversos pares de

olhos começaram a aparecer, conforme meia dúzia de ratos e algumas

ratazanas rastejaram para fora do entulho, aproximando-se da Celestial.

Karina estendeu a mão, e um dos ratos menores subiu sobre a palma dela.

Karina se levantou, seus olhos fixados no rato, e então ela se virou para

nós. “Eles indicarão o caminho”. Então, ela se abaixou novamente,

colocando gentilmente o rato no chão.

Os ratos correram para o centro do galpão, forçando-nos a apressar

o passo para acompanha-los. Por pouco não os perdemos de vista, embora

Karina parecesse ser capaz de segui-los por puro instinto. A Supervivente

parou entre duas estantes, próximas ao centro do local, e fitou o chão. Os

ratos já desapareciam entre o lixo e as caixas vazias espalhadas ao redor.

Alguns entraram por pequenos buracos no chão. Porém, era clara uma

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argola de metal presa ao assoalho. “Aqui!”, revelou Karina, abaixando-

se para agarrar a argola e então a puxando com força. O alçapão não se

abriu, porém. “Pesado demais”, revelou a Celestial.

“Com licença”, pediu Samuel, se abaixando para agarrar a argola.

Imediatamente, senti a aura invisível do Sancti se intensificar, conforme

energias celestes percorriam seu corpo e aumentavam suas forças. Samuel

fez força, e o alçapão se moveu, mas ainda assim não abriu. “É pesado

demais para um ser humano erguer”, disse, “e há alguma espécie de tranca

muito resistente”.

Eu não podia usar meu truque para abrir a tranca sem poder toca-la,

mas certamente podia tentar outra coisa. “Então, abriremos a tranca”, eu

disse, fechando meus olhos e abrindo-os para ver o mundo dos espíritos. E

murmurei, embora meu murmúrio fosse um pedido em voz alta para os

elementais ali presentes. “Eu humildemente peço, guardiões da terra e do

ferro, que aquilo que bloqueia nosso caminho seja aberto”. Um som

metálico se seguiu, conforme uma superfície de metal deslizava abaixo do

alçapão. Em seguida, Samuel foi capaz de erguer a pesada passagem de

pedra, camuflada sob um aparentemente fino assoalho de madeira.

“Tomem cuidado lá embaixo”, disse Samuel, seus olhos

começando a brilhar dourados, conforme ele descia os degraus de pedra sob

o alçapão. Abaixo, a escuridão era plena e densa. Um a um, o resto de nós

seguiu o Sancti, cada um usando seus poderes para ver na escuridão. Dez

degraus abaixo, estava o chão. O teto não era alto, a cerca de 1,90m de

altura, de forma que Samuel teve de curvar-se para a frente e manter a

lâmina da espada pendente para a frente, a fim de se movimentar sem que a

arma tocasse o teto. Assim que todos já estavam no subsolo, formamos um

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círculo, a fim de podermos cobrir todas as direções. A princípio, não

vimos nada, a não ser muito entulho, mas em uma área mais limpa estavam

um saco de dormir abandonado, algumas velas, uma mochila e alguns

livros. O subsolo era grande, um pouco menor em área que o galpão acima.

“Apareça!”, ordenou Al-Malik, “Nós temos perguntas a fazer!”.

Um som crescente foi a resposta. Ouvimos o entulho ser revirado,

conforme dezenas de ratazanas começaram a surgir, algumas surgindo do

lixo, outras vindo de buracos nas paredes e no teto.

“Eu conheço um bom remédio contra pragas, Anunnaki”, ameaçou

Samuel, “mas receio que você não vai desejar ver fogo em seu lar”.

Karina levou a mão ao peito de Samuel. “Não, Sam”, ela pediu,

então falando em voz alta para o vampiro: “Seus lacaios não vão nos

atacar. Você deve estar percebendo isto”.

“Buscamos Hagan Gudrun e suas crias”, disse Asphael Veritas, sua

voz baixa e calma. “Conte-nos o que precisamos saber e partiremos em

paz”.

“Por que buscam Gudrun?”, uma voz ecoou. A voz era masculina,

mas cheia de medo, e de certa forma parecia inofensiva.

“Para destruí-lo”, disse Samuel.

“Você é o caçador! Você é o caçador!”, disse o vampiro, sua voz

mostrando certo temor. Então, sua forma surgiu, conforme os ratos e

ratazanas lhe deram passagem. Ele parecia vir da escuridão, formando-se

lentamente, revelando um homem magro, de braços finos e aspecto pálido e

fraco. Seus olhos brilhavam vermelhos, e suas presas se destacavam entre

os dentes. Seus cabelos eram longos, loiros e lisos, mas caíam

desarrumados sobre a face, e alcançavam seu peito e a metade de suas

436

Page 437: Magna Veritas - Tiago José Moreira

costas. O vampiro vestia uma blusa de frio vermelha, e uma calça

negra. “Então, meu velho amigo estava certo, afinal!”.

“Seu... velho amigo?”, perguntei.

“O Profeta Louco! Sim, o Profeta Louco!”, o monstro respondeu.

“Ele falou de sua vinda e do caos que se seguirá!”. Então, como se as

palavras fossem sussurradas em seus ouvidos, o vampiro repetiu uma

profecia: “E na Cidade Maravilhosa, haverá uma grande guerra. E uma

tempestade de Sangue cairá quando os Mortos Famintos se erguerem. E

então um Caçador solitário trará fogo purificador e às suas costas virão os

Anjos de Deus. Quando o Inferno vier a Terra, o Momento Final chegará.

E a minha vida estará condenada, bem como as suas almas!”.

“Você conheceu o Profeta?”, perguntei, compreendendo as palavras

do vampiro. “Essas foram as palavras dele?”.

“Eu o encontrei, eu o guardei, entendi a preciosidade dele! Eu vi a

luz que emanava de dentro de seu corpo moribundo! Os espíritos dos

mortos se agrupavam ao redor dele, e de sua boca saíam apenas profecias

enlouquecidas!”, respondeu o vampiro. “E eu o abriguei, até que o padre o

tomasse de mim! Maldito seja ele!”.

“Quando isso aconteceu?”, perguntei.

O vampiro nos deu as costas, pensativo, mas ainda assim respondeu

em voz alta: “Anos atrás. Dois anos? Não me lembro, mas eu me lembro

das palavras traiçoeiras de Hagan Gudrun. Ele me fez contar tudo! Eu

queria libertar o Profeta. Gudrun me traiu, mas eu ainda sei como me

vingar...”.

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Page 438: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Diga-nos como encontrar Gudrun e libertaremos o Profeta”,

pediu Al-Malik, prometendo em seguida: “Faremos com que o bruxo

encontre seu fim merecido”.

“O Profeta não deseja ser encontrado”, disse o vampiro, “não por

vocês”. Então, ele nos encarou novamente, erguendo a voz, e repetindo

palavras que ouviu anos atrás: “O Profeta disse: ‘E minha vida nada vale, a

não ser como mais um Selo. Pois um Selo os trancou, e agora eu sou o Selo

que o tranca. Minha morte abrirá o caminho. Minha alma não deve ser

liberta. Minha existência será tortura eterna. Melhor me condenar a esta

carne, com as memórias do que Ele fez, do que condenar a todos ao toque

da podridão. Eu não posso morrer. Eu não posso viver’”.

“Conte-nos, por favor”, pedi. “É importante! Podemos impedir que

o pior aconteça, se tivermos o tempo necessário para isso. Queremos

libertar o Profeta! Mas precisamos fazê-lo esta noite, ou será tarde demais!”

“NÃO!”, gritou o vampiro, “Você não me ouviu? Estas foram as

palavras dele! Hagan Gudrun precisa ser destruído. Mas o Profeta não deve

ser salvo!”.

Al-Malik deu um passo a frente. “Não há verdade em sua alma que

eu não possa retirar”, disse o Malaki, “e não há palavras neste mundo que

irão nos impedir. Eu não sinto nenhum ódio por você, nem desejava ter de

força-lo, pois isso irá corroer minha consciência por dentro. Mas por Deus

e pelo Profeta, eu o farei”. O vampiro rosnou, mostrando suas presas, mas

nervosamente recuando. Al-Malik deu um novo passo, mas então a mão de

Asphael Veritas tocou seu ombro. O Malaki se virou para fitar o Arcanjo.

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Page 439: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Não deixe que o desespero controle suas ações, Anjo da

Verdade. Deixemos que a Verdade fale por nós”, disse o Arcanjo, que

então caminhou em direção à Cria de Lucifugo.

“O que você quer?”, indagou o monstro, recuando.

“Mostrar a você aquilo que meu Mestre me mostrou há muito,

muito tempo atrás”, respondeu Lorde Asphael. “Mostrar a você o que

precisa ser liberto”. O vampiro tentou recuar, mas então os olhos de

Asphael brilharam intensamente, e a criatura parou, boquiaberta. Sem

demonstrar qualquer reação, o vampiro deixou-se tocar. A palma da mão

direita de Asphael repousou sobre a testa do vampiro, e após alguns

segundos, a criatura caiu de joelhos, chorando lágrimas de sangue. “Qual é

seu nome?”, perguntou Lorde Asphael Veritas.

“Eu me chamo Santiago... Santiago de Lacerda Neves”, disse o

vampiro, pouco contendo o choro.

“Somos irmãos, Santiago Veritas, filhos do mesmo Mestre”,

respondeu Asphael, “Como eu, você foi tocado por ele, foi guiado por ele.

Agora você entende o que nós buscamos libertar”.

“Eu entendo”, respondeu o vampiro. “Eu não sei onde Hagan

Gudrun se esconde, mas minha vingança me levou até duas de suas crias.

Eu sei onde se escondem”.

“Onde?”, perguntou Al-Malik.

“Eles são chamados de Gêmeos, e são os principais algozes a

serviço de seu criador. Eles se escondem em Botafogo”, respondeu

Santiago.

Em seguida, ele nos contou tudo. O endereço, a casa em que os

dois se escondiam, a segurança de que dispunham. Após nos contar, nós

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Page 440: Magna Veritas - Tiago José Moreira

deixamos o vampiro em paz, deixando-o em seu refúgio sombrio.

Ainda assim, uma questão ainda me incomodava, e, conforme subíamos as

escadas de volta para o galpão abandonado, perguntei a Lorde Asphael: “O

que mostrou a ele?”.

“Apenas minhas memórias”, respondeu Asphael Veritas. “Eu

mostrei a grandiosidade que desejávamos libertar, aquele que se esconde

sob o Profeta Louco”.

Eu parei, observando Lorde Asphael, enquanto Samuel e Al-Malik

tratavam de fechar o alçapão que levava ao esconderijo do vampiro. “Como

era Veritatis, Asphael?”, perguntei, pela primeira vez pensando no lado

humano de um Primus.

“Como nenhum outro ser que conheci, Mestre Nicodemus”, disse

Asphael, num tom saudosista, distante, “Ele parecia ter a natureza e o

mundo espiritual como parte de si. Sua serenidade e sabedoria não

conheciam limites, e sua busca por conhecimento era uma paixão mais

poderosa do que qualquer lâmina ou qualquer palavra. Conhece-lo era

como ter ao seu dispor conhecimento infinito e ilimitado e, ao mesmo

tempo, alguém que o instigasse à busca e à contemplação. Ele era um pai,

um mentor e um amigo e por ele eu daria minha vida”.

Eu parei para pensar naquelas palavras, invejando em silêncio as

memórias que Asphael pode ter passado para o vampiro. Ao mesmo tempo,

eu não podia deixar de pensar que tais revelações possam ainda transformar

a criatura em algo menos inumano. O Arcanjo chamou-o “Veritas”, um

privilégio que poucos Celestiais já tiveram. O que o futuro poderia reservar

a esse Santiago?

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Page 441: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Um trovão ecoou, distante, tirando-me de meu estado

pensativo, forçando-me a retornar à realidade. Eu fitei as frestas entre as

tábuas que cobriam as vidraças do local. “Está muito escuro lá fora”,

murmurou Samuel. “E são quatro horas da tarde, em pleno verão”.

Eu então disse a mim mesmo, mas alto o suficiente para que todos

ouvissem: “Em breve, estará tão escuro quanto à noite. Nosso tempo está

quase acabando”. Então, pedi: “Vamos, a busca continua”.

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Page 442: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 18: O Povo das Sombras

Os galhos da árvore balançavam sem parar, empurradas pelo vento

crescente, e as nuvens negras acima já cobriam o céu de horizonte a

horizonte. Um trovão distante rugiu alguns segundos após seu relâmpago

iluminar os céus escuros. O dia estava escuro, criando uma penumbra densa

sobre a Cidade Maravilhosa. Embora a escuridão não fosse absoluta, e a

visibilidade ainda fosse boa, era como um entardecer precoce, e alguns

carros já acendiam seus faroletes. Uma energia negativa permeava o

ambiente, algo difícil de definir, mas para meu espírito era sufocante e fria.

No Reino dos Espíritos, eu podia pressentir os elementos recuando e se

escondendo, enquanto uma escuridão ainda mais profunda se aproximava.

“É aqui”, disse Karina, parando diante de um portão cinzento. Os

muros ao redor tinham mais de três metros de altura e cobertos por

trepadeiras. O portão em si era sólido, impossibilitando ver a casa além.

Mas mal paramos diante deles, ouvimos os latidos raivosos de dois cães.

“Os ‘gêmeos’”, murmurou Al-Malik, “o ghûl disse que os

‘gêmeos’ se escondiam neste lugar, correto?”.

“Correto”, respondeu o Arcanjo Asphael Veritas.

“O que sabe sobre eles, Samuel?”, perguntei.

“Quase nada”, respondeu Samuel, “sei apenas o que ouvi falar. São

os dois executores a serviço de Gudrun. São sua força entre as Crias de

Lucifugo, responsáveis por manterem outros vampiros obedientes. Eu

nunca ouvi seus nomes, nem sei o que podem fazer. Mas são perigosos e,

pelos boatos, não são daqui. Gudrun os trouxe consigo da Europa quando

veio ao Rio de Janeiro”.

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Page 443: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Precisamos ser cuidadosos”, murmurou Karina, tocando o

portão, fitando-o com um ar de tristeza, “os cães não estão em seu estado

natural. Eles foram pervertidos pelo sangue vampírico”.

“O único inimigo que me faz tremer não está além destes muros”,

disse Asphael Veritas, “mas sobrevoa o Oceano em nossa direção”.

Olhei para o topo do muro, vendo uma cerca elétrica. “Lorde

Asphael, os mortais podem nos ver agora?”, perguntei.

“Não”, o Arcanjo respondeu.

“Então, não percamos mais tempo”, pedi, tocando o muro.

Concentrei minhas energias no ponto tocado, e a parede tremeu, ondulando

por um momento, como se eu tocasse a superfície de uma poça d’água.

Samuel Fulmen sacou sua espada com a mão direita e, em seguida, com a

mão esquerda, retirou a cimitarra de Al-Malik que levava também sob o

sobretudo, jogando-a ao Malaki. Ao mesmo tempo, Karina sacava a pistola

que levava sob a jaqueta.

Samuel deu o primeiro passo em direção ao portal, mas a mão de

Karina tocou suavemente seu peito. O Sancti a fitou, encontrando seus

olhos verdes calmos. “Deixe-me ir primeiro”, ela pediu, tomando a frente.

Samuel ficou em silêncio por um instante, sua face demonstrando

preocupação, e Karina deu-lhe as costas, atravessando o portal. Samuel

rapidamente a seguiu.

Quando atravessei o portal, após Al-Malik e Lorde Asphael, vi um

pequeno gramado diante de uma grande casa. O portão levava a uma

grande garagem, onde haviam dois carros. A casa em si era grande, com

dois andares. O segundo andar tinha uma varanda, e o gramado cercava

toda a propriedade. Muito bela, a casa certamente era um imóvel caro, mas

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Page 444: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ao mesmo tempo em que representava poder e ostentação, ela parecia

mal cuidada, com paredes sujas e um gramado que necessitava de maiores

cuidados. A grama tinha crescido além da conta, e onde antes poderia ter

existido um canteiro de flores agora estava tomado por plantas mal

cuidadas. Mas mais importante do que a casa em si era o nosso grupo.

Karina se colocava entre nosso grupo e os dois enormes rottweiler negros.

Os cães rosnavam furiosos, mas ao mesmo tempo mantinham suas cabeças

baixas, como se tivesse medo. Karina avançou, a passos lentos, e os cães

ao mesmo tempo recuavam, mostrando seus dentes e rosnando como se

estivessem diante de uma grande ameaça.

“Calma”, murmurou Karina aos cães, aproximando-se de um deles

e abaixando-se para toca-lo. O animal rosnava, suas presas sempre à

mostra. Então, a mão de Karina tocou a testa do animal, e imediatamente o

cachorro se silenciou. O animal se ergueu, calmamente, deixando que a

Supervivente afagasse sua cabeça, acariciando seu pêlo negro com a ponta

dos dedos. O segundo rottweiler ainda estava nervoso, mas então Karina

fez um sinal a ele, chamando-o. Cautelosamente, o segundo se aproximo,

desconfiado e temeroso. Mais uma vez, Karina estendeu sua mão, desta vez

tocando o focinho do segundo cão. A mão deslizou pelo focinho, tocando a

testa do animal, e este também se acalmou, deixando que Karina o

acariciasse. “Venham comigo”, ela sussurrou, se levantando. Os cães se

puseram ao redor dela, agindo como seus protetores.

Karina se virou para nós. No fundo, eu me sentia orgulhoso dela,

embora minha face demonstrasse surpresa diante de sua calma. “Vamos”,

ela pediu sorrindo. Havia uma harmonia nela como eu não sentia desde o

começo de nossa jornada. Talvez por agora estar em seu elemento, entre as

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Page 445: Magna Veritas - Tiago José Moreira

criaturas da terra e contra um inimigo tangível, ela finalmente se

sentisse segura e protegida.

A Supervivente tomou a frente do grupo, caminhando em direção

da casa. Ela parou diante da porta de entrada, e então fitou um dos cães. O

animal ergueu a cabeça, seus olhos se encontrando com os da Celestial.

Pouco depois, o cachorro correu até a porta, começando a latir e a arranha-

la em seguida.

Uma voz raivosa veio de dentro. “Pare com esse barulho, cachorro

idiota!”, disse um homem, que abriu a porta. “O que é?”. O homem,

aparentando ter uns trinta anos de idade, olhou ao redor, dando um passo

para fora da casa. O cachorro se afastou, ainda latindo. “Cale a boca!”,

ordenou o homem, mas o cão não obedecia. O olhar dele percorreu o

gramado, passando por nós, mas mesmo o sangue vampírico que o

fortalecia não permitiu que sua visão penetrasse a ocultação de Lorde

Asphael. O homem deu mais um passo para fora, ainda olhando ao redor,

enquanto o cão ainda latia furiosamente. Notei então que, na mão direita,

ele portava uma pistola. Ele fitou o outro cão, parado calmamente a uns

dois metros de distância, e se virou para o que latia. “Cachorro imbecil.

Cale a boca!”.

Foi quando a pistola de Karina tocou a têmpora do homem,

pressionando-a. “Largue a arma e fique quieto”, murmurou a Celestial,

agora desprotegida pela ocultação do Arcanjo Asphael. O homem parou

imediatamente, sua face expressando surpresa . Ele lentamente abriu a mão

direita, deixando sua arma cair. O cão agora permanecia em silêncio.

“Onde estão os gêmeos?”, perguntou Karina. Samuel se surpreendeu com

445

Page 446: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Karina, perguntando: “Karina, que idéia é essa?”. Embora Karina

pudesse ouvir o Sancti, o homem não podia.

“Quem é você?”, perguntou o homem. Sua voz estava um tanto

nervosa, mas mesmo assim firme, e sua pergunta mostrava claramente que

ele não queria dar nenhuma resposta.

“Responda!”, ordenou Karina. Enquanto isso, Samuel se

aproximava dela, murmurando: “Karina, se afaste dele!”. Al-Malik segurou

firmemente o cabo de sua cimitarra, como se esperasse pelo pior.

“Como entrou aqui?”, perguntou o homem, obviamente ignorando

as perguntas de Karina. O cão ao lado de Karina rosnou, virando a cabeça

na direção da porta. Neste instante, Karina se moveu rapidamente,

empurrando o homem para o lado, e aproveitando este mesmo movimento

para se jogar para trás. A Celestial emitiu um grito de surpresa, mas este foi

abafado pelo som do disparo de uma pistola, vindo do interior da casa,

através da janela, cuja vidraça se partiu. O homem, impulsionado por

Karina, caiu no chão, enquanto ela própria se abaixou, logo antes de

ocorrer um segundo disparo. Samuel também se abaixou assim que ocorreu

o segundo disparo. Embora invisível, o Sancti estava muito próximo de

onde Karina estava, e poderia ser atingido por uma bala perdida.

Abaixada, Karina fez um sinal para o cão que estava próximo à

porta. O animal a fitou por um instante, e então correu para o interior da

casa, rosnando furiosamente. O homem, caído no gramado, tentou pegar

sua pistola no chão. Antes que Samuel pudesse reagir, porém, o segundo

cão mordeu o braço do homem. Ele gritou de dor, conforme o cão segurava

firmemente, perfurando as presas na carne do braço. Um terceiro disparo se

seguiu, e então um novo grito, desta vez vindo do interior da casa. Al-

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Page 447: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Malik e eu corremos para o interior, onde encontramos um segundo

homem, este mais jovem, caído com o cão sobre ele. As presas do animal

pressionavam o braço esquerdo do rapaz. Mesmo com dor, o rapaz

conseguiu disparar a arma que carregava mais uma vez, mirando no animal.

Um ganido se seguiu. O cão largou o braço do rapaz, caindo no chão ao

lado. O rapaz soltou a arma, levando a mão boa ao braço ferido, e gemendo

de dor. Al-Malik se aproximou, pisando sobre a arma caída e apontando a

lâmina da cimitarra na direção da garganta do rapaz. “Permaneça onde

está”, ordenou o Malaki, quebrando o poder de Asphael sobre si e se

tornando visível.

Olhei para fora, vendo Karina se levantar. Samuel a questionava:

“Por que fez isso?”.

“Desculpe, Sam,” ela disse, “Achei que podia nos fazer entrar na

casa sem termos muitas dificuldades. E sem mortes desnecessárias”.

“E conseguiu”, disse Asphael, que se aproximava, “mas vocês

ainda precisam agir em grupo. Entramos aqui sem planejamento. Talvez

vocês todos estejam acostumados demais a contar apenas com consigo

mesmo”.

“Deixa para lá”, disse Samuel, também se levantando. “O problema

de verdade é o que ainda está por vir”. Então, o Sancti fitou o homem caído

no chão, ainda agarrado pelo cão. Ele gritava de dor, enquanto o rottweiler

negro ainda pressionava seu braço entre as mandíbulas. Samuel se abaixou,

tocando o homem, que se calou, primeiro como se a dor sumisse, e então

como se uma sonolência repentina o tomasse. O homem gemeu, como se

sentisse um misto de frio e dor e, por fim, ele desmaiou. Samuel se

levantou, adentrando a casa.

447

Page 448: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Onde estão os gêmeos?”, perguntou Al-Malik, pressionando a

lâmina contra a garganta do rapaz caído na sala. O cão ao lado respirava

com dificuldade, enquanto seu sangue escorria pelo piso cinzento. O rapaz

fitou Al-Malik, seus olhos trêmulos de temor. Embora o rapaz visse apenas

um árabe de meia-idade, no fundo ele sabia estar diante de algo muito

maior e mais poderoso. Suas palavras vieram aos poucos, forçadas não pela

lâmina em seu pescoço, mas pelo sutil poder que emanava do Malaki. “Sob

a casa!”, ele respondeu em desespero. “A passagem fica atrás da estante na

sala de estar! Há um porão escondido, eles dormem ali. Nós guardamos o

local durante o dia!”.

Samuel e Karina se aproximaram. Karina se abaixou e tocou o cão

que morria. “Calma”, ela pediu, acariciando o animal. “Tudo ficará bem”.

Já o Sancti tocou o rapaz, provocando nele o mesmo efeito que

provocou no outro homem. Assim que o rapaz caiu desacordado, Samuel

tocou o braço de Karina. “Com licença”, ele pediu. Ela o olhou, já sabendo

a intenção do Sancti, e deu espaço para Samuel. As mãos do Sancti tocaram

o cão, e um forte brilho dourado emanou. A respiração fraca do animal de

repente se tornou mais intensa, e o cachorro surpreso se levantou

lentamente. Karina sorriu, e seus olhos se encontraram com os de Samuel,

que devolveu o sorriso.

Ouvi um trovão, um lembrete de que o tempo se tornava cada vez

mais curto. Sem querer apressar meus companheiros, e sabendo que não

seriam necessárias palavras, eu prossegui para os outros cômodos da casa.

Asphael me seguiu de perto, enquanto Al-Malik, Samuel e Karina

demoraram um pouco para deixarem aquela primeira sala. Atrás de Karina,

vieram ainda os dois cães.

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Page 449: Magna Veritas - Tiago José Moreira

A primeira sala levava tanto a um corredor como às escadas

para o segundo andar. Eu decidi prosseguir pelo curto corredor e, abrindo a

porta ao final do mesmo, cheguei à sala de estar. Observando o ambiente,

pude mais uma vez perceber a ausência dos detalhes que tornam uma casa

“viva”. Não havia quadros para adornar as paredes, nem um tapete no chão,

e mesmo os sofás, as paredes e o chão pareciam necessitar de limpeza. Eu

parei no centro da sala de estar, analisando as pesadas cortinas que tapavam

as janelas, deixando o ambiente obscuro, bem como as portas fechadas para

os demais cômodos. Porém, meu interesse maior estava na estante vazia,

onde deveria haver uma tevê e, provavelmente, enfeites, adornos,

possivelmente alguns livros. Aproximei-me da parede, analisando o

encontro da mesma com a estante. Mesmo na penumbra densa da sala,

percebi a presença de dobradiças no lado esquerdo da estante.

“Provavelmente, a estante funciona como uma porta. Deve ser trancada por

dentro”, eu disse aos demais. Indo para o lado direito da estante, tentei

força-la, sentindo uma espécie de tranca impedir a abertura da passagem.

“Eles são sempre engenhosos para se esconderem”, murmurou

Samuel, se aproximando. Samuel analisou o lado direito da estante, e então

a puxou, sentindo a resistência da tranca. “Acho que posso arrebentar a

tranca”.

“Eu posso abri-la como fiz da última vez”, eu disse ao Sancti.

“Tudo bem”, disse Samuel, se afastando. Eu pensei nas

possibilidades... Não podendo ver a tranca, eu não poderia usar meu feitiço

de arrombamento, mas ainda assim poderia pedir ajuda aos espíritos

novamente. Ao tocar a estante, porém, pensei numa maneira ainda mais

simples de vencermos este obstáculo. A estante era de madeira, um dos

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Page 450: Magna Veritas - Tiago José Moreira

elementos que posso manipular, ainda que eu tenha pouca experiência

com este Caminho Elemental. Eu fechei meus olhos, sentindo meus dedos

tocarem a madeira. Tentando imaginar onde estava a tranca, eu fiz minha

energia fluir, invadindo a estante. Sob meu comando, a madeira se

transformava, de uma forma imperceptível. Normalmente, eu poderia fazer

a madeira crescer e se transformar, mas desta vez eu desejava algo ainda

mais simples: afrouxar a madeira ao redor dos parafusos que mantinham a

tranca presa à estante. Forçando novamente a estante, a tranca se soltou, e a

passagem se abriu, revelando um pequeno cômodo.

O cômodo escuro poderia ter sido um banheiro originalmente, mas

a passagem onde estaria a porta agora estava obstruída por uma parede de

tijolos que nunca fora pintada. Uma escada levava a um cômodo escuro sob

a casa. Virei-me para meus companheiros, e Samuel novamente tomou a

frente. O Sancti foi o primeiro a descer as escadas, seguido por Al-Malik,

eu, Asphael e Karina e seus cães.

“Acha que estão adormecidos?”, perguntei mentalmente a Samuel,

usando meus próprios poderes.

“Acredito que sim. Mesmo que acordem, estarão letárgicos”,

respondeu Samuel, também mentalmente, utilizando o elo mental que criei

para iniciar a conversa mental.

O porão abaixo era extremamente escuro, sem janelas que

trouxessem a luz natural do Sol. Apesar da escuridão, haviam alguns

abajures, cuidadosamente colocados sobre pequenas mesas redondas, junto

aos cantos das paredes, providenciando uma iluminação suficiente para ver

na penumbra. Notei interruptores nas paredes e luzes elétricas no teto. O

primeiro cômodo subterrâneo continha grandes estantes juntos às paredes,

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Page 451: Magna Veritas - Tiago José Moreira

com escrivaninhas, e pude perceber uma vasta coleção de livros. À

frente, estava a porta para um outro cômodo.

Samuel se aproximou da porta, tocando sua fechadura

cautelosamente. Al-Malik permaneceu próximo ao Sancti, sua cimitarra

pronta para cortar qualquer criatura que saísse por aquela passagem.

Cuidadosamente, a porta foi aberta, quase em total silêncio. Samuel fitou o

cômodo seguinte, e então o adentrou, sua lâmina posta à frente do corpo.

Adentrei o novo cômodo logo após Al-Malik. Meus olhos

penetraram a escuridão, analisando o local. Era uma sala grande, de

formato quadrado, com uns cinco metros de lado, mais ou menos. Havia

armários na parede oposta, e as demais paredes eram adornadas com

quadros belíssimos de paisagens e pessoas. O chão era coberto por tapetes

finos, com desenhos ricamente adornados. Duas esculturas de mármore, de

um homem e uma mulher, estavam em paredes opostas. Mas, mais

importante, no centro da sala estavam dois caixões.

Samuel e Al-Malik se aproximavam dos caixões por lados opostos.

Samuel preparou sua espada, enquanto Al-Malik se abaixou, usando a mão

esquerda para abrir o primeiro caixão, enquanto a mão direita ainda

empunhava a cimitarra. Eu pensava enquanto isso... Por que caixões? Por

que o símbolo da morte? Que tipo de fixação seria essa entre vampiros? Por

que algo tão comum? Minhas indagações se tornaram apreensão quando

enfim Al-Malik forçou o caixão a se abrir, revelando-se vazio. O Malaki

deu um salto para trás, e seus olhos brilhantes percorreram a sala, buscando

qualquer movimento, qualquer criatura oculta. Também Samuel se pôs em

alerta, deixando escapar uma única palavra: “Maldição...”.

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Page 452: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Uma rajada de tiros foi a resposta. Karina, que estava na porta

de entrada do cômodo, foi atingida nas costas. A Celestial tombou, embora

ainda estivesse consciente. Rapidamente, me afastei da porta, me virando

para poder ver o que quer que viesse por ela. Foi quando os dois cães

adentraram correndo, suas presas à mostra. Um ganido de dor ecoou

quando um dos cães tentou avançar contra Samuel. A lâmina do Sancti

atingiu o animal no pescoço, quase o decapitando, e jogando-o para o lado.

Al-Malik, porém, não teve tanta sorte, tendo o braço direito perfurado pelas

presas do segundo rottweiler.

O Malaki não gritou, mas sua face demonstrava a dor da mordida.

O cão punha seu peso contra Al-Malik, tentando derruba-lo, mas o Malaki

lutava para se desvencilhar do animal. Samuel tentou avançar para atacar o

animal, mas uma nova rajada de tiros veio pela porta, atingindo os armários

na parede oposta. Samuel parou, fitando o vampiro que vinha pela sala

anterior. A sombra da criatura, projetada pela luz dos abajures do outro

lado da porta, se movia de uma maneira não-natural, mostrando dedos

alongados e um corpo alto e magro.

Lorde Asphael estava ao meu lado e, pondo a mão em meu ombro,

me empurrou para trás. “Proteja-se, Mestre Nicodemus”, pediu o Arcanjo,

dando um passo à frente.

Al-Malik ainda lutava para se livrar do cão, quando percebi uma

névoa sair pelas frestas do armário logo atrás. Gritei pelo nome do Malaki,

mas já era tarde demais: o segundo vampiro surgia, materializando-se a

partir da névoa, seus braços agarrando o Malaki pelas costas. As presas do

vampiro penetraram na jugular de Al-Malik, que gritou ao sentir seu sangue

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Page 453: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ser sugado. Imediatamente, o cão largou o braço do Malaki, passando a

rosnar para Samuel.

O outro vampiro veio pela porta, e reparei, apontando uma uzi para

mim e Asphael. Foi quando entendi porque eles eram chamados de

“gêmeos”. Embora não fossem idênticos, ambos vestiam trajes negros

iguais, e ambos tinham corpos longos e esguios, faces finas e ossudas, e

olhares frios. Onde um tinha longos cabelos negros e lisos, porém, o outro,

que agora sugava o sangue de Al-Malik, mostrava-se de cabelos raspados,

mas as sobrancelhas sugeriam que ele era loiro.

O recém-chegado mostrou um sorriso sádico para nós, talvez

imaginando que fôssemos mortais, talvez caçadores, e que nossa idade

aparente nos tornava alvos fáceis. Lorde Asphael fitou o vampiro

friamente. Foi quando Samuel baixou sua espada. Também percebi que Al-

Malik parou de se debater, permitindo que seu atacante sugasse o sangue

celestial impunemente. O cão rosnava furiosamente para Samuel, quando

repentinamente se calou, baixando a cabeça. Foi quando uma voz quebrou

o silêncio: “Onde está Hagan Gudrun?”, perguntou Lorde Asphael, sua voz

demonstrando uma serenidade intocada. Mas em minha mente, eu ouvia a

voz de Asphael ecoar diferente: “Proteja Al-Malik quando o sinal vier”,

disse a voz do Arcanjo.

O vampiro de cabelos negros continuou apontando a arma para nós.

Seus olhos nos avaliavam, talvez vendo coisas além do que a simples visão

podia revelar. O outro terminava seu banquete, desprendendo suas presas

do pescoço de Al-Malik, sem se preocupar em fechar a ferida. O sangue

celeste escorria de seus lábios, enquanto seu olhar brilhante agora fitava

Samuel. “O sangue deles é doce como há muito não saboreava”, disse o

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sanguessuga, sua pele tornando-se mais avermelhada, suas feições

simulando vida, ainda que falsa vida. “Eu sinto vida como não sentia há

muito tempo! E uma força que não me é normal! É delicioso! Fabuloso!”.

O morto-vivo que nos fitava continuava a nos analisar friamente.

Sua face era mais séria, seus olhos mais profundos. Então, como se sentisse

uma ameaça em nós, sua feição mudou, como se nos visse com asco, talvez

certo temor. Ele nada disse, apenas disparou uma rajada de balas contra

Lorde Asphael. O som dos tiros abafou o rosnar do cão, que avançou contra

seu mestre, mordendo o braço do vampiro e desviando sua mira, mas não

antes que algumas balas atingissem o peito do Arcanjo. Asphael recuou,

embora nada indicasse dor ou medo da parte dele. Ao contrário, sua voz

veio como um trovão em nossas mentes, mas pedindo e não ordenando:

“Agora é o momento!”.

E imediatamente, Karina se virou, rolando para a direita e

apontando sua pistola para o vampiro que lutava com o cão. Três tiros

rápidos se seguiram, atingindo o morto-vivo, enquanto o cão usava seu

peso para tentar derrubar a criatura.

O segundo vampiro reagiu jogando Al-Malik para o lado, suas

mãos em um instante tornando-se garras poderosas, suas presas crescendo e

sua pele tornando-se escamosa como a de uma cobra venenosa. Antes que

ele avançasse contra Karina, ergui meu braço, invocando o poder do vento.

Atingido pela da lufada, o vampiro-víbora recuou, batendo as costas contra

os armários logo atrás. A espada de Samuel veio em seguida, direcionada à

barriga do sanguessuga, numa tentativa de parti-lo em dois. A lâmina,

porém, se chocou contra a porta de madeira do armário, provocando

rachaduras na madeira. O vampiro atravessou a lâmina sem ferimentos,

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como se sua essência por um instante fosse ar, embora não tivesse se

tornado névoa. A criatura-víbora recuou, mostrando uma língua bífida

comprida e as duas longas presas, seus olhos brilhando num amarelo pálido

que refletia a pouca luz vinda do aposento anterior.

O primeiro vampiro recuou pela porta de entrada da sala, seu

movimento sendo atrasado pelo cão que o agarrava no braço. “Cão

desgraçado!”, o vampiro urrou, descarregando o pente de balas no animal,

enquanto continuava recuando. Karina gritou, sentindo a morte do

rottweiler através do elo que ela tinha com ele. O corpo do cachorro

tombou, mas não sem antes rasgar a carne do morto-vivo, deixando cair

algumas poucas gotas de sangue profanado. Lorde Asphael avançou na

direção da porta, seus passos firmes e cadenciados, como se estivesse numa

marcha. Eu o segui de perto, embora meus olhos ainda se focassem na

batalha que ocorria na mesma sala.

Samuel avançou com velocidade e graça que excediam qualquer

agilidade humana. Num instante, ele puxou sua lâmina para a esquerda do

seu corpo, em seguida usando a força do braço direito para direciona-la

contra o peito do inimigo. Também excedendo os limites humanos, o

vampiro-víbora avançou, garras prontas para um golpe fatal. Mais uma vez,

a lâmina atravessou o vampiro, como se este fosse apenas fumaça. A

lâmina atingiu novamente os armários de madeira, desta vez com uma

potência tão grande que o impacto partiu a porta do armário em duas,

arremessando lascas de madeira por toda a sala. As garras escamadas do

morto-vivo investiram contra o pescoço do Sancti, penetrando a pele. Onde

o vampiro esperava encontrar a carne macia de um mortal, porém, suas

garras rasgaram pele tão resistente quando osso. O sangue de Samuel

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Page 456: Magna Veritas - Tiago José Moreira

espirrou, mas apenas um ferimento leve se formou. O vampiro

prosseguiu em seu avanço, seu corpo-névoa agora atravessando o corpo de

Samuel, e se materializando logo atrás do Celestial. Por um centésimo de

segundo, ambos os oponentes estavam de costas, e então ambos giraram

seus corpos, cada qual usando o movimento circular para dar força e

velocidade às suas armas, fossem garras ou lâmina. O morto-vivo provou

ser mais rápido, suas garras penetrando no braço esquerdo de Samuel,

rasgando a manga do sobretudo e deixando marcas sangrentas no Celestial.

A dor não impediu o ataque de Samuel, que continuou o movimento para

desferir um golpe mortal com sua espada. O metal se chocou mais uma vez

contra os armários, porém, incapaz de atingir o vampiro que, em um

instante, recuou para além do alcance da lâmina.

Samuel parou, mantendo a lâmina à frente do corpo, seu pescoço e

braço sangrando, enquanto o oponente se afastava cautelosamente. Seus

olhares se encontravam fixados um no outro. Enquanto o Sancti ofegava,

extravasando suas emoções, a víbora permanecia silenciosa e mortal.

Karina se levantava, apoiando-se na parede oposta aos armários, já curada

dos ferimentos de bala que sofrera, enquanto Al-Malik ainda permanecia

caído no chão. Já Lorde Asphael e o outro vampiro, o de cabelos negros, se

encaravam na sala ao lado, iluminados pela fraca luz dos dois abajures ali

presentes. Os olhos de Asphael brilhavam com intensidade, adicionando

ainda mais luz ao local, enquanto o vampiro o analisava com temor. “Onde

está Hagan Gudrun?”, perguntou novamente o Arcanjo.

Samuel continuava a fitar seu oponente, seus lábios se movendo

enquanto ele murmurava uma oração. Samuel avançou, silêncio agora em

seus lábios, os olhos fixados no oponente. A espada atacou novamente,

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desta iluminando-se dourada. O corte atingiu o peito do vampiro, que

mais uma vez permitiu que a lâmina sólida trespassasse o corpo imaterial.

Porém, ao invés de avançar para o ataque, o vampiro gritou, seu peito se

rasgando e queimando ao toque da lâmina reluzente. O vampiro recuou um

passo, em seguida avançando contra o ombro desprotegido de Samuel.

Mais uma vez, ambos se moveram com agilidade sobre-humana, numa

dança mortal. As garras da criatura erraram por centímetros a carne de

Samuel, que se jogou para o lado, em seguida tentando cortar o morto-vivo

na altura da cintura. O monstro se afastou rapidamente, escapando por

pouco do metal cortante. Samuel recuou um passo, virando suas costas para

a parede, enquanto o vampiro avançou para um novo ataque. Incapaz de

colocar a espada numa posição defensiva a tempo, Samuel se apoiou na

parede, chutando o peito do vampiro para força-lo a recuar e conseguir

tempo. O vampiro recuou, e foi quando a lâmina de uma cimitarra perfurou

suas costas, emergindo em seu peito, através das costelas e do coração. O

vampiro arregalou os olhos amarelos, enquanto suas escamas desapareciam

rapidamente. Atrás dele, Al-Malik estava em pé, seus olhos fixados no

monstro que bebera seu sangue. Samuel sorriu, erguendo a lâmina

incandescente. Um arco dourado se formou indicando o traçado da lâmina,

e a cabeça do morto-vivo rolou.

“Quem são vocês?”, perguntou o vampiro que restava, desviando

os olhos para não fitar Lorde Asphael, e fazendo uma expressão clara de

dor, como se sentisse o fim de seu irmão de sangue.

“A pergunta deveria ser... o que queremos?”, murmurou Asphael,

seus olhos brilhando intensamente, e logo em seguida o Arcanjo ergueu a

voz: “Mas as respostas que procurávamos já tenho, Stephan Reinhold”.

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O vampiro recuou ainda mais, mostrando suas presas e olhos

brilhantes, como um animal acuado. “Como sabe meu nome verdadeiro?”.

Lorde Asphael permaneceu parado, seus olhos brilhantes

acompanhavam os movimentos do vampiro. “Eu sou Veritas, e seus séculos

de existência não significam nada para mim. Não há segredos seus que eu

não possa descobrir”.

“O Profeta estava certo! No dia em que nossa força não puder ser

detida pelo Sol, virá a noite em que todos nós seremos julgados!”,

murmurou o vampiro, sua face demonstrando surpresa e medo. Então, ele

abriu os braços, e as estantes de livros ao redor começaram a arder em

chamas. “Eu vou enterra-los aqui, pois não tocarão meu Senhor!”.

Karina e os outros, que viam a cena através da porta da sala dos

caixões, viraram-se com surpresa ao notar as chamas se formando também

nos armários no fundo da sala e nos caixões no centro da mesma. Asphael,

porém, começou a caminhar na direção do vampiro, sem se preocupar em

desembainhar a espada que levava na cintura. O morto-vivo mostrou as

presas, e para minha surpresa, sombras se ergueram do chão. Tentáculos de

sombra, como os que Wang é capaz de gerar, surgiram para agarrar os

pulsos de Asphael, e o vampiro avançou, de sua boca nascendo um

serpenteante chicote de sangue. Asphael se moveu na direção do monstro,

sua força sendo suficiente para partir os tentáculos negros como se estes

fossem papel. O chicote carmim atacou pela esquerda, mas a mão de

Asphael o agarrou, a pele do Arcanjo resistindo à superfície cortante

daquela arma demoníaca. A mão direita de Asphael agarrou o pescoço do

vampiro, erguendo-o no ar. O vampiro se debateu, mãos tornando-se

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garras, e tentou em vão rasgar o rosto do Arcanjo, não conseguindo

causar dano maior do que unhas comuns fariam.

“Eu estou enfrentando os senhores do Inferno e não tenho tempo a

perder com um ser como você. Você se orgulha de seu poder, e o usa para

abusar de seres mais fracos. Mas eu não sou como você”, disse Asphael,

intocado pelos ataques do monstro. Então, o Arcanjo puxou o chicote

rubro, arrebentando-o. O vampiro não conseguiu esconder a dor, enquanto

o chicote sólido se desfez em gotas de sangue. Ao redor, as chamas

aumentavam, e o calor se tornava insuportável. “Eu odeio a mim mesmo

cada vez que tenho que demonstrar poder e não sabedoria. E por isso,

também odeio o que me forçou a fazer”. Mais chamas surgiram, agora

diante das mãos de Asphael. O vampiro ardeu, fogo consumindo-o, e então

o Arcanjo o arremessou contra as estantes flamejantes. “Vamos”, gritou

Asphael aos outros, indicando para que saíssemos daquele inferno.

Samuel abraçou Karina, correndo com ela de volta à escada que

levava de volta a casa. Eu e Al-Malik corremos também para a escada,

parando assim que chegamos a ela para fitar o Arcanjo, que ainda

permanecia parado no centro da sala, vendo o corpo do vampiro, em

chamas, se erguer mais uma vez. O monstro se moveu com velocidade, e

finalmente a mão de Asphael tocou o cabo de sua espada. O movimento foi

rápido e eficaz, a espada foi retirada num instante, e o corpo do vampiro se

partiu em dois. As metades do morto-vivo se desintegraram no ar, deixando

apenas uma chuva de cinzas e fogo. A lâmina da espada brilhava

levemente, não refletindo o fogo, mas sim emitindo luz própria, de pura cor

branca.

“Lorde Asphael!”, gritei, “Vamos!”.

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Os olhos do Arcanjo me fitaram, e ele caminhou na direção da

escada. Al-Malik já subia os degraus, mas eu continuava a esperar por

Asphael. Ele embainhou sua espada, e caminhou em minha direção, como

se o fogo não pudesse afeta-lo.

Enquanto subíamos as escadas, eu não pude deixar de perguntar:

“E agora? Qual será nosso próximo passo?”.

“Eu sei onde é o refúgio de Hagan Gudrun”, murmurou o Arcanjo,

“Rezo para que ainda haja tempo”.

Saímos rapidamente da casa, que logo estaria em chamas. Samuel e

Karina deixaram os corpos desacordados dos servos dos vampiros no

jardim. Acima, as nuvens estavam ainda mais negras e densas, e os

relâmpagos caíam com freqüência, iluminando a escuridão. O dia tinha se

tornado uma grande penumbra, mas ainda não tão escura quanto a noite

verdadeira. Então, enquanto as chamas já começavam a tomar a

propriedade, as primeiras gotas de chuva começavam a cair.

“Eu não entendo”, disse Samuel, “Os vampiros estavam despertos.

Isso não deveria acontecer, deveriam estar letárgicos durante o dia”.

“É a tempestade”, disse Asphael, olhando para o céu escuro. “Ela

está fazendo a barreira entre a vida e a morte se enfraquecer. As Crias de

Lucifugo têm uma ligação com o mundo dos mortos. É o fortalecimento da

barreira, que ocorre todas as manhãs, que os deixa letárgicos. Afinal, os

Anunnaki estão mortos à sua própria maneira”.

“O dia em que a força deles não seria detida pelo Sol”, murmurou

Al-Malik, “Foi isso o que o vampiro disse”.

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“Então, como o próprio morto-vivo disse, chega a noite em que

eles serão julgados”, respondeu Asphael, estendendo a mão para abrir um

portal. “Vamos, o tempo é curto”.

E, ao atravessar aquele portal, deixando para trás a casa em chamas

e a chuva que começava, ouvi mais um trovão. Um trovão e um rugido.

Ao emergir do outro lado do portal, continuei a ouvir a chuva cair,

mas agora ela estava lá fora, e eu numa sala grande e escura. Fitei uma

cortina pesada, sem conseguir ver a janela e a chuva além, mas podia ouvir

o som da água cair. E ouvi novamente o mesmo trovão que antes,

indicando que estávamos bem longe da casa dos Gêmeos agora. Olhei ao

redor, analisando a sala, enquanto meus companheiros chegavam pelo

portal. Al-Malik e Samuel empunhavam suas armas, e Karina adentrava

temerosa. Estávamos numa sala de estar, grande e luxuosa. As luzes

apagadas e a cortina fechada tornavam aquele lugar escuro demais. Fora

nossos passos e nossa respiração, não haviam sons vindo do interior da

casa.

“Onde estamos?”, perguntou Samuel.

“No covil da fera”, respondeu Al-Malik. “É o esconderijo dele”.

“Mas ele não está aqui”, murmurou Lorde Asphael.

“Lorde Asphael, tem certeza?”, perguntei.

“Não sinto nada aqui, nenhum perigo, nenhum olhar oculto”,

respondeu. “Este lugar está tão morto quanto seu dono”.

“Realmente”, murmurou Samuel, fechando os olhos em

concentração, “ele deve ter servos mortais, mas não sinto vida aqui. Não há

pessoas, nem animais. Nada que importe”.

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“Maldição!”, murmurei, “tão perto, e tão longe! Temos que

procurar... deve haver algo aqui! Alguma pista, algo que nos leve a

Gudrun! Nosso tempo está se acabando, em poucas horas o tigre estará

aqui!”.

“Vamos procurar, como fizemos no apartamento de George

Matos”, disse Al-Malik, “E tenhamos paciência, se nos desesperarmos,

podemos deixar para trás informações importantes”.

“Chamarei os outros. Melhor estarmos todos juntos de agora em

diante”, eu disse.

Asphael concordou com a cabeça. “Abrirei o caminho para você,

Mestre Nicodemus”, ofereceu o Arcanjo, então, mais um portal se formou.

Agradeci, atravessando a passagem. Da sala escura, passei a um ambiente

iluminado, bem menor, mas mais aconchegante. A sala de tevê de Samuel

estava diante de mim. Logo percebi que minha chegada repentina

surpreendeu Absolon e Fabrizia, que estavam sentados lado a lado no sofá.

Absolon se levantou imediatamente: “Nicodemus! Nós estávamos

preocupados!”. Fabrizia sorriu, notei-a meio sem graça, mas ela se levantou

logo em seguida.

“Onde estão os outros, Absolon?”, perguntei, olhando o jovem

Princeps. Ele agora usava uma jaqueta negra por cima de uma camiseta

branca, além de calças jeans e tênis.

“Estão lá dentro, Nicodemus”, respondeu o Princeps, abaixando-se

para pegar a espada que ganhou de Amazarak, na Cidade Eterna, e que

deixara embainhada, sobre o sofá. “Acha que precisarei disso?”.

“Espero que não, Absolon, mas prepare-se para qualquer coisa”,

respondi. Olhei para Fabrizia, que vestia uma blusa negra e calças jeans, e

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deixava os cabelos negros presos num rabo de cavalo. Seu olhar

demonstrava preocupação, e ela olhava constantemente para Absolon.

Notei as mãos de ambos unidas, e ao lado de onde Fabrizia antes estava

sentada estava uma capa de chuva cinzenta. Fiz um sinal para ela com a

cabeça, então me pus em direção ao interior do apartamento. “Entrem pelo

portal, os outros explicarão a situação”, eu disse antes de começar a

caminhar. No canto de minha visão, vi Fabrizia pegar a capa de chuva.

Caminhando para o quarto de Samuel, minha atenção se voltou à

tempestade lá fora. A chuva parecia cada vez mais forte, e os ventos

uivavam furiosamente. Em meio ao uivo do vento, eu às vezes parecia

ouvir gritos de horror ou agonia, ecoando nas profundezas de minha mente.

O ambiente parecia um vácuo espiritual, como se os elementais do Rio de

Janeiro estivessem se escondendo. E, cada vez mais, eu sentia uma

presença opressiva. Minha intuição me dizia que Shiva ainda estava longe,

que o tigre ainda voava com grandes asas sobre o Oceano ao leste. Quanto

tempo ainda tínhamos? Duas horas? Três horas?

Entrando no quarto escuro, encontrei Lo Wang sobre a cama,

meditando em posição de lótus. Sua roupa negra incluía um capuz, luvas e

botas, mas notei a máscara demoníaca ao seu lado. Os olhos do Celestial

das trevas se abriram, me olhando calmamente. “Chegou a hora?”,

perguntou.

“Ainda não, mas está chegando. Há um portal na sala, os outros

explicarão o que está acontecendo”.

Lo Wang se levantou, pegando a máscara e guardando-a em um

dos muitos bolsos ocultos de sua roupa. Ele também pegou sua espada

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negra, ainda embainhada, e colocou-a em suas costas. “Onde está

Ansgar?”, perguntei, enquanto ele passava por mim.

“Na cozinha”, respondeu o anjo negro.

Caminhei até a cozinha, onde Ansgar estava sentado à mesa,

olhando o vazio à frente, perdido em pensamentos. A barba ruiva do

poderoso Venator parecia um pouco mais grossa agora, efeito do

crescimento de dois dias sem corta-la. Ele voltava a vestir uma roupa igual

à que usou no começo de nossa busca: botas, calça militar e uma camiseta

negra. Ao notar minha presença, ele se levantou, levando a mão esquerda

ao cabo de sua espada, embainhada em sua cintura, apenas para checar que

a arma estava ali.

“Vamos, Ansgar”, pedi, levando-o ao portal. No caminho,

expliquei brevemente nossa situação.

E, logo que atravessamos o portal de Asphael, os nove membros da

Falange estavam novamente reunidos. Todos olhando para mim, eu pensei

na melhor maneira de encontrarmos Gudrun: “Nós precisamos ser rápidos

aqui. Lo Wang, Absolon e Fabrizia, procurem o local em que Gudrun

provavelmente dorme durante o dia. Precisa ser um local protegido contra o

Sol, talvez um porão, talvez um quarto muito bem protegido. Ao acharem,

nos avisem, e depois procurem no local qualquer documento, qualquer pista

que indique onde está Gudrun”.

Virei-me a Ansgar, Samuel e Karina: “Procurem por alguma

biblioteca ou escritório. Dizem que Gudrun é um ‘bruxo’, então ele deve

possuir alguma fonte de conhecimento e de estudo. Aposto que mantém

também anotações ou dados sobre outros vampiros da cidade. Tentem

encontrar algo assim. Assim que encontrarem, nos avisem”.

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Finalmente, meus olhos buscaram Al-Malik e Asphael. “Cada

um de nós pode ver o passado. Vamos nos separar. Tentem buscar qualquer

evento que explique o que aconteceu aqui, onde Gudrun foi”.

“Que Deus nos guie!”, murmurou Al-Malik, não indicando

desespero, mas sim esperança.

Nos separamos, cada um tomando seu rumo naquele casarão.

Ouvindo os trovões vindos de fora, por um momento eu me aproximei de

uma janela, puxando a cortina. Notei que a casa ficava numa região mais

alta, em meio a grandes árvores. Um relâmpago me permitiu ver as nuvens

negras acima, e nenhum prédio ao redor. O refúgio de Gudrun parecia ser

um local isolado, mas ainda assim próximo da região sul da cidade. Não

perdendo mais tempo, procurei a porta de entrada da propriedade.

Saindo da sala, encontrei uma escadaria, que levava a um salão de

entrada. O salão era grande, espaçoso, com grandes quadros de diversas

épocas. A luz dos relâmpagos iluminava as faces nos quadros. Muitas das

obras tinham o mesmo rosto: o de um homem vigoroso, de rosto esguio,

olhos negros e barba grossa. Me aproximei da porta que levava para fora, e

então fechei meus olhos, concentrando minhas energias. Concentrei-me no

momento em que os últimos deixaram a casa por aquela porta. Senti minha

mente vagar e, ao abrir meus olhos, me vi em outra época. Um novo trovão

ecoou, este mais distante, e a fraca luz do dia entrava pela porta aberta. Lá

fora, as nuvens negras já cobriam o céu, de horizonte a horizonte.

“Vamos logo! Tragam o maluco!”, um homem de negro disse,

esperando num carro logo à frente. E então, um grito me fez me virar para

o interior da propriedade.

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E meus olhos se arregalaram ao vê-lo. “Não, por favor!

Deixem-me ir! Deixem-me ir! O tigre se aproxima! A destruição me

persegue! Deixem-me ir! Por favor! Pelo amor de Deus!”, ele grita em

desespero, enquanto outros dois homens de preto o carregam à força. O

Velho! O Profeta Louco! Magna Veritas! Ele estava pálido e fraco, seu

corpo era magro, mal alimentado. Sua barba e cabelos cresciam sem

cuidado, grisalhos, e seus olhos eram profundos e tristes. Ele se debatia em

desespero, preso por uma camisa de força e vestindo apenas calças velhas

rasgadas.

“Calma, seu louco”, disse um dos homens, gritando para o Velho.

“Nos o levaremos a um lugar seguro!”.

“Não há lugar seguro!”, gritou o Velho, “Destruição caminha sobre

patas de um tigre, e caçadores iluminados me oferecem salvação! Mas

morte é tudo o que me segue, e o próprio Inferno virá atrás de mim e todos

os que me guardam!”. Os homens continuaram puxando o velho, que se

debatia em desespero para escapar. Os de negro o xingavam e batiam em

seu rosto, tentando leva-lo. E então, ao se aproximarem mais da porta de

saída, os olhos do Velho se encontraram com os meus... Eles arregalaram,

como se pudessem me ver, mesmo eu estando num tempo diferente. E

então ele gritou: “Eles me acharam! Nós estamos perdidos! E o Inferno virá

logo atrás!”. Os de negro o jogaram no chão, e então o arrastaram

violentamente, enquanto ele ainda se debatia, chorando em desespero:

“Eles virão a mim! Eles virão a mim!”.

“Philipe?”, ouvi uma voz feminina me chamar. Fechei meus olhos

quando um relampejo quebrou a visão. Ao abrir meus olhos, estava

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novamente no presente, na escuridão do salão de entrada, e Karina

diante de mim: “Você está bem?”, ela perguntou.

“Sim”, respondi confuso, levando a mão à cabeça.

“Você precisa ver o que encontramos”, Karina disse, segurando a

minha mão e me puxando, gentilmente. A jovem Supervivente me levou de

volta às escadas e então através de um corredor com muitas portas, até

finalmente entrarmos numa suíte vazia, onde Ansgar me esperava. A janela

do quarto, do tipo deslizante, continha barras de metal que impediam a

passagem de uma pessoa. O banheiro também estava quase vazio, muito

sujo. Um fedor de suor e urina permeava o local. Reparei que a porta, de

metal, só tinha fechadura pelo lado de fora, e não havia armários, nem

mesmo uma cama, apenas um colchão e lençóis encardidos em um canto

oposto ao banheiro. A única luz no quarto era precária, vinda de uma única

lâmpada incandescente, insuficiente para iluminar adequadamente o

cômodo vazio. Porém, mesmo a fraca iluminação era suficiente para ver as

paredes danificadas e sujas... Marcas de giz, arranhões provocados por um

objeto duro e pontudo e até mesmo sangue seco formavam runas nas

paredes. As runas, do mais puro Fabulare, formavam frases, avisos.

“Deixem-me em paz!”, elas diziam. “Eu não devo ser encontrado”. “Ele

manipula seus atos”. “Eu não posso morrer”. “Eu não posso viver”. “A

Verdade não deve ser encontrada”. “Após o Apocalipse, virá o

Armageddon”. Pela janela, veio a luz de um relâmpago, seguida do trovão

que o acompanhava.

Fechei meus olhos novamente, me concentrando mais uma vez no

passado. Minha força de vontade já começava a se esgotar, após dois dias

de pouco descanso e uso contínuo de poder, mas eu tentava usar minhas

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últimas forças. Meu poder buscou algum momento... qualquer

momento... Eu queria ver Gudrun. Eu queria ver Gudrun e o Velho juntos,

nesta sala. Eu queria saber onde os dois estavam. Aos poucos, os sons da

tempestade diminuíram. Quando a noite ficou calma, abri meus olhos, e

além das barras da janela percebi uma noite tranqüila, com poucas nuvens e

algumas estrelas, ainda que houvesse uma negritude espiritual distante

vinda do oriente. Olhei para o colchão, onde o Velho se encolhia, sob os

lençóis, tremendo em posição fetal. Ele murmurava: “Há alguém aqui! Há

alguém me vendo! Eu sinto! Eles estão próximos!”. O Velho se ergueu

num instante, olhando ao redor. “Quem está aí?”, gritou.

“Eu, velho amigo”, uma voz masculina, forte e calma, ecoou vinda

do corredor. Ouvi o som de passos pesados, causados pelo bater da sola do

sapato no piso nu do corredor. Então, seguiu-se o som de chaves e do

destrancar da porta, que se abriu rangendo. Quando aquele homem entrou,

eu sabia que não era apenas um homem, mas um monstro. Careca, de barba

pesada e negra, olhos determinados, um nariz fino e longo, o rosto esguio,

mas aparência vigorosa, vestindo robes de cor vermelha por cima de uma

roupa totalmente negra. Hagan Gudrun tomou mais alguns passos, parando

diante do Velho que, sentado no colchão, abraçando as próprias pernas, se

limitou a olhar para cima, seus olhos trêmulos se encontrando com o olhar

frio e cruel do vampiro. “Minha filha acaba de morrer, eu pude sentir sua

chama se extinguir, seu elo na corrente de sangue se desfazer. Exatamente

como você predisse. É esta a noite?”.

“Não”, disse o Velho, sua voz rouca e fraca, “mas ela está perto, ó

Morte Carmim. O Caçador agora é seguido pelos Enviados da Luz, e a

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tempestade se forma, bloqueando o nascer do Sol. A noite está

próxima, está à sua porta. Eles vêm a mim”.

“Então o dia em que nossa força não será enfraquecida pelo Sol

também se aproxima. Eu conheço os sinais”, disse o morto-vivo, dando as

costas e, a passos lentos, se preparando para deixar o quarto. “Eu estarei

preparado”, continuou a falar o vampiro, “Meus serviçais já sabem o que

fazer”.

Um passo separava o monstro da porta, quando uma mão frágil e

cheia de feridas agarrou sua perna. O vampiro parou, virando para fitar a

face aterrorizada do Velho, que se arrastava aos seus pés. O velho

implorou, lágrimas percorrendo sua face: “Deixe-me ir, Morte Carmim, me

deixe ir. Eles virão atrás de você, e através de você chegarão a mim. Eu não

devo ser encontrado. Por favor, deixe-me ir”.

O vampiro puxou a perna, forçando o Velho a larga-la. Ele fitou

aquele homem desesperado com uma frieza sem igual. “Abandona-lo?

Quando chegar a hora, eu o moverei a um local seguro, já preparado para a

noite que virá. Não o encontrarão, velho amigo. Mas não pense que o

deixarei ir. Você é meu, seu poder é meu. Dê-me esta cidade, e então o

libertarei”.

Hagan Gudrun deixou o quarto e, enquanto fechava a porta, ouvia

os gritos enlouquecidos do Profeta Louco: “A Morte se aproxima, e o

Inferno a segue! A espada da luz irá atravessar seu peito, Hagan Gudrun, e

os inocentes morrerão às dezenas, varridas pela chuva de sangue cairá!

Haverá apenas morte, Hagan Gudrun! Apenas morte, trazidas pelas presas

de um tigre! Eu não posso morrer! EU NÃO POSSO MORRER! Eu não

posso... senão, ele voltará!”.

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Houve silêncio, quebrado apenas pelo som da chave fechando a

tranca, seguido dos passos pesados do vampiro que se afastava. O Velho se

encolheu em um canto, levando suas mãos à cabeça. As unhas longas

penetravam na carne da face, ferindo-a, enquanto ele chorava. Então, após

alguns minutos, ele ergueu a face, me fitando. “Desista de sua busca”, o

Profeta disse. “Por favor, senão ele virá a mim”.

“É tarde demais”, respondi, não tendo certeza se ele poderia me

ouvir ou não. “Ele já se aproxima. Se não o encontrarmos antes dele, então

tudo estará perdido”.

“Saia daqui!”, disse o Profeta, aparentemente incapaz de me ouvir.

“SAIA DAQUI”, ele gritou. E a voz ecoou em minha mente, tirando minha

concentração. Fechei os olhos, ouvindo aquela voz em minha mente.

Porém, por trás do tom desesperado e agonizante, ouvi uma segunda voz,

bela, poderosa, majestosa.

“Nicodemus!”, me chamava Ansgar, me apoiando para eu não cair.

O som da forte chuva retornava, e meus olhos se abriram. “O que houve,

Nicodemus?”.

“Eu o vi, Ansgar”, murmurei, me afastando do Venator e indicando

que estava bem. “Ele estava aqui, mas Gudrun sabia que viríamos. O

Velho... Veritatis foi tirado daqui, levado a algum lugar para que não o

encontrássemos”.

“E o que faremos?”, perguntou Ansgar. Procurei por Karina na

sala, mas ela já tinha saído.

“Precisamos de alguma forma encontrar Gudrun. Só aí

encontraremos o Profeta”, respondi. Logo em seguida, voltei a olhar aquele

quarto decadente, imaginando o sofrimento do Velho, pensando em suas

470

Page 471: Magna Veritas - Tiago José Moreira

palavras. Ele não queria ser achado... Por um momento, considerei em

desistir, em fazer a vontade daquela pobre criatura... Um ser vivo criado

para proteger uma alma sem igual, torturado pelo que sabe e pelo que é,

sabendo não ser vida verdadeira, mas um simulacro, um selo para impedir

que um Arcanjo permaneça prisioneiro de um dos governantes do Inferno.

Porém, era tarde demais para desistir. Se nós estávamos próximos, então

Shiva estava próximo. Se nós desistíssemos, então Shiva prosseguiria. Não

há mais tempo para voltar atrás, pois a morte se aproxima sobre as patas de

um tigre.

Foi então que Fabrizia apareceu, me chamando. Ela entrou no

quarto, e então parou ao sentir o cheiro de urina e sangue. “Nicodemus”,

ela disse, “Encontramos o local onde o vampiro dormia. Al-Malik está lá, e

pediu que o chamasse”.

Fabrizia nos levou ao local, um outro quarto no mesmo andar.

Ansgar foi conosco, e no quarto encontramos Absolon, Lo Wang e Al-

Malik. “Ele dormia aqui”, disse Absolon, apontando uma cama de casal,

grande e luxuosa, com lençóis de tecidos finos. O quarto era absolutamente

escuro, sem janelas. A porta de entrada era de metal, só podendo ser

trancada por dentro.Mesmo o corredor de entrada era escuro, evitando a

entrada da luz do Sol a qualquer custo. Os armários estavam abertos,

provavelmente pelos meus companheiros, e tinham muitas roupas, algumas

delas remanescentes de épocas passadas. Notei símbolos no teto e no chão,

e um círculo de proteção ao redor da cama.

“Gudrun é um homem bem preparado”, disse Al-Malik, “Ele

cercou o quarto de proteções, mas elas não parecem estar ativas agora. Eu

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Page 472: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não entendo muito de ritos místicos, Nicodemus, talvez possa me

ajudar a entende-los”.

Eu olhei os símbolos escritos, compreendendo pouco, mas sabendo

que se tratava de alguma espécie de magia de sangue. Pelos escritos,

parecia uma proteção contra fogo e madeira. A porta continha também uma

proteção contra arrombamentos. “Não há muito o que dizer, Al-Malik. Não

compreendo tudo, mas parece que Gudrun temia ser morto por fogo ou por

estacas, e que ficaria ciente se a porta do quarto fosse aberta”.

“Há mais”, disse Al-Malik. “Eu vi o passado deste quarto, tentei

ver quando Gudrun o deixou. Seus serviçais trouxeram um caixão durante o

dia, há umas quatro horas atrás. Depois, o levaram, mas murmuraram sobre

algo que aconteceria esta noite. Gudrun disse que ele não estaria

desprotegido”.

Olhei o brilho do visor do rádio-relógio no criado-mudo do quarto.

Já eram quase 18:30. “Continuem a procurar por pistas”, pedi a todos, após

agradecer Al-Malik, enquanto deixava o quarto, pedindo licença aos

demais.

Procurei por Karina e Samuel, não demorando a encontra-los. Eles

estavam com Asphael, num escritório. Karina tinha ligado o computador do

local, decifrando a senha com a ajuda de Asphael, enquanto Samuel

revirava papéis em busca de informações. “Alguma novidade?”, perguntei.

Infelizmente, não havia muito: nomes de vampiros e, no computador, os

documentos mais recentes continham informações sobre outros vampiros e

como contata-los, sobre as ações de Gudrun na cidade, sobre sua influência

no tráfico de drogas e outros assuntos que, embora pudessem nos levar a

Gudrun, levaria dias até que encontrássemos o vampiro. Não havia como

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Page 473: Magna Veritas - Tiago José Moreira

procurarmos cada vampiro dessa cidade até o encontrarmos, nem como

buscar cada traficante atrás de um refúgio alternativo.

O tempo passava, mas a informação mais importante jamais surgia.

Onde estava Gudrun? Mesmo que pudéssemos investigar todos os passos

de Gudrun desde que ele deixou a casa, isso exigiria horas e horas vendo o

passado. Tínhamos de prosseguir buscando uma pista mais física, algo que

pudesse nos indicar um caminho... Mas o tempo ainda prosseguia. Mesmo

oculto por trás de pesadas nuvens, sua luz incapaz de penetra-las, logo o

Sol sumiria a oeste, fortalecendo ainda mais as trevas da Cidade

Maravilhosa. Buscamos anotações, papéis, documentos acessados mais

recentemente no computador... Eu tentei invocar os espíritos da terra e do

ar, mas mesmo eles estavam ocultos, amedrontados pela tempestade.

Afastei-me dos outros para pensar. Por alguns minutos, caminhei

pelos corredores sombrios daquela casa, ouvindo apenas o som da chuva e

do vento lá fora. Minha mente tentava juntar o que sabíamos... O Profeta

foi levado a um lugar seguro, enquanto Gudrun estaria num lugar

protegido. Mas onde se protegeria? Aonde iria? Eles saíram durante a tarde,

levados pelos serviçais de Gudrun, certamente antes do vampiro perceber a

morte dos Gêmeos, senão teríamos encontrado-o aqui. Os documentos mais

recentes eram sobre outros vampiros. Um relâmpago iluminou a sala por

onde eu caminhava, e à minha frente, no meio da escuridão, vi um telefone.

Uma possibilidade surgiu em minha mente... Informações para contatar

outros vampiros! Estar num lugar seguro! Corri até o aparelho, tocando-o,

fechando meus olhos. Ignorei a tempestade, até que o som da chuva

parasse. Não me importei em abrir os olhos, pois não queria ver e sim

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Page 474: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ouvir. E finalmente ouvi, e era a voz de um homem, um serviçal do

vampiro, falando ao telefone.

“O Patriarca sabe que seu senhor está acordado e deseja que você

leve uma mensagem a ele. Há um assunto que precisa ser tratado, que

interessa a todos nós e que foi predito pelo Profeta Louco” , disse o

serviçal.

“Sim, meu senhor está acordado. Diga que mensagem devo passar

a ele”, disse uma voz do outro lado da linha.

“Haverá uma reunião esta noite, no local de sempre, a começar

exatamente as sete da noite”.

“Está louco???”, indagou a voz do outro lado da linha. “É Verão,

e neste horário o Sol ainda não terá se posto”.

“Então olhe para fora”, respondeu o capanga, “Este será um dia

diferente, pois o Sol se esconde e a força dos Anunna não desapareceu com

o raiar do dia. O Patriarca avisa que os que não comparecerem serão

considerados traidores e opositores a seu comando sobre o Rio de Janeiro.

Todos os aliados de Hagan Gudrun comparecerão”.

“Está bem”, disse o outro, “Eu avisarei ao meu senhor”.

“O Patriarca deseja que todos estejam presentes, pois o assunto

diz respeito a todos nós”, disse o serviçal, desligando o telefone. Pouco

depois, ouvi o discar de um novo número.

Abri meus olhos, sentindo ao mesmo tempo minha confiança se

restaurar e minha alma se encher de poder, canalizado pela descoberta feita.

Virei-me, correndo pelos corredores, até me chegar ao escritório. “Eu

descobri!”, gritei, para que os que estavam em outros cômodos pudessem

ouvir. Rapidamente, reuni meus companheiros.

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Page 475: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Hagan Gudrun sabe que vamos ataca-lo esta noite, e por isso

se protegeu da forma que sentiria ter maior força”, eu disse a todos.

“Maior força? Como assim?”, perguntou Al-Malik, “Como ter

força se foi predito a ele que ele morreria?”.

“Força em números”, respondi. “Hagan Gudrun está convocando

todos os vampiros sob seu domínio. Nesse momento, eles já devem estar

reunidos, sua força não tendo sido diminuída pelo dia, e só aumentando

conforme a noite cai e a tempestade se intensifica. Eu presumo que tenha

também muitos servos humanos e animais protegendo-os nesse momento”.

“Isso seria mais da metade da população vampírica desta cidade...

Mas onde eles estão?”, perguntou Samuel.

“No local de sempre”, respondi, retirando um pequeno cartão que

tinha guardado hoje mais cedo, e mostrando-o a Samuel. Um sorriso de

alívio se formou em meu rosto. Eles estavam na Casa Sabina. “E nós

faremos uma visita a eles esta noite. Nós iremos lá agora mesmo”.

Todos se entreolharam. Houve um silêncio, mas não impulsionado

por medo. Sabíamos que era a única coisa que poderíamos fazer. Uma festa

de vampiros nos aguardava, mas sabíamos que poderíamos atravessar

qualquer obstáculo. O único que poderia nos impedir agora era Shiva, o

Destruidor. Sabíamos que nós, sete Anjos e dois Arcanjos, iríamos àquele

encontro de mortos-vivos. E foi com isso em mente que cada um se

preparou à sua maneira. Fabrizia puxou sua espingarda, guardado sob a

capa de chuva, e cobriu a cabeça com o capuz. Da mesma forma, Lo Wang

cobriu sua face, tanto com capuz como com a máscara demoníaca. Absolon

levou a mão ao cabo da espada, removendo-a lentamente da bainha. E Al-

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Page 476: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Malik tirou as faixas de seu turbante, que levava dentro do paletó, e

enrolou-as em torno da cabeça, deixando apenas os olhos à mostra.

O trovão seguinte ecoou quando abri mais um portal, e cada um de

nós o atravessou, alcançando a fria escuridão das ruas. Sendo o último a

atravessar, eu fechei meus olhos, preparando-me para entrar na tempestade.

Senti a água fria cair com força em meu rosto. A chuva estava pesada,

densa. Cobri os olhos com uma das mãos e notei que a visão estava

totalmente prejudicada pela chuva. Eu podia ver luzes à distância, mas na

escuridão minha visão não alcançava mais do que alguns metros. Era como

submergir em trevas, como se o mundo todo fosse negro e opressivo. Um

relâmpago iluminou a escuridão por um momento, mostrando as grades da

Casa Sabina logo à frente, do outro lado da rua. Os portões estavam

fechados, e havia vários carros no jardim. Por um instante, vi silhuetas de

pessoas andando pelo jardim, possivelmente armadas.

Fitei um a um cada companheiro. Estávamos lado a lado, apenas

observando nosso objetivo à frente. A cada um que eu fitava, eu canalizava

um pouco de meu poder, transmitindo uma mensagem diretamente às

mentes deles, um de cada vez, visto que eu não podia criar um elo com

todos ao mesmo tempo:

“Karina, fique longe do confronto, dê cobertura a quem estiver

cercado, mas evite atrair a atenção do inimigo”.

“Fabrizia, mantenha-se perto de Absolon. Assim que estivermos

entrando, use seus poderes para acabar com a energia elétrica do quarteirão.

Protejam-se um ao outro, e dêem proteção a Karina também. Dêem

cobertura a quem mais precisar de ajuda”.

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“Absolon, meu amigo... tome cuidado. Não chame atenção para

si, use seus poderes para nos fortalecer, e ajude quem estiver cercado.

Fique próximo de Fabrizia. Ela irá cortar a energia elétrica, e você terá

dificuldades em ver no escuro”.

Para minha surpresa, Absolon respondeu em minha mente: “Não se

preocupe... Eu aprendi a ver nas trevas também”.

Sorri, vendo o progresso do jovem Princeps. Então, continuei:

“Ansgar, me dê cobertura enquanto entramos. Eu abrirei o portão. Após

estiver aberto, você será o primeiro a entrar pela frente, enquanto Lo Wang

entrará pelos fundos. Tome cuidado”.

“Lo Wang, você sabe o que fazer”.

“Samuel, lute ao lado de Ansgar. Juntos vocês serão invencíveis”.

“Al-Malik, dê cobertura aos demais, e tente impedir que fujam.

Permaneça próximo a Samuel e Ansgar, mas proteja especialmente os mais

jovens”.

“Lorde Asphael, meu Senhor. Proteja a todos, mas cuide para que

os vampiros não escapem... Certamente, muitos tentarão fugir. Esta noite,

Lorde Veritatis voltará ao Paraíso”.

Eu já me preparava para começar, para dar o primeiro passo. Vi as

espadas sendo postas à frente de seus portadores, suas lâminas reluzindo a

cada relâmpago que vinha dos céus. Foi quando a voz de Lorde Asphael

veio forte, alta, não em nossas mentes mas em nossos ouvidos, vencendo

até mesmo o som da tempestade: “Esta noite, não teremos medo, nem

mesmo hesitaremos em erguer nossas espadas. Brandiremos em nome do

que acreditamos, diante das trevas. Hoje, levaremos a justiça celeste às

Crias de Lucifugo, e ao fim, quando a madrugada acabar e o Sol nascer,

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Page 478: Magna Veritas - Tiago José Moreira

será uma manhã muito mais bela do que qualquer outra que já

tenhamos visto. Não temam, e lutem com todas as suas forças”.

“Assim que tudo isso estiver terminado”, gritou Lo Wang, numa

demonstração pouco característica dele, “levarei-os para beber e

comemorar comigo!”.

Samuel fez o sinal da cruz, e eu finalmente dei o primeiro passo.

Atravessei aquela rua vazia, vendo apenas o objetivo à frente. Meus olhos

brilharam, iluminando a escuridão, e o portão se aproximava. A energia de

Fabrizia emanou, e um raio caiu próximo, sobre um poste na esquina. As

luzes se apagaram. Abrindo caminho pela escuridão, alcancei o portão, oito

Celestiais atrás de mim, e murmurando palavras inaudíveis, meu dedo

tocou a fechadura nos portões. Uma porção mínima de minha energia fluiu,

abrindo aquele selo, e então, ao chute de Ansgar e ao empurrão de Samuel,

os portões se abriram. Como uma sombra, Lo Wang se moveu mais rápido

do que eu podia acompanhar. Um relâmpago já revelava o corpo de um

guarda caído no gramado, vítima da lâmina negra. A arma do guarda, uma

submetralhadora, jazia a poucos metros dele.

Dois outros guardas surgiram, talvez por terem visto o corpo caído.

Gesticulei com a minha mão direita, apontando na direção de um deles.

Samuel correu até eles, tanto sua espada como seus olhos começando a

brilhar dourados, mas antes que sua lâmina pudesse alcança-los, um deles

caiu vítima de meus poderes, seu corpo sendo rasgado por garras espirituais

guiadas por minha vontade. O outro tentou reagir, disparando tiros cujo

som era abafado pela chuva. A lâmina dourada o partiu em dois.

Olhei para o outro lado, e vi mais dois guardas caminhando nas

trevas, protegidos pela tormenta. Sombras emergiram para imobiliza-los, e

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Page 479: Magna Veritas - Tiago José Moreira

uma outra sombra surgiu. Instantes após, mais duas vítimas da lâmina

negra jaziam no jardim.

Luzes de lanterna vieram do interior da mansão, indicando que

mais guardas se aproximavam da porta dupla que levava ao interior da

Mansão. Ansgar se posicionou na porta, e com um chute a arrombou,

atingindo um homem que a abria naquele momento. Tiros se seguiram, mas

não foram capazes de impedir o avanço do Venator. Fogos Celestiais

iluminaram a lâmina da espada do Celestial e, segundos depois, os tiros se

silenciaram.

Ansgar e Samuel, seguidos por Al-Malik, adentraram a mansão.

Asphael permaneceu do lado de fora, dando a volta ao redor da casa. Entrei

em seguida, seguido pelos mais jovens. À frente, o largo e curto corredor

levava ao salão de festas. Venator e Sancti nos guiavam, suas lâminas

respectivamente ardendo em chamas celestes e brilhando com luz

purificadora.

Enquanto prosseguíamos, no canto de minha visão vi mais uma

sombra de mover, quase invisível. Gesticulei novamente, apontando para

ela, e o vampiro oculto urrou, sua carne se rasgando sob o efeito de ataques

espirituais. Al-Malik se virou para o vampiro, decapitando-o.

À frente, mais um vampiro surgiu. De aparência adolescente, este

veio do salão, talvez para investigar os tiros. A criatura sacou uma pistola,

disparando múltiplas vezes contra o peito de Ansgar. O Venator avançou,

assim como Samuel, e ambas as espadas penetraram a carne vampírica,

fazendo cair um corpo putrefato quase partido em três. Sem mais oposição,

nossa Falange prosseguiu, chegando finalmente ao salão e, à nossa frente, o

último obstáculo.

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Pelo menos quatro ou cinco dezenas de pessoas nos esperavam

no salão escuro, suas faces e expressões extremamente variadas. Embora

alguns fossem serviçais dos monstros, estávamos diante de uma multidão

de mortos-vivos, seus rostos pálidos indicando ódio, medo ou surpresa. A

cada relâmpago que iluminava o salão obscurecido, mais faces surgiam na

escuridão. Para cada morto-vivo ali presente, havia um ou dois

acompanhantes mortais. Alguns se vestiam elegantemente, como seus

mestres, sendo claramente amantes ou serviçais prezados, enquanto outros

eram mais rústicos, alguns até mesmo mal-vestidos, servindo de protetores

e guarda-costas. Alguns dos Anunnaki demonstravam vontade de lutar,

enquanto outros se afastavam cautelosamente. Num palco à frente, estava

Hagan Gudrun e dois guarda-costas armados. O rosto de Gudrun se encheu

de um misto de ódio e medo. A multidão tomou as mais diversas atitudes:

capangas sacavam armas de fogo, enquanto mestres se afastavam ou

mostravam garras e presas numa tentativa de nos intimidar.

Enquanto os mortos-vivos que se afastavam começavam a buscar

rotas de fuga ou sacavam armas de fogo, Al-Malik se colocava lado a lado

com os outros dois guerreiros, à frente do grupo.

Gudrun ergueu a voz: “E estes são o inimigo! Cinco padeceram em

suas mãos em menos de um dia! Irão esperar que venham até vocês

sozinhos? Não esperem mais, lutem por suas vidas, ou vamos todos

apodrecer aqui!”.

E então começou.

Os mortos-vivos e seus protetores se espalharam, alguns se

afastando do conflito, temendo-nos, mas muitos avançando, seus olhos

brilhando na escuridão. Os sons de dezenas de tiros ecoaram pelo salão,

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Page 481: Magna Veritas - Tiago José Moreira

visando atingir os três à frente do grupo. Eu e os mais jovens nos

abaixamos, mas os três guerreiros à frente avançaram. Da mão esquerda de

Ansgar surgiu um globo de chamas celestiais, que foi então arremessado

contra um grupo de atiradores. Uma explosão se seguiu, iluminando o salão

em cor azulada. O Venator avançou, sua lâmina penetrando no peito de um

vampiro que ainda permanecia em pé. O vampiro gritou de dor, enquanto

as Chamas Celestes espalhavam-se por seu corpo.

Al-Malik saltou em meio à multidão de vampiros, sua espada

ardendo em brasa, enquanto suas asas emergiam de suas costas, rasgando o

tecido do paletó. O Malaki se cobriu de chamas, brilhando tão intensamente

que era difícil fita-lo. Ele avançou, naquela forma de Fúria Ardente,

atacando os inimigos com a espada e afugentando-os com as asas

flamejantes. Mais atiradores apontaram suas armas para o Malaki, mas sua

forma flamejante impedia a mira, ofuscando a visão dos atiradores.

Enquanto rajadas contínuas de balas eram disparadas contra o guerreiro de

fogo, muitos dos atingidos eram na verdade mortos-vivos e serviçais que

estavam ao redor de Al-Malik.

Os vampiros cercaram Ansgar, avançando como uma horda furiosa.

Das trevas, mãos de sombra emergiam para agarrar os pés do Venator,

enquanto garras e tentáculos de sangue avançavam para mutilar o guerreiro.

Um vampiro se aproximou demais, sendo decapitado de antes poder causar

algum mal ao Venator, mas as primeiras garras começavam a ferir sua

carne. Samuel Fulmen avançou, atacando pelas costas de uma vampira de

aspecto monstruoso. Alcançando o Venator e ferindo um segundo

sanguessuga no caminho, o Sancti então ergueu a espada, cravando-a no

chão no momento em que mais mortos-vivos se aproximavam.

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Page 482: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Fantasmagóricas chamas douradas emergiram do chão, cauterizando a

carne dos monstros ao redor, sem no entanto incendiar qualquer objeto ou

ferir o Venator. Alguns vampiros eram consumidos por chamas, enquanto

outros recuavam feridos.

A intensidade dos tiros aumentou ainda mais. Uma janela se partiu,

entrando no salão o Anjo das Trevas. A espada negra de Lo Wang cortou o

cano de uma espingarda no salão, em seguida rasgando a barriga do

vampiro que a empunhava. Do outro lado do salão, Lorde Asphael emergiu

atravessando um portal na parede. Sua espada cortou em dois um homem

que não o viu se aproximar.

De repente, pressenti perigo. Virei-me a tempo de alertar Absolon e

Fabrizia com um grito. Uma vampira veio do alto, espreitando pela

escuridão das paredes. A criatura saltou sobre Fabrizia, atacando sua

espingarda. A arma caiu das mãos da Celestial, enquanto a vampira a

derrubava violentamente no chão. Absolon avançou para ataca-la , mas

antes que sua lâmina atingisse a morta-viva, Fabrizia agarrou a criatura

firmemente, eletrocutando-a com seus poderes. A vampira gritou, erguendo

a cabeça, deixando seu pescoço à mostra para um golpe mortal de Absolon.

Karina permanecia nos fundos, disparando contra vampiros

desgarrados. Enquanto isso, Ansgar abriu suas asas metálicas, que também

se incendiaram em Chamas Celestes. Mesmo ferido e sangrando, o Venator

iniciou uma dança mortal, usando as asas cortantes para manter os

monstros afastados, enquanto sua espada flamejante derramava sangue

profano. Mais vampiros tentavam escapar, mas as sombras se moviam para

agarra-los, enquanto Lorde Asphael facilmente se deslocava pelo salão,

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Page 483: Magna Veritas - Tiago José Moreira

desviando-se de atacantes com graça sobrenatural, e desferindo golpes

mortais mesmo nos mais poderosos mortos-vivos.

Alguns vampiros conseguiam escapar da fúria de nossa Falange,

enquanto vários caíam diante de ataques mortais. Rapidamente, as fileiras

de mortos-vivos e serviçais mortais se reduziam, mas não sem provocar

marcas. Um tiro atingiu o ombro de Karina, fazendo-a recuar, mas não sem

antes que um disparo de sua pistola atingisse o peito de um mortal.

Conforme os vampiros mais jovens e os lacaios mortais tombavam, os mais

poderosos permaneciam, e a batalha começava a se tornar mais equilibrada,

ainda que os mortos-vivos estivessem encurralados.

Então, nas trevas ao fundo do salão, vi os guarda-costas de Gudrun

disparavam freneticamente, atingindo tanto vampiros como meus

companheiros. Mas onde estava o mestre deles? Forcei minha visão,

usando o máximo de meus poderes para tentar enxergar além. E vi Hagan

deixar a sala, oculto por poderes de sombra.

Até mesmo Absolon e Fabrizia agora entravam na batalha, a Xamã

protegendo o Princeps, enquanto este usava sua espada para aliviar Samuel

da quantidade de mortos-vivos que o cercavam. Ele não poderia escapar!

Cabia a mim impedi-lo. Somente a mim! Corri através do salão, enquanto

Hagan Gudrun subia as escadas, para o segundo andar. Um tiro atingiu-me

no ombro, arrancando-me uma expressão de dor, mas prossegui,

esquivando-me daqueles que tentavam impedir meu caminho. Os guarda-

costas apontaram suas submetralhadoras para mim, mas já era tarde para

eles. Minha mão se apontava para o primeiro, enquanto eu me lembrava do

poder que manifestei na batalha em Oostegor. Minha energia explodiu na

forma de um relâmpago, atingindo o primeiro e então ricocheteando na

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Page 484: Magna Veritas - Tiago José Moreira

direção do segundo guarda-costa. O primeiro caiu, mas o segundo ficou

apenas atordoado. Saltei para o palco, derrubando o oponente com o

impacto do meu corpo. O segundo guarda-costa recuou, tentando disparar

contra mim. A maioria dos tiros errou devido ao impacto, mas um atingiu

meu peito. Avancei, mesmo sentindo a dor de ter o pulmão perfurado.

Aquilo poderia impedir um mortal, mas certamente não iria me impedir.

Com um soco desajeitado, meu punho atingiu a face do homem, e em

seguida golpeei seu estômago. Perdendo o ar de seus pulmões, o homem

caiu incapacitado, largando sua arma. Abaixei-me, pegando a

submetralhadora e prosseguindo pelas escadas. A arma em minhas mãos

era pesada, desajeitada, eu sequer tinha certeza se conseguiria usa-la

corretamente... Ainda assim, eu precisava dela.

Cheguei ao segundo andar, e do parapeito podia ver a batalha no

salão abaixo. Agora os vampiros se resumiam a menos de quinze. Por outro

lado, o conflito parecia atrair mais alguns guardas que estavam do lado de

fora e que agora entravam na confusão, alguns atirando contra os

Celestiais, outros caindo de joelhos ao presenciarem as Formas Celestes de

Al-Malik e Ansgar. Mas aquilo não era importante: Gudrun era o objetivo.

Fechei meus olhos, usando meus poderes para apontar a direção daquele

que eu procurava. Embora não tão poderosos quanto os dons de Instinto de

Karina, meus dons de adivinhação me apontaram para o bar. Saltei o

balcão, adentrando na porta adiante, que estava apenas encostada, e

chegando à cozinha.

Do outro lado da cozinha, vi Gudrun abrir a janela. A ventania que

entrou fez seu pesado manto se erguer um pouco. O vampiro, prestes a

saltar pela janela, parou e se virou para me fitar.

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Page 485: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Onde está o Profeta?”, perguntei, apontando a arma à ele,

enquanto meus olhos brilhantes fitavam o vampiro na escuridão.

O vampiro nada disse. Gudrun ergueu a mão, mostrando as unhas

longas e negras, e eu senti uma força poderosa agarrar meu tórax e me

jogar contra a parede. Tentei atirar, mas o impulso repentino me fez perder

a mira. Fui pressionado contra a parede, Como se uma mão invisível me

mantivesse preso. Eu lutava para escapar, enquanto Gudrun voltava a fitar a

janela, sentindo a chuva fria tocar seu rosto. O vampiro saltou, mas era

como se não houvesse gravidade para puxa-lo ao chão. Ele atravessou a

janela aberta, descendo graciosamente no jardim lá fora.

Assim que Gudrun sumiu de vista, senti a força que me prendia se

dissipar. Correndo até a janela, meus olhos o procuraram na escuridão ali

embaixo, e o percebi caminhar para longe no jardim, em meio à

tempestade. “Gudrun!”, gritei, saltando pela janela. Minhas asas se abriram,

evitando que eu caísse violentamente no chão abaixo, mas desapareceram

tão logo eu toquei o chão. Gudrun estava longe, eu precisava impedi-lo!

Correndo em sua direção, disparei com a arma em minhas mãos, até que

todas as balas se acabassem. O recuo da arma comprometeu a mira, mas

atingi-lo não era o objetivo. Eu precisava atrair sua atenção!

Gudrun parou e se virou para me encarar. O plano tinha

funcionado! O vampiro gritou alguma coisa, mas sua voz foi abafada pelos

trovões e pelo vento. Eu corri na direção dele, pronto para derruba-lo. Eu

precisava tentar impedi-lo de fugir! Porém, tão logo o atingi com um

encontrão, fui eu quem recuou atordoado pelo impacto. A mão do vampiro

agarrou meu pescoço, suas unhas penetrando minha carne. “IDIOTA!”,

gritou Gudrun, me arremessando contra o chão. Caí violentamente, rolando

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na grama. Senti mais uma vez uma força invisível me agarrar e,

conforme Gudrun gesticulava, eu era erguido no ar e arremessado contra

uma árvore próxima. Minhas costas atingiram violentamente o caule, e

senti uma dor intensa. A força me soltou, e caí novamente no chão. Minha

cabeça rodava, e eu tentava me concentrar, para que minha energia me

recuperasse dos ferimentos.

“Nicodemus!”, alguém gritou, embora eu mal pudesse ouvir em

meio à tempestade. Absolon surgiu, desferindo um golpe de espada visando

as costas de Hagan Gudrun. Porém, ao invés de partir carne e ossos, a

lâmina atravessou névoa. A forma nebulosa do vampiro se ergueu no ar, se

reformando a dois metros de altura, mas ao invés de cair, o morto-vivo

continuava flutuando, como se não tivesse peso algum. Absolon recuou,

colocando a espada à frente do corpo, seus olhos brilhantes fitando o olhar

frio do vampiro. “Você está bem, Nicodemus?”, gritou Absolon.

Gudrun gesticulou novamente, desta vez com ambas as mãos.

Imediatamente, Absolon foi jogado para trás, e sua espada removida de

suas mãos, voando na direção da mão direita do vampiro. O vampiro

desceu violentamente, erguendo a lâmina pronto para um ataque fatal.

Absolon rolou, escapando por pouco do ataque, fazendo com que a espada

atingisse apenas o chão. O vampiro deu um passo para trás, erguendo mais

uma vez a lâmina, enquanto o Princeps tentava se levantar.

Antes que o vampiro desferisse um segundo golpe, porém, o chão

aos seus pés tremeu, fazendo-o perder o equilíbrio. O barro agarrou um dos

pés do morto-vivo, e da escuridão veio Fabrizia, correndo na direção do

monstro. Fabrizia parou a poucos metros da criatura e então disparou sua

espingarda. O tiro atingiu em cheio, arrebentando o peito do morto-vivo.

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Gudrun, porém, não caiu nem recuou, mas sim avançou contra a jovem,

sua força sendo suficiente para escapar da lama que prendia seu pé. Gudrun

direcionou a lâmina contra peito de Fabrizia. Antes que o peito da Celestial

fosse empalado pela arma, Absolon avançou, de encontro ao vampiro. Pego

de surpresa, o vampiro caiu, largando a lâmina.

Absolon se pôs sobre o oponente caído, golpeando a face do

monstro com as mãos nuas. O monstro cuspiu sangue na face do jovem

Princeps, queimando-a como se fosse ácido Absolon gritou de dor, levando

as mãos à face e se afastando. Enquanto Gudrun se levantava mais uma

vez, Fabrizia atacou, agora usando a espada de Absolon. A lâmina penetrou

na barriga do monstro, que se limitou a golpear a face da jovem, jogando-a

a quase dois metros de distância. Fabrizia caiu, ainda consciente, porém

atordoada. Gudrun então foi na direção de Absolon, que ainda tentava curar

seus olhos, feridos pela queimadura.

Enquanto isso, eu me erguia, sentindo todo meu corpo doer. Já

parcialmente recuperado, me apoiei na árvore, minha mão sentindo o

tronco de madeira. Mais uma vez, canalizei minhas energias através da

madeira, deformando-a. Uma forma longa, grossa e pontiaguda nasceu na

superfície da árvore, e eu a destaquei, criando uma estaca.

Gudrun abriu a boca, e Absolon gritou, seu sangue surgindo em

correntes que lhe rasgavam a pele, sendo levadas à boca do vampiro.

Cambaleante, o Princeps tombou em seguida. Por fim, Gudrun mais uma

vez me fitou. Dei um passo em sua direção, quando ele começou a

gesticular. Mais rápido, porém, ergui minha mão, e o vampiro sentiu o

poder do vento atingir seu peito, jogando-o para trás e derrubando-o.

Segurando firmemente a estaca em minhas mãos, corri na direção do

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Page 488: Magna Veritas - Tiago José Moreira

maldito, enquanto este ainda se levantava. Ergui a mão que empunhava

a estaca, pronto para o golpe, mas então Gudrun se desfez em névoa diante

de mim. “NÃO!”, eu gritei, fechando meu punho livre e golpeando a forma

nebulosa. Embora meu punho fosse físico, eu o atingi em espírito, usando o

poder de meu Clero. O vampiro recuou, surpreso, se solidificando. Então,

aproveitando a oportunidade, dei o golpe final, perfurando o peito do

monstro com a estaca de madeira.

O vampiro tombou inerte, seu corpo imobilizado, sua face

paralisada numa expressão de surpresa. Porém, eu seus olhos, percebi que a

criatura ainda estava consciente, me fitando com ódio e terror. Fitei-o,

ofegante, usando minhas energias para me recuperar dos ferimentos

sofridos. Atrás de mim, Fabrizia e Absolon, ainda caídos, faziam o mesmo.

Eu fitei o vampiro. Então, meus olhos brilharam com uma

intensidade diferente de antes. Desta vez, minha visão não penetrava

apenas na escuridão da noite, mas sim nas profundezas da mente do

vampiro. Sua força de vontade era tremenda, uma barreira difícil de vencer.

Porém, em nome de Veritatis, eu precisava vencer o confronto mental com

o vampiro. Por um momento, minha concentração era tão grande que nem

mesmo ouvia os sons da tempestade. E então, a resposta surgiu em minha

mente, murmurada pela voz do próprio vampiro. Um leve sorriso de alívio

se formou em meus lábios, e eu parei de fitar o monstro.

Absolon se aproximou, sua espada em mãos. Sua mão esquerda

alisava o próprio rosto, como se buscasse marcas da queimadura, embora

ele já estivesse totalmente recuperado. “Mate-o”, pedi ao Princeps. Absolon

olhou o vampiro, erguendo a espada. Quando a lâmina desceu, o cabeça do

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Page 489: Magna Veritas - Tiago José Moreira

monstro rolou. A força das chuvas foi o suficiente para quase

desintegrar o corpo ressequido que sobrara.

Das sombras, emergiu Lo Wang, sua roupa rasgada indicando

marcas de bala e cortes provocados por garras. “Nicodemus, me perdoe!”,

pediu o Kage, “eu o vi perseguir Gudrun, mas não pude acompanha-los

desta vez. Um dos demônios me impediu de alcança-los, e só pude vir após

destruí-lo”.

“Não se preocupe, Wang”, eu respondi. “Como está a batalha lá

dentro?”.

“Perto do fim. Os últimos Anunnaki partiram, alguns poucos ainda

lutavam quando deixei o salão, mas estavam em menor número e muito

feridos. Nós vencemos”, respondeu o Kage.

“Reúna todos, Wang”, pedi. “Eu agora sei onde Gudrun escondeu o

Profeta”. Wang fez um sinal positivo com a cabeça, dando-me as costas e

correndo de volta à mansão. Enquanto isso, Absolon ajudava Fabrizia a se

levantar, e os dois se abraçaram em seguida.

Cerro-corá. É lá que está o Velho. Gudrun o escondeu num

barracão abandonado, próximo à mata, no alto da favela de Cerro-corá. O

local estava claro em minha mente. Eu fitei o céu, na direção da favela.

Acima, havia apenas negritude. Escuridão mais profunda do que qualquer

noite.

A tempestade se intensificava. Agora que a batalha tinha

terminado, minha atenção se voltou para a tormenta. Quando fechei meus

olhos, eu ouvi novamente o urro do tigre sendo carregado pelo vento.

Porém, senti algo mais. Um olhar, como se um olho invisível me fitasse

diretamente. Olhei para os céus, tendo a clara impressão que, numa breve

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Page 490: Magna Veritas - Tiago José Moreira

brecha nas nuvens, o céu acima estava vermelho. Shiva chegou, mas há

algo mais... Algo que cavalga a tempestade.

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Page 491: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 19: O Momento mais Sombrio

A passos rápidos, subíamos uma escadaria de pedra, em meio a

barracos de madeira e pequenas casas de alvenaria. Uma torrente de lama

descia pelos barrancos, e pelo caminho víamos pessoas, às vezes famílias,

correndo na direção contrária. Os ventos faziam os galhos das árvores

tremerem. Os trovões aumentavam em freqüência. Os estrondos, cada vez

mais próximos, faziam a terra tremer. A tempestade era tão forte era

impossível prosseguirmos sem protegermos nossos olhos. Acima, as

nuvens formavam uma massa negra e instável, sempre se alterando e se

distorcendo. Talvez fosse impressão minha, mas a cada relâmpago, eu

percebia um tom avermelhado nas nuvens acima de nós.

Eu nunca vira uma noite tão negra como aquela.

Era impossível voar naquelas condições. Por isso, eu tive de abrir

um portal da Mansão Sabina para o morro de Cerro-corá. Conforme

subíamos pelas ruelas e escadarias, eu via sinais de desespero e destruição.

Casebres ruíam conforme o chão sob eles era arrastado pelas corredeiras de

lama, e pelo menos uma árvore tombara sobre uma casa. Eu podia sentir

que o pior ainda estava por vir, e que tragédias maiores ainda estavam por

ocorrer. Continuamos a correr, embora a lama, os ventos e a chuva

praticamente reduzissem nossa velocidade à metade. Os relâmpagos

freqüentes iluminavam o caminho, mas os trovões que os acompanhavam

quase nos ensurdeciam. Foi então que um som em particular ecoou pelo

morro, transportado pelas ruelas da favela, me forçou a parar, como se

minhas pernas congelassem. O urro do tigre se ergueu mais alto que

qualquer trovão. Parei e fitei para a negritude abaixo, por onde viemos. Os

relâmpagos iluminaram o caminho, não revelando nenhuma forma. Os

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Page 492: Magna Veritas - Tiago José Moreira

demais pararam para ver o que tinha acontecido, mas pareciam

incapazes de ouvir aquele urro. “Mestre Nicodemus!”, chamou-me

Asphael. Respirando fundo, voltei a correr rumo ao esconderijo do Velho.

Os outros voltaram a me seguir.

O caminho então tomou a direita, após as escadarias passarem por

um barranco de uns três metros de altura. À frente, alguns poucos casebres

se misturavam a uma mata mais densa. Usando as memórias do vampiro

como guia, corri em direção à mata, que não era muito densa. Por entre

árvores espaçadas, sobre um solo rochoso e lamacento, caminhamos, até

vermos luzes, vindas de mais um casebre à frente. “É aqui!”, gritei aos

demais.

Não havia tempo para planejamentos, mas eu sabia que deveria

haver algum serviçal de Gudrun ainda guardando o local. “Ansgar, à

frente!”, pedi aos gritos. O enorme Venator correu em direção ao casebre

de alvenaria, chutando a porta de entrada. Empunhando sua espada, ele

entrou, e eu o segui de perto. Imediatamente, vieram tiros.

Em lados opostos da sala de entrada, dois homens armados

começaram a disparar contra Ansgar. Algumas balas penetravam sua pele,

mas o grito de Ansgar não foi de dor, mas um chamado para batalha. Em

grande velocidade, o Venator alcançou o primeiro homem, agarrando-o

com a mão esquerda. Imediatamente, o homem ardeu em chamas celestes.

Ainda sob tiros do segundo vigia, Ansgar girou o corpo, arremessando o

guarda em chamas contra seu companheiro. A força do Venator foi

tamanha que eu jurava ouvir o som de ossos se partindo quando ambos

colidiram. O primeiro desmaiou imediatamente, enquanto o segundo, caído,

gritou de dor ao sentir as chamas celestes se espalharem também para o seu

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Page 493: Magna Veritas - Tiago José Moreira

corpo. Ansgar avançou contra a próxima porta, arrombando-a com um

encontrão. Antes que o Venator entrasse na sala seguinte, os dois guardas já

estavam inconscientes. Atrás de mim, os demais membros da Falange já

entravam no casebre.

Ouvi um grito desesperado quando Ansgar prosseguiu na sala

seguinte, que nada mais era do que um pequeno quarto. Tiros de uma arma

semi-automática vieram logo depois. Entrando no pequeno quarto, vi

Ansgar avançar furiosamente contra mais um guarda, seu peito sendo

atingido seguidamente por rajadas de balas. A mão esquerda de Ansgar

ergueu o homem, e então o arremessou pela janela. A vidraça se partiu, e a

força empregada por Ansgar era mais do que suficiente para tirar aquele

homem de combate. Por fim, fitamos o último homem presente, uma forma

frágil e murmurante, encolhida em um dos cantos do quarto. Seus olhos

profundos nos fitavam com medo, e ele respirava ofegante. “Não”, ele

murmurou, repetindo várias vezes.

“Não se preocupe!”, pediu Ansgar, se aproximando. “Viemos

salva-lo!”

Os outros entravam no quarto. Ouvi mais um trovão. “Não há

salvação! Eu vou morrer! É tarde demais!”, murmurou o Velho, “é tarde

demais! Começará esta noite!”. E eu podia sentir algo crescer à nossa volta,

algo invisível, intangível. Era como se o chão tremesse, acompanhando

passos furiosos e velozes que vinham em nossa direção.

“Precisamos tira-lo daqui imediatamente!”, gritei, ouvindo os ecos

da respiração do tigre, cada vez mais próximos.

Asphael se posicionou no centro do quarto. “Ao Éden, então!”. O

Arcanjo estendeu a mão, seu poder fluindo pelo ambiente. Um portal

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Page 494: Magna Veritas - Tiago José Moreira

começou a se formar, fazendo o próprio ar tremer. O ar parecia mais

quente, mais opressivo. Eu podia sentir uma escuridão espiritual tomar o

ambiente, subjugando a energia do Arcanjo. O urro do tigre ecoou, partindo

vidraças e fazendo objetos de madeira racharem e trincarem. O portal

desapareceu em seguida, antes mesmo que qualquer um pudesse atravessa-

lo.

“TIRE-O DAÍ, ANSGAR!”, gritei.

Ansgar agarrou o braço do Velho, girando o corpo para puxa-lo

para longe da parede, ao mesmo tempo se colocando entre o homem e a

quina. Um estrondo se seguiu, e mal as costas do Velho se distanciaram da

quina do quarto, garras de tigre atravessaram a parede, pulverizando tijolos.

Num movimento rápido, o Venator protegeu velho com o próprio corpo, e

as garras do tigre atingiram as costas do Celestial.

Ansgar gritou de dor, mas se pôs para frente, afastando da parede e

empurrando o Velho na direção do resto do grupo. As garras do tigre

rasgaram mais das paredes e, mal Samuel agarrava o Profeta e o puxava

para trás do grupo, Shiva adentrou o quarto, arrebentando a coluna que

sustentava a quina do quarto. O teto começou a ruir, derrubando suportes

de madeira e telhas sobre nós.

Tentamos nos afastar para a parede oposta, que ainda estava em pé,

a fim de escapar dos destroços, mas o tigre e Ansgar foram soterrados por

telhas e tijolos. Samuel empurrou Karina e o Velho para o quarto ao lado.

“TIREM ELE DAQUI!”, gritou o Sancti, sacando a espada.

O tigre, porém, emergiu dos escombros avançando. Ao seu urro, as

bases das paredes começaram a rachar e se desfazer, e logo o casebre

inteiro caiu. Karina abraçou o velho, jogando-se no chão com ele, enquanto

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Page 495: Magna Veritas - Tiago José Moreira

uma parede de tijolos caía sobre os dois. Samuel gritou pela moça,

ignorando as telhas e tijolos que caíam sobre nós. A maioria dos

escombros, porém, caíam sobre o Karina e o Velho, soterrando-os mais e

mais. O tigre deu alguns passos, mostrando suas presas e rosnando,

enquanto nos fitava furiosamente. Sem um teto para nos proteger, a

tempestade mais uma vez nos cobria. As luzes da casa se foram, sobrando

apenas iluminação de relâmpagos. O tigre deu mais um passo, abrindo a

bocarra e exibindo as poderosas mandíbulas.

Foi quando uma poderosa luz branca surgiu, emitida pela lâmina de

Asphael .O Arcanjo deu um passo em direção ao tigre. Pela primeira vez,

eu senti ansiedade em Lorde Asphael. Os olhos de ambos se encontraram.

Atrás de Asphael, Samuel, Al-Malik e Lo Wang também empunhavam suas

lâminas. Eu podia sentir o poder do tigre se espalhar como uma doença,

como se o monstro estivesse se tornando mais forte e mais rápido. Nem ele

nem meus companheiros tomavam a iniciativa, porém.

“Ajudem Karina”, murmurei a Fabrizia e Absolon, já concentrando

minhas forças para participar do embate que viria.

“Eu posso ajuda-los!”, disse Absolon.

“Absolon... AGORA NÃO!”, gritei, “VÃO!”.

Absolon, a contragosto, meneou a cabeça, então segurou o braço de

Fabrizia, puxando-a. Ambos correram em direção aos escombros que

cobriam Karina e o Velho. Nesse instante, a atenção do tigre se voltou ao

dois. Num urro poderoso, Shiva avançou contra os dois jovens. Tanto a

boca do tigre como suas patas se incendiaram em Fogo Negro, brilhando

num tom verde doentio.

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Page 496: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Por Magna Veritas!”, gritou Lorde Asphael, também suas

energias se convertendo em força e velocidade. O Arcanjo avançou veloz,

sua lâmina brilhando liberando uma explosão de luz ao atingir o pescoço do

monstro. Os demais combatentes se espalharam, tomando direções opostas

para cercar o monstro. O impacto do golpe fez Shiva ser arremessado a dois

metros, rolando no chão, mas incrivelmente parando em pé, sem qualquer

sinal de sentir dor. Lorde Asphael avançou mais uma vez, urrando um grito

de guerra. Sua lâmina brilhante se direcionou contra a cabeça do tigre, mas

Shiva se ergueu nas patas traseiras, desferindo uma patada violenta contra a

lâmina. Ao encontro das garras com a lâmina, ecoou um som forte, como se

o metal atingisse rocha. Imediatamente, a luz da lâmina foi consumida por

chamas negras, que se espalharam até o cabo, queimando a mão do

Arcanjo. Sentindo uma forte dor, Asphael recuou, largando a espada

flamejante.

Shiva se preparou para saltar sobre Asphael, mas as trevas se

ergueram ao redor do tigre, formando múltiplos tentáculos que agarraram

suas patas. Ao meu lado, Ansgar se erguia, removendo os tijolos e telhas

que o cobriam. Atrás de mim, Fabrizia e Absolon tentavam descobrir

Karina e o Velho em meio aos escombros.

Shiva se debateu, puxando as patas dianteiras. Os tentáculos de

trevas se rasgavam como papel, incapazes de superar a força do tigre. Antes

que se soltasse por completo, porém, o tigre foi atingido pela direita,

quando Samuel avançou num ataque de carga, tentando perfurar as costelas

do animal com sua espada. A lâmina, que brilhava dourada como se

estivesse em brasas, perfurou a pele de Shiva, mas não conseguiu adentrar

mais do que alguns centímetros na carne do animal. Shiva virou a cabeça

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Page 497: Magna Veritas - Tiago José Moreira

para fitar o Sancti. As chamas na boca do demônio pareciam prestes a

explodir quando ele urrou. Imediatamente, Samuel se incendiou em chamas

negras, sendo arremessado pelo menos três metros para trás. O Sancti bateu

violentamente contra uma árvore, caindo em seguida no chão,

semiconsciente. Felizmente, as chamas negras não duraram antes de se

extinguirem.

Asphael tentou pegar a espada caída no chão agora que as chamas

nelas também já tinham se dissipado. O tigre foi mais rápido, porém,

rompendo os tentáculos que ainda o seguravam e pondo a pata flamejante

sobre a lâmina. Asphael puxou a mão, a poucos centímetros do cabo, a

tempo de evitar a poderosa mordida do tigre. O Arcanjo recuou

rapidamente, esperando um avanço rápido e mortal do oponente.

Rapidamente, eu gesticulei, apontando a mão ao tigre. Ao mesmo tempo, a

voz de Al-Malik se ergueu: “Por cada dor que causou em seu caminho, eu o

puno!”. O tigre recuou, urrando de dor, conforme o poder combinado de

garras espirituais e punição divina rasgavam sua carne. Mal o tigre se

recuperava, menos de um segundo depois, uma sombra saltou das árvores

próximas. Lo Wang caiu sobre o tigre, montando em suas costas. Adagas

de sombra se formaram em ambas as mãos do Kage, e rapidamente ele

começou a atacar freneticamente com as armas tenebrosas, perfurando

várias vezes o pescoço de Shiva. O tigre expressou dor agonizante,

enquanto seu sangue se espalhava. O sangue do monstro, porém, respingou

sobre o Kage, queimando-o como ácido. Trevas se formaram atrás do tigre,

delas saindo um tentáculo longo e pontiagudo. O tentáculo avançou contra

as costas de Lo Wang, perfurando-as até emergir através de seu peito. O

grito do Celestial negro ecoou.

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Page 498: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Asphael avançou para pegar sua espada, enquanto o tentáculo

erguia Lo Wang no ar. Shiva avançou, aparentemente inafetado pelos

ferimentos sofridos. Ao mesmo tempo, o tentáculo sacudia o corpo Lo

Wang, arremessando-o contra Al-Malik, que avançava na direção do tigre.

O impacto derrubou ambos os Celestiais.

A mão de Lorde Asphael alcançou o cabo da espada, enquanto as

patas de Shiva se apoiavam no chão firmemente, prontas para darem ao

demônio um impulso mortal. O monstro saltou na direção do Arcanjo, suas

mandíbulas se abrindo em pleno ar. Não tendo tempo de preparar um golpe,

Lorde Asphael colocou a lâmina no caminho da mandíbula do monstro, a

fim de manter as presas do demônio à distância. As mandíbulas de Shiva

abocanharam a lâmina, rachando o metal como se fosse um simples cabo

de vassoura. Mais ainda, o peso do monstro derrubou Asphael. O Arcanjo

tentava em vão fazer o monstro largar a lâmina da arma, enquanto o

monstro sobre ele usava as garras flamejantes para rasgar-lhe o peito.

Ansgar avançou, enquanto Al-Malik já se levantava. Asphael usou

suas forças para jogar Shiva para o lado, largando a espada e rolando na

direção contrária. Shiva já se levantava, enquanto o Arcanjo, tomado por

dores, tinha dificuldades em se erguer. Ansgar se aproximou o suficiente

para golpear o chão com sua espada. Imediatamente, um círculo de chamas

celestes se formou ao redor do Celestial. As chamas chegaram até o tigre,

encobrindo-o. Mas, ao invés de parar ou se voltar ao Venator, o tigre

avançou contra o Arcanjo Asphael, saltando para fora das chamas

purificadoras. Al-Malik interceptou Shiva em pleno ar, antes que o monstro

pudesse penetrar as presas pontiagudas no pescoço de Asphael. Shiva caiu,

rolando no chão, mas mais uma vez parando em pé. O impacto, porém,

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Page 499: Magna Veritas - Tiago José Moreira

jogou Al-Malik de volta para trás, caindo de costas no chão. Asphael,

felizmente, acabava de se pôr em pé, seu peito sangrando com os cortes que

sofrera. A dor em sua face, porém, desaparecia por completo, e o Arcanjo

fitava o oponente com determinação e fúria.

Atrás de mim, Fabrizia e Absolon por fim conseguiam retirar

Karina. Sob a moça, estava o Velho, assustado e ferido, mas bem. O Velho,

vestindo apenas uma calça rasgada, tossia muito e se abraçava, encolhendo-

se, enquanto murmurava palavras sem sentido. Fabrizia retirou a capa de

chuva para cobri-lo. “Tirem-no daqui!”, gritei.

E, ouvindo isso, o tigre se voltou a nós, avançando em velocidade

sobrenatural, deixando um rastro de chamas negras em seu caminho.

Coloquei-me no caminho do demônio, frente ao Velho. Imediatamente,

implorei aos espíritos da terra por ajuda. Minha energia fluiu, enquanto

meus pés se firmaram no solo, drenando sua força. Os passos do tigre

faziam a terra tremer e, quando ele estava quase me alcançando, o chão à

minha frente se abriu, erguendo dele uma parede de pedra, obra de

Fabrizia. O monstro se chocou contra a parede violentamente, mas o único

a ceder foi a própria rocha. Shiva trespassou a muralha sem dificuldades,

em seguida se chocando contra mim. Senti um impacto gigantesco me jogar

para trás. O chão aos meus pés não suportou, rompendo-se. Fui

arremessado como uma boneca de pano, caindo violentamente no chão.

Minha cabeça bateu contra uma rocha. Esforcei-me para não desmaiar,

reunindo o que restava de minha força de vontade.

Absolon empurrou Fabrizia para trás, colocando-se entre o tigre e

os outros. O demônio urrava furioso, fazendo o chão rachar, e das

rachaduras saltavam chamas negras. As chamas ergueram-se como se

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fossem muralhas, formando um labirinto de Fogo Negro ao redor do

Velho e seus últimos protetores.

Mas da chamas surgiu Ansgar, ele próprio se protegendo em Fogo

Celestial. O tigre se voltou ao recém-chegado, mas não a tempo de desviar

da lâmina flamejante do Venator. A lâmina veio certeira, perfurando o olho

esquerdo do tigre. Cego de um olho, o tigre recuou alguns passos,

balançando a cabeça para afastar a lâmina do Venator. “Afaste-se deles!”,

gritou Ansgar, largando a arma e avançando contra o tigre aproveitando a

cegueira parcial do mesmo. O braços do guerreiro envolveram o pescoço

do demônio, e então Ansgar se jogou para trás, fazendo com que ele o

monstro rolassem morro abaixo, aproveitando a leve inclinação e a lama

que descia. Eu tentava me levantar, curando-me de minhas contusões,

enquanto ambos continuavam a rolar até caírem pelo barranco logo adiante.

Tendo finalmente me erguido, corri em direção ao barranco, ainda

sentindo algumas dores nas costelas. Al-Malik também ia na mesma

direção, e eu via Samuel já se erguendo, já parcialmente curado. O corpo de

Lo Wang tinha desaparecido por completo. Já o Arcanjo Asphael

permanecia parado, numa concentração intensa, empunhando sua arma.

Fogo circundava a lâmina, e relâmpagos saltavam dela, enquanto o metal

brilhava com uma luz poderosa. Ele concentrava suas forças na arma,

esperando torna-la poderosa suficiente para dar um golpe mortal, como no

confronto anterior que tivemos com o tigre.

Chegando à borda do barranco, vimos o teto destruído de um

casebre abaixo. Ansgar estava caído, cheio de marcas de garras em sua

barriga e face, mas ele ainda estava consciente. Ouvimos gritos de medo

vindos da casa, e em seguida, uma vidraça se quebrou, Lo Wang saltando

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Page 501: Magna Veritas - Tiago José Moreira

através dela. Em seguida, a própria parede ruiu, atravessada pelo tigre-

demônio. Ainda ferido, com a lâmina negra em mãos, Lo Wang mal

conseguia escapar dos ataques do tigre. Ainda assim, o oriental se

esforçava para manter Shiva ocupado. O tigre avançou, forçando Lo Wang

a desviar-se para a direita. O Celestial escapou das garras e presas, mas

Shiva, assim que pousou, jogou o corpo para a direção de Lo Wang,

atingindo-o com a cabeça. Aquele simples movimento foi o suficiente para

jogar o Tenshi para trás, arrebentando a parede de madeira de um barracão

próximo. O barracão foi o seguinte a ruir.

Ouvindo os gritos e urros, pessoas saíam nas ruelas da favela para

ver o que estava acontecendo. Outras não se preocupavam em ver,

preferindo apenas correr para longe. “Droga!”, murmurei, pensando nas

testemunhas. Da primeira casa, uma mulher saiu carregando uma menina

nos braços, gritando em desespero. O tigre se voltou para ela. Assumi

Forma Celeste, deixando que minhas asas surgissem e meu brilho atraísse

os olhares do tigre e da multidão. Melhor que caiam ante ao Temor Divino

do que ante as garras de Shiva. Minha ação atraiu olhares, e muitos

desviaram as faces ou caíram de joelhos, mas a maioria preferia apenas

fugir.

Mas então uma luz mais forte do que a minha surgiu acima de nós.

Lorde Asphael saltou sobre nós, sua Forma Celeste brilhando com

intensidade. Suas asas brilhavam como nunca, e de seus olhos transbordava

poder. O Arcanjo pousou violentamente, fazendo o chão rachar, e avançou.

Sua espada, concentrando energias de fogo, raio e luz, atacou as patas

dianteiras de Shiva. O tigre ergueu as patas dianteiras, enquanto recuava

com as traseiras. Numa velocidade incrível, antes que Shiva pudesse se

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apoiar novamente em quatro patas, Lorde Asphael deu um passo à

frente, sua espada penetrando furiosamente no peito do tigre. A lâmina

brilhante emergiu das costas do monstro, e Shiva deu seu último urro de

dor. A tempestade acima urrou em resposta.

Asphael ergueu a espada acima da cabeça, o tigre ainda empalado

por ela. Então, o Arcanjo gritou como um guerreiro furioso, sendo

acompanhado por um trovão, e balançou a arma para arremessar o tigre

longe. O corpo inerte de Shiva se desprendeu da lâmina, caindo

violentamente no chão alguns metros à frente, suas patas e boca perdendo

as chamas sombrias que até então ardiam furiosamente.

Karina, Absolon e Fabrizia se aproximaram do barranco, trazendo

o velho. Apesar do vento, da chuva e dos trovões, houve silêncio, enquanto

fitávamos o tigre caído. A espada de Asphael, e o próprio Arcanjo,

lentamente perdiam o brilho, enquanto eu mesmo retornava à forma

humana. Os mortais presentes olhavam sem entender, alguns fugiam

apavorados. Outros ainda choravam ou se escondiam. Nós tínhamos

vencido. Os relâmpagos e trovões acima, porém, apenas se intensificaram.

Abaixo, Ansgar se esforçava em levantar, mas parecia ser uma

tarefa quase impossível. “Acabou?”, perguntou Samuel, se aproximando a

passos lentos e difíceis.

A resposta veio quando os olhos de Shiva se abriram novamente,

mas desta vez brilhando vermelhos. As nuvens acima se abriram, como se

estivesse se formando um redemoinho, mostrando um céu avermelhado e

uma lua sangrenta. E eu senti algo... algo inacreditável. Se Shiva era

escuridão, aquilo era o próprio abismo. O redemoinho acima fez a chuva

parar de cair sobre Cerro-corá por um momento, mas então as nuvens se

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fecharam de novo, trazendo consigo a tempestade. O poder daquilo que

se aproximava era tão grande... tão gigantesco... que era como se nosso

poder fossem pequenas velas, que se apagavam diante da passagem fria da

escuridão. Vi relâmpagos vermelhos caírem, e gritos de dor e agonia

ecoavam, trazidos pelo vento. Eu senti o mundo espiritual se escurecer,

tornando-se breu denso.

“O que é isso?”, perguntou Karina em desespero, sentindo o chão

tremer.

“É um deles! É um deles!”, dizia o Velho, abraçado a Fabrizia. “O

quarto Filho! O Lorde do Proibido!”.

Asphael recuou, sem retirar os olhos de Shiva. O tigre se erguia,

sentindo dores profundas, cambaleantes. Então, suas mandíbulas se

mexeram e ele... falou. A voz trovejante veio em nossas mentes, ecoando

em nossas almas. “Pai, eu falhei! Tome meu corpo e faça de minha derrota

a sua vingança!”.

O tigre se ergueu em duas patas, urrando. Ao invés do urro de um

tigre, porém, ecoou o de um dragão. Ele se manteve bípede, seus dedos se

alongando, garras expandindo-se, presas se afiando. Sua forma se tornava

ligeiramente humanóide. Seu olho cego se abriu, também brilhando

intensamente. Ele se ergueu por completo, tendo quase dois metros e meio

de altura. Era algo meio tigre e meio homem. Ao segundo urro de dragão,

as pessoas começaram a sair de suas casas, mas não era desespero que as

movia. Seus olhos brilhavam verdes, como se algo, e não suas almas,

comandasse suas ações. Crianças sob a chuva armadas com paus e facas,

enquanto seus pais e mães caminhavam como zumbis à frente, formando

uma procissão profana.

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“O tempo chegou! O tempo é agora!”, disse o Velho.

“Corram! Fujam!”, gritou Asphael, sua lâmina mais uma vez

enchendo-se de fúria elemental. “FUJAM!”, ele repetiu, sua face

claramente transbordando desespero.

Os outros se viraram para correr, mas não estávamos mais

sozinhos. Os mortos vinham pela mata, alguns vestindo armaduras

medievais e portando espadas quebradas, outros nus, com os corpos

incinerados, rastejando como zumbis. Ainda outros vestiam trapos e

portavam lanças. A presença que eu sentia era indistinguível. As almas dos

Condenados se materializavam para bloquear nosso caminho.

“POR MAGNA VERITAS!”, gritei. Das minhas mãos, rugiu

trovão. O relâmpago saltou de mim, atingindo vários dos Condenados. Um

caiu, mas outros continuaram em nossa direção.

“Por Magna Veritas!”, gritaram Samuel, Absolon e Al-Malik,

avançando contra as dezenas de almas. Dos céus, raios caíram sobre as

fileiras inimigas, comandados pela vontade de Fabrizia. No chão, os

guerreiros decepavam cabeças e braços, mas os inimigos pareciam

incansáveis.

Atrás, Lorde Asphael avançou, gritando. Sua espada traçou um

arco de fúria no ar, mas Shiva se moveu mais rápido. Uma das mãos do

demônio agarrou o pulso direito de Asphael, impedindo o golpe da arma, a

outra segurou seu pescoço. O Grande Lorde ergueu Asphael no ar, e então

forçou o braço direito do Arcanjo, fazendo-o largar a arma e quebrando a

articulação do cotovelo. “Pequeno verme”, disse o monstro em nossas

mentes, sua voz causando dor como se pregos fossem cravados em nossas

mentes. Em seguida, Shiva jogou Asphael longe, para o alto. O Arcanjo foi

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arremessado como se não tivesse peso, caindo a mais de trinta metros

de distância, sobre alguns casebres. A multidão possuída avançava pelas

escadarias, seus olhos queimando em ódio e fúria. E então os olhos do

demônio se encontraram com os meus.

Desviei o olhar imediatamente. “VOEM!”, gritei, retornando à

Forma Celeste. Fabrizia e Karina imediatamente abriram suas asas, mas os

combatentes não tinham espaço suficiente, estando cercados por legiões de

almas.

Ergui vôo, mesmo sabendo que deixaria meus companheiros para

trás. Fabrizia hesitou, vendo Absolon ser cercado por guerreiros mortos-

vivos. Karina puxou o Velho dos braços da Xamã e voou com ele.

Enquanto nós nos erguíamos no céu, sentíamos a chuva nos empurrar para

trás, os ventos tentando rasgar nossas asas. Abaixo, vi Samuel tocar o solo,

criando um círculo de chamas fantasmas. Ao seu redor, os mortos

queimaram, recuando e abrindo espaço. “FUJAM!”, gritou o Sancti, tendo

de permanecer parado para manter as chamas douradas. Imediatamente,

Absolon e Al-Malik abriram suas asas, erguendo-se aos céus. Fabrizia,

vendo Absolon escapar, voou rumo a ele. Samuel foi o último a abrir as

asas, desfazendo as chamas para poder voar. Uma lâmina atingiu suas asas,

ferindo-a, mas ainda assim o Sancti conseguiu subir aos céus.

Nós lutávamos para vencer as correntes de ar e a chuva forte.

Minhas asas doíam, conforme penas eram arrancadas e o vento as cortava,

fazendo-as sangrar. Apenas Absolon, com suas asas em forma de faixas de

luz, parecia resistir facilmente aos efeitos do vento. Foi quando senti o

poder de Shiva se manifestar novamente. Uma corrente de ar nos pegou por

baixo, jogando-nos para o alto e fazendo-nos perder o controle do vôo.

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Page 506: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Pega de surpresa, Karina largou o Velho, que foi arremessado pelo alto

pelo vento. Outra rajada nos atingiu, girando como um redemoinho. Eu

sentia minhas asas se despedaçando dolorosamente, enquanto todos

rodopiávamos nos céus sem qualquer controle. O Velho começou a cair

rumo ao solo, mas Al-Malik conseguiu segurar sua mão. O urro de Shiva se

seguiu, conforme a última rajada de ventos nos acertava, direcionando-nos

para baixo. Al-Malik abraçou o velho, enquanto o grupo caía violentamente

contra a mata abaixo. Um relâmpago iluminou a noite, me mostrando o

solo abaixo, um instante antes de eu atingi-lo. Houve dor... e depois tudo se

apagou.

Alguns segundos se passaram nas trevas... Mas eu não podia

desmaiar agora! Forçando meu corpo a extremos, meus olhos se abriram,

enquanto eu canalizava minhas últimas energias para me curar. Todo o

corpo doía, enquanto eu me erguia, apoiado a uma árvore, no meio da mata.

Próximos a mim, Karina e Al-Malik também se levantavam, mas não havia

sinal dos demais. O Velho estava ferido, mas vivo, agarrado a Al-Malik.

“Philipe!”, gritou Karina, se levantando com dificuldade. “Você

está bem?”.

“Fujam!”, pedi, sentindo minhas forças se esgotando.

“Tarde demais!”, gritou Al-Malik, me jogando o velho ao ouvir o

urro de dragão. Abracei o Velho e comecei a correr. Karina veio atrás de

mim sacando sua única arma, a pistola. Enquanto isso, Al-Malik empunhou

sua cimitarra. “Não há Deus a não ser Deus!”, disse Al-Malik, orando

desesperadamente. Ao ver o demônio Shiva vir em nossa direção pela

mata, seus passos fazendo o chão tremer, Al-Malik gritou: “E VOCÊ NÃO

É ELE!”. O Malaki avançou, sua lâmina refletindo o relâmpago que se

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Page 507: Magna Veritas - Tiago José Moreira

seguiu. As garras de Shiva foram mais ágeis, atingindo a barriga do

Malaki, rasgando-lhe do ventre ao pescoço, quase o partindo em dois. O

sangue celeste espirrou sobre o monstro, que então se pôs em minha

direção.

Eu tentava correr o mais rápido possível pela mata, mas o próprio

Velho me atrasava, incapaz de acompanhar meu passo. Karina já nos

ultrapassava, quando senti algo se agarrar aos meus pés. Eu caí, largando o

Velho, mas Karina pegou na mão dele e continuou correndo. Olhei, para

trás, vendo Shiva se aproximar, correndo como um gorila, usando os longos

braços como se estivesse sobre quatro patas. As plantas cresciam e criavam

espinhos sobre mim, enroscando-se em minhas pernas. De repente, as

plantas me ergueram pelas pernas, seus espinhos penetrando na carne de

meus pés. Uma árvore ao lado se moveu, mais cipós emergindo dela e

agarrando meus pés, enquanto eu era erguido de cabeça para baixo. O urro

de Shiva ecoou, conforme a criatura se aproximava rapidamente,

mostrando presas e garras, enquanto seus olhos ardiam, vermelhos de ódio.

O monstro saltou, pronto para me despedaçar em pleno ar. Antes

que suas garras me tocassem, porém, uma forma brilhante se chocou com

ele, emergindo das trevas da mata. Shiva caiu, enquanto Lorde Asphael

avançava novamente para atingi-lo com a espada, que ainda brilhava

intensamente. A lâmina traçou um caminho do alto para baixo, na direção

do pescoço do demônio, mas o monstro aparou o golpe com o próprio

braço. O choque da lâmina com o braço de Shiva fez com que as

rachaduras nela apenas se intensificassem. O Grande Lorde agarrou a perna

de Lorde Asphael e, num pulo, se pôs em pé, erguendo o Arcanjo. Então,

como se Asphael fosse um pedaço de pano, Shiva correu contra uma

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Page 508: Magna Veritas - Tiago José Moreira

árvore, usando o corpo do Arcanjo para golpear o tronco da mesma.

Com o impacto, Asphael perdeu sua arma, e o tronco se partiu como se

fosse um graveto. Shiva avançou contra uma segunda árvore, mais uma vez

balançando o corpo do Arcanjo para atingi-la. Eu tentava desesperadamente

me livrar dos cipós que me agarravam, quando então Shiva bateu Asphael

contra a árvore que me erguia. A árvore tombou, me jogando contra o chão.

Shiva ergueu Lorde Asphael para mais um golpe contra as árvores.

Em meu desespero para fugir. Vi alguém correr pela mata a passos

desesperados, em nossa direção. Absolon emergiu das sombras, sua espada

prateada em mãos, e avançou contra o demônio, atingindo-lhe no tendão da

perna. O golpe, porém, sequer fora capaz de penetrar no couro grosso de

Shiva.

Shiva se voltou para Absolon, imediatamente largando Asphael e

desferindo um soco com as costas da mão. O golpe atingiu a cabeça do

jovem Princeps, que desmaiou imediatamente. O corpo do Princeps caiu

inerte, próximo à arma de Asphael, enquanto sua espada escorregou no

chão, chegando ao meu alcance. Infelizmente, Shiva agora punha seus

olhos na minha direção. Peguei em vão a espada de Absolon, mas antes que

pudesse usa-la, um trovão me ensurdeceu. Fabrizia, escondida na mata,

agora avançava. Desarmada, ela usava seus poderes para distrair o monstro,

disparando relâmpagos. Shiva se virou para ela, quando então Asphael

agarrou o monstro por trás.

“Os outros estão adiante! CORRAM!”, gritou Lorde Asphael, já

sem forças, tentando segurar o demônio.

Usando a espada de Absolon, cortei o que restava dos cipós e

comecei a correr. Fabrizia me alcançou, segurando minha mão, e ambos

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Page 509: Magna Veritas - Tiago José Moreira

corremos pela mata, numa direção diferente da que Karina tinha

tomado antes. Talvez pudéssemos despistar o demônio, eu pensava. Ao

meu lado, Fabrizia corria, mas fraquejando. A chuva podia esconder suas

lágrimas, mas ela chorava intensamente.

Foi quando atrás de nós Shiva se livrou de Asphael e, com um

golpe preciso, atingiu a face do Arcanjo com suas garras. O sangue de

Asphael se espalhou, e finalmente o Arcanjo tombou. Shiva nos fitou,

urrando, mas para meu desespero correu na direção que Karina tomara.

Parei imediatamente. “Vamos atrás dele!”, gritei.

“O quê?”, questionou Fabrizia.

“Precisamos ir!”, avisei, tomando a frente. Mesmo sem forças, com

os pés feridos, eu corria, ignorando cansaço, dor e medo. Fabrizia hesitou,

mas me seguiu. Quando passamos pelo local em que nossos companheiros

caíram, eu pude ver o rosto dilacerado de Asphael, enquanto Fabrizia

hesitou uma segunda vez ao ver o corpo inerte de Achille Absolon. Mas

precisávamos seguir em frente.

Correndo pela escuridão da mata, logo Shiva sumiu de nossas

vistas. Continuamos seguindo aquela direção, sem saber onde estávamos

indo. Já nos julgávamos perdidos, quando luzes adiante nos indicavam que

a batalha continuava adiante. À frente, um espectral fogo dourado se

misturava ao azul de chamas celestes, enquanto Samuel e Ansgar uniam

forças para criar uma área protegida. Atrás dos mesmos, o Velho e Karina

estavam caídos no chão, presos por cipós de forma semelhante ao que

ocorreu comigo.

Urgi para que Fabrizia apressasse o passo. Enquanto isso, Shiva

avançava, ignorando tanto chamas purificadoras como o fogo espectral.

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Page 510: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Seu pêlo queimava, mas sua carne nada sofria. As garras do monstro

atacaram primeiro o Venator, que tinha liberdade de ação dentro do círculo

de chamas. Ansgar desviou, avançando em seguida com a espada

flamejante. Antes que o Venator sequer atingisse o oponente, porém, Shiva

penetrou as garras de ambas as mãos na barriga do Venator. Puxando as

mãos, o monstro arrancou as tripas de Ansgar. O Venator gritou enquanto

suas tripas se espalharam pelo chão. Em seguida, um golpe final de Shiva

atingiu sua mandíbula, arrancando-a violentamente. O grito cessou, e o

corpo de Ansgar tombou.

Eu e Fabrizia tentávamos dar a volta para chegar a Karina e ao

Velho, na tentativa de liberta-los dos cipós. Porém, vimos uma sombra

emergir da mata, chegando à Celestial e seu protegido antes de nós. Lo

Wang surgiu cortando os cipós precisamente com sua lâmina negra.

Com as chamas celestes morrendo, Shiva agora se voltava ao autor

do fogo espectral. Samuel recuou, o que fez com que as chamas douradas

desaparecessem. Shiva avançou, e o Sancti aproveitou para tentar perfurar

o peito do monstro. A espada atingiu seu alvo, mas o couro grosso apenas a

fez se desviar para o lado. Avançando, Shiva atingiu o estômago de

Samuel, fazendo suas garras emergirem pelas costas do Sancti. O monstro

ergueu o braço, com o Celestial preso a ele e gritando de dor, e urrou.

Lo Wang ajudou Karina e o Velho a se erguerem, colocando-os

para correr em nossa direção. Shiva fez um movimento rápido com o braço,

jogando Samuel longe, e então se virou para o velho, emitindo mais um

urro.

“Foi um prazer conhece-los”, disse Wang, a máscara demoníaca

cobrindo-lhe o rosto. “Agora corram!”.

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Page 511: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O demônio-tigre fitou Lo Wang, preparando-se para desferir o

golpe fatal. Lo Wang, porém, largou sua arma apontando ambos os braços

na direção de Shiva. Das trevas, mais e mais tentáculos emergiam.

Dezenas, talvez centenas. Eu sentia o Kage usar toda a sua energia naquele

último esforço. Shiva avançava, rompendo os tentáculos com facilidade

tremenda. Ainda assim, para cada tentáculo destruído, outros mais surgiam.

Embora não pudesse parar o monstro, Wang agora se sacrificava para

atrasa-lo. Shiva avançava pela selva de tentáculos, lentamente, mas

inexoravelmente.

E nós continuávamos a correr. “VÃO EM FRENTE!”, gritei,

diminuindo o passo, não mais agüentando a dor dos meus pés feridos.

“Philipe!”, gritou Karina, parando.

“Não parem!”, ordenei. Felizmente, Fabrizia continuava em frente,

levando o Velho consigo. Eu tentava acompanha-los, mas ficava cada vez

mais para trás. Karina, preocupada comigo, insistia em me acompanhar.

Atrás, eu senti um poder imenso se manifestar. As próprias trevas

que seguravam Shiva agora avançavam contra Lo Wang. Centenas de

tentáculos de escuridão traíram seu criador, enroscando-se nas pernas e

braços do Kage. Então, os tentáculos criaram dentes e espinhos, penetrando

na carne de Lo Wang. Conforme os tentáculos se desenrolavam e se

soltavam do corpo do Kage, levavam consigo sua pele. O corpo dilacerado

caiu, e o urro de dragão ecoou novamente. A terra tremeu com seus passos

uma vez mais.

Fabrizia já estava muito à frente, mesmo com o Velho a atrasando.

Atrás, a força dos passos se tornava mais e mais intensa.

“Philipe, vá!”, gritou Karina, chorando. Ela então parou de correr.

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Page 512: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Karina!”, gritei, parando pro um instante.

“CORRA!”, ela pediu em desespero, sacando a pistola.

Ela ia atrasa-lo? Eu não podia parar para pensar... Mesmo com meu

coração me implorando para ficar, continuei a correr. O som de tiros

seguidos ecoou. Shiva avançou sobre quatro patas, correndo como um

gorila, praticamente impenetrável às balas. Ele passou por Karina sem

perder velocidade, sem precisar parar. Suas garras cortaram o peito da

Supervivente de lado a lado, o sangue dela apenas servindo para sujar mais

um pouco a face do monstro. Ele prosseguiu. Shiva vinha até mim.

A mata a frente dava lugar a um descampado. Um relâmpago

revelou Fabrizia e o Velho não muito distantes à frente. Um barranco

estava adiante, e além dele, a favela, mas não era o mesmo lugar de onde

partimos. Fabrizia parou diante do barranco, sem saber o que fazer. Atrás

de mim, eu sentia o monstro se aproximar. Fabrizia ergueu a mão, e ouvi

estrondos, conforme raios caíam dos céus, sobre o demônio. Os passos

apenas se aproximavam, porém. E, finalmente, ele me alcançou.

Senti o corpo do demônio trombar com o meu, me jogando para a

frente. Caí violentamente, com o peito no chão. O monstro continuou

avançando, e senti-o passar por cima de mim. Suas patas pisaram

violentamente em meu peito, forçando todas as toneladas de seu corpo

contra o meu tórax. Minhas costelas se partiram, penetrando meus órgãos

internos. Num instante, a respiração se tornou impossível, conforme meus

pulmões se enchiam de sangue. Senti o calor do sangue fluir pela minha

boca e invadir meu peito. Minha mente se apagava, enquanto eu tentava

força-la a permanecer desperta. Abri os olhos, tentando me curar, mas

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Page 513: Magna Veritas - Tiago José Moreira

minhas energias já se esgotavam, possibilitando apenas manter-me

desperto, sentindo meu corpo morrer.

Eu pude ver a luz de um relâmpago antes mesmo de conseguir abrir

os olhos. E a voz dele ecoou em minha mente, causando ainda mais dor ao

meu corpo alquebrado. Ele ria.

Adiante, eu vi o demônio se erguer diante de Fabrizia, suas garras

preparadas para um golpe certeiro e mortal. Com o que me restava de

forças, eu me arrastava na direção deles, mesmo sabendo que nada poderia

fazer. Fabrizia fechou os olhos, se pondo entre o Velho e Shiva, apenas o

barranco atrás deles. Shiva urrou.

E então, algo luminoso veio descendo dos céus, gritando em grande

velocidade. A espada de Asphael Veritas atingiu as costas do demônio, mas

não era Asphael que a portava. Era Absolon. A lâmina finalmente se

quebrou com o impacto, mas o golpe foi forte o suficiente para jogar Shiva

à frente. Então, todos os quatro, Shiva, Absolon, Fabrizia e o Velho, caíram

no barranco adiante.

Arrastei-me até a borda do barranco, já não suportando as dores em

meu corpo. Finalmente, minha força de vontade se esgotava, e meus braços

fraquejaram. Eu nada mais podia fazer, a não ser ver os eventos.

Abaixo, eu vi a favela. A chuva provocava desmoronamentos nos

paredões de lama do barranco. Shiva e Absolon eram levados pela corrente

de lama, através de uma escadaria que chegava a uma ruela mais abaixo.

Eu via o corpo do Princeps bater contra os degraus violentamente,

quebrando-lhe ossos. Fabrizia e o Velho, porém, caíram sobre uma grande

poça de lama. A Xamã se esforçava em erguer o pobre homem, que estava

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Page 514: Magna Veritas - Tiago José Moreira

quase se afogando na lama. O Velho parecia ferido, talvez com a perna

quebrada.

O Princeps e o demônio finalmente pararam na ruela abaixo. A

mão de Absolon ainda segurava firmemente o cabo sem lâmina da espada

de Asphael. Caído, ferido, o jovem nada podia fazer a não ser ver Shiva

erguer-se. Pelo alto do barranco, vi a procissão de possuídos e Almas

Condenadas se aproximar, vinda das ruelas e casas próximas. Os céus

acima urravam, jogando relâmpagos sobre a terra. Shiva fitou o corpo de

Absolon, erguendo a mão e mostrando as garras a ele.

Houve então um relâmpago e um estrondo, como nenhum raio ou

trovão poderiam gerar. A forma luminosa de Asphael Veritas desceu dos

céus numa velocidade que eu mal podia acompanhar. Unindo as mãos num

golpe poderoso, ele caiu sobre Shiva, fazendo a ruela rachar com o

impacto. Ao redor, vidraças se partiam, e uma parede próxima tremeu.

Shiva se virou para o Arcanjo, avançando com as garras a postos. A mãos

do Arcanjo agarraram os pulsos de Shiva, impedindo que as garras o

tocassem. O impulso do demônio, porém, jogou Asphael contra uma

parede, ruindo-a e fazendo cair no chão, Shiva sobre ele. Com um chute

poderoso, o Arcanjo fez o demônio recuar, e então Asphael se ergueu.

Ele não era o Asphael calmo de antes. Mesmo em Forma Celeste,

sua face desfigurada, cega de um olho, extravasava fúria. Mal o demônio

recuou, Asphael avançou, seus próprios punhos brilhando intensamente,

atingindo a face do demônio. Shiva golpeou o peito de Asphael, jogando-o

contra a multidão possuída que agora já alcançava a ruela onde duelavam.

O corpo de Asphael derrubou alguns homens e almas, e então os

Condenados começaram a saltar sobre ele, usando espadas e lanças contra

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sua pele. Ignorando as criaturas, Asphael, se ergueu, correndo na

direção de Shiva, seus punhos fechados, prontos para o ataque. Não sei se

foi um trovão ou o impacto, mas a terra tremeu. Era como se um homem

socasse uma rocha, porém, pois a cada golpe ecoava um estrondo, e os

próprios punhos de Asphael se cortavam com os golpes, revelando carne

viva. As garras de Shiva mais uma vez se aproximaram do rosto do

Arcanjo, mas este escapou, atingindo um soco poderoso contra a mandíbula

do demônio. Shiva recuou mais, dando espaço para outro golpe. Porém,

antes que mais um estrondo se seguisse, desta vez foi Shiva quem

conseguiu segurar os pulsos do adversário.

Segurando o oponente firmemente, Shiva arremessou Asphael

contra um casebre. A casa ruiu com o impacto, e Asphael foi soterrado nos

destroços. Shiva, porém, continuou avançando, as almas e possuídos dando

espaço para que seu Lorde finalizasse o inimigo. As garras do monstro

penetraram nos destroços, puxando o corpo de Asphael. O Arcanjo ainda

estava consciente, tentando lutar, mas as garras penetraram nos músculos

de ambos os seus braços, enquanto Shiva os segurava firmemente.

O demônio urrou novamente, erguendo Lorde Asphael Veritas para

o alto como se fosse um troféu. As mandíbulas de Shiva se abriram, seus

olhos brilhando intensamente, e suas presas se fecharam ao redor da cabeça

do Arcanjo. O crânio do Celestial se partiu, seu sangue se espalhando numa

explosão vermelha. Lorde Asphael estava morto.

O corpo de Asphael foi finalmente liberto, caindo violentamente no

chão. Sua forma já começava a se desfazer, e eu pude sentir seu poderoso

espírito. Porém, Shiva continuou ao lado do corpo, seus servos mantendo

distância considerável. O demônio abriu os braços e ergueu a cabeça em

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concentração. Eu podia sentir o espírito de Asphael agonizar, enquanto

a vontade do demônio o consumia pouco a pouco. Tentei me mover, mas o

corpo não obedecia. Minhas energias tinham se esgotado. Shiva devorava o

alma do homem mais nobre que já conheci.

Um grito desesperado se seguiu. Absolon corria, por entre

Condenados e possuídos, empunhando a espada quebrada do Arcanjo. Eu

sentia o espírito de Asphael se contorcer em dor, mas então o jovem

Princeps direcionou o que restava da lâmina contra a articulação do joelho,

atrás da perna de Shiva. Tamanho foi o impacto que o braço direito de

Absolon se quebrou. O Celestial caiu no chão com o impacto, seu braço se

contorcendo numa direção normalmente impossível. Shiva, porém, não só

perdeu o equilíbrio, como também a concentração. Por um instante, senti o

espírito de Asphael se libertar das mandíbulas espirituais do tigre. No

momento seguinte, a alma se fora, escapando da horrenda Obliteração.

O olhar de Shiva se voltou ao Princeps caído ao seu lado. O

demônio urrou de ódio, mas então se voltou para outra direção. Escadaria

acima, Fabrizia tentava escapar com o Velho. “CHEGA!”, a voz do

monstro ecoou em minhas mentes, e a dor foi suficiente para fazer Fabrizia

largar o velho e levar as mãos à cabeça. O Velho, com a perna quebrada,

caiu no chão, enquanto Fabrizia tentava controlar a dor. Shiva ignorou

Absolon, correndo na direção do velho, sua fúria fazendo a lama se erguer,

abrindo passagem para ele. Imediatamente, as legiões profanas do demônio

caminharam na direção do Princeps caído.

Fabrizia gritou, e a energia dentro dela explodiu. Numa

demonstração de poder como eu jamais tinha visto antes, os céus

mandaram raios constantes contra o demônio-tigre. O chão rachava e se

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partia, segurando os pés do monstro. Colunas de barro se erguiam à

frente, forçando-o a diminuir seu avanço. O próprio vento criava ondas de

lama, que batiam vigorosamente contra o corpo do monstro. Porém, Shiva

prosseguia. Nada podia detê-lo.

Memórias surgiam em minha mente. Frases que nos foram faladas.

Ou que eu mesmo falei. “Nenhum de nós vai morrer”.

Absolon se erguia, seu braço direito arruinado, mas o esquerdo

ainda empunhando o cabo da espada arruinada. Os Condenados se

aproximavam dele.

“Todos devemos crescer, Mestre Nicodemus. É duro, mas é o

caminho da vida e da sobrevivência. Todo jovem se torna adulto”.

Shiva atravessou a última barreira, seus passos se tornando apenas

mais poderosos, seus olhos brilhando intensamente como se fossem os sóis

do próprio Inferno.

“Seu problema, jovem Absolon, é que não entende que é preciso

sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma”.

Absolon avançava, derrubando os inimigos à sua frente, suas

Faixas de Luz mais uma surgindo em suas costas. Seus pés se ergueram do

chão, seu corpo se lançando contra os ventos da tempestade.

“Vocês esperam superar a astúcia e os dons dos Grandes Lordes

do Inferno?”, questionou a voz de Lúcifer.

Finalmente, Shiva chegava a Fabrizia. A Celestial tentou se afastar,

mas o corpo do monstro se chocou com o dela. A moça foi arremessada a

distância, batendo violentamente contra o barranco de barro.

“Se soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde, teríamos a

coragem de puxar nossas espadas e avançar, sem medo da morte?”.

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E Absolon avançava, seu corpo brilhando dourado, deixando

para trás os servos do demônio. Na mão esquerda, ele segurava firmemente

o que restava da espada de um grande homem. Em sua face, medo e raiva,

expressados num grito que o impulsionava à frente. Shiva agarrou o Velho

pela cabeça, erguendo-o. O Velho gritou de dor. “Você quer este LIXO?”,

perguntou o demônio.

E a cabeça do velho se desfez numa explosão vermelha, esmagada

pelos dedos e garras poderosas do demônio.

Eu senti algo sumir. Senti uma alma poderosa ser tragada para um

vácuo longínquo. Um grito de dor ecoou nos mundos espirituais,

expandindo-se por todo o mundo. O grito era do Velho. E toda a grandeza

que se escondia dentro dele desapareceu.

Diante daquela última morte, a vontade de Absolon finalmente

fraquejou. Fabrizia, ainda consciente, mas ferida, apenas pôde observar o

Princeps cair de joelhos na lama, suas asas desaparecendo, logo adiante do

demônio. O cabo da espada finalmente caía de sua mão.

Shiva fitou o jovem, e abriu os braços para mostrar suas garras,

enquanto emitia seu último urro. O urro do dragão ecoou.

Fechei meus olhos, sentindo apenas aquela grande escuridão e o

sabor da derrota. Eu sabia que o próximo a morrer era Achille Absolon. O

desespero trouxe uma última voz à minha mente.

“Quero que se lembrem quando chegar o momento...”, disse

Senhor Urias, em Libraria.

Houve silêncio, e senti algo. Não havia mais chuva.

“Quando chegar o mais desesperador dos momentos...”

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E senti algo invadir aquela escuridão espiritual. Algo brilhante

como um Sol. Minha cabeça se ergueu de repente, e meus olhos se abriram.

“...acontecerão maravilhas...”.

Faixas brilhantes de luz agarravam os braços de Shiva, puxando o

monstro para trás. E onde faixas o tocavam, a carne do demônio queimava.

O tigre urrou agora, mas agora em desespero.

“...e vocês saberão que não estão sozinhos”.

A forma dourada que flutuava nos céus, logo atrás de Shiva,

brilhava como um Sol, dezenas de faixas luminosas serpenteando os céus,

saindo de suas costas. Embora a tempestade furiosa ainda caísse ao redor,

sobre nós o céu estava limpo e estrelado, e a luz dAquele diante de nós era

tão forte que queimava os Condenados e expulsava os espíritos que

tomavam os mortais de Cerro-corá. Às dezenas, as pessoas corriam, sem

entender os acontecimento. Apesar da armadura dourada e do elmo branco

reluzente que cobria seu rosto, eu reconhecia Aquele diante de nós. Aquele

que empunhava uma espada de fogo. Aquele que é como Deus.

O Arcanjo Miguel ergueu Shiva no ar, puxando-o pelas faixas, que

agora também seguravam-no penas pernas, pelo pescoço e pela cintura. O

monstro se debatia em vão, enquanto o fogo dourado das faixas continuava

a queima-lo. O Primus girou seu corpo no ar, fazendo com que suas faixas

chocassem Shiva contra o barranco. A superfície íngreme se rompeu,

ruindo, enquanto Miguel puxava mais uma vez o demônio, se erguendo

mais ainda nos céus.

Imediatamente, eu senti meu corpo se fortalecer, diante da aura

daquele Celestial. As faixas trouxeram o demônio para próximo do corpo

luminoso do Primus, e então os olhos brilhantes de ambos se encontraram.

519

Page 520: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Shiva emitiu seu último urro, enquanto o Arcanjo Miguel erguia a

espada de chamas, desferindo um único golpe.

O último urro de Shiva subitamente cessou, enquanto seu corpo,

partido em dois, caía em direção ao solo. O monstro se desfazia em cinzas,

que queimavam diante da luz de Miguel. Shiva se desfez totalmente antes

que atingisse o chão.

Abaixo, eu vi Fabrizia correr em direção a Absolon, abraçando-o e

chorando em seus braços. Absolon segurou Fabrizia firmemente com o

braço esquerdo, também se consolando junto a ela.

Eu senti alguém se aproximar, a passos lentos. Sua mão tocou meu

ombro, emitindo um calor confortável e um brilho dourado. Virei-me para

fitar Samuel Fulmen, que carregava Karina, inconsciente mas já curada.

Acima, as nuvens se fechavam mais uma vez, mas agora a tempestade caía

mais fraca, os trovões se tornando infreqüentes.

“E os outros?”, perguntei.

“Parecem estar vivos, seus corpos não se desfizeram”, respondeu o

Sancti, sentindo dores ainda por ferimentos que preferiu manter para

poupar energia e curar os demais.

“Nós falhamos”, murmurei, tentando me levantar. Minhas costelas

ainda estavam quebradas, meu corpo ainda doía, mas eu tinha forças para

me mover novamente.

Acima, a forma brilhante do Arcanjo Miguel nos fitava

silenciosamente. Então, o Primus desceu, suavemente, até parar a poucos

metros do solo, diante de nós. “Eu sinto muito”, disse o Arcanjo, sua voz

ecoando em nossas mentes, emitindo tristeza mas nos dando conforto, “Eu

não pude chegar antes”.

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“Ninguém poderia”, murmurei, abaixando minha cabeça, tanto

por tristeza como para evitar olhar diretamente um ser tão majestoso, “esta

era a nossa missão, nosso fardo. Nós falhamos”.

“Ninguém pode carregar tamanho fardo sozinho, Arcanjo

Nicodemus dos Veritatis Perquiratores”, respondeu o Arcanjo. “Reúna seus

amigos, eu preciso saber o que ocorreu aqui”.

“Temo que está tudo perdido”, respondi, deixando-me levar pelo

desespero.

“Do vazio do desespero pode vir a começo da grandeza, Arcanjo

Nicodemus”, disse Miguel, sentindo meus ferimentos restantes se fecharem

sozinhos, sem a necessidade de eu me concentrar ou gastar minhas próprias

energias. Também Samuel e Karina se recuperavam, e a jovem lentamente

abria seus olhos. Então, o Arcanjo continuou: “E eu sinto que a missão de

vocês ainda não acabou. Reúnam seus amigos, eu os curarei, e então

venham comigo”.

“Com você?”, perguntei, surpreso.

“Sim”, respondeu o Primus, “Esta noite, nós iremos juntos ao

Firmamento. O Éden precisa saber o que ocorreu aqui. Os Primi desejam

vê-los”.

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Page 522: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 20: Os Primi se Reúnem

Uma brisa fria soprava do norte, enquanto singrávamos os céus

rumo a oeste. O céu estava estrelado acima, com uma enorme lua brilhando

iluminando a noite com luz prateada. Havia poucas nuvens, e as

atravessávamos como se fossem uma névoa suave e gentil. Ao leste

distante, eu sentia a força do Sol que ali nasceria dentro de algumas horas.

Após deixar aquela tempestade, a destruição e o Rio de Janeiro para trás, as

energias do Éden nos fortaleciam, mas ainda não eram suficientes para

restabelecer nossos espíritos.

Minha alma estava ferida e meu orgulho dilacerado pelas garras de

Shiva. Eu sentia um gosto amargo na boca, e uma sensação sufocante em

minha garganta. Havia apenas frio, e meu corpo parecia tão pesado, tão

cansado, que mesmo voar pelos céus era um esforço sem igual. Eu queria

cair, pois a glória do Éden não me parecia assim tão grande. Olhei meus

companheiros, que voavam comigo pelos céus do Paraíso, e via seus rostos

sofridos e suas roupas rasgadas por garras e ainda ensangüentadas, sujas de

lama. Nenhum parecia estar melhor do que eu, e no fundo eu me ressentia

ainda mais por não poder conforta-los.

E, ainda assim, prosseguíamos, rumo ao vazio negro do céu

noturno. Não éramos erguidos pelas nossas próprias forças, mas pela luz

dAquele à nossa frente. Como um Sol ardente, o Arcanjo Miguel nos

guiava pela escuridão da noite, sua armadura e elmo reluzindo dourados.

Tão intensa era sua aura, que ele parecia estar em chamas e o brilho de suas

faixas de luz parecia se unir para formar asas reais.

O Primus pouco tinha falado desde que nos salvou das garras de

Shiva. Ao perguntar o que tinha acontecido, eu pude falar apenas de nossas

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Page 523: Magna Veritas - Tiago José Moreira

falhas, mas de alguma forma, eu senti seus olhos dourados fitarem

minha alma e seu poder tocar minha essência. Eu podia sentir que ele agora

sabia de tudo, e que sua mente estava tão cheia de questões quanto as

nossas. Ao contrário de nós, ele era como Deus, e sua força não diminuiu.

Agora, na mais negra das horas, o Arcanjo era tudo o que nos dava direção

e propósito.

“Estamos próximos”, a voz do Arcanjo ecoou em nossas mentes,

finalmente quebrando seu silêncio. E à frente, a luz da Lua se refletia em

uma formação densa de nuvens. Com a nossa aproximação, a luz dourada

de Miguel se misturou com o prateado lunar, e então o Primus penetrou

naquela névoa densa.

A visibilidade se tornou quase nula, mas o brilho intenso do

Arcanjo ainda servia de guia. Seguindo a luz dourada, nós então nos

erguemos acima das nuvens, que mais pareciam um plácido oceano. E, em

meio àquele mar nos céus, nós vimos uma ilha.

Meus olhos se arregalaram diante da visão. Nunca em minha vida

pensei que viria até aqui. E jamais poderia imaginar que um Primus seria

meu guia. Banhadas pela luz prateada da Lua, torres se erguiam apontando

para o céu acima. À base das torres, uma ilha rochosa parecia emergir-se do

mar nebuloso, criando grandes escarpas. Uma muralha prateada cercava

toda a fortaleza. Diante daquela imagem surreal, senti minha alma se

encher de energia e poder, como se eu descobrisse algo ininteligível e

transcendente. A Fortaleza Erguida pela Fé. O Verdadeiro Reino dos Céus.

O Firmamento.

O Arcanjo Miguel prosseguiu, deslocando-se rapidamente logo

acima do mar de nuvens, desta forma criando grandes ondas. As pontas de

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Page 524: Magna Veritas - Tiago José Moreira

suas faixas de luz às vezes tocavam a superfície nebulosa, traçando

pequenos sulcos. Não eram necessários palavras nem pedidos. Nós o

seguimos, sabendo que o Firmamento nos chamava. E, uma vez mais senti

uma chama tímida alimentar meu espírito. Nós seguimos o Arcanjo-Sol

através do oceano celeste. Elevamo-nos acima das escarpas e muralhas, e

então, finalmente pousamos num jardim logo adiante da entrada de uma das

grandes torres, imediatamente assumindo nossas formas humanas, como se

o Aspecto Celeste fosse algo extremamente difícil de se manter naquela

situação.

O Arcanjo nos fitou enquanto suas faixas de luz desapareciam e seu

brilho deixava de existir. Assumindo seu aspecto humano, Miguel removeu

seu elmo, revelando um rosto masculino, de formas angulares, sem

qualquer imperfeição ou marca. Seus cabelos eram curtos e lisos, de cor

castanha clara, quase loira. Seus olhos castanhos nos fitaram, e então ele

falou, não como um trovão ou um deus, mas uma pessoa comum, com

preocupações e medos: “Aqui estamos, amigos, para prever o destino e

enfrentar nossos medos. Eu posso sentir as provações pelas quais passaram

e conheço a dor que sentem. Mas vocês ainda não falharam”.

Silêncio. Talvez ele esperasse alguma resposta nossa, ou talvez

apenas nos desse uma pausa para assimilarmos suas palavras. De qualquer

forma, o Primus continuou, enquanto, à distância, eu via dois Arcanjos, um

homem e uma mulher, se aproximarem, caminhando pelo jardim. “Vocês

confrontaram um dos males ancestrais, um ser cujo poder estava muito

além de qualquer limite. E, no entanto, vocês foram bem-sucedidos. A

verdadeira missão não era vencer este mal, mas nos trazer a verdade. E

vocês conseguiram, nos trouxeram a Revelação”.

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Page 525: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Fitei o Arcanjo, enquanto os outros dois que se aproximavam

finalmente chegaram até. “E o que virá agora?”.

“Nós veremos”, respondeu o Primus, então se voltando aos dois

recém-chegados: “Dêem a eles roupas limpas e providenciem-lhes

descanso”.

“Sim, meu senhor”, respondeu, curvando-se ligeiramente, um dos

Arcanjos, a mulher, que tinha longos cabelos negros e uma pele escura,

vestindo um longo vestido branco, com as costas nuas, e armada com uma

espada em sua cintura e um broquel em seu braço esquerdo. Os dois

pediram que nós os seguíssemos, enquanto Miguel permaneceu parado, nos

fitando com seu olhar penetrante e calmo.

Enquanto caminhávamos em direção à torre, a Arcanja se voltou

para nós. “Perdoem-me a aproximação rude e a incômoda curiosidade, mas

parece que vocês passaram por grandes provações”.

Silêncio. Eu não sabia o que falar. O que dizer? Dizer que

confrontamos os senhores do Inferno? Dizer que tivemos a chance de

salvar a alma de um Primus e falhamos? Não havia o que dizer. Eu sentia

vergonha. “Nós lutamos contra aquilo que não podíamos vencer”.

“E estão vivos para contar a história”, disse o outro Arcanjo, sua

voz mais calma e sussurrante. “Qual é seu nome, Serafim?”, ele perguntou.

“Eu sou Philipe Nicodemus, mas não sou nenhum Serafim”,

respondi. “Sou Querubim, dos Veritatis Perquiratores”.

Ambos pararam para nos fitar. Então, a mulher disse: “Saudações,

Arcanjo Philipe Nicodemus, Serafim dos Veritatis Perquiratores. A

grandeza é difícil de se ver, especialmente quando o espírito se prende à

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Page 526: Magna Veritas - Tiago José Moreira

grandeza do adversário. Olhe dentro de si mesmo, e verá que ao chegar

à Montanha Erguida pela Fé, não é mais o mesmo que um dia foi”.

Eu parei, assim como meus companheiros, e fechei meus olhos,

prestando atenção em algo que eu antes não podia sentir. Nós... todos nós...

tínhamos excedido nossos limites. Minha luz interior agora brilhava mais

forte, assim como as luzes de meus companheiros. Eu fitei Karina, agora

uma Abençoada, e depois Achille, agora um Virtude. Samuel e Ansgar

agora eram Tronos, e Al-Malik agora seria chamado de Arcanjo. Fabrizia

se tornava uma Elohim, assim como Lo Wang.

“Perdoem-nos pela rudeza, peço novamente, pois não nos

apresentamos” disse a Arcanjo. “Eu sou Daena, Serafim dos Primordiais,

Guardião de Firmamento, e este é o Arcanjo Tistrya, Serafim entre os

Senhores do Trovão. É uma honra conhece-los”.

Tistrya, o segundo Arcanjo, nos fitou com seus olhos azuis. Sua

pele era morena, escurecida pelo contato constante com a luz do Sol, e seus

cabelos ruivos caíam por sobre seus ombros. Ele tinha uma barba curta, e

vestia pouco além de uma toga e, por cima da mesma, um cinto e um

peitoral de couro. Em sua mão direita, portava uma lança com a lâmina de

prata. “Eles não estão interessados em saudações, Daena”, ele disse ao

companheiro, então se dirigindo a nós, “vocês buscam compreender tudo

pelo que passaram. Eu não sei quais desafios venceram e quais obstáculos

os derrubaram, jovens, mas saibam que estão na Montanha que é Movida

pela Fé, e aqui tudo pode ser curado, seja o corpo ou a alma”.

“Na verdade”, eu interferi, sem conseguir fitar nenhum dos

Arcanjos diretamente nos olhos, “eu gostaria de saber... O que fazem aqui?

O que é o Firmamento? Por que estamos aqui, realmente?”.

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Page 527: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Daena sorriu, respondendo: “O Firmamento, jovem Serafim, é

um refúgio, mas também um testamento para o poder de nossos propósitos.

Aqui não é o Éden, mas algo à parte, um local criado para refletirmos e

encontrarmos nossos propósitos. Eu e Tistrya, como muitos outros,

carregamos eras de experiência conosco, a ponto de nos sentirmos

pequenos diante de tudo o que vimos e presenciamos. Estamos aqui para

descansar, até que sejamos necessários uma vez mais para aqueles que

ainda não precisam descansar. Mas a terceira pergunta, meu amigo, apenas

Sheherevar-chamado-Miguel pode responder, mas nós podemos oferecer-

lhes um pouco de descanso, para talvez refletirem na resposta”.

Baixei a cabeça, lembrando de um título que ouvi há muito tempo.

Sem querer, eu sussurrei: “Prisci”. Notando que a palavra escapara de meus

lábios, expliquei, talvez a mim mesmo, o significado da palavra: “Os

Antigos que Esperam”. Daena sorriu.

“Esperam pelo quê?”, perguntou Absolon.

“Que sejamos necessários”, respondeu Tistrya, virando-se para a

torre adiante. “E, enquanto a hora não chega, nós aqui vivemos nossa

eternidade, esperando o momento de juntar-nos àqueles de nosso tempo,

nos corredores da memória e do tempo”.

“Vocês esperam pela morte?”, perguntou Lo Wang.

Daena apenas sorriu, enquanto Tistrya caminhou em direção à

torre. A construção parecia brilhar sob a luz prateada da lua, erguendo-se a

quase cem metros do solo. Eu ergui minha cabeça para fitar o topo do

Firmamento, e vi aquela torre branca se destacar no céu estrelado. Era tão

pequena... parecia tão simples. E ainda assim, não conseguia imaginar algo

mais grandioso ou mais digno para ser o refúgio dos que vieram antes de

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Page 528: Magna Veritas - Tiago José Moreira

nós. Imagens de Oostegor vinham à minha mente e, inevitavelmente,

tornavam aquela construção minúscula por comparação. Mas, se Oostegor

era ostentação, tristeza e trevas, a pequena torre era banhada pelas luzes do

mundo, destacando-se na escuridão como um refúgio e não como um

palácio. Ela parecia frágil e bela, sublime e inspiradora. As qualidades de

algo pelo qual eu lutaria e pelo que eu morreria. Talvez ainda houvesse

algo a aprender ali. Talvez, apesar da amarga derrota, ali em frente

estivesse a última revelação que precisaríamos. Talvez ainda houvesse algo

a fazermos. “Vamos?”, ouvi Daena pedir, me tirando de minhas

divagações. Baixando a cabeça, a fitei nos dar as costas, seguindo o

silencioso Tistrya pelos caminhos que atravessavam os jardins do

Firmamento.

“Que escolha temos?”, perguntou Samuel Fulmen a si mesmo,

levando a mão ao pequeno crucifixo que levava numa corrente presa ao

pescoço.

“Ficar aqui?”, murmurou Al-Malik. “Há apenas derrota aqui, nada

mais. Mesmo neste lugar santo, há trevas nos céus, refletindo nossas almas

alquebradas. Mas se é desígnio de Deus nos forçar a caminhar em frente,

então eu seguirei em frente, não importa o quanto minhas pernas doam e

meu corpo fraqueje”. Tendo dito isso, o agora Arcanjo dos Cuique Suum

deu o primeiro passo.

“Caminhamos por nossa própria Via Crucis. Algo melhor nos

espera”, disse Samuel, que então segurou a mão de Karina, e ambos

prosseguiram, seguindo Al-Malik.

Os outros os seguiram, eu entre eles. Absolon e Fabrizia também

seguiam juntos, enquanto Lo Wang e Ansgar vinham atrás de todos.

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Page 529: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Ambos vestiam trapos ensangüentados, mostrando rasgos causados

pelas garras de Shiva. Na mão direita, Lo Wang portava sua lâmina. Na

mão esquerda, ele levava o que restava de sua máscara quebrada. Ao seu

lado, e tão silencioso quanto o Kage, o Venator prosseguia com um olhar

distante, como se sua mente ainda estivesse na Tempestade que ainda rugia

no mundo dos vivos. Eu olhei mais uma vez para a torre à frente, e

imaginei Asphael Veritas aqui, entre outros antigos milenares. Pensar no

Arcanjo fez com que lágrimas viessem em meus olhos. Lutando para conter

uma nova onda de tristeza eu segui em frente. Nós oito seguíamos em

frente, cada um lutando contra a fraqueza que nos tomava. Percorrer

aqueles caminhos em outra ocasião seria uma glória sem igual. Neste dia,

porém, era um esforço debilitante.

Por entre os jardins caminhávamos, e os portões da torre se abriam

adiante. Outros Arcanjos guardavam os portões, empunhando lanças, mas

vestindo apenas togas brancas e coroas douradas. Daena e Tistrya pararam

logo além dos portões, virando-se para fitar nossa silenciosa caminhada.

Meus pensamentos se silenciaram quando atravessei o umbral, fitando o

interior da torre. Mais uma vez minha mente trouxe imagens vistas na

Cidade Eterna de Lúcifer. Como em Oostegor, um grande salão de entrada

nos acolhia, longo e largo o suficiente para acomodar centenas. Grandes

colunas se erguiam até o teto, que estava a mais de seis metros de

comprimento. Com o comprimento de centenas de metros, o salão mais

parecia um grande corredor, e escadarias levavam a um segundo andar, que

era uma sobreloja, da qual era possível ver toda a movimentação que

ocorria no salão abaixo. No segundo andar, havia portões, que levariam aos

andares superiores.

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“Isto é... como Oostegor”, murmurou Ansgar, “como pode

ser...?”.

“Oostegor?”, murmurou Samuel, sendo o único de nós a não

percorrer os corredores do lar de Lúcifer Estrela-da-Manhã.

Eu fitei ao redor, meus olhos lacrimosos fitando as paredes e os

Arcanjos que nos observavam. Os vitrais multicoloridos pareciam emitir

luz própria, e as paredes brancas eram adornadas com plantas e flores. Um

tapete vermelho se estendia por todo o comprimento do salão, levando do

portão de entrada a um outro portão, no extremo oposto. Acima do portão

oposto, porém, estava uma tribuna, com 14 cadeiras, e acima das mesmas,

num nível superior, nove tronos, dispostos em grupos de três. Ainda acima,

num terceiro nível, um único trono, maior e majestoso, destacava-se acima

de todos os outros.

“Não, isto não é como Oostegor”, murmurei.

“Oostegor é um pálido reflexo deste lugar”, disse Al-Malik,

“Caminhamos por Al-Sirat e Dar Al-Thawab está diante de nós! Tirem seus

calçados, pois pisamos no mais sagrado dos lugares!”. Imediatamente,

lágrimas caíram dos olhos do Malaki, como se finalmente não pudesse mais

conter as emoções dentro de si. Ele se abaixou lentamente, liberando os pés

dos sapatos que calçava, e então pisando descalço no tapete vermelho. Em

respeito, fiz o mesmo, e notei que os outros logo repetiram o ato, talvez

apenas por não saberem como reagir diante do local em que nos

encontrávamos.

Enquanto retirávamos nossos calçados, percebi um outro Arcanjo

se aproximar de Daena e Tistrya. “Rashnu”, murmurou Daena, curvando-se

ligeiramente diante da aproximação dele. Tistrya deu passagem ao ancião,

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Page 531: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que então parou diante de nós, analisando-nos cautelosamente. “Eu sou

Yazata Rashnu, Seguidor de Vohuman, e eu vejo que são muitas as

respostas que buscam”.

“Eu sou o Arcanjo Philipe Nicodemus, Serafim dos Veritatis

Perquiratores”, respondi, tentando fita-lo, mesmo com meus olhos cheios

de lágrimas. “Nós buscamos encontrar o sentido de tudo pelo que

passamos”.

“Não”, respondeu Rashnu, seus olhos me analisando friamente,

“vocês buscam aquilo que os mantém em pé. Sigam adiante, ele os espera”.

“Quem nos espera?”, perguntei.

“Há julgamentos à frente, Arcanjo Nicodemus”, disse Rashnu,

dando-nos passagem. “Lá vocês encontrarão seu destino”.

“Por que vocês têm sempre de falar como se tudo fosse um

enigma?”, perguntou Absolon, erguendo a voz.

“Ele tem razão”, disse Samuel, apertando a mão de Karina.

“Precisamos saber o que vai acontecer. Por que esconder tudo?”

“Não somos peões num tabuleiro de xadrez”, continuou Ansgar.

“Precisamos saber que opções temos e quais são as conseqüências de

nossas ações! Não podemos mais caminhar cegamente. Estou cansado disso

tudo!”.

“Vocês conhecem suas opções”, disse Rashnu. “Ignorância é não

reconhecer isso. Vocês podem partir ou podem prosseguir”.

“Prosseguir? Rumo ao desconhecido?”, indagou Samuel. “Que

escolha há nisso?”.

“Não é assim em todas as grandes decisões de nossas vidas?”,

perguntou Tistrya. “Vocês podem partir e desistir. Ou podem continuar, e

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aí terão de confrontar vitória ou derrota. É apenas uma questão de

perseverança. Onde está sua fé, Celestial? Não carrega em seu pescoço o

símbolo de seu rei?”.

Samuel Fulmen levou a mão ao pequeno crucifixo que carregava

preso ao pescoço. Baixando a cabeça, ele pediu desculpas.

“Vocês querem respostas, mas eu não as tenho”, disse Rashnu,

“mas adiante há respostas, mesmo que não vejam aquelas que vocês

buscam. Eu sinto suas mentes em conflito, desacreditando os motivos pelos

quais lutaram. Esse é o trabalho do inimigo, o toque corrosivo do Inferno”.

Eu olhei para o portão no lado oposto do grande salão. Feito de

madeira e adornado com ouro e prata, eu pude sentir um poder maior

emanar dali. Eu fechei meus olhos, tentando apenas sentir, tentando

conhecer aquela força. E, nas trevas, eu vi. À frente havia uma figura de

fogo e luz, cercada de vida e água purificadora. E todo aquele poder nos

chamava, exercendo uma atração sutil e gentil. O toque de Al-Malik em

meu ombro quebrou minha concentração, porém.

Al-Malik nada disse, apenas tomou a frente com uma ansiedade

incomum. Rashnu sorriu.

“Uma vez um homem me contou uma história, há muito tempo

atrás”, disse Ansgar, olhando o Malaki. “Sobre como guerreiros viviam

para morrer e que suas missões só eram cumpridas quando morriam em

batalha. E como eles caíam sorrindo, pois sabiam que viveram e morreram

por uma causa”.

“O que quer dizer?”, perguntou Absolon.

“Que ainda não morremos”, disse Ansgar, pondo-se a seguir Al-

Malik.

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Absolon baixou a cabeça, pensativo, e então caminhou,

puxando consigo, gentilmente, Fabrizia.

Olhei para os que ainda ficavam. “Vão ficar aí?”, perguntei a

Samuel, Karina e Lo Wang.

“Estamos esperando nosso líder”, disse Lo Wang.

Sorri reflexivamente, sem pensar. Minha mente pesava, não

desejava sorrir. Mas por um instante eu sorria, mesmo sem perceber. Então,

caminhei também pelo grande salão. Lo Wang pôs-se a meu lado. Por um

momento, eu o fitei e comecei a analisa-lo. Como sempre, calado e

taciturno, o Kage prosseguia com determinação incomum. Pela primeira

vez, comecei a questionar o que realmente o fazia seguir em frente... De

todos, ele foi o que menos demonstrou sentimentos ou objetivos, se

comportando apenas como um soldado leal. “Wang”, chamei-lhe a atenção.

“O que deseja, Nicodemus?”, ele perguntou.

“Antes de invadirmos a reunião de vampiros, você disse em

comemorar e beber”.

“E ainda faremos isso, Nicodemus, quando tudo isto terminar”, ele

respondeu.

“E como espera que tudo isto termine?”, perguntei.

“O caminho do sábio não é meu caminho, Nicodemus. Eu não sei,

esta é uma resposta que se você não tiver, eu não terei. Eu não me preocupo

com o fim, apenas com o momento atual. Só há lamentos no passado e

incerteza no futuro. O tempo de agir é agora, para não lamentarmos

depois”.

“Entendo”, respondi.

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“Mas quando isso terminar, eu prometo uma grande

comemoração, com muitas luzes, música e dança”, ele continuou.

“Isso não parece muito com você”, eu disse.

“Aqui eu sou um mascarado, Nicodemus, uso a máscara de um

demônio e comando trevas. Mas para saber pelo que eu luto, eu preciso

também conhecer o oposto. Para usar as trevas como arma, eu preciso saber

o que é luz”.

“Você disse que não é um sábio, Wang. Não é o que vejo”.

“E não sou. Nenhuma dessas palavras é minha. Eu sou um

estudante, um servo. Morrer por uma causa é o único futuro que tenho, a

única maneira de pagar pelos crimes do passado. Então, que eu tenha uma

vida gloriosa e plena até lá”.

“Você pode sentir o que há à frente, Wang?”, perguntei, mudando o

assunto, mas ainda pensando nas palavras do Kage. De que crimes ele

poderia estar falando. Culpas do passado, ou crimes reais, cometidos

durante seu passado humano.

“Sei apenas que há um deles lá”, ele respondeu, “e que a cada

passo, mais vontade eu sinto de chegar àquele portão”.

Olhando ao redor, eu via os outros Arcanjos presentes, observando-

nos, vendo nossas faces cansadas e sujas de lama, cabelos ainda molhados

pela tempestade que ainda rugia no mundo dos vivos. Quanto mais o portão

adiante se aproximava, mais minha mente se enchia de dúvidas. Ainda

assim, menos minhas pernas pesavam, e com mais forças eu prosseguia.

“Essa é a força da fé”, a voz de Rashnu ecoou, vinda do outro lado

do salão. Ainda na mesma posição de antes, Rashnu agora estava tão

distante, mas sua voz ainda era forte como um trovão. “Sorriam ante as

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dificuldades, ou irão chorar! A eternidade é de vocês para viverem e

consertarem seus erros, ou para lamenta-los! Mas, por enquanto,

preocupem-se com o julgamento que os espera! Entrem de cabeças

erguidas. Fitem os olhos do juiz, não seus pés!”.

E, tendo o Arcanjo dito isso, o som de uma tranca metálica sendo

aberta reverberou, e o portão à frente se abriu, lentamente. Além dos

portões, havia uma penumbra gentil, quebrada pela luz do luar que entrava

pelos imensos vitrais. O som de água encheu nossos ouvidos, mas não era

uma terma que estava adiante. Era um jardim interno. Adentramos aquele

lugar com o olhar maravilhado, observando as árvores e flores, vibrando

com vida. Nas paredes, esculturas em altos relevos erguiam jarros, por onde

jorrava água. A água corria por canais por entre o jardim. Caminhos

também percorriam aquele lugar, mas todos passavam por ou levavam a

uma estrutura no centro: uma abobada erguida por colunas cilíndricas,

erguidas em pedra branca. Tochas iluminavam a pequena estrutura,

circundando-a e inundando-a de luz.

Os portões atrás de nós se fecharam, isolando-nos do resto da torre.

A maioria do grupo se virou para trás ao ouvir o som dos portões se

fechando, mas eu, Al-Malik, Lo Wang e Fabrizia mantivemos nossos olhos

centrados naquela estrutura adiante.

“Bem-vindos”, disse uma voz masculina, vinda da escuridão do

jardim. Viramos para fita-lo, e por um momento meus lábios se moveram,

prestes a questionar a identidade do homem. Nenhuma palavra pôde sair de

minha boca, porém. Nenhuma apresentação se fazia necessária.

Ele veio atravessando uma ponte de madeira, que atravessava um

dos canais. “Eu os estava esperando”. Nenhum de nós tentou usar qualquer

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poder para ver na escuridão. Aquilo não era necessário. Ele se

aproximava, conforme nossos olhos se acostumavam com a luz prateada,

que parecia ampliada pelos vitrais prateados. Não muito alto, mas vigoroso,

o homem vestia uma toga cinzenta, com detalhes prateados. Caminhava

com as mãos unidas à frente do peito, e seus olhos negros pareciam

transpor escuridão e invadir nossos pensamentos. De barba grossa, já

grisalha, e cabelos curtos, ele parecia nos conhecer. Eu não tinha dúvidas

que, com apenas um olhar, ele conhecia nossos pensamentos, nossas

aflições, nossas memórias e, principalmente, o peso que carregávamos. Não

poderia haver segredos para a mente de Vohuman-chamado-Fanuel, Lorde

dos Cuique Suum.

Al-Malik pôs-se de joelhos, mas antes que se curvasse diante do

Primus, este pediu que se erguesse. “Somos todos iguais sob os céus, Abd

Al-Malik. Somos todos servos aqui”, disse o Primus ao Malaki. “Aos

demais, eu sou Fanuel Vohuman, e sinto que há algo que desejam me

perguntar”.

O Primus se calou, esperando que perguntássemos. Nós nos

fitamos, como se cada um esperasse que outro fizesse uma pergunta.

Quando os olhos dos demais me fitaram buscando minha liderança, eu

ignorei meu temor, dei um passo à frente, ficando frente a frente com o

Primus. Ainda assim, eu não sabia o que perguntar. Há poucos momentos,

minha mente estava cheia de dúvidas, mas naquele instante, era como se

todas fossem pequenas.

Então, com seu olhar penetrando em meus pensamentos, o Arcanjo

Fanuel disse: “Todas as respostas estão em vocês, Arcanjo Nicodemus.

Suas almas se questionam se falharam. Vocês não falharam, pois a busca

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ainda não terminou. Vocês passaram por uma jornada de

descobrimento. Foram escolhidos por terem um potencial gigantesco, mas

este potencial só pode se manifestar se vocês puderem compreender a

vastidão das forças que enfrentam e o verdadeiro sentido de sua existência.

Vocês sempre souberam que os poderes do Inferno eram grandes. Mas

tinham alguma idéia do que estavam realmente enfrentando?”

Ninguém respondeu, afinal, todos sabíamos a resposta. Ouvir falar

de poder divino é simples, imaginar as forças do inimigo como poderosas é

comum. Em nossa existência, sempre lutamos contra esses poderes, mas os

víamos como lendas distantes, algo que jamais encontraríamos

pessoalmente. Mas, após sentir a própria realidade tremer e presenciar a

insanidade da natureza causada por uma manifestação limitada de um dos

Grandes Lordes, nós finalmente tínhamos dado conta de nossa pequeneza,

de nossos limite.

“Eu tenho certeza que agora compreendem o poder do inimigo.

Vocês puderam senti-lo, tentaram detê-lo. Lutaram contra o invencível e

foram derrotados, mas não falharam. Só teriam falhado se esse confronto

tivesse arrancado sua força de vontade, se tivessem desistido e abandonado

aquilo que sabiam que seria um peso grande demais para vocês. Mas,

então, pergunto... se compreendem o inimigo, podem finalmente perceber o

que é ser um Celestial?”.

Silêncio. Minha mente pensava em dezenas de respostas, nenhuma

delas satisfatória. Eu podia tentar explicar, conceituar, mas nada surgia que

não fosse imperfeito ou incompleto. “Eu não sei”, respondi, “mas Asphael

Veritas sabia”.

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Fanuel sorriu por um instante. “E qual é a diferença entre vocês

e ele?”.

Mais uma vez, eu não sabia exatamente o que responder. Nenhum

de meus companheiros soube a resposta também. Asphael Veritas foi o

maior homem que conheci em um século e meio de existência. Eu não sei

exatamente o que diferencia um Arcanjo e um homem, mas eu sabia que

não era como Asphael. “Ele parecia agir com clareza de propósito”, eu

disse, “e, por mais poderoso que fosse, era como se fosse um homem

comum. Eu me sentia como uma criança perto dele, perto de tamanho

poder, mas ele não agia como se fosse melhor do que eu. Ele não hesitava.

Ele não tinha medo. Ele... tinha uma sabedoria tão grande”.

“É aqui que começa o meu julgamento sobre vocês, Philipe

Nicodemus”, disse o Primus. “Sabedoria... poder... São aspectos que apenas

o tempo e a experiência podem ensinar. Vocês têm o poder e a sabedoria de

acordo com suas idades e experiências. E você está errado. Asphael tinha

medos. Ele esperava, estudava, agia com cautela. Isso é ter medo, e é

necessário. Mas ele de fato não hesitava. Ele não tinha dúvidas quanto a

seu próprio valor, não se via nem como algo acima do que realmente era,

nem como algo abaixo. Ao contrário de vocês”.

“Do que está falando?”, perguntou Samuel, complementando: “Nós

sabemos exatamente o que somos capazes ou não de fazer! Sabemos nossas

limitações!”.

“Não sabem, pois se julgam incapazes a cada momento”,

respondeu o Primus. Então, com um dedo acusador, apontou para Samuel.

“Samuel Fulmen, observe seu passado. O que você foi em vida? Quantas

vidas tirou, quantas casas incendiou? A cruz vermelha que carregava em

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Page 539: Magna Veritas - Tiago José Moreira

seu peito, o que realmente representou? Você foi um saqueador em

nome de Deus, e nada mais. Se pudesse escolher, sabendo disso tudo, você

se consideraria digno de ser um Celestial?”.

Os outros olharam Samuel, espantados. O Sancti se calou por um

instante. “Eu não fui exatamente isso”, disse Samuel, baixando a cabeça em

vergonha, “Eu não fiz essas coisas por mal. Eu imaginei que seguia a

vontade de Deus”. Samuel segurou o crucifixo em seu pescoço.

“Não são essas as palavras que você usa para se julgar, Samuel

Fulmen. Eu apenas repeti os mesmos termos que flutuam em sua

consciência. Eu apenas olhei as culpas que carrega. Você acaba de dizer a

verdade, mas essa verdade você não costuma repetir a si mesmo para se

confortar. Oito séculos se passaram desde o último de seus crimes, e a cada

dia, você se torna mais do que era. Resta apenas abandonar essa culpa, mas

sem nunca esquecer os erros do passado. Agora, me responda. Naquela

época, sabendo de todos os seus crimes, você se consideraria digno de ser

Celestial?”.

“Não”, respondeu Samuel.

Então, o dedo acusado de Fanuel se direcionou a mim. “Philipe

Nicodemus, e quanto àquilo que foi em vida? O que seu desejo por

conhecimento causou a todos em seu redor? Que tipo de coisas liberou, e

que tipo de sofrimento causou? Você se recorda de sua culpa? Recorda-se

de como terminou seus anos de vida?”.

Imagens do passado vieram à minha mente. Imagens que eu

preferiria não lembrar. Minhas experiências com o arcano, meus

envolvimentos com grupos perigosos. Tudo por sede de conhecimento. Eu

tinha boas intenções naquela época, queria ajudar meu pai, salva-lo de algo

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Page 540: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que a ciência não podia curar. E, em minha ignorância, fui usado.

Causei sofrimento. Tentei repara-lo. Vivi como um fugitivo desde então.

“Outros entre vocês se subestimam da mesma forma”, disse o

Primus. Fanuel fitou Ansgar: “Alguns de vocês carregam as mesmas

dúvidas e crimes que Samuel”. O olhar dele então encontrou Karina e

Absolon: “Outros se julgam incapazes por terem fugido de seus problemas

em vida, por se imaginarem fracos ou inúteis diante de algo maior”. Por

fim, ele encontrou Lo Wang: “E alguns cometeram crimes cruéis, até

mesmo mataram sabendo o que faziam.”.

“E ainda assim,” interrompeu uma voz feminina, suave e plácida,

“todos estão aqui, melhores do que foram, provando que não houve erro

algum ao terem sido escolhidos para serem o que são”.

Viramo-nos de repente, tentando ver quem se aproximava por trás

de nós. Antes de me virar, pude perceber um sorriso em Lorde Fanuel. E

após me virar, encarei aquela que agora vinha em nossa direção. Vestia-se

de branco, usando um longo vestido que descia até seus tornozelos. Os

braços estavam nus, mas adornados com jóias douradas, e seus olhos

verdes pareciam se destacar na penumbra. Seus cabelos vermelhos,

encaracolados, caíam abaixo dos ombros, e sua pele clara não tinha

qualquer imperfeição. Por trás daquela face frágil e sorridente, porém,

pulsava poder além do de qualquer um de nós, exceto Fanuel. Mas onde o

poder de Fanuel, Lorde da Justiça, irradiava-se como uma correnteza

bravia, a aura de Rachel, Primus dos Líberes, nos tocava como uma brisa

suave e reconfortante.

“Entendem agora porque foram escolhidos para a busca?”, disse a

Primus, sua face esboçando um sorriso gentil, “A sabedoria de Metatron

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Page 541: Magna Veritas - Tiago José Moreira

não tem limites, sua luz reflete-se apenas na alma verdadeira de cada

pessoa. Os Guardiões viram em vocês o que vocês próprios não conseguem

ainda ver: seu valor, sua capacidade, seu potencial. Se foram escolhidos

para a dura missão que cumpriram, então eram capazes de realiza-la. Como

negar isso?”.

“Vocês ainda pensam como os mortais que foram, não como os

imortais que agora são”, disse Lorde Fanuel, “E ainda que a humanidade

seja a nossa herança e nossa maior virtude, não somos mais seres

humanos”.

“Como assim?”, perguntou Fabrizia, talvez assustada.

“Não podemos abandonar nosso lado humano”, respondeu Fanuel.

“É o que nos faz sentir, sonhar, ter esperanças. Mas não podemos mais

pensar como os mortais que um dia fomos. No reino da vida, as pessoas

lutam para sobreviver. Deles é a luta diária por alimentação, por amor, por

conforto, pela própria família. Deles é o mundo de incertezas, de futuros

desconhecidos. Deles é uma sociedade de falsidades e enganações, onde o

divino é usado para controlar massas e o carnal é usado para satisfação

pessoal”.

“A humanidade é exatamente como este jardim”, disse Rachel, “é

cheia de vida e beleza, mas esta beleza é escondida pela escuridão da noite.

Mas olhem para o leste”.

Eu olhei, e vi os vitrais se iluminarem vermelhos, conforme o Sol

começava a nascer no horizonte além do mar de nuvens. Os vitrais

pareciam expandir a luz, sem no entanto ofuscar nossas vistas, e a luz

vermelha iluminava uma parte do jardim, mostrando árvores frondosas e

flores magníficas e revelando o movimento de pequenos animais.

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Page 542: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Fanuel continuou: “Vocês não são mais mortais. A luta pelo

próprio viver não é mais de vocês. Vivem num mundo à parte, onde todos

são iguais, onde os prazeres carnais são menos importantes que os

alimentos do espírito. Vocês não vivem mais para si mesmos, mas pelos

outros. Vocês vivem por uma causa, mas segui-la jamais será um caminho

fácil, e sim um verdadeiro sacrifício”.

“Mas...”, interrompeu Ansgar, “eu sempre imaginei estar seguindo-

a. Eu sempre estive pronto para morrer por esta causa”.

“Seguindo-a você esteve”, disse Rachel, sua mão gentil tocando o

ombro do guerreiro, “mas não pedimos que você morra por uma causa. O

que pedimos é ainda maior e mais difícil”.

“Morrer por uma causa é o que um mortal faria”, disse Fanuel,

“Ele se desprende de sua vida, imagina-se pequeno ante ao que precisa ser

feito, e se joga ao esquecimento, sem realmente pensar nas conseqüências.

É o exemplo de fanatismo e cegueira que engana as boas intenções. É o que

muitos de vocês fizeram em vida, e o que ainda os faz se culparem até hoje.

O sacrifício que pedimos não é morrer por uma causa. Vocês devem viver

eternamente por uma causa”.

“Isso não significa abandonar o que são”, completou Rachel, “Não

pedimos que abandonem suas identidades, que se entreguem à missão com

a disposição de morrer. É preciso entender que são parte dela, que cada

ação, cada pensamento de vocês importa. A tristeza que corre em vocês é

compreensível. Haverá um tempo para lamentar por toda essa frustração:

mesmo a vida eterna tem seus momentos para a reflexão... Mas agora vocês

ainda precisam continuar lutando”.

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Page 543: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“É este o conhecimento que Asphael Veritas tem. Quando ele

se sacrificou por vocês, ele não estava disposto a morrer, mas a viver”,

disse Fanuel.

A luz do Sol agora já tomava quase todo o jardim. Os vitrais agora

brilhavam dourados, e a luz se expandia por toda a câmara, revelando sua

vastidão. Adiante, além da estrutura central, eu pude perceber um conjunto

de piscinas, formadas pelos canais que atravessavam o jardim. Pequenos

animais passeavam pelo jardim, se alimentando das plantas. O vapor de

água subia das piscinas, indicando que este lugar era de fato uma espécie de

terma... Mas ao contrário das termas de Lúcifer, este lugar pulsava com

vida.

E, neste momento, o som dos portões de entrada se repetiu. Os

portões se abriam, revelando o Arcanjo Miguel, ainda com sua armadura.

“A hora chegou”, disse Miguel.

Fanuel caminhou na direção de Miguel. Rachel fez menção de

segui-lo, mas antes se voltou a nós: “O caminho que todos seguimos é um

caminho de sacrifício e dedicação. Mas lembrem-se: haverá recompensas.

Vocês são seres divinos, sua missão é proteger a humanidade. E cada

sorriso que receberem, cada vez que a missão for cumprida, essa será a sua

recompensa, pois se sentirão plenos. Sirvam os menores para ser grandes,

sirvam para serem plenos. Nossa eternidade é de servidão a uma causa. E

ela dará todas as forças e recompensas que precisam”. As palavras dela

eram simples, mas de alguma forma, de alguma maneira inexplicável, seu

sorriso era contagiante. Eu podia sentir o poder dela nos tocar, e era como

se nós nos rejuvenescêssemos. “Agora, preciso ir”, ela disse.

“O que está acontecendo?”, perguntei.

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Page 544: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Uma reunião”, ela respondeu. “Venham ver”.

Seguimos a Primus Rachel até o portão, onde Miguel e Fanuel já

estavam. E, com espanto e admiração, nós os vimos. Eles estavam todos

ali, adentrando o salão-corredor, lado a lado como iguais. E vinham em

nossa direção.

Num dos extremos, vi Raguel, Primus dos Xamãs, um homem

poderoso e alto, de cabelos selvagens e barba comprida, ambos ruivos,

vestindo peles de animais. Caminhando descalço, ele portava um machado

e um arco às costas. Seu olhar era selvagem, mas parecia se tornar dócil ao

fitar aquela que pertencia a seu Clero: Fabrizia.

Ao seu lado, caminhava um guerreiro de cabelos castanhos e pele

morena, trajando um manto negro e capa vermelha. Às suas costas, pendia

uma poderosa espada, quase tão comprida quanto o homem era alto. Seus

olhos negros fitaram Ansgar por um momento, e um sorriso de aprovação

surgiu em sua face ao vê-lo. Eu sabia que o homem não era outro senão

Gabriel, Primus dos Venatores.

Os quatro ao lado de Gabriel eu pude reconhecer imediatamente.

Helammelak, Melkel, Narel e Meleyal, o Conselho Veritas. Eles vinham

nossa direção, representando o Clero dos Veritatis Perquiratores.

Helammelak me fitou, fazendo um meneio com a cabeça. Os demais

sorriram ao me ver.

Uma figura sombria estava ao lado dos Veritas, trajando uma

armadura metálica negra, carregando seu elmo sob o braço direito. Suas

feições eram esguias, sua pele alva como a neve, e seus cabelos negros

caíam sobre seus ombros. O olhar, porém, brilhava em poder e sabedoria.

Minhas memórias me levaram de volta a Dur Sharrukin, pois aquele

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Page 545: Magna Veritas - Tiago José Moreira

homem... Era ele! Ele era o líder do pequeno bando de Celestiais que

avançou à frente em Dur Sharrukin, dois mil anos atrás! O rosto familiar

que surgiu nas visões do passado, mas agora tão mudado! Aquele era

Azrael Veritas, o Senhor dos Mors Sancta.

Ao lado do Senhor dos Mortos, vinham uma figura trajando as

cores vivas de um quimono vibrante. Seus olhos puxados nos fitaram,

analisando-nos cuidadosamente. Os cabelos negros, lisos e compridos eram

presos num rabo-de-cavalo no topo da cabeça, e dali caíam até a metade de

suas costas. Feng-huang-chamado-Bishamon, Primus dos Hun Xian,

caminhava a passos cuidadosos, seus movimentos eram perfeitamente

harmônicos e sutis, como se ele não tocasse o chão ao caminhar.

Assim como Bishamon tinha uma figura sombria à sua direita, ele

também tinha outra à esquerda, pois aquele que vinha a seu lado vestia um

manto pesado e negro, que cobria-lhe da cabeça aos pés. As mãos

permaneciam unidas à frente do corpo, mas ambas desapareciam no interior

das mangas largas do manto. Ele caminhava de cabeça baixa, coberta por

um capuz. E no interior do capuz, as sombras eram tão densas que sua face

se tornava invisível. Ainda que fosse treva, aquele homem, que só podia ser

o Lorde do Destino, Si-ming, não projetava sombra alguma. Ao não

projetar sombras, o Primus dos Kage era cercado de luz à sua própria

maneira.

Raziel, de pele escura e cabelos negros encaracolados, era o

seguinte. Vestia-se como um homem moderno: um terno negro e

caminhava calmamente. Como em todos os momentos em que eu o vira

antes, Raziel, Primus dos Tecnoanjos, não chamava a atenção. Ainda

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Page 546: Magna Veritas - Tiago José Moreira

assim, naquela forma humana, caminhava um ser divino com uma

mente tão vasta que eu não podia compreender totalmente.

E, ao lado do Senhor das Invenções, caminhava aquele que

representa o próprio toque divino. De cabelos loiros e olhos azuis, Hordad-

chamado-Rafael caminhava silenciosamente e seriamente. Seus olhos

emanavam um sutil brilho dourado. Ele se vestia como um monge, com

apenas uma batina simples, de cor escura. Em seu pescoço, como Samuel,

ele portava um crucifixo.

E, por fim, no extremo oposto ao de Raguel, vinha Ariel. Sua face

mostrava um certo desconforto com a situação, seus olhos negros

perscrutando o ambiente ao redor, mas seus lábios finos sorriam. Os

cabelos negros estavam presos em uma trança que chegava a sua cintura.

Ela vestia-se de uma forma extremamente simples: apenas uma saia de

tecido fino, que chegava a seus tornozelos, e uma blusa vermelha que

deixava sua barriga à mostra. Ao ver Karina, a Primus dos Superviventes

sorriu ainda mais.

Fora os Primus, Azrael, o Conselho Veritas e nós, não havia mais

ninguém no grande salão. “Retornem ao jardim, por favor”, o Arcanjo

Miguel nos pediu. “Temos muito a discutir aqui. Daena e Tistrya já os

esperam junto às termas, com roupas novas. Descansem, reflitam. Logo os

chamaremos”.

Meneei a cabeça, acatando o pedido do Primus. Retornando ao

jardim, fui seguido pelos demais. O portão se moveu, fechando-se atrás de

nós. E então, nós oito nos entreolhamos, sem nada dizer. Os Primi tinham

se reunido. Todos eles, como só fizeram uma única vez em toda a história.

E isso foi quando as hordas infernais invadiram o Éden, tomando Prístina e

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Page 547: Magna Veritas - Tiago José Moreira

cercando Libertatis. Apenas quando o inimigo esteve tão perto de nós.

Desde a Quarta Grande Guerra, tal evento jamais tinha se repetido.

“O que faremos agora?”, perguntou Karina.

“Descansar e refletir”, respondeu Al-Malik. “Acredito que agora

não está mais em nossas mãos. Esperemos”.

Fabrizia olhou na direção das termas e então puxou a mão de

Absolon. “Quem é ele?”, apontou a Xamã.

Um homem solitário nos esperava à beira das termas, mas não era

Tistrya. Sequer era um Celestial. Ele se vestia de branco, tinha cabelos

negros, ligeiramente encaracolados, e barba. Sua pele era morena, e

caminhava descalço. Carregava uma toalha em suas mãos, e ao seu lado

estavam, sobre um assento, roupas limpas e dobradas.

“Eu não sei quem é”, respondi, “mas Daena e Tistrya devem tê-lo

mandado nos entregar roupas limpas”.

Al-Malik se mostrou o mais curioso, caminhando na direção do

homem. Nós seguimos o Malaki, também curiosos. Chegando até o

homem, Al-Malik o saudou: “Olá, meu senhor, o que o traz aqui?”.

“Eu pedi que me concedessem a honra de conhece-los”, disse o

homem, “portanto trouxe roupas limpas e gostaria de servi-los, limpando

seus rostos e lavando pés. Seria uma honra para mim”.

“Agradecemos por seus serviços”, disse Samuel, “mas não é

necessário que limpe nossos rostos ou lave nossos pés”.

O homem sorriu. “Eu faço questão, meu senhor, é um prazer ajudar

que heróis como vocês se restabeleçam”.

Eu analisei o homem. Era uma alma pura, não um Celestial, e nem

uma gota de poder emanava dele. Ainda assim, ele trazia um olhar calmo e

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sábio, e falava de uma maneira gentil, mas não servil. “Ajude-me a me

limpar, por favor, bom homem”, pedi, “mas gostaria de saber seu nome

antes”.

“Chamam-me Keter, senhor Arcanjo”, respondeu o homem, se

aproximando com a toalha em mãos. Baixei a cabeça, e gentilmente ele

limpou meu rosto, removendo a lama que ainda o impregnava.

A partir daí, Keter se introduziu melhor, revelando viver no

Firmamento há muitos séculos, tendo a honra de servir os maiores Arcanjos

e conhecer os Primi que visitavam Firmamento freqüentemente. Enquanto

isso, ele limpava nossos rostos. Depois, se afastou para pegar um balde e

uma toalha molhada.

Ao ver Keter se afastar, Ansgar se aproximou de mim. “O que os

Primi podem estar discutindo?”, perguntou o Venator.

“Não sei”, respondi.

“Após pensar um pouco... Eu acho que não fiz o suficiente durante

nossa missão, Nicodemus. Eu hesitei muitas vezes, como Fanuel disse. Eu

podia ter feito melhor”, disse Ansgar.

“Não é a hora de discutirmos isso, Ansgar”, disse Al-Malik. “Não é

hora de ficar lamentando mais. Vamos pensar no futuro agora. Ainda não

terminou”.

Neste momento, Keter retornava, trazendo consigo um balde cheio

d’água. “Não terminou realmente. Os Primi podem estar discutindo seu

futuro, mas não são eles que o determinarão. Os Primi têm a função de

inspirar, não de agir. O destino do mundo está sempre nas mãos dos

pequenos”.

Fitamos Keter. “O que sabe sobre os Primi?”, perguntei.

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Page 549: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O homem pediu que eu me sentasse, pois lavaria meus pés.

Tentei recusar, mas Keter insistiu, dizendo que responderia a pergunta se

eu me sentasse. De joelhos, enquanto usava a toalha molhada para tirar o

barro de meus pés, Keter respondeu: “O destino dos homens está na mão

dos homens. Eles decidem o caminho a seguir. Ao Éden, resta apenas guia-

los. O destino dos Anjos está na mão dos Anjos, aos Arcanjos resta apenas

guia-los. Os Primi existem para inspirar e guiar, mas o destino depende da

vontade de vocês”.

“Mas eles possuem poder e sabedoria muito maiores do que

temos”, disse Absolon.

“Poder é um peso apenas, jovem Achille”, respondeu Keter. “Um

peso que graças a Deus eu não possuo Poder corrompe, poder induz ao

erro. Ao contrário dos regentes do Inferno, cada Primus é infinito em

apenas um aspecto, mas basta isso para que lutem para que o orgulho e a

cegueira não os corrompa. Lúcifer decaiu porque se imaginava acima dos

homens, porque foi seduzido pelo poder que tinha. De todos os Celestiais,

os mais poderosos são os que mais lutam para não usar seu poder”.

Minha mente voltou no tempo, e lembrei das palavras de Asphael

ao enfrentar um dos Gêmeos no Rio de Janeiro. Ele se sentiu mal ao ter de

usar o poder que realmente tinha. Ele se sentiu mal por confrontar um ser

mais fraco do que ele. E, fora ao enfrentar seres iguais ou maiores a ele,

Asphael jamais mostrava o que realmente poderia fazer.

Keter prosseguiu: “Os Primi possuem poder para confrontar os reis

do Inferno. Vocês presenciaram a ação deles, tanto sutil quanto

diretamente. Em seu caminho, foram enganados por eles, manipulados, e

no final derrotados. É por causa deles, e só por causa deles, que os Primi

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Page 550: Magna Veritas - Tiago José Moreira

possuem poder. Usar tal poder em qualquer outra situação é se render

ao mesmo tipo de maldição que atormenta os senhores do Inferno. Esse é o

preço do poder”.

Keter continuou a fitar Absolon, e então pediu que Absolon se

sentasse para que ele pudesse lavar seus pés. Fabrizia se aproximou:

“Então, se não é poder, o que faz deles Primi?”.

“Eles são o que são, Fabrizia”, respondeu Keter. “Eles nasceram

como são. Um dia tiveram dúvidas sobre si mesmos, mas as superaram.

Eles continuaram humanos, com medos e esperanças, mesmo quando

atingiram os ápices de poder. Mas havia algo dentro deles, algo único, e

cada um se tornou Primus porque poderia adicionar algo novo ao Éden.

Porque, desde que surgiram, eram homens e mulheres excepcionais. Mas

eles já o eram antes mesmo de morrerem”.

“Quem é você?”, perguntei, olhando Keter com calma, analisando

sua sabedoria. Nesse momento, Absolon se sentava e Keter se preparava

para lavar seus pés, mas então Daena surgiu, vindo por trás de mim.

“Senhor”, chamou Daena, “eles o estão esperando. Todos o

procuravam em todo o Firmamento. Eu não podia mais ficar escondendo

onde estava. A reunião o chama”.

Keter se ergueu, sorrindo. “Perdoem-me, eu gostaria poder

conversar mais, mas no momento sou chamado”. Então, ele se virou a mim.

“Eu já fui chamado de Rei, mas nunca fui rei. Eu sou só um homem. Eu

nunca tive poder, nunca tive a chance de ser um Primus, sequer um

Celestial. Pois, sendo apenas um homem, eu pude fazer mais pessoas

sorrirem e dar mais esperanças aos outros do que sendo um deus”.

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Fiquei calado. E, como eu, também silenciaram os demais.

Notei um boquiaberto Samuel e um impressionado Ansgar, mas todos, até

mesmo Lo Wang, nada tinham a dizer. No fundo, eu queria perguntar o real

nome dele, pois “Keter” significava apenas “coroa”. Mas no fundo tinha

uma idéia de quem aquele homem seria. Ele então saiu, acompanhado de

Daena, em direção ao portão de entrada do jardim.

“Quem era ele?”, perguntou Karina, intrigada.

“Quem quer que fosse, foi um grande homem”, respondeu Fabrizia.

Absolon e Lo Wang também não pareciam saber quem ele era. Eu

mesma tinha apenas uma suspeita, mas Samuel me parecia eufórico, como

se tivesse presenciado algo maior do que qualquer evento que tínhamos

testemunhado nos últimos dias.

Conosco uma vez mais sozinhos, decidimos nos recompor. As

mulheres se separaram do grupo para se banharem numa piscina oposta,

separada por uma pequena cerca de madeira, de um metro de altura.

Enquanto isso, nós conversávamos e tentávamos chegar a uma conclusão

sobre tudo aquilo. Ficamos próximos à cerca, de forma que as mulheres

pudessem falar conosco e entrar na discussão.

E, quanto mais discutíamos, melhor nos sentíamos, e uma única

conclusão foi tomada: nós fizemos o que melhor que podíamos. Nós

hesitamos, mas em momento algum desistimos. Nós nos esforçamos além

de nossos limites conhecidos, e conseguimos nos superar em cada

momento. Cada um retornava ao Éden melhor e mais sábio do que quando

deixou. E, ainda que tivéssemos sido derrotados, ainda teríamos tempo para

nos recuperar. Não importa quanta tristeza ou lamento, precisávamos nos

recuperar. Em breve os Primi nos chamariam.

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O tempo passou, mas eu não estava atento para saber se

passaram muitas horas. Talvez uma hora, talvez duas. Recompostos, nos

vestimos. As roupas que nos foram emprestadas eram brancas: vestidos

longos às mulheres, e uma camisa e calça aos homens, e ficamos descalços.

As roupas eram de tecido fino, revelando as formas por baixo delas, mas

eram tão simples que tinham uma beleza e uma pureza difícil de explicar.

Eram semelhantes às dos Prisci ou à de Rachel. Karina e Fabrizia

prenderam seus cabelos em tranças, enquanto os guerreiros — Ansgar,

Samuel, Lo Wang, Al-Malik e Absolon — adicionaram suas espadas,

embainhadas, às vestes. Absolon também me entregou o cabo da espada de

Asphael, pedindo que eu guardasse. “Em honra a ele, e até que ele retorne”.

Sorrindo, garanti que teria orgulho em entrega-la a ele, quando ele

retornasse da morte.

Enquanto esperávamos, alguns se dedicaram a outras atividades.

Samuel e Ansgar duelaram e conversaram sobre seus tempos como mortais,

sob o olhar admirado de Karina, enquanto eu, Al-Malik e Lo Wang

discutimos sobre as Cortes Ocidental, Malaki e Oriental. Em algum

momento, Absolon e Fabrizia se afastaram, caminhando sozinhos pelo

jardim, longe de nossas vistas.

Mas, quando os portões para o salão de entrada se abriram

novamente, todos se ergueram para descobrir a que resolução os Primi

chegaram. Mesmo não sendo chamados, sabíamos que deveríamos ir ao

encontro dos Primi.

Saímos pelo portão, adentrando o grande corredor-salão.

Caminhamos mais quinze metros, e nos viramos para presenciar os tronos

acima do portão. Como previsto, ali estavam eles. Dez Primi, mais Azrael,

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sentavam-se em onze cadeiras, enquanto Helammelak e Melkel, do

Conselho Veritas, sentam-se em outras duas, e os demais membros do

Conselho permaneciam em pé, deixando apenas uma cadeira vaga no

mesmo nível. Acima deles, estavam sete almas ocupando alguns dos nove

tronos, “Keter” entre elas. E ainda acima, o trono maior permanecia vago.

O Arcanjo Miguel, sentado próximo ao centro das quatorze

cadeiras, se levantou. “Nós chegamos a um acordo, meus amigos. E,

infelizmente, há ainda um peso que vocês precisam carregar. Diante dos

eventos que presenciaram, pode ser injusto, até mesmo hipócrita, que

devamos pôr este peso sobre vocês. Mas ainda assim, vocês foram

escolhidos, não por nós, mas por Metatron, para a perigosa viagem. É

importante que prossigam até o fim”.

Eu já previa isso. Todos prevíamos. Como no começo, eu estava

com medo, e podia sentir medo em cada um de meus companheiros. Desta

vez, porém, não iríamos hesitar. “Meu senhor, nós sabemos que não

estamos sozinhos, pois presenciamos maravilhas. Nós sabemos que o

caminho é arriscado, pois enfrentamos aquilo que não pode ser detido. Nós

iremos, pois o único caminho que queremos seguir é em frente. Diga o que

deve ser feito, e o faremos”.

Miguel sorriu, mas seu sorriso logo se fechou. “Nós fomos

enganados. O Reis do Inferno nos enganaram, manipularam sua jornada.

Suas maquinações foram levadas ao extremo, e finalmente descobrimos,

graças somente a vocês, o destino de um de nossos irmãos. Um Primus

reside no Inferno, sob as torturas de um de seus Reis. Isto não pode

continuar, não podemos mais sofrer esse tipo de afronta. Cabe a vocês

libertarem-no”.

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“Vocês entrarão no Inferno”, disse o Arcanjo Gabriel, sentado

à esquerda de Miguel, “Mas não entrarão sozinhos”. Tendo dito isso, ele se

ergueu, tornando pequenos mesmo os Primi ao seu lado. “Pois eu os

acompanharei, para que nenhum mal caía sobre vocês”.

E o Arcanjo Rafael, à direita de Miguel, também se ergueu. “E

também os acompanharei, para que nenhum de vocês caía ante as espadas

do inimigo”.

E então, eu senti o chão tremer quando o Arcanjo Raguel, Fúria de

Deus, se pôs em pé, sentado num dos extremos. “Um portão será aberto

para vocês, o próprio portal que o Inferno construiu. Mas não temam, pois

eu guardarei a passagem, e nenhum demônio entrará no Paraíso”.

Por fim, o Arcanjo Miguel tomou a palavra: “Pois nenhum de

vocês irá sozinho, porque eu estarei lá, e trarei os exércitos do Éden

comigo. As mensagens já foram mandadas e se espalham pelos céus:

haverá trinta dias para que os guerreiros se preparem. Haverá trinta dias, e

então, nos Campos Elíseos os portões do Inferno se abrirão novamente.

Haverá trinta dias, e as sete trombetas tocarão pela quinta vez. Trinta dias

de paz, e então haverá guerra, uma quinta guerra. E os exércitos do Éden

choverão como fogo no Inferno e destruiremos tudo até que nosso irmão

esteja livre”.

Nós ainda estávamos com medo, mas não desejávamos nada a não

ser cumprir a missão. Lá fora, o Sol brilhava forte, mas não duraria. Em

trinta dias, o céu se fecharia e as trombetas tocariam. E nós invadiríamos o

próprio Inferno.

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Page 555: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Interlúdio Primeiro: O Outro Lado

Por um momento, havia raios e trovões, e um vento tão poderoso

que poderia derrubar uma pessoa. Por um momento, ele estava no reino dos

vivos, onde almas habitam corpos de carne e sangue. Mas então, o urro do

tigre ecoou pela última vez. Os olhos dele se abriram, e a tempestade

desaparecia. O reino dos vivos agora estava distante. Diante dele, estava

uma imagem de pesadelos. Paredes de marfim enegrecido, manchado com

sangue e preenchido por fios dos quais saltavam faíscas elétricas. Ao seu

redor, máquinas demoníacas, mesclando almas e metal, traziam uma luz

profana e fraca ao local. Mesmo com a iluminação, porém, havia trevas por

toda a parte.

Ele se levantou de seu trono. Seus olhos se voltaram para a direita,

onde uma forma gigantesca e disforme, levemente humanóide, permanecia

silenciosa como uma estátua, apenas vigiando-o enquanto sua alma

encarnava em um falso corpo. Ele sabia que sua cria estava morta, mas que

seu propósito havia sido cumprido. Não havia mais necessidade para a cria

existir. Shiva permaneceria apenas como uma memória.

O demônio continuou a caminhar. Sua forma imensa e reptiliana

atravessou um umbral, emergindo numa sacada para o exterior da torre.

Acima, os céus queimavam, um Sol negro exibindo apenas pedaços de si

por entre as nuvens e a fumaça que se elevava da cidade ao redor. Abaixo,

haviam prédios diminutos e vastas avenidas. Delas, subia os sons de

incontáveis vozes, como se uma imensa multidão falasse ao mesmo tempo.

O Grande Lorde se apoiou no parapeito da sacada, fitando a

multidão negra que tomava cada rua, cada avenida ao redor de Destructione

Turrim. Ele abriu os braços e ergueu a cabeça, emitindo um urro que ecoou

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Page 556: Magna Veritas - Tiago José Moreira

pelos prédios ao redor, fazendo-os tremer. Os céus ardentes acima

trovejaram. Os sons abaixo sumiram, e metrópole negra ficou em silêncio.

Até mesmo os ventos constantes que atingiam a titânica torre cessaram. Por

alguns segundos, era como se o tempo parasse.

“Para Dudael”, a voz do Lorde do Proibido ecoou. “O momento de

esperar acabou! Agora, nós clamaremos nosso prêmio!”.

Gritos se elevaram. Gritos de guerra, gritos de euforia. A metrópole

inteira gritou, enquanto o ardor dos céus aumentou. Os ventos voltaram a

soprar furiosos. E então, pouco após, um novo som ecoou, repetindo-se

constantemente. Eram o som de passos, do marchar de um exército,

enquanto a multidão abaixo começava a rumar para o sul, lentamente.

Fleuretti sorriu, observando seu exército. Acima, dragões cruzavam

os céus, urrando furiosamente. Abaixo, um milhão de almas condenadas

empunhavam lanças e espadas, guiadas por cem mil demônios.

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Page 557: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 21: Trinta Dias

Parte 1 de 10: Philipe Nicodemus

Um vento frio soprava, mas eu não sabia se vinha do norte ou de

outro ponto cardeal. Acima, não havia céu, apenas uma massa incessante de

nuvens negras e pesadas. Pequenas revoadas de pássaros negros

atravessavam os ares, seus olhos vermelhos fitando meu caminhar por entre

aquelas ruas sombrias. Eu caminhava por vias construídas sobre ladrilhos

de mármore negro, por entre fortificações de pedra. Não havia árvores ou

vida e, sob o céu encoberto, a penumbra intensa só era quebrada pelas piras

que iluminavam as passagens: piras que ardiam no mais puro Fogo

Celestial. Não havia como existir vida ali. Eu estava nas terras dos mortos,

percorrendo as vias no interior da Fortaleza Asphodel.

As construções ao meu redor lembravam ligeiramente a arquitetura

romana, com arcos e grandes colunas, mas era contaminada por um toque

gótico, exibindo estátuas e alto-relevos na forma de figuras angelicais e

demoníacas. Gárgulas vigiavam-me do topo dos edifícios, enquanto janelas

eram adornadas por vitrais de intenso vermelho. As almas penadas que

caminhavam por ali me olhavam com curiosidade, vendo em mim um

semblante da vida que há muito elas tinham perdido. Eu me destacava,

realmente, pois aqueles que me acompanhavam trajavam negro, seja na

forma de mantos e capuzes ou de armaduras de textura obsidiana.

Era estranho estar ali. Em pouco mais de um século de existência

celeste, eu havia entrado na Sombra do Mundo apenas outras duas vezes, e

sempre de forma relutante. As terras dos mortos nunca foram um lugar

convidativo... O frio, embora suportável, é constante, interminável. Tristeza

e melancolia pairam no ar, os céus e a terra parecem mortos e estéreis. Ali,

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Page 558: Magna Veritas - Tiago José Moreira

as sombras se movem, e pesadelos tomam vida. Ainda assim, são estas

terras que os Mors Sancta chamam de lar, e nessa terra morta que

construíram sua fortaleza. Pela primeira vez em minha vida, eu caminhava

por Asphodel. Embora mantida pelos Anjos da Morte, Asphodel não era

como o Éden, mas ainda assim representava um refúgio, uma fortaleza para

que aqueles que não tem alento possam se defender dos horrores da morte.

Algumas das almas que ali residem esperam um dia ascenderem ao

paraíso... A maioria, porém, apenas considera Asphodel um local seguro

onde podem viver a eternidade. Em comparação com o resto das terras

mortas, a Fortaleza Asphodel representava pelo menos um pouco de

esperança.

Continuei a caminhar, pensando nos motivos que me trouxeram a

Asphodel. Já fazia dez dias desde que me separei de meus companheiros,

cada um tomando seu caminho, cada um desejando viver seus últimos trinta

dias de paz à sua própria maneira. Nós nos encontraríamos novamente, nos

Campos Elíseos, no entardecer anterior à abertura dos portões do Inferno.

Até lá, nossa Falange estaria desfeita. Desde então, eu tinha estado isolado,

estudando as possibilidades do conflito que viria. Eu estudei as outras

Grandes Guerras e pude compreender um pouco da magnitude dos eventos

que estavam por vir. Teria continuado lá, em Sans Vidya, por todos os

trinta dias, se não fosse o chamado dos mortos... Ou, mais precisamente, o

chamado do Senhor de Asphodel.

Finalmente, chegamos ao ponto central da Fortaleza, onde todas as

avenidas levavam. “Lorde Nicodemus, nós chegamos”, disse minha guia,

Natalya, Trono entre os Mors Sancta. A face pálida da moça me fitou, seus

olhos indicando vida apesar do ambiente ao redor. Adiante, vi uma praça

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Page 559: Magna Veritas - Tiago José Moreira

circular, cercada por uma grade de metal com lanças pontiagudas no

topo. No interior, despontava a catedral negra, “Amaranth”, segundo

Natalya, com quatro torres erguendo-se acima de qualquer outra edificação

de Asphodel. Os vitrais aqui também eram vermelhos, e a luz interna os

fazia brilhar como fogo. Construída em estilo gótico, a catedral era

adornada por gárgulas, e ao seu redor estavam estátuas de anjos. À entrada

estavam duas estátuas angelicais femininas, de asas abertas, como se

saudassem todos os que vinham até este lugar sagrado. Além delas, dois

Celestiais de armadura negra guardavam a porta. Eu e Natalya nos

aproximamos dos dois, a quem ela referiu como “Yetzerhara e Ha-Mavet,

Guardiões de Asphodel e Amaranth”.

Chegando aos dois Arcanjos, Natalya me apresentou: “Ele é Philipe

Nicodemus, Serafim entre os Veritatis Perquiratores. Nosso senhor o

espera”.

“Nós sabemos quem ele é”, respondeu o Arcanjo à esquerda, a

quem Natalya chamara Yetzerhara, “e nosso senhor agradece seus serviços,

jovem Natalya”.

“O Anjo da Morte o aguarda na torre leste de Amaranth, Arcanjo

Nicodemus”, disse o outro Arcanjo, chamado Ha-Mavet, “a jovem irá leva-

lo até lá”.

Natalya fez um sinal positivo com a cabeça, então se voltou a mim,

chamando-me para segui-la. Atravessamos o portão de entrada, adentrando

Amaranth, que se dispunha como uma catedral real. Iluminada por castiçais

postos sem série, à frente estava uma grande câmara. Um tapete vermelho

se estendia da entrada ao altar à frente, e sendo flanqueado por centenas de

bancadas em toda a sua extensão. Algumas almas ali oravam, seus

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Page 560: Magna Veritas - Tiago José Moreira

murmúrios ecoando pelo espaço amplo do câmara. As paredes brancas

contrastavam com o exterior negro da catedral, e faziam o Fogo Celestial

dos castiçais parecer brilhar mais intensamente. O ambiente convidava à

meditação e contemplação, mas mantinha o ar melancólico e silencioso das

terras mortas.

Natalya e eu prosseguimos pela câmara, seguindo o tapete

vermelho até o altar. As almas ali paravam suas orações para me fitar.

Embora meu manto e capuz ocultassem quase todo meu corpo, a cor da

vida em meu rosto era clara àqueles espíritos inquietos. Um homem

esquelético fixou seu olhar em mim. Por um momento, eu fitei seus olhos

profundos e melancólicos, e pude notar em sua face tanto ódio como

admiração. Natalya prosseguiu, chegando ao altar e então se direcionando

para a direita, ignorando os olhares que continuavam a nos seguir, e me

levou até uma porta, parcialmente escondida atrás da estátua cinzenta de

um anjo armado com uma grande foice.

“Por que há tanta tristeza aqui, Natalya?”, perguntei assim que

atravessei a porta. “Eu sei que esta é a Sombra do Mundo. Mas como curar

os mortos se não é possível alegrar a existência deles?”.

Natalya silenciosamente fechou a porta, e então se virou para me

fitar. Seus olhos azuis apenas tornavam sua face pálida ainda mais

desconcertante. Ela era bela, de formas perfeitas e pele macia, mas sua

alvura a tornava quase um fantasma. Eu já conheci muitos Mors Sancta em

meu século de existência, mas nunca fui capaz de me acostumar com a

aparência deles. “Esta é a terra da morte, do medo e da tristeza, Arcanjo

Nicodemus. Se pudéssemos, traríamos festa e comemoração, mas as almas

presas neste Purgatório não têm mais como sentir o calor da vida. Nós as

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Page 561: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ajudamos como podemos, dando-lhes proteção e disciplina, para que

possam se libertar sozinhas deste lugar”.

Natalya fez um sinal para que eu a seguisse pelo corredor à frente.

Enquanto caminhávamos, continuei a conversa: “É estranho estar aqui. A

Fortaleza Asphodel é uma maravilha erguida numa terra morta, mas ainda

assim é parte dessa terra morta. Eu esperava ver um pedaço do Éden aqui”.

“Você está num pedaço do Éden aqui”, respondeu Natalya, “Este

lugar é como um paraíso para os mortos. Entenda, Lorde Nicodemus, que

não há chama que resista a um mundo sem calor, e não há felicidade que

perdure neste reino de tristezas. Por séculos, desde que Magna Veritas

desceu a esta terra erma, nós temos nos adaptado à sombra. Como você

mesmo disse, é estranho estar aqui, mas não havia mais ninguém com a

disposição para ajudar estas almas. Nós fazemos como podemos”.

“Há outros que descem ao Purgatório”, eu disse.

“Verdade. Nas terras do oriente, os Kage vigiam os mortos. No

ocidente, Sancti e Venatores descem a estas profundezas quando é

necessário, enquanto alguns Perquiratores e Superviventes se aventuram na

Grande Penumbra. Mas apenas nós residimos aqui. Os outros adentram

quando precisam, quando sua missão assim pede. Nós somos aqueles que

estão sempre entre os mortos”.

“Entendo. Não quis questionar a importância dos Mors Sancta.

Nossos Cleros são irmãos, filhos de um mesmo Primus. Eu apenas não

estou acostumado a esta melancolia”.

Natalya parou diante de uma porta de ferro negro, após

caminharmos por um curto labirinto de corredores. Ela se virou para mim,

sorrindo brevemente e, por um momento, sua alvura me pareceu bela. “Nós

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Page 562: Magna Veritas - Tiago José Moreira

trazemos vida a esta terra morta, Lorde Nicodemus, e a trazemos com

intensidade. Mas não há vida que perdure aqui. Temos de ser cautelosos e

pacientes, para que quando a alegria chegue, nossos protegidos a sintam em

plenitude. São apenas breves momentos, e enquanto estes momentos não

vêm, eles precisam contemplar e meditar, para se livrarem dos grilhões que

os prendem a este purgatório”. E tendo dito isso, a Celestial abriu a porta de

ferro, fazendo um som metálico que ecoou pelos corredores quando a

tranca foi aberta. “Por aqui, Lorde Nicodemus. Suba as escadas. Daqui,

você precisa seguir sozinho”.

Agradeci a Natalya e adentrei a torre. Durante meus primeiros

passos na escadaria, ouvi novamente o som da porta, desta vez fechando-se

atrás de mim. Parei por um instante, olhando para trás. Então, vendo-me

sozinho, retomei meus passos rumo ao topo da torre.

A escada espiralava para cima, acompanhando as paredes

retangulares da torre. Eu notei que, no vão entre as escadas, pendiam

correntes e cordas, indicando a presença de um sino acima. Conforme

subia, podia ouvir o som lamuriante do vento lá fora. A escuridão era forte,

mas uma fraca luz vinda do alto me guiava. Não demorou para que eu

chegasse ao topo, onde um grande sino cinzento me aguardava. Dali, era

possível ver toda Asphodel. E também ali, perscrutando a paisagem ao

redor, estava o Anjo da Morte.

Sentindo minha presença, o olhar do Arcanjo Azrael Veritas,

Serafim dos Mors Sancta, se voltou para mim. Como os demais de seu

Clero, o Anjo da Morte tinha uma pele alva. Seus cabelos negros,

compridos, caíam sobre os ombros, e seus olhos negros tinham vida e

determinação intensas. Ele portava sua armadura negra, com um manto

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Page 563: Magna Veritas - Tiago José Moreira

cinzento sobre ela. O capuz do manto pendia para trás, não cobrindo

sua cabeça. Em sua cintura, estava embainhada uma grande espada. Mas

mais do que aquela forma mundana, eu podia sentir seu poder e sabedoria

pulsarem. Algo nele me lembrava Lúcifer... aquela aura de melancolia,

como se Azrael emanasse penumbra e não luz. “É uma honra recebê-lo em

minha casa, Arcanjo Nicodemus”, ele disse num sussurro.

“A honra é minha, meu senhor”, cumprimentei em retorno, “Ao

receber seu chamado, não pude evitar a não ser vir o mais breve possível.

Em que posso servi-lo?”.

“Palavras, Nicodemus, eu busco ouvir suas palavras e histórias”, o

Anjo da Morte respondeu num tom baixo e frio. “Embora o Arcanjo

Miguel tenha me contado sobre a jornada de vocês, eu gostaria de ouvir

mais. Gostaria de saber mais sobre meu irmão”.

“Asphael?”, questionei, fitando a face inabalável do Serafim.

Ele fez um sinal positivo com a cabeça, e então se virou de costas,

erguendo a mão e gesticulando para que eu me aproximasse. Assim o fiz,

ficando ao seu lado, e então pude ver melhor a extensão de Asphodel além

dos parapeitos da torre. As nuvens cinzentas acima pareciam um mar

convoluto e bravio, enquanto os pássaros negros revoavam às centenas,

trazendo um vento frio e lamuriante. E, além das muralhas da cidade, havia

apenas um terreno irregular, montanhoso, preenchido por florestas mortas e

sombrias e montanhas rochosas.

“O que dizer de Asphael, senhor?”, perguntei, então acrescentei um

comentário: “Antes de conhece-lo, ele era uma lenda. Eu o vi antes, em

reuniões do Clero, mas ouvia histórias sobre ele, sobre sua nobreza e

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Page 564: Magna Veritas - Tiago José Moreira

humildade. Ele era... é um grande homem. O maior Celestial que

conheci. Eu espero reencontra-lo novamente”.

“Ele foi meu irmão, meu mestre e meu pupilo”, disse o Anjo da

Morte, sua voz sussurrante agora demonstrando algo além da frieza.

“Nosso pai nos pôs em nossos caminhos, mas sempre foi um mestre

ausente. Ele nos levou a grandes revelações, nos tornou maiores do que

éramos, mas foi Asphael Veritas quem me guiou pelos caminhos do

conhecimento. Foi ele quem me fez abandonar o manto dos Venatores e

caminhar entre sábios”. Então o Arcanjo Azrael se virou a mim, e seus

olhos determinados se encontraram com os meus. “Você carrega a espada

dele, não?”, ele perguntou.

Eu peguei a sacola que carregava sob o braço, abrindo-a, e então

puxei o cabo da espada, com apenas o que restava da lâmina preso a ele.

Estendi os restos da arma a Azrael. O arcanjo baixou a cabeça para fita-la, e

então ele murmurou: “Ele me guiou pelos caminhos do conhecimento, eu o

guiei nos caminhos da guerra. Esta espada viu tudo. Ela estava comigo

quando desci às entranhas de Dur Sharrukin. Ela ouviu o último suspiro do

Lorde do Sangue. Eu a dei a meu irmão e agora ela volta a mim”. Tendo

dito isso, ele se abaixou levemente, estendendo ambas as mãos e pegando

gentilmente a espada, mantendo-a suspensa à minha frente, enquanto eu

recolhi meu braço.

“Então, eu a devolvo”, eu disse.

“Não”, ele disse, recolhendo a arma para si, e então a empunhando

pelo cabo, usando ambas as mãos, como se a arma ainda estivesse inteira.

“Meu irmão merece recebe-la de suas mãos inteira. Eu a forjarei

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Page 565: Magna Veritas - Tiago José Moreira

novamente, e então ela será sua, até que você a devolva a seu

verdadeiro dono”.

Baixei a cabeça, agradecendo ao Arcanjo pela honra.

“Você não precisa se curvar a mim... Lorde Nicodemus”,

murmurou Azrael, se pondo de joelhos e baixando a cabeça, e então

finalmente erguendo a voz. “Pois você é grande se meu irmão se pôs a

servi-lo. Ele não está mais entre nós para continuar sua promessa de

protege-los, então eu tomo seu manto e assumo a responsabilidade. O Anjo

da Morte os acompanhará além dos portões do Inferno”.

Naquele momento, eu não tinha palavras. Honrado, só pude dar um

passo para trás, enquanto tentava manter minha compostura.

“Agora, Lorde Nicodemus”, pediu o Arcanjo, já se pondo em pé,

“Por favor, conte-me o que me viu. Diga aquilo que descobriu sobre meu

pai. Eu quero compartilhar de sua história e de meu irmão”.

Aproximei-me de Lorde Azrael Veritas e recontei nossa jornada até

ali. Ao mesmo tempo, porém, eu pensava nos meus companheiros... e em

como eles se preparavam para a tempestade que estava por vir.

Parte 2 de 10: Lo Wang

A lua cheia brilhava prateada no céu, seu tamanho três ou quatro

vezes maior do que no reino dos vivos, e seu brilho tão intenso que a noite

parecia uma penumbra gentil, afastando a escuridão. Nuvens esparsas às

vezes atravessavam à sua frente, mas eram incapazes de obscurece-la por

completo. Ao redor, além das florestas, despontavam grandes cadeias

montanhosas, que tomavam o horizonte em todas as direções. Obscurecidas

pela noite, era possível ver suas formas e magnitude, mas não seus picos

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Page 566: Magna Veritas - Tiago José Moreira

cobertos pela mais branca neve. Os ventos do norte eram frios, mas o ar

estava agradável, aquecido pelas fogueiras e tochas e pela música daqueles

que comemoravam.

Das sombras mais escuras da floresta, numa elevação ao sul da

vila, os olhos de Lo Wang fitavam o movimento alegre e intenso das

pessoas, que riam e se maravilhavam na praça central. Muitas lembranças

de sua existência passada passavam pela mente do Kage, enquanto ele

fitava aquelas pessoas. A alegria o contagiava, mas seu sorriso era oculto

pelas trevas densas. Tão diferente do Japão de hoje, e tão diferente da

China que Lo Wang conheceu em vida, esta vila remetia a eras passadas do

Japão, quando guerreiros letrados viviam pela espada e pela honra, e

quando o Japão era seu próprio universo, isolado de influências externas.

Foi nesta vila que o guerreiro despertou após seu renascer. Ele podia se

lembrar das almas de crianças ao seu redor, vendo-o despertar nas florestas

próximas. Agora, aquelas almas tinham crescido, e mais ainda tomavam a

vila como seu lar. Um lar seguro chamado Kanai Anzen, no coração de

Tian Guo.

No centro da vila, ao som dos tambores taikô, o shishimai do Tatsu

Kage, o dragão das sombras, serpenteava pela praça e por entre as pessoas,

cercando seu inimigo, uma gaki, representada por uma mulher vestida de

negro e com uma terrível máscara com grandes presas. Sob as folhas de

cerejeiras que caíam, as mulheres, vestidas de yukata, ouviam a narração de

um idoso, que contava a batalha do guerreiro protetor da vila, e como ele

usou as sombras para derrotar a morta faminta. Nas sombras, aquele

guerreiro se lembrava daquela batalha tão recente, num beco escuro de uma

cidade do ocidente. Ainda que fosse amado e louvado pelas pessoas dali,

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Page 567: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Lo Wang não se sentia um herói. Em sua mente, ele se julgava,

lembrando das vidas que tirou enquanto ele próprio vivia, e pensando nos

julgamentos que ainda estavam por vir. A mente do guerreiro se silenciou,

porém, quando seu instinto o avisou que alguém se aproximava.

“Você está vestido para a festa”, disse o homem que se

aproximava, vestindo um quimono cerimonial, “mas não está

comemorando, nem bebendo, nem rindo”.

Lo Wang se levantou e se virou para fitar o homem que se

aproximava. A luz da lua iluminou um rosto branco e cabelos negros,

compridos e lisos, presos atrás da cabeça. Os olhos puxados e negros

fitaram o Kage por um instante, mas então o recém-chegado curvou-se para

cumprimenta-lo. Lo Wang fez o mesmo em retribuição. Após a saudação, o

homem comentou jocosamente: “Você estava se escondendo com o intuito

de ser visto novamente, velho amigo, ou minha percepção se aprimorou

desde nosso último encontro?”.

Lo Wang sorriu. Ten Raicho, Elohim entre os Hun Xian, também o

fez, e então se aproximou um pouco mais. “As histórias de sua jornada se

espalham por Tian Guo como fogo em mata seca, Lo Wang”, disse o Alto

Imortal, “Sinto-me honrado em ser seu amigo”.

“E não se sentia antes de tudo isso acontecer?”, perguntou Lo

Wang, num tom descontraído e provocativo, sem esconder o sorriso.

“Como sempre, você tenta encontrar falhas em tudo o que faço ou

falo”, respondeu Ten Raicho, “Nem parece que eu sou o mais velho”.

“Trata-se apenas de um passatempo, velho amigo”, disse o Kage,

depois acrescentando: “E devo confessar que sinto muito prazer em corrigi-

lo”.

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Page 568: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Ten Raicho riu, sabendo que o irritante comentário do Kage era

uma confissão extremamente sincera. “E por que não comemora agora seus

feitos, Lo Wang?”, perguntou o Hun Xian, referindo-se às festividades

próximas dali.

“Logo estarei me juntando ao povo de Kanai Anzen, velho amigo”,

respondeu, “mas primeiro queria refletir um pouco sobre o que passou e

pensar no que ainda está por vir”.

Ten Raicho calou-se por um instante, talvez meditando o que diria

a seguir. Ele tinha notícias ruins ao amigo, embora pouco relevantes

levando em conta tudo o que ele passou e ainda passaria. “Entendo o que

quer dizer”, disse relutante o Alto Imortal, “pois não só os ocidentais

passam por dificuldades. Os Tenshi estão alarmados com crises nascentes

em nossos próprios domínios”.

“O que está acontecendo, Raicho?”, perguntou Wang, agora sem

um sorriso no rosto.

“Os Lung Kuei estão retornando”, respondeu Ten Raicho.

A mente de Lo Wang voltou no tempo. Lampejos do passado o

atormentaram por um momento. Memórias de uma vida sangrenta,

redimida num último instante. Desejos de vingança que terminaram em

tristeza profunda. Uma peregrinação a terras distantes... Uma morte

atormentada. Ele caminhou nas trevas desde então, jurando que isso não

aconteceria novamente. Os Lung Kuei tinham sido dizimados, seus

seguidores se espalharam sem liderança. Por mais de um século, eles

permaneceram desorganizados e sem força. Somente uma força poderia

faze-los crescer novamente. “Zhu Rong”, murmurou o Kage.

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Page 569: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Ten Raicho meneou a cabeça, confirmando os temores do

amigo. “Rumores dizem que o profeta retornou. Os Gwai Wang dizem que

algo foi libertado no Makai”.

“O quão séria é a situação?”, perguntou o Kage.

“Por enquanto, tudo parece sob controle, mas...”, hesitou o Hun

Xian, “mas os Lung Kuei estão fortes, os rumores se espalham. Dizem que

Bishamon e Si-Ming estão preocupados. Por isso não pudemos dar atenção

necessária à crise no ocidente”.

“Eu acho que isso é um grande erro”, disse Lo Wang. “Nós

podemos nos dividir em leste e oeste, mas o Inferno é só um, não importa

que máscara use. Tudo estar acontecendo ao mesmo tempo, a mim parece

uma distração”.

“E ainda assim não podemos ignora-la”, disse Ten Raicho.

Lo Wang se calou, sabendo que Ten Raicho estava correto. Por

milênios, o oriente lutou suas próprias batalhas contra seus próprios

demônios. Ankokushin e seu profeta causaram três grandes guerras no

passados, nenhuma delas citada nas crônicas do ocidente. E agora, a

Grande Sombra, talvez aproveitando os conflitos nascentes no ocidente,

como fez antes, novamente enviava seu profeta para causar caos e semear

morte.

“Eu não deveria ter falado sobre isso agora”, murmurou Ten

Raicho, acrescentando: “Você tem suas próprias preocupações, sua própria

batalha. Eu gostaria muito de tê-lo como companheiro novamente, mas sei

que precisa aproveitar seus dias de paz”.

“Estão vindo muitas guerras, velho amigo”, murmurou Lo Wang,

“e muito sangue vai ser derramado no leste e no oeste. Venha, vamos beber

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Page 570: Magna Veritas - Tiago José Moreira

enquanto podemos. Que alegria me embriague como se fosse saquê, e

que por esta noite minha mente esqueça tudo isso!”. Tendo dito isso, Lo

Wang se virou e pôs-se a andar na direção da vila de Kanai Anzen. Ten

Raicho, o seguiu, sabendo que, apesar das palavras, a mente de Lo Wang se

mergulhava em memórias e se distraía com preocupações. O Hun Xian se

sentia culpado por isso, mas sabia que o amigo gostaria de ser informado de

tudo.

Conforme os dois guerreiros desciam a elevação rumo ao centro da

vila, as almas de crianças sorriam e apontavam para o herói da vila. Alguns

ali se curvavam em sinal de respeito, enquanto uma mulher, vestindo uma

yukata de cor vermelha forte, aproximou-se para espera-lo, sorridente. Ten

Raicho observou a mulher, de cabelos e olhos negros, pele alva e lábios

finos, sorrindo enquanto o guerreiro das sombras se aproximava. “Quem é

ela?”, perguntou o Alto Imortal.

“Yumi Mitsuko, meu amigo... é minha esposa”, disse Lo Wang.

Um sorriso sutil formou-se nos lábios do anjo das sombras.

“Esposa?”, surpreendeu-se Ten Raicho, seus olhos puxados agora

tendo forma ovalada de tão abertos. “Eu nunca soube que era casado”.

Apesar dos pesares, Lo Wang sorria. “Talvez porque eu nunca

contei. Talvez porque você nunca se interessou em saber”. O Kage riu, pois

mais uma vez tinha surpreendido seu velho amigo. E, ao redor, os sons de

alegria e de tambores continuaram a ecoar, anunciando que a festividade

daquela noite estava longe de terminar.

Parte 3 de 10: Karina Ariel

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Page 571: Magna Veritas - Tiago José Moreira

A trilha seguia montanha acima pela mata, as árvores frondosas

tapando parte do sol intenso que, no alto do céu, pendia para o oeste,

indicando que já tinham se passado algumas horas desde o meio-dia. O ar

estava quente, apesar da sombra constante que as árvores proporcionavam.

Karina parou, liberando um suspiro profundo, enquanto tirava o boné e

passava a mão na testa para limpar o suor. O som de pássaros era calmante,

e o ar puro certamente agradava a Supervivente. Porém, sua mente se

enchia de dúvidas e temores. Ela não conseguia afastar dos pensamentos

tudo o que passou desde que o ano começara, e não podia deixar de

imaginar que poderia morrer em breve, naquela que poderia ser sua última

viagem: uma viagem ao próprio Inferno.

Pondo novamente o boné, a Celestial fitou a mão molhada de suor.

Embora seu corpo não se cansasse, ela ainda suava, indicando que,

inconscientemente, ela ainda era mortal, ainda era humana, pelo menos em

seu subconsciente. Um dia, se ela pudesse sobreviver, talvez ela chegasse à

idade em que os Celestiais vão perdendo a noção do que era ser vivo, e

essas reações inconscientes do corpo deixariam de ocorrer. Mas, no fundo,

Karina sentia um pouco de alívio por ainda possuir essa “fraqueza”

humana. Ela jamais pensou que poderia ter de encarar dificuldades tão

grandes ou que deveria assumir responsabilidades tão pesadas. Lembrando-

se de seu passado, antes do renascer, ela suspirou fundo... Ela era uma

garota alegre, extrovertida, liberal, que não considerava a vida à sério.

Como Celestial, ela se dedicou a viajar, sempre ajudando os que estavam

em seu caminho, mas jamais se preparando para as responsabilidades

futuras. Pensando nisso, Karina sentou-se no chão, sem se importar em

571

Page 572: Magna Veritas - Tiago José Moreira

sujar a calça, pôs a mochila ao seu lado e apoiou-se numa árvore num

canto da trilha.

Karina fechou os olhos, deixando os sons da mata tomarem seus

sentidos. Mais uma vez ela suspirou. Essa melancolia era tão atípica para

ela, que sempre quis viver com um sorriso no rosto. Mas algo havia

mudado após tantos eventos. O mundo que Karina conhecia até então tinha

agruras e dificuldades, mas cada sorriso que ela provocava a animava e a

fazia prosseguir. Ela enfrentou sempre pequenas dificuldades, arriscou a

vida poucas vezes, sempre teve companheiros, amigos e amantes que

podiam protege-la dos maiores riscos. Mas então, ela conheceu o lado mais

sombrio do mundo, e isso a afetou. “Talvez fosse a hora de mudar”, ela

pensava, mas temia que poderia ser tarde demais para isso.

Os pensamentos dela cessaram quando ela percebeu, quase

inaudível, o som de água correndo à distância. Karina abriu os olhos, seu

instinto apontando para a direita. Então, levantando-se e pegando a

mochila, ela adentrou a mata, seguindo o som distante.

As sombras da mata eram confortantes, afastando o calor. Karina

prosseguiu sem pressa, distraída em seus pensamentos. Por um momento, a

mata trouxe memórias ruins, de uma noite de tempestade há poucos dias,

quando ela correu desesperada entre as árvores, perseguida por um mal

ancestral em forma de tigre. Karina tentou afastar esses pensamentos,

buscando algo que a confortasse... e o rosto de Samuel Fulmen veio em sua

mente. Karina suspirou mais uma vez ao se lembrar dele. Ela queria que ele

estivesse ali com ela... A índole dele a fascinava, pois ele era diferente de

qualquer outro homem por quem ela já tivesse se apaixonado. Ele parecia

surreal, ideal demais para ser verdade. O Sancti possuía uma melancolia

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Page 573: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que pedia por carinho para ser tratada, mas ao mesmo tempo tinha uma

determinação extrema, que dava segurança e inspirava confiança nela.

Ainda assim, ele não estava isento de defeitos, como Karina viria a saber. A

idade dele já era avançada demais, e ele sempre se mostrou um pouco

distante, ainda que fosse carinhoso e gentil. Ele tinha medo de

relacionamentos, talvez devido a casos passados, e um fatalismo o tomava

de vez em quando, tentando manter Karina afastada porque ele acreditava

que cedo ou tarde ele a magoaria. Karina não sabia se os sentimentos dele

correspondiam aos dela, pois Samuel, independente de o quão próximos os

dois estivessem, preferia manter uma barreira sutil entre eles. Isso

incomodava Karina, mas ela não estava disposta a desistir ainda.

O som de água se tornou mais forte, e Karina viu à frente um

riacho de águas gentis. Ele descia pelo morro, tão raso que era incapaz de

molhar mais do que o joelho de quem o atravessasse. Porém, após uma

pequena cascata de cerca de dois metros de altura, as águas se acumulavam

num pequeno lago, sem grande profundidade, e com poucos metros de

diâmetro. Do lago, o riacho prosseguia por outra cascata, esta com menos

de um metro de altura, e continuava a correr morro abaixo, sempre

mantendo pouca profundidade.

Karina sorriu ao ver aquela paisagem. As árvores eram altas ali,

mas a luz do sol iluminava bastante o ambiente. Ela se aproximou do

pequeno lago, abaixando-se e pegando um pouco de água com as mãos,

levando-a até o rosto para beber e, sem seguida, lavar o suor da face.

Karina se levantou, olhou ao redor e, não vendo qualquer sinal humano,

pôs a mochila no chão, tratando de despir-se em seguida.

573

Page 574: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Antes que entrasse na água, Karina prendeu os cabelos no topo

da cabeça. Seus pés tocaram o líquido, mas a sensação de frio não a

incomodou. Karina caminhou pelo lago, a água chegando no máximo até a

sua barriga no ponto mais profundo. O lugar parecia tão perfeito, que ela

não pôde deixar de pensar em Samuel novamente, e em como ela gostaria

que ele também estivesse ali.

Karina então se aproximou da margem, sentando-se numa pedra

submersa, mantendo apenas a cabeça fora d’água. Apoiando a cabeça numa

pedra da margem, ela fechou os olhos, a princípio tentando manter os

pensamentos em Samuel, mas logo pensando também nos outros membros

da falange... Ela se sentia triste por Asphael, lembrava-se de que Absolon, a

princípio, observava-a com interesses amorosos, e pensou no velho

Nicodemus, que era quase um pai para ela. As Termas de Lúcifer vieram

em sua mente, e a conversa que teve com Nicodemus naquele momento

voltou a invadir seus pensamentos. “Precisamos saber lutar, mesmo que

tentemos evitar isso a todo custo”, ele disse naquela noite.

Os pensamentos divagaram mais. Lembranças da mãe, retratos do

pai que jamais conheceu... Ela era filha única, sua mãe a tivera ainda

jovem. O pai morreu quando ela ainda tinha dois anos de idade, mas a mãe

sempre fora carinhosa. Elas eram muito amigas, e o espírito aventureiro da

mãe a contaminou desde cedo. Aos 14 anos, ela já tinha viajado muito,

conhecia muitos lugares. Sua vida terminou pouco antes de fazer 19,

quando um acidente de carro a matou e levou sua mãe ao hospital com

ferimentos graves. Karina ainda olhava pela mãe às vezes, agora casada e

com um casal de filhos. Ela queria poder conhecer seus irmãos, mas sempre

soube que precisava se manter longe... e por isso, ela sempre viajou pelos

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Page 575: Magna Veritas - Tiago José Moreira

cantos mais longínquos do mundo, para tentar sufocar as saudades e

para descobrir novas maravilhas que poderiam ocupar sua nova existência.

“A vida que você teve ficou para trás”, uma voz masculina ecoou

em suas lembranças, “e aqueles que olham para trás não podem seguir em

frente”. O som de uma grande cachoeira encheu os ouvidos da

Supervivente, e ela lembrou de algo que ocorrera quase 11 anos antes. Ela

trajava um vestido branco, e sentava-se à beira de um rio de forte

correnteza. Uma cachoeira de dois metros de altura estava logo adiante e,

ao centro do rio, mergulhado até a cintura, estava Somerled, então Trono

dos Superviventes, seu mentor, amigo, confidente e, na época, um grande

amor platônico. Ele deu a Karina seu sobrenome atual: Ariel, em

homenagem à sua semelhança com a Primus do Clero. Por onde ele andaria

hoje? Fazia tanto tempo que eles não se viam...

As memórias estavam tão claras que parecia serem lembranças no

dia anterior. “Somos agora criaturas do espírito e não da carne, Karina”,

dizia Somerled em voz alta, de forma a ser ouvido apesar da cachoeira,

“somos livres de tudo o que nos prendia em vida. Você vai conhecer muita

gente, vai viajar por muitos lugares, mas lembre-se que você não é mais

apenas uma peregrina”.

“Mas eu preferiria ser só uma viajante”, respondeu Karina naquele

dia.

Somerled riu. “Você não pode ignorar o que é, nem pode ignorar o

que ocorre com os outros ao redor. As pessoas muitas vezes não podem se

ajudar, mesmo que sintam compaixão, porque lhes falta tempo, dinheiro,

recursos, saúde ou liberdade, mas ao mesmo tempo sobram-lhes deveres,

dívidas, preocupações e responsabilidades. Não estamos restritos a isso.

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Page 576: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Nós somos imortais, tempo nos sobra e saúde temos em plenitude, não

somos presos a política ou a dinheiro e a nossa única responsabilidade é

preservar o mundo e as pessoas. E quanto a recursos... nós temos poder

para mudar o mundo...”. E tendo dito isso, Somerled estendeu a mão direita

à frente do peito, apontando-a para a cachoeira. “...e para fazer milagres”.

A mão de Somerled se abriu, e de repente o som da água cessou. A

cachoeira parou por completo, e as correntezas fortes acamaram-se como se

aquilo fosse um lago. “Você precisa encontrar esse poder dentro de você”,

ele disse, e então a correnteza voltou a correr tão forte quanto antes.

Os olhos de Karina se abriram no presente, e ela viu escuridão.

Tinha ela caído no sono? Ela tentou respirar, mas inalou água. Assustada,

ela se debateu, emergindo rapidamente do lago e respirando ofegante. E,

então, inesperadamente, a Supervivente começou a rir. A mata ao redor

estava escura, o ar frio, e a lua alta no céu. Ela levou a mão ao peito, rindo

por ter adormecido e, mais ainda, por ter achado que estava se afogando,

mesmo após ter passado horas sob as águas. Ela soltou os cabelos, já que

estavam molhados de qualquer forma, e deu um mergulho, emergindo junto

à margem e saindo para pegar uma toalha em sua mochila.

Enquanto se enxugava, a Supervivente começou a pensar nos seus

sonhos. Talvez ela morresse em breve... mas certamente, ela deveria lutar

para viver, para que pudesse mudar e evoluir. Por onze anos, ela tinha

vivido como uma adolescente, buscando amores e aventuras juvenis. Pela

primeira vez desde que o ano começou, ela fez a promessa que realmente

tentaria mudar dali em diante. Ela deveria aceitar sua natureza celestial,

aprender a fazer milagres maiores, desenvolver os dons divinos que tinha

dentro de si.

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Page 577: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Mas... e se ela morresse em breve? E se ela morresse antes que

pudesse se tornar maior, antes que pudesse realmente compreender por que

foi escolhida para ser uma Celestial? Karina refletiu um pouco mais, e

sabia que precisaria fazer uma última coisa antes de aceitar que precisava

crescer e deixar de ser uma adolescente. Karina se vestiu, e então focalizou

um lugar distante. Seus olhos se fecharam, e ela tocou o ar adiante,

fazendo-o tremer e ondular. Então, a Celestial atravessou o portal.

Ela iria ver a mãe e os irmãos uma última vez. Ela iria sussurrar

para a mãe, enquanto dorme, o quanto a ama. Ela iria encontrar seus irmãos

enquanto brincavam em casa, e iria contar a eles a história da irmãzinha

mais velha que nunca conheceram, e finalmente descobriria seus nomes.

Ela precisava fazer isso, para não precisar mais olhar para trás, e para poder

seguir em frente.

Parte 4 de 10: Samuel Fulmen

Risos ecoavam pela mata, enquanto a lua brilhava cheia no céu. O

ar estava frio com a proximidade do inverno, mas as fogueiras

compensavam, tanto iluminando a noite como trazendo calor. Ao som de

uma alegre música, as pessoas dançavam, riam e cantavam ao ar livre. A

vila estava cheia de vida e alegria. Era pleno século XIX, mas aquela vila

afastada, no meio da floresta negra, conhecia pouco do progresso e dos

problemas que afetavam a Alemanha. Os chalés com teto triangular eram

característicos da região. As pessoas ali pareciam comemorar alguma data

especial que Samuel não conseguia lembrar. E, em um canto afastado,

observando as festividades e ouvindo a música alegre, Samuel tomava

alguns goles da deliciosa cerveja de região. Ele podia sentir um leve efeito

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Page 578: Magna Veritas - Tiago José Moreira

do álcool, deixando-se levar pela alegria. Sua condição celeste, porém,

impedia que os efeitos mais fortes da bebida o afetassem.

Samuel Fulmen era um outro homem naquela época... Claro,

setecentos anos haviam se passado desde que ele morreu como um

templário em terras romenas, mas ainda assim, aquela festa acontecera

muito antes dele visitar o Japão, conhecer Philipe Nicodemus ou presenciar

as duas grandes guerras da humanidade. Ele estava tão contagiado pela

alegria e pelo tratamento que recebeu daquela pequena vila, que sua espada

estava guardada no quarto da pousada, e seu olhar se deixava levar por uma

alemã de tranças loiras, que o olhava em retribuição com interesses

amorosos. Os olhos azuis dela freqüentemente se encontravam com os

olhos negros do Anjo. Naquela época, Fulmen ainda se deixava levar por

pequenos casos amorosos, mesmo após ter tido o coração partido duas

vezes nos séculos anteriores.

A alegria era tamanha, que Samuel não percebeu uivos próximos,

ecoando por entre os carvalhos e abetos. Ninguém viu de onde eles vieram,

mas quando notaram a presença das três criaturas, já era tarde demais.

Gritos e correria se seguiram. Uma enorme criatura, humanóide e corcunda,

mas com cabeça de lobo, invadiu a festividade, derrubando uma mulher.

Outras duas criaturas vieram pela direção oposta, encurralando as pessoas

que corriam. Eles urravam e rosnavam, suas garras rasgando carnes e

partindo ossos, enquanto os habitantes da vila caíam um a um.

Samuel despertou assustado, sentando-se na cama. Era madrugada,

mas a cidade do Rio de Janeiro lá fora se mostrava sempre ativa. O Sancti

levou a mão à cabeça, lembrando-se da tragédia que reviveu em sonhos.

Que ano era? Ele não se lembrava direito, mas o século XIX estava a

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Page 579: Magna Veritas - Tiago José Moreira

menos de duas décadas do fim. A vila inteira fora dizimada, alguns

poucos sobreviventes viveram para contar a história dos monstros que

destruíram sua comunidade. Samuel caiu uma vez antes que pudesse chegar

até sua espada. Quando finalmente tinha a arma em mãos, era tarde demais.

Samuel avançou em Coro duas vezes desde então, e era estranho

lembrar daquele momento em que ele mudou tanto. “Por que esse sonho

justo agora?”, pensou o Celestial, “Será que isso significa que posso estar

entrando em uma nova fase de minha vida?”.

Aquela pergunta incomodava o Celestial e, instintivamente, ele

segurava, em busca de conforto e segurança, o pequeno crucifixo preso por

uma corrente a seu pescoço. A fé era a única companheira que acompanhou

o Sancti em seus anos mortais e em sua vida celeste. Oito séculos de

existência tinham se passado desde a sua morte. As memórias de sua vida

passada agora eram tão vagas, restando apenas as memórias mais fortes,

aquelas que foram marcadas por emoções fortes. Segundo filho de Franklin

Fulmen, um nobre inglês, Samuel não seria o herdeiro das terras da família.

Por isso, seu pai desejava que ele levasse uma vida dedicada a Deus, e

portanto ele foi alistado entre os templários, onde aprendeu sobre os

princípios de pobreza, castidade e obediência. Com sonhos de proteger e

retomar a terra sagrada, Samuel Fulmen morreria durante a sétima cruzada,

como muitos outros. Mas nem mesmo o renascer fez com que sua fé

fraquejasse. Pelo contrário, isso a fortaleceu. Em vida ele teve dúvidas

sobre a existência de Deus e os ensinamentos da bíblia, e sua fé foi testada

muitas vezes, tendo de obedecer a ordens sádicas ou suicidas, e até mesmo

sendo forçado pelos companheiros a estuprar uma camponesa. Na morte,

ele tinha encontrado as respostas, e aquela certeza formou o escudo que

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Page 580: Magna Veritas - Tiago José Moreira

regeria as ações de Samuel Fulmen. Ele seria tudo o que não foi em

vida: seria um protetor, um santo, um guerreiro de Deus.

Desde então, sua nova existência passou por muitas fases,

conforme ele adquiria experiência e sabedoria. A princípio, Samuel era um

fanático, cego pelo orgulho daquilo que se tornara. Tentando ser a epítome

do arquétipo angelical, ele se tornava um protetor da igreja, lutando contra

a corrupção. Imaginando-se maior do que realmente era, Samuel se deixou

enganar muitas vezes, caindo vítima de planos demoníacos e manipulações.

Essas derrotas deram-lhe sabedoria, mas foi uma mulher que finalmente fez

com que ele mudasse. Foi quando ele conheceu o amor carnal e a paixão,

através de uma outra Celestial, Sarah.

No Rio de Janeiro do século XXI, Samuel se deitou novamente,

enquanto olhos lacrimosos continuavam a recordar fatos passados.

Memórias da morte de Sarah permeavam seus pensamentos. Aquele evento

foi a segunda grande mudança de sua vida. Foi quando Samuel se tornou

fúria encarnada, um amargo protetor às bordas da depressão e da

autodestruição. O nome do assassino até hoje ecoava em sua mente...

“Abla-Aziz”. O maldito demônio escapou da vingança de Samuel, mas seu

culto, o Triângulo de Aziz, foi caçado e dizimado pelo anjo e seus aliados

ao longo de três séculos. A fúria demorou a passar, e quando tudo aquilo

teve fim, Samuel estaria mudado pela quarta vez. E, novamente, foi uma

mulher que o fez mudar.

Lizette foi o segundo amor do anjo, um encontro do acaso que o

encantou enquanto ele percorria as ruas da velha Paris do século XVII.

Uma jovem de apenas dezesseis anos, prometida a um nobre muito mais

velho. A paixão fez com que Samuel perdesse seu bom senso, e ambos se

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Page 581: Magna Veritas - Tiago José Moreira

entregaram a um amor proibido. No fim, porém, Lizette se casou, aos

19 anos. O Sancti teve de deixa-la ir, com um coração partido, mas sabendo

que a mortalidade dela os separaria de qualquer forma. Muitos eram seus

inimigos, e a própria vida de Lizette estava por um triz quando a separação

se deu. Desde então, Samuel tentou esquece-la, entregando-se a amores

passageiros. Ele passou a viajar pelo mundo, vivendo pela espada e pelas

paixões que sentia. Naquele período, ele começou a se sentir arrogante

novamente, acreditando-se poderoso o suficiente para resolver qualquer

problema. A Quarta Grande Guerra no Éden fez com que ele notasse o

quão pequeno ele era, mas foi finalmente o descuido na Floresta Negra que

fez com que ele abrisse seus olhos.

Desde então, Samuel buscou aprimorar-se em disciplina e

conhecimento. Mantendo seus sentimentos sob controle, ele viajou a

lugares ainda mais longínquos, lutou em duas guerras mundiais, visitou um

Japão destruído pela guerra e conheceu grandes homens, como Philipe

Nicodemus, Gabriel Ignisancti e outros. Ele morou em vários países,

sempre mantendo, com orgulho, seu nome de batismo, mas vivendo

múltiplas vidas. Do Japão à Rússia, da Rússia à África do Sul, e,

finalmente, ele chegava ao Brasil, instalando-se no Rio de Janeiro no final

da década de 1980.

Em todos os lugares em que viveu, Samuel se dedicou a caçar as

criaturas das sombras, os cultos, vampiros e licantropos que insistem em

depredar a humanidade. No Brasil, ele conheceu mais uma paixão, a

primeira a toca-lo após tantos anos, desde o incidente na Alemanha:

Karina. Ela o lembrava a jovialidade de Lizette e do sorriso de Sarah, mas

essas lembranças também traziam melancolia. Após tanto tempo ocultando

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Page 582: Magna Veritas - Tiago José Moreira

seus sentimentos e mantendo uma forte disciplina, Samuel já não sabia

mais como lidar com amores e paixões. Ele tentou se afastar, o que no fim

os separou, mas ela sempre se manteve tão perigosamente próxima a ele...

“E agora”, Samuel Fulmen pensava em sua cama, “talvez eu esteja

entrando em uma nova fase de minha vida”. Pensamentos sobre o que viria

perturbavam sua mente. Pior ainda era saber que Karina estava envolvida,

que talvez ela não sobrevivesse. Ela sempre foi tão vulnerável, tão pura... O

pensamento de perde-la era pior do que a idéia de morrer.

Em breve, ambos atravessariam os portões do Inferno, na linha de

frente de uma guerra inimaginável. Apoiando a cabeça sobre os braços

cruzados, deitado em sua cama, Samuel Fulmen não podia deixar de pensar

que seus oitocentos anos de existência talvez tivessem sido apenas uma

preparação para o que estava por vir...

Parte 5 de 10: Amazarak

As escadas de Oostegor eram longas e dolorosas, como o caminho

de todo Decaído. Fosse Amazarak um mortal com sua idade aparente, ele

jamais conseguiria fazer toda aquela caminhada. As intermináveis espirais

impediam que os mais impacientes alcançassem os andares elevados da

torre, enquanto ainda permitiam a cada viajante pensar e refletir sobre

quaisquer preocupações que tomassem suas mentes. A mente de Amazarak

se enchia de perguntas. O velho Decaído continuou sua ascensão pela torre,

e a cada vitral que atravessava, a Cidade Eterna abaixo parecia cada vez

menor e mais insignificante.

As reuniões finalmente tinham terminado, e os dignitários das mais

distantes regiões do mundo já tinham deixado o santuário da Corte Negra.

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Page 583: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Lá fora, os Caídos ainda trabalhavam para reerguer os monumentos

destruídos recentemente, na batalha entre Lúcifer e a traidora, Azubah. Na

mente de Amazarak, porém, ele não podia deixar de pensar que Azubah

fora a vítima, e que a real natureza do invasor jamais seria revelada aos

Caídos que viviam ali embaixo. “Que esta seja a punição dos traidores”,

foram estas as palavras que se espalharam pela Cidade Eterna. O nome do

Grande Lorde Agliareth jamais fora revelado, para que os Caídos jamais

soubessem o quão vulneráveis estavam em seu suposto “refúgio seguro”.

E era a segurança da Corte Negra que preocupava Amazarak. O

incidente mostrou o quanto a cidade estava vulnerável. Quase setenta anos

atrás, ela fora invadida uma vez, mas por humanos. Os lacaios de Hitler e

Mussolini vieram em busca de segredos ocultos, em sua campanha para

dominar armas secretas e compreender o lado oculto do mundo. Numa

expedição liderada por ocultistas da Thule Gesellschaft, os soldados

invadiram a cidade, sem saber o que os aguardava. Nenhum deles jamais

retornou para casa, e todos os documentos relacionados a essa expedição

foram queimados pelos agentes da Corte Negra ou perdidos no tempo. Mas

agora a Cidade Eterna poderia ser alvo de algo maior do que os mortais.

Dias atrás, antes de partir de Oostegor, Shemhazai-chamado-

Samyaza havia procurado Amazarak. Embora traiçoeiro, Shemhazai tinha

uma percepção apurada, e suas palavras ainda atormentavam o velho

Arcanjo Decaído. “A Estrela da Manhã brilha mais fraca, há algo

acontecendo que ainda não sabemos”. Quando, esta manhã, chegaram

notícias de que algo estranho estava ocorrendo no Éden, que as forças

celestes começavam a se armar e se concentrar, as preocupações de

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Page 584: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Amazarak apenas aumentaram. Algo grande está por vir. Mas o que

poderia ser? Amazarak perguntaria à Estrela da Manhã em pessoa.

Amazarak parou diante do 13o. e último portão de Oostegor, o

“portal do trono”. O vitral logo atrás do portão não revelava mais a Cidade

Eterna, apenas escuridão, como se as mínimas luzes da cidade fossem

incapazes de alcançar tal altura... ou talvez porque uma escuridão

sobrenatural tocasse este andar da torre. Amazarak segurou a argola presa

ao portão, puxando-a e batendo-a pesadamente três vezes contra o portal de

ferro. O som ecoou e, por alguns instantes, não houve qualquer resposta.

Amazarak aguardou por alguns segundos. Afinal, o que eram alguns

segundos para alguém que viveu milênios? Dois minutos se passaram, até

que um som de algo pesado se movendo anunciou a lenta abertura do

portão, revelando além uma sala imersa numa profunda escuridão. Mais de

quinze metros à frente, duas tochas, ardendo em chamas espectrais

vermelhas, iluminavam um grande trono de pedra como se ele flutuasse na

escuridão, sobre o qual o Príncipe dos Caídos se sentava, aguardando que

seu conselheiro entrasse. As sombras tremulantes escondiam as feições da

Estrela da Manhã. “O que deseja, Amazarak?”, a voz do Decaído ecoou.

Amazarak se ajoelhou, curvando-se diante do portão, entre a luz

fraca da escadaria e a escuridão do salão. “Como seu conselheiro, desejo

saber mais para melhor aconselha-lo, meu senhor”, respondeu o velho, logo

após adicionando: “Estou muito preocupado”.

“Erga-se, irmão”, ecoou a voz de Lúcifer, que permanecia imóvel

sobre o trono. Sob as sombras, era impossível ter certeza se mesmo seus

lábios se mexiam. “Não deve rastejar por ninguém, pois é meu igual. O que

o preocupa? O que deseja saber?”.

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Page 585: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Amazarak entrou na escuridão, sem medo ou hesitação. Ele e

Lúcifer conviveram por mais tempo do que ambos podiam lembrar.

Onesimus era o braço direito da Estrela da Manhã, mas Amazarak era sua

consciência, a voz que murmurava em seus ouvidos evitando que o pior

ocorresse. “É claro que algo está por acontecer. Os sinais indicam que os

tempos estão mudando. Os Gwai Wang nos atacam em massa e nos

expulsam do oriente, enquanto os Shaitani se organizam e se preparam para

algo que virá. No Éden, os Celestiais silenciosamente se preparam para

algo. No Inferno, um exército sem precedentes marcha rumo às planícies de

Gehenna. Em Oostegor, oito Celestiais são abrigados por você, e o senhor

tenta impedi-los que libertem algo ou alguém. Ao mesmo tempo, surgem

duas manifestações dos Grandes Lordes... Uma que seguia para o ocidente,

outra que nos atacou em nossa própria casa e avisa ao senhor sobre um

pacto que você tentava evitar. Meus sonhos se tornam mais caóticos a cada

noite, indicando que algo está por acontecer, algo que vai abalar as

fundações da criação divina. O que está acontecendo, meu senhor?”.

“O apocalipse, meu fiel servo. O fim de uma era, velho amigo”,

respondeu Lúcifer, sua voz estranhamente fria, indiferente. As sombras

tomavam seus olhos, mas Amazarak podia sentir o olhar de Lúcifer encara-

lo.

Um frio percorreu a espinha de Amazarak. Aos sussurros, o velho

decaído perguntou: “Que pacto você fez, meu senhor? Qual é seu papel

nesta nova era?”.

“Eu assegurei que o Inferno nunca mais entre em nosso lar,

Amazarak”, respondeu Lúcifer. “Nos tempos que virão, a Cidade Eterna

será uma ilha de estabilidade, talvez a única.”

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“Mas a que preço?”, o ancião perguntou.

“A um preço maior do que qualquer outro pacto que tenhamos feito

com o Inferno... Mas este será o último pacto, o último acordo. Cumprida a

minha parte, começará nossa ascendência.”

“Ascendência?”, perguntou Amazarak.

“Uma guerra está se aproximando, velho amigo”, a voz de Lúcifer

ecoou murmurante, “e eles vão lutar uns com os outros novamente... mas

nós... nós sempre fomos os abandonados pelo Éden. Sempre fomos

forçados a fazer pactos para nossa segurança. Mas não mais. Eles lutarão

uns com os outros, e minha vingança contra ambos poderá começar.”

Amazarak fechou os punhos, talvez por não crer no que ouvia.

“Quando irá começar, meu senhor?”, ele perguntou, a preocupação

transparecendo em sua voz.

“Em breve”, Lúcifer murmurou friamente, “muito em breve”.

Parte 6 de 10: Armin Ansgar

Madeira se chocou com madeira. “Dê tudo de si! Use tudo o que

tem!”, gritou Ansgar, enquanto Absolon recuava, desajeitadamente após o

tremendo impacto entre as duas espadas de madeira.

“Até mesmo meus poderes?”, perguntou Absolon, seus olhos azuis

arregalados diante da força do oponente.

“Especialmente seus poderes”, Ansgar respondeu, empunhando

com ambas as mãos a longa espada de madeira, tão comprida quanto sua

espada de verdade.

Absolon fechou os olhos por um instante, concentrando-se. Ansgar

deu um passo para trás, fitando o oponente, ignorando o salão, as colunas e

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Page 587: Magna Veritas - Tiago José Moreira

a arquitetura árabe ao redor. Para o Venator, havia apenas a arena ali. A

arena e um amigo a ser treinado.

Aos olhos dos dois espectadores ali presentes, porém, havia mais a

ser visto. Fabrizia se mantinha calada, abraçando suas pernas, enquanto via

com apreensão o treinamento de Absolon. Al-Malik, porém, olhava

fascinado para Absolon, imaginando o quanto ele evoluíra desde que a

longa jornada do grupo começou.

Absolon avançou. Ansgar deu um passo à frente, traçando um

grande arco horizontal com a lâmina de madeira, aproveitando-se do maior

alcance de sua arma. Com um movimento rápido, Absolon jogou sua

lâmina para a esquerda, fazendo ambas as armas se chocarem. O impacto

quase desequilibrou o jovem Princeps, mas este se forçou a avançar,

usando a espada para manter a lâmina do Venator afastada, e então

chocando seu corpo contra o de Ansgar.

Ansgar desequilibrou-se com o impacto, recuando para tentar se

manter em pé. Absolon urrou, segurando firmemente a espada acima da

cabeça para dar o golpe final. O golpe seria perfeito, se o Venator não fosse

mais rápido. Madeira se chocou com madeira novamente e, com um

movimento rápido e forte, Ansgar empurrou de volta a lâmina de Absolon,

forçando-o a recuar. Mais importante, o empurrão fez com que Absolon

pendesse a arma para a direita do corpo, e um golpe rápido de Ansgar

desceu verticalmente, atingindo o ombro esquerdo do Princeps.

Fabrizia levou a mão à boca quando Absolon foi atingido. Al-

Malik ergueu a mão: “Acabou!”, gritou o Malaki.

Absolon sorriu. “Vinte e dois dias treinando, e não venci uma única

vez”, disse o Princeps num tom sarcástico.

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Page 588: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Tenho feito isso por novecentos anos”, respondeu Ansgar, seu

olhar sério, “você ainda tem muito a aprender”. A face de Ansgar não tinha

uma única gota de suor. Absolon, por outro lado, estava ofegante e suado.

Enquanto isso, os dois espectadores se aproximavam de Absolon.

Fabrizia, sorrindo, disse: “Você melhorou”, pondo-se logo à frente do

Princeps, entre ele e o Venator.

“Você nunca teve um treinamento básico nisso, não espere ter uma

vitória fácil contra um guerreiro disciplinado”, disse Al-Malik, “Mas não se

sinta mal, eu tenho treinado por muitas décadas, mas a perícia de Ansgar,

Samuel e Lo Wang me deixam envergonhado”.

Ansgar, vendo que todas as atenções se voltavam a Absolon,

entregou a espada de madeira a Al-Malik. “Treine-o um pouco, Al-Malik”.

Tendo pedido isso, o Venator se afastou.

“Aonde vai?”, perguntou Absolon enquanto o Venator se afastava,

levando a mão direita ao ombro atingido, como se só naquele momento dor

do impacto fosse sentida.

“Descansar um pouco, jovem Absolon, só descansar um pouco”,

respondeu, adentrando o corredor que levava ao hall de saída do templo.

Ansgar deixou o quartel de Masada, parando ao portão e

observando o que havia à frente. Uma grande praça retangular, ricamente

ornada com flores e plantas, e com uma imensa fonte no centro, cercada

por quatro largas avenidas e por incontáveis bazares e palácios. De certa

forma, esse lugar lembrava o Venator de Maidan-i-Shah em Isfahan. Ao

contrário da famosa praça iraniana, porém, que Ansgar visitara numa noite

tempestuosa, o Sol iluminava forte este lugar, e as almas de centenas de

muçulmanos caminhavam pela praça, pelos bazares ou avenidas ao redor.

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Page 589: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Muitas se reuniam numa mesquita do lado oposto, enquanto outras

compravam ou trocavam mercadorias, na maioria artesanato, nos bazares.

A Mecca do Éden lembrava muitas cidades árabes da Terra, como se fosse

um amálgama do que há de melhor e mais belo em cada uma delas. Esta

falsa “Maidan-i-Shah” era apenas um dos muitos pontos de beleza na

cidade celestial.

Mas Armin Ansgar não estava ali para apreciar a paisagem.

Sentando-se nas escadarias que levavam ao portão de Masada, o Venator

fitou o movimento das pessoas na rua e se pôs a pensar. Ele se perguntava o

que Nicodemus, Lo Wang, Karina e Samuel poderiam estar fazendo neste

período de trinta dias. Eles se encontrariam novamente, um dia antes da

abertura do portal, mas Ansgar se perguntava como eles estariam

preparados. O Venator, junto com Al-Malik, tinha passado as últimas

semanas treinando Absolon. Fabrizia, por sua vez, aparecia de vez em

quando, às vezes participando dos treinos, mas sempre mostrando ter mais

interesse em Absolon do que em técnicas de combate.

“Algo o incomoda?”, Fabrizia perguntou, surgindo do interior de

Masada. Ansgar se virou para fita-la, enquanto ela se sentou ao lado dele.

“Não, estava só pensando em Nicodemus, Lo Wang e os outros”, o

Venator respondeu.

“Posso perguntar uma coisa, Armin?”, murmurou Fabrizia,

virando-se para fita-lo.

“Claro”, o Venator respondeu sem se dar o trabalho de retribuir o

olhar da Xamã.

“Como vocês agüentam?”, ela perguntou, “Digo... Quando somos

vivos, há quem goste de ser um soldado, há quem treine por esporte, há

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Page 590: Magna Veritas - Tiago José Moreira

quem seja fascinado pelas técnicas e filosofias por trás disso tudo.

Mas... eu acho que sou de uma época diferente da sua. Não consigo

entender como você, Lo Wang e Samuel conseguem se dedicar ao combate

dessa maneira. E não entendo porque Achille se interessa tanto por isso

também”.

“É importante e necessário, Fabrizia”, respondeu Ansgar, fazendo

sinal de que desejava se levantar. Antes que o fizesse, Fabrizia o segurou

pelo braço.

“Espere um pouco, por favor”, ela pediu, e então ele se sentou

novamente. “Eu sei o que quer dizer. Nós todos passamos por aquilo tudo,

todos arriscamos nossas vidas. Mas... há outros caminhos. Asphael era um

homem inspirador, mas apesar de tão poderoso, ele não me parecia ser um

guerreiro. Al-Malik também fez coisas impressionantes e lutou de uma

forma exemplar, mas ele também não é como você... ou como Lo Wang ou

Samuel. Eu entendo a importância disso, mas não como conseguem viver

desta maneira... Digo, viver como guerreiros apenas, viver pela espada”.

Ansgar baixou a cabeça e parou para pensar. “Acho que está

enganada sobre Samuel... E às vezes tenho uma vaga impressão que não

chegamos a conhecer Lo Wang direito, que ele manteve seus segredos bem

ocultos de nós. Mas entendo o que quer dizer... Talvez eu seja assim devido

ao modo como vivi... ou talvez seja por culpa.”

“Como assim?”, ela perguntou, ainda fitando o rosto indiferente do

guerreiro.

“Eu vivi numa época muito diferente. Vivi servindo a Deus, e a

única coisa que eu sabia fazer era empunhar uma espada e cavalgar um

cavalo. Lealdade a meu rei, amor a família e fé em meu Deus era tudo o

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Page 591: Magna Veritas - Tiago José Moreira

que eu conhecia e pelo que eu vivia. Naquela época, defender essas

coisas significava matar”, respondeu Ansgar, finalmente retribuindo o olhar

de Fabrizia, “E por isso, eu estava disposto a matar e morrer”.

“Talvez isso eu possa compreender, mas você morreu, renasceu, e

sua vida mudou... Teve séculos para aprender novos jeitos de viver... Deus,

nem sei como alguém pode viver séculos sem ficar entediado. Mas você

viveu séculos se aprimorando nisso”, murmurou a Xamã.

“É a culpa”, respondeu Ansgar. Ele parou, baixou a cabeça, e então

murmurou: “O pior do que morrer pelo rei, por Deus e pela família, é

falhar. Viver pela lealdade me levou a ser traído enquanto cumpria minha

função. A traição me custou a família. E minha raiva e minha frustração me

custaram a vida, morrendo desonrado como se fosse um bandido comum.

Diante de uma nova chance, eu jurei que não seria mais influenciado por

políticas, que nenhum rei ou homem que diz saber a palavra de deus iria me

impedir de novo, e que eu continuaria a fazer a única coisa que eu sabia

fazer por toda a eternidade: defender pela espada até que eu morresse pela

espada”.

“Não quero ser chata”, interrompeu Fabrizia, “e posso estar sendo

irritante por ser uma jovem que não viveu tanto quanto você... mas, após

tanto tempo, continuar a viver apenas por causa disso, me parece um

desperdício”.

Ansgar se irritou um pouco com o comentário de Fabrizia, mas no

fundo ele sabia que ela, à sua maneira ingênua, tinha um pouco de razão,

mas talvez ele devesse mostrar melhor seu ponto de vista. “Há sempre algo

mais a se buscar, Fabrizia. Um sábio não presume que conhece tudo e pára

de buscar conhecimento. Eu vivi pelo ideal de ser um guerreiro. Sempre

591

Page 592: Magna Veritas - Tiago José Moreira

haverá um novo desafio, sempre haverá uma maneira de me aprimorar,

e sempre haverá um inimigo em meu caminho. Novecentos anos é muito

pouco para quem já viveu tudo isso. Terão se passado milênios antes que eu

me canse de buscar mais sobre a arte da guerra”.

“Tudo bem”, disse Fabrizia, “mas quando foi a última vez que você

dançou com uma pessoa?”.

Ansgar ficou em silêncio. Imagens de bailes passaram em sua

cabeça, mas ele sequer se lembrava de quando foi. Mais ainda, ele se

lembrava de estar presente, mas estava fora de seu nicho, tímido e sozinho.

“Isso não vem ao caso”, ele respondeu.

“Quando foi a última vez que você saiu para rir com os amigos?”,

Fabrizia insistiu.

“Já fiz isso várias vezes”, respondeu Ansgar, incomodado.

“Fez mesmo?”, perguntou Fabrizia, sorrindo. A Xamã então adotou

uma postura mais séria, indagando: “Rir com os companheiros durante o

convívio é uma coisa. E quanto sair com eles sem qualquer intuito senão se

divertir? Tem certeza que não está confundindo os dois?”.

Ansgar a fitou, claramente contrariado com aquela conversa.

“Fabrizia, a que ponto quer chegar?”.

“Só acho que você não precisa ficar isolado assim. Quando isso

tudo terminar, Al-Malik, Achille e eu combinamos de continuar juntos,

como uma Falange”, ela respondeu. Em seguida, a Xamã sorriu.

“Queremos que venha com a gente”, ela acrescentou.

Ansgar sorriu, rindo. “Não precisava de tudo isso para tentar me

convencer”.

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Page 593: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Desculpe”, ela respondeu, sorrindo, “mas eu realmente acho

que você se liberar um pouco do seu fardo”.

“Talvez...”, Ansgar murmurou.

“Mas mudando de assunto, o que você acha do Achille?”, ela

perguntou.

“Está aprendendo rápido”, Ansgar disse, “Ele ainda está

procurando seu talento oculto. Talvez o caminho do guerreiro não seja o

mais apropriado para ele, mas ele realmente quer se sentir útil ao grupo”.

“E quanto a mim?”, ela perguntou.

Ansgar a olhou, pensando um pouco. “Apesar de tudo, não me

lembro de vê-la hesitar. Durante todo o caminho, você lutou como pôde.

Acho que você já conhece seus talentos, só não os desenvolveu

apropriadamente ainda”.

Ela sorriu. O Venator retribuiu o sorriso. “Logo estaremos indo

numa jornada muito perigosa”, disse o Venator, “então prometa que você e

Absolon se manterão a salvo a qualquer custo. E eu vou proteger os dois”.

“Pode deixar”, a Xamã concordou, ainda sorridente.

Ambos continuaram a olhar o movimento das almas de Mecca na

praça à frente. Talvez Fabrizia tivesse feito isso de propósito, pensou

Armin Ansgar. Ela estava certa: ele sempre viveu sozinho, talvez para não

ter mais a obrigação de se sentir preso a uma família que pudesse ser ferida

por seus atos. A idéia da falange, porém, era estranhamente atraente... ele

poderia continuar a ensinar o jovem Princeps, e, em troca, poderia aprender

muito com seus companheiros.

Parte 7 de 10: Abd Al-Malik

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Page 594: Magna Veritas - Tiago José Moreira

A noite estava alta, e uma brisa gentil soprava do leste, onde o

Mar de Prata se encontrava com a costa de Mecca. À noite, o calor vindo

do deserto de Hik-up-tah se dissipava, tornando o ar refrescante, e trazendo

a umidade do mar. As luzes das casas e templos compensavam pela pouca

iluminação das ruas. Acima, a grande lua do Éden brilhava majestosa,

banhando a cidade com uma fraca penumbra prateada.

À frente de uma das sacadas da ponte de Bahr Al-jebel, Al-Malik e

Ansgar se sentavam sobre grandes almofadas dispostas no chão. A ponte,

uma maravilha arquitetônica que unia as partes norte e sul de Mecca

através do rio de Bahr Al-jebel, era tanto uma via de travessia como, em

seu interior, um grande bazar.

Al-Malik liberou a fumaça do narguileh que ambos fumavam,

formando uma nuvem circular que se dissipou rapidamente. “A idéia de

uma falange foi de Fabrizia, na verdade”, respondeu o Malaki a Ansgar.

“Aparentemente, ela perdeu seus companheiros no México e, como parece

que ela e Absolon decidiram ficar juntos, eu me prontifiquei a acompanha-

los. Ela também sugeriu chamá-lo”.

“E o que você acha disso? É uma boa idéia que nós dois os

acompanhemos?”, perguntou Ansgar.

“Eu não tenho que julga-los, Ansgar”, respondeu Al-Malik, “mas

por que seria uma má idéia?”.

“A diferença de idades é muito grande”, respondeu o Venator,

“talvez não consigamos acompanhar o ritmo deles... ou pior, eles podem

não acompanhar o nosso ritmo”.

“Eu entendo sua posição, Ansgar, mas acho que temos muito a

aprender uns com os outros”, respondeu o Malaki, um sorriso expresso em

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Page 595: Magna Veritas - Tiago José Moreira

sua face. “Deus quer que aprendamos constantemente e que ensinemos

também. Eu tenho muito aprender com os mais jovens e, além do mais, eu

adoraria aprender com você, amigo. Não se esqueça que, embora eu seja

um Arcanjo, você possui muitos séculos de sabedoria à minha frente”.

“Eu sou apenas um guerreiro, Al-Malik”, disse Ansgar, “não um

sábio ou um juiz”.

“E ainda assim você carrega a experiência de muitos séculos de

existência, Ansgar”, o Malaki disse, “Você viu nações se erguerem e

tombarem, conheceu muitas pessoas. Você viveu muito e, portanto,

aprendeu muito. Talvez não perceba, mas é sábio ao seu próprio modo.

Mas, se ainda tem dúvidas, vamos caminhar juntos. Como sábio, posso

ensina-lo muito. Como guerreiro, posso aprender muito”.

Silêncio se seguiu, pois era a vez de Ansgar tragar a fumaça do

narguileh. Desacostumado a fumar, o Venator estranhou a sensação, mas

não tossiu como um mortal faria. Mesmo após expulsar a fumaça, Ansgar

permaneceu em silêncio.

“Algo mais o preocupa, ou você ainda não se convenceu?”,

perguntou Al-Malik, um sorriso surgindo em sua face.

“Estava pensando em Fabrizia e Absolon. Nós estamos indo para o

Inferno, Al-Malik. Eu estou com medo, mas não vou hesitar. Ainda assim,

temo que não possa protege-los lá”, respondeu o Venator.

“Medo todos temos, Armin Ansgar”, disse Al-Malik, escondendo o

sorriso, “mas não há Deus a não ser Deus, e todos os dias rezo para que Ele

nos proteja em nossa jornada pelo reino de fogo”.

“Não me leve a mal... mas eu preferiria não ter de depender disso”,

murmurou Ansgar.

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Page 596: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Al-Malik fitou os olhos do Venator. “Talvez reconforte mais se

eu mudar minha maneira de falar, Ansgar. O que tiver de acontecer, irá

acontecer. Mesmo desistir simplesmente significaria que nosso destino era

não ir. Você quer desistir?”.

“Não. Eu jamais desistiria”, respondeu Ansgar.

“Então você já aceitou seu destino”, respondeu Al-Malik, “como

eu, Absolon e Fabrizia aceitamos. Ter medo agora não mudará o que há de

acontecer. Apenas rezo para que o plano de Deus seja piedoso”.

Ansgar parou e pensou nas palavras de Al-Malik. “Você está

certo”, ele murmurou. “Preocupar com o que acontecerá é inútil. Teremos

de nos preparar e ver”.

Al-Malik sorriu, e então puxou o narguileh para tragar um pouco

mais de tabaco. Antes que tragasse a fumaça, porém, o Malaki fitou

Ansgar: “Eu confiarei no plano divino, Ansgar. Deus se manifesta nas

pequenas e grandes coisas. Quando o profeta foi perseguido pelo deserto,

bastou uma aranha tecer sua teia para salva-lo. Todos nós vimos milagres

em nossa jornada, e acredito haverá muitas maravilhas em nosso caminho.

Tenha fé, se não em Deus, em você e seus companheiros. Você está pronto

para usar sua espada?”. Tendo perguntado isso, Al-Malik tragou a fumaça

do narguileh.

“Estou”, o Venator respondeu.

“Então eu não tenho nada a temer”, sorriu Al-Malik, liberando a

fumaça numa forma circular, que logo se dissiparia.

Parte 8 de 10: Urias

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Page 597: Magna Veritas - Tiago José Moreira

A escuridão era intensa, e os olhos do Arcanjo brilhavam

dourados para que sua visão penetrasse no véu de trevas. As paredes das

cavernas eram irregulares, os caminhos se dividiam freqüentemente, mas

Urias sabia qual direção seguir. Ele descera a estas profundezas muitas

vezes nos últimos dias, sempre preocupado com os sons que ele ouvia

emanarem das entranhas da terra. O respirar do dragão parecia cada dia

mais intenso, como se estivesse próximo do despertar.

A proximidade da Quinta Grande Guerra preocupava Urias, mas

aquilo que tomava seus pesadelos e invadia seus pensamentos não eram

cenas de uma guerra nos portões do Inferno, mas sim os urros e o respirar

constante daquilo que estava aprisionado no âmago de Libraria. As

profundezas o chamavam constantemente, e ele podia sentir a respiração do

dragão corroer rocha.

Na escuridão plena, guiado apenas pelo instinto e pelos sons do

dragão, Urias mais uma vez alcançou a câmara. Ali, no altar, estava o jarro,

cercado pelas runas fabuláricas que o selavam. Urias se sentou, apoiado na

parede, e fitou o jarro novamente, como fez tantas outras vezes no último

mês. Ele podia sentir um poder irresistível emanar daquele objeto de barro,

como se fosse uma fumaça espiritual pútrida e corrosiva. Como se

conversasse com o jarro, o Arcanjo resmungou: “Se isso é um terço do seu

poder, Leviathan, eu não posso imaginar o que é o poder de um Grande

Lorde”. Urias estendeu a mão, tocando levemente o objeto. Ele podia sentir

fúria e dor, crueldade e sofrimento. Fechando os olhos, o Arcanjo viu um

reino de fogo e guerra, ardendo em magma derretido e em sangue

derramado. E ele também sentia algo mais, uma força externa... uma

sombra à espreita....

597

Page 598: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O Arcanjo Urias removeu a mão do jarro, pensativo. Embora

ele posasse como Primordial, ele era muito mais do que isso. Serafim entre

os Spiritus Latro, Urias mantinha sua real associação oculta a fim de

proteger o segredo secular de seu Clero perseguido. Mas mais do que um

Spiritus Latro, Urias era um dos três sobreviventes, os únicos a

sobreviverem ao expurgo e viverem para que seu Clero pudesse continuar a

existir. Urias tinha passado por muitas experiências, e esta experiência

agora dizia a ele que algo estava terrivelmente errado em toda esta trama.

Ele não podia deixar de comparar tudo isso à sua própria história.

Ele conheceu um grande homem no passado, que viu mais do que outros

poderiam ver, que tentou redimir o Príncipe dos Caídos e, no processo,

tornou-se mais do que era. Mas Urias também viu esse grande homem ser

perseguido, quando uma mão invisível direcionou o Éden contra seu

mentor. Mais ainda, ele viu seu mentor resistir sozinho ao poder dos

Grandes Lordes e, no final, fracassar, sendo consumido, em corpo e alma,

pela monstruosidade que se manifestara no Éden. Aquela foi a

conseqüência da Quarta Grande Guerra.

E agora, a Quinta Grande Guerra começaria. Que conseqüências o

conflito traria? Talvez a tragédia de Caesar, Primus dos Protectori, pudesse

se repetir? Entre os Veritas, alguns murmuravam que tudo isso era por

Veritatis, que seu desaparecimento no fim da Quarta Grande Guerra foi o

princípio de tudo.

Mas Urias não podia acreditar nisso. Ele alertou Baltazar e Reyel

sobre suas suspeitas, e os Spiritus Latro foram comandados a tomarem

posições na guerra vindoura. O Clero oculto não iria para a frente de

batalha, mas sim permaneceria no Éden e na Terra, observando e tentando

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Page 599: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ver o que os outros Cleros não podiam ver. A visão de Urias, Serafim

entre os Spiritus Latro, dizia outra coisa a ele.

“Todos acreditam que Veritatis é o centro de tudo isso”, murmurou

Urias, seu olhar fitando o jarro, como se encarasse os olhos do monstro em

seu interior. “Eles estão enganados, Uriel-chamado-Veritatis não é o centro

de tudo. É você, Leviathan. Você é o início e o fim, tudo se centra em você.

Eu vou vigia-lo, para ter certeza de que você vai permanecer aprisionado

aqui, desgraçado”.

O respirar de Leviathan tornou-se mais intenso, e Urias ouviu um

urro nas profundezas de sua mente. Poderia ser uma reação instintiva dos

fragmentos de alma aprisionados ali? Ou será que Leviathan poderia

compreender as palavras do Arcanjo?

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Page 600: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Parte 9 de 10: Achille Absolon

“Jamais abandonaria meus companheiros”, Absolon pensou,

lembrando que tinha dito o mesmo tantos dias atrás, quando todos se

preparavam para entrar nas profundezas de Dur Sharrukin. Ele estava

assustado naquele dia, congelado de medo ao saber que entraria em tal

lugar, que poderia não voltar.

Desta vez, Achille Absolon iria a um lugar muito pior, a origem de

todos os pesadelos, o próprio Inferno. E, embora tivesse medo e receio, ele

não queria mais hesitar. Absolon fitou as estrelas acima, enquanto

permanecia sentado numa varanda do quartel de Masada. As ruas de Mecca

à frente estavam vazias, poucas almas caminhavam pelas vias a esta hora

da madrugada. O silêncio era confortante, mas o jovem Princeps sabia que,

em menos de três dias, haveria guerra. Os trinta dias de paz estavam

chegando ao fim.

Achille Absolon puxou sua espada, pondo-a diante de si. Ele olhou

a lâmina e o cabo prateado, e então fechou os olhos. Havia algo naquela

arma que o deixava ansioso. Tê-la em mãos dava-lhe confiança. Desde sua

vida mortal, Absolon desejava seguir o caminho do guerreiro. Ele sempre

foi fascinado pelos guerreiros medievais, pelos samurais japoneses, pela

noção de honra e força. Ele gostava de heroísmo e de heróis, e sonhava em

ser um. Sua vida nunca foi excepcional, nunca foi marcada por nenhum

evento diferente do normal, salvo talvez sua morte estúpida nas mãos de

uma gangue de valentões, aos 23 anos de idade. Ele não deveria ter reagido,

mas Absolon sempre reagiu a tudo que o contrariou na vida. Ele brigava

com os valentões na escola, discutia com quem não se dava ao trabalho de

se defender como ele. Ele gostava de se manter sempre fora de problemas,

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Page 601: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mas não fugia quando os problemas vinham até ele, e isso atraiu tanto

amigos, que gostavam de sua honestidade, como colegas que admiravam a

“coragem”. Hoje em dia, Achille Absolon chamaria a impulsividade de

tolice. Certamente, o Celestial amadureceu muito desde a morte, e os

desafios da nova vida o ensinaram o valor da cautela.

Mas Achille Absolon não era um covarde. A princípio, ele seguiu o

Caminho da Liberdade, talvez por medo dos novos desafios, mas de agora

em diante, ele buscaria seu sonho, o Caminho do Guerreiro. Em Dur

Sharrukin, Al-Malik havia dito: “Todos nós temos esse medo. Não sou

guerreiro, mas porto uma espada, e conheço os perigos de empunha-la. Se

soubéssemos que enfrentaríamos um Grande Lorde, teríamos a coragem de

puxar nossas espadas e avançar, sem medo da morte?”. E Absolon sabia

que, chegado o momento, ele avançou contra Shiva e sobreviveu. Em

Jerusalém, Al-Malik tinha revelado ao Princeps: “Seu problema é que não

entende que é preciso sacrificar-se cada vez que se empunha uma arma”.

Absolon finalmente podia compreender isso.

Absolon fitou a espada, que parecia brilhar ao refletir a luz prateada

da lua celeste. Nas últimas, esta espada foi uma grande companheira para o

Princeps. Em breve, ele a manejaria no Inferno, usando todo o

conhecimento que adquiriu, treinando com Al-Malik e Ansgar, dois

grandes professores. Os movimentos fluidos de ambos se repetiam na

mente do jovem Anjo. “Em breve, você fará o mesmo”, uma voz ecoou em

sua mente.

“O que você faz aqui sozinho?”, uma segunda voz, desta vez

feminina, veio por trás. Os pensamentos de Absolon cessaram

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Page 602: Magna Veritas - Tiago José Moreira

imediatamente e, num susto, ele se levantou, virando-se para ver quem

se aproximava.

Fabrizia riu. “Peguei você desprevenido?”, ela perguntou.

O Princeps sorriu em resposta, passando a mão no cabelo para se

recompor. Seus olhos fitaram os de Fabrizia. Ela estava linda, mas

certamente as almas de Mecca se sentiriam ofendidas se ela saísse assim na

rua em pleno dia. Seus longos cabelos negros estavam desta vez soltos, sem

nenhuma bandana ou trança para prende-los. Descalça, com um pequeno

shorts e um top, ela deixava as pernas, braços e barriga à mostra.

“Alô?”, ela murmurou, passando a mão diante da face do Princeps,

fazendo com que ele acordasse.

“Desculpe-me”, pediu Absolon, “eu estava distraído”.

“Com o quê?”, ela perguntou, e então fitou a espada que Absolon

empunhava. Vendo a arma, Fabrizia ficou um pouco mais séria.

“Nada”, Absolon respondeu, mas na verdade não quis admitir que a

beleza dela o encantava. Não foi sempre assim... No começo, Absolon tinha

olhos apenas para Karina. A atração dele por ela era forte, movida pela

aparência da Supervivente. Karina sempre se manteve distante, porém,

enquanto Fabrizia se aproximava mais e mais do Princeps. Embora algo em

Karina ainda o atraísse, Absolon agora admirava a Xamã. Eles se beijaram

pela primeira vez no Rio de Janeiro, no apartamento de Samuel, mas os

outros ainda não sabiam disso. Porém, depois daquilo, depois de Shiva,

ambos tinham se afastado um pouco. Apesar de tudo, Fabrizia se mantinha

ainda tão intimamente próxima dele...

“Você tem estado muito distante, Achille”, ela disse, se

aproximando do Princeps, “Eu só queria conversar um pouco”.

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Page 603: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Absolon segurou a mão da Xamã e seus olhos se encontraram.

Indicando que ela se sentasse no banco próximo, ele disse: “Na verdade, eu

também queria conversar”. Fabrizia sorriu, sentando-se, e o Princeps se

sentou ao lado dela.

“Bem...?”, insinuou Fabrizia, esperando que Absolon iniciasse a

conversa.

“Bom... Eu tenho estado distante realmente”, ele começou, “Você

sabe muito bem o que teremos de fazer em breve... e eu quero melhorar,

preciso estar preparado. Eu não quero que nada de mal te aconteça, Fabi”.

“Eu não vou passar por nada que você também não passe, Achille”,

disse ela, tocando o rosto dele. “Você sabe disso. E sabe que também estou

preocupada com você. Eu acho que já está pronto. Só nos resta amanhã... e

no entardecer de depois de amanhã, já vamos nos encontrar com os outros,

lembra...?”.

“É por isso que eu preciso estar pronto”, ele disse.

“Você já está pronto”, ela interrompeu. “Dois dias não vão ser

suficientes para você mudar ainda mais, mas são um tempo precioso para

ficarmos juntos. Não sabemos o que pode ocorrer depois”.

Absolon baixou a cabeça. “Você tem razão”, ele iria dizer, mas

então sentiu o toque gentil dela em seu queixo, erguendo sua face. O rosto

dela estava tão próximo do dele, que a respiração de um tocava a face do

outro. Ele pensou em beija-la, fechou os olhos para faze-lo, mas então,

sentiu o dedo dela tocar seu lábio, e a face dela se afastou.

“Façamos assim”, ela disse sorrindo, “Se você quer saber se

realmente melhorou, eu e você vamos duelar”.

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Page 604: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Como é que é?”, ele perguntou, totalmente despreparado para

o que ouvia.

“Você acha que pegar numa espada é saber lutar, Achille

Absolon?”, ela perguntou, um sorriso maroto destacando-se em sua face.

“Eu vou te dar uma surra como você nunca tomou antes. Aí, quem sabe,

você pensa diferente, e me dá um pouco mais de valor”.

“Eu não acho isso necessário...”, ele respondeu, rindo.

O olhar dela permaneceu inalterado. “Vamos para um lugar onde

não vai incomodar ninguém, ok? Pegue duas daquelas espadas de madeira e

me passe sua camiseta.”

“Minha camiseta? Por quê?”, perguntou o Princeps.

“Porque estou de top, seu bobo”, ela piscou, sorrindo, “Se eu abrir

minhas asas e rasgar o top, vou ficar praticamente nua”.

“E o que há de mal nisso?”, brincou Absolon, sorrindo, mas ainda

descrente quanto ao desafio de Fabrizia.

Os lábios da Xamã se aproximaram do ouvido de Absolon,

enquanto, murmurando: “Isso, meu querido, fica para depois”.

Parte 10 de 10: Fabrizia

O céu acima estava escuro, como um véu negro que só era rompido

pela luz da lua e das estrelas. No horizonte a leste, porém, um suave brilho

vermelho anunciava que o sol se ergueria em breve. Nos céus escuros, duas

formas brilhantes, uma levemente vermelha, outra dourada como o sol que

logo nasceria, viajavam para o sul. Embora inaudíveis do chão, ambas as

figuras sorriam e riam.

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Page 605: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Pensei que seria um duelo”, indagou Absolon, vestindo

apenas uma calça bege. Sua forma celestial irradiava dourada, suas faixas

de luz se expandindo na noite, balançando em conjunto como se fossem

asas que batiam.

“Calma!”, riu Fabrizia, que vestia apenas shorts e a camiseta de

Absolon. As costas da camiseta tinham se rasgado, dando lugar a grandes

asas de cor marrom-clara. O corpo de Fabrizia irradiava vermelho, mas não

só seu corpo, como seu espírito parecia irradiar de alegria. “Estamos

chegando!”, ela avisou, mantendo-se na frente de Absolon.

Absolon se calou, observando os movimentos da companheira.

Fabrizia parecia brincar nos ares, mergulhando e elevando-se em seguida,

dando giros e, logo depois, deixando-se cair por algumas dezenas de metros

antes de voltar a tomar altitude. Os olhos do Princeps a acompanhavam

com fascinação, pois em nenhum outro momento ela tinha se mostrado tão

livre, tão alegre. Fabrizia sorria muito, tendo finalmente capturado a

atenção do companheiro.

Na mente de Fabrizia, aquilo era uma loucura. Quando ela foi

procurar Absolon durante a noite, ela já estava com a idéia na cabeça... Mas

daí a propô-la de verdade? Ela sempre teve idéias malucas... tão malucas,

na verdade, que algumas até funcionavam. Tudo pelo qual os dois passaram

desde o começo do ano fez com que ela se mantivesse quieta e reservada,

mas isso não era como ela normalmente agia. A vida deve ser alegre, e os

momentos ruins devem ser alegrados. Ela fazia isso sempre que possível. E

ela estava fazendo isso exatamente agora.

Por outro lado... talvez essa idéia não fosse tão idiota assim.

Fabrizia tinha seus talentos também... Talvez eles não fossem tão úteis

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Page 606: Magna Veritas - Tiago José Moreira

contra os horrores que enfrentaram, mas isso apenas significava que ela

precisava desenvolve-los mais. Algo que ela faria, ao lado de Absolon.

Um grande mar surgia à frente, a Fabrizia gritou ao companheiro:

“Estamos próximos! Vamos até a praia!”.

“Que mar é esse?”, perguntou o Princeps.

“Não é mar!”, ela respondeu, diminuindo a velocidade para que ele

se aproximasse, “É Lazurd!”. Os olhos de ambos se encontraram nos céus,

e então ela mergulhou em direção ao solo firme. Absolon pôs-se a segui-la.

O Lago Lazurd, praticamente um mar de água doce, estava logo

adiante. À margem, bosques verdejantes se espalhavam por quilômetros,

mas era possível perceber uma vila distante, suas luzes destacando-se na

noite. O sol logo nasceria, mas por enquanto a luz prateada da lua cheia

provia uma fraca iluminação.

Os pés descalços de Fabrizia tocaram o chão gentilmente, e suas

asas sumiram em seguida. A Xamã sacou a espada de madeira, observando

o companheiro enquanto os pés de Absolon tocavam o solo.

“Assim que os primeiros raios de sol nos tocarem, começaremos”,

ela avisou, enquanto o Princeps sacava sua própria arma de madeira.

Os olhares de ambos se encontraram. Fabrizia se mantenha à

distância, empunhando a arma com uma só mão, à frente do corpo. O olhar

dela era sério, mas sua face continua um sorriso. Absolon observou a

postura dela. Ela segurava a espada com firmeza, mas por usar uma só mão,

ele poderia aplicar força suficiente para desviar os golpes dela e atacar uma

parte desprotegida. Além disso, a postura dela era instintivamente

defensiva, indicando que ela não atacaria primeiro, que esperaria pelo

ataque dele. Ela queria mesmo duelar, ele pôde perceber, mas ficava

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Page 607: Magna Veritas - Tiago José Moreira

preocupado em machuca-la. “Está bem”, disse Absolon, segurando sua

arma com ambas as mãos, “o sol já está visível”.

“Então começou!”, ela avisou. Por um instante, ambos

permaneceram na mesma posição, um esperando o ataque do outro.

Fabrizia sorriu, seus olhos brilharam, e então ela avançou. Absolon tentou

se mover, mas sua surpresa, ambos os pés estavam presos ao solo, como se

a terra se erguesse para engoli-los.

O golpe de Fabrizia veio pela esquerda. Sem poder se jogar para a

direita, Absolon rapidamente pôs sua arma no caminho da lâmina da

adversária. O choque das armas emitiu um fraco som, e então Fabrizia

prosseguiu em seu movimento, parando às costas de Absolon.

Incapaz de se virar, Absolon segurou a espada com apenas a mão

esquerda, e tentou em vão um golpe horizontal para atingi-la, girando o

tronco o máximo que seria possível. A lâmina de madeira nada tocou,

porém, pois Fabrizia já estava à direita. A Xamã gritou um urro de batalha

misturado a riso debochado, e o Princeps sentiu a lâmina dela tocar

suavemente seu pescoço. “Bang!”, ela disse, imitando o som de uma arma

de fogo, “você morreu!”.

Absolon tentou fita-la, mas as pernas presas ao chão impediam que

ele se virasse totalmente. “O que diabos você fez?”, ele perguntou,

constrangido.

Fabrizia riu, apoiou a arma de madeira no ombro, afastando-se.

“Ora, querido, que tipo de demônio vai esperar você sacar uma espada e

depois vai duelar limpo com você?”.

“Eu sei o que quer dizer”, ele murmurou contrariado, “mas não

estava esperando isso num treino!”.

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“Então você está treinando para o quê, afinal? As olimpíadas?”.

Tendo dito isso, Fabrizia parou, a cerca de seis metros de Absolon, e se

virou para ele, mirando em suas costas. “Vou te dar três segundos para

escapar”, ela ameaçou, “antes de eu atacar e te vencer pela segunda vez”.

Forçando-se para olhar para trás, Absolon pôde ver o sorriso de satisfação

da Xamã.

Fabrizia se preparou, enquanto Absolon fechou os olhos. Ela pôde

sentir o poder do Princeps fluir, e ela também se concentrou para fluir suas

energias. Fabrizia contou os segundos, enquanto Absolon permaneceu

imóvel, aguardando, enquanto tentava fita-la. Um... dois...

E três! A Xamã avançou, enquanto Absolon, num movimento

rápido, forçou-se para fora do solo, virando-se para atingi-la em seu

avanço. Fabrizia sorriu: nunca foi o objetivo dela atingi-lo. Parando no

meio da corrida, ela estendeu o braço à frente do corpo, e uma rajada de ar

atingiu Absolon, jogando-o no chão. Só então, Fabrizia avançou, erguendo

a arma acima da cabeça para desferir o golpe final.

A lâmina de madeira de Fabrizia desceu verticamente, mirando na

cabeça do Princeps caído. Empunhando a sua espada apenas com a mão

direita, enquanto apoiava a esquerda no solo, Absolon bloqueou o ataque e,

em seguida, usou de força sobrenatural para empurrar a lâmina de Fabrizia

para longe dele. Fabrizia recuou um passo, tentando erguer a arma para um

segundo golpe, mas com velocidade acima do normal, Absolon usou a mão

esquerda para se empurrar e se pôr em pé, desferindo um golpe horizontal,

mirando na barriga da adversária. A lâmina cortou apenas ar, enquanto

Fabrizia sorria, tendo esquivado-se de forma tão veloz que superava por

pouco a velocidade de Absolon.

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Page 609: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Os olhares de ambos se encontraram. Ela parecia animada, seu

olhar irradiando alegria e animação. Ele estava concentrado, mas ela pôde

perceber um sorriso momentâneo. Aquilo a deixava bem, ela estava

divertindo-se e sabia que ele também se divertia.

“Isso é traiçoeiro!”, ele disse, mas um sorriso discreto em sua face

confirmava que ele estava gostando.

Fabrizia sorriu, estendendo a mão à frente do corpo. Absolon

avançou, tentando atacar antes do próximo truque. Porém, antes que a

espada de Absolon tocasse Fabrizia, um trovão inundou os ouvidos do

Celestial, enquanto um clarão cegava seus olhos. Absolon perdeu o

equilíbrio e fechou os olhos, enquanto um raio elétrico passava

perigosamente perto, mas longe o suficiente para não feri-lo. Desnorteado,

a lâmina de madeira errou Fabrizia, que tratou de sair de seu caminho. “Eu

sou traiçoeira”, ela murmurou, mesmo sabendo que Absolon não poderia

ouvi-la...

Fabrizia ergueu a espada, afastando-se um passo, e então avançou

para o golpe final. Como se um sexto sentido o guiasse, Absolon esquivou-

se, fazendo com que a lâmina da adversária cortasse apenas ar. Os olhos de

Absolon se abriram, e então ele moveu a espada até o pescoço vulnerável

de Fabrizia. “Bang!”, ele disse, sua satisfação era clara nos lábios, “Você

está morta!”.

Fabrizia sorriu. Ele era realmente um rapaz incrível, e ela se sentia

bem ao lado dele. A Xamã largou a arma, e seus olhos fitaram os de

Absolon. Ele parecia ainda não poder enxergar direito, e levou a mão

esquerda até os olhos. “Você pegou pesado nessa”, ele murmurou.

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Page 610: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Me desculpe”, ela pediu, se aproximando dele, “mas se fosse a

sério, eu poderia fazer muito pior”.

“Tenho certeza que sim”, Absolon sussurrou, removendo a mão

dos olhos e abrindo-os. Ele piscou algumas vezes antes que demonstrasse

estar vendo bem novamente. “Quer tentar novamente?”, ele perguntou.

“Não”, ela disse, “acho que já consegui provar o que queria...”. Os

olhos dela se encontraram com os dele. “E acho que consegui o que queria

também, Achille”.

Absolon largou a arma de madeira, abraçando-a, e os lábios dos

dois anjos se encontraram, beijando-se lascivamente. Aos beijos, Absolon

se sentou no chão, e Fabrizia se sentou apoiada nas coxas dele, as pernas

dela envolvendo o quadril do companheiro. Por um momento, ela tocou o

peito dele, insinuando que ele se afastasse um pouco. Ela aproveitou o

breve momento em que os lábios se separaram para tirar a camiseta.

Pelo próximo dia, a vida de ambos se resumiria um ao outro, e o

mundo se resumiria àquela praia e ao bosque próximo. Por duas tardes e

uma noite, não haveria preocupações. Para Achille Absolon, só haveria os

lábios dela. Para Fabrizia, só haveria os braços fortes dele. Teria de ser

assim pelo tempo que restava... Pois depois desses últimos dias de paz,

nada mais seria o mesmo.

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Page 611: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Interlúdio Segundo: O Prenúncio do Fim

Lamúrias e gemidos ecoavam pelo salão, alcançando os ouvidos do

adormecido, que começava a despertar. Um fedor intenso de sangue e

podridão permeava o ar, penetrando em suas narinas. A dor era intensa, e

mesmo seus olhos teimavam a abrir. Demorou alguns segundos para que

ele pudesse perscrutar o salão ao redor. O sangue escorria por sua testa,

embaçando a visão e irritando os olhos, mas ele podia ver. As paredes eram

negras, toscas, e os vitrais vermelhos pareciam emitir uma luz fosca,

gerando uma penumbra avermelhada. Estacas se projetavam das colunas

que sustentavam o teto, e as almas dos condenados ali permaneciam,

gemendo e urrando, seus braços putrefatos lutando para escapar da

empalação. Outros estavam acorrentados às paredes, incapazes de se

mover, suas línguas arrancadas para não falarem, e suas mandíbulas

partidas para que sequer pudessem move-las. O sangue dos condenados

escorria pela rocha negra, sendo coletada em grandes fossas, cheias de

vísceras arrancadas e restos de animais e pessoas.

E, à frente, havia um velho sentado em seu trono obsidiano, vestido

apenas com um manto que nada mais era do que trapos cinzentos, sujos em

sangue e vômito. Suas mãos se agarravam aos braços do trono, revelando

dedos finos e longos, unhas enormes e quebradiças, e uma pele doentia,

amarelada, que se esticava sobre os ossos como se ele não fosse nada mais

que do que pele e ossos. Sob a pele, corriam veias negras e estagnadas. O

topo careca da cabeça do velho mostrava-se carcomido por lepra. E então, o

velho ergueu a cabeça. Os olhos do espectador fitaram órbitas negras e

vazias e, sob a barba cinzenta, viu uma bocarra anormal se mover,

revelando dentes afiados como os de um tubarão.

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Page 612: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Os olhos do anjo espectador fraquejaram, e ele baixou a

cabeça, enquanto o velho se levantava e se aproximava. O Celestial mal

tinha forças, seus braços doíam por causa das correntes que os prendiam ao

teto, enquanto ele permanecia pendendo no ar, suas pernas acorrentadas e

presas ao chão. Sangue escorria por sua cabeça, cobrindo seus olhos e

manchando sua barba branca, e ele vestia apenas uma tanga, revelando a

vermelhidão de uma hemorragia interna, causada pelas costelas quebradas e

pelos pulmões perfurados. Algo se movia sob a pele do abdômen, como se

uma massa de vermes se arrastasse por entre seus órgãos. Suas asas eram

apenas tocos retorcidos, arrancados à força, e suas penas ensangüentadas se

espalhavam pelo chão. O corpo era tomado por fungos, e a pele parecia

putrefata ou queimada em alguns pontos. Os lábios do prisioneiro se

moveram, cuspindo sangue. “Seus sonhos... foram... tranqüilos...?”, ele

indagou, hesitante, sua voz cheia de dor e fraqueza.

“Uriel...”, murmurou o velho, Astaroth, o Lorde da Dor, que se

aproximava e tocava o peito do Arcanjo prisioneiro. A voz ecoava como

um trovão, e as centenas de almas condenadas presas às colunas falavam

em uníssono com ele. “Os sinais são claros e, ainda assim, obscuros. Teria

você alguma serventia a mim, além de prover o sangue que bebo e a dor

que devoro? Meu irmão devolveu-me sua alma incondicionalmente ao

destruir sua casca mortal, e agora invade meus domínios com um exército

rastejando a seus pés. Qual é o significado disso?”.

“É medo o que sinto... emanando de você...?”, indagou o Arcanjo,

forçando-se a erguer a cabeça a fim de encarar os olhos vazios de seu

algoz.

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Page 613: Magna Veritas - Tiago José Moreira

A mão do Grande Lorde tocou gentilmente a face do Primus,

deslizando como se a acariciasse. O arcanjo continha-se para não gritar,

conforme sua carne se grudava à pele dos dedos do demônio e era

arrancada lentamente pelo movimento suave de sua mão. Então, as almas e

o velho falaram novamente em conjunto, como um coral profano: “Sua

insolência é maior ao não gritar, do que ao tentar me difamar. Contenha-se

da forma como achar melhor, sua dor é como doce néctar escorrendo por

minha língua. Sofrimento é meu direito de nascença, minha força, meu

legado. Por maior que seja você entre seus iguais, em minhas mãos você é

só carne. No reino da carne, Uriel, eu sou supremo”. Então, o demônio

afastou a mão, arrancando ainda mais pele do rosto do Arcanjo no

processo. As vozes então urraram: “Aqui, eu sou seu senhor, seu dono!

Responda à pergunta que fiz!”.

“O Quarto Filho...”, murmurou Uriel-chamado-Veritatis, “...vem ao

seu encontro... ele me deseja...”. Tendo dito isso, ele baixou sua cabeça,

sussurrando: “Envie seus exércitos a ele... Expulse-o...”.

O Grande Lorde deu as costas ao Arcanjo, silenciosamente. Ele

estendeu o braço direito à frente de si, e então cravou as unhas da mão

esquerda na carne do braço exposto. Lentamente, o demônio rasgou sua

própria carne, pedaços de unha quebrando e ficando agarradas à carne,

provocando pústulas e corrosão. A dor penetrava a alma do Grande Lorde,

alimentando-o, trazendo clareza à sua mente.

“Não”, a voz do demônio e de seus escravos emanou, e então o

demônio se voltou uma vez mais ao arcanjo. “Eles marcham para o sul,

para Dudael, não para cá. É desespero que o faz me dar maus conselhos,

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Page 614: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Uriel? Ou é ódio? Ou...”, o demônio pausou, então murmurando: “É

medo que sinto emanando de você?”.

O Arcanjo nada disse, apenas fechou os olhos, sabendo que

estavam vindo por ele. Era isso que Ele queria... Aquele que planejou tudo,

vislumbrou tudo... o jogador que estava prestes a fazer seu movimento

final, cujas conseqüências mudariam o rumo da batalha eterna entre Éden e

Inferno. Uriel-chamado-Veritatis ardia em remorso, ódio e desespero, pois

ele não havia condenado apenas a si mesmo, como a todos que viriam

busca-lo. Sentindo dores que se espalhavam por seu corpo todo, o Arcanjo

podia perceber que o demônio se afastava e se sentava em seu trono negro,

pois as lamúrias e gemidos dos condenados lentamente voltavam a encher

seus ouvidos e a ecoar em sua alma.

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Page 615: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Capítulo 22: As Sete Trombetas

Ao leste, a escuridão se aproximava, enquanto ao oeste o sol

desaparecia lentamente num horizonte vermelho-sangue. Eu sentia frio,

mas não era um frio trazido pelo vento ou pela lua nascente, mas oriundo

de minha própria alma, de meu próprio medo. Ao sul distante, eu podia ver

Sancta Turrim estender-se às nuvens, como se fosse uma finíssima linha

que unia entre terra e céu. Ao redor, estavam apenas campos verdejantes,

estendendo-se até onde a vista alcança... a grama, porém, não se alcançava

a imediação ao meu redor. Ao invés disso, apenas terra infértil e rocha

negra cobriam aquele pequeno trecho dos Campos Elíseos... No centro

daquela área morta, havia um grande círculo, onde no passado sangue

celeste e fora derramado e o solo fora queimado para criar o selo que nos

protegeria. Agora, formando as cinco pontas de um pentagrama invisível,

cinco Arcanjos oravam.

Percebi meu fiel amigo Nicholas, meu velho companheiro em Sans

Vidya, vestindo uma túnica azul-clara, se aproximando de mim. “Senhor

Nicodemus”, ele disse, “os quatro últimos de seus companheiros

chegaram”.

Eu olhei para o leste, e pude à distância ver luzes cruzando o céu.

Eram dezenas, mas eu sabia que muitos mais viriam no decorrer da noite.

Quantos, porém, eu não tinha idéia. Dissipando os pensamentos divagantes,

eu me voltei a Nicholas: “Obrigado, Nicholas”. Então, direcionei-me ao

norte, a passos rápidos, enquanto Nicholas me seguia.

Logo ao norte, estava um pequeno acampamento, feito por anjos e

almas que se dedicavam aos últimos preparativos para o que viria a

acontecer. Seguido por Nicholas, caminhei por entre as dezenas de tendas,

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Page 616: Magna Veritas - Tiago José Moreira

ouvindo o som de metal sendo movido, conforme centenas de armas e

armaduras eram preparadas para aqueles que viessem sem o devido

preparo. Mesmo faltando poucas horas, os ferreiros, tanto almas como

Tecnoanjos habilidosos, ainda trabalhavam nas forjas para preparar mais

algumas lâminas antes do momento decisivo. “Por aqui”, Nicholas indicou

o caminho. E, ao redor de uma fogueira, nossa Falange estava completa

novamente.

A primeira reação foi a de Absolon. “Nicodemus!”, ele exclamou,

mal me reconhecendo devido a meus trajes, “é você?”.

Sorri, retirando o elmo prateado que cobria minha cabeça e nuca, e

cuja proteção se estendia ao meu nariz, deixando apenas olhos e mandíbula

à vista. “Sim, sou eu. Estamos indo a uma guerra, afinal de contas”,

respondi. Era compreensível a estranheza dele, pois eu mesmo me

estranhava em tais trajes. Placas de metal prateado protegiam meu peito,

pernas e ombros, e sob o mesmo eu vestia trajes reforçados com couro

negro, que defendiam minhas pernas e braços. Eu usava pesadas botas de

couro e luvas resistentes. Minhas costas, porém, eram cobertas por um fino

tecido, para que minhas asas pudessem surgir desimpedidas. Sobre toda a

indumentária, eu ainda usava um manto cinzento. E, em respeito a Asphael

Veritas, sua espada reconstruída repousava embainhada em minha cintura.

Fabrizia, que chegara com Absolon, me chamou pelo nome e se aproximou,

me abraçando. E, abraçado a ela, eu pude perceber que todos vieram

prontos para a guerra.

Fabrizia e Absolon vestiam praticamente o mesmo que eu, mas

pude perceber que, ao invés de apenas couro, Absolon vestia um camisão

também de cota de malha para proteger seu ventre e braços, e não tinha um

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Page 617: Magna Veritas - Tiago José Moreira

manto sobre a armadura. Fabrizia prendia seu cabelo num rabo de

cavalo único. Ambos portavam elmos semelhantes ao meu, mas ainda não

os tinham posto em suas cabeças. Enquanto Absolon portava a espada nas

costas, Fabrizia trazia um facão na cintura.

Ansgar havia chegado com eles também. Esperando que Fabrizia

me largasse para que me cumprimentasse, o gigante ruivo esboçava um

sorriso no rosto. Ao contrário dos demais, ele não portava armadura pesada,

protegendo-se apenas com uma placa peitoral e algumas placas nas pernas.

Por baixo, ele usava roupas de tecido comum, como se confiasse mais em

seu poder do que em metal para se proteger. Sua espada, porém,

permanecia presa a sua cintura.

Al-Malik vestia uma túnica, mas sobre a mesma, também

repousava um peitoral de aço e ombreiras de metal. Abaixo do cinto, a

túnica se partia à frente, como se fosse um sobretudo fechado até a barriga,

e eu podia ver as penas protegidas por placas de metal. À cabeça, ele levava

seu turbante, mas parte do tecido se enrolava afrouxado no pescoço. Sua

espada ele também levava na cintura.

E havia também os outros, que chegaram antes: Samuel Fulmen,

vestia-se como o templário que ele fora em vida, com uma túnica branca

sobre o camisão de cota de malha e o peitoral de aço, e o símbolo da cruz

vermelha destacando-se em seu peito. Luvas e botas resistentes protegiam

suas mãos e pés, e, como todos os outros, apenas suas costas estavam

desprotegidas, para que as asas nascessem livres. Ele não portava, porém,

nenhum elmo.

Karina vestia um manto negro com capuz, mas pude perceber o

reluzir de cota de malha sob o manto. Suas mãos eram cobertas por luvas

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Page 618: Magna Veritas - Tiago José Moreira

grossas. De todos, ela era a que menos parecia depender de metal.

Porém, com surpresa, pude perceber que mesmo ela levava uma espada

curta na cintura.

E, é claro, Lo Wang, permanecia sentado ao lado da fogueira,

virado em oposição a ela, para que a luz não tocasse seu rosto. Ele vestia

sua típica roupa negra, que cobria todo o corpo salvo a cabeça. A máscara

demoníaca, porém, ele portava em suas mãos.

Era estranho pensar naquilo... em pleno século XXI, nos

preparávamos com lâminas e armas de metal, sem atenção para armas de

longa distância ou coletes. Porém, quando chegássemos ao Inferno, mesmo

o metal seria frágil contra as garras e o fogo de seus habitantes. Assim que

tudo começasse, estaríamos revivendo as guerras do passado, erguendo

espadas e lâminas contra nossos inimigos, bradando gritos de guerra e

investindo contra monstros. Eu não podia deixar de pensar que, sendo um

sábio, era tolice me aventurar na batalha... porém, eu não ousaria deixar de

carregar uma espada comigo, especialmente a espada de Lorde Asphael,

para me proteger contra o que quer que encontrássemos lá.

Luzes cruzaram os céus acima.

“Quanto tempo falta?”, perguntou Absolon, olhando os Celestiais

que se aproximavam.

“Algumas horas. Será pouco antes do amanhecer”, respondi.

“Está com medo?”, o Princeps me perguntou, e pude ver nos seus

olhos o mesmo o que eu sentia. Pavor.

“Se qualquer um de nós dissesse que não está com medo”,

murmurou Lo Wang, se levantando, “ele seria um mentiroso”.

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Page 619: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Uma vez lá, não sabemos o que acontecerá”, disse Samuel, se

aproximando da fogueira ao centro do grupo, “portanto, cada um protegerá

o outro, com a própria vida se for necessário”. Então, tendo dito isso, ele

sacou a espada, estendendo a lâmina até a fogueira.

“Eu prometo”, disse Ansgar, sacando sua grande espada, e fazendo

com que a ponta tocasse a lâmina de Samuel, sobre o fogo.

“Que tenhamos medo de atravessar o portal, mas não de morrer por

nossos companheiros”, murmurou Lo Wang, repetindo o ato com sua

lâmina negra.

Eu saquei a lâmina de Asphael, também tocando as lâminas dos

demais, e Al-Malik e Absolon o fizeram em seguida. Fabrizia e Karina

repetiram o ato. E, com oito lâminas convergindo sobre o fogo, nos

entreolhamos. “Meu Clero preza os sinais e os símbolos”, murmurei, “e

aqui vejo um. Onde antes havia oito destinos, agora há um só. Tombaremos

ou triunfaremos juntos. Por tudo o que passamos, e tudo o que

conquistamos, o fizemos juntos, e unidos permaneceremos... À frente, resta

apenas Magna Veritas. Nós não falharemos”.

Recolhemos nossas espadas. Acima, mais luzes se aproximavam.

Mais algumas dezenas. As horas passavam, a lua se elevava mais no

firmamento, e o vento norte se intensificava. E as luzes tornavam-se

centenas. Cada um esperou à sua maneira, alguns orando, outros

aproveitando juntos os últimos momentos, e, enquanto as horas

progrediam, aqueles que vinham pelos céus eram agora milhares. Podíamos

ouvir o som de um exército se reunir nas proximidades, enquanto as

últimas batidas de martelos e bigornas cessavam, e a lua, lentamente,

começava a descer ao oeste.

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Page 620: Magna Veritas - Tiago José Moreira

E então soaram as trombetas pela primeira vez.

O Anjo da Morte se aproximou, vindo de algum lugar nos confins

do acampamento. Por sobre a armadura negra, ele tinha ainda um grande

manto. Retirando seu capuz e revelando o rosto pálido, Azrael Veritas nos

chamou: “Venham, meus companheiros, vai começar”.

Olhei Nicholas se aproximar. “Senhor!”, ele gritou, “Espere!”.

Parei e fitei Nicholas, antes de pôr meu elmo.

“Senhor”, ele disse, “apenas queria me despedir. Cuide-se, por

favor, e eu prometo que cuidarei de Sans Vidya em sua ausência”.

Sorri, agradecendo, e em seguida, pus o elmo. Azrael, Absolon e

Fabrizia fizeram o mesmo, enquanto Lo Wang pôs sua máscara, e Al-Malik

cobriu a boca e nariz com os panos que enrolavam seu pescoço, deixando

apenas os olhos à vista. Karina, por fim, cobriu a cabeça com o capuz de

seu manto. E, guiados pelo Anjo da Morte, caminhamos rumo ao sul, onde

nosso destino nos esperava. Nicholas ficou a nos observar, enquanto nos

afastávamos.

Ao sul, começávamos a ver, na penumbra, uma grande massa de

pessoas, que parecia aumentar mais e mais conforme nos aproximávamos.

Eles falavam, milhares lado a lado, e o som era o de um exército eu nunca

vira antes. À frente do exército, havia sete almas, cada uma portando uma

grande trombeta. Entre as almas e o exército, quatro grandes homens

estavam em pé, suas faces voltadas para nós que chegávamos.

As almas nos deram passagem, enquanto três entre os grandes

homens caminharam em nossa direção. Enquanto avançávamos, passamos

sobre o círculo de terra negra. “É este o lugar?”, perguntou Absolon.

“Sim”, respondi. “Aqui é o portão para o Inferno”.

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Page 621: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Atravessamos o grande círculo, com dezenas de metros de raio,

e chegamos àqueles que nos esperavam. Antes que eu pudesse ver os rostos

na penumbra, eu podia sentir seu poder, pois no plano espiritual eles

brilhavam como sóis, seu poder emanando e tocando cada um ali presente.

À esquerda, estava o Arcanjo Rafael. À direita, aproximava-se o Arcanjo

Gabriel. Ao centro, se ajoelhava o Arcanjo Miguel. E, atrás, o único sem

armadura, vestindo apenas peles de animais, estava o Arcanjo Raguel.

Miguel ergueu o braço direito, com a mão aberta, e houve silêncio.

O exército se calou no mesmo instante, e apenas a brisa e o som de grilos

continuaram. “Novamente nos encontramos”, disse o Primus dos Princeps,

erguendo-se e tirando o elmo para nós, “É uma honra estar ao lado de

vocês, lutar ao seu lado. Sei que pedimos muito de vocês, mas lembrem-se:

é a sua jornada, não a nossa. Vocês são o centro disto, para testemunhar e

encontrar a verdade que mais ninguém pode ver. Hoje vocês irão ao

Inferno, mas não irão sozinhos. Nós iremos protege-los”.

E, tendo dito isso, ele pôs o elmo, enquanto as asas metálicas de

Gabriel se abriram. Um brilho azul intenso emanou de seu corpo,

inundando-nos de luz, e ele ascendeu aos céus, pondo-se à frente do

exército. Também as asas de Miguel se abriram, revelando dezenas de

faixas de luz que brilhavam douradas como o sol, espantando a escuridão

da noite. Por fim, o Arcanjo Rafael abriu suas imensas asas brancas,

também brilhando dourado. Os dois também ascenderam aos céus,

aproximando-se de Gabriel nas alturas.

Então, Gabriel sacou sua espada, apontando-a para o alto. A espada

se iluminou em chamas celestes, intensificando o brilho do Arcanjo. Poder

emanou do Arcanjo Miguel como se fosse uma torrente feroz, que nos

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Page 622: Magna Veritas - Tiago José Moreira

banhava com força e determinação. Por um instante, pude ouvir o bater

de meu coração, e o bater dos corações dos meus companheiros. Eles

batiam em conjunto, em uníssono, e os corações de cada um dos milhares

de Celestiais ali presentes pareciam ecoar em minha mente como se fossem

tambores de guerra.

“Irmãos!”, clamou o Arcanjo Gabriel, fitando o exército, sua voz

explodindo como um trovão, tanto em nossos ouvidos como em nossas

mentes. O silêncio imperou por alguns instantes, antes que o Primus

prosseguisse: “Há jovens e antigos aqui, lado a lado. Nós demos o

chamado, e todos vocês atenderam de livre vontade! O peso que recai sobre

os ombros de vocês é maior do que qualquer peso imposto ao Éden no

passado. Vê-los unidos em armas aqui, trazidos pelo desejo de lutar, me

traz orgulho, pois o que está prestes a acontecer jamais aconteceu antes”.

“No passado”, continuou Gabriel, “as trombetas tocaram para que

descêssemos, como um dilúvio enviado por Deus, aos vivos, para lutar e

morrer, e para destruir as forças infernais que ameaçavam aqueles que

juramos proteger. Nosso sangue foi derramado para que lavássemos a Terra

de toda imundice e toda a corrupção demoníaca que a contaminava. E,

graças a nossa força e unidade, o Lorde do Sangue foi vencido!”

E os tambores de guerra se intensificaram.

“No passado”, o Primus repetiu, “as trombetas tocaram para que

defendêssemos nosso lar, e para que as almas puras permanecessem

intocadas pelos demônios do Inferno. Nós perdemos irmãos e irmãs nas

batalhas em nosso próprio reino, e muitos se sacrificaram para preservar

nosso futuro. E, apesar das perdas, nós triunfamos, nós derrotamos o Lorde

da Guerra e o expulsamos!”

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Page 623: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“E agora”, o Gabriel clamou, “nós entraremos no covil do

inimigo e marcharemos pelo solo infernal! Assim que as trombetas

tocarem, os portões do Inferno se abrirão diante de nós. Saquem suas

armas, nos sigam! O inimigo nos espera! Que, desta vez, os Grandes

Lordes do Inferno tremam com a nossa presença!”.

E, tendo dito isso, o Arcanjo urrou. Os dez mil Celestiais ali

reunidos sacaram suas armas, urrando, enquanto as sete trombetas tocaram

pela quinta vez na história.

Viramo-nos para o círculo, e eu pude sentir uma energia emanar. O

selo que antes trancava a passagem se abriu, e as energias antes contidas

vazaram, emanando uma onda de calor. Eu pude sentir as energias do Éden

se enfraquecerem, como se sua pureza fosse corrompida pela presença

infernal. Uma chama vermelha emanou do centro do círculo, e então se

intensificou, tomando todo o diâmetro do mesmo. O fogo ergueu-se aos

céus, alcançando dezenas de metros de altura.

“Devemos entrar agora?”, perguntou Absolon, gritando para se

fazer ouvir em meio aos urros de guerra. As energias do portal rugiam, e o

céu acima, começava a se agitar, emitindo trovões e ventanias.

“Não”, respondeu Azrael, o Anjo da Morte, em nossas mentes, e

sem seguida se virando se volta ao exército. “Olhem e esperem!”, sua voz

ecoou.

Nos viramos. E, sob a luz dos trovões, vimos o Arcanjo Raguel,

Primus dos Xamãs nos fitar. Os Arcanjos nos flancos do exército erguiam

suas armas, e indicavam para as unidades das duas extremidades

avançassem. Atrás do exército, asas se abriam, e centenas de Celestiais

tomavam os céus, avançando pelos ares em direção ao portal. Os

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Page 624: Magna Veritas - Tiago José Moreira

destacamentos ao centro e à frente do exército permaneciam

estacionários, enquanto as tropas de flanco avançavam em investida, e os

exércitos aéreos passavam sobre nossa cabeça. Cada destacamento tinha à

frente um Arcanjo e, eles avançavam contra o portal, atravessando-o rumo

ao Inferno. Também Rafael, Miguel e Gabriel avançaram pelos céus,

adentrando as energias vermelhas e desaparecendo de nossas vistas.

As asas do Arcanjo Raguel se abriram, e seu corpo brilhou cercado

como se relâmpagos o envolvessem. Seus olhos emanavam eletricidade, e

então ele se aproximou caminhando de nós. Os destacamentos da frente e

do centro começaram a marchar, acompanhando-o. “Agora é a hora”, sua

voz ecoou trazida pelos ventos, acompanhada de trovões, “Atravessem o

portão do Inferno e ergam-se aos céus. Juntem-se a meus irmãos e

cumpram seu destino!”. Tendo dito isso, o Primus virou-se para fitar os

exércitos que marchavam lentamente logo atrás, enquanto acima e pelos

flancos centenas investiam contra o portal. “Avancem, e levem nossa fúria

ao Inferno!”, os ventos ecoaram. Os gritos de guerra intensificaram, e os

milhares de Celestiais avançaram correndo.

“À frente!”, gritei, desajeitadamente sacando a espada de Asphael e

apontando sua lâmina contra o portal, enquanto minhas asas se liberavam e

meu brilho emanava por minha armadura. Todos, inclusive o Anjo da

Morte, avançamos em nossas formas celestes. Nossas auras brilhavam

intensas através das frestas e elmos de nossas armaduras, como se fôssemos

pura luz sob as roupas de metal. Eu corri, seguido por eles, e, conforme me

aproximava das energias vermelhas, eu podia ver algo além. Luzes celestes

tomavam os céus do outro lado, enquanto nosso exército marchava em

terra. Eu podia ver uma paisagem nebulosa, vermelha, e um céu negro.

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Page 625: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Fechei os olhos quando toquei o portal, e era como se fosse transpor

água quente. Eu senti a resistência das energias, mas forcei a passagem. Ao

sentir o portal ser deixado para trás, ergui-me aos céus, abri meus olhos... e

vi.

O calor era insuportável, como se o chão abaixo fosse fogo. Acima,

nuvens negras e turbulentas tomavam os céus, enquanto ventos fortes

erguiam poeira e cinzas. Entre as brechas nas nuvens, eu podia ver um céu

vermelho ardente, e um sol pequeno e fraco, enegrecido como se estivesse

próximo da morte. Abaixo, planícies mortas de rochas cinzentas e

vermelhas se espalhavam por quilômetros, enquanto cadeias montanhosas,

algumas tão altas cujos topos estavam acima das nuvens negras, se

espalhavam pelo horizonte. À distância, eu pude ver um dragão negro abrir

suas asas e voar para o norte, fugindo do exército que chegava pelo portal.

Vulcões no horizonte a leste emanavam toneladas de gases venenosos e

cinzas nos céus, intensificando as nuvens. Eu voei, seguido por meus

companheiros, aproximando-me dos três Primi à frente. Atrás de nós,

milhares ainda cruzavam a porta entre os dois mundos, urrando fúria. Foi

quando ouvi trovões e vi raios vermelhos caírem do céu. E o exército

celeste que já estava no Inferno parou e fitou aquele que atravessava o

portal.

Ninguém cercava o Arcanjo Raguel, e as tropas que atravessavam o

portal mantinham-se a um grande raio de distância, como se a turbulência

ao redor não pudesse afeta-lo. Enquanto as tropas avançavam, ele parou

logo adiante do portal, olhando o horizonte à frente. Suas asas abriram-se

totalmente, tomando quase doze metros de envergadura.

“O que ele está fazendo?”, perguntou Ansgar aos gritos.

625

Page 626: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Para que nada atravesse do Inferno para o Paraíso, ele será o

guardião do portal”, a voz do Anjo da Morte ecoou em nossas mentes.

Senti os céus vibrarem, e o Arcanjo Raguel cruzou seus braços,

deixando seu poder ser liberado. As nuvens acima se abriram, como se uma

explosão as empurrasse para longe. E, onde o céu se abria, o firmamento

vermelho dava lugar a um céu azul. O azul tomou um raio de quilômetros

acima do portal. “Deixem que o Inferno saiba que nós trazemos a guerra até

ele”, a voz de Raguel ecoou trazida pelos ventos e trovões, “e que eles

tremam diante do sinal de que estamos nos aproximando”.

O Arcanjo Miguel, à distância, fitou Karina, e ela fechou os olhos,

como se estivesse se concentrando. Então, ela gritou: “Para o norte!”.

“AVANÇAR!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou em nossas mentes.

“O inimigo está ao norte!”.

Fitei o norte, que era exatamente a direção que o portal apontava ao

ser atravessado, e lá eu ainda vi nuvens negras e um horizonte vermelho.

Ao meu redor, dez mil Celestiais avançavam, por terra pelos céus. As

tropas terrestres agora abriam suas asas e voavam rentes ao solo, erguendo

nuvens de poeira, para que pudessem acompanhar a velocidade do exército

aéreo. Eu podia ver espadas brilhando e ardendo e chamas celestes

incendiando asas e punhos. As energias celestes eram liberadas, conforme

cada Celestial ali presente deixava-as correr por seus corpos, se

fortalecendo. A ressonância das energias podia ser sentida por quilômetros,

provocando ventos fortes, trovões e até mesmo provocando semblantes de

vida nas plantas ressequidas e espinhosas do deserto rochoso abaixo. O que

quer que estivesse à frente, no caminho do exército divino, podia sentir

nossa presença, e sabia que milhares vinham em sua direção.

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Page 627: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Os urros de guerra começavam a baixar, mas os céus ainda

traziam o som trovões vindo do norte. Logo a área de céu azul terminaria, e

alcançaríamos a negritude à frente. Apesar de todo o poder celeste que

emanava e da presença de três Primi entre nós, eu podia sentir... algo... à

frente. Algo negro, tempestuoso, poderoso. E, conforme os exércitos

voavam, também podia ver revoadas de criaturas aladas erguerem-se no

alto das montanhas, a leste e a oeste, no horizonte. Uma montanha cinzenta

se aproximava à frente, e abaixo, vinda do oeste mas seguindo para o norte

eu vi uma estrada de rochas, iluminadas por milhares de tochas que ardiam

em Fogo Negro. Ao sopé da montanha, pude perceber, em meio a uma

névoa de cinzas, uma construção colossal de obsidiana. Muralhas titânicas

de pedra cercavam um imenso coliseu e, na face norte do coliseu, uma torre

se erguia, com grandes vitrais vermelhos. Os portões de metal das muralhas

se abriam, e a leste e a oeste, eu via as revoadas negras mudarem sua

direção, convergindo para a fortaleza à frente.

Os Primi pararam, logo abaixo do limite entre os céus azul e

vermelho. Aos poucos, os exércitos celestes foram parando. As tropas

terrestres pousavam e se punham em posição, guerreiros com lanças e

armas de vara à frente. Nos céus, as tropas pairavam nos ares, voando em

círculos ao redor das tropas terrestres. O coliseu demoníaco estava a cerca

de 500 metros à frente, seus portões abertos por completo. Foi quando o

vento trouxe o som de tambores e o som do marchar de milhares de

homens. Uma massa de milhares de pessoas maltrapilhas, armadas com

lanças, arcos e espadas curtas, começou a sair da fortaleza. Entre as almas

condenadas, marchavam centenas de demônios.

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Page 628: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Um brilho intenso emanou do Arcanjo Miguel, e as tropas

terrestres se iluminaram com a mesma luz. O Arcanjo desceu e, ao pousar

diante das tropas celestes, o chão tremeu. O Primus dos Princeps ergueu

sua espada, a lâmina ardendo em chamas douradas. “AVANÇAR!”, seu

grito trovejou em nossas mentes. Os gritos de guerra de milhares em ambos

os lados ecoaram em seguida, e os exércitos celeste e demoníaco

avançaram um sobre um outro. À frente de nossas forças, Miguel em

pessoa corria em investida, ambas as mãos segurando firmemente a espada,

enquanto suas dezenas de faixas de luz serpenteavam em suas costas.

“PREPAREM-SE!”, a voz do Arcanjo Rafael urrou às nossas

forças aéreas, enquanto os dois exércitos abaixo rapidamente se

aproximavam. A montanha cinzenta à frente tremeu, explodindo como um

vulcão que despertava, jogando fumaça, cinzas e pedras incandescentes

para os ares. As revoadas negras se aproximavam, revelando centenas de

criaturas colossais, voando sobre asas de couro. Os dragões, acompanhados

por enxames de insetos e morcegos infernais, rugiam, suas bocas

iluminando-se com o fogo que ardia em seu interior. “ATACAR!”, o

Primus dos Sancti urrou, e as forças aéreas voaram em todas as direções,

para atacar tanto o exército demoníaco como as criaturas de fogo e ar que

se aproximavam.

O Arcanjo Gabriel permanecia à nossa frente, parado nos céus,

apenas observando. Abaixo, o marchar dos exércitos e seus gritos de guerra

faziam a terra tremer, enquanto acima choviam fogo e cinzas dos céus. E,

então, os dois exércitos terrestres se chocaram.

Centenas de almas condenadas caíram assim que o Arcanjo Miguel

alcançou as tropas demoníacas. Brilhando como um sol, ele abria caminho

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Page 629: Magna Veritas - Tiago José Moreira

pelas forças inimigas, cada golpe de sua espada destruindo corpos e

arremessando dezenas aos ares, enquanto suas faixas de luz agiam como

tentáculos, agarrando e arremessando a grandes distâncias os condenados

que os atacavam. Os soldados demoníacos e celestiais se misturavam no

campo de batalha, enquanto grandes rochas incandescentes caíam sobre

guerreiros de ambos os lados. Por trás das muralhas da fortaleza obsidiana,

catapultas arremessavam bolas de fogo negro, e sobre as muralhas da

mesma, milhares de almas condenadas arremessavam flechas contaminadas

por chamas infernais.

Nos céus, hostes de Celestiais voavam ao redor dos dragões, que

vomitavam fogo sobre o céu e a terra. A chuva de cinzas e chamas se

intensificava, e os enxames de insetos demoníacos ardiam em fogo, como

se fossem nuvens incandescentes que singravam os céus, consumindo tudo

o que entrava em seus caminhos. Demônios alados erguiam-se aos céus,

armados com tridentes e lanças, e as flechas flamejantes lançadas das

muralhas erguiam-se quilômetros nos céus, como setas de fogo, como se

nenhuma gravidade pudesse para-las. As forças do Éden convergiam sobre

os dragões, atacando-os em grandes números, enquanto corpos de ambas as

forças caíam sobre as tropas que lutavam em terra.

O chão tremeu novamente, e eu pude sentir um poder emanar da

torre na fortaleza. Por um momento, tive a impressão de ver um vulto

observar tudo por trás dos vitrais vermelhos. Aquele poder indescritível

avançou sobre o campo de batalha, e o chão se abriu em grandes

rachaduras, cuspindo magma incandescente e vomitando mais cinzas nos

céus.

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Page 630: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Em resposta, chamas celestes voaram, explodindo grandes

raios de território onde as forças demoníacas se aglomeravam. Em meio ao

caos, eu podia ver círculos de celestiais se unirem para avançar,

decapitando e desmembrando as almas condenadas e demônios que os

atacavam. Também os demônios se uniam, cercados por milhares de almas

profanadas, e avançavam contra Celestiais solitários, arrasando-os nas

pontas de suas lanças e garras.

E nós permanecíamos ali, como que intocados pelo caos, apenas

observando atônitos algo que estava além de nossas dimensões. À nossa

frente, o Arcanjo Gabriel permanecia imóvel, como se seu único dever

fosse nos proteger... ou como se estivesse esperando por algum.

Um dragão, consumido pela aura do Arcanjo Rafael, tombou sobre

um grupo de demônios, esmagando-os. O Arcanjo então voou na direção

do enxame incandescente, penetrando no meio do fogo mortal. A aura de

chamas douradas ao seu redor consumia os insetos aos milhões, fazendo

com que uma chuva de restos caísse sobre os guerreiros no campo abaixo.

Um dragão, o maior que eu tinha visto até aquele momento, desceu

ao solo, pousando violentamente sobre a frente celeste. A criatura vomitou

seu hálito de chamas negras, enquanto avançava, esmagando e derrubando

centenas. Dezenas de Anjos voavam para amontoar-se sobre a criatura, mas

suas espadas, lanças e chamas celestes pareciam incapazes de atravessar

seu couro. Outros dragões pousavam, seguindo aquele líder. Suas

mandíbulas abocanhavam Celestiais e os arremessavam longe. Arcanjos

tentavam organizar os exércitos, enquanto almas condenadas e demônios

ganhavam terreno. Mas, mal parecia que os demônios adquiriam uma

vantagem, os poderes celestes se intensificaram. Bandos de Anjos

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Page 631: Magna Veritas - Tiago José Moreira

expulsavam as almas condenadas, enquanto os dragões tombavam,

alguns sendo derrotados por um Arcanjos que lutavam sozinhos em meio

ao caos.

Morcegos infernais agora tomavam os céus aos milhões agora, suas

presas e garras rasgando asas celestes, forçando centenas ao chão.

Explosões de chamas celestes e auras douradas dizimavam os morcegos às

centenas, e ventos poderosos comandados pelo Éden derrubavam centenas

ao chão, onde eram pisoteados pelos exércitos de ambos os lados.

O líder dos dragões avançava abaixo continuava a dizimar

Celestiais, enviando dezenas aos ares a cada balançar de sua cauda.

Arcanjos tentavam para-lo em vão, mas a criatura avançava, abocanhando e

pisoteando tanto demônios como anjos em seu caminho. Foi então que o

Arcanjo Miguel avançou de frente para a criatura, derrubando e expulsando

sem esforço todas as almas e demônios que se encontravam em seu

caminho. O gigantesco dragão percebeu o brilho solar do Primus, pondo-se

também a avançar em sua direção. O urro da criatura parecia se destacar no

caos, e sua bocarra se abriu, vomitando Fogo Negro contra o Primus. O

Arcanjo emergiu das chamas intocado, e a bocarra da criatura se abriu

ainda mais para abocanhar o Primus. As faixas de luz do Arcanjo Miguel

atacaram, envolvendo a boca do dragão e a fechando à força, num instante.

Então, as faixas forçaram a cabeça da criatura para o lado, expondo sua

traquéia desprotegida. O Arcanjo saltou e sua espada atravessou a couraça

do monstro sem nenhuma dificuldade. Quase decapitado, o líder dos

dragões caiu. As tropas celestes avançaram sobre o corpo do inimigo

derrubado, voltando a engajar o exército de almas que os esperava logo

além da criatura.

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Page 632: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Atrás do dragão caído, o Arcanjo Rafael pousou, e seu brilhou

iluminou os caídos na batalha. Às centenas, Celestiais feridos se erguiam e

brandiam novamente suas armas, juntando-se a seus irmãos que os

aguardavam na frente de batalha.

O magma incandescente espirrou mais forte das fendas do chão,

caindo de volta como uma chuva cáustica. O campo de batalha inteiro

estava coberto por cinzas e fumaça densa. Então, mais demônios

avançaram através dos portões da fortaleza. Centenas, de formas mais

diversas, mas com armas brilhantes e armaduras de metal. Mais e mais

almas condenadas também saíam da fortaleza, mas estas eram melhor

armadas. Porém, o que mais se destacou foi a criatura que saiu da fortaleza

logo em seguida. A criatura era humanóide, mas tinha mais de três metros

de altura. Seus braços eram grandes e desproporcionais às pernas, como um

gorila, e seu couro era feito de placas de pedra sólida.

Foi então que o Arcanjo Gabriel se moveu, virando-se para nós:

“Permaneçam próximos a mim”, ele pediu, e então avançou na direção da

fortaleza. Nós os seguimos de perto, enquanto nuvens de morcegos

infernais convergiam sobre nós, mas eram queimados por chamas invisíveis

antes que nos alcançassem.

Sobrevoamos o campo de batalha, onde as duas forças ainda

lutavam desesperadamente. Mais dragões e demônios surgiam, alguns

vindos dos céus, outros surgindo da fortaleza, como se seus números

fossem infindáveis. Nos aproximando das muralhas, o Arcanjo Gabriel

pousou, e então brandiu sua espada flamejante, que ardia em chamas

celestes. Demônios e almas tombavam, enquanto ele avançava, abrindo

caminho a nós, rumo aos portões da fortaleza. Pousamos na trilha aberta

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Page 633: Magna Veritas - Tiago José Moreira

pelo Arcanjo, assumindo nossas formas humanas, e continuamos a

segui-lo, com Lo Wang, Ansgar, Samuel e Azrael lutando para que todos

pudéssemos continuar apenas das legiões de condenados que insistiam em

atacar nosso grupo.

Agora estávamos em meio ao caos, e eu já não podia mais

acompanhar tudo o que acontecia. Podia notar que os demônios recém-

chegados engajavam os Arcanjos das forças celestes, e o chão estava

coberto de sangue, entranhas e corpos. A cada golpe da espada de Gabriel,

rios de chamas celestes se espalhavam e dezenas de almas eram

consumidas. Foi quando a criatura avançou contra Gabriel, derrubando

arquidemônios e almas em seu caminho. Um brilho ardente iluminava seus

olhos e o interior de sua boca, como se suas entranhas ardessem em

chamas. A mandíbula, sem bochechas, revelava infindáveis dentes largos e

variados como os de um mamífero, mas suas presas se destacavam. O

punho de rocha atingiu o Primus em cheio, derrubando-o.

“O que é aquilo?”, gritou Fabrizia, surpresa.

“Um dos Nonos da Casa de An”, o Arcanjo Azrael nos disse em

nossas mentes. “Defendam-se e mantenham-se afastados, somente um

exército de Arcanjos poderia derrubar uma dessas criaturas”.

Uma explosão de chamas celestes afastou as almas que tentavam

atacar o Primus derrubado. O gigante avançou, seus passos fazendo a terra

tremer, desimpedido pelas chamas azuis que cercavam Gabriel. O Primus

se ergueu a tempo e, como um relâmpago, o punho do monstro atingiu o

local em que o Primus estava caído um segundo antes. A terra se abriu com

o golpe, cuspindo chamas e fumaça. As asas de Gabriel se abriram, ele

passou pelo gigante, sua lâmina flamejante atingindo em cheio a perna da

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Page 634: Magna Veritas - Tiago José Moreira

criatura. As placas de rocha se partiram, mas a perna não foi arrancada,

e magma escorreu pelo ferimento aberto. A criatura parecia não sentir dor,

virando-se para atingir novamente o Arcanjo. O punho da criatura avançou

novamente contra o Arcanjo. Gabriel girou o corpo, desviando-se e se

abaixando, ao mesmo tempo que suas asas alcançavam envergadura

máximo. Com o movimento, as asas cortantes atingiram o peito e o braço

do monstro, rasgando rocha e fazendo mais magma ser derramado. A

criatura urrou de dor, recuando. O Arcanjo, porém, avançou, erguendo-se

no ar à altura do pescoço do monstro. A lâmina flamejante traçou um arco,

e pedaços de pedra e respingos de magma emanaram da traquéia cortada. O

gigante tombou sobre várias almas condenadas que estavam logo atrás, mas

ainda rugia em fúria. Finalmente, o Arcanjo apontou sua espada para baixo,

e investiu contra o solo, a lâmina penetrando pela boca do monstro,

atravessando seu crânio e enterrando-se no solo infernal. Então, enquanto

mais magma fluía pelo ferimento mortal, uma explosão de chamas celestes

se seguiu, dizimando cada alma condenada nas proximidades, mas sem nos

ferir. Apenas os arquidemônios mais poderosos sobreviveram, mas não sem

ferimentos graves. Eles logo seriam atacados pelas forças do Éden que se

aproximavam.

O Arcanjo Gabriel se virou a nós, sua face quase invisível, oculta

pelo brilho que emanava das aberturas de seu elmo. “Avancemos”, ele

disse em nossas mentes, “Encontraremos a Verdade... e seus destinos...

adiante”.

Os primeiros destacamentos celestes, tanto aéreos e terrestres,

começavam a alcançar os portões da fortaleza, mas não sem baixas ou

ferimentos. Junto com as tropas urrantes do Paraíso, nós adentrávamos no

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Page 635: Magna Veritas - Tiago José Moreira

covil do inimigo. Acima, por influência de algum Arcanjo, um globo

de Fogo Celestial, como se fosse um sol azul, surgiu no alto, iluminando o

caminho pelo pátio entre as muralhas e o coliseu. A luz queimava as almas

que se aglomeravam no topo das muralhas. Sob o ardor celeste, as flechas

malditas que elas disparavam começavam a diminuir em intensidade.

Os imensos portões de ferro do coliseu estavam trancados, mas sob

a fúria dos Arcanjos que avançavam, metal partia-se como se fosse vidro.

Acima, centenas de Arcanjos avançavam pelos céus, sobrevoando o coliseu

e a torre que estava na face norte do mesmo.

“Por onde?”, gritei, ao notar que além dos portões estava um

labirinto de corredores.

“Por aqui”, apontou Karina, seu instinto a guiando.

Enquanto prosseguíamos pelo corredor apontado, as tropas celestes

se dividiam pelo labirinto, atravessando os corredores cheios de almas

guerreiras e demônios. Atravessamos corredores largos, e criaturas

demoníacas e almas guerreiras de faces esqueléticas avançavam por

corredores adjacentes, atacando de surpresa. Três cães imensos, cada um

com três cabeças, protegiam o portão adiante, enquanto lobos de sombra,

pequenos diabretes e soldados esqueléticos pareciam vir em ondas

intermináveis. Nossos guerreiros seguravam as ondas de condenados,

enquanto as lâminas de Gabriel e Azrael pareciam cortar desimpedidas as

criaturas mais poderosas. “Por Magna Veritas!”, gritou Azrael, enquanto

sua espada cortava a cabeça de um lobo espectral.

Pouco a pouco, as hordas demoníacas pareciam estar ganhando

terreno, enquanto diabretes subiam por nossas pernas ou voavam sobre

nossas cabeças. Um flash de luz se seguiu, e Fogo Celestial emanou de

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Page 636: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Gabriel, reduzindo a pó todos os agressores. “Nada ficará em nosso

caminho”, disse o Primus, repetindo: “NADA!”. Ele apontou a mão aberta

para o portão à frente, havendo um estrondo em seguida. Vento soprou do

corpo do Primus, e os portões foram arrancados como se atingidos pelos

ventos de um furacão. Os portões voaram pela arena à frente, esmagando

mais almas e demônios que esperavam ali.

Adentramos a arena, enquanto Celestiais desciam dos céus para

enfrentar as centenas de almas e demônios que se acumulavam no pátio e

nas arquibancadas. Nas paredes da arena, milhares de almas estavam

empaladas em estacas, alimentando um fosso de sangue que circundava

todo o pátio. Também estacas se erguiam de pequenas “ilhas” no interior da

arena, com dezenas de pessoas empaladas e agonizando em cada uma

delas. O chão da arena estava cheio de poças de sangue e restos mortais,

tanto de criaturas demoníacas como de seres humanos.Em meio à fumaça,

eu via, do outro lado, a torre de obsidiana, e pude notar, a esta distância,

que mais corpos se amontoavam empaladas em estacas nas intersecções

entre os andares da torre.

O caos ainda reinava ao redor, mas minha mente se concentrava.

Eu podia sentir algo emanar da torre. Algo poderoso e destrutivo... Gabriel

avançou, e nós avançávamos, mas, por um momento, os sons trovejantes da

batalha cessavam, e minhas memórias se voltavam a um momento do

passado recente. Eu ouvi falar sobre esse lugar... “Ashtar” era o nome desse

coliseu. “O Pilar Central de Gehenna”, segundo o que Íblis Al-Qadim nos

contara. E, adiante, estaria Astaroth, o Lorde da Dor.

Os sons da batalha voltaram a inundar meus ouvidos, quando um

grupo de Arcanjos desapareceu na nuvem de fumaça e cinzas que cercava a

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Page 637: Magna Veritas - Tiago José Moreira

torre de Ashtar. Nenhum deles ressurgiu das cinzas mais. A chuva de

fogo continuava a cair dos céus, talvez até com mais intensidade aqui, e

Celestiais caíam com asas queimadas, enquanto hordas de demônios

avançavam incontidos pelo fogo. A chuva flamejante parecia não nos tocar,

mas a cada passo, eu podia sentir o poder à frente crescer e permear o ar.

Eu me sentia enfraquecer em espírito, como se as energias do Inferno se

concentrassem ali. Em meio à nuvem que cercava a torre, eu podia agora

ouvir trovões e ver relâmpagos.

Chegando ao meio da arena, adentramos na nuvem de fumaça e

cinzas. Imediatamente, nossos pulmões foram tomados por fumaça

cancerígena. Nossas naturezas imortais nos protegeriam, mas as almas

empaladas naquela região tossiam, enquanto sua carne parecia se desfazer

em tumores. Os sons da batalha pareciam mais distantes, como se a fumaça

intensa abafasse tudo o que vinha de fora. Finalmente, os portões da torre

estavam diante de nós.

O Arcanjo Gabriel empurrou os grandes portões. As paredes

tremeram, e ouvimos o som de algo de madeira se partir, como se uma

árvore arrebentasse. Lentamente, os portões se abriram. E o frio e a

escuridão adiante nos recepcionou. Por baixo dos elmos e capuzes, nossos

olhos brilharam, invadindo com pouco sucesso a escuridão densa. A espada

flamejante de Gabriel, porém, foi mais bem-sucedida em nos prover

iluminação. A batalha lá fora parecia ter se cessado por completo, tamanho

era o silêncio. Então, gemidos invadiram o ambiente.

O Arcanjo Gabriel nos fitou, seu olhar brilhante penetrando nossas

almas. Karina murmurou: “Eu sei o caminho”, e pôs-se ao lado do Primus.

Juntos, eles guiaram pelos corredores labirínticos. Restos humanos se

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Page 638: Magna Veritas - Tiago José Moreira

espalhavam pelo caminho, e muitas almas se dispunham acorrentadas

ou empaladas pelos corredores e tetos, algumas desmembradas, outras com

a pele arrancada ou queimada, o cheiro de podridão permeava o ar, e

sangue se acumulava nas canaletas nos cantos de cada corredor. Gritos de

socorro, de ódio e de dor ecoavam pelos infindáveis corredores e pelas

escadarias, intensificando-se conforme subimos os andares da torre. O som

tocava nossos ouvidos, mas se repetia em nossas mentes. A aura do

Arcanjo Miguel já não nos tocava mais, e medo e dúvida invadia minha

mente. Eu sentia a presença do senhor daquele lugar, seu olhar nos fitando,

se alimentando de nossas dúvidas. A presença era forte, densa, onipresente.

“Aqui”, a voz de Karina soou assustada. Finalmente, à frente,

estava um grande portão de ferro, mas este estava aberto, nos

recepcionando. Adentramos o salão juntos, vendo sua vastidão, apesar das

trevas densas, que só eram quebradas por uma luz vestigial emanada pelos

vitrais vermelhos. Aquele salão praticamente ocupava todo aquele andar da

torre, e seu teto se perdia no escuro. Aquele que procurávamos estava

finalmente à nossa frente.

Como uma luz moribunda nas trevas, o Arcanjo Uriel, chamado

Veritatis, estava ao nosso alcance. Nos aproximamos dele, ignorando os

gritos de agonia das almas que se dispunham empaladas ou acorrentadas

naquela sala. O Arcanjo agonizava, preso no ar por correntes que ligavam

suas mãos ao teto, e seus pés ao chão. Suas asas tinham sido arrancadas à

força, e penas negras ensangüentadas se espalhavam pelo chão, algumas

flutuando na superfície dos poços, nos quais o sangue dos condenados era

acumulado.

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Page 639: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Mestre”, murmurou Azrael, que, como nós, voltavam sua

atenção ao Primus. O sangue do Arcanjo se acumulava numa poça sob ele,

escorrendo por múltiplas perfurações nos peitos e por grandes cortes na

testa. Sua pele parecia putrefata em alguns pontos, queimada em outros, e

seu rosto revelava partes de pele arrancadas. Seu peito inchava-se devido às

costelas quebradas e a alguma hemorragia interna, e vermes rastejavam sob

sua pele. Diversas bolhas e pústulas se formavam pelos braços. A aparência

dele era suficiente para nos atordoar e nos afetar. Mais uma vez eu senti

medo.

A mão de Samuel tocou o peito de Veritatis, brilhando dourada.

“Não consigo cura-lo”, assustou-se Samuel, conforme ferimentos se

intensificavam ao invés de se curarem. O Primus tentou gritar de dor, mas

apenas sangue escoou por sua boca, abafando gemidos de agonia.

Mas então, por entre os gemidos abafados, Uriel-chamado-Veritatis

falou, sua voz rouca e fraca, e sua boca escorrendo sangue: “Vocês... não

veriam... ter vindo aqui...”.

E, tendo dito, o portão de entrada fechou-se violentamente,

emitindo um estrondo que ecoou pela sala. Karina abafou um grito

assustado, enquanto todos sacavam suas espadas. De costas para nós, ainda

à frente do grupo, o Arcanjo Gabriel intensificou as chamas celestes de sua

espada, fitando a escuridão além.

“Bem-vindos a meu lar”, uma voz demoníaca veio da escuridão,

acompanhada por um coro feito por todas as almas condenadas que

agonizavam naquele aposento. “Eu prometo a vocês que não morrerão, mas

sugiro que orem a seus deuses para que eu quebre esta promessa”.

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Page 640: Magna Veritas - Tiago José Moreira

De um canto, um conjunto de almas torturadas murmurou: “Eu

sou Balberith”. E de outro canto, outro coro sussurrou: “Eu sou Astaroth”.

E de outro: “Eu sou Duriel”. E de um quarto coro: “Eu sou Olivier”. E, por

fim, de todos os pontos: “Eu sou o Terceiro Filho, Lorde da Dor, Senhor

das Doenças, Algoz da Humanidade. Tolos entram em meu Reino, onde

anjos jamais ousaram adentrar. Eu não tenho medo de vocês, pois sou

onipresente. Eu atormento grávidas no nascer ou no aborto de seus filhos, e

cada vez que um ferimento se abre eu regozijo em prazer e alegria. O medo

que sentem me alimenta. Eu sou o senhor da carne, suas espadas não

podem cortar vencer uma doença, seu fogo não pode extinguir um câncer”.

A face de Gabriel seguia os movimentos de um vulto que se

aproximava pelo lado oposto do salão, caminhando erraticamente. “Pelo

menos Leviathan me enfrentou em silêncio”, murmurou o Primus.

“Eu sou dor e não sangue, caçador. Eu sou medo, e não uma

espada”, o coro profano declarou. Então, das trevas, emergiu um velho

corcunda, caminhando descalço, vestindo apenas um manto maltrapilho

sujo de sangue e vômito. Não havia olhos em sua face, apenas órbitas

negras e vazias. Seus dentes eram como os de um tubarão, sujos de sangue,

que também sujava a sua barba. Sua pele era cheia de tumores e

descamava-se como se lepra o afligisse. Abriu os braços como numa

paródia do Cristo Redentor que vimos na Cidade Maravilhosa, revelando

também dedos esqueléticos e compridos, com unhas longas e quebradiças.

“Eu sou a doença, não a guerra”, os lábios dele se moveram, emitindo uma

voz poderosa, sempre acompanhada pelo coro das almas condenadas ali

presentes.

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Page 641: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O Arcanjo Gabriel deu um passa à frente, suas asas se abrindo

e se incendiando em chamas celestes. Sua luz penetrou e dissipou trevas,

refletindo-se na carne doentia do Grande Lorde. Metaforicamente, o poder

de Gabriel explodia, liberando-se como fogo incontido, poder bruto e

destrutivo, enquanto a negritude do Terceiro Filho, Astaroth, parecia

conter-se, placidamente aguardando o momento apropriado para ser

liberada. Os dois oponentes lentamente se aproximavam. Um trono

obsidiano, ao centro da sala, parecia ser também o meio exato na distância

entre os dois oponentes.

“Ele... planejou... tudo”, murmurou Veritatis, de olhos fechados,

sem forças para sequer erguer sua cabeça.

“Libertem-no!”, eu pedi aos outros, me voltando ao Primus

acorrentado: “Quem planejou tudo?”.

“É tarde... demais...”, murmurou Uriel-chamado-Veritatis, “o

nascimento... do Décimo Quarto Filho... está próximo...”.

À frente, os dois combatentes estavam a poucos passos um do

outro.

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Page 642: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Interlúdio Terceiro: O Lorde das Mentiras

O Arcanjo Urias, Serafim dos Spiritus Latro permanecia ali,

sentado na escuridão. Seus olhos brilhavam intensamente. Ele podia sentir

o respirar fluir do jarro. Embora duas horas tivessem se passado desde a

última notícia que teve, ele sabia que, naquele momento, as hostes celestes

já deviam ter adentrado o Inferno. Ele sentia as energias do Éden se

enfraquecerem, indicando que a porta entre os dois mundos estava aberta

novamente, como ocorreu nas últimas duas Grandes Guerras. O Arcanjo

Raguel, Primus dos Xamãs, guardaria o portal desta vez pelo lado infernal,

e alguns Arcanjos e Celestiais no lado celeste assegurariam que nada

passaria. A mente do Arcanjo estava perturbada, talvez por causa do sono

conturbado do último mês. Leviathan enviava a ele visões do passado e da

Primeira Grande Guerra, atormentando seu descanso. Ainda assim, a mente

do Arcanjo permanecia centrada em sua tarefa solitária.

De repente, a respiração espiritual do jarro se intensificou, como se

ofegasse. Urias ergueu a cabeça, fitando o jarro, e então fechou os olhos,

ouvindo respirar. Algo parecia incontido, como se a irracionalidade dos

fragmentos de alma ali aprisionados despertasse. Urias sentiu uma presença

se intensificar... uma sombra indescritível, trazendo consigo frio e

tormento. As poucas energias celestes presentes pareciam se dissipar

rapidamente, enquanto um poder claramente infernal aumentava nas

cavernas sob Libraria.

E então, poderoso como nunca antes, o urro do Leviathan ecoou,

fazendo as cavernas tremerem. Poeira caiu do teto da caverna, e Urias abriu

os olhos. Para sua surpresa, rachaduras se intensificavam na superfície do

jarro, e os escritos rúnicos de Fabulare nas paredes da câmara eram

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Page 643: Magna Veritas - Tiago José Moreira

quebrados conforme as próprias paredes também se rachavam. Urias

podia sentir o poder contigo ali emanar para fora... mas era um poder

passivo, diferente da sombra que se aproximava.

Alguém mais estava ali com Urias, ele podia sentir. Algo maior do

que qualquer Celestial ou demônio comum poderia se tornar. Urias se virou

para a entrada da câmara... e ali viu um ser coberto por mantos negros e um

capuz. A escuridão era tão densa que sua face, encoberta pelo capuz, não

podia ser vista, nem mesmo com a ajuda dos poderes de percepção do

Arcanjo. Urias deixou seu poder celeste correr por seu corpo, enquanto

suas asas se abriam, iluminando a escuridão com luz branca.

“Quem é você?”, indagou Urias, enquanto canalizava os poderes

dos antigos Protectori para se fortalecer. Ainda assim, toda a luz de Uriel

não era nada mais do que uma vela morrendo em meio à escuridão que

emanava do recém-chegado.

“Eu sou o maior e o menor”, a voz do recém-chegado emanou,

criando tremores nas profundezas. Ela soava como uma mistura de rosnado

e trovão, ecoando eternamente na mente de Urias. Nas costas do recém-

chegado, asas pútridas e doentias, quase esqueléticas, com penas negras e

murchas, se abriram. Das profundezas do capuz, o brilho vermelho de dois

olhos incandescentes emanou com intensidade. O estranho ergueu as mãos,

carcomidas e esqueléticas, cobertas por pele queimada, e levou-as até o

capuz, puxando-o para revelar seu rosto.

“Não pode ser!”, murmurou Urias, seus olhos brilhantes

arregalando-se diante do rosto que ele reconhecia, apesar das deformidades

e queimaduras. A criatura avançou, seu poder expandindo-se como um

buraco negro que engolia toda luz daquele lugar.

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Page 644: Magna Veritas - Tiago José Moreira

644

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Capítulo 23: O Lorde da Dor

“Abandonem toda a esperança, aqueles que aqui entrarem”, o coro

de almas profanadas murmurou em uníssono. Embora no exterior da torre

negra, uma guerra entre milhares urrasse furiosa, eu sabia que seria na

câmara vasta e negra que seu fim seria decidida. Enquanto sangue celeste e

demoníaco era derramado, regando as terras inférteis do Inferno, à minha

frente estavam dois seres que ultrapassavam os limites de minha

compreensão. Seus passos eram lentos, emitindo sons que eram abafados

pelo respirar conjunto de centenas de almas torturadas. Ainda assim, eram

os sons de nossos corações que ecoavam em minha mente.

À nossa frente, o Arcanjo Gabriel mantinha sua lâmina preparada e

suas asas abertas. A arma e as asas cortantes ardiam em chamas celestes,

que brilhavam com uma intensidade ofuscante. Sua luz emanava das frestas

da armadura prateada, delineando seu corpo. Fita-lo diretamente era como

fitar o sol, e eu o olhava tentando proteger meus olhos da claridade que

emanava.

E ainda assim, o demônio o encarava de face erguida, suas órbitas

vazias não sendo afetadas pela luminosidade. Veios negros pareciam se

formar sob a pele doentia, enquanto ele expunha sua mandíbula, preenchida

por dentes afiados como os de um tubarão. Aproximando-se a passos

pausados, ele lentamente abria os braços, mostrando peito e ventre abertos

e desprotegidos. O manto pútrido que ele vestia se abria, revelando sua

nudez desconcertante. Ele respirava pausada e profundamente, sendo

acompanhada por todas as almas acorrentadas e torturadas ali presentes,

como se o monstro e suas vítimas fossem um só ser.

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Page 646: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Lentamente, o Primus movia sua lâmina para a esquerda,

preparando braços e pernas para o golpe inicial. Parando ao lado de seu

trono, o Grande Lorde baixou a cabeça, mantendo os braços abertos, como

se desse boas-vindas ao adversários. As asas flamejantes do Arcanjo se

abriam o máximo que podiam, revelando sob o manto de fogo purificador

penas cortantes e afiadas como facas. Lentamente, o espaço entre ambos se

reduzia. A cada passo do Arcanjo, nossos corações aceleravam mais em

ansiedade. Então, os dois gigantes se aproximaram o suficiente para que a

lâmina do Arcanjo pudesse ser liberada em um golpe certeiro...

...e o que veio a seguir foi um trovão, e um arco de chamas que

cruzou o espaço entre eles. O demônio recuou, movendo-se como um

fantasma, escapando por pouco da lâmina que atravessava o ar tão rápido

que parecia um relâmpago. Aproveitando o movimento dos braços, o

Arcanjo girou por completo o corpo, e suas asas letais traçaram novos arcos

flamejantes no ar. A primeira atingiu o ventre do Lorde da Dor, cortando-o

de lado a lado. Sangue e tripas escaparam pelo ferimento, caindo ao chão.

Atingido, o demônio tombou, fazendo com que a segunda asa passasse logo

acima da cabeça do monstro. O demônio recuava arrastando-se, enquanto o

Arcanjo completava o giro e se erguia no ar, pondo a lâmina acima de sua

cabeça. Ele avançou numa velocidade incrível, deixando apenas seu rastro

de chamas, e então a espada desceu, traçando agora um arco vertical.

Astaroth rolou para o lado, escapando mais uma vez por pouco. O metal da

lâmina se chocou com o solo de mármore, emitindo um estrondo intenso. O

chão rachou e as paredes tremeram, e então um novo arco de chamas foi

traçado, desta vez ascendendo da esquerda para a direita, passando

exatamente onde o pescoço do Grande Lorde caído estaria, mas este mais

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Page 647: Magna Veritas - Tiago José Moreira

uma vez esquivara num piscar de olhos, rolando uma segunda vez.

Apoiando-se nas mãos, o demônio se impulsionou para se erguer. Um novo

arco de chamas cruzou o ar, trovejando, e desta vez a lâmina foi certeira.

Almas e o demônio urraram quando a lâmina atingiu o ombro

esquerdo do Grande Lorde, mas o urro era de ódio, não de dor. A espada

flamejante penetrou profundamente, partindo ossos e carne, até chegar ao

coração do monstro. Ainda assim, a criatura punha-se em pé, seus músculos

e ossos partidos se reunindo e fechando o corte, prendendo a espada no

peito do Senhor da Dor. O demônio avançou contra o adversário, fazendo

com que a lâmina o atravessasse, a ponta surgindo além de suas costas. Por

onde o sangue infernal passava, porém, chamas celestes agora ardiam

verdes e corruptas. Antes que Gabriel soltasse a arma ou tentasse reagir, a

mão esquerda de Astaroth agarrou seu punho direito, enquanto a mão

direita se erguia, descendo contra o peito do Primus. As unhas quebradiças

do demônio atingiram a armadura, penetrando-a sem dificuldades e

encontrando a carne celeste abaixo. Sob o contato com a mão de Astaroth,

a armadura se enferrujava e se partia como se fosse barro seco. As garras

da criatura desceram do peito ao ventre de Gabriel, rasgando pele e carne,

mas incapazes de penetrar profundamente.

Chutando o demônio para que se afastasse, o Arcanjo puxou a

lâmina para direita, forçando-a a arrebentar a caixa torácica de Astaroth

para se livrar de sua prisão de carne. O sangue pútrido e partes de costelas

do demônio se espalharam, enquanto as chamas da lâmina tornavam-se

mais uma vez puras. Aproveitando o movimento circular, Gabriel mais uma

vez girou todo o corpo, e as asas rasgaram o ar na direção do inimigo. O

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Page 648: Magna Veritas - Tiago José Moreira

demônio urrou, se jogando para trás para escapar das penas cortantes

que o ameaçavam.

Sangue escorria de ambos os combatentes, mas a batalha

prosseguia. Completando o giro de seu corpo, o Arcanjo Gabriel ergueu a

espada mais uma vez, avançando bravamente. O demônio Astaroth abriu os

braços, rosnando furioso, e uma explosão se seguiu. Chamas negras

emanaram de seu corpo, tomando todo um raio de doze metros ao seu

redor. A onda de ar emitida fez com que as paredes e o teto tremessem, e

rachaduras se espalharam e mesmo nós lutamos para não sermos

derrubados. Mesmo envolvido pelas chamas negras, o corpo agora

totalmente flamejante de Gabriel avançava, voando por entre o inferno de

fogo profano, tornando Fogo Negro em Fogo Celestial em seu caminho. A

lâmina flamejante atravessou certeira o demônio, mas este avançou,

desincorporando-se numa forma de puro fogo negro. Também o corpo do

Arcanjo se tornou fogo celeste por completo, e ambas as formas

flamejantes, vagamente similares às suas formas verdadeiras, começaram a

batalhar em meio a um incêndio que brilhava azul e verde. As duas formas

semimateriais, desimpedidas por peso, entravam numa dança precisa e

letal, na qual os golpes eram evitados pelas formas que se expandiam e se

contraíam, uma incapaz de vencer a outra.

“Precisamos agir!”, gritou Azrael, o Anjo da Morte, enquanto

alguns de nós se levantavam após a onda de choque emitida pelo demônio.

Adiante, os fogos se espalhavam mais e mais, ameaçando tomar toda a

área.

Deixando de lado a batalha por alguns instantes, eu fitei Veritatis.

Seu rosto ainda baixo, seus olhos fechados e sua respiração quase ausente

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Page 649: Magna Veritas - Tiago José Moreira

me preocupavam. “Ajudem-me a liberta-lo!”, pedi, enquanto Ansgar e

Azrael tentavam partir as correntes que o prendiam ao teto.

O estrondo de metal se chocar contra rocha ecoou, me forçando a

fitar mais uma vez a batalha. Partículas de rocha caíram do teto quando a

torre tremeu. Adiante, a espada semi-material do Arcanjo Gabriel atingia a

parede, indicando que os combatentes não eram totalmente insubstanciais.

Preso entre a parede e o Arcanjo, o Lorde da Dor avançou, sua bocarra se

expandindo como a mandíbula de uma cobra, aproveitando a posição

vulnerável do Primus. As mandíbulas de chamas se fecharam sobre o

ombro esquerdo de Gabriel, penetrando profundamente. Então, o Grande

Lorde puxou de volta a cabeça, arrancando um naco de carne. Como

magma, o sangue de Gabriel espirrou, e o Arcanjo tentou recuar, mas não

antes que a mão direita de Astaroth atingisse certeiramente a face do

Primus. As chamas celestes do Arcanjo se apagaram e suas asas sumiram,

enquanto seu elmo enferrujava e era partido pelas unhas quebradiças do

demônio. O impacto do golpe jogou o Arcanjo para trás, derrubando-o e

fazendo-o rolar no chão, através da conflagração de Fogo Negro que

tomava o salão.

O demônio retornou à forma física, revelando um corpo marcado

por queimaduras e cortes. Sua face enegrecida parecia putrefata, com

pedaços queimados caindo e revelando músculos cinzentos sob a pele. Seus

dedos sangravam, com as pontas carcomidas e as unhas quebradas. De sua

barriga, escorria sangue e caíam vísceras, que se tornavam massas de

vermes ao tocar o piso. Ainda assim, o respirar das almas acompanhava sua

respiração pausada e profunda, não indicando cansaço ou dor. Lentamente,

o demônio avançava em direção ao Arcanjo derrubado. E, então, eu ouvi

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sua risada demoníaca ecoar, acompanhada pelas almas ali presentes,

penetrando em minha alma e provocando dor em minha mente. Todos, com

exceção de Azrael, pareciam ser afetados pela gargalhada, nos forçando,

por um momento, a parar nossas tentativas de partir as correntes que

prendiam Veritatis.

Lentamente, o Arcanjo Gabriel lutava para se erguer, enquanto as

chamas negras ao seu redor eram pouco a pouco substituídas por fogo

celeste. Cessando sua gargalhada, o Lorde da Dor pôs-se a andar por entre

as chamas corruptas, vagarosamente se aproximando do Primus. “Você

ainda persevera? Quão fútil!”, as almas disseram, acompanhando a voz

monstruosa de seu mestre. Gabriel se punha em pé, revelando um peito

tomado por infecções e ferimentos purulentos, e uma face rasgada por

garras cegas e cauterizantes. Seu olho esquerdo estava fechado, tendo sido

trespassado pelas garras do demônio, enquanto mais e mais partes de sua

armadura agora se rachavam e eram cobertas por uma ferrugem enegrecida.

Seu ombro esquerdo era uma massa de músculos dilacerados e sangue

grosso, que escorria por todo o lado esquerdo de seu corpo. O Grande

Lorde parou diante dele, a poucos metros, como se esperasse seu próximo

passo. Mesmo ofegante, Gabriel deixou que sua aura surgisse e suas asas

crescerem novamente, e então avançou mais uma vez contra o inimigo.

A espada de Gabriel cortou o ar rápida o suficiente para gerar um

trovão, e o Arcanjo continuou a avançar e golpear enquanto seu oponente

recuava para escapar dos ataques incessantes. Ainda assim, o Grande Lorde

parecia incansável, enquanto os ataques de Gabriel pareciam mais lentos a

cada golpe. Eu podia sentir a intensidade do poder do Arcanjo diminuir,

enquanto o Grande Lorde parecia se fortalecer com a dor lacerante que

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lentamente tomava o corpo do Primus. “Este é o santuário de Astaroth.

O poder dele é maior aqui”, murmurou Azrael, apertando os punhos em

volta do cabo de sua espada.

A espada cortou novamente o ar, seguida das asas, mas desta vez,

ao invés de recuar, o demônio avançou, abaixando-se para que a primeira

asa passasse por cima dele. Antes que a segunda asa o atingisse, Astaroth

urrou, e suas garras atingiram as costas desprotegidas de Gabriel, rasgando-

as de alto a baixo. Atingido pelo golpe, o Arcanjo perdeu o equilíbrio,

caindo de joelhos no chão, e apoiando-se sobre os braços. As mãos do

demônio incendiaram-se em chamas negras, ele então agarrou ambas as

asas flamejantes. Imediatamente, seu toque fez com que o fogo profano se

espalhasse pelas asas de Gabriel, e Astaroth apoiou sua perna nas costas do

Arcanjo, forçando as asas. O grito de dor do Arcanjo se seguiu, conforme

suas asas eram arrancadas à força. A asa direita partiu-se, derramando

sangue e definhando nas mãos do Grande Lorde. Suas penas cortantes

agora murchavam, conforme Fogo Negro as consumia e as reduzia a pó.

Antes que a asa esquerda fosse partida, porém, Gabriel reagiu, tentando

girar tronco para desferir um golpe com a espada, empunhada apenas pela

mão direita. Seu pulso, porém, foi agarrado pela mão direita de Astaroth

antes que a lâmina pudesse atingir o Grande Lorde.

“Espadas e punhos são as armas de um guerreiro”, o coro

demoníaco murmurou, enquanto a armadura de Gabriel enegrecia e rachava

a partir do braço por Astaroth. Gabriel liberou um segundo grito de dor, e

sangue espirrou de sua boca. “Eu não sou um guerreiro. Eu sou doença, eu

sou dor. Eu sou o mestre da carne. Em minhas mãos, você não é nada mais

mortal, e a febre e a dor que você sente são apenas o início”. O infernal

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então girou o corpo, arremessando Gabriel para longe. A espada do

Arcanjo caiu inerte, enquanto seu corpo voou como uma folha jogada ao

vento, atingindo uma das paredes com tanta força que a fez rachar. O

Arcanjo caiu sobre a própria asa, e os ossos da mesma se partiram com a

queda. As próprias penas cortantes agora agiam como facas, penetrando na

armadura quebradiça e rasgando a carne das costas do Arcanjo.

As chamas que restavam na sala começavam a desaparecer,

enquanto o Grande Lorde da Dor agora se aproximava do Primus

derrubado, lentamente. Gabriel tentava se erguer, mas a putrefação que se

espalhava a partir de seu peito agora chegava a seus braços, fazendo-os

fraquejar. O monstro balançou uma mão, e o chão se moveu sob o Arcanjo,

criando uma estaca, que rapidamente se elevou e trespassou o peito de

Gabriel, erguendo-o no ar. O sangue celeste escorreu pela estaca,

lentamente. Nos ignorando por completo, o demônio continuou a caminhar

calmamente na direção do Primus.

“Absolon...”, murmurei, enquanto levava minha mão à

empunhadura de minha espada. Tocar a arma me dava insegurança, medo,

receio, mas eu sentia que era meu dever, minha única escolha.

“Sim, Nicodemus”, ele respondeu, com sua lâmina já em mãos.

“Leve Karina e Fabrizia para longe daqui”, murmurei.

“Eu também quero lutar, Nicodemus”, ele pediu, sua voz

demonstrando medo, suas mãos trêmulas, mas seu olhar decidido.

O som de metal deslizando pela bainha de couro acompanhou a voz

de Armin Ansgar: “Isto não é uma luta, jovem Absolon...”.

“...é um sacrifício”, completou Al-Malik, também sacando sua

cimitarra.

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Page 653: Magna Veritas - Tiago José Moreira

As asas negras do Anjo da Morte se abriram à nossa frente.

“Sam?”, olhou Karina para o Sancti, desconsolada. Samuel Fulmen

parou, fitou-a, seu olhar cheio de medo, e então ele a abraçou. “Cuide-se,

Karina”, ele pediu, então se afastando e pondo a espada à frente do corpo.

“Foi um grande prazer e uma grande honra conhece-los”, Lo Wang

murmurou, caminhando para frente, na direção do demônio, lentamente. A

escuridão se acumulava ao redor dele, tornando-o apenas uma sombra até

desaparecer na escuridão.

Karina segurou o choro, e Fabrizia a abraçou, enquanto Absolon se

aproximava das duas, ainda com a espada em mãos. Os três jovens se

entreolharam, e nos fitaram, enquanto dávamos os primeiros passos rumo

ao extremo oposto do salão, onde a Força de Deus agora agonizava, e a

morte nos esperava.

As mãos do Arcanjo Gabriel seguravam firmemente a estaca que o

trespassava, lutando para parti-la, enquanto o inimigo se aproximava

calmamente. “Não é irônico?”, o coro demoníaco zombou. “Não é este o

dia que todos temíamos? O dia em que começaria o fim, o Armageddon? O

sangue que se derrama logo além de minha torre é apenas o começo. Sua

ação começou tudo, começou uma guerra, e agora as profecias se

cumprirão! Os céus choverão fogo, e os mortos amaldiçoados invadirão o

reino da vida. Os mares se tornarão sangue, e os pecadores cairão sobre os

justos, arrancando-lhes as carnes e bebendo-lhes o sangue. A Quinta Guerra

começa, a última guerra. Eu os agradeço por isso”.

A lâmina de Samuel brilhou dourada, enquanto as de Azrael e

Ansgar arderam em Fogo Celestial. Eu, atrás do grupo que caminhava

rumo ao seu destino, parei e fitei os jovens que ficaram para trás. Ao

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Page 654: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mesmo tempo, Gabriel reunia sua força, partindo a estaca que se

projetava de seu peito. E eu vi Veritatis murmurar para os jovens com sua

voz fraca e rouca: “O demônio inflige, mas o Arcanjo da Vida pode curar”.

Absolon fitou o Primus acorrentado, e meneou a cabeça.

O demônio chegou ao Primus que agora tentava se livrar da base da

estaca, empurrando-se para fora da haste mortal. “Tudo isso me alimenta”,

o coro demoníaco continuava, “a dor, o sangue, o desespero...”. Então, o

demônio se virou para nos fitar com suas órbitas vazias. “E as ovelhas que

vêm para o abate”.

O Anjo da Morte avançou, emitindo um grito de guerra e sendo

acompanhado por Ansgar e Samuel. Pus minha mão à frente do corpo,

liberando meu desespero na forma de um relâmpago que cruzou o salão,

atingindo o peito da monstruosidade. Ainda assim, o demônio avançava a

passos lentos, seu respirar sempre profundo e pausado.

A espada do Anjo da Morte atacou, atravessando carne e ossos

demoníacos de lado a lado to peito. Ainda assim, o demônio avançou, seus

ferimentos se fechando conforme a lâmina o atravessava. Sua garra atingiu

o rosto de Azrael, partindo seu elmo e arremessando o Arcanjo para trás. O

corpo do Anjo da Morte caiu rolando, retornando à forma humana.

Eu chamava por ajuda espiritual, enquanto Samuel e Ansgar

atacavam o demônio por flancos opostos. Das sombras, atrás do demônio, a

forma de Lo Wang surgia, atacando com a lâmina negra as costas do

demônio. Mesmo ferido, Azrael se erguia. O coro infernal gargalhava,

enquanto era atingido seguidamente por golpes de espada. Liberei o poder

espiritual que eu acumulava, e vi a carne do demônio se rasgar e sangrar,

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Page 655: Magna Veritas - Tiago José Moreira

mas ele não se enfraquecia, não recuava, não demonstrava dor ou

qualquer forma de fraqueza.

O demônio moveu o braço, cruzando o ar num arco à frente de

Ansgar. Ventos cortantes atingiram o Venator, arremessando-o vários

metros, e cortando sua carne e armadura. O Venator caiu pesadamente no

chão. Samuel ergueu sua espada e a cravou no chão, criando uma aura de

chamas douradas ao seu redor. Ao toque daquela aura, a carne do demônio

começava a queimar e a fumegar. O demônio se virou ao Sancti, ignorando

por um instante os ataques de Lo Wang, e ergueu a mão, e as chamas

imediatamente cessaram. Samuel cambaleou, urrando de dor, enquanto seu

ventre se partia, liberando suas vísceras e centenas de vermes. Então,

Astaroth se voltou a Lo Wang.

Al-Malik se posicionou nas proximidades da batalha. “Você que é

odiado por todos”, o Malaki gritou, “eu o puno por cada alma e Celestial

aqui presente, pela dor que causou e pretendia ainda causar!”.

A carne do demônio apodrecia e caía em pedaços, deixando

músculos e ossos expostos, mas mais uma vez ele não recuava ou

enfraquecia. “Cale-se”, o coro infernal urrou, e besouros, baratas e moscas

jorraram da boca de Al-Malik, sufocando-o. “Ajoelhe-se”, o Coro repetiu, e

os tendões das pernas de Al-Malik se partiram, forçando-o de joelhos.

Lo Wang recuou, enquanto as trevas se moviam para agarrar o

demônio. Atrás, Azrael avançava novamente, enquanto Ansgar lutava para

pôr-se em pé, apesar dos cortes que tomavam todo seu corpo. O coro

demoníaco gargalhou quando Lo Wang emitiu um grito emudecido, e as

trevas vazaram de seu interior na forma de tentáculos negros que surgiam

por sua boca e abriam caminho através de sua caixa torácica. Ao mesmo

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tempo, as trevas em tentavam engolir Astaroth se desfaziam, como se

tornassem pó ao toca-lo.

O que eu podia fazer? Fitei os três jovens atrás, tentando quebrar

um dos vitrais escarlates para escapar do salão. Apesar dos golpes da

espada de Absolon, o vidro apenas rachava, como se tivesse camadas e

mais camadas de espessura. À frente, Azrael emanava conflagrações de

chamas celestes, mergulhando o demônio em fogo purificador. Astaroth,

porém, avançava calmamente por entre as chamas, na direção do Anjo da

Morte. Entrando nas chamas, Armin Ansgar avançou na direção do

demônio, investindo não com a espada, mas com os punhos. O golpe

atingiu a cabeça do demônio, e este retribuiu com um simples tapa,

arremessando o Venator novamente contra o chão, mas também

incendiando-o em chamas negras.

Voltei a fitar os jovens. Eles precisavam escapar, mas o vidro os

resistia. Ergui minha mão na direção do vitral, concentrando-me para

liberar a fúria espiritual contra a vidraça.

O Arcanjo Azrael agora resistia sozinho ao demônio, desta vez

preocupando-se em escapar das garras do Inferno e contra-atacar sua carne

putrefata. Azrael claramente perdia terreno, conforme era forçado a recuar

mais e mais.

A visualizei a vidraça, sua estrutura e fraquezas, e preparei-me para

destruí-la com meu poder. Porém, antes que liberasse a fúria dos espíritos,

senti uma força em meu braço, vinda de dentro para fora. Uma nuvem de

respingos escarlates emanou de meu braço, conforme meus músculos eram

dilacerados e meus ossos partidos. Gritei de dor, caindo de joelhos,

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enquanto meu braço se tornava inútil. Tentei me curar, mas minha

energia se voltava contra mim, queimando e ardendo em meus ferimentos.

Adiante, Azrael desferia mais um golpe, mas Astaroth se moveu

tão rápido que conseguiu agarrar o pulso do Anjo da Morte, impedindo que

a lâmina o atingisse. A mão livre de Astaroth envolveu o rosto do Arcanjo,

e chamas negras tomaram seu corpo. Azrael gritou de dor, mas logo em

seguida houve um estrondo, causado por um impacto de força descomunal,

e o demônio recuou enquanto o Anjo da Morte caía no chão, livre das

chamas. Mesmo ferido, o Arcanjo Gabriel avançava urrando furioso e

voltava a atacar o demônio, avançando contra ele e desferindo um segundo

golpe com as mãos nuas. Um segundo estrondo se seguiu e o demônio

tombou. O Primus dos Venatores se pôs sobre o demônio caído, golpeando-

o seguidamente, fazendo o chão abaixo rachar e a torre tremer.

Azrael se levantava e se preparava para ajudar o Arcanjo Gabriel,

mas então o próprio Primus gritou: “Ajude os jovens!”. Naquele momento,

as garras de Astaroth atingiram a face do Primus, arrancando seu olho

direito e cegando-o por completo. O coro de almas urrou furioso, e a mão

direita de Astaroth envolveu o pescoço de Gabriel, pressionando-o e

fazendo as garras demoníacas penetrarem a traquéia do Arcanjo. Num

movimento rápido, o demônio jogou o Arcanjo para o lado, se erguendo em

seguida.

O Arcanjo Azrael voava na direção do vitral onde aguardavam

Absolon, Karina e Fabrizia. Astaroth fitou o Anjo da Morte. Fechei meus

olhos, tentando ignorar a dor de meu braço direito arruinado, e saquei a

espada de Asphael Veritas com a mão esquerda. Pondo-me em pé, corri na

direção do Grande Lorde, gritando. O demônio não esperou que eu desse

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Page 658: Magna Veritas - Tiago José Moreira

um passo, e golpeou o ar com suas garras, em minha direção. Mesmo à

distância, senti suas garras rasgarem meu peito e me empurrarem com uma

força extrema para trás. Tombei, deixando cair a espada.

Astaroth voltou a fitar Azrael, e cortou o ar com ambas as garras.

As asas do Arcanjo se rasgaram, forçando-o a cair e rolar no chão.

Caminhando numa velocidade demoníaca, o Lorde da Dor se aproximava

do Anjo da Morte, abrindo sua bocarra e revelando uma língua pegajosa e

serpenteante. O coro demoníaco rosnava furioso agora, e Azrael se erguia,

apesar da dor que vinha de suas asas inutilizadas. A lâmina de Azrael se

encheu de Fogo Celestial, e ele a ergueu apenas com a mão direita, fitando

Astaroth. O demônio se aproximava ainda mais, numa caminhada tão veloz

que o fazia parecer sem substância, como um fantasma que se movia sem

tocar o chão. Ao invés de avançar para atacar o demônio, porém, Azrael

Veritas se virou para os jovens, e arremessou a espada, que cruzou os ares,

deixando um rastro de chamas azuladas. “Cuidado!”, gritou Karina,

empurrando Absolon para fora do rumo da lâmina. A vidraça estilhaçou,

enviando cacos de vidro em todas as direções, alguns deles atingindo

Karina, Fabrizia e Absolon.

Astaroth alcançou Azrael e, num piscar de olhos, rasgou o peito do

Anjo da Morte com as garras. O Arcanjo tombou, e a bocarra do Grande

Lorde da Dor se abriu ainda mais, expandindo-se. Um som grotesco

emanou, enquanto as almas urravam, e o demônio regurgitou um exército

de milhares de vermes e insetos, que caíam sobre o corpo de Lorde Azrael

Veritas. O Anjo da Morte tentava se mover e incendiar os vermes em Fogo

Celestial, mas lentamente a massa de criaturas penetrava em sua armadura

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Page 659: Magna Veritas - Tiago José Moreira

e devorava-lhe a carne, alguns cavando em meio às entranhas do

Arcanjo para devora-lo de dentro para fora.

Astaroth fitou o vitral destruído e a nuvem negra além. Os jovens

tinham sumido. O coro infernal gargalhou, e ele se voltou a Gabriel, que

tentava se erguer e se curar, apesar de cego e mortalmente ferido. Todos os

ferimentos infeccionavam, e gangrena tomava boa parte de seu corpo. Seu

sangue jorrava pela garganta destruída. A dor era visível em seu rosto

desfigurado, mas acima de tudo, ele perseverava. Eu também tentava me

erguer, mas não era tão forte quanto ele. O máximo que pude fazer foi me

pôr sentado, fracamente apoiando-me em meu braço bom, enquanto

observava os eventos.

O demônio se aproximava lentamente do Primus. “Eu vou torna-lo

um monumento à dor”, o coro demoníaco murmurava. Alcançando Gabriel,

Astaroth o fitou, e então desferiu um chute para derruba-lo de vez no chão,

caindo de costas contra o solo de mármore. Abaixando-se ao lado do

Primus, o Grande Lorde tocou sua barriga, ainda protegida por restos de

cota de malha. A mão do demônio penetrou lentamente, ignorando a

resistência do metal e da carne, enquanto o Primus gritava. Chamas negras

emanavam da boca e dos olhos arruinados do Arcanjo, enquanto os dedos

do Grande Lorde envolviam suas tripas. “O bater de um coração, o choro

de uma criança, o respirar de um animal... eu tenho poder sobre tudo aquilo

que vive, tudo o que sofre e definha, mas a morte está além de mim.

Mortos, vocês não significam nada, mas vivos, serão meu alimento. Sua

carne é meu pão e o seu sangue é meu vinho, e eu vou devora-los por uma

eternidade”, o demônio murmurou, e então me fitou som suas órbitas

vazias.

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Page 660: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Respirei fundo, sentindo a dor se espalhar a partir de meu braço

e meu peito. Medo invadia minha mente... medo, desespero e memórias. O

demônio me olhava, e se levantou, caminhando lentamente em minha

direção, sua mão respingando o sangue celeste do Arcanjo Gabriel. “Você

sabe segredos que Uriel não revelou”, a coro infernal murmurou. “Seu

valor é alto, pois você conhece os planos de meus irmãos rebeldes,

daqueles que planejam sem meu conhecimento e consentimento. Eu quero

ouvir tudo, pequeno Arcanjo, incluindo seus gritos”.

“Eu não sei o que eles planejam”, murmurei.

“Mas eu posso descobrir a partir de você”, as almas disseram, e o

demônio estava cada vez mais próximo. “Sua vinda aqui hoje não é uma

coincidência, é uma afronta perpetrada por aqueles que marcham em

minhas terras, rumo a Dudael”.

O monstro parou diante de mim, baixando a cabeça para que eu

fitasse os músculos cinzentos que tapavam suas órbitas vazias. Sua carne

queimada e putrefata caía em algumas partes, e ferimentos cobriam todo o

seu corpo. O que restava dos trapos que ele vestia mal cobria seu corpo,

revelando feridas profundas, por onde escapavam vermes e pedaços de

vísceras. Ele se abaixou, e estendeu a mão até meu queixo, tocando-me

com seus dedos esqueléticos. Seu toque queimava e ardia, criando bolhas

em minha pele, e a dor se espalhava, como uma infecção. Eu gritei,

sentindo minha alma lentamente queimar diante daquele toque. Como com

Agliareth em Oostegor, eu podia sentir o demônio penetrar em meus

pensamentos, e a dor se intensificava mais e mais. Ainda assim, conforme

minha mente se perdia em pensamentos dolorosos, eu senti algo se

aproximar e forcei meus olhos a se abrirem.

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Page 661: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Por cima do ombro da criatura, eu vi um dos vitrais se

iluminar, e o brilho que vinha do outro lado aumentava mais e mais em

intensidade. O demônio me soltou, se erguendo e se virando, e, naquele

momento, a vidraça explodiu, atingida por uma lâmina que brilhava

dourada. “Finalmente, você vem a mim”, o coro infernal urrou furioso, e o

demônio começou a caminhar em direção ao vitral arruinado.

Iluminando-se em dourado, a Forma Celeste do Arcanjo Rafael

adentrou pela passagem, seguido por meus jovens companheiros: Absolon,

Karina e Fabrizia. O Arcanjo, cercado por chamas douradas e

fantasmagóricas, abriu suas asas e flutuou logo acima do solo, preparando a

espada enquanto avançava na direção do demônio.

O respirar das almas agora mudava, não mais pausado e profundo,

mas mais parecendo um rosnado ofegante, cheio de ódio e ansiedade. O

demônio não mais caminhava, mas sim avançava em disparada, sua bocarra

se abrindo e seus dedos alongando-se. Absolon, Karina e Fabrizia se

afastaram, dando a volta pelo salão, tentando chegar a mim enquanto se

mantinha longe dos titãs que estavam prestes a se enfrentarem. O demônio

adentrou na aura de Rafael, e sua carne começou a queimar. A criatura

saltou, e a lâmina do Arcanjo traçou um arco dourado ascendente. A espada

atingiu o peito do demônio, jogando-o para trás, mas do ferimento vazou

uma onda de chamas negras, que envolveram o Arcanjo.

Astaroth caiu, mas se ergueu rapidamente, enquanto o Primus dos

Sancti avançava através do Fogo Negro. O novo golpe de espada fez ecoar

um ruído estrondoso quando a lâmina atingiu o chão, enquanto o Grande

Lorde recuava para escapar. Mal recuara, o demônio avançou num novo

salto, agarrando o pescoço de Rafael com a mão esquerda e derrubando-o

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Page 662: Magna Veritas - Tiago José Moreira

no chão. Pondo-se sobre o Arcanjo derrubado, Astaroth manteve o

pescoço do Celestial preso, e sua mão esquerda corroia a cota de malha no

pescoço, chegando até a pele desprotegida abaixo. O Senhor da Dor ergueu

a mão direita, desferindo um golpe contra o rosto do Arcanjo. O elmo do

Celestial se partiu, e as marcas das garras cruzaram sua face de lado a lado.

Então, o Arcanjo da Vida usou a mão esquerda para envolver o

rosto do demônio. Um brilho dourado emanou da mão, e o coro de almas

gritou de dor. Jogando o corpo para a direita usando toda a sua força,

Rafael se livrou de Astaroth, fazendo-o cair no chão e rolar. O Arcanjo se

ergueu no ar, flutuando, seu corpo ainda brilhando intenso, e eu vi os

ferimentos em seu rosto e pescoço se fecharem lentamente. Também o

demônio se erguia, e a marca da mão do Arcanjo estampada em sua face

lentamente se regenerava.

Os dois se fitaram por um instante, enquanto o coro de almas rugia

dissonante. O Arcanjo fitou sua própria espada, e então a largou. O som da

lâmina batendo contra o chão ecoou pelo salão, enquanto os próprios

punhos do Arcanjo começavam a brilhar em luz dourada. O demônio rugiu

mais alto do que todas as almas, criando uma cacofonia que ecoava sem

parar. O Arcanjo voou em direção a Astaroth, e, quando os dois se

chocaram, toda a torre tremeu.

Os socos de Rafael queimavam a carne do Grande Lorde, enquanto

as garras do monstro incendiavam a carne do Arcanjo com chamas negras.

Ao alcance da própria aura do Arcanjo, o corpo de Astaroth ruía, deixando

cair pedaços de carne fumegante, mas a carne se recompunha conforme

caía. Da mesma forma, os ferimentos de garras se regeneravam. A cada

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Page 663: Magna Veritas - Tiago José Moreira

golpe, o impacto emitia um ruído poderoso, como se toneladas de rocha

atingissem montanhas a grande velocidade.

“Philipe!”, gritou Karina, se aproximando, seus olhos cheios de

lágrimas.

“Vocês o encontraram... Graças a Deus!”, murmurei, meio rouco

devido à dor.

“Eles nos encontrou”, murmurou Absolon, fitando o confronto.

Desviando-se de um dos golpes do Arcanjo, o demônio

rapidamente avançou através do Arcanjo, atacando sua asa direita com as

garras. Penas brancas voaram, mas não antes que Rafael se recobrasse e se

virasse, atingindo com ambas as mãos as costas do monstro. Astaroth,

cambaleou, se recuperando a tempo de esquivar-se de mais um golpe das

mãos ardentes do Arcanjo da Vida.

Ferimentos leves cobriam as faces e corpos de ambos, como se a

capacidade de regeneração deles tivesse um limite. Demônio e Arcanjo

ofegantes, eles se entreolharam, enquanto Rafael pousava, com

dificuldades em manter-se no ar devido à asa ferida. Astaroth recuou

lentamente, sem jamais fitar qualquer outra direção que não fosse a de seu

oponente.

Rafael, avançou, enquanto Astaroth emanou Fogo Negro em todas

as direções, gerando uma conflagração ao seu redor. O Arcanjo adentrou

nas chamas, golpeando o demônio. O demônio cambaleou, recuando em

meio às chamas profanas, mas então contra-atacou, rasgando a armadura e

o peito de Rafael com suas garras. Rafael, recuou, enquanto as chamas

negras tomavam mais e mais seu corpo. E, ainda assim, ele voltava a

avançar para um novo ataque, e outro, e outro, suas mãos purificadores

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Page 664: Magna Veritas - Tiago José Moreira

consumindo mais e mais da carne demoníaca, enquanto ele próprio era

consumido pelo fogo demoníaco que o cercava. Ambos fraquejavam mais e

mais, mas continuavam a avançar e a se atacar, cada um decidido a ser o

único a permanecer em pé.

E então, lentamente, vi o Arcanjo Gabriel se erguer, cercado por

uma aura dourada, enquanto a batalha prosseguia. O Primus dos Venatores,

ainda ferido, mas com os olhos recuperados, procurou por sua espada, e viu

ao invés a espada de Rafael nas proximidades. Gabriel se ergueu, sujo pelo

próprio sangue, e moveu a mão direita, erguendo-a adiante de si. Fogo

Celestial emanou da mão, e então ele o arremessou para o alto, onde ela

explodiu, formando um verdadeiro sol de Fogo Celestial próximo ao alto

teto do salão.

Astaroth se virou ao ver que suas chamas negras eram consumidas

por um poder externo à batalha, e viu a forma de Gabriel correr em sua

direção, pegando a espada de Rafael que estava em seu caminho. “Como

pode?”, perguntou o coro de almas.

“Eu sou a renovação, a saúde e a vida”, sorriu Rafael, se afastando,

enquanto a lâmina empunhada por seu irmão traçava um arco flamejante no

ar, arrancando o braço esquerdo do demônio e atravessando o lado

esquerdo de seu peito. “E as trago em abundância”, o Arcanjo da Vida

completou, avançando e golpeando uma vez mais o demônio.

O demônio caiu, rolando no chão, mas se levantando em seguida,

seus músculos expandindo-se ao redor do ferimento e se enrolando, como

se estivessem se transformando num tentáculo para substituir o membro

perdido. Os dois Arcanjos feridos avançaram pelos flancos, cercando-o, e

então Rafael se abaixou, tocando o solo, enquanto Gabriel urrou. Do

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Page 665: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Arcanjo da Vida, emanou uma aura ainda mais intensa de chamas

douradas, enquanto do Arcanjo da Guerra, emanaram chamas celestes. O

corpo do demônio, cercado por ambas as energias, incendiou-se,

consumindo-se em chamas, e então o Arcanjo Gabriel, avançou, sua espada

traçando um arco final, trespassando o pescoço da criatura. As almas

urraram furiosas, enquanto a cabeça do demônio caía e rolava pelo chão,

desfazendo-se até sobrar apenas uma caveira rachada e quebradiça.

E, ainda assim, a presença da criatura não sumiu.

“Tolos!”, urraram as almas furiosas, enquanto Rafael era atingido

por garras invisíveis que rasgavam carne e alma. “Neste lugar, eu sou mais

do que fora dele”, elas rosnavam, enquanto o rosto de Gabriel, era rasgado

pelas mesmas garras espirituais. “Eu sou o Senhor da Carne, e vivo em

meus súditos”.

E meu corpo começou a arder, como se minhas entranhas fossem

fogo. Adiante, os dois Primi eram rasgados seguidamente, enquanto minha

própria carne começava a se partir e rachar. Eu gritava de dor, enquanto o

espírito de Astaroth cruzava o salão. Eu sentia ele se aproximar, seus

braços invisíveis me envolverem. Gabriel se apoiou na espada para não

tombar, enquanto Rafael se pôs de joelhos, mas ergueu a mão direita em

minha direção, como se a estendesse para mim. A mão brilhou com

intensidade, mas eu podia sentir a escuridão tentar entrar em mim. Em

minha mente, eu ouvia a voz do demônio: “Você será meu novo corpo,

Arcanjo, e com você terei os seus segredos”. Eu lutava, mas sentia minhas

barreiras mentais caírem, enquanto uma sede de sangue invadia meus

pensamentos. Eu vi imagens de uma grande sombra, e do princípio dos

tempos. Vi uma guerra contra seres de fogo e rocha, e presenciei milhões

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Page 666: Magna Veritas - Tiago José Moreira

de almas, uma após a outra, serem torturadas, estripadas e devoradas

pela criatura que agora tentava me consumir. Mas então, um poder o

expulsou de mim, e meus olhos se abriram para fita-lo.

Rafael ainda estava do outro lado do salão, a mão voltada para

mim. Mas então eu percebi uma presença surgir poderosa atrás de mim, e

me voltei para ver a quem o Arcanjo da Vida realmente estendia sua mão.

Mesmo acorrentado, o Arcanjo Uriel, chamado Veritatis, agora

erguia a cabeça, e seus olhos brilhavam num branco puro e intenso. Seu

corpo ensangüentado se recuperava, ainda que se mantivesse sujo, e sua

expressão mostrava raiva. “Você é o mestre da carne, demônio, mas agora

é só um espírito. E no mundo dos espíritos, eu sou supremo!”, a voz do

Arcanjo emanou, ecoando pelo salão e em minha mente. O Arcanjo abriu a

boca, gritando, e as almas dos condenados gritaram em dor. Um grito

monstruoso rugiu em minha mente, mas então, senti a presença demoníaca

ser tragada, e o rugido finalmente cessou. As almas se calaram, caindo num

estado catatônico, e a torre tremeu pela última vez.

Lentamente, os Arcanjos da Vida e da Guerra, com suas armaduras

despedaçadas e sujos com o próprio sangue, se ergueram. Os ferimentos de

Rafael se curavam rapidamente, incluindo os da asa ferida, enquanto uma

aura dourada brilhou ao seu redor.

Ao meu lado, Fabrizia e Absolon me ajudavam a me levantar,

enquanto o brilho purificador do Arcanjo fechava meus ferimentos mais

severos, e minhas próprias energias tratavam de me recuperar dos cortes

menores. A voz do demônio ainda ecoava em minha mente, e memórias

que não eram minhas ainda surgiam parcialmente quando eu tentava

esquece-las.

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Page 667: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O Anjo da Morte se ergueu, saindo da massa de vermes e

insetos mortos que o cobria. Sua carne tinha sido parcialmente consumida,

mas agora os ferimentos se fechavam, e ele fitou seu mestre. Azrael Veritas

se ergueu, correndo em direção a Veritatis.

Karina corria até Samuel, que agora se erguia lentamente, levando

a mão direita à barriga, que até a pouco estava preenchida por vermes. Seu

olhar enfraquecido fitou a Supervivente, e ambos se abraçaram

silenciosamente.

Al-Malik se erguia, ainda sentindo a dor das pernas agora

recuperadas. Ele tossia muito e toda a sua garganta ardia com os ferimentos

provocados pelas criaturas que ele regurgitava até há pouco. Ansgar,

próximo a ele, tentava se erguer, conforme queimaduras e cortes

desapareciam lentamente. Silenciosamente, Lo Wang caminhou até o

Venator, ajudando-o a se erguer.

Sendo ajudado por Fabrizia e Absolon, eu caminhei até Veritatis,

que se libertava com a ajuda do pupilo, Azrael. Também os Arcanjos

Miguel e Rafael e os outros se aproximavam.

Ainda fraco, Veritatis se apoiou no Anjo da Morte e nos fitou, mas

manteve o foco de seus olhos em mim. “Eu sou grato a vocês... a todos

vocês... Mas eu temo que não possa trazer nada a não ser revelações

terríveis. Nós fomos enganados, desde o começo. E eu fui um tolo, ao

acreditar que podia impedir os planos daquele que jogou com nossas

vidas”.

“O que quer dizer, Lorde Veritas?”, perguntei, sabendo que a

mesma pergunta transitava na mente de todos ali presentes.

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Page 668: Magna Veritas - Tiago José Moreira

“Há um jogador que planejou isto tudo. Ele os lançou a esta

guerra, ele me usou como uma isca, nos fez de tolos. Mas não tenho tempo

de explicar. A única coisa que podemos fazer agora é tentar impedir que a

última parte de seu plano se conclua”, ele disse. “Nós temos de ir para o

sul, para o deserto de Dudael, ou o que conquistamos aqui será em vão”.

“Dudael?”, perguntou Samuel, abraçado a Karina, mas fitando o

Arcanjo Rafael.

O Arcanjo Rafael retribuiu o olhar, demonstrando preocupação.

“Eu batalhei com Azazel nesse lugar, milênios atrás”.

“Enquanto os exércitos de Astaroth foram pegos de surpresa pelas

forças celestes”, explicou Veritatis, “o Lorde das Mentiras adentrava

Libraria e roubava o jarro, onde a sombra de Leviathan era aprisionada”.

“O Lorde das Mentiras?”, perguntei.

Veritatis me fitou. “Onze eram os filhos de Ialdabaoth no princípio,

jovem Arcanjo. Eles eram trevas, sangue, dor, ambição, caos, luxúria,

corrupção, tirania, fúria, tentação e medo”, ele disse, então pausando a

baixando a cabeça. “Mas há um décimo segundo filho, aquele que as

histórias não contam... a mentira. E por ser o menor e o maior, e por seu

nome ser uma mentira, ele jamais foi afetado pela barreira que criei. Agora,

a sombra de Leviathan está em suas mãos... e o Décimo Quarto nascerá”.

“Explique-nos melhor”, pediu Azrael.

“Não há tempo!”, disse Veritatis. “Precisamos partir agora. O

Quarto Filho já se encontra lá, é apenas uma questão de tempo antes que o

Décimo Segundo chegue até ele. Ouçam-me: a mim foi revelado tudo antes

do tempo, para que a minha maior dor fosse saber que minhas ações

desencadearam todo o processo. Se não, impedirmos o plano de se concluir

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Page 669: Magna Veritas - Tiago José Moreira

hoje e agora, o jogador, o Arauto, vai partir da barreira entre os

mundos, e vai caminhar entre os vivos. O fim de uma era se aproxima... e

vocês precisam escolher entre ouvir meus relatos sobre Revelação... ou

presencia-la com seus próprios olhos”.

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Page 670: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Interlúdio Quarto: Os Irmãos se Reúnem

Um urro trazido pelo vento infernal ecoou na mente dele, indicando

que seu irmão estava morto. Ele sorriu, sabendo que o plano se aproximava

de seu fim. Sob mantos pesados, a criatura continuou a escalar a alta

montanha de caminhos espirais, sabendo que alcançaria o cume em breve.

Fleuretti, o Quarto Filho, Grande Lorde do Proibido, Senhor de

Necropólis, continuava sua ascensão, o vento quente soprando a capa

pesada de seu manto, revelando sob ela uma criatura de forma humana. Das

sombras do capuz, seus olhos brilhavam fracamente num verde doentio. À

mão, ele portava um antigo pergaminho, enrolado. Sua mente se

concentrava em múltiplos afazeres e em múltiplas variáveis. Ele sentia o

grito de morte do Terceiro Filho, Astaroth, irromper através do Plano

Onírico e ecoar no Plano das Idéias, indicando aos pensadores e

adormecidos que algo terrível acontecia nos mundos além da vida. O plano

tinha sido cumprido com perfeição, e isto ao mesmo tempo maravilhava e

assustava. “Ele realmente conseguiu”, pensava Fleuretti, enquanto

prosseguia em sua caminhada. Acima, dragões urravam enquanto cruzavam

os céus vermelhos. Abaixo, ele via multidões e multidões, formando um

exército demoníaco que se espalhava pelo deserto de Dudael. Mas o vento

trazia mais do que o grito de morte do Lorde da Dor. Eles traziam urros de

agonia e desespero, que ecoavam pelas planícies áridas de Dudael.

Finalmente, o cume estava adiante, e os dragões acima pareciam

mais próximos. Após a longa caminhada, aquele que hoje se chamava

Fleuretti, viu diante de si, no topo da montanha espiralada, um pedestal

negro, e ouviu o som de correntes sendo movidas. À frente, estava o norte,

onde se notava um horizonte azul, indicando que o Inferno estava sob

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Page 671: Magna Veritas - Tiago José Moreira

invasão. E, sobre o pedestal, estava a forma negra do Primeiro

Luciferite. Azazel se debatia, forçado a sempre fitar o norte, preso por

correntes obsidianas. Suas asas draconianas se moviam violentamente,

provocando ventos que carregavam seus urros de sofrimento para o deserto.

Sua pele negra refletia a luz do sol obscuro acima, e suas imensas

mandíbulas urravam e gritavam.

“Cale-se”, murmurou Fleuretti, removendo seu capuz, e revelando

uma face quase humana, de pele morena e olhos que brilhavam num verde

doentio. Azazel se calou, se virando o máximo que podia para fitar o

recém-chegado. Murmurando algo que Azazel não podia compreender,

Fleuretti se aproximou, ficando frente a frente com a monstruosidade que

tinha duas vezes o seu tamanho.

“Você sentiu a morte de seu criador?”, perguntou o Quarto Filho.

“Sim”, a voz trovejante de Azazel murmurou.

“Então sabe que, pela primeira vez em milênios, sua mente é

livre?”, o Grande Lorde questionou.

“Sim”, respondeu o anjo demoníaco.

“Você carrega a essência e a Maldição de seu criador, Azazel.

Quando seu criador planejou a destruição de Hordad-chamado-Rafael, ele

fez de você uma extensão de dele próprio”, murmurou Fleuretti.

O anjo demoníaco permaneceu em silêncio.

“Você desejou o poder por toda a sua existência, Azazel”, disse

Fleuretti, “Será capaz de agarra-lo e devora-lo quando estiver a seu

alcance? Pode tomar o poder que sempre desejou parte de si mesmo?”.

“Sim”, murmurou a criatura.

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Page 672: Magna Veritas - Tiago José Moreira

O Lorde da Ambição sorriu, e então fitou algo que vinha por

trás de Azazel. Uma figura vestindo um pesado manto negro vinha

caminhando pela mesma trilha que Fleuretti tomara para o topo da

montanha negra. Das profundezas de seu capuz, emanava o brilho

vermelho de seus olhos. E, em suas mãos estava um jarro rachado.

“Abaddon, meu irmão... Já faz muito tempo...”, murmurou

Fleuretti, que então se voltou a Azazel: “Dentro do jarro que meu irmão

traz, está a essência do Lorde do Sangue. Está pronto para devora-la, para

torna-la parte de si? Pronto para que Sangue e Dor tornem-se um dentro de

você, para se tornar mais do que jamais foi, e permitir que as memórias e as

vontades de Leviathan tomem seu corpo e sua mente?”.

“SIM!”, urrou Azazel.

O homem de manto negro se aproximou, pondo-se à frente de

Azazel e exibindo-lhe o jarro. Ao mesmo tempo, Fleuretti se afastou,

tomando uma posição à esquerda de Azazel, e fitando o norte, onde um céu

azul ainda prevalecia.

“Irmão, devo partir o jarro agora?”, perguntou o homem de manto

negro.

“Não, o plano deve ser seguido”, murmurou Fleuretti, abrindo o

pergaminho que tinha em mãos. “Antes que a vontade do Primeiro se faça,

e que o Décimo Quarto surja para tomar o trono e o reino do Terceiro, eu

preciso desfazer aquilo que foi feito”. E, tendo dito isso, ele começou a ler

os pergaminhos de Kthoan, tirados há muito das ruínas de Dur Sharrukin, e

um dia usados por Astaroth para criar uma porta entre dois mundos em

guerra, permitindo que três grandes guerras ocorressem. O Lorde da

Ambição então liberou palavras perdidas num misto de Fabulare e

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cacofonia. “Que a porta se quebre de uma vez por todas”, murmurou

Fleuretti, “e que as energias do Inferno inundem e afoguem todos os

invasores que ousaram entrar em nossos domínios”.

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Capítulo 24: A Revelação

“Legiões do Éden!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou, enquanto sua

forma dourada ascendia aos céus do Inferno. “Sigam-me!”.

Abaixo, demônios e anjos ainda guerreavam, embora as forças

infernais mitigassem. Os demônios se agrupavam em bandos, enquanto os

últimos dragões deixavam o campo de batalha, fugindo para as montanhas.

Mensageiros sobrevoavam as forças celestes e, uma vez ouvida a sua

mensagem, as tropas liberavam suas asas e se erguiam aos céus. Pouco a

pouco, o campo de batalha era abandonado, deixando algumas centenas de

almas e demônios para trás.

Dos céus, nós observávamos as forças celestes se reagruparem,

enquanto as últimas legiões demoníacas fugiam para a segurança relativa

das muralhas arruinadas do Coliseu Ashtar. Eu fitei meus companheiros, e

pude notar cansaço e apreensão, mesmo por trás de suas auras brilhantes.

Pairávamos no ar, esperando a ordem para avançar ao sul. “Para Dudael”,

conforme o Arcanjo Veritatis indicara.

“O que acontecerá agora?”, perguntou Al-Malik, fitando as forças

celestes. Apesar da vitória, o número de Celestiais sobreviventes era

praticamente a metade do número original de guerreiros que compunham

nosso exército. Certamente, muitos dos sobreviventes estavam com suas

energias esgotadas. Nós nos preparávamos para uma jornada longa, o que

certamente faria com que o sangue dos combatentes esfriasse e que a moral

do exército caísse.

“Eu não sei”, respondi, e fitei meu Primus, Uriel-chamado-

Veritatis, que se encontrava nos braços do Anjo da Morte. Embora as asas

de Rafael e Azrael tivessem se curado, aquelas arrancadas de Veritatis e

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Page 675: Magna Veritas - Tiago José Moreira

Gabriel não puderam ser recuperadas nem mesmo pelo Arcanjo da

Vida. Apenas o tempo poderia recupera-las. Tempo, porém, era o que não

tínhamos.

“Quanto tempo necessitaremos até que todas as forças estejam

prontas?”, perguntou Ansgar a Gabriel, que ele com honra levava nos

braços.

“Vinte minutos, talvez mais”, respondeu o Primus dos Venatores.

“Eles podem nos alcançar”, murmurou Veritatis, mas sua voz era

forte em nossas mentes. “Precisamos ir, temos pouco tempo nas mãos”.

Gabriel fitou o Primus dos Perquiratores, pensou por um instante, e

então meneou a cabeça em aprovação. “Contato que nos revele a verdade

em nosso caminho”.

“Revelarei”, respondeu Veritatis, “Este não é mais o tempo para os

segredos. Aquilo que deveria permanecer oculto já não o é mais, e aquilo

que eu ainda escondo não posso mais ocultar. Talvez seja tarde demais para

impedir o destino, mas precisamos tentar. E, para isso, vocês, meus irmãos,

precisam entender tudo”. E o Arcanjo da Verdade, do Conhecimento, dos

Segredos e da Morte nos fitou, um a um, e então fitou os Primi, Gabriel,

Rafael e Miguel, e finalmente seu próprio pupilo, Azrael. “Para o sul, para

Dudael. A revelação, eu trarei no caminho”.

“Para o sul!”, a voz do Arcanjo Miguel ecoou, sua aura nos

banhando com força e confiança. Ele ergueu sua espada flamejante, e então

foi o primeiro a seguir para o sul, para além do céu azul e do portal. As

tropas urraram em uníssono, e então, enquanto alguns poucos ainda

lutavam no campo de batalha abaixo, nossas forças seguiram o Primus dos

Sancti.

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Foi então que o Arcanjo Veritatis nos revelou: “Tudo começou

há dois mil e seiscentos anos atrás. Aqueles foram tempos de fogo e sangue

derramado, de males se manifestando no reino dos vivos e tempestades que

traziam mais e mais vítimas ao mundo dos mortos. Ainda naquela época, os

céus lutavam diariamente contra manifestações infernais, e sangue trazia

mais sangue, logo além de onde o olhar da humanidade alcança. E, naquela

época, nós não tínhamos idéia do que viria ou o que causava tamanho mal

ao mundo. Nós lutávamos nossa Primeira Grande Guerra e não sabíamos,

mas as verdades viriam a mim com o tempo. Era a época da Babilônia, uma

época em que tanto sangue mortal como celeste foram derramados, regando

o solo fértil da Mesopotâmia”.

“Naquele tempo”, continuou o Arcanjo da Verdade, “eu viajava

pelos caminhos espirituais da Criação, aprendendo e desenvolvendo. Eu

visitei as Cortes Elementais e me aventurei nas profundezas da Sombra do

Mundo. Em transe, minha mente vagou pelo Plano das Idéias, e meus

pensamentos recebiam as emanações do Plano Onírico. Eu caminhei, com

cuidado, pelas falhas, até chegar ao limite, e aprendi diversos mistérios,

diversos segredos. Meu interesse no mundo, na guerra, eram pequenos, se

comparados ao meu desejo pelo saber. Mas então... ah, então tudo mudaria.

Os que viveram naquele tempo ainda podem se lembrar, com certeza, pois

aquele aviso, aquele sonho, jamais deixou minha mente, e ainda atormenta

minhas lembranças, até hoje. Foi a noite em que a criação tremeu”.

“O sonho”, murmurou Gabriel.

“Sim”, disse Veritatis, “Foi a noite em que acordamos gritando,

quando sentimos que algo havia transposto os limites do mundo dos vivos.

Nós pudemos ouvir seus urros e sua gargalhada. Eu sabia que distúrbios na

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realidade ecoam pelos planos Onírico e Mental, causando pesadelos e

premonições, mas aquilo era forte demais, e não era causado por algo de

fora, mas sim por algo de dentro da realidade, algo que deixou seu local

natural e forçou as barreiras, partindo-as de uma forma tão violenta que

ressoou por toda a criação. Até então, nós sabíamos sobre a existência dos

Grandes Lordes, mas jamais um deles havia se manifestado de uma forma

tão violenta e direta. Nós não sabíamos seus nomes, pois todas as

informações que conseguíamos eram contraditórias, e os nomes que

descobríamos eram uma infinidade. Aquela noite mudou tudo, e foi o

começo de tudo. Enquanto os exércitos celestes se preparavam para mais

sangue, morte e chamas, eu deixei meus locais de contemplação, e parti

decidido a desvendar os mistérios de nossos inimigos, antes que fosse tarde

demais”.

Acima, o céu se tornava azul, enquanto à frente surgia, distante, o

portal flamejante que nos trouxera ao Inferno. À frente do portal, o Arcanjo

Raguel permanecia vigilante. Seu olhar fitou os céus ao ver a vinda das

tropas do Éden. Ainda assim, ele não se moveu. Logo, para a surpresa do

Primus dos Xamãs, nós sobrevoaríamos o portal, não descendo a ele, e

prosseguiríamos para o sul, para além do céu azul protetor. Raguel apenas

nos observava, notando que algo estava terrivelmente errado.

O Primus dos Perquiratores, enquanto isso, continuava a nos

revelar: “Enquanto as forças do Éden jogavam a Pérsia contra a Babilônia,

eu caminhei entre os mortais, buscando primeiro aqueles que conheciam o

Inferno em sua intimidade. Entre os cultos de Babel, eu descobri e inquiri

infernalistas e infernais, mas quanto mais eu buscava respostas, mais

perguntas surgiam. Enquanto a Pérsia destruía Babel e tomava para si os

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restos do império que já tinha sido de Nabucodonosor, eu finalmente

pude vislumbrar uma solução, quando um nome chegou a meus ouvidos:

Angræ”.

“O que é isso?”, perguntei.

“Ialdabaothisitas”, respondeu Azrael Veritas, o Anjo da Morte, que

fitava o horizonte ao sul, onde o céu logo se tornaria vermelho novamente.

“Um culto de demônios que buscam suas origens e os mistérios de seu

criador. Foi mestre Uriel quem me falou deles, há muitos séculos atrás, em

Roma”.

Veritatis meneou a cabeça, confirmando. “Eu busquei saber mais

sobre o Culto de Ialdabaoth e seus segredos. Através de um processo lento

e árduo, eu busquei as origens do Inferno e de seus senhores, até que,

finalmente, minha jornada me levou pela primeira vez ao Inferno, onde eu

encontrei um templo menor do culto. Eu fiz então o que era impensável

para mim... Eu adentrei o templo e, tomado pelo desejo do conhecimento,

dizimei seus protetores demoníacos, clamando para mim fragmentos de um

texto sagrado para eles, um livro chamado Codex Tenebrosu”.

“Eu estudei as páginas do livro negro, enquanto mantinha-me em

peregrinação pela Terra, buscando mais e descobrindo mais sobre os planos

do inimigo”, disse Uriel-chamado-Veritatis, “E foi assim que encontrei os

números de nossos inimigos: nove Reinos e onze Filhos. Eu me aprofundei

no conhecimento sobre os Filhos, buscando suas forças e fraquezas, apenas

para descobrir que cada um deles é superior a cada um de nós, pois somos

limitados a apenas um aspecto infinito, enquanto eles se beneficiam de

vários aspectos cada um. Embora seus nomes reais jamais fossem

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revelados, e cada um fosse conhecido por uma multitude de formas e

pseudônimos, eu pude encontrar seus propósitos”.

Então, o Arcanjo Veritatis fechou os olhos, como se reunisse suas

memórias. Ao redor, cadeiras montanhosas diminuíam, dando lugar a uma

planície rochosa morta. O céu vermelho ainda nos saudava no horizonte

longínquo, mas eu pude perceber os ventos infernais se intensificarem. E,

com os ventos, eu pude perceber ecos distantes, que traziam gemidos e

urros de dor. “Entramos em Dudael”, murmurou o Arcanjo Rafael.

“E aprendi que o segundo entre os filhos era o Lorde do Sangue”,

disse Veritatis, “a sombra manifesta no reino da vida. Os Grandes Lordes

do Inferno, embora poderosos, estavam ligados a seus reinos. Eles

poderiam deixa-los, mas nunca permanentemente. Leviathan, como viemos

a chamar o Segundo Filho, venceu esta limitação de muitas formas, a

princípio tomando o corpo mortal de Nabucodonosor, depois retornando

com freqüência ao Inferno, e a cada retorno causando novos e mais

freqüentes pesadelos, indicando seu ir e vir entre a Terra e seu Reino. No

Reino da Vida, eu descobri que então eram os persas que espalhavam

corrupção pelo mundo, e os macedônios os nossos protegidos, destinados a

vencer os persas com a ajuda celeste. Quando os pesadelos finalmente

terminaram, eu descobri que um portal fora aberto, ligando o mundo mortal

ao coração do reino de Leviathan, e permitindo que ele permanecesse no

mundo dos vivos indefinidamente”.

“O portal de Dur Sharrukin?”, perguntei, mesmo sabendo a

resposta.

“Sim”, o Arcanjo da Verdade respondeu, “Temendo as

conseqüências da presença de um Grande Lorde no mundo dos vivos, eu

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usei meu conhecimento para criar um rito que iria selar este mundo,

voltando o poder dos Grandes Lordes contra eles próprios. Tendo

completado os preparativos para o rito, eu retornei ao Éden, revelando a

localização de Dur Sharrukin aos Primi. Foram dados trinta dias para a

batalha que terminaria tudo. Infelizmente, esta batalha não foi o fim que eu

esperava”.

“E, ao fim da batalha, você aprisionou a alma de Leviathan no

jarro”, eu disse.

“Exato”, ele respondeu, “Eu usei o próprio poder de Leviathan para

erguer uma barreira contra os demais irmãos. Eu a ergui pensando nos nove

governantes do Inferno, mas sabendo que talvez o Primogênito e a Filha, a

Décima Primeira, talvez não fossem afetados, pois conhecia muito pouco

sobre ambos. Para proteger o jarro, eu criei Libraria, construindo níveis e

níveis sob a terra do Éden, sabendo que os Celestiais defenderiam aqueles

túneis sem a necessidade de saberem sobre a existência do jarro. Eu

mantive o rito um segredo, para que ninguém buscasse o jarro e seus

segredos, e para que até mesmo nossos inimigos jamais pudessem vir a

saber sobre sua exata localização. Por muitos outros séculos, eu continuei a

proteger e manter o segredo do jarro, até que eu pude perceber que minha

vigilância não era mais necessária. Então, voltei a procurar conhecimento,

deixando meu segredo oculto e enterrado sob a cidade que construí. Meus

atos, porém, ao mesmo tempo em que nos protegeram e aprisionaram

nossos grandes inimigos, também levaram uma nova força, até então sutil e

imperceptível, a se manifestar”.

“Que força?”, perguntou Al-Malik.

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“Aquele que manipulou todos os eventos desde então”, ele

respondeu. “Eu fui um tolo, e todos nós nos tornamos fantoches por causa

disso. Sob a falsa sensação de segurança, se iniciou um jogo de

manipulações, nas quais éramos peças úteis e descartáveis para um jogador

astuto e experiente. Aproveitando a prisão dos Grandes Lordes, ele

começou a alimentar o ódio do Inferno enquanto se movia invisível,

observando os eventos e coordenando-os, preparando tudo para que os

eventos do dia de hoje, dois mil e trezentos anos depois da morte de

Leviathan, ocorressem”.

“Quem é este... ‘jogador’?”, perguntei.

“Tudo a seu tempo. Seu nome não importa tanto quanto seus atos, e

disse todos devemos aprender uma lição importante”, respondeu Veritatis,

fitando o sul. “Quando o Inferno invadiu o Éden pela primeira vez, a mão

oculta do jogador enviou o Quarto Filho, que manipulou o rito que criou o

portal entre nossos mundos, que por sua vez era uma variação do rito que

Leviathan usara um milênio antes para unir Terra e Inferno. O portal era

eterno, sua mágica poderosa demais para ser dissipada, mas era possível

contê-lo e fecha-lo. Para isso, era preciso intensificar as barreiras do Éden”.

“E, como resultado, o poder do jarro também foi contido”, eu disse.

“Exato”, confirmou Veritatis, “o selo que mantinha os Grandes

Lordes no Inferno foi lentamente sufocado pelo próprio rito que mantinha o

Éden a salvo. Lentamente, as energias que trancavam o Inferno se

dissipavam, e ao longo dos séculos, o selo se enfraqueceu, chegando quase

a ponto de ser anulado. Sem alternativas, eu enfraqueci o rito que fechava o

Éden, na esperança de mais uma vez fortalecer o selo tempo o suficiente

para pensar numa alternativa melhor. As forças demoníacas, porém,

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estavam esperando do outro lado do portal, e a Quarta Grande Guerra

teve início”.

“Mas por que deixar o Éden? Por que entrar no Inferno novamente,

senhor?”, perguntou Azrael, que carregava o Arcanjo da Verdade nos

braços.

“Por que, desta vez, pelo portal, veio uma besta como poucas

outras que eu vi antes. Leviathan estava morto, mas sua essência pulsava no

sangue daquela besta que veio. Embora fosse apenas um avatar, pois meu

rito afetava também aquela besta, eu pude sentir que ela era algo novo, que

não existia nos tempos antigos. Como podia ser? Eu me intriguei com a

existência de um novo Filho, um herdeiro de Leviathan, que chamamos de

Mephistus. Para mostrar seu poder, ele destruiu Caesar dos Protectori e fez

chover fogo dos céus. Seus exércitos invadiram nossas cidades mais fortes,

e apenas o Arcanjo Gabriel em pessoa pôde parar aquela criatura. Mas de

onde poderia ter surgido um novo Filho, um ser além dos 11 originalmente

concebidos por Ialdabaoth em pessoa? O Inferno não possuía guardiões

para olhar por eles, para renovar seus governantes. Uma força maior existia

ali, algo que estava além de todo o meu conhecimento, talvez Ialdabaoth

em pessoa. Eu me sentia um tolo, um idiota que se deixou levar por orgulho

e conhecimento incompleto. Se eu quisesse realmente proteger a todos nós,

eu precisava saber mais, descobrir mais. E, portanto, eu fiz o impensável,

entrando novamente no Inferno, desta vez decidido a não deixa-lo enquanto

seus segredos não fossem todos meus”.

E, à frente, o céu vermelho estava cada vez mais próximo.

“Após fechar o portal mas uma vez, sabendo que as energias do

silo tinham se renovado por tempo suficiente para perdurarem por mais

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alguns séculos, eu vaguei pelo Inferno”, disse Veritatis, “Após escapar

da primeira tentativa de Astaroth em me capturar, eu busquei

conhecimento, e aprendi que Mephistus não era o Décimo Segundo Filho

como eu imaginava, e sim o Décimo Terceiro, que indicava que não um,

mas dois eram os Filhos que eu desconhecia. Eu me lembrei do que vi em

Dur Sharrukin, e de palavras que o espectro de Leviathan ainda repete hoje,

a seu serviçal, o cavaleiro Khal-Harshek: ‘Caso ouças meu grito de morte,

deixa Æternus Ignis e parte para Gehenna. Então, segue para o sul, para

além das terras inférteis. Siga as sombras de meu pai, através das

montanhas de fogo e das estradas esquecidas. Siga a voz que ecoará em

tua mente. Cavalgue por sessenta anos e saiba que, quando encontrar o

vale no qual a única caverna é guardada por um dragão, terás encontrado

o lar de meu irmão. Procura a sombra, pois é o Primogênito. E, feito isso,

terá cumprido tua última missão’. Podia esta ser a solução do mistério? Eu

então viajei ao sul, em busca de Tenebra, onde talvez eu encontrasse

respostas, e realmente as encontrei”.

Naquele momento, os uivos e urros trazidos pelos ventos agora

pareciam mais fortes, e o céu azul já não nos protegia mais. O calor

aumentava, e chão do deserto abaixo parecia arder. Junto com os urros e

uivos, eu podia ouvir clamores de batalha à distância, e o som dos passos

de milhares marchando. Mas, mais terrível ainda, foi a estranha fraqueza

que nos acometeu. Eu pude sentir algo me sufocar, como se o próprio ar se

tornasse mais denso e incomodasse meus pulmões e nariz. Senti

desconforto e uma fraqueza extrema, e por um momento minha mente se

apagou, como se estivesse próxima do desmaio. Pude notar que todo o

exército celeste começava a se enfraquecer, conforme as luzes das auras

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celestes perdiam a intensidade. A luz de Miguel se intensificou, porém,

e nos deu certo alívio. A presença infernal, porém, se tornava mais e mais

poderosa. E, no horizonte ao norte, os céus azuis eram engolidos pelo

vermelho-sangue e por nuvens negras.

“O portal foi fechado”, disse o Arcanjo Veritatis. “A última etapa

dos planos do jogador se aproxima”.

“Como o portal poderia ser fechado?”, perguntou Azrael, “Pode

Raguel ter sido derrotado?”.

“Eles não precisam atacar o portal diretamente para fecha-lo”, disse

o Arcanjo da Verdade, “Nem sequer precisam se aproximar dele. Os

Grandes Lordes criaram o portal e têm a chave para sela-lo deste lado. Esse

era o plano deles o tempo todo. Mas não devemos recuar! Enquanto o

Décimo Quarto não nascer, teremos uma chance!”.

“Continue sua história, irmão”, pediu o Arcanjo Miguel.

“Sim...”, Lorde Veritatis concordou, “Por décadas eu caminhei no

Inferno, tentando absorver o conhecimento que eu encontrasse no caminho.

Fui além de Dudael e dos fantasmas de Sodoma e Gomorra, atravessei as

Terras Devastadas e cheguei às montanhas ao sul. Por mais décadas, eu

percorri sozinho caminhos sinuosos por entre cadeias montanhosas

intermináveis e, finalmente, eu encontrei um grande vale, cuja única

caverna tinha o formato da boca de um dragão. E, à frente da caverna,

havia um homem à minha espera. Eu perguntei, temendo a resposta, quem

era ele”. Veritatis fechou então os olhos, como se tentasse lembrar as

palavras exatas. Sem abri-los, ele disse, numa voz poderosa: “E a voz do

pai ecoou como trovões, quando em suas mãos ele ergueu a alma imortal

do primeiro governante, que regia sua tribo através de força e terror: ‘Faço

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deste meu primeiro filho e o mais poderoso de todos eles. Pois ele

governará este mundo e tudo o que se esconde nas trevas. Ele também será

aquele que escolherá quem pode se tornar meu filho, e quem me servirá.

Eu o faço Imperador deste reino por toda a eternidade, e que sua sombra

seja tudo o é preciso para que ele seja temido por todos os que aqui

viverão’.”

“Você realmente encontrou o Primeiro!”, murmurou Azrael.

“Sim. Eu encontrei a serpente, o diabo chamado Ahriman ou

Satanás, aquele chamado Satã, e proclamado Imperador”, disse Veritatis, e

sua voz mostrava medo, “e, naquele dia, meus piores pesadelos criaram

vida, pois aquele ser não é como seus irmãos, nem é como qualquer outra

criatura que caminha na Criação Divina. A caverna além, eu podia sentir,

levava para fora desta realidade, para o Abismo Além, e aquele ser era uma

mera sombra de algo que habitava ali. Ele não é apenas uma lenda, nem

apenas um Filho, ele é algo mais, uma manifestação de algo maior, algo

com o poder de criar e gerar, de destruir e transmutar. De dentro dele,

pulsavam todas as essências de todos os Filhos, e seu olhar era o suficiente

para pôr-me de joelhos. Nas mãos dele, eu era um boneco, e fui forçado a

ouvir suas palavras, enquanto ele me mostrava que, por toda a minha

jornada pelo Inferno, eu tinha sido manipulado para que eu o encontrasse”.

“E o que ele revelou?”, perguntei, considerando as repercussões da

existência de tal ser.

“O Primogênito é apenas um espectador, mas foi-lhe pedido que

participasse do jogo”, respondeu o Primus, “Ele me revelou que o jogador

me trouxera a ele, e que o jogador planejou minha captura. Ele então me

contou que eu seria entregue, como um presente, a Astaroth, que me

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procurava. Ele me revelou que, para que o Décimo Quarto nascesse,

Astaroth deveria morrer, e que os exércitos do Éden fariam isso sem que os

outros Irmãos necessitassem sujar suas mãos”.

E foi então que Veritatis cessou a revelação, e fitamos o que nos

esperava adiante. As tropas celestes se reorganizaram, algumas mantendo-

se no ar, outras descendo ao solo e formando linhas de frente para a batalha

que estava prestes a ocorrer. À nossa frente, tomando quilômetros de área

do deserto de Dudael, ao redor de uma montanha alta, parecendo um

enorme espinho que se projetava da planície morta, estavam dezenas de

milhares de demônios e centenas de milhares almas armadas. Milhares de

dragões sobrevoavam os céus, e o próprio firmamento parecia emanar luz,

como se uma tempestade de fogo se formasse além das nuvens,

imediatamente acima da alta montanha negra.

“Leve-me ao chão”, pediu o Arcanjo Gabriel a Ansgar, enquanto

Miguel também descia ao solo para liderar as tropas terrestres.

Os exércitos demoníacos estavam silenciosos e estacionários, sem

sinais de desejar avançar contra nós, e mesmo os dragões não urravam

enquanto circundavam a montanha. Os ventos pareciam vir diretamente da

montanha negra, e traziam consigo o rosnar da criatura ali acorrentada

sobre um pedestal. E eu reconheci aquela criatura de pele negra e asas de

dragão como o anjo monstruoso que vi no primeiro sonho. O Arcanjo

Rafael, que permaneceu nos ares à nossa frente, murmurou: “Azazel...”.

“Azazel”, repetiu Veritatis, “O primeiro do povo de Lúcifer”.

“O primeiro dos Luciferite”, disse Azrael.

“Não, ele não é o primeiro”, disse Veritatis, enquanto Ansgar

retornava aos céus, após deixar Gabriel em terra. E eu vi dois seres ao lado

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de Azazel, ambos cobertos por mantos e capuzes. Mesmo à distância,

eu podia sentir seu poder emanar tão forte quanto o de Astaroth. O

primeiro, à direita, nada portava, mas o segundo, à esquerda de Azazel,

tinha em suas mãos o jarro, e eu podia sentir a essência de Leviathan pulsar

em seu interior. Veritatis fechou os olhos e apontou para aquele ser que

portava o jarro, que então abria suas asas negras e doentias, e então a voz

do Arcanjo da Verdade veio em nossas mentes, e apenas em nossas mentes:

“E naquele tempo, o Primogênito sentiu o ódio e o ressentimento dAquele

que Decaiu. Como uma grande sombra, Satã ergueu-se ao mundo dos

vivos, e percorreu os desertos e as terras ermas em busca daquele que

blasfemava contra os céus. Quando a sombra encontrou a luz minguante

do Decaído, ela ofereceu poder e vingança, e a isso a Estrela da Manhã

respondeu: ‘Não serei teu escravo, nem jamais serei preso a teu Inferno.

Que minha vontade seja livre e que eu use teu poder como eu bem desejar.

Tendo estas condições, eu aceito’. E a sombra disse, tornando proporções

colossais e erguendo a Estrela da Manhã em suas mãos: ‘Em nome de meu

pai, faço deste o décimo segundo filho, o maior e o menor entre eles, o

Lorde das Mentiras, que caminhará entre os vivos sem ser reconhecido e

estenderá sua palavra a todos os povos para trazer vingança àqueles que o

traíram. Dou a ele o nome Abaddon, que é uma mentira, para que seu real

nome jamais seja conhecido’. E tendo dito isso, a Sombra o deixou, para

que ele espalhasse mentiras e acreditasse nas próprias mentiras que ele

espalhava. Que sua maldição seja a tolice, e que ele mesmo seja vítima de

suas falácias”.

Eu, meus companheiros, Azrael e Rafael ficamos sem palavras,

enquanto fitávamos o Décimo Segundo Filho, Lúcifer, Lorde das Mentiras,

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erguer o jarro acima de sua cabeça. E o outro, à direita de Azazel,

gritou, e sua voz trovejante ecoou em nossas mentes, trazida pelos ventos.

A voz nos atingiu como um raio ardente, queimando nossas mentes.

“Ergam-se, condenados e amaldiçoados. Faço deste o décimo quarto filho,

o Lorde da Agonia, que trará dor e morte aos inimigos do Inferno, e cuja

presença abrirá feridas e derramará sangue. Que sua maldição seja a dor

que renasce, e que ele reine em Gehenna por toda a eternidade! O velho rei

caiu, longa vida ao novo rei!”.

E tendo, dito isso, o Décimo Segundo esmagou o jarro em suas

mãos, e o vento trouxe a nós o urro de Leviathan. Azazel abriu sua bocarra,

urrando, e seu urro se tornou um só com o urro do Lorde do Sangue. E, nos

ares, os dragões urraram e avançaram contra nós. E, em terra, as legiões de

demônios e condenados fizeram o mesmo.

“Não temos chance!”, gritou Rafael, vendo as forças demoníacas se

aproximarem, compostas por dezenas de milhares e sentindo a fraqueza que

o Inferno impunha sobre nossas forças. “Abram portais! Voltemos ao

Éden!”, ele gritou, virando-se para as tropas celestes.

Pequenos portais começavam a surgir entre as forças celestes, mas

muitos falhavam ao conjura-los, devido às fortes energias demoníacas que

permeavam o Inferno desde o fechamento do portão entre os mundos. Os

Celestiais tentavam escapar pelos portais formados, enquanto o exército

demoníaco se aproximava mais e mais.

O próprio Veritatis abriu um portal para nós. “Entrem. É tarde

demais...”, ele murmurou. Enquanto meus companheiros atravessavam a

porta, eu fitei o exército de demônios e dragões, e pude ver Azazel

arrebentar seus grilhões e alçar vôo nos céus. O Grande Lorde encapuzado

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à direita ainda permanecia ali, mas o Lorde das Mentiras já havia

desaparecido. Abaixo, os primeiros demônios já alcançavam as forças

celestes, e a batalha começava. Os dois Primi, Gabriel e Miguel, lutavam

bravamente, decapitando e destruindo demônios às dezenas com seus

golpes. As forças infernais tomavam mais e mais espaço, cercando e

sobrepujando facilmente os Celestiais em menor número.

Mas então os céus se abriram, e uma figura relampejante desceu

como um raio, trazendo uma coluna de raios e chuva torrencial que

quebrou as linhas inimigas logo adiante do fronte celeste. O Arcanjo

Raguel se ergueu, enquanto o chão abaixo se abria, engolindo demônios às

centenas. “RETORNEM AO LAR, A BATALHA TERMINOU,

GUERREIROS!”, os ventos trouxeram a voz trovejante de Raguel. O

Primus dos Xamãs ergueu as mãos e gritou, e os ventos derrubaram os

dragões do céu, precipitando-os sobre as tropas demoníacas.

Meus olhos se arregalaram, vendo a destruição que o Primus dos

Xamãs era capaz de causar. Eu era o último do grupo a passar pelo portal,

faltando apenas Rafael, Veritatis e Azrael após, mas parei para ver aquilo.

Um dilúvio de proporções bíblicas caía logo à nossa frente, varrendo

legiões de demônios, enquanto a figura de Raguel brilhava nos céus,

iluminado por raios que partiam de seu corpo. Azazel voou na direção do

Primus, urrando, e sua presença parecia amenizar o clima, protegendo os

demônios abaixo da fúria de Raguel. “Outro dia, criança, outro dia”,

murmuraram os ventos com a voz de Raguel, que então abriu um portal e

desapareceu.

“Temos que ir, Lorde Nicodemus”, disse Azrael.

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“Sim, acabou”, eu murmurei, baixando a cabeça e voando na

direção do portal que Veritatis abrira.

“Não”, disse Veritatis, “Não acabou, mas é tarde demais para

impedir. Aquele que planejou tudo isto ainda tem uma última ação a

realizar”.

Parei logo antes de entrar no portal. “Por favor... me diga... Quem é

esse... ‘jogador’? Quem pode ter sido a semente de tudo isso?”.

“Eu não sei”, ele respondeu, e aquilo foi o que mais me

impressionou, “Apenas sei que é um dos Filhos... Quando nós acordarmos

esta noite, tomados por pesadelos, nós saberemos seu nome. Este é o último

mistério a ser revelado”, ele disse.

E, ouvindo aquilo, eu adentrei o portal e deixei o Inferno para trás,

temendo pelo que ainda estava por vir.

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Interlúdio Quinto: O Arauto

E ali, em seu trono, numa câmara negra e fria, estava ele,

finalmente, às portas do destino. À frente, o ar ondulava, ligeiramente

avermelhado, e ele podia ver imagens rápidas do que havia além. Um

sorriso discreto surgiu em seus lábios, sabendo que o prêmio estava a

poucos passos de distância. O jogo estava próximo do fim, apenas um

último ato era necessário, e nada mais poderia impedi-lo. O jogador riu

discretamente, fechando seus olhos e saboreando a vitória.

A mente do jogador voltou no tempo, lembrando-se dos detalhes

desta trama que ele teceu por dois mil e trezentos anos. Ele mentiu e traiu,

matou e criou, deu esperanças e causou desespero, superou seres maiores

do que ele, e pôs de joelhos seus maiores inimigos. Ele mentiu para o Lorde

das Mentiras e destruiu o Lorde da Dor. Ele convenceu o Lorde das Trevas,

e uniu muitos outros em sua causa. A própria verdade, Magna Veritas, foi

apenas um joguete em suas mãos. E agora, finalmente, sua prisão teria fim

e ele seria o salvador de seu povo, a ser idolatrado e seguido.

Quando o selo foi criado e ele e seus irmãos foram aprisionados em

seus próprios reinos, os outros foram tomados por frustração e raiva. Ele,

porém, viu possibilidades. Finalmente ele tinha encontrado um adversário à

altura: um Celestial presunçoso que ousava se chamar “verdade” e ousou

voltar o poder do Segundo Irmão contra os outros Filhos de Ialdabaoth. Ele

viu um novo Grande Lorde emergir para tomar o lugar daquele que caíra e

entendeu que ele mesmo poderia criar mudanças tão grandes na Criação e

no Inferno.

E então, a trama começou a ser tecida, a princípio lentamente. Ele

traçou seus planos, fez disso sinais que o mundo poderia acompanhar e se

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questionar. Ele buscou alianças, e com isso uniu outros sob sua causa,

embora se prostrasse ante a eles e jurasse ser apenas um aliado e não seu

líder. Outros, ignorantes, se opuseram a sua aliança, e se uniram sob a

liderança de Astaroth, o Lorde da Dor. Caos, Dor, Guerra e Fúria queriam

apenas vingança e guerra contra os céus, e nisso o jogador viu mais

possibilidades, e uma forma de continuar seu grande jogo perverso.

Ele então manipulou o Oráculo de Kthoan para que este descesse a

Dur Sharrukin e recuperasse os segredos ali contidos. Como esperado,

Kthoan retornou com os rituais que permitiram, séculos antes, que

Leviathan abrisse uma porta entre o mundo dos vivos e o Inferno. O Quarto

Filho, seu maior aliado, modificou os ritos, para que eles só pudessem ser

contidos de forma que o selo que os prendia também fosse ameaçado.

Então, os ritos foram entregues por Kthoan àquele que mais desejava trazer

vingança ao Éden: o Terceiro Filho, Lorde da Dor. O jogador sabia que o

Terceiro Filho iria usar o rito em suas terras, onde ele tem mais poder, e

assim tomar para si a liderança da guerra que viria.

E assim foi feito, como deveria ser, como ele previu que ocorreria.

Sua vingança pessoal começou não quando hordas infernais varreram os

Campos Elíseos do Paraíso, mas quando o portal foi fechado. Naquele

momento, ele fez com que Uriel-chamado-Veritatis percebesse que ele não

poderia proteger o Éden e ao mesmo tempo manter o selo ativo.

E o jogador então se deu mais algum tempo para planejar seus

próximos passos. Alguns séculos seriam necessários, mas em algum

momento, o portal precisaria ser aberto novamente. Ele sussurrou nos

ouvidos dos demônios corretos, murmurou mentiras e boatos entre os

Caídos, e lentamente fez com que o Éden se distraísse com outros

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problemas durante este período. Ele fez com que Cleros se dividissem,

e, no auge de seus planos, quando sentiu que o portal poderia ser aberto

uma vez mais, fez com que os Cleros se voltassem contra o mais novo

Primus. Quando a Quarta Guerra começou, ele continuou suas tramas,

enviando seus Caídos contra o Éden, e convencendo o Décimo Terceiro, o

Lorde da Guerra, a enviar seu mais poderoso Avatar ao Éden. Desta, forma,

ele pôde provocar e induzir as ações de duas peças-chave de seu plano.

Por um lado, havia Veritatis, o presunçoso, que encontraria seus

maiores medos ao ver que havia um Grande Lorde onde antes não existia.

O jogador sabia que, em tempos passados, o Grande Arcanjo ousou entrar

no Inferno para descobrir os segredos dos Grandes Lordes. Desta forma, ele

pretendia atraí-lo para uma armadilha.

De outro, ele trouxe a morte de Caesar, Primus dos novos

Protectori. Embora o jogador não tivesse interesses em Caesar, ele queria

provocar seu irmão bastardo, o Décimo Segundo, ao mesmo tempo em que

os Caídos sob controle do jogador levavam o Éden a acreditar que a Corte

Negra tinha se aliado ao Inferno para ataca-los. A ira do Filho Bastardo foi

terrível, iniciando uma guerra entre os dois, mas o jogador enviou o Quarto

Filho e o Décimo Filho para aplacar a Estrela da Manhã, dando-lhe certezas

de que a apoiariam contra o jogador, caso este tentasse continuar a guerra.

Em troca, Lúcifer aceitou um pacto, no qual Oostegor estaria segura contra

quaisquer ataques do Inferno, uma vez que ele trouxesse o jarro. O pacto

tinha, obviamente, suas condições, e elas se estendiam a aliados dos

pactuantes, o que incluiria o jogador em pessoa. Lúcifer deveria trazer o

jarro uma vez que o momento viesse, quando Veritatis estivesse preso no

Inferno. Obviamente, esta condição fez com que o Lorde das Mentiras

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Page 694: Magna Veritas - Tiago José Moreira

acreditasse que podia escapar do pacto e, desta forma, enganar seus

aliados. Quão tolo! Quem seria o idiota agora? O jogador riu, lembrando-se

das tolices que o Lorde das Mentiras se forçava a acreditas.

Então, uma vez que Lúcifer estava sob controle e o Arcanjo

caminhava pelas planícies infernais, ele buscou a última peça-chave de seu

plano, aquele que Veritatis procurava. O Primogênito o recebeu, e o

jogador sabia que não poderia mentir ou enganar para Aquele que é como o

Pai. O jogador contou toda a verdade, revelou cada fio de sua trama, e fez o

Primogênito gargalhar. Então, o jogador pediu a cabeça de Astaroth, o líder

de seus opositores, para que as disputas entre os Grandes Lordes

terminassem, e todos se unissem uma vez que o selo fosse quebrado. O

Primogênito concedeu seu pedido, contanto que o jogador substituísse o

governante de Gehenna por outro mais apto.

O jogador previra isso. Ora, quem mais apto a não ser Leviathan?

O jarro, que era o próprio selo que os prendia, era também a chave que os

libertaria. Ele usaria Azazel, aquele que possui a essência da Dor pulsando

em si, e daria a ele o poder de Leviathan. Azazel seria mais do que foi,

seria Leviathan encarnado, e tomaria o lugar do Lorde da Dor.

Tendo finalmente a aprovação do Primogênito, o jogador partiu,

sentou em seu trono... e esperou.

E, mais uma vez, os eventos ocorreram como esperado. O

Primogênito trouxe o Arcanjo da Verdade a ele. A pedido do jogador, o

Primogênito contou parte da verdade ao Arcanjo, incluindo a verdade sobre

o Lorde das Mentiras, sabendo que aquelas revelações o corroeriam por

dentro e que tais revelações ainda teriam propósitos uma vez que o jogo

terminasse. Por fim, o Primeiro Filho impôs uma proibição sobre o

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Arcanjo, impedindo-o de revelar a verdade ao Terceiro Filho, e

derrotou o Arcanjo, fazendo com que o Lorde da Dor o encontrasse

indefeso.

O plano estava próximo do fim e a nova guerra começaria em

breve, mas então, pela primeira vez, os eventos saíram de seu controle. O

Arcanjo Veritatis conseguiu escapar, usando os segredos dos próprios

Grandes Lordes para criar um Avatar para si. O jogador amaldiçoou seu

adversário, mas ele estava preparado para tais eventualidades. Ele buscou o

Quarto Filho, o Lorde do Proibido, e pediu que ele caçasse o Arcanjo. O

Quarto trouxe sua grande criação, Shiva, à vida, e lançou o tigre ao mundo

dos vivos, causando pesadelos na humanidade.

Porém, o jogador sabia que Shiva apenas não encontraria o

Arcanjo. Ele precisava da ajuda de seus inimigos, dAqueles que Vigiam.

Ele precisava manipular seres incompreensíveis, que existiam acima dele

próprio e só eram acessíveis pelos Planos das Idéias e Onírico. O jogador

reorganizou seus pensamentos e os lançou no Plano das Idéias, sabendo que

pesadelos resultariam disso e que os Guardiões os encontrariam e os

levariam aos Celestiais que poderiam encontrar Veritatis.

E assim aconteceu.

Fragmentos de seus planos chegaram aos Guardiões, e estes se

alarmaram. Sete Celestiais patéticos foram convocados para impedir o

jogador e salvar o Arcanjo da Verdade, mas Shiva já estava preparado para

seguir os passos desses salvadores. Muitos tentaram impedir o jogador, mas

no fim, seus planos tiveram sucesso novamente. Como desejado, os

salvadores alcançaram o Velho que guardava a alma de Veritatis, e assim

trouxeram Shiva até ele. O Arcanjo retornou gritando ao Inferno, enquanto

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seus salvadores voltavam ao Éden para lamber seus ferimentos e

chamar por ajuda.

E, assim, a etapa final do plano veio a ocorrer.

Ele abriu os olhos, e sorriso em seus lábios se intensificava. O

Lorde da Dor estava morto, e o Lorde da Agonia surgia em seu lugar. Os

ventos cortantes que antes cercavam o Inferno não mais existem, e o portal

entre os dois mundos jaz morto de uma vez por todas. Os Primi agora

sabem da traição de Lúcifer e se voltarão contra ele, enquanto o Éden teme

as repercussões da Quinta Guerra que acabara de começar. O Inferno

lentamente irá se unir, e somente um campo de batalha resta entre os dois

mundos: o reino dos vivos.

O jogador se ergueu, caminhando em forma humana na direção do

portal. A vitória estava a poucos passos, mas ele desejava saboreá-la. A

passos lentos, ele viu o destino se aproximar, e levou a mão ao rosto,

lembrando-se dos golpes que o Lorde das Mentiras ousara desferir em sua

face. Quem era o tolo agora?

E ele riu, ao lembrar das palavras que o vassalo de Uriel falara para

sua manifestação na Terra: “Sua real forma está presa em seu reino, e

diante de mim está apenas uma criatura digna de pena, que engana através

de truques de névoa, sombra e medo”. Ora, não foram necessárias apenas

ilusões e medo para provocar toda essa cadeia de eventos?

Então, finalmente, o braço do demônio atravessou o portal, e

aquele evento ressoou por toda a Criação, fazendo tremer as fundações da

realidade. Ele podia sentir o caos tomar o Plano Onírico, desencadeando

pesadelos em mentes dormentes por todo o mundo, e sabia que também o

Plano das Idéias sofria, provocando premonições, loucura e medo nas

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mentes mais sensíveis. Seu corpo transpunha o portal, sentindo uma

força tremenda tentar mantê-lo no Inferno. O jogador já tinha se precavido,

porém, e por milhares de anos se preparou para quebrar os grilhões que o

ligavam a seu reino. Ele caminharia livremente entre os homens, seria o

Arauto profetizado, que abriria as portas do Inferno a todos os seus irmãos.

Antes que o portal o engolisse por inteiro, o Grande Lorde se

lembrou de algo que disse aos Celestiais patéticos que tentaram impedir seu

grande plano. Aquilo não era uma apresentação, mas sim um aviso do que

estava por fim. Em suas mentes limitadas, porém, eles não puderam

compreender, e agora ele iria repetir aquilo novamente, para que sua voz

ecoasse pelos confins da realidade e pudesse ser ouvida por todos aqueles

que um dia ousaram tentar detê-lo.

E a voz monstruosa do demônio ecoou, assim que ele deixou, de

uma vez por todas, sua fortaleza negra e fria: “Nomes pouco dizem, a não

ser aquilo que eu quero mostrar. O que eu sou? Eu sou o Oitavo Filho.

Quem eu sou? Vocês podem me chamar de muitos nomes. Pois de Azazel

roubei o nome, e na forma de um bode o usei para ouvir os pecados do

homem. Pois antes de Hades assim se chamar, eu mesmo Hades era, e

manipulava deuses e deusas de acordo com minha vontade. Também os

romanos e os cristãos sussurravam ‘Rex Mundi’, o senhor deste mundo,

pois sabiam que minha vontade não devia ser contestada, e que meu real

nome deveria ser temido. Pela Idade das Trevas, Næbyrus, Senhor do

Profano, fui chamado, e sussurrava nos ouvidos de reis e lordes. Também

Mamon foi minha alcunha, e me chamavam de Mestre da Usura, pois pela

ganância os homens a mim encontravam, e a mim se entregavam. Nu, eu

comparecia aos Sabás com o nome de Leonardo, e, a minhas feiticeiras,

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milhares temiam. Para muitos, eu sou Nebiros, mas nesta terra, me

chamam Íblis Al-Qadim, e é por este nome que mais me temerão”.

E, no reino dos vivos, centenas de milhares despertaram gritando.

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Capítulo 25: Os Sete, Divididos

“Vocês sabem que devemos guardar segredo, não?”, perguntei.

Absolon e Fabrizia me olharam como se eu estivesse pedindo

demais deles. Os outros, porém, já entendiam o que eu queria dizer. Ali

estávamos nós, cinco dias após o início da Quinta Grande Guerra, nos

encontrando pela última vez. Todos sabíamos que aquele dia seria nossa

despedida e, de certa forma, todos estávamos tristes por isso.

“Por que guardar segredo, Nicodemus?”, perguntou Absolon, “Não

é exatamente esse tipo de coisa que permitiu que tudo acontecesse? Não é

por não ter informação que podemos ser usados tão facilmente? Eu não

entendo porque manter esses segredos para nós”.

“Um segredo contém poder, Absolon”, murmurou Lo Wang,

sentado num canto da sala, de cabeça baixa. “Enquanto nós o soubermos,

teremos vantagens sobre aqueles que não os tem. Se a verdade sobre

Lúcifer, por exemplo, vazar, Lúcifer se prepararia de acordo. Por enquanto,

o Éden possui esta vantagem e não podemos desperdiça-la...”.

“Além disso”, disse Al-Malik, que se sentava ao lado de Absolon,

“Nós devemos respeitar as decisões dos Primi. Cabe a eles organizar o

Éden, e a nós realizarmos as tarefas que temos à mão. Espalharmos essas

notícias não é a mais sábia das decisões. Faze-lo pode causar problemas

que sequer podemos prever em nossa posição atual. Acho que todos

aprendemos o quanto nossos atos podem repercutir”.

Houve um silêncio. Nós nos reunimos para nos despedir, mas

parecia que ninguém queria tocar no assunto. Já tínhamos discutido tanto...

Falamos sobre a presença de Íblis Al-Qadim na Terra, sobre a apreensão no

Éden, sobre os medos de cada um... mas não sobre a partida. Eu fitei a

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espada de Asphael, que agora adornava a parede da biblioteca de Sans

Vidya, sabendo que precisava tocar nesse assunto. “Agora que a missão

terminou”, eu suspirei, “É chegada a hora de cada um de nós prosseguir em

seu caminho. Este é nosso último encontro, mas gostaria de dizer que,

sempre que precisarem, me procurem, e eu os receberei de braços abertos”.

“Você vai sempre ser o elo que liga todos nós, Philipe”, murmurou

Karina, com um sorriso tímido no rosto.

“Nós vamos estar sempre avisando você dos nossos passos”, disse

Al-Malik, se levantando para vir até mim, já que eu andava, apreensivo, de

um lado para o outro do lugar. Ele tocou meu ombro, sorrindo. “Nossa

Falange pode se separar fisicamente, mas acredito que ainda vamos nos

reencontrar muitas vezes. Talvez a missão não tenha terminado ainda, mas

sim esteja esperando que nos aprimoremos antes de a continuarmos”.

Sorri para Al-Malik, e então fitei cada de meus companheiros. Pude

notar rostos bem diferentes daqueles que vi naquela primeira noite, quando

o chão tremeu e o urro do dragão ecoou por Libraria. Absolon cresceu em

espírito e coragem, Fabrizia ganhou confiança e Karina parece estar mais

ciente de seu papel no mundo. Posso notar um olhar pensativo em Ansgar,

e certa depressão em Samuel. Apenas Al-Malik e Lo Wang parecem ter

mudado pouco... mas, pensando bem, desde o começo eles tinham

convicção e perseverança para resistir aos desafios que enfrentamos juntos.

Novos desafios ainda esperavam por nós, mas agora nossos caminhos se

dividiriam. “Aonde cada um de vocês pretende ir?”, perguntei.

“Estou voltando ao Rio de Janeiro”, murmurou Samuel. Ele parecia

deprimido, como se sua fé falhasse após ser derrotado pelo Lorde da Dor.

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“Não sei se permanecerei por lá, porém... talvez seja hora de me mudar

novamente, para outro país. Não sei ainda... mas Karina virá comigo”.

Karina sorriu, pegando na mão de Samuel. Seu sorriso era mais

fraco do que no início e seus olhos pareciam tristes, mas eu sabia que ela

iria se superar e ajudar Samuel a se recuperar. A princípio, ele não queria

que ela o acompanhasse, mas ela acabou convencendo-o. “Eu espero que

mantenham contato, para que eu possa saber onde encontra-los, por favor”.

“Não se preocupe com isso, Philipe”, a Supervivente disse,

sorrindo para mim.

Fitei Lo Wang, que se levantava. Era estranho não vê-lo vestido

para matar. Ele usava uma roupa chinesa típica, de cor branca. Ele se

aproximou, curvou-se ante mim, e disse: “Senhor Nicodemus, foi um

prazer e uma honra lutar ao lado de vocês. Espero um dia bebermos todos

juntos em minha vila, onde poderemos rir e dançar, mas por enquanto eu

preciso rever as terras que jurei proteger. Há notícias que nossos próprios

males começam a ressurgir”.

“Sei que vocês sempre agiram sozinhos, Wang”, falei a ele, “Mas

lembre-se que somos amigos. Se precisar de ajuda em suas terras, nós

ajudaremos”.

Lo Wang sorriu. “Um dia apresentar-lhes-ei Ten Raicho e outros de

meus companheiros. Vocês vão gostar deles, são boas pessoas”.

“Tenho certeza que sim”, respondi, e então me virei aos quatro

outros: Ansgar, Absolon, Fabrizia e Al-Malik: “E quanto a vocês?”.

“Nós já dissemos, Nick”, respondeu Fabrizia, abraçada a Absolon,

“Nós vamos continuar juntos, todos nós”.

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“Se farão uma Falange permanente, precisarão de um nome

para ela”, eu disse, sorrindo.

“Nós já decidimos um nome”, respondeu Absolon, pegando a

espada, embainhada, que tinha posto ao lado do sofá em que ele se sentava

e erguendo-a a mim. “Somos a Lâmina Prateada”.

“Nomearam segundo a espada que Lúcifer entregou a vocês?”,

perguntei, estranhando.

“Não”, disse Al-Malik, “Em nome da espada que Amazarak nos

deu. Apesar de tudo, ele é um grande homem e um grande exemplo, e

talvez possa significar algo para o futuro da Corte Negra”.

Sorri. “E decidiram para onde irão?”, perguntei.

“Não sabemos ao certo”, disse Ansgar. “Eu sugeri Alemanha,

Absolon quer a França, Fabrizia preferiu o México, e Al-Malik não se

manifestou”.

Al-Malik riu. “Podemos ir a todos eles, isso não tem problema.

Temos tempo de sobra. Mas como líder da Lâmina Prateada, eu preferiria ir

à Arábia Saudita, e por isso não há consenso. Mas como dois sugeriram a

Europa, acredito que é melhor peregrinarmos por lá por algum tempo, até

acharmos um caminho”.

“E espero acharmos rápido”, disse Ansgar, “Porque parece que o

tempo corre contra nós”.

“O mundo vai mudar”, eu disse ao Venator, “Ninguém sabe o que

pode acontecer a seguir. Sempre se imaginou que, depois de eventos como

os que vivemos, haveria uma guerra. Mas talvez ela dure séculos para

começar. Por enquanto, Éden e Inferno vão estar observando um ao outro,

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cada um movendo com cuidado para se preparar para os movimentos

do outro. Devemos todos tomar muito cuidado”.

“Eu sei”, disse Ansgar, se levantando do sofá.

“É aqui que nossos caminhos partem, né?”, Absolon falou, se

levantando após o Venator, e então ajudando Fabrizia a se levantar do sofá.

Em seguida, todos vieram até mim, para nos cumprimentarmos antes de

nos separarmos.

“Estive pensando...”, murmurou Fabrizia. “Se uma Falange precisa

ter um nome... qual o nome da Falange a que todos nós oito pertencemos?”.

Fitei Fabrizia e pensei por um instante. “Meu Clero acredita em

símbolos e sinais como formas de se representar significados ocultos. Nós

trouxemos aquele que se chama Verdade e provocamos uma revelação...

um apocalipse, se preferirem.... Somos os Portadores da Verdade, e nosso

símbolo será um par de asas negras, as asas da verdade”.

“Que assim seja”, disse Al-Malik, estendendo a mão direita. Um a

um, nós formamos um círculo, unindo nossas mãos direitas, umas sobre as

outras. Permanecemos assim por alguns instantes, antes que nos

disséssemos adeus e nos separássemos. Nos abraçamos, um a um, e nos

despedimos, para um dia nos encontrar novamente, e logo todos partiram.

A jornada terminava ali, e eu sozinho fitei novamente a espada de

Asphael, presa à parede como uma lembrança de nossa jornada. Eu

colocarei algum dia ali o símbolo das asas negras, o nosso símbolo, para

lembrar nossa união. Tempos negros ainda viriam, mas um dia certamente

nós iríamos nos reunir novamente. “Quando isso acontecer, você também

estará lá, não?”, eu murmurei à espada, como se falasse com seu dono. E ali

fiquei por mais alguns minutos, antes de ter que voltar a meus afazeres.

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Fiquei ali pensando em tudo... Nos sonhos que eu ainda tinha,

nas memórias do Lorde da Dor que ainda permeavam meus pensamentos

ocasionalmente. Fiquei pensando na criatura que estava em algum lugar,

caminhando entre os vivos. Fiquei pensando nas revelações e no seu

significado, e na Quinta Guerra que apenas começou, mas como a Primeira,

pode demorar milênios antes de se concluir. Pensei nos outros que nos

acompanharam na jornada, nos Primi e seus poderes. Pensei em Amazarak

e em seu papel como o guia espiritual de Lúcifer e dos Caídos. Lembrei de

Urias, quando o acharam vivo mas severamente ferido nos confins de

Libraria. Lembrei dos rumores de que o Arcanjo Fanuel, Primus dos

Cuique Suum, tinha descido a Terra, para procurar por sinais de Íblis Al-

Qadim. O mundo continua a girar e a mudar. O temido apocalipse ocorreu,

os tempos são outros, as velhas certezas são dúvidas e os desafios serão

novos. A jornada terminou, mas eu tinha certeza que uma nova começaria

em breve.

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Epílogo

Ele caminhou pelas ruas, sentindo o sol iluminar seu rosto sob um

céu azul. Milhares de pessoas caminhavam pelas avenidas, e mais milhares

trabalhavam nos arranha-céus ao redor. Carros se moviam a uma

velocidade lenta devido ao trânsito congestionado. Ele caminhava sorrindo,

seus olhos captando as faces das pessoas. Ele podia ouvir suas palavras e

mentes, compreendendo tudo apesar da cacofonia criada por tantas vozes.

Medos e desejos se misturavam, o faziam sorrir ainda mais.

Se ele quisesse, poderia simplesmente liberar a raiva ardente que

queimava em seu interior, tornando aquela metrópole uma conflagração

única, erguendo nuvens de cinzas e fumaça que bloqueariam o sol, e

alertando ao mundo inteiro sobre sua presença.

Se ele quisesse, ele poderia fazer fogo chover ou abrir as portas do

Inferno sobre a humanidade, revelando aos mortais as verdades maiores e

mais sinistras da Criação num grande Armageddon. Ele poderia fazer os

mortos se erguerem ou dominar as mentes dos governantes do mundo.

Cada pessoa ali presente parecia ser tão pequena, tão frágil... almas

maleáveis protegidas por uma casca quebradiça de carne e sangue. Ele

poderia matar uma a uma, transformar suas entranhas em vermes que se

espalhariam pelo mundo, devorando tudo em seu caminho.

Ou ele poderia emanar seu poder, espalhando sua consciência por

aqueles no poder, tomando as cidades da Terra uma a uma forçando a ralé

da humanidade se curvar ante ele e adora-lo como um Deus. Ele seria o

flagelo das religiões, e todo o poder da fé humana se centraria nele.

E ainda assim, ele não desejava nada disso. Mostrar-se e agir seria

o mesmo que atrair a morte para si mesmo. Ele não cometeria os mesmos

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erros do passado, não faria oceanos de sangue nem faria os justos

caírem ante os perversos. Ele não era a Guerra nem a Dor. Ele sabia que

não poderia ser derrotado ou curado, pois ele podia controlar a todos,

manipular todos os eventos, prever cada movimento de seus inimigos. Ele é

a tirania, e seus inimigos não podem vencer aquele que os controla. Mas...

aqueles que ele não poderia controlar... ah, esses ainda precisavam ser

destruídos...

Com um sorriso no rosto, Íblis Al-Qadim, Grande Lorde da

Tirania, Senhor do Profano, continuou a caminhar por entre a humanidade.

Sua mente se concentrava em milhares de tarefas simultaneamente, criando

milhões de possibilidades para o futuro. Ele podia sentir centenas que o

buscavam, mas estes não o encontrariam. Em breve, ele agiria, mas por

enquanto era a hora de aproveitar sua liberdade... e planejar para o futuro.

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