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ANA PAULA CARDOZO DE SOUZA MACHADO DE ASSIS E A REPÚBLICA DE “A SEMANA”: Literatura, Imprensa e Práticas Populares (1892-7). Campinas, SP 2015 i

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ANA PAULA CARDOZO DE SOUZA

MACHADO DE ASSIS E A REPÚBLICA DE “A SEMANA”:

Literatura, Imprensa e Práticas Populares (1892-7).

Campinas, SP

2015

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

ANA PAULA CARDOZO DE SOUZA

MACHADO DE ASSIS E A REPÚBLICA DE “A SEMANA”:

Literatura, Imprensa e Práticas Populares (1892-7).

O r i e n t a d o r : P ro f . D o u t o r Jefferson Cano

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do Título de Mestra em História.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA PAULA CARDOZO DE SOUZA, E ORIENTADA PELO PROF. DR. JEFFERSON CANO.

Campinas, SP

2015

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Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/338

Cardozo de Souza, Ana Paula, 1984- C179m CarMachado de Assis e a República de "A Semana" : literatura, imprensa e

práticas populares (1892-7) / Ana Paula Cardozo de Souza. – Campinas, SP :[s.n.], 2015.

CarOrientador: Jefferson Cano. CarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Car1. Assis, Machado de, 1839-1908 - A Semana. 2. Crônicas brasileiras . 3.

Literatura brasileira - História e crítica . 4. Imprensa. 5. Brasil - História - Séc. XIX.6. Brasil - História - República Velha, 1889-1930. I. Cano, Jefferson,1970-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Machado de Assis and the Republic of "A Semana" : literature, pressand popular practices (1892-7)Palavras-chave em inglês:Brazilian chroniclesBrazilian literature - History and criticismPressBrazil - History - 19th centuryBrazil - History - Old Republic, 1889-1930Área de concentração: História SocialTitulação: Mestre em HistóriaBanca examinadora:Jefferson Cano [Orientador]Sidney ChalhoubDaniela Magalhães da SilveiraData de defesa: 09-02-2015Programa de Pós-Graduação: História

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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RESUMO

As crônicas de Machado de Assis revelam vários aspectos da sociedade brasileira do século

XIX. Esta dissertação tem por objetivo analisar “A Semana”, a última e mais longa série do

literato, publicada entre os anos de 1892 e 1897, que pode dizer muito sobre os primeiros

anos da República vistos pelos olhos do cronista. Em decorrência da extensão da série,

priorizo aqui a visão do cronista sobre a criminalização e a repressão das práticas populares

no período. Analiso também a recorrência desses assuntos nas demais colunas de seu

veículo original de publicação, a Gazeta de Notícias, visando contribuir para a ampliação

do conhecimento acerca do período inicial do regime republicano e da obra machadiana.

Procurei traçar ainda o perfil do narrador ficcional dessa série e de sua importância para a

compreensão destes textos.

PALAVRAS CHAVE: Machado de Assis, Crônica, Primeira República, Prática populares.

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ABSTRACT

Machado de Assis' “crônicas” reveal several aspects of the Brazilian society of the 19th

century. Published between 1892 and 1897, “A Semana” is the author's last and longest -

running series and tells us a lot about the first years of the Brazilian republic as seen by

Machado de Assis. This dissertation prioritizes and analyzes his view of the criminalization

and repression of popular practices in the period, as well as the recurrence of these topics in

the other columns of “Gazeta the Notícias”, the newspaper where the “crônicas” were

originally published. By doing so, we intend to expand the knowledge of the initial period

of the republican regime and Machado’s work, as well as draw a profile of the series’

fictional narrator and assess its importance for the comprehension of these texts.

KEYWORDS: Machado de Assis, Crônica, First Republic, Popular practices.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………p.01

CAPÍTULO I

A Gazeta, “A Semana” e o semanista……………………………….……………p.10

1. Gazeta: de Notícias e de Literatura……………………………………………..p.11

2. Mestre entre os homens de letras…………………………………………….….p.19

3. Um novo modo de dar “A Semana”…………………………………………..…p.25

4. A primeira “Semana”………………………………………..…..………………p.35

5. Um narrador em “A Semana”?…………………………………….……………p.43

6. Tiques e cacoetes…………………………………………………………………p.52

CAPÍTULO II

Leituras e usos do jornal…………………………………………………….……p.71

1. De que era cercada e servida “A Semana”………………..……….……………p.72

2. José Rodrigues: criado-leitor……………………………………………………p.91

3. As agitações de 1894……………….……..…………….………………………p.105

CAPÍTULO III

Ciência, polícia, imprensa… ………………………………..……………………p.119

1. Gazeta: de Notícias e de Ciência……..………………..…………………….….p.120

2. Micróbios e meias ciências…………………………..………………………….p.135

3. A ciência das posturas municipais……………………………………..………..p.144

4. Diversões e ofícios ilícitos…………………………………………..…………..p.161

CAPÍTULO IV

Singulares amores, singulares crimes: notas policiais em “A Semana”…….….p.177

1. Maria de Macedo………………………………………….….………………….p.178

2. Manuel de Souza e Silva, Nenê…………….………….……………….…….…..p.193

3. Ambrozina Cananéa do Brazil & Mathilde da Silva Terra……………….….…..p.206

EPÍLOGO…………………………………………………………………….……p.221

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FONTES……………………………………………….…………………….….…p.225

OBRAS DE REFERÊNCIA………………….………………………………..…p.228

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………….….…p.229

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Aos meus pais, Nair e José, pelo amor e suporte.

A Isabel Camargo Oliveira, a madrinha Zabé, (in memoriam) por me ensinar o valor das histórias.

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AGRADECIMENTOS

“Quando um homem se põe a escrever uma história, sem estar com o olho no dinheiro, mas por simples amor da verdade e do estilo, é natural que despenda cinco anos ou mais no trabalho…”

Machado de Assis, “A Semana - 22 de março de 1896”.

E lá se vão mais de cinco anos de trabalho com “A Semana”, deixando-me conduzir

pelas mãos de um cronista trigueiro. Ao longo desse tempo, descobri e redescobri o amor

pelo ofício. Foram anos de diversão, mas também, devo confessar, de incertezas e desafios.

Esta etapa só foi concluída por causa do suporte que recebi das pessoas que, de perto ou de

longe, foram meu esteio.

Agradeço à minha família pelo apoio e amor incondicionais ao longo desta

caminhada. Aos meus pais, Nair e José, devo tudo. Obrigada, acima de tudo, por serem

meus exemplos de vida. Um abraço especial aos meus irmãos e sobrinhos que sempre me

motivaram. Obrigada também aos sogros, Isabel e Cloves, por me adotarem como parte da

família e me tratarem como tal.

Lá se vão também quase oito anos de IFCH. Não posso deixar de mencionar os

colegas e amigos que fizeram desse período um dos melhores de minha vida. Meu

particular agradecimento a Gabriela, Thamires, Juliana, Ligia, Jaqueline, Gabriel, Andrei e

à turma História 07, pelos momentos de companheirismo e de suporte. A pós-graduação

também me presenteou com pessoas que se fizeram fundamentais na caminhada. Um

abraço especial a Daniele e Andrea. Mesmo com a distância intercontinental, vocês se

fizeram presentes e me ajudaram a prosseguir.

A Raquel G. A. Gomes devo tudo do que de bom se apresenta nesta dissertação.

Obrigada pelas conversas diárias, pela visita em terras finlandesas, pelas risadas, pelo

ombro sempre amigo e, em suma, pelo apoio. Sem você não teria conseguido chegar até

aqui!

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Falando ainda de IFCH, não posso deixar de mencionar os professores que foram

parte fundamental da minha formação. Agradeço especialmente a Silvia Hunold Lara,

Robert Slenes e Fernando Teixeira que, na graduação e na pós, contribuíram para que eu

aprendesse o que era o ofício de historiador e o abraçasse. Um especial agradecimento a

Sidney Chalhoub que me guiou desde os primeiros passos dos estudos machadianos e que

sempre se mostrou solícito e generoso em suas leituras e conselhos. Obrigada também a

Daniela Silveira por se mostrar sempre atenciosa e pelos comentários fundamentais na

banca de qualificação. Especial lembrança a Amy Chazkel que, muito gentilmente, me

auxiliou desde a elaboração do projeto de pesquisa e sempre me deu indicações preciosas.

Meu especial agradecimento ao meu orientador, Jefferson Cano, que aguentou muita

insegurança, temores e dúvidas ao longo do percurso. Obrigada pela leitura atenciosa dos

meus longos textos e pela paciência com uma orientanda quase sempre aflita.

Agradeço ainda os amigos que, mesmo à distância, me ajudaram, torceram por mim

e me levaram para longe da vida acadêmica, sempre que necessário. Não cito nomes para

que ninguém fique de fora.

Special thanks to my friends in Finland, where this dissertation was written. Thanks

for making life easier, guys!

O agradecimento mais devido deste trabalho é destinado a Raphael Kubo da Costa,

que foi e é companheiro no sentido mais amplo do termo. Obrigada por ter estado comigo

em todas as etapas e percalços deste trabalho, por ter aguentado muita choradeira, por ter

rido comigo de piadas do XIX, por ter se tornado o principal interlocutor e incentivador de

minha pesquisa e por ter me dado todo o suporte para que eu concluísse a jornada. Apesar

de todas as dificuldades da trilha, nunca me senti sozinha. Amo você!

Por fim, gostaria de ressaltar a importância da disponibilização do acervo da

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, sem o qual esta pesquisa não teria sido

possível.

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“A história é isto. Todos somos os fios do tecido que a

mão do tecelão vai compondo, para servir aos olhos vindouros,

com os seus vários aspectos morais e políticos. Assim como os há

sólidos e brilhantes, assim também os há frouxos e desmaiados,

não contando a multidão deles que se perde nas cores de que é

feito o fundo do quadro.”

Machado de Assis, “A Semana”, 07 de julho de 1895.

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INTRODUÇÃO

Em 28 de fevereiro de 1897, a primeira página da Gazeta de Notícias trazia mais

uma crônica intitulada “A Semana”. O leitor regular deveria estar muito acostumado a isto,

uma vez que a coluna era publicada desde abril de 1892, sempre aos domingos e em

posição de destaque. É fácil imaginar que alguns estivessem inclusive ansiosos pelo escrito.

Todavia, aquele seria o derradeiro texto da série, a mais longa e última escrita por Machado

de Assis. Configurava-se uma explicação do narrador do porquê da parada e ainda um

balanço de todo o período em que foi veiculada.

Na semana precedente, o semanista concluíra o seu texto dizendo que: “Domingo

próximo é possível que te explique esta confusão da minha alma. Estou certo que me

entenderás e aplaudirás.” Era justamente pela lembrança desta promessa que iniciava a 1

crônica do dia 28, afirmando que a iria cumprir. Comentava então a festa da quinta-feira

antecedente, ocorrida no palácio do governo, por ocasião do aniversário da Constituição

republicana , asseverando ter sido este o principal sucesso daquela semana. Contudo, quase 2

a recordar a si mesmo, o cronista dizia que a semana já não lhe pertencia e acrescentava:

“Leitor, Deus gastou seis dias em fazer este mundo, e repousou no sétimo. Ora, Deus podia muito bem não repousar, mas quis deixar um exemplo aos homens. Daí o nosso velho descanso de um dia, que os cristãos chamaram do Senhor. Eu não sou Deus, leitor; não criei este mundo, tanto que lhe acho algumas imperfeições, como a de nascerem as uvas verdes, para engano das raposas. Eu as faria nascer maduras e talvez já engarrafadas. Mas criticar obra feita não custa; Deus não podia prever que os homens não se limitassem a falsificar eleições e fizessem o mesmo ao vinho.

Vamos ao que importa. Se Deus descansou um dia, depois de seis dias de trabalho, força é que eu descanse algum tempo depois de uma obra de anos. Há cerca de cinco anos que vos digo aqui ao domingo o que me passa pela cabeça, a propósito da semana finda, e até sem nenhum propósito. Parece tempo de repousar o meu tanto. Que o repouso seja breve ou longo, é o que não sei dizer; vou estirar estes membros cansados e cochilar a minha sesta”. 3

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de fevereiro de 1897”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 1

21 fev. 1897, p.1. Ressalto que aqui, bem como em toda esta dissertação, a grafia original dos títulos de seções e de obras da época foi mantida. A pontuação dos excertos citados também. Todo o restante foi atualizado. Destaco ainda que utilizo em todo este trabalho a palavra “semanista”, que apareceu na própria série, enquanto sinônimo de narrador. Cf. “24 de Fevereiro”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 24 fev. 1897, p.1. 2

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de fevereiro de 1897”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 3

28 fev. 1897, p.1.

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Esclarecendo então o tom de mistério com o qual se despedira do leitor na semana

anterior, revelava seu afastamento da coluna. Não o fazia sem antes devanear sobre como

seria o mundo se ele fosse Deus e, de passagem, abordar falsificações de eleições e de

vinhos. Como veremos adiante, tais arroubos eram frequentes em “A Semana”. Declarava

ainda que estava extenuado da obrigação de, domingo após domingo, dizer o que lhe vinha

à cabeça, com ou sem propósito, em duplo sentido do termo, acerca dos dias que

antecediam a publicação de seu trabalho. Ficava em aberto a duração da sesta, ao passo que

implicitamente, na ideia de pausa e não de final, prometia um retorno. Não era somente a

obrigação de dar a semana que estafava o cronista. O próprio século XIX era em si mesmo

alquebrado. Era também ele que passava em revista pelas linhas daquela “Semana”:

“Antes de cochilar, podia fazer um exame de consciência e uma confissão pública, à maneira de Sarah Bernhardt ou de Santo Agostinho. Oh! perdoa-me, santo da minha devoção, perdoa esta união do teu nome com o da ilustre trágica; mas este século acabou por deitar todos os nomes no mesmo cesto, misturá-los, tirá-los sem ordem e cosê-los sem escolha. É um século fatigado. As forças que despendeu, desde princípio, em aplaudir e odiar, foram enormes. Junta a isso as revoluções, as anexações, as dissoluções e as invenções de toda casta, políticas e filosóficas, artísticas e literárias, até as acrobáticas e farmacêuticas, e compreenderás que é um século esfalfado. Vive unicamente para não desmentir os almanaques.” 4

Na sequência explicava que, se fizesse um exame de consciência, ele não seria nem

tão humilde como o de Santo Agostinho, nem tão glorioso como o de Sarah Bernhardt. O

santo teria dividido as confissões humanas em duas ordens: louvores e gemidos, não

deixando espaço para uma terceira via, algo do qual o cronista discordava. Sobre a atriz,

dizia ser a mais difícil de imitar e que, mesmo não tendo lido as confissões daquela

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de fevereiro de 1897”, op. cit. 4

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senhora, não entendia como uma criatura podia dizer tanta coisa de si mesma . Preferia 5

então não fazer confissão alguma e justificava sua opção:

“Não especifico [os pecados], por não perder tempo, e quem se despede, mal pode dizer o essencial. O essencial aqui é dizer que não faço confissão alguma, nem do mal, nem do bem. Que mal me saiu da pena ou do coração? Fui antes pio e equitativo que rigoroso e injusto. Cheguei à elegia e à lágrima, e se não bebi todos os Cambarás e Jataís deste mundo, é porque espero encontrá-los no outro, onde já nos aguardam os xaropes do Bosque e de outras partes. Lá irá ter o grande Kneipp, e anos depois o kneippismo , pela regra de que primeiro morrem os autores que as 6

invenções. Há mais de um exemplo na filosofia e na farmácia.” 7

Se não havia confissão, havia uma espécie de balanço de “A Semana”, com defesa

de si próprio, acompanhada de justificativas. Antecipava-se às possíveis críticas e

condenações de quem se propusesse a, como ele, analisar a obra de cinco anos. Lembrava

xaropes e correntes científicas a fim de se eximir da “culpa” de não tê-los citado, como a

dizer que, se não tinha falado das novas curas em voga, é porque elas estavam fadadas ao

fracasso e esquecimento, como os xaropes do Bosque e outros . Mais uma vez, não era 8

somente a série que estava na berlinda, mas o XIX. Era o final de um século cheio de

O cronista afirmava que tinha ideia do que eram pela nota que delas tinha dado “Eça de Queirós, com aquela 5

graça viva e cintilante dos seus três últimos ‘Bilhetes Postaes’”. Sarah as teria publicado no Fígaro, que para ele era o “Diário Oficial do universo”. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de fevereiro de 1897”, op. cit. Os escritos de Eça sobre o assunto, na verdade, saíram na Gazeta entre os dias 20 e 22 de fevereiro, sob a designação “Bilhetes de Pariz” com o subtítulo: “aos Estudantes do Brasil sobre o caso que deles conta Mme. Sarah Bernhardt”. QUEIROZ, Eça de. “Bilhetes de Pariz”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 fev. 1897, p.1-2; 21 fev. 1897, p.1-2; 22 fev. 1897, p.2; As confissões da atriz francesa viraram livro em 1907. Cf. BERNHARDT, Sarah. Ma Double Vie: mémoires de Sarah Bernhardt. Paris: Librairie Charpentier et Fasquelle, 1907. Machado se refere ao padre alemão Sebastian Anton Kneipp (1821-1897), criador de um conjunto de 6

práticas terapêuticas, com destaque ao uso da hidroterapia. Em 1892, Max Nordau faz referência ao “curandeiro de Wörishofen” e suas efusões frias e passeios descalços sobre a relva. Cf. NORDAU, Max. “Correspondências – Cartas da Alemanha”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jun. 1892, p.1. Visconde de Taunay foi adepto e defensor do kneippismo. Chegou inclusive a publicar, em 1895, um livro intitulado Como me tornei kneippista, sob o pseudônimo Jorge Palmer. O lançamento foi comentado em: Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 mai. 1895, p.2. e “Como me tornei kneippista”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 mai. 1895, p.2. Ressalta-se ainda que a Gazeta publicou uma série de artigos sob o título “Tratamento Kneipp” ao longo de 1894. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de fevereiro de 1897”, op. cit. Esse “balanço” da obra e 7

antecipação às críticas fazem lembrar as “Advertências” que Machado de Assis escreveu para a maioria de seus livros. Sobre o assunto, ver: SILVEIRA, Daniela Magalhães da, “Advertência”, in:______________. Fábrica de Contos: ciência e literatura em Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. Agradeço à própria autora pela sugestão. Cf., por exemplo: ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de maio de 1893”. Rio de Janeiro, 8

Gazeta de Notícias, 21 mai. 1893, p.1. E ainda: ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 06 de maio de 1894”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 mai. 1894, p.1. Nesta última trata especificamente do tratamento Kneipp.

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novidades, cuja eficácia era duvidosa. Contudo, alertava que os leitores não tirassem dali a

conclusão de ceticismo – “Não achareis linha cética nestas minhas conversações

dominicais” – mas assumia o seu quê de pessimismo, o que não poderia ser mais oposto ao

ceticismo:

“Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la. O verdadeiro cético não crê, como o Dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os óculos, nem, como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes; o cético verdadeiro descrê de uns e de outros. Que economia de vidros e de defluxos, se eu pudesse ter esta opinião!” 9

O definitivo adeus trazia um elogio, um pouco torto, ao leitor. Dava a entender

ainda certo apego ao trabalho que desempenhava:

“Adeus, leitor. Força é deitar aqui o ponto final. A mim, se não fora a conveniência de ir para a rede, custar-me-ia muito pingar o dito ponto, pelas saudades que levo de ti. Não há nada como falar a uma pessoa que não interrompe. Diz-se-lhe tudo o que se quer, o que vale e o que não vale, repetem-se-lhe as coisas e os modos, as frases e as ideias, contradizem-se-lhe as opiniões, e a pessoa que lê, não interrompe. Pode lançar a folha para o lado ou acabar dormindo. Quem escreve não vê o gesto nem o sono, segue caminho e acaba. Verdade é que, neste momento, adivinho uma reflexão tua. Estás a pensar que o melhor modo de sair de uma obrigação destas não difere do de deixar um baile, que é descer ao vestiário, enfiar o sobretudo e sumir-se no carro ou na escuridão. Isto de empregar tanto discurso faz crer que se presumem saudades nos outros, além de ser fora da etiqueta. Tens razão, leitor; e, se fosse tempo de rasgar esta papelada e escrever diversamente, crê que o faria; mas é tarde, muito tarde. Demais, a frase final da outra semana precisava de ser explicada e cumprida; daí todos estes suspiros e curvaturas. Falei então na confusão da minha alma, e devia dizer em que é que ela consistia e consiste, e cuja era a causa. A causa está dita; é a natural melancolia da separação. Adeus, amigo, até a vista. Ou, se queres um jeito de falar mais nosso, até um dia. Creio que me entendeste, e creio também que me aplaudes, como te anunciei na semana passada. Adeus!” 10

Aos interlocutores das “conversações dominicais” o cronista dedicava seu parágrafo

final. No fim das contas, o enaltecimento dos leitores nada mais era do que a revelação, um

tanto interesseira, de que eles eram bons porque não aporrinhavam o escritor que, por sua

vez, poderia dormir descansado sem saber se alguém se estafara de seus colóquios; antes a

dúvida que a decepção. Decerto, a própria inexistência de réplica permitia que o narrador se

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de fevereiro de 1897”, op. cit. 9

Idem.10

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investisse de autoridade e falasse com intimidade aos diletos e mudos ouvintes. Consentia-

se ainda a tentativa de apostar sobre os possíveis pensamentos alheios e adiantar-se a eles.

A despedida do cronista que há anos ocupava o posto por certo deve ter causado

certo alvoroço. Na quinta-feira seguinte, em sua coluna semanal, era a vez de Ferreira de

Araújo, sob o pseudônimo de Lulu Sênior, prestar esclarecimentos, ao passo que tentava

minimizar o possível incêndio que as declarações de domingo pudessem ter iniciado:

“E, para fechar, tenho uma coisa abracadabrante. Parece esquisito que seja preciso explicar o que Machado de Assis escreve; no entanto, houve quem lesse em seu artigo de domingo último que o mestre da escrita em nossa letra deixava esta folha. As palavras de pesar com que o fato era comentado revelaram uma certa satisfação que muito nos lisonjeia; mas eu é que não posso deixar de quebrar-lhe a castanha na boca. Machado de Assis está adoentado, fatigado; com dois ou três meses de repouso fora desta cidade em que se trabalha sem cessar trezentos e sessenta dias no ano, estará restabelecido e virá de novo ocupar o lugar em que ninguém o pode substituir.” 11

Araújo, em sua “abracadabrante” explicação sobre o escrito de Machado de Assis,

reforçava a ideia de que o escritor voltaria a ocupar o posto. Poderia se tratar de uma real

expectativa da volta de Machado a sua colocação, uma vez que afirmava que ele não

poderia ser substituído em sua colocação, ou ainda uma estratégia para acalmar os leitores

que estavam desgostosos com a saída do literato. O redator-chefe da Gazeta parecia

também preocupado em transmitir a ideia de que o mestre da escrita não deixava o time de

colaboradores da folha.

Sabemos pela correspondência deixada por Machado que, pelo menos no que dizia a

respeito ao seu cansaço, havia verdade nas declarações de Lulu Sênior. Em carta a

Magalhães de Azeredo, datada de 25 de abril de 1897, o autor afirma que “Ultimamente

tenho estado assaz fatigado, tanto que deixei por uns três meses a minha “Semana” na

Gazeta de Notícias. Era meu plano passar algumas semanas fora daqui; mas sucedeu a

espera de uma notícia de família triste e fatal; isto me demorou, e afinal não saio” . Em 21 12

LULU SÊNIOR. “Às Quintas”. ”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 04 mar. 1897, p.1.11

ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. Coordenação e 12

orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011, p.227.

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de julho de 1897, noutra correspondência, ao mesmo destinatário, confessa: “Há de ter visto

que suspendi, há tempos, as semanas da Gazeta; penso voltar a elas, mas ainda não escolhi

dia. Além do mais, andei adoentado, e não me posso dizer inteiramente restabelecido.” 13

Contrariando, pois, uma suposta lógica, começo pelo fim de “A Semana”. O

artifício é justificado pelo texto sobre o qual acabo de esboçar análise: ninguém melhor que

a voz, dona das colunas dominicais da Gazeta durante boa parte da década de 1890, para

fazer o balanço do que foi a série. Nada como um apanhado de cinco anos de crônicas

semanais, feitas por meio de seu narrador ficcional, para dar ideia do que elas

representavam para o autor. O acréscimo das declarações do redator-chefe e fundador do

veículo que as publicava, testemunho de época sobre a popularidade e importância daqueles

escritos, enfatiza o valor que o trabalho ocupa dentro da produção cronística machadiana.

Deparando-me com uma gama de 248 crônicas, um recorte temático se fez

necessário. A frequência com que a criminalização e repressão de práticas populares na

época eram abordadas em “A Semana” se faz notória. Optei então por analisar nesta

dissertação os textos que tratavam mais diretamente do assunto, juntamente com a leitura

de seu veículo original, a Gazeta de Notícias, na íntegra, além da consulta esporádica de

outros periódicos da década de 1890. Assim foi possível perceber que a narrativa criada

pelo cronista, repetidas vezes, contrariava as outras narrativas que apareciam no jornal. A

refutação da suposta lógica que aparecia nos outros escritos da imprensa não era fortuita e

isso ficará mais claro nos capítulos que se seguem.

Ressalto ainda a relevância de tomar como objeto de estudo a série como um todo, o

que permite acompanhar o delinear de um caráter particular e notório que Machado deu a

“A Semana”. Isto possibilita, entre outras coisas, que se analise o conjunto desses textos e

seu lugar dentro da obra cronística do autor, permitindo que ela adquira novas

interpretações. Como salientou Ana Flávia Cernic Ramos, em seu trabalho sobre a série

coletiva “Balas de Estalo”:

Idem, p. 256. 13

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“A subjetividade do narrador, o estatuto ficcional, a relação com o jornal foram sendo reinventadas a cada nova série do literato. Portanto, o significado desses textos no conjunto da obra do autor parece só poder ser apreendido se forem consideradas as particularidades de cada uma das séries que ele produziu, com seus narradores, temas e projetos literários específicos.” 14

Impressos sob a urgência do jornal sim, irrelevantes, não. A crônica, embora

considerada pela crítica como menor entre os demais gêneros literários, obteve grande

destaque durante o século XIX. Antonio Candido afirma que: “Por meio dos assuntos, da

composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela

se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que

fala de perto ao nosso modo de ser mais natural.” Os textos, marcados pelo tom ameno 15

com que eram escritos, tratavam dos assuntos que lhes eram coevos com o intuito de

divertir, mais do que o de informar, e o humor destes textos está justamente em sua

exatidão histórica.

Ainda que curtas e em tom ligeiro, as crônicas eram o espaço no qual os autores

utilizavam a realidade como matéria-prima, ao passo que nela intervinham por meio de suas

opiniões, influenciando desta forma os leitores. Em contrapartida, o público leitor também

exercia influência sobre os cronistas, que tinham a função de agradá-lo, mudando as

estratégias narrativas sempre que necessário, o que caracteriza esse gênero como dialógico

por excelência . O fato de a escrita ter de se adaptar ao cotidiano e às preferências do 16

público fazia da indeterminação algo premente na construção dos textos, o que pode ser

percebido pelas mudanças de procedimento no interior de uma série.

RAMOS, Ana Flávia Cernic. As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado 14

de Assis. Tese de Doutorado em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2010. p.23.

CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”, In: _________ et. al. A Crônica: o gênero, sua fixação e 15

suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p.13.

CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda. 16

“Apresentação”, in:______ (orgs). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005 p.15.

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Deve ressaltar-se ainda que a literatura brasileira no século XIX acontecia na

imprensa, seja por causa da publicação das obras primeiramente em jornal, seja pelos

debates literários que se travavam nas páginas dos periódicos. Tendo isso em vista, acentua-

se de maneira contundente a necessidade de destrinchar a intrínseca ligação entre a

literatura e a imprensa no Brasil oitocentista, ligação essa que faz da análise do veículo

original no qual as obras foram publicadas algo essencial para a compreensão, sobretudo

em se tratando do gênero cronístico, que, como afirma Antonio Candido, embora não tenha

nascido junto com o jornal, foi por meio deste que se difundiu e se popularizou . Além 17

disso, o fato das crônicas serem destinadas à efemeridade das folhas periódicas, não

significa que fossem descartáveis . 18

Com o intuito de proporcionar maior leveza aos periódicos, a crônica acompanhou a

expansão do número de leitores desse tipo de publicação, contribuindo em alguma medida

para que isso acontecesse. Apesar da alta taxa de analfabetismo, os textos chegavam a

parcelas significativas da população, em virtude do hábito da leitura em voz alta e da rápida

propagação oral do que era publicado . O gênero consolida-se ligado de forma inerente aos 19

jornais.

No primeiro capítulo discuto o espaço dado à literatura pelo periódico Gazeta de

Notícias. Abordo também o status de Machado de Assis enquanto cronista e, sobretudo, a

deferência com que era tratado o Mestre das letras brasileiras. Discuto ainda a presença e as

características de um narrador ficcional na série, bem como o estatuto literário empregado

para a elaboração da crônica semanal da Gazeta de Notícias. Procuro traçar ainda as

particularidades que distinguiam a coluna dominical daquele periódico após Machado

assumi-la e que se repetiriam por toda “A Semana”.

CANDIDO, op. cit. p.15.17

De acordo com Lúcia Granja, a primeira dificuldade de análise do gênero cronístico é acreditar em sua 18

importância: “O próprio Machado de Assis não achava que deveria editar todas as suas crônicas. Não desejava faze-lo nem mesmo em relação a A Semana, [...]” GRANJA, op. cit. p.19.

CHALHOUB, NEVES, PEREIRA. op. cit. p.16.19

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O segundo capítulo traz o que cercava majoritariamente o escrito machadiano na

Gazeta de Notícias e, especialmente, o uso que o literato fazia desse material. Trato

também das aparições de outra figura ficcional de “A Semana” que permitiam outras

leituras dos fatos mencionados nas crônicas. São analisadas ainda as outras funções que o

escritor assume dentro daquele periódico, bem como as dificuldades que enfrenta durante a

empreitada.

No terceiro capítulo analiso a presença de critérios técnico-científicos nas páginas

dos jornais do período e nas posturas de autoridades médicas e policiais. Busco, sobretudo,

o olhar crítico do literato sobre a situação. O saneamento permeia e subsidia a ação da

polícia, servindo ainda de justificativa para medidas arbitrárias que tinham como principal

alvo as classes populares. A interferência desse discurso nos textos jornalísticos e o modo

como Machado a via a situação são parte dessa análise.

No quarto capítulo há três casos que chamaram a especial atenção da imprensa e

ganharam particular destaque em “A Semana”. Todos giram em torno de relações amorosas

que se tornam “casos de sangue”. O principal interesse reside na maneira como o cronista

avalia a atuação da polícia e a exploração dos acontecimentos pelos jornais da época.

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CAPÍTULO I

A Gazeta, “A Semana” e o semanista.

No dia 24 de abril de 1892, Machado de Assis estreava “A Semana” na Gazeta de

Notícias. Seria a quinta e derradeira série de crônicas escritas para este periódico, com o

qual vinha colaborando regularmente desde a década de 1880. A coluna começada nessa

data se configuraria ainda na mais longa das séries machadianas e encerraria o seu trabalho

enquanto cronista regular na imprensa. Ao todo foram 248 textos , publicados 1

semanalmente na Gazeta ao longo de cinco anos, quase ininterruptamente, na primeira

página do exemplar de domingo, logo, em lugar de honra e destaque.

A colaboração de Machado de Assis para a Gazeta de Notícias data de 1881, com a

publicação do conto “Teoria do Medalhão”. No ano seguinte o literato passaria a compor o

time de folhetinistas do jornal, tendo seus textos publicados no prestigioso espaço do

exemplar de domingo . A parceria com o periódico foi fecunda e duradoura, estendendo-se 2

quase ininterruptamente até meados de 1897. Além de outros artigos, homenagens e

poesias, os 56 contos e 475 crônicas atestam o sucesso da empreitada . 3

Acerca das séries de crônicas machadianas, Ana Flávia Cernic Ramos destaca que “Comentários da 1

Semana” teve 18 crônicas, “Ao acaso”, 43; “História de 15 dias”, 40; “Balas de Estalo”, 125; “Gazeta de Holanda” e “Bons Dias!”, com 49 crônicas cada uma. (Cf. RAMOS, Ana Flávia Cernic. As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado de Assis. Tese de Doutorado em História. Campinas, SP: Unicamp, [s.n.], 2010. p. 57.) “A Semana” abrangeu, portanto, quase metade de toda a produção cronística machadiana. Sobre a publicação desses contos, ver: SILVEIRA. Fábrica de Contos: ciência e literatura em Machado de 2

Assis. op. cit. A Gazeta tentava desde 1876, o ano seguinte ao lançamento do diário, angariar a colaboração do escritor. De 3

acordo com Raimundo Magalhães Júnior, logo depois da publicação do romance Helena, Machado é convidado para ser folhetinista da folha, mas recusara alegando doença. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008 [1981], vol. 2, p.265-6. O autor afirma que a Gazeta de Notícias teria que esperar pelo fim do Jornal das Famílias e da Ilustração Brasileira para então conquistar a pena de Machado de Assis. Cf. também: SILVEIRA, op. cit. p.78s. Ana Flávia Ramos destaca que já em 1877, o autor havia subscrito algumas poesias para a Gazeta, homenageando José de Alencar e Camões, mas sem figurar na relação de colaboradores efetivos do jornal. Cf. RAMOS, Ana Flávia Cernic. As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado de Assis. Tese de Doutorado em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2010. p. 39.

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Em “A Semana” há muitas referências ao gênero cronístico e também ao ofício do

cronista. Machado de Assis procurou discutir, de maneira sutil e bem-humorada, a

elaboração pela qual passavam os textos, além de brincar com a suposta pequenez daqueles

escritos perante outros modelos literários, ou mesmo frente a uma pomposa História, com

ares de ciência.

Seu jogo com o leitor, ele próprio interlocutor e alvo dos textos, se dava pela

conformação de seu narrador-ficcional, importante para criar a distância entre o autor e os

comentários presentes nas crônicas. A repetição de características, cacoetes, temas e

abordagens fazem a unidade e também a singularidade de “A Semana”. A comparação com

outras crônicas, publicadas no mesmo periódico, corrobora esta hipótese, ao passo que

denota o empenho aplicado na composição desses escritos machadianos.

1. Gazeta: de Notícias e de Literatura

A Gazeta de Notícias exercia papel proeminente no Rio de Janeiro dos anos 1890 e

estava entre os grandes periódicos do país. Fundada em 1875 pelos editores Ferreira de

Araújo, Manuel Carneiro e Elísio Mendes, desde o início lançou os moldes da imagem que

procurava consolidar dentro da imprensa brasileira: um jornal menos sisudo, que alegava

primar pela imparcialidade e pelo destemor. Em seu primeiro número, ou mesmo antes em

seu prospecto, a folha batia insistentemente nessas teclas. Tendo em mente que, na tentativa

de angariar leitores, um novo empreendimento jornalístico deveria conter a ideia de

diferenciação e inovação, isso aparenta ser natural.

Para se ter uma ideia mais clara da estratégia utilizada, vamos a alguns trechos da

apresentação da folha. Já em seu prospecto trazia, ao rodapé da página, o “Folhetim”,

assinado por Bob. O autor refutava a ideia de um programa em um lançamento de jornal,

pois este tipo de manifesto na imprensa se assemelharia aos de política: não eram

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cumpridos, servindo apenas para “cinzar os olhos do próximo” . Bob deixava ainda 4

subentendida a ideia de que a maioria dos órgãos de imprensa não prestava nenhum serviço

ao público, tratando em geral de temas que não iam ao encontro dos anseios dos leitores.

Terminava contando uma anedota sobre um rei, que preferia não identificar com clareza,

que prometera a seu povo uma Constituição, mas, sem ter determinado uma data, sempre a

postergava, enquanto os súditos se desiludiam. Assim também eram os programas, logo: “O

melhor programa de um jornal que quer agradar ao público é – agradar-lhe – sem

programa.” 5

No primeiro exemplar da Gazeta, de 2 de agosto de 1875, era a vez do rodapé da

primeira página ser ocupado pelo “Folhetim da Gazeta de Notícias”, assinado por Lulu

Sênior. Sob este pseudônimo, que, aliás, o acompanharia por toda sua trajetória no

BOB, “Folhetim”, in: “Prospecto”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, sem data. Na Hemeroteca Digital 4

Brasileira, da Biblioteca Nacional, o prospecto está condensado à primeira edição do periódico, datada de 02 de agosto de 1875. Claudia Asperti afirma que as duas publicações teriam sido postas nas ruas no mesmo dia. Cf. ASPERTI, Clara Miguel. “A vida carioca nos jornais: Gazeta de Notícias e a defesa da crônica”, in: Contemporânea, n.7, 2006 – 2, p. 47-8. Tendo em vista que a publicação tinha a intenção de despertar a curiosidade dos leitores e mesmo de anunciar vagas de trabalho para entregadores, não faria muito sentido que saísse ao mesmo tempo que o primeiro exemplar. Cogitações à parte, não é possível precisar com quanta antecedência ele circulou. Leticia Matheus chega a questionar se de fato ele teria sido dado a público. Cf. MATHEUS, Leticia Cantarela. “Questões sobre o marco histórico do telégrafo no jornalismo do século XIX (1870-1900)”, Curitiba: Revista Brasileira de História da Mídia, vol.1, n.1, out/2011 - mar/2012, p.41-51. BOB, “Folhetim”, op. cit. No corpo do prospecto, o novo jornal dizia que, para facilitar a subscrição, as 5

assinaturas seriam feitas a qualquer tempo, à vontade do assinante, ao preço de 1$000 mensais. Além das assinaturas, prática comum na imprensa do período, a folha inovava ao ser distribuída por toda cidade, sendo vendidos exemplares avulsos nos principais quiosques, estações de bondes, barcas e em todas as estações da Estrada de Ferro de D. Pedro II, ao preço de 40 rs., de acordo com a própria Gazeta. Na mesma página, um dos anúncios buscava por “bons entregadores” para dar conta da distribuição do periódico. Ao que parece, a folha começou a distribuição com um pessoal que não era assim tão bom, visto que, em seu terceiro número, prevenia seu público de que alguns vendedores comercializavam o exemplar a mais de 40 rs. Dizia que isto era um abuso que não deveria ser aceito e que, de sua parte, tinha tomado as devidas providências. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n.3, 04 ago. 1875, p.1. Sobre a inovação implementada pela Gazeta de Notícias na distribuição ver: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: Literatura e Folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. 2ª edição revista.

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periódico, Ferreira de Araújo começava por afirmar que um jornal surge com a idade do 6

espírito de seus redatores e que, assim sendo, a recém-nascida teria vinte e tantos anos,

tendo ainda no coração amor para falar às moças, sabendo fazer rir os rapazes, porém, sem

deixar de ter juízo como os velhos, ainda que muito a seu modo. Acrescentava que pela

folha não respondia um indivíduo, mas antes um corpo coletivo, no qual a somatória dos

sentimentos, da alegria e do juízo de todos havia de dar uma coisa digna de se ver. Por fim,

numa espécie de profissão de fé na juventude e no que pensava ser o ideal dos homens de

imprensa, o autor dizia:

“A Gazeta de Notícias apresenta-se assim. Não é isto um programa, é um retrato. Não diz o folhetim o que pretendemos fazer, diz o que somos.

De onde viemos? Da mocidade! Quem somos? A mocidade! O que queremos? Viver, mas viver moços, rindo, amando, crendo no que é bom e justo, respeitando o que merece respeito, desprezando o que deve ser desprezado, erguendo altares a quem for digno deles, abatendo as estátuas dos falsos ídolos, tendo em uma mão o incenso para o talento e a virtude, na outra um chicote para os vendilhões do templo.

Não temos com isto a pretensão, nem de encorajar os inteligentes e virtuosos, porque não precisam disso, nem de corrigir os maus, porque não somos a palmatória do mundo. A nossa pretensão é simples: dizer o que pensamos e sentimos, ser o que somos.” 7

Enfatizava então o compromisso com leveza e até com certa comicidade, sem deixar

de lado a responsabilidade para com a justiça e a virtude. Em seu “retrato”, pretendia

denotar um ar de singularidade, de identidade própria, que deveria permear suas páginas.

Ao declarar-se tão enfaticamente como pertencente à mocidade, a Gazeta trazia consigo a

ideia de jovialidade como um diferencial no panorama da imprensa brasileira da época.

Criava então a máscara que o jornal carregaria ao longo dos anos. Era uma máscara tão

É interessante notar que outros órgãos de imprensa se referiam a Ferreira de Araújo como Lulu Sênior. Por 6

exemplo, A Cigarra (semanário de Manoel Ribeiro, redigido por Olavo Bilac e ilustrado por Julião Machado), em 1895, exatos vinte anos após o lançamento da Gazeta, inaugura a coluna “Cigarras e Formigas” com a publicação de uma charge de Lulu Sênior. Na caricatura, ele aparece escrevendo uma crônica e há referências a “Às Quintas”, que Ferreira então publicava semanalmente na Gazeta de Notícias, e à sua colaboração no periódico A Notícia. Cf. “Cigarras e Formigas”, A Cigarra, Rio de Janeiro, 6 jun. 1895, n.5, p.1. Cf. também: RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e Humor nos últimos anos da Monarquia: a série “Balas de Estalo” (1883-1884). Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2005. Especificamente sobre Ferreira de Araújo, ver também: MINÉ, Elza. “Ferreira de Araújo, ponte entre Brasil e Portugal”, in: Via Atlântica, n.8, dezembro de 2005, p.220-9. LULU SENIOR (Ferreira de Araújo), “Folhetim da Gazeta de Notícias”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 7

n.1, 02 ago. 1875, p.1.

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proeminente que arriscaria dizer que o periódico acaba por encarnar um personagem dentro

do jornalismo oitocentista, marcando o modo como se dirige aos leitores, elegendo seus

rivais e enfatizando esse seu discurso de distinção e isenção sempre que possível.

Uma das peças articuladas para essa caracterização era o espaço dado à literatura. A

valorização dos textos literários era parte integrante dessa tentativa de imprimir a marca de

novo no panorama da época, que parece ter sido efetiva. Nelson Werneck Sodré afirma que

o aparecimento da Gazeta de Notícias foi um acontecimento jornalístico, representada pela

figura de Ferreira de Araújo, reformando a imprensa de seu tempo e dando grande espaço à

literatura. Logo em seu primeiro dia de existência, a folha trazia, além do escrito de Lulu 8

Sênior, um romance-folhetim: o de estreia era Ourson, o Cabeça de Ferro, tradução da obra

de Gustave Aimard . Os folhetins diários acompanhariam o jornal, pelo menos, até fins do 9

século XIX. Contudo, a Gazeta não dava lugar somente a esse tipo de publicação, de

autores nacionais e estrangeiros, mas também às crônicas escritas por grandes literatos.

Tratando da ligação da Gazeta de Notícias com os homens de letras no fim do século

XIX, Claudia Miguel Asperti afirma que a folha era a grande divulgadora e financiadora

das letras, tornando-se, a partir da primeira década do século XX, um meio de

sobrevivência seguro para os literatos colaboradores. Tal reputação pode ser questionada,

uma vez que, como afirmei antes, o periódico criava e vendia a todo tempo um discurso,

uma personificação, da qual o suposto enaltecimento da literatura era um dos principais

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 4ª edição, 8

atualizada. p. 224. “Folhetim”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n.1, 02 ago. 1875, p.2.9

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artifícios . Além disso, como a própria Asperti assevera, a abertura aos literatos, que teria 10

sido orquestrada por Araújo, poderia ser considerada uma troca de favores, uma vez que, ao

dar espaço aos escritores, colaborava para sua consagração e sobrevivência e, em

contrapartida, dava a tônica do diferencial da Gazeta, como o jornal que prezava pela

literatura. Os textos literários enobreciam o jornal, dando-lhe ar elevado e matéria

interessante para a elite burguesa: “Sendo assim, escolhia de modo criterioso aquele que

teria o supremo privilégio de participar do grande jornal do momento. Não era aceito nas

páginas da Gazeta nenhum estreante ou mesmo já tarimbado escritor que não tivesse

excelente fama e currículo invejável.” Não podemos dissociar, portanto, as estratégias da 11

folha da preocupação com o mercado editorial da época: o discurso e subterfúgios existiam

justamente para atrair leitores.

O que é inegável é que a Gazeta era um jornal barato, com um novo método de

comercialização e distribuição, que, se não revolucionava a imprensa brasileira, ao menos

abria novos horizontes e sacudia o mercado editorial da época . A ideia da transformação 12

Como afirmou Ana Flávia Ramos: “ainda é preciso saber qual foi, de fato, a contribuição da Gazeta de 10

Notícias nessa transformação do jornalismo e em que medida a bibliografia não foi totalmente influenciada pelos discursos daqueles que participaram ativamente da confecção daquele jornal. Ferreira de Araújo incentivou realmente a participação de muitos literatos em seu jornal, traduziu e publicou famosos romances na Gazeta, mas, descobrir até que ponto isso já não vinha sendo feito por outros jornais anteriores à Gazeta é um trabalho que ainda deve ser realizado.” RAMOS, Política e Humor nos últimos anos da Monarquia…, op. cit. p.6. A alentada ligação entre o periódico e a literatura, em teoria, fazia-se presente desde o seu lançamento. Já em seu prospecto, a Gazeta de Notícias apresentava-se aos leitores, dizendo: “Além de um folhetim-romance, a Gazeta de Notícias todos os dias dará um folhetim de atualidade./Artes, literatura, teatros, modas, acontecimentos notáveis, de tudo a Gazeta de Notícias se propõe a trazer ao corrente os seus leitores.” Cf. “Prospecto”, op. cit.

Asperti advoga que a interdependência entre as letras e o imprensa era imposta por razões econômicas, uma 11

vez que o trabalho jornalístico dos literatos representava sua fonte de renda fundamental. A autora ainda afirma que isso decorria do fato dos livros não alcançarem o grande público e que “vida de escritor sustentado apenas pelos seus livros ainda era uma utopia num Brasil de analfabetos”. ASPERTI, Clara Miguel. “A vida carioca nos jornais: Gazeta de Notícias e a defesa da crônica”, in: Contemporânea, n.7, 2006 – 2, p. 47-8.

O sucesso da estratégia pode ser comprovado ainda pela análise do crescimento quantitativo dos 12

exemplares impressos diariamente pela Gazeta, de acordo com números da própria empresa jornalística. Naquele mesmo prospecto, os editores haviam lançado uma espécie de auto-desafio ao comentar que o Diário de Notícias, de Lisboa, fazia uma tiragem de 23 mil exemplares e o parisiense Petit Journal alcançava os 100 mil exemplares. Os editores então perguntavam: “Quantos conseguirá tirar a Gazeta de Notícias?”, “Prospecto”, op. cit. Já no dia 28 de outubro, pouco mais de dois meses após o seu lançamento, a tiragem do periódico era pela primeira vez anunciada no alto de sua página inicial: 12 mil exemplares. Na década seguinte, a tiragem da folha era de 24 mil e nos anos 1890, chegou aos 40 mil exemplares. Esses dados demonstram que a estratégia do periódico para conquistar o público-leitor fora bem-sucedida (Dados retirados das tiragens divulgadas nos cabeçalhos da folha entre os anos de 1875 e 1897.).

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que teria sido empreendida por ela foi tão marcante que duas décadas depois ainda era

lembrada. Quando o jornal completou seus dezoito anos, a crônica da série “A Semana”,

escrita por Machado de Assis, rememorava um comentário que, supostamente, fora ouvido

na festa de aniversário: “a saber, que os dois maiores acontecimentos dos últimos trinta

anos nesta cidade foram a Gazeta e o bonde.” 13

Dois anos depois, mais uma vez por ocasião do aniversário da folha, tratava da

mudança gerada pelo lançamento do periódico:

“Outra festa, não propriamente a primeira em data ou lustre, mas em interesse cá da casa, foi o aniversário da Gazeta de Notícias. Completou os seus vinte anos. Vinte anos é alguma coisa na vida de um jornal qualquer, mas na da Gazeta é uma longa página da história do jornalismo. O Jornal do Commercio lembrou ontem que ela fez uma transformação na imprensa. Em verdade, quando a Gazeta apareceu, a dois vinténs, pequena, feita de notícias, de anedotas, de ditos picantes, apregoada pelas ruas, houve no público o sentimento de alguma coisa nova, adequada ao espírito da cidade. Há vinte anos. As moças desta idade não se lembraram de fazer agora um gracioso mimo à Gazeta, bordando por suas mãos uma bandeira, ou, em seda o número de 2 de agosto de 1875.” 14

A julgar pelos comentários, a tentativa de imprimir uma marca de “coisa nova”, que

seria então utilizada como chamariz para os leitores, parecia ter alcançado seus objetivos. É

claro que, enquanto “prata da casa”, nada menos que um elogio era esperado do cronista

principal da folha. Aliás, o próprio excerto começa dizendo que a festa era lembrada em

interesse da casa. No entanto, é notório que tal enaltecimento se dê nos termos da ideia de

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 06 de agosto de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13

06 ago. 1893, p.1. Por ocasião do aniversário de fundação da Gazeta de Notícias, em 1894, o Correio da Tarde publicou a seguinte nota, reproduzida pelo periódico homenageado: “Completa hoje seu décimo nono aniversário o grande órgão do jornalismo brasileiro, aquele que mais tem pugnado pela literatura pátria, estimulando e trazendo a público muitos nomes de artistas ignorados, muitos talentos desconhecidos./ As suas castas estrangeiras de Paris, Berlim, Londres e Lisboa são das melhores que se publicam na capital, e a sua colaboração, em que, a par de inúmeros escritores brasileiros, conta os nossos queridos Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, é uma das mais cintilantes do jornalismo da República./ Machado de Assis dá-lhe quatro vezes por mês uma crônica preciosa./Do passado heróico da Gazeta, em todas as grandes lutas pela liberdade, desnecessário é falar, porque ele constitui um patrimônio de glória nacional./Cumprimentamos a ilustrada redação da Gazeta de Notícias, na pessoa do nosso ilustrado amigo Dr. Ferreira de Araújo, desejando ao grande jornal vastos anos de brilhantismo e culminância iguais aos de hoje.” “Gazeta de Notícias”, Correio da Tarde, Rio de Janeiro, 02 de agosto de 1894. Transcrito em: “O Anniversario da ‘Gazeta’”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1894, p.1. Falta o original do Correio da Tarde na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 04 de agosto de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14

04 ago. 1895, p.1.

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novidade, desejada e propagada pelo jornal desde o seu lançamento. A estratégia era tornar-

se um órgão de imprensa ligado ao novo e à leveza; vinte anos depois ainda eram essas as

teclas batidas.

Obviamente havia outros pontos da imagem que a Gazeta queria passar ao público

que também podem ser questionados. Em 1875, ao desmerecer os programas de

lançamento, propagava-se uma suposta isenção política por parte do novo jornal. No

período ao qual me atenho nesta dissertação, pelo menos, tal neutralidade é muito

discutível. Textos que elogiavam ou homenageavam políticos eram frequentes, bem como

eram defendidos os amigos e protegidos do periódico. O espaço de algumas colunas,

inclusive, era destinado à publicação de longos discursos de determinados deputados ou

senadores . Digo isso para enfatizar que havia considerável distância entre a máscara 15

construída para angariar leitores e a prática cotidiana da redação.

Não é possível determinar onde acabava o interesse comercial e começava o amor

às letras por parte de Ferreira de Araújo e dos outros responsáveis pela Gazeta . Fosse 16

como fosse, o grupo de literatos que fazia parte de sua redação era escolhido a dedo.

Quando, em 1892, estreia na crônica dominical da Gazeta de Notícias, Machado era

cronista para lá de experiente. Desde a década de 1860, publicava textos do gênero na

imprensa fluminense e já havia trabalhado na própria folha anteriormente. Em se julgando

Durante os anos analisados, o deputado José Carlos de Carvalho ganha imenso destaque na Gazeta de 15

Notícias. Seus discursos, que giravam em torno da defesa da demolição de casebres e a extinção das apostas do jogo dos bichos (muito embora ele mesmo fosse o presidente do Jockey Club, que lucrava com a aposta em corridas de cavalo), ocupavam páginas e páginas do jornal. Mesmo quando, em 1896, ele é acusado de ser o mentor de uma atentado a bomba ao Pantheon Ceroplastico, que era combatido por ele por vender bilhetes com direito a sorteio de prêmios, ou quando, ainda naquele ano, se envolve em uma briga com o deputado Medeiros e Albuquerque (que envolveu tapas na Câmara e retaliação a tiros), o jornal não abandona sua defesa. Com base nesses dados, não se pode afirmar se tratava-se de um caso de amizade/afinidade ou se as colunas eram pagas por Carvalho. Ver, por exemplo: “À Dynamite? Mortes e ferimentos”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 jul. 1896, p.2. e “O Caso da Câmara”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 ago. 1896, p.1.

Ramos destaca a amizade entre Ferreira de Araújo e Machado de Assis. Lembra ainda que quando o 16

primeiro morreu, em 1900, nosso escritor escreveu lamentando a perda do amigo, lembrando seu bom humor e suas polêmicas. Cf. RAMOS, As máscaras de Lélio, op. cit. p. 40. O escrito a que a autora se refere é uma carta endereçada a Henrique Chaves, datada de 21 de setembro de 1900. Cf. ASSIS, Machado de. “Carta a Henrique Chaves (Ferreira de Araújo)”, in: ____________. Obra Completa em quatro volumes, op. cit., V.III, p. 1327-1329.

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acertada a hipótese de que somente a nata dos escritores tinha seus textos publicados na

folha, o periódico comandado por Araújo não poderia desejar alguém mais famoso e com

carreira literária mais sólida que a daquele escritor. Se a afirmação da valorização da

literatura pela Gazeta pode ser questionada, ou, no mínimo, problematizada, a

proeminência de Machado entre os literatos no período parece indiscutível. Ele era tratado

com deferência entre os homens de letras e, nas palavras de muitos deles, considerado um

Mestre.

2. Mestre entre os Homens de Letras

Em 1893, o segundo número da revista semanal O Álbum¸ que estreara naquele

mesmo ano, sob a direção de Arthur Azevedo, tinha como matéria de abertura um perfil do

escritor Machado de Assis, acompanhado pelo seu retrato. Azevedo, que era também quem

assinava o artigo, começava por transcrever um texto de Arthur Barreiros sobre a

personalidade do homenageado:

“É um Mestre; não o procura ser, não se impõe, não arma às aclamações, não disputa proeminências; e todavia é um Mestre pelos honrados exemplos da sua vida, pelas primorosas concepções da sua pena. O artista nele é um prolongamento do homem; no livro e fora do livro, os limpos de coração sentirão a luz e o calor do astro, respirarão certa grandeza sincera, um não sei que de imaculado e magnânimo, que é como o ar ambiente dos espíritos verdadeiramente superiores.” 17

BARREIROS, Arthur. Apud: AZEVEDO, Artur. “Machado de Assis”, in: O Álbum, Rio de Janeiro, n.2, 17

janeiro de 1893, p.11. Arthur Barreiros, escritor natural do Rio de Janeiro, nascido em 1856. Colaborou para diversos periódicos como O Bezouro e a Revista do Rio de Janeiro. Cf. SACRAMENTO BLAKE, Augusto Vitorino Alves. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Cultura, 1970, Vol. 1, p. 341-2. Barreiros faleceu em 1885 e foi então o próprio Machado de Assis lhe prestou homenagem: Cf. ASSIS, Machado de. “Arthur Barreiros”, A Semana, Rio de Janeiro, nº 8, 21 fev. 1885.

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De acordo com a publicação, o artigo de Barreiros seria de 1885 . Com certa 18

idolatria, o escritor ressalta a condição de Machado de Assis entre os homens de letras no

Brasil, visto como escritor consagrado e, mais que isso, como o Mestre da literatura

nacional . Após a reprodução do texto, Azevedo acrescentava ainda dados biográficos do 19

retratado e finalizava dizendo que: “[...] Atualmente escreve Machado de Assis, todos os

domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana, que noutro país mais

literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística.” 20

A série de crônicas “A Semana” estreara no dia 24 de abril de 1892. O texto

inaugural tratava dos festejos em honra a Tiradentes, ocorridos dias antes. Como já

alentado, a parceria de Machado de Assis com a Gazeta de Notícias começara na década de

1880 e perduraria por mais de quinze anos. O escritor já havia trabalhado em vários

periódicos fluminenses como cronista, contista e folhetinista. Muito embora o lançamento

da série tenha se dado sem nenhum alarde, outros órgãos de imprensa comentavam “A

Semana” e a associavam ao nome de Machado.

Não era apenas a nova série que recebia elogios na imprensa na década de 1890. Os

outros trabalhos de Machado, por pequenos e ocasionais que fossem, também ganhavam

destaque. Em maio de 1894, um reclame da revista A Semana trazia “a boa nova de que

Machado de Assis tomou um lugar no bonde e lugar conspícuo a que tem direito como

reconhecido mestre de seus companheiros de viagem literária.” O conto “A Missa do 21

Galo” iniciava a colaboração para o periódico, que já contava com a participação de

Não pude identificar com certeza o veículo original em que o artigo de Barreiros foi publicado. Azevedo 18

afirma apenas que se tratava de um periódico efêmero, do ano de 1885, e que o escrito se mantinha “quase inédito”, merecendo a transcrição. O número n.3 de Penna & Lapis traz os erros de um artigo de Barreiros, tratando de Machado, que teria sido publicado na edição anterior, mas que não consta no acervo digital da Biblioteca Nacional.

Magalhães Júnior afirma que desde o desaparecimento de José de Alencar e de Joaquim Manuel de 19

Macedo, Machado ocupava o mais alto posto das letras brasileiras. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol. 3, p.30.

AZEVEDO, Artur. “Machado de Assis”, in: O Álbum, op. cit., p.11. Em 1892, Aluísio de Azevedo levantou 20

um brinde em homenagem ao “chefe das letras e das Artes – Machado de Assis”. “Banquete”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 jul. 1892, p.1.

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 mai. 1894, p.2.21

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literatos como Araripe Junior, Coelho Neto e Garcia Redondo . Em mais um periódico que 22

tinha a literatura como um dos carros-chefe, Machado era o nome a ser enfatizado.

Tendo em vista essa ideia de bonde literário, é possível falar de um grupo fechado

na redação do periódico, uma patota literária que se permitia intimidade e referências aos

membros que a compunham. No período compreendido nesta pesquisa, outros componentes

do bonde passeavam pelas páginas do periódico: Olavo Bilac, Coelho Neto, além das

colaborações esporádicas de autores estrangeiros como Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão,

todos escritores de destaque no período. É fácil imaginar que internamente Lulu Sênior

estaria no comando, tanto pela personalidade do redator-chefe quanto pela primazia que

advinha de sua posição dentro do jornal. A Machado de Assis cabia o respeito dos colegas,

que o tratavam com admiração e especial deferência, ainda que não o isentassem da troca

de gracejos . 23

Em maio de 1894, Fantásio, pseudônimo de Olavo Bilac, em crônica intitulada

“Jesus Incendiário”, aproveitava o gancho de uma notícia sobre uma fogueira de livros feita

por jesuítas para fazer galhofa com autores brasileiros. Na lista estavam os deveriam temer

a inquisição: Lulu Sênior, Aluísio de Azevedo, Coelho Neto, Raymundo Correa e “Tu

mestre Machado de Assis, pagarás na fogueira, cercado de um grande clarão, o pessimismo

cruel e amargo com que temperastes o teu Brás Cubas imortal!” A alcunha de mestre 24

surgia também no texto de Bilac, aparentando ser um consenso entre os literatos da época,

ou, ao menos, entre os que publicavam na imprensa. Denote-se ainda que o cronista citava

outros colunistas e colaboradores da Gazeta, fortalecendo a ideia de patota. Lembremos

O conto é descrito pelo reclame da Gazeta como “lindíssimo” trazendo representada “uma cena de vida 22

íntima com aquela singeleza e pureza de estilo que lhe são peculiares”. Acrescentava que aquela edição do “interessante hebdomadário” trazia ainda trabalhos de Urbano Duarte, Araripe Júnior, Coelho Neto, José do Egito, Garcia Redondo e outros. Idem. Vê-se que o jornal fazia a propaganda dos trabalhos de seu colaborador, o que pode ser tomado também como uma dupla propaganda: para a Revista Brazileira e para a própria Gazeta interessava exaltar o nome de um dos principais, se não o principal, colaborador.

Seria arriscado esboçar qualquer tipo de comparação, mas é impossível ignorar as brincadeiras dentro da 23

série coletiva “Balas de Estalo”, quando se analisam os comentários do time de cronistas da Gazeta. Para uma análise pormenorizada dessa série, ver: RAMOS, Política e Humor nos últimos anos da Monarquia…, op. cit.

FANTÁSIO (Olavo Bilac), “Jesus Incendiário”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 31 mai. 1894, p.1. 24

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ainda que no final daquela década seria fundada a Academia Brasileira de Letras, sob a

presidência de Machado. Como aponta Magalhães Júnior, tentativas anteriores de criar uma

associação de literatos haviam sido frustradas , das quais uma tinha, inclusive, nosso 25

literato como presidente . Logo, podemos cogitar que nos anos 1890 talvez o grupo 26

estivesse mais unido e, por conseguinte, mais fortalecido.

No mesmo período, Machado de Assis ganharia honrarias em, pelo menos, mais um

periódico, para o qual contribuiria com seus escritos algumas vezes. A Revista Brazileira

estreou em janeiro de 1895, sob o comando de José Veríssimo . Na primeira edição, várias 27

páginas eram dedicadas ao perfil biográfico de Machado, feito por Araripe Júnior. Este

principiava dizendo:

“Tipo acabado do homem de letras, beneditino da arte, Machado de Assis constitui no Brasil um dos raros exemplos de poeta e romancista, que, resistindo ao meio e vencendo as hostilidades do próprio temperamento, fiel à vocação, conseguiu completar a sua carreira. Filho das próprias obras, ele não deve o que é nem o nome que tem, senão ao trabalho e a uma contínua preocupação de cultura literária. [...] o autor do Quincas Borba, filho de operário, foi destinado em princípio ao comércio, onde apenas permaneceu três dias como caixeiro de uma loja de papel. Dedicando-se logo depois à arte tipográfica, parece que aí as suas aptidões naturais se desenvolveram rapidamente, já pelo contato com a imprensa, esse poderoso instrumento de irradiação literária, já pela aproximação dos jornalistas que naquela época brilhavam no mundo político ou ensaiavam na prosa e na poesia.” 28

Valorizava a persistência do autor, que resistia ao meio e ao próprio temperamento,

embora não explique que vicissitudes seriam essas, para se tornar o exemplo de homem de

Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. “À Sombra das Arcádias”, in: ______________. Vida e Obra de 25

Machado de Assis. op. cit. vol. 1, p.181-195. Tratava-se do efêmero Grêmio de Letras e Artes, fundado em 1887. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR,. op. cit. 26

vol. 3, p.134ss. A Gazeta prestava homenagem ao estreante: “Fiel à sua promessa, aparece-nos no dia 1 de janeiro, como 27

um prenúncio feliz, o primeiro número da Revista, que em boa hora o ilustrado Sr. José Veríssimo tomou a peito publicar.” Acrescentava que o fascículo de estreia correspondia às expectativas, dando matéria variada “de penas hábeis e estimadas”. Transcrevia o sumário da edição e elogiava o trabalho de edição feito com “esmero artístico” pela casa Laemmert. “A Revista Brazileira deverá ter vida muito mais longa do que as suas antecessoras; assim lhe não faltem o concurso dos escritores e o favor do público; – ela merece-o.” O periódico “simboliza para os homens de letras deste país o mais precioso mimo de boas festas, que poderia ser-lhes oferecido, e o tempo se encarregará de dar-nos razão.” “Revista Brazileira”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 01 jan. 1895, p.2. Magalhães Júnior considera as reuniões da Revista Brazileira a antessala da Academia Brasileira de Letras. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. vol. 3, p.301.

ARARIPE JÚNIOR, T. A. “Machado de Assis”, Revista Brazileira, Rio de Janeiro, Primeiro Ano, tomo 1, 28

1895, p.22.

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letras no Brasil. Ligava o sucesso do autor à sua associação com a imprensa e o jornalismo.

Continuava afirmando que devido a “o mais decidido horror à vida política ativa, cortesã

desbragada que às letras brasileiras tem arrebatado os seus mais belos talentos”, seu espírito

teria se volvido inteiramente à arte e ao belo. Em seus livros estaria sua “verdadeira

história, a história das suas lutas pelo ideal”, tendo assistido ao advento de “três revoluções

ou escolas literárias”. Citava ainda características pessoais do homenageado:

“Aos amigos já há muito revelara-se Machado de Assis um causeur arguto e original. Espírito excêntrico, apaixonado dos livros, filósofo sem sistema, mas sempre pronto a estacar com um ponto de admiração nos lábios diante de todas as singularidades que a vida nos apresenta, e com espanto nos olhos diante de todos os tipos originais que a história nos transmitiu, esse causeur inesgotável precisava antes de tudo aparelhar-se do gênero literário mais apropriado a resumir o gênio de divagação e as excentricidades de um autor independente e sem pretensões a diretor de um movimento.” 29

Mais uma vez reforçava a que Machado teria se firmado na literatura do país única e

exclusivamente por seus méritos pessoais. Registrava ainda as singularidades que o

distinguiam dos demais e asseverava que, embora não pretendesse ser líder de coisa

alguma: “[...] pode se dizer que na literatura brasileira não encontra rival, nem escritor que

ao menos procure acompanhá-lo. De fato as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o

Quincas Borba são livros únicos na língua portuguesa.” Para Araripe Júnior, as literaturas 30

neolatinas não comportavam o humour, “esse poderoso órgão de revelação do lado noturno

das coisas humanas” . Após criticar os dislates de Guerra Junqueiro, afirmava que o 31

mesmo não acontecia no Brasil, onde a vivacidade oriunda de “novas condições

mesológicas e étnicas”, naturalmente inclinara o espírito de seus escritores para o arguto,

para o brilhante e para o imprevisto. Machado estava entre os literatos dessa espécie . 32

Dizia ainda que se as “oscilações da estética nacional” não influíram profundamente na

Idem, p.24.29

Ibidem. 30

Destaque em maiúsculas no original.31

Acrescentava ainda que “O seu estilo paradoxal, a disposição grotesca das suas últimas composições, a 32

atitude truncada dos personagens que aí figuram, os discursos e as reflexões antitéticas que se encontram em muitos dos seus capítulos de filosofia excêntrica, enfim a originalidade e os tiques e manias dos seus heróis dão-lhe um lugar especial na história da literatura brasileira, e o que é mais, o direito de considerar-se criador de um gênero, até certo ponto desconhecido no meio em que nos desenvolvemos.” Ibidem, p.26.

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marcha do espírito de Machado, deram-lhe forças para retemperar seu caráter de artista e

enriqueceram-lhe o estilo, porque ele não só não hostilizara os novos, como buscara

compreende-los e estuda-los com simpatia. O fato de evitar “o desapreço do mestre” teria

uma grande vantagem para o romancista: “saturou-o dos progressos deste fim de século, e

ao mesmo tempo manteve a sua individualidade ao abrigo da decomposição, que sempre

acompanha os autores fáceis em aceitar e imitar a primeira novidade que aparece no

mercado literário.” 33

A valorização dos escritos de Machado ultrapassava as páginas da Gazeta de

Notícias, dando a “A Semana” um caráter especial no panorama da imprensa e literatura do

período. Ressalte-se que a série era o principal trabalho literário do escritor à época, uma

vez que além dela somente publicou contos esporádicos na revista A Estação, na Revista

Brazileira, na já mencionada A Semana e no Almanak da própria Gazeta de Notícias . Não 34

lançou nenhum livro entre os anos de 1892 e 1897.

Ibidem, p.27. Finalizava dizendo que as novas tendências da literatura serviriam para a extração de 33

elementos de inspiração para a produção de “livros paradoxais” de Machado: “A introdução da quiromancia, do hipnotismo, da cabala, da grafologia, das influências hiperfísicas, na literatura não deve trazer senão vantagens ao autor de certos capítulos da filosofia de Brás Cubas e da psicologia lunática de Rubião-Humanitas.” Ibidem, p.28.

Em A Estação Machado publicou: “O caso Barreto” (março - abril de 1892); “Um sonho e outro 34

sonho” (maio - julho de 1892); “Uma Partida” (outubro - dezembro de 1892); “Um quarto de século” (agosto de 1893); “João Fernandes” (janeiro de 1894); “A Inglesinha Barcelos” (maio 1894) e “Um erradio” (setembro 1894). No Almanak da Gazeta de Notícias saíram “Vênus! Divina, Vênus!” (1893), “Orai por ele!” (1895) e “Flor Anônima” (1897). Em A Semana foi publicado “A Missa do Galo” (1894). Na Revista Brazileira: “Uma Noite” (1895). Dentre esses contos, apenas “Um erradio” e “A Missa do Galo” foram posteriormente lançados em livro, ambos na coletânea Páginas Recolhidas, de 1899.

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3. Um novo modo de dar “A Semana”

“Mas vamos ao meu ofício, que é contar semanas.”

Machado de Assis, “A Semana”, 8 de janeiro de 1893.

A estreia de Machado de Assis na coluna dominical da Gazeta de Notícias, em abril

de 1892, marca o início de uma série duradoura que se estende até o final de fevereiro de

1897, quase interruptamente. Uma das hipóteses que defendo neste capítulo é de que “A

Semana” imprime características novas e marcantes ao artigo domingueiro daquela folha,

por meio do estatuto literário que o autor confere às crônicas. A autoridade que o narrador

faz questão de enfatizar, e até de exibir, mostra que entre o número infinito de questões, que

apareciam por contingência da indeterminação histórica ou por anseio do escritor, a própria

definição de crônica e do papel do cronista na imprensa do período fazia parte das

preocupações de Machado, tanto que é discutida ao longo de toda a série.

É a partir de um ponto de vista totalmente subjetivo que os comentários são feitos.

Por meio dessa perspectiva, os leitores são informados das opiniões e até das reinações de

um narrador que falseia o próprio discurso e tende a torcer fatos e conclusões em benefício

próprio. O recurso à memória, mencionando fatos e personalidades de um passado

relativamente remoto, dá a entender que o cronista é um senhor entrado em anos e um tanto

perdido frente aos acontecimentos que presencia, ao mesmo tempo em que, nas entrelinhas,

permite que se perceba uma opinião bastante informada e resoluta, deixando de lado a

suposta ignorância.

“A Semana” vem substituir a “Chronica da Semana”, que tratava de comentar de

maneira resumida os principais acontecimentos dos sete dias precedentes. A primeira

aparição deste título nas páginas da Gazeta ocorreu em 1882, também ocupando as colunas

dominicais do periódico . O trabalho de precisar o aparecimento desta seção ao longo de 35

Cf. “Chronica da Semana” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 out. 1882, p.1.35

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dez anos, bem como as suas eventuais interrupções, falhas e substituições ocuparia muito

tempo e foge aos objetivos desta pesquisa. Tendo em vista que a experimentação fazia parte

do expediente daquele periódico, podemos imaginar que muitas mudanças e mesmo novas

colunas tenham aparecido durante aquela década. No entanto, uma consulta rápida aos

exemplares deste decênio demonstra que há uma constância na presença da “Chronica da

Semana” durante o período. Na época que aqui nos interessa, ou seja, a imediatamente

anterior ao início da série machadiana, a “Chronica da Semana” é publicada regularmente,

sendo suas ausências muito raras. Entre janeiro de 1889 e março de 1892, a pausa mais

longa ocorre entre os meses de abril e setembro de 1890, quando ela cede lugar à “Chronica

Ligeira”, mudança que vinha acompanhada de um aviso de que tratava de algo provisório,

enquanto o cronista oficial, de quem não sabemos o nome, viajava . 36

O nosso literato tem então a importante missão de assumir uma coluna que poderia

ser considerada tradicional na Gazeta. Melhor dizendo, se não a “Chronica da Semana”, a

síntese e análise dos fatos, publicada aos domingos, era tradição do periódico.

Provavelmente, não só na Gazeta, já que esses resumos apareciam em outros órgãos de

imprensa . Caberia a Machado a incumbência de assumir o posto de destaque num diário 37

de ampla circulação, no Rio de Janeiro e fora dele, e moldá-lo conforme seus critérios.

Advogo ainda que o literato recebeu carta branca da folha, tendo liberdade para escolher os

assuntos e a forma de tratá-los. Aliás, não aceitaria a proposta se assim não fosse . 38

Na primeira “Chronica Ligeira” o autor trata da despedida, do navio que parte levando seu predecessor. 36

Afirma que deseja que em breve regresse “quem da semana as Chronicas fazia”. C f.“Chronica Ligeira” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 abr. 1890, p.1 (grifos no original). Em setembro do mesmo ano, volta a ser publicada a “Chronica da Semana”, elogiando o cronista que interinamente o substituíra. Cf. “Chronica da Semana” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 set. 1890, p.1.

Se olharmos os exemplares de domingo dos concorrentes da Gazeta no período próximo a de abril 1892, 37

veremos que o Diário de Notícias publicava no espaço do folhetim de domingo a seção “A Semana Passada”, assinada por A.G. O jornal O Tempo trazia a “Hebdomadiana”, assinada por Mercuza. O Jornal do Brazil trazia o folhetim “Aos Domingos”, por C.A. Ver, respectivamente: A.G. “A Semana Passada”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 abr. 1892, p.1; MERCUZA, “Hebdomadiana”, O Tempo, Rio de Janeiro, 13 mar. 1892, p.1; C.A. “Folhetim - Aos Domingos”, Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, 06 mar. 1892, p.1.

Basta lembrarmos que Machado deixou a redação de O Cruzeiro por não concordar com a postura 38

favorável à escravidão assumida pelo jornal. Ver: SILVEIRA, op. cit. p. 60-2; e MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol. 2, p. 322ss.

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Para entender o tamanho da empreitada, é preciso voltar aos prováveis primórdios

da crônica de domingo na Gazeta de Notícias. A “Chronica da Semana” estreara afirmando

que não traria nem prólogo nem programa e, coincidentemente, citando o escritor que

escreveria a coluna que uma década mais tarde a substituiria:

“O prólogo, por fim, é sempre asneira – disse-o Xavier de Novaes . O 39

prólogo melhor – disse Machado de Assis, a nossa mais acentuada individualidade literária – é o que contém menos coisas, ou a que as diz de um jeito obscuro e truncado . 40

Os programas, sabem-no todos, são uma instituição pátria, criada exclusivamente para uso dos nossos ministérios, e por eles cultivada, com o fim único de os não cumprir.

Ora, estando de tão baixa cotação os programas, tanto na política, como na literatura, nas praças comerciais como nas regiões da arte, e sendo o prólogo uma asneira, ou o mais curto o melhor... vá isto sem programa e sem prólogo, ou de prólogo curto.” 41

O escrito era justamente o que dizia não ser: um prólogo, ou ainda, na amenização

ali proposta, um prólogo curto. Na sequência o autor definia como seria e do que trataria a

coluna, portanto, apresentava o seu programa. Alegava que o que se leria seria “a crônica

dos sucessos da semana, registrados a nosso modo, sob nosso ponto de vista especial, e por

um processo de nossa invenção... aliás sem privilégio, o que já é uma recomendação para o

nosso processo.” Passava então aos fatos, “sem prólogo e sem programa.” 42

Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), literato português, colaborou em vários periódicos brasileiros, tais 39

como: A Marmota, o Jornal do Commercio e o Correio Mercantil. Era irmão de Carolina Augusta Xavier de Novaes, esposa de Machado de Assis. MENEZES, Raimundo de. Dicionário Literário Brasileiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 1978, p.485-6. Magalhães Júnior relata a amizade que Machado nutria por Xavier de Novaes, pelo intermédio de quem teria conhecido Carolina. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. op. cit. Vol. 2.

Refere-se ao prólogo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, intitulado “Ao Leitor”. Neste há a seguinte 40

passagem: “Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.” ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas in:_______________. Obra Completa de Machado de Assis em quatro volumes. Organização: Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloísa Jahn. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, Vol. 1, p. 626.

“Chronica da Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de out. 1882, p.1.41

Idem.42

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Ao tratar do “nosso modo”, “nosso ponto de vista especial” e do “nosso processo” é

provável que o cronista, ainda não identificado, estivesse falando pela redação da Gazeta,

ou ainda, que esta coluna não fosse feita a duas mãos apenas. Estas são só conjecturas em

torno de uma seção que possivelmente perdurou por uma década, sofrendo modificações ou

até trocando de autor(es). A passagem continha ainda a ideia de crônica entendida como um

resumo da semana. Era emitida uma consideração, mais por meio de brincadeiras com

palavras e figuras de linguagem do que por artifícios ficcionais.

Ressalta-se, acima de tudo, que o modo próprio da folha marca a referencialidade

dos textos, ou seja, ali estaria emitida a opinião do periódico sobre os assuntos abordados,

não escondendo ao leitor atento a dose de subjetividade dos comentários. A julgar pela

bandeira levantada desde seu lançamento, e reafirmada ilimitadas vezes ao longo de sua

existência, o “ponto de vista especial” da Gazeta de Notícias seria marcado pelo humor e

por uma suposta isenção. Isto não acarreta dizer que ali estava instituída uma preocupação

com uma lógica ou elaboração narrativa como as crônicas machadianas farão, anos depois,

dentro daquele mesmo jornal. Antes, estava ali a proposta de uma coluna que refletisse os

ideais do periódico e que imprimisse a marca da Gazeta em mais uma obra. Isto reforça

ainda que o diferencial da coluna seria o resumo da semana, já que o estilo não parecia

diferir muito de outras seções que apelavam para a galhofa para contar os fatos.

A miscelânea contida naquela seção exemplifica, ou antes, reforça o caráter de

recolhimento de fatos desconexos, ligados apenas pela demarcação temporal. Na sequência

do texto, o cronista falava da despedida da Companhia Lyrica Ferrari, do encerramento das

atividades na Câmara dos Deputados, da fala dirigida pelo Imperador à Câmara e ao

Senado, da retórica que, tal qual moléstia, espalhava-se pelo parlamento e pelas

conferências literárias e científicas, etc. Acrescentava que “Numa crônica da semana há

sempre lugar para uma palavra relativa à arte”, emendando uma crítica ao Conservatório

Dramático, “essa instituição criada exclusivamente para influir nos destinos dos teatros do

município neutro”, que proibira Flor de Liz, adaptação da francesa Le Droit du Seigneur,

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“quando a peça era escabrosa mas tinha graça” . Agora, “amputada e de acordo com os 43

princípios da nossa censura”, foi à cena uma representação que se configurou em um

tremendo insucesso, motivo da reprimenda: “Original, muito original o Conservatório, que

ainda não perdeu o horror ao vinagre... e ao sal!”

Eram críticas irônicas, com intenção de em alguma medida provocar o riso, mas

sem deixar de comentar e, especialmente, palpitar sobre os principais acontecimentos. O

cronista finalizava o texto tratando de literatura – machadiana, diga-se de passagem. O

“sucesso literário da semana” eram os Papéis Avulsos:

“‘É um grande bem para o espírito divertir-se; muito maior é instruir-se. A leitura que reúne em si as duas condições, assemelha-se a um fruto ao mesmo tempo delicioso e nutritivo.’

É de Marmontel este conceito, aplicável ao livro que vai ser procurado pelos que desejam distrair-se, admirando-lhe o fundo profundamente filosófico, e pelos que podem instruir-se, estudando-lhe a forma severamente castigada.” 44

Desde a primeira “Chronica da Semana”, com prólogo e programa, seus

comentários, por vezes mordazes, faziam realmente um resumo semanal, com afirmações

diretas e endereçadas, dividindo os assuntos por tópicos bem delimitados e separados por

um símbolo gráfico. Sem que seja possível afirmar que se tratava do mesmo autor ou estilo,

é notório, no entanto, que este formato é ainda utilizado quando é publicada a última seção

dominical, sob aquele título, no ano de 1892 . Não há nenhuma menção ao fim da coluna 45

ou à troca do cronista, contudo, no domingo seguinte, ao invés da crônica aparece um

editorial sem assinatura intitulado “A Situação” tratando de política interna, ao estilo dos 46

Machado de Assis havia sido censor do Conservatório Dramático Brasileiro entre 1862 e 1863. Em 1871, 43

após o decreto nº 4666 (de 10 de janeiro do mesmo ano) criar o novo Conservatório Dramático e dissolver o antigo, Machado integra o quadro de censores e exerce o cargo por três anos. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol.1, p. 204-212 e Vol. 2, p. 157-202.

“Chronica da Semana”, 29 de out. 1882, op. cit.44

“Chronica da Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 mar. 1892, p.1. 45

“A Situação”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 de abril de 1892, p.1. Este título foi usado em vários 46

editoriais ao longo de 1892-4.

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escritos de Ferreira de Araújo que apareciam sob o título “Cousas Políticas” e publicados,

geralmente, às segundas-feiras . 47

Em 10 de abril, “Uma Chronica” era publicada, tratando das superstições que

permeavam o cotidiano dos inúmeros que viveriam “escravizados pelos preconceitos” . 48

Comentava o Manifesto dos Treze Generais e as decorrentes ações enérgicas do governo . 49

Glosava ainda sobre a ação dos “ladrões narcotizadores” que a princípio limitavam-se “a

exercer sua habilíssima indústria nas alcovas das filhas de Jerusalém”, mas que agora

ousavam atacar “criados e amos” nas casas que resolviam assaltar . Destarte, permanecia o 50

recolhimento dos principais sucessos da semana, ainda separados em tópicos, aparentando

seguir os mesmos moldes de dez anos antes, ou seguindo uma fórmula fácil e talvez

presente em vários órgãos de imprensa da época, resumindo os fatos e resolvendo o

problema da falta de cronista oficial, já que havia a seguinte frase a arrematar o texto:

Estes escritos também saem sem assinatura, contudo, notas de outros periódicos, reproduzidas na própria 47

Gazeta de Notícias, dão conta de que o autor era o redator e proprietário do jornal. Além disso, em 1895, Lulu Sênior assume a autoria daquela coluna. Cf. LULU SÊNIOR (Ferreira de Araújo), “Às Quintas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 jan. 1895, p.1.

“Uma Chronica”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 abr. 1892, p.1.48

O Manifesto dos Treze Generais datava de 31 de março de 1892, mas somente veio a público no início do 49

mês seguinte. A Gazeta de Notícias o transcreveu: “Os abaixo assinados, oficiais generais do exército e da armada, não querendo, pelo silêncio, comparticipar da responsabilidade moral da atual desorganização em que se acham os Estados, devido à indébita intervenção da força armada nas deposições dos respectivos governadores, dando em resultado a morte de inúmeros cidadãos, implantando o terror, a dúvida e o luto no seio das famílias, apelam para vós, marechal, para que façais cessar tão lamentável situação. A continuar por mais tempo semelhante estado de desorganização geral do país, será convertida a obra de 15 de novembro de 1889 na mais completa anarquia.” Acrescentava que apenas a eleição para presidente, de acordo com o que estabelecia a Constituição Federal e sem a pressão das forças armadas, restabeleceria a tranquilidade à nação. Assinavam o marechal José de Almeida Barreto, o vice-almirante Eduardo Wandenkolk e outros onze generais. “Manifesto dos Generais”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 abr. 1892, p.1. A reação do governo foi traduzida em prisões e desterros.

O cronista explicava num outro tópico a ação dos narcotizadores: “E os narcotizadores, cá pela Capital 50

Federal, continuam muito à sua vontade, agredindo no primeiro ímpeto as vítimas com um vidro pleno de substância narcotizante, reduzindo-as à inatividade, e assim conseguindo tudo quanto querem.” Mais adiante, comentando uma nova circular policial que poderia embasar arbitrariedades, afirma: “Da polícia vem ao conhecimento do público uma circular, em que se dá ordens para que se prendam em flagrante delito os ébrios. Duas testemunhas, um auto de flagrante, e eis pronto o processo./ Esta inovação é perigosa. Pode mesmo ser uma arma de dois gumes. Quem estará livre de um processo desta ordem?/ A qualquer hora, em qualquer café, num qualquer grupo, pode-se fazer uma vasta colheita e arranjar meia dúzia de processos com duas dúzias de testemunhas./ E isto sem que os narcotizadores, ora em posição superior, sejam chamados a colaborar na sensata medida policial.” “Uma Chronica”, op. cit. Ainda em 1892, “A Semana” abordaria o mesmo assunto. Cf. ASSIS, Machado de. “A Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 jun. 1892, p.1 e ASSIS, Machado de. “A Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 set. 1892, p.1.

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“Tudo vai mal; mas é permitido esperar do futuro melhores dias para a pátria. E façamos preces, enquanto não há suspensão de garantias, enquanto a gente pode escrever e opinar.

É o que numa substituição pode dizer um cronista interino.” 51

Além da crítica ao governo Floriano Peixoto, cujas sanções em um futuro próximo

de fato iriam recair sobre aquele jornal, a passagem denota que a Gazeta de Notícias tivera

de usar de algum improviso para a coluna dominical; aliás, com o próprio título buscava-se

denotar que não se tratava do mesmo cronista.

Toda esta introdução à crônica dominical da Gazeta tem por fim analisar o estatuto

literário que Machado de Assis dá à coluna que assume naquele jornal. O que ocorre não é

simplesmente uma troca de cronistas, mas sim a instituição de um modo diferente de

cumprir a “obrigação de dar a semana” e talvez isso ocorresse com cada novo cronista que

passava a integrar o time do periódico . Enfatize-se, portanto, que com isso não estou a 52

dizer que Machado esteja neste momento reinventando o gênero cronístico no Brasil, mas

sim que ele dá características muito particulares à coluna dominical daquele jornal em

específico. Por outro lado, esta não é façanha pequena, já que era realizada em um dos

grandes órgãos de imprensa na época, contando com uma tiragem de quarenta mil

exemplares, na edição de maior proeminência e na posição de máxima ênfase . Na 53

comparação que é possível aqui, embora bastante limitada, entre a primeira “Chronica da

“Uma Chronica”, op. cit.51

Note-se que quando o próprio Machado é substituído em um dos domingos de 1894, o título da crônica é 52

“Uma Semana”, indicando ao leitor que não se tratava do mesmo autor. Cf. “Uma Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 abr. 1894, p.1. A crônica também não possui assinatura, mas tudo leva a crer que se tratava de Ferreira de Araújo. São mencionadas características do cronista oficial, que alegara dor de cabeça para não escrever o texto. Afirma ainda que: “Isto hoje é uma bala de estalo que saiu chocha, um bilhete de loteria que saiu em branco.” Além disso, lembremos que durante a pausa da “Chronica da Semana” em 1890, já mencionada, o título da seção passa a ser “Chronica Ligeira”, mais uma vez, enfatizando que títulos eram modificados quando escritos por autores diferentes.

Entre 1892 e 1897, a tiragem não se altera. Apenas o preço do exemplar avulso varia: de 1892 a 1893 cada 53

número da Gazeta de Notícias custava 60 réis. De 1894 a, pelo menos, fevereiro de 1897, o valor era de 100 réis. Dados retirados dos frontispícios do próprio periódico, ao longo da pesquisa.

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Semana” e a estreia da coluna de Machado em 1892, nota-se um caráter muito mais

personalista, que desemboca num escrito mais fluido e coerente.

Mesmo levando em conta as adaptações inerentes à tarefa hercúlea de conduzir uma

coluna ao longo de cinco anos, sempre sujeito à titubeação dos acontecimentos, o que há de

certo é que a nova crônica agrada ao público, já que se mantém, sempre em dia e posição

de destaque, por tanto tempo. Como se verá adiante, a efemeridade de colunas da Gazeta

era notória, ampliando desta forma a proeza de nosso literato.

É interessante notar que os dados levantados sugerem a hipótese de que Machado

não tivesse recebido com tanta antecedência o convite para a colaboração semanal no

periódico. Obviamente, a parceria com a Gazeta já datava da década anterior, inclusive em

séries cronísticas: a coletiva “Balas de Estalo”, entre 1883-86; “A+B”, em 1886; “Gazeta

de Holanda”, entre 1886-88 e “Bons Dias!”, entre 1888 e 1889. O convite para integrar

uma nova coluna fixa não deveria ser uma grande surpresa.

Todavia, se se tratava de uma proposta tentadora, na mesma proporção, era um

desafio: Machado de Assis seria responsável por escrever um texto que seria largamente

lido em um período não apenas de incertezas, com um regime que tentava se afirmar por

meio de ações controversas e enérgicas, porém, também, de perigo real e iminente; haja

vista os empastelamentos de jornais, ressaltando-se, inclusive, a prisão e desterro de José

do Patrocínio, redator e proprietário da Cidade do Rio, em 1892. Observe-se ainda que

Machado era funcionário público, no Ministério de Agricultura, Comércio e Obras

Públicas, cargo pelo qual deveria zelar em meio àquela “caça às bruxas” empreendida pelo

governo e pelos florianistas. Em 1894, é desferida contra ele a acusação de monarquismo,

portanto, no meio da escrita da série.

Reforcemos ainda que no período em que a série era dada a público, aquela era a

principal produção literária do autor. A publicação esporádica de alguns contos na imprensa

carioca não competia com a produção semanal das mais de duzentas crônicas. “A Semana”

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tornava-se então o principal canal de comunicação de Machado e o público-leitor e também

seu painel frente aos homens de letras.

Pelo lado da Gazeta de Notícias, havia naquele convite uma prova de amizade em

relação ao literato-colaborador de longa data, mas, principalmente, uma prova de confiança.

Se Machado de Assis não era um dos redatores da Gazeta, ele era considerado o Mestre dos

homens de letras do Brasil e estava ligado àquela empresa jornalística há uma década. É

fácil supor ainda que o convite não estipulava um prazo final e que Machado, também

sujeito imerso na indefinição histórica, não imaginava que principiava uma tarefa que

perduraria por vários anos.

Outra suposição que pode ser retirada das informações recolhidas concerne ao fato

de Machado não utilizar qualquer assinatura na série. Magalhães Júnior afirma que a

ausência de pseudônimos e de qualquer assinatura era justificada da seguinte forma:

“Bastava o seu estilo pessoal, inconfundível, para a identificação da autoria” . Entretanto, 54

a análise da série como um conjunto e a leitura da Gazeta, em toda sua extensão, ao longo

dos anos em que a seção foi publicada, permitiu que eu levantasse algumas hipóteses sobre

o porquê do procedimento e das possíveis implicações que decorreriam dele.

Como já dito, a crônica dominical era uma tradição da Gazeta de Notícias e, quiçá,

de toda a imprensa carioca da época. Pensando ainda na manutenção de padrões dentro do

periódico, vale lembrar que a “Chronica da Semana”, desde sua estreia, não era assinada

por nenhum nome ou pseudônimo. Antes ainda dela, no início da década de 1880, havia o

“Folhetim – Chronica” que se assemelhava à coluna posterior no que diz respeito à

identificação do autor . Por mais que Machado tenha dado uma feição própria à seção, por 55

certo algumas características ligadas ao gênero e, principalmente, ao modo como ele

MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol.3, p.245.54

MEYER, Marlyse. “Voláteis e Versáteis: de variedades e folhetins se fez a chronica”, in: CANDIDO, 55

Antonio. et al. A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 93-133.

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aparecia na Gazeta, eram mantidas. Cogito que a não-assinatura seja uma delas . A 56

hipótese é reforçada pelo fato de Olavo Bilac, ao assumir o posto de cronista dominical do

jornal, na coluna que passa a se chamar “Chronica”, também não a assinar. A propósito da

coluna de Bilac, é importantíssimo ressaltar que ele não continua “A Semana”, mas sim

escreve uma nova série, com protocolos distintos das crônicas de seu antecessor. Esse dado

reforça a ideia de que, diferentemente de 1882, a tendência era que os cronistas da Gazeta

na década de 1890 imprimissem suas marcas particulares às suas colunas.

Aproveito para enfatizar que Machado, quando colabora com duas crônicas para a

Gazeta de Notícias em 1900 , o faz sob o título de “Chronica”, ou seja, mantém o nome da 57

coluna de Bilac, sublinhando que era uma colaboração . É importante frisar esta 58

informação para que não se perpetue o erro de datar “A Semana” como 1892-7/1900. Que

esteja destacado que no dia 28 de fevereiro de 1897 foi publicada a última crônica daquela

série. Até mesmo o site oficial do Ministério da Educação, em sua página dedicada à obra

do escritor, lançada por ocasião do centenário de sua morte, data a série “A Semana” entre

1892 e 1900 . Este é um erro comum a Mariana da Silva Lima e Nicolau Sevcenko. Em 59

sua tese de doutorado, Lima afirma que em 1900 foram publicadas em separado duas

crônicas . Sevcenko abre o volume por ele organizado para a coleção História da vida 60

privada no Brasil com a citação do texto publicado em 11 de novembro de 1900.

Ironicamente, o trecho citado por Sevcenko é o seguinte:

“A Semana” seria a segunda série seguida na Gazeta de Notícias a não trazer assinatura, uma vez que a 56

anterior, “Bons Dias!”, também não era assinada. As crônicas de 1900 são: ASSIS, Machado de. “Chronica”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 nov. 57

1900, p.1 e ASSIS, Machado de. “Chronica”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 nov. 1900, p.1. A necessidade de substituir o cronista oficial é explicada pela seguinte nota: “É esperado hoje no Danube o 58

nosso companheiro Olavo Bilac, de regresso de Buenos Aires, onde representou a Gazeta de Notícias nas festas ali realizadas em honra do Brasil.”. Cf. “Olavo Bilac”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 nov. 1900, p.1.

Cf. http://machado.mec.gov.br/index.php/obra-completa-menu-principal-173/169-cronica Acessado em: 59

02/04/2014. LIMA, Mariana da Silva. Machado de Assis, um cronista na Primeira Republica - Visões do Brasil na serie 60

“A semana”. Tese (doutorado) – UFRJ/ Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura. UFRJ, 2012.

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“enquanto o telégrafo nos dava notícia tão graves [...], coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.” . 61

Fica aí demonstrada, mais uma vez, que a leitura das crônicas em seu veículo de

publicação original revela as coisas miúdas, que escapam à maioria. Deveras, coisas de

míopes.

4. A primeira “Semana”

Tendo em mente que a primeira crônica de uma série tinha por fim apresentar o seu

programa , ainda que de maneira velada e sob a indeterminação dos acontecimentos que 62

poderiam mudar os rumos da coluna, o texto que inaugura “A Semana” é extremamente

relevante e repleto de possibilidades de reflexão acerca dos múltiplos significados que

estavam embutidos nos comentários supostamente despretensiosos. A hipótese de que o

convite da Gazeta de Notícias fora repentino não implica que o escritor não tivesse usado

de extremo cuidado na elaboração de sua crônica de estreia, o que se comprova na análise

empírica do escrito.

O cronista não principia o texto por uma apresentação da nova coluna ou pela

explicitação de um programa; partia logo para as suas conjecturas. Interessante notar que já

em sua primeira frase, referindo-se à semana finda, dava a ideia de que recolhia os

fragmentos dela, o que estaria muito ajustado ao que a “Chronica da Semana” fazia antes e,

mesmo, com o nome da corrente seção. No entanto, era um registro completa e

SEVCENKO, Nicolau (org.). “República: da Belle Époque à Era do Rádio”, in: NOVAIS, Fernando A. 61

(org.). História da vida privada no Brasil, vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 9ª reimpressão. p. 07.

Cf. CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. 62

“Apresentação”, in:____________ (orgs). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

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intencionalmente subjetivo, afastado, portanto, da definição clássica de crônica. Não era a

primeira vez que Machado se utilizava deste recurso. 63

Vamos ao texto:

“Na segunda feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada; mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A coisa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia, vários ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada.” 64

Ao propor a si mesmo um problema, que não declara de imediato qual é, o narrador

começa as divagações em torno do sentido e das apropriações que as palavras adquirem em

determinado contexto e, por conseguinte, sobre as escolhas e estratégias que adota durante

a escrita de sua obra. Uma simples “charada” não atrairia a atenção dos “leitores mais

austeros”, já um “problema” era mais notório, trazendo suposta importância, mesmo que

não houvesse nenhuma modificação verdadeira da proposição. “Benefício” ou “festa

artística”, o fato é que tudo continuava o mesmo nos eventos promovidos por atrizes, desde

o preço até a sequência do programa, muito embora o segundo termo trouxesse a ideia de

algo mais requintado. Portanto, desde o primeiro parágrafo da série, o leitor é convidado a

acompanhar não apenas os rodeios imaginativos, cheios de suposições e indagações, do

narrador, mas também a refletir sobre os significados que se escondem por trás das

considerações aparentemente mínimas. Ao reportar uma reflexão que começara na

“Bem sabia, por isso, que não era com as definições clássicas sobre a crônica que dialogava, mas sim com o 63

tratamento dado a ela por alguns dos grandes cronistas de seu tempo, como José de Alencar e Manuel de Macedo. Nas crônicas desses escritores, o caráter de registro, do comentário ligeiro sobre o tempo vivido, seria sempre uma constante; porém, um novo fator viria a modificar radicalmente o sentido atribuído ao gênero: a subjetividade, que afastaria definitivamente a crônica moderna da história. Sem que se limitassem a descrever ou a contar, suas crônicas tratavam de intervir, comentar, dialogar. Como a história, ofereciam ainda uma leitura do tempo. No caso deles, tratava-se, no entanto, de uma leitura construída em perspectiva abertamente pessoal e literária, ligada à sensibilidade do autor e aos artifícios de sua escrita.” PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “Introdução”, in: ASSIS, Machado de. História de Quinze Dias. Organização, introdução e notas: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. p.14

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 24 de abril de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 64

abr. de 1892, p.1. (Grifos no original).

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“segunda-feira da semana que findou” o narrador explicita que os pensamentos o

acompanhavam há dias e permeavam as ponderações que faria sobre outros ocorridos

durante a semana, a qual, em tese, deveria reportar aos leitores, como se verá adiante.

“Tudo pede certa elevação”, continua o cronista, citando então dois velhos

conhecidos que tinham todos os dias a sua própria “festa artística”; um deles, condecorado

Cavaleiro da Ordem da Rosa, por serviços prestados “em relação à guerra do Paraguai”, o

outro tenente da Guarda Nacional. Jogavam xadrez, cochilando entre uma jogada e outra:

“Despertavam-se um ao outro desta maneira: ‘Caro major!’ – ‘Pronto, comendador!’ —

Variavam às vezes: — ‘Caro comendador!’ – ‘Aí vou, major’. Tudo pede certa elevação.” 65

Embora ficasse nas entrelinhas que o narrador não via razão para a mudança de

nomenclatura de coisas que não se alteravam em sua natureza, ele armava uma arapuca

para o leitor ao dizer que tudo pedia elevação. Passava então a tratar da data comemorativa

ocorrida três dias antes, um assunto do momento, conforme os protocolos narrativos do

gênero pediam, mas Machado não se limitava a apenas seguir o procedimento de outros

cronistas:

“Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heroico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. 66

Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se

Grifos no original. Lembrar que o próprio Machado havia sido condecorado Cavaleiro e posteriormente 65

Oficial da Ordem da Rosa. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol.3, p.148s. A utilização da figura de Tiradentes pela República, bem como o questionamento do cronista em relação ao 66

suposto sentimento patriótico da época, foram analisados em SOUZA, Ana Paula Cardozo de. “A Semana”: a República em crônicas de Machado de Assis (1892-3). Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em História). Campinas/SP: IFCH/UNICAMP, 2011. Neste trabalho, fica denotado, com base em notícias e correspondências publicadas na própria Gazeta de Notícias, que as comemorações não haviam atraído o povo, ficando restritas a paradas militares e atividades do gênero. Sobre o tema, ver ainda: CARVALHO, José Murilo de. “Tiradentes: um herói para a República”, in:_________. A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (18ª reimpressão). Carvalho trata ainda da aproximação das figuras de Tiradentes e Jesus Cristo, por meio da difundida representação pictórica do alferes e suas claras semelhanças com Cristo. Machado brinca com tal comparação ao comparar o sofrimento do Inconfidente com a Via-Crúcis, dizendo inclusive que Tiradentes carregara “os pecados de Israel” e que se sacrificara por seus companheiros.

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ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.” 67

Demonstrando que estava atento aos jornais e discursos publicados, o narrador

afirma que “Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os

cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não tendo

vencido, a história lhe dê a principal cadeira.” Ao comparar os demais Inconfidentes ao

coro das Oceânides, sugere ao “amigo leitor” que releia Ésquilo e perceba, principalmente,

a narração dos crimes de Prometeu: “‘Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará

todas as artes’. Foi o que nos fez Tiradentes.” 68

O narrador retoma então a questão da elevação de que tudo carece:

“Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma coisa a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.” 69

Apesar da aparente casualidade na escolha dos temas tratados na crônica, o autor

selecionava a dedo os assuntos que abordava para conjeturar sobre questões diversas, ainda

que, ou, principalmente porque, num primeiro momento, os objetos de reflexão parecessem

desconexos. Ponderações sobre a escolha de Tiradentes como símbolo do novo regime,

justamente na primeira crônica que Machado escrevia pós-Proclamação da República, não

são, de nenhum modo, fortuitas. Embora iniciasse o texto tratando de questões que

poderiam ser consideradas atemporais, mostrava a seguir que tinha os pés fincados em seu

tempo e lugar.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 24 de abril de 1892”, op. cit. 67

Cf. ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado, in: ÉSQUILO et. al. O Melhor do Teatro Grego. Tradução e Notas 68

de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 27ss. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 24 de abril de 1892”, op. cit. 69

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Além disso, em um contexto de valorização dos saberes técnico-científicos, no qual

títulos serviam não só para identificar profissionalmente um indivíduo, mas também para

distinguir o lugar social que ocupava, a ironia em relação à mudança de nomes era ainda

mais circunstanciada. Isto não era abertamente declarado, mas era com o objetivo de

evidenciá-lo pela discussão em torno da alcunha do mártir da Inconfidência e reafirmado

enquanto o narrador passeava pelos quiproquós de futuro-genro e sogra:

“Há muitos anos, um rapaz — por sinal que bonito — estava para casar com uma linda moça, a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios e primos. Mas o noivo demorava o consórcio; adiava de um sábado para outro, depois quinta-feira, logo terça, mais tarde sábado; — dois meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz não quisesse casar. A sogra, que antes de o ser já era, pegou do pau moral, e foi ter com o esquisito genro. Que histórias eram aquelas de adiamentos?” 70

O adiamento, segundo o futuro esposo, tinha uma explicação completamente lógica

e, além do mais, “nobre”. Ele esperava o título de agrimensor. A provável futura sogra

retruca dizendo que a filha não precisa do título do marido para comer. Vem então a

resposta fulminante e irreplicável do pretendente:

“— Perdão, mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor...

Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o moço. Em boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de agrimensor, de doutor e de marido.”

Com certo didatismo, o narrador trata de ilustrar seu ponto com mais um exemplo e,

desta dita, ainda mais explícito. Para além das aparências, a diferença entre um noivo com

ou sem o título de doutor era a mesma entre os benefícios e as festas artísticas: nenhuma.

Ao colocar no mesmo texto as homenagens ao herói republicano, forjado por meio da

artificialidade, devido à necessidade de consolidar a aceitação do regime, o cronista está a

dizer que a República é o novo nome de um regime que não alterou verdadeiramente a vida

da população, ou seja, ficara em modificações superficiais.

Idem.70

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Esta hipótese fica mais plausível quando é analisado o arremate da crônica, no qual

o narrador afirma que do caso do genro-doutor ao caso eleitoral era menos que um passo.

Alegando nada entender de política, dizia ignorar se ausência de grande parte do eleitorado

na eleição ocorrida no dia 20 tinha sido causada pela descrença ou pela abstenção: “A

descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor: a abstenção é propósito. Há quem não

veja em tudo isto mais que ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus

patrícios.”

Após alguns rodeios, estava ali explicitado o mote da crônica de estreia de “A

Semana”. O novo regime não inovava. O sistema eleitoral era falho e não motivava os

eleitores a comparecerem à votação. O cronista afirmava que ele sim havia ido até sua

seção, mas encontrara a porta fechada e a urna na rua, com livros e ofícios. Outra casa os

acolhera, porém os mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco:

“Discutimos a questão de saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões; uns foram pelo ovo outros pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso:

Sara, belle d'indolence, Se balance

Dans un hamac... 71

Unindo as duas pontas da crônica, retomava o problema a que se propunha no início

do texto. Ele tinha sido a maneira encontrada para matar tempo enquanto os eleitores

esperavam para votar, algo que, aliás, nem chega a acontecer. A charada daquela segunda-

feira era antiquíssima, talvez uma das mais velhas de todas. O semanista não poderia ter

escolhido melhor exemplo para demonstrar como tudo, mesmo envolto em véu de suposta

dignidade e proeminência, era o mais do mesmo. Mostrando a labor literário e a coerência

com que alinhavava os assuntos aparentemente desconexos, transformava o texto numa

peça uniforme e rica em significações.

Grifos no original. Trecho inicial de “Sara La Baigneuse” de Les Orientales. Cf. HUGO, Victor. Les 71

Orientales, in:____________. Oeuvres complètes de Victor Hugo. Poésie 2. Paris: J. Hetzel & A. Quantin, 1880-1926. p. 115-120.

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A preocupação do genro não é ser um profissional gabaritado ou de oferecer uma

vida mais farta à futura esposa. Seu objetivo é meramente ornamental e foca o

estabelecimento de uma distinção social, artificial e mesmo patética, em relação ao povo

“lá da roça”. A banalidade e a futilidade que permeavam seus argumentos eram as mesmas

que envolviam a tentativa republicana de transformar Tiradentes num símbolo do regime . 72

A crítica social contida nas linhas daquela “A Semana” evidenciava uma sociedade

preocupada com as aparências, enquanto afundava em instituições vazias e preocupações

vãs. Indo mais longe, poder-se-ia falar que o governo não se distinguia desta situação,

acobertando com remendos novos uma casaca que já vinha gasta desde os tempos do

Imperador.

Embora o narrador não demonstre irritação e prefira uma atitude mais

condescendente, fica clara a crítica ao sistema eleitoral falho e à tentativa frívola de

mascarar os problemas do novo regime, que de novos nada tinham, pela invenção de uma

data comemorativa. O disfarce do narrador, que diz, por exemplo, não entender de política,

está na justa medida para denotar um julgamento muito mais ferrenho do autor em relação

aos rumos da República. O caráter artificial e superficial do intento do agrimensor não

difere do estabelecimento de um mártir-herói de última hora, em meio à tensão decorrente

da instauração republicana e, de maneira mais contundente, das controversas medidas de

Floriano Peixoto à frente do poder.

Voltando à ideia da primeira crônica ser o estabelecimento de um programa para a

série, destaco ainda que nesse texto Machado de Assis criava o método que acompanharia a

coluna até 1897, o que chamo aqui de a fórmula de “A Semana”. O procedimento consistia

O feriado nacional havia sido instaurado em 1890, segundo ano de regime republicano. O texto do decreto 72

dizia que, baseado “no profundo sentimento da fraternidade universal”, sentimento este que só se poderia desenvolver convenientemente com um “sistema de festas públicas destinadas a comemorar a continuidade e a solidariedade de todas as gerações humanas”; e ainda na ideia de que cada pátria deve instituir suas festas “segundo os laços especiais que prendem os seus destinos aos destinos de todos os povos”, decretava que seria considerado dia de festa nacional, entre outros: “21 de abril, consagrada á comemoração dos precursores da Independência Brasileira, resumidos em Tiradentes”. BRASIL. “Decreto n.155-B, de 14 de janeiro de 1890”. Collecção de Leis do Brazil – 1890, Página 64 Vol. 1 fasc. 1º (Publicação Original). Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049

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em lançar uma reflexão de cunho geral, apresentar em seguida exemplos que, à primeira

vista, parecem desconexos e, por fim, amarrá-los em todo coerente, juntando as pontas da

crônica. A conduta é inclusive explicitada em um texto posterior, no qual o narrador afirma

que: “Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as

melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o

princípio e o fim da crônica.” Com pequenas variações, essa é a tática que encontramos 73

na grande maioria daqueles escritos.

Ressalto ainda que a reflexão sobre o uso das palavras, seja na linguagem, no estilo

dos discursos ou mesmo na substituição de vocábulos fará parte das reflexões do cronista

durante toda a série. No mais das vezes, expondo ao ridículo as tentativas relacionadas à

temática, bem como seus autores. Tendo ainda em vista que o seu ofício era brincar ou

jogar com as palavras para entreter o leitor, é interessante que o semanista se aproveite

disso para analisar as outras vozes que apareciam no jornal. A linguagem utilizada pelo

próprio narrador vira alvo de suas ponderações, à medida que tenta em teoria se adequar ao

contexto que o cerca, como no caso do elevado problema da primeira “A Semana”. Muito

pode ser revelado ao seguirmos essa linha de raciocínio: a inadequação das narrativas, a

artificialidade dos discursos, a falha lógica das teorias e a superficialidade que cercam os

títulos são tópicos recorrentes na série. Defendo aqui que essa é uma chave de leitura

crucial para que entendamos os significados atribuídos por Machado ao longo de seus

textos, alinhavados por meio de construções complexas. Ela será frequente durante todo

este trabalho.

Como veremos a seguir, outras características foram construídas com o fim de

marcar a singularidade da seção. Talvez a mais notória seja a voz ficcional que narra as

crônicas.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 04 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 73

Janeiro, 04 fev. 1894, p.1.

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5. Um narrador em “A Semana”?

Nesta dissertação tenho a todo tempo me referido a um narrador para abordar a voz

de “A Semana”. É chegada a hora de me explicar. Tratar da figura de um narrador-ficcional

em série machadiana já despertou acalorados debates . Deparando-me com a mais longa 74

delas, considerada por críticos “sua mais perfeita e final feição de cronista” , o 75

questionamento acerca desse tema permeou toda a pesquisa. De uma ideia mais acabada e

unívoca de que a voz de “A Semana” era ficcional, passei a me perguntar sobre crônicas

que pareciam colocar Machado-autor em evidência. Um desses casos é o texto que comenta

o dia do nascimento do cronista: “Eu adoro o frio: talvez por ser filho dele; nasci no próprio

dia em que o nosso inverno começa.” Ora, o inverno começa, oficialmente, no dia 21 de 76

junho, dia do aniversário de Machado de Assis. Galante de Sousa considera, inclusive, este

dado um dos indícios da autoria daquela série sem assinatura; afirmando que o escritor

havia se traído em sua suposta intenção de manter-se em sigilo . 77

Há ainda situações mais explícitas, como quando comparece aos jantares da Revista

Brazileira e disso informa os leitores da crônica:

“Chego ao Hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde acho já alguns homens. São convivas do primeiro jantar mensal da Revista Brasileira. O principal de todos, José Veríssimo, chefe da Revista e do Ginásio Nacional, recebe-me, como a todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida um só minuto. Os demais convivas chegam, um a um, a literatura, a política, a medicina, a jurisprudência, a armada, a administração... Sabe-se já que alguns não podem vir, mas virão depois, nos outros meses.” 78

Para a discussão em torno do narrador de “Bons Dias!”, ver: PEREIRA, op. cit. e GLEDSON, John. “Bons 74

Dias!”, in: __________. Por um novo Machado de Assis, ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Ver também: CHALHOUB, Sidney. “John Gledson, leitor de Machado de Assis”, in: ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 13, p. 109-115, jul.-dez. 2006.

BRAYNER, Sonia. “Machado de Assis: um cronista de quatro décadas”. In: CANDIDO, Antonio [et. al.]. A 75

Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p.408.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 01 de outubro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 76

01 out. 1893, p.1. GALANTE DE SOUSA, op. cit. p.34.77

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 17 de maio de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 78

mai. 1896, p.1.

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Três dias antes de este texto ser dado a público, aparecera uma nota da Gazeta de

Notícias participando os leitores da festa “modesta e cordial” que ocorrera no salão de

jantares do hotel Globo. Havia sido mais um dos encontros mensais dos colaboradores da

Revista Brazileira, no qual estiveram presentes, dentre vários outros, Capistrano de Abreu,

Arthur Azevedo, Joaquim Nabuco, José Veríssimo e Machado de Assis. A folha

acrescentava que aquelas “festas fraternais entre os soldados da milícia literária”

fortaleciam os laços entre “os lutadores da palavra e da pena” . 79

O mesmo acontece com os jantares mencionados na crônica de 19 de julho de 1896: “Este que aqui vedes jantou duas vezes fora de casa esta semana. A

primeira foi com a Revista Brazileira, o jantar mensal e modesto, no qual, se não faltam iguarias para o estômago, menos ainda as faltam para o espírito.[...] Basta notar que, apesar de lá estar um financeiro, não se tratou de finanças. Quando muito, falou-se de insetos e um tudo-nada de divórcio.

[...] O segundo jantar foi o do Dr. Assis Brasil. Quatro ou cinco dezenas de homens de boa vontade, com o chefe da Gazeta à frente, entenderam prestar uma homenagem ao nosso ilustre patrício, e escolheram a melhor prova de colaboração, um banquete a que convidaram outras dezenas de homens da política, das letras, da ciência, da indústria e do comércio.” 80

A Gazeta, no dia 15 de julho, noticiara o comparecimento de Machado de Assis no

jantar da Revista e, no dia 18 do mesmo mês, sua presença no banquete em homenagem a 81

Assis Brasil. 82

Outro exemplo foi o comentário sobre Névoas Matutinas, o primeiro livro de seu

amigo Lúcio de Mendonça, publicado muitos anos antes:

“Eu ainda não disse que tive o gosto de prefaciar o primeiro volume de Lúcio de Mendonça, e não o disse, não só para falar de mim, — que é mau costume, — mas para não dar razão aos que me arguem de entrar pelo inverno da

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 mai. 1896, p.2. O periódico dizia ainda que, por carta ou 79

comunicações verbais transmitidas ao diretor da Revista, outros haviam apoiado a ideia dos jantares mensais, prometendo deles fazer parte no futuro; entre eles: Coelho Neto, Lúcio de Mendonça, Araripe Júnior, Olavo Bilac e Ferreira de Araújo.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 19 de julho de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 80

jul. 1896, p.1. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 jul. 1896, p.1.81

“Banquete”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 jul. 1896, p.182

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vida. Em verdade, esse rapaz, que eu vi balbuciar os primeiros cantos, é hoje magistrado e alto magistrado, e o tempo não terá andado só para ele. Mas isso mesmo me faz relembrar aquela circunstância. Ei-nos aqui os dois, após tantos anos, sem haver descrido das letras, e achando nelas um pouco de descanso e um pouco de consolo. Muita coisa passou depois das Névoas Matutinas; não passou a fé nas musas, e basta.” 83

É inegável que quem escreveu o prefácio daquele livro era o autor-empírico

Machado de Assis. Na ocasião, o autor tratava do lançamento de Canções do Outono,

também de Mendonça, que aproveitava para divulgar.

Em 1893, por ocasião da morte do editor Garnier, há o exemplo que considero mais

notório da utilização do espaço de “A Semana” para o que poderíamos chamar de fins

pessoais. Começava dizendo: “Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela

primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria.” Afirmava ainda que, durante

meio século, o livreiro não fizera outra coisa além de trabalhar em seu negócio. Mesmo

enfermo, “com a morte no peito”, ia todos os dias à loja e lá permanecia até o cair da noite.

A livraria, cita à Rua do Ouvidor, recordaria os tempos de uma rua animada e populosa, que

os “mais rapazes” não conheceram. Repassava os 20 anos da amizade, os costumes do

livreiro, as conversas ao pé da carteira… Daquelas conversações estavam mortos quase

todos os interlocutores: “Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de

Alencar, para só indicar estes” . No mais, a livraria teria sido um “ponto de conversação e 84

de encontro”. Por ali passara muito da história literária do país até então e tais recordações

permaneciam na mente do escritor, tomadas por certa melancolia: “Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e

pelo Fantasma Branco, romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 27 de dezembro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 83

Janeiro, 27 dez. 1896, p.1. Névoas Matutinas foi lançado em 1872, mesmo ano em que Machado publica Ressureição, seu primeiro romance.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 08 de outubro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 84

08 out. 1893, p.1.

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no de S. João Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memorial nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos.” 85

Assegurava então que editar obras jurídicas ou escolares não seria muito difícil, uma

vez que a necessidade era grande e a procura certa. O livreiro teria feito mais. Tinha sido

editor de obras literárias, tornando-se “o primeiro e maior de todos”. Seus catálogos

estavam repletos com os nomes dos principais homens de letras do Brasil. Macedo e

Alencar, “que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito”, além de Bernardo

Guimarães, “que também produziu muito nos seus últimos anos”, figuravam ao pé de

outros, “que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o

caminho da reputação.” 86

Aquela livraria “tão copiosa e tão variada”, tinha de tudo, “desde a teologia até à

novela, o livro clássico, a composição recente, a ciência e a imaginação, a moral e a

técnica”. O autor teria a achado já feita, mas presenciara seu crescimento ao longo de vários

anos. Com as portas fechadas, esperando inventário e herdeiros, dava a impressão de que

faltava alguma coisa à rua: “Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que

não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito”.

Questionava então que proveito pessoal teriam os labores dado àquele homem. A

resposta seria o gosto pelo trabalho, gosto tão grande que transformara-se em uma pena, já

que dele não mais pode se libertar: “o instrumento da riqueza era também o do castigo”.

Desejava, por fim, que perdurasse a notícia de que “alguém que neste país novo ocupou a

vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir

afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!”.

Como se pode perceber, o texto, dedicado unicamente ao amigo morto, é emotivo e

mesmo melancólico. Arrisco dizer que ele é todo Machado, no sentido de que o autor

Idem.85

Ibidem.86

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utilizou sua coluna, aliás, principal meio de comunicação com os leitores e mesmo com os

colegas, para a homenagem final a Garnier. Isto não implica dizer que a série toda possa ser

atribuída à opinião direta do literato. A homenagem prestada ao editor, bem como os outros

exemplos citados, são as exceções que confirmam a regra.

Minha hipótese é que Machado de Assis criou, sim, um narrador para “A Semana”.

A unidade da série, por si só, já é um indício da elaboração narrativa uma vez que, em meio

aos imprevistos e requisições, o autor esforçava-se para manter características e cacoetes

que se repetiam ao longo dos meses. Como veremos a seguir, estas peculiaridades,

presentes durante os cinco anos de escrita, dão o tom e marcam a singularidade da coluna.

Como demostrado por vários estudiosos de sua obra cronística, Machado de Assis

utilizara-se do artifício antes em outras séries. Leonardo A. M. Pereira assevera que, em

“História de Quinze Dias”, o autor assumia a autoria da coluna, ao citar, por exemplo, sua

presença empírica em banquete que celebrara a independência americana. Contudo, tais

comentários eram construídos “a partir de artifícios narrativos que davam coesão à série” . 87

Por que mudaria de estratégia justamente no momento em que ganha mais liberdade e em

um espaço de extrema evidência? A meu ver isto não faria sentido, uma vez que o

distanciamento entre a voz que narra as crônicas e o autor pode ser percebido em diversos

momentos no decorrer da série.

Todavia, exigir linearidade intensa e infalível em uma coluna com tamanha duração

e que, pela própria definição do gênero, está tão sujeita à indeterminação histórica, seria

pedir demais, mesmo a um escritor da tarimba de Machado de Assis. Embora não acredite

que a autoria era um segredo, muito embora não tenha sido declarada nas crônicas, pode-se

cogitar que o momento político somente reforçaria uma suposta necessidade de máscara

que protegesse o funcionário público, em meio à caça aos monarquistas, deodoristas,

antiflorianistas enfim. Antes, explicaria algumas das possíveis ondulações pelas quais

passava a composição da “Semana”. Seria ilusório pressupor que a ferrenha censura

PEREIRA, “Introdução”, in: ASSIS. História de Quinze Dias. op. cit. p.41.87

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imposta pelo regime comandado por Floriano Peixoto não influenciasse a escrita da série.

Pensar na figura de um narrador-ficcional não pressupõe ou implica o descarnar do autor

empírico.

Mais uma vez, na tentativa de ver os dados a contrapelo, penso que a Gazeta de

Notícias assumia os possíveis riscos que os escritos de Machado pudessem trazer.

Obviamente, tendo em conta a reputação do cronista e a relação de muitos anos

estabelecida entre o escritor e o veículo de imprensa, todos os envolvidos sabiam que os

perigos eram mínimos. Seria muito difícil pressupor que o literato atacasse a própria folha

ou que a colocasse em maus lençóis perante o governo. Ao longo de “A Semana”, é

possível notar a discrição dos comentários que não costumam citar nomes próprios, a não

ser de “prata da casa”, ou ainda de mortos ilustres. Floriano Peixoto é nominalmente

mencionado, pela primeira vez, por ocasião de sua morte, quando há vários meses deixara o

poder . 88

Na mesma medida, é difícil imaginar que Ferreira de Araújo ou qualquer outro

membro da redação do periódico fizesse qualquer tipo de sanção aos artigos escritos por

autor tão renomado, gestados no calor do momento – muitas vezes na véspera da

publicação. Devido aos estilos de cada um deles, qualquer possível “imprudência” seria

esperada antes de Araújo do que de Machado. O narrador por ele criado se mostrou discreto

e judicioso durante a Revolta da Armada, ao contrário dos editoriais da Gazeta, como os

artigos intitulados “Cousas Políticas”, sabidamente de autoria do redator-chefe.

Defendo que em sua coluna Machado fazia o que bem entendia, sendo esta inclusive

uma condição para que aceitasse o trabalho. Desde prestar homenagem a um amigo que

“Os mortos não vão tão depressa, como quer o adágio; mas que eles governam os vivos, é coisa dita, sabida 88

e certa. Não me cabe narrar o que esta cidade viu ontem, por ocasião de ser conduzido ao cemitério o cadáver de Floriano Peixoto, nem o que vira antes, ao ser ele transportado para a Cruz dos Militares. Quando, há sete dias, falei de Saldanha da Gama e dos funerais de Coriolano que lhe deram, estava longe de supor que, poucas horas depois, teríamos notícia do óbito do marechal. O destino pôs assim, a curta distância, uma de outra, a morte de um dos chefes da rebelião de 6 de setembro e a do chefe de Estado que tenazmente a combateu e debelou.” ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 07 de julho de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 jul. 1895, p.1.

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falecera, como no caso do editor Garnier, até comentar o lançamento de livros de

conhecidos que lhe pediam favor, a decisão cabia ao autor. A propósito, geralmente os

comentários que, aparentemente, colocavam de lado a voz ficcional, mesmo que

momentaneamente, eram sobre literatura, imprensa, ou ainda, labores e personagens ligados

a ambas. A meu ver, isto dificulta a hipótese de que à série ou à maioria das crônicas possa

ser atribuída à opinião direta do escritor, uma vez que em geral são específicos os temas

que afastam o texto do que, via de regra, poderíamos chamar de padrão, com características

cultivadas e repetidas ao longo de cinco anos. Além do mais, comumente, estes comentários

aparecem localizados nos dois últimos parágrafos do texto, demonstrando que tudo fazia

parte de uma estratégia calculada e coerente do literato.

Se não se pode afirmar que todos os leitores sabiam quem era o autor incógnito da

série – aliás, nada se pode afirmar sobre “todos os leitores” –, ao menos é certo dizer que a

autoria não era segredo entre os homens de letras, que dão a impressão de, ao menos no Rio

de Janeiro, ser uma patota mais ou menos unida. O trabalho do mestre era conhecido e

reconhecido. Tendo isso em vista, era natural que as pessoas esperassem que Machado

utilizasse sua coluna, à qual se dedicava exclusivamente na época, para comentários não-

ficcionais. A julgar pelas afirmações de seu biógrafo, Magalhães Júnior, nosso literato

costumava ser solícito e usar dos meios possíveis para ajudar amigos e parentes. É fácil

prever que as colunas de “A Semana” fossem utilizadas para este fim, ainda que muito

raramente e com altas doses de parcimônia. As solicitações presentes nas correspondências

trocadas por Machado na década de 1890 comprovam tal dado. Por exemplo, Valentim

Magalhães: “Escrevo-lhe hoje, entre as magnificências tórridas deste Natal, para pedir-

lhe a fineza e o obséquio de dizer algo de Flor de Sangue, na sua próxima Semana. Como tem visto, os borrachudos da ‘crítica de escada abaixo’ têm me caído em cima e mordiscado impiedosamente, sem caridade nem senso crítico, sem equidade nem sintaxe. Ora [,] é preciso que o meu livro tenha um pouco de crítica também. Sei que achará defeitos e falhas grandes; mas há de encontrar-lhe qualidades, que as tem, como colorido, interesse, vigor, segundo o meu amigo já me fez a honra de dizer. [...] Não é elogio que lhe peço e bem ocioso é dizer-lho; o que eu não desejaria era o seu silêncio, que representaria uma reprovação, que, de certo, não está em seu

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pensamento. Desculpe, meu amigo, esta cartinha, que por si se explica e à situação do autor, e acredite na estima, respeito e consideração do

Amigo muito grato, Valentim Magalhães.” 89

A resposta a esta carta não está coligida no volume das missivas de Machado e seus

correspondentes; é bem provável que tenha se perdido. No entanto, sabe-se que ele atendeu

ao pedido de Magalhães em “A Semana” de 27 de dezembro de 1896. Nesta, o cronista

tecia um longo comentário sobre a obra do solicitante. Se o fazia para atender o amigo e

colega de letras, reforça-se que o cronista escrevia o texto às vésperas da publicação.

Naquela “A Semana”, após dizer que a Flor de Sangue era o sucesso do dia e tecer

alguns comentários elogiosos a Valentim Magalhães, afirmava que nos vinte anos em o

autor escrevia nem tudo teria o mesmo valor: “Quem compõe muito e sempre, deixa

páginas somenos; mas é já grande vantagem dispor da facilidade de produção e do gosto de

produzir”. Aquele era o ponto:

“[…] Tudo é que as obras sejam feitas com o fôlego próprio de cada um, e com materiais que resistam. Que Valentim Magalhães pode compor obras de maior fôlego, é certo. Na Flor de Sangue o que o prejudicou foi querer fazer longo e depressa. A ação, aliás vulgar, não dava para tanto; mal chegaria a metade. Há muita coisa parasita, muita repetida, e muita que não valia a pena trazer da vida ao livro. Quanto à pressa, a que o autor nobremente atribui os defeitos de estilo e linguagem, é causa ainda de outras imperfeições.

[...] Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço em que tenho o

talento de Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma coisa do que me parece bom e menos bom na Flor de Sangue. Que há no livro certo movimento, é fora de dúvida; e esta qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente os defeitos principais deste romance são dos que a vontade do autor pode corrigir nas outras obras que nos der, e que lhe peço sejam feitas sem nenhuma ideia de grande fôlego. Cada concepção traz virtualmente as proporções devidas; não se porá M. Bovary nas cem páginas de Adolfo, nem um conto de Voltaire nos volumes compactos de George Eliot.” 90

MAGALHÃES, Valentim, “Carta a Machado de Assis – 25 de dezembro de 1896.”, in: ASSIS, Machado de 89

Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011, p. 197-8.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 27 de dezembro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 90

Janeiro, 27 dez. de 1896, p.1.

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Os comentários não teriam agradado o solicitante, que, pelo o que vemos no bilhete,

esperava mais condescendência . Magalhães Júnior afirma que nas vezes em que Machado 91

se ocupou de livros em “A Semana”: “suas opiniões tinham sempre uma nota de seriedade,

quando não de severidade. Era um magistrado que só lavrava suas sentenças depois de

cuidadoso exame das provas dos autos – no caso os livros submetidos à sua apreciação.” 92

No caso da Flor de Sangue, ao menos, isso parece acertado.

Em 1895, quando é lançada a Revista Brazileira , liderada por José Veríssimo e 93

para a qual Machado colaborou com alguns trabalhos, os jantares promovidos pelos

editores eram comumente alvo de comentários elogiosos nas linhas de “A Semana”, como

mencionei acima. A valorização desse tipo de empreendimento, além de privilegiar seus

amigos, fazia com que a coluna se aproximasse da fama da Gazeta de incentivadora das

letras. Os encontros daquela nova publicação são considerados a antessala da Academia

Brasileira de Letras, que seria fundada em fundada em fins de 1896, com Machado

Sobre o entrevero, outro missivista, Magalhães de Azeredo, disse: “Pelo que vejo nas folhas do Rio, o 91

romance do Valentim não teve bom êxito, e só por culpa do autor. Esse homem de talento escreve há vinte anos para o público, e ainda não fez coisa capaz de resistir ao tempo. Em vez de adorar a Perfeição, imola tudo à Pressa, nome funestíssimo aos artistas. E pede indulgência para os defeitos do livro porque o compôs com demasiada rapidez. Eis uma desculpa que eu nunca daria. Pois livro é letra que se deve pagar em dia certo? Aí a questão, a meu ver, é de temperamento; o Valentim tem-no de jornalista, mais que de literato [...] ele processa sumariamente e condena com uma penada ao ostracismo Píndaro e Safo, Sófocles e Aristófanes, Horácio e Cícero, Petrarca e Shakespeare, e quantos outros! A sua apreciação na Semana é muito justa e elevada. Decerto não acredita, como eu não acredito tampouco, que o Valentim escreva jamais o livro capital que sonha e promete. Aquele talento de improvisador não dá para isso. E é pena, pois na verdade poucos entre nós têm amado e cultivado as letras com tanta sinceridade e constância como o Valentim; mas ele esquece o dito de Goethe: gênio é paciência...” AZEREDO, Carlos Magalhães de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900, op. cit. p.209.

MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol.3, p.343.92

A Revista Brazileira era gestada desde, pelo menos, outubro de 1894. A Gazeta de Notícias afirmava que 93

José Veríssimo, então reitor do Gymnasio Nacional, em colaboração com um “grupo de distintos escritores”, encetaria a publicação do periódico, que seria quinzenal. Acrescentava que a “bela obra” abria-se a todas as “opiniões sinceras e honestas”; “enciclopédico”, ocupar-se-ia, todavia, de assuntos nacionais, preferencialmente: “dará espaço largo à bibliografia pátria, e, graças a crônicas científicas, literárias e artísticas, trará os estudiosos ao corrente do que entre nós se faz nos diversos ramos da atividade social”. “Revista Brasileira”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 out. 1894, p.1. O primeiro número, dado a público em janeiro do ano seguinte, trazia um artigo intitulado “Machado de Assis”, de Araripe Júnior. Cf. ARARIPE JÚNIOR, “Machado de Assis”, Revista Brazileira, Rio de Janeiro/São Paulo: Laemmert & C. Ano 1, tomo 1, janeiro de 1895, p. 22-8.

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aclamado presidente. É natural que, envolvido como estava no projeto, usasse sua

“Semana” para divulgar, defender e enaltecer a empreitada.

Todavia, pensando nas várias possibilidades de leitura que um mesmo texto tem, os

que não soubessem da autoria de “A Semana” poderiam atribuir os comentários

diretamente à Gazeta. O texto poderia ser confundido com as seções editoriais do

periódico, uma vez que ocupava a posição a eles destinada durante a semana e não trazia

qualquer tipo de assinatura. Em 1896, por exemplo, é publicada uma carta do leitor Ferreira

Barbosa, advogado, dirigida a Ferreira de Araújo, em que há a seguinte passagem: “Tenho

lido na Gazeta de Notícias, seção ‘A Semana’, o que escrevestes com toda imparcialidade

sobre os últimos acontecimentos do Manhuassú, – resolvi-me a vós dirigir estas linhas

[…]” . É plausível supor que casos semelhantes tenham acontecido ao longo dos mais de 94

cinco anos de escrita da série.

No entanto, como ficará mais claro no tópico a seguir, a figura de seu narrador-

ficcional existia e era bem definida, não sendo possível que atribuamos os escritos à

opinião direta de Machado de Assis.

6. Tiques e cacoetes

Mais do que qualquer outro gênero literário, a crônica está sujeita à indeterminação

dos acontecimentos. Portanto, embora no primeiro texto da série estivesse esboçado o seu

perfil, a proposta deveria tomar corpo mais acentuado ao longo dos meses que se seguiam.

No caso específico de “A Semana”, em razão de sua enormidade, depois de ser definida a

sua feição, ela precisava ser mantida ou ainda adaptada. Por tais motivos, o autor tratou de

delimitar mais claramente os tiques pessoais que marcavam seu narrador, mas também o

FERREIRA BARBOSA, “O Conflicto de Manhuassú”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 mai. 1896, p.94

2.

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modo como os assuntos escolhidos eram abordados. A constância de tais características,

ainda que por algumas vezes tenham sido postas de lado, evidenciam a coerência que

Machado de Assis quis imprimir às suas últimas obras cronísticas.

Uma das características mais marcantes desse conjunto de crônicas é o suposto

descompromisso com as notícias que estão em evidência. O narrador perpassa os assuntos

mais graves, com maior destaque na Gazeta de Notícias e vai às notas que estão “à

margem” no jornal – telegramas, por exemplo, são bastante recorrentes durante toda a série,

entendidos pelo narrador ora como críveis, ora os trata como boatos. Ao trazer à tona a

arraia-miúda, os fatos de menor importância, o narrador não deixa de se referir às

ocorrências que finge ignorar, ou colocar em segundo plano. Mesmo que o foco seja

mantido nas notícias de menor monta, nas entrelinhas depreende-se a crítica às questões

que estavam em debate à época. Além disso, devemos lembrar que muitos daqueles

telegramas se referiam a grandes acontecimentos, logo, mesmo a galhofa com as notícias

telegráficas poderia ser um modo de comentá-los.

Daí se percebe ainda a autoridade que tem sobre os assuntos abordados, aliás,

declarada:

“Eu, quando vejo um ou dois assuntos puxarem para si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros ao relento, dá-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo à cena tão-somente a arraia-miúda, as pobres ocorrências de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada anônima, a estatística mortuária, as tentativas de suicídio, o cocheiro que foge, o noticiário em suma. É que sou justo, e não posso ver o fraco esmagado pelo forte. Além disso, nasci com certo orgulho. Não gosto que os fatos nem os homens se imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. (…) Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários.” 95

Evita assim o que seria um “resumo da semana”, o qual, poder-se-ia supor, seria a

função da crônica dominical. A arraia-miúda ficava em evidência enquanto o “cobertor da

atenção pública” era, nesta crônica em específico, puxado por notícias oriundas do Rio

Grande do Sul e de São Paulo. Embora o narrador não se refira diretamente aos dois

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 10 de julho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 95

jul. 1892, p.1.

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estados, a leitura dos jornais permite depreender que é deles que trata ao falar dos apóstolos

São Pedro e São Paulo, mostrando que o desvio poderia ser falso . Essas duas unidades da 96

federação representavam de modo conspícuo a instabilidade política e social do período.

Embora, num primeiro momento, o narrador tente demonstrar que suas escolhas

eram pautadas por princípios altruístas, ou de justiça, fica claro o poder de arbítrio com o

qual ele se investe. É dele, e somente dele, a autoridade para escolher quais das

“ocorrências de nada” aparecerão em sua coluna, seguindo critérios que satisfaçam suas

expectativas e anseios particulares. Sua opção é confessa, orgulhosa, em nada modesta. É o

cronista quem decide o que é transcendente e extraordinário, e isso pode se dar com quando

resolve por em evidências os personagens anônimos de um sopapo casual, de uma facada

de autoria desconhecida, da fuga de um cocheiro, etc. O alegado horror à superioridade 97

não abarca o seu orgulho próprio.

Ressalta-se aqui a reflexão de Marie-Ève Thérenty acerca do gênero cronístico

durante o século XIX. Para a autora, o modelo de escrita pessoal, constantemente evocado

pela crônica, finge estar a cargo da narração autobiográfica do cronista. Especificamente

sobre o gênero cronístico, Thérenty afirma que esses textos ganham cada vez mais um

caráter personalista, já que as novidades são subjetivamente selecionadas pelo autor e essa

arbitrariedade não encontra mais barreiras . O cronista cria sua própria hierarquia da 98

informação e a crônica ganha cada vez mais um tom de conversação, criando uma ligação

entre autor e leitor, deixando de ser conduzida pela notícia mais importante para ir às

John Gledson menciona essa analogia na edição da série anotada. Ver: ASSIS, Machado de. A Semana: 96

crônicas (1892-1893). Edição, introdução e notas de John Gledson. op. cit. p. 85, nota 1. Além disso, Pedro e Paulo são os nomes dos personagens gêmeos do romance Esaú e Jacó, também de Machado de Assis. Lembrar ainda que o Rio Grande do Sul era antes denominado Província de São Pedro.

Gabriela Betella afirma que algumas crônicas de “A Semana” ganham o recurso adicional de uma espécie 97

de “mote” que se repete durante a narrativa, reforçando o “fundo ideológico” de quem não se compromete muito, de quem não tem nada com isso, mas que, no entanto, mantém a superioridade da palavra final, de dono da verdade. Cf. BETELLA, Gabriela Kvacek. Narradores de Machado de Assis: a seriedade enganosa do Conselheiro (Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e a simulada displicência das crônicas (Bons Dias! e A Semana). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Nankin, 2007. p.185.

THÉRENTY, Marie-Ève. “La crónica en el periódico francés del siglo XIX: ¿caso irónico, rúbrica 98

mediática o taller literario?” In: Boletín, vol. XI, núms. 1 y 2, Mexico, primer y segundo semestres de 2006. Universidade Nacional Autónoma de Mexico, Instituto de Investigaciones Bibliográficas, p.140.

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fofocas, às miudezas . A análise de “A Semana”, em toda a sua extensão, revela que nela 99

há hierarquização dos fatos. Deste modo, as reflexões de Thérenty acerca da França

oitocentista podem suscitar questionamentos acerca da relação entre literatura e imprensa

no Brasil e sobre a influência do jornal sobre a sociedade da época, e mesmo de possíveis

aproximações com o “modelo francês”. Contudo, neste trabalho as afirmações possíveis

giram em torno das singularidades da série em questão.

Nas ocasiões em que o narrador aborda o próprio procedimento, que por si só é

outra característica a ser analisada, alterna os motivos para justificá-lo. O enfado causado

pelas notícias é um deles. Em texto de 1892, afirma que farto de vendavais, naufrágios,

boatos, acionistas e diretores – todas notícias daquela semana –, e ainda “farto de mim, de

ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um anúncio sem quietação”, preferia ir à páginas

de anúncios, passando em revista “as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos,

magnésias, sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas de leite, cobradores,

coqueluche, hipotecas, professores, tosses crônicas...” . Mais um exemplo do 100

aborrecimento causado pelos acontecimentos noticiados nos dias anteriores pode ser notado

no seguinte trecho: “Não quis saber de boatos, nem sucessos, nem dos movimentos de mar

e terra, nem da deposição e reposição do governador das Alagoas, abertura de congresso,

nada, nada.” 101

Outra justificativa aparecia para o desvio das grandes manchetes: seus escritos

seriam destinados às pequenas notícias, não cabendo a ele abordar os grandes assuntos. Por

ocasião da morte do Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República

brasileira, que ocorrera cinco dias antes, afirma:

“Lo fútil, el detalle, lo cotidiano, se convierten en temas predilectos de esta crónica sin pretensión, que se 99

quiere llena de sentido común, libre de “hablar de una fruslería”, hablar de las pequeñas tonterías de lo cotidiano y hacer de lo minúsculo lo esencial.” Idem, p.153.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 17 de julho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 100

17 jul. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 05 de maio de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 101

05 mai. 1895, p.1.

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“Para um triste escriba de coisas miúdas, nada há pior que topar com o cadáver de um homem célebre. Não pode julgá-lo por lhe faltar investidura; para louvá-lo há de trocar de estilo, sair do comum da vida e da semana. Não bastam as qualidades pessoais do morto, a bravura e o patriotismo, virtudes nem defeitos, grandes erros nem ações lustrosas. Tudo isso pede estilo solene e grave, justamente o que falta a um escriba de coisas miúdas.” 102

À sua tarefa ligava as pequenas ocorrências cotidianas. Os acontecimentos e homens

ilustres careciam de um estilo diferente do seu e, portanto, seriam destinados a outras

colunas. As coisas miúdas aparecem ao longo de toda “A Semana”. É delas que vem o

material para a crônica, muito embora fossem desprezadas pelos demais autores do jornal.

O narrador chega a se comparar a Jesus na tentativa de demonstrar a injustiça de que os

pequenos acontecimentos eram vítimas:

“Farei como Jesus, em relação aos casos miúdos da semana, que os grandes querem abafar e pôr de lado. Nesta semana fez-se história e larga historia, uma pública, outra particular ou secreta, que não sei se são sinônimos, nem estou para ir agora aos dicionários; mas fez-se muita história, e ainda se fará história, ofício que não é meu. Não é meu ofício fazê-la nem contá-la. Se pudesse adivinhá-la, sim, senhor. [...] Não iria por boatos, que geralmente não se realizam, nem por induções, que falham muita vez. Ouço desde pequeno (e ainda agora ouvi) que os nossos negócios se resolvem pelo imprevisto. Pois é o imprevisto que eu quisera ver como se estivesse acontecendo, e contá-lo sete dias antes. Assim os leitores aprenderiam comigo, não a história que se aprende nos ginásios e faculdades, não a que se vende nas livrarias, mas a que anda encoberta, como o céu desta semana.” 103

Não era a primeira vez que o “messias da arraia-miúda” contrapunha o seu labor ao

do historiador. Em 12 de junho de 1892, era publicada a oitava crônica de “A Semana”. Ela

é importante por marcar alguns posicionamentos do narrador em relação ao ofício do

cronista, seu procedimento e algumas considerações sobre as possibilidades de leitura

daqueles textos:

“Estava eu muito descansado, lendo as atas das sociedades anônimas, quando dei com a Companhia Fábrica de Biscoitos Internacional. Nada mais natural, uma vez que ela estava impressa; mas ninguém me há de ver contar nada sem um pensamento, uma

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de agosto de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 102

28 ago. 1892, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 30 de agosto de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 103

30 ago. 1896, p.1.

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descoberta, uma solução, um mistério, algo que valha a pena ocupar a atenção do leitor. Vamos aos biscoitos.” 104

Principiava então por dizer que encontrara um caso que, embora não aparentasse

maior importância, valia a pena ser contado. O narrador revelava, portanto, que não dava

ponto sem nó e que mesmo durante sua leitura descansada estava atento ao que poderia

virar matéria de crônica. Contrariava uma suposta lógica que privilegiaria as notícias de

destaque para ir a uma ata de sociedade anônima, terreno árido e miúdo dos periódicos,

porém, certo que com ela conseguiria entreter o leitor. Ficava denotada ainda a petulância

do cronista que se considerava alguém capaz de perceber coisas espetaculares onde o vulgo

só enxergaria o natural.

Na continuação, afirma que a ata da diretoria da tal companhia de biscoitos tratava

de um grande incêndio que teria destruído a fábrica e citava a Companhia de Artefatos de

Folha de Flandres como fornecedora das latas que acondicionavam o seu produto até o

sinistro, em dezembro. “Ecco il problema e a solução”, dizia o narrador. O “segredo do

torvelinho econômico” dos últimos anos – leia-se o Encilhamento – estava então revelado:

as sociedades anônimas, que pareciam uma “enxurrada”, formavam na verdade um sistema.

Elas seriam muitas porque a cada fábrica de biscoito correspondia uma de artefatos de folha

de flandres. Adiantava ainda que não poderia fazer uma lista de exemplos: “estou

escrevendo a crônica; mas o leitor, que apenas se dá ao trabalho de lê-la”, dizia, poderia

pensar em sociedades com respectivos complementos; contudo, uma listagem era

justamente o que fazia citando um “Banco dos Pobres” que precisaria de um “Banco da

Bolsa”, um “Banco Construtor” de um “Banco dos Operários” e vice-versa; “Companhia

Farmacêutica” seria a primeira parte da “Companhia Manufatora de Caixões” e assim por

diante. Por conseguinte, estavam as sociedades anônimas reduzidas pela metade do que se

supusera primeiramente e, portanto, ficava acabado o problema.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 12 de junho de 1892”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 104

12 jun. 1892, p.1.

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Do detalhe de uma ata, aparentemente sem importância alguma, o cronista extrai a

matéria do texto que, obviamente, não pararia ali, avançando além de atas e da enxurrada

de um passado recente. Para arrematar a sua genial solução, o narrador asseverava:

“Creiam-me, não há problemas insolúveis. Tudo neste mundo nasce com a sua explicação em si mesmo; a questão é catá-la. Nem tudo se explicará desde logo, é verdade; o tempo do trabalho varia, mas haja paciência, firmeza e sagacidade, e chegar-se-á à decifração. Eu se algum dia for promovido de crônica a história, afirmo que, além de trazer um estilo bárbaro próprio do ofício, não deixarei nada por explicar, qualquer que seja a dificuldade aparente, ainda que seja o caso sucedido quarta-feira, na Câmara, onde, feita a chamada, responderam 103 membros, e indo votar-se, acudiram 96, havendo assim um déficit de sete. Como simples crônica, posso achar explicações fáceis e naturais; mas a história tem outra profundeza, não se contenta de coisas próximas e simples. Eu iria ao passado, eu penetraria...” 105

Em tom quase didático, dizia aos leitores que não havia problema sem solução; o

que existiria era a desatenção para suas soluções que já nasciam embutidas nos próprios

impasses. O interessante é que ele diferencia claramente a crônica da história. O ofício de

historiador, com seu estilo bárbaro, seria mais profundo que o gênero cronístico. Este

poderia se contentar com esclarecimentos mais rasos e simples. Todavia, na leitura a

contrapelo, percebe-se que o argumento do – até então – cronista é de que executaria a

tarefa do historiador de maneira mais eficiente, não deixando nada por explicar. Ora, tendo

em vista a presunçosa afirmação de que catara soluções onde a maioria só veria problemas,

a crônica, desta lavra específica, não estava tão atrás de seu suposto conceito de história. A

questão era toda de estilo. Ao, aparentemente, contribuir para o argumento de que a crônica

girava em torno de assuntos leves e sem profundidade, o narrador, na verdade, incute a

ideia de que o que faltava ao gênero fosse alguma pavonice. Isso estaria muito de acordo

com a chave de leitura proposta no tópico anterior. Mais uma vez, a crônica criticava o uso

das palavras para a atribuição de sentidos e status que não se sustentavam na prática.

De uma pequena fagulha, pescada em uma ata de assembleia, o narrador passa a

discutir história e, em grande medida, o seu próprio ofício. O fazia por meio da comparação

do estilo de ambas e não de seu conteúdo propriamente dito. Este não é, sobremaneira, um

Idem. (grifos meus).105

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exemplo isolado de “A Semana”. Retomando a crônica que trata da morte do Marechal

Deodoro, veremos que o “escriba de coisas miúdas”, mais uma vez, compara crônica e

História. Com o finado vinha ainda outra questão que servia para complicar a vida do 106

cronista: segundo o artigo 8º das Disposições transitórias da Constituição de 24 de

fevereiro de 1891, o fundador da República era Benjamin Constant; todavia, segundo os

discursos parlamentares, do dia 23 e 25, o lugar cabia ao Marechal Deodoro. Uma vez que

as informações contraditórias tinham uma fonte comum, ou seja, o Congresso Nacional,

como alguém poderia saber qual era o fundador do regime? Na imprensa também reinava a

mesma incerteza.

Após a confissão dos apuros em que se encontrava, o escriba de miudezas tratava da

História, a qual por si só, entretanto, mais uma vez não parecia dar conta da dificuldade que

a disputa entre os defensores de Constant e os de Deodoro trazia:

“Eu, porém, que não sou Igreja católica, nem folha anglo-saxônica, não tenho a autoridade de uma, nem a índole da outra; pelo que, não me detenho ante a contradição das opiniões. Quando muito podia apelar para a História. Mas a História é pessoa entrada em anos, gorda, pachorrenta, meditativa, tarda em recolher documentos, mais tarda ainda em os ler e decifrar. Assim, pode ser que, entre 1930 e 1940, tendo cotejado a Constituição de 91 com os discursos de 92, e os artigos de jornais com os artigos de jornais, decida o ponto controverso, ou adote a ideia de dois fundadores, se não de três; mas onde estarei eu então? Se guardar memória da vida, terei ainda de cor os hinos de ambas as capelas. Não terei visto a catedral única.” 107

O problema, pois, além de não lhe dizer respeito, não encontraria solução fácil.

Quem sabe muitos anos depois, a pachorrenta trouxesse alguma alternativa, mas o cronista

já não existiria e, então, para que deter-se em tal impasse? Fica afirmado o suposto

desinteresse pelas questões graves, o que é uma constante ao longo de toda a série. O

narrador repetidamente altera a suposta hierarquia dos acontecimentos usando critérios

particulares. Reparemos também que, mais uma vez, o cronista trata da superficialidade de

discursos e títulos. Se não importava para ele, menos ainda para os mortos sobre os quais se

debatia. A discussão sobre o nome do fundador do novo regime parecia inútil aos olhos do

ASSIS, Machado de. “A Semana – crônica de 28 de agosto de 1892”. op. cit.106

Idem. (grifos meus).107

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semanista. Ao tratar com aparente displicência os fatos mais comentados no momento, o

narrador apela para miudezas, as notícias consideradas de pouca monta.

Em meio ao que chamou de “estação eleitoral” com toda a “florescência de

circulares políticas”, preferia evocar a musa da crônica:

“Quanto às outras partes do programa da circular... Mas aonde vou eu neste andar administrativo e político? Musa da crônica, musa vária e leve, sacode essas grossas botas eleitorais, calça os sapatinhos de cetim, e dança, dança na pontinha dos pés, como as bailarinas de teatro; gira, salta, deixa-te cair de alto, com todas as tuas escumilhas e pernas postiças. Antes postiças que nenhumas.” 108

Era a musa vária e leve a inspirar o cronista na execução de seu ofício. Era a mesma

musa que era valorizada em oposição à gorda pachorrenta que, depreende-se, nenhum

proveito teria em vida ao narrador.

Já na década de 1870, em “História de Quinze Dias”, Machado de Assis havia

brincado com as definições de história e de crônica. O narrador da série, publicada pela

Illustração Brasileira e assinada pelo pseudônimo Manassés, dizia que:

“Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias.

E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de um historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar.” 109

Como afirmou Leonardo A. M. Pereira acerca deste texto, a diferenciação inicial

entre o historiador e o simples contador de histórias, ou cronista, residia na objetividade do

relato de cada um deles. O primeiro estava preso à narrativa dos fatos e o segundo poderia

utilizar-se de devaneio e criatividade. Na explicação seguinte, o narrador dizia que, ao

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 15 de outubro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 108

15 out. 1893, p.1. (grifos meus). MANASSÉS, Machado de Assis. “História de Quinze Dias – 15 de março de 1877.”, in: _____________. 109

História de Quinze Dias. op. cit. p.175.

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contrário das histórias contadas sob a perspectiva popular, o historiador ornava o seu relato

com erudição. Para Pereira, a distinção se dava, portanto, no sentido social dos escritos,

associada à objetividade . Também daquela dita, o rebuscamento de estilo dava a tônica e 110

o diferencial dos escritos, muito embora, em uma leitura mais atenta, o cronista não visse

grandes vantagens nos textos pomposos.

Na via contrária, a história não poderia desprezar as migalhas de que era feita a

crônica. Ainda em 1892, o narrador asseverava que: “‘Quem se não preocupar com saber (escreveu Grimm) que tal estava o

tempo em Roma quando César foi assassinado, nunca há de saber história’. Há aqui uma grande verdade. Quando não a haja para o resto do mundo, poderemos crer que há para nós.

[...] Os superficiais contentam-se em ler a notícia do voto; os curiosos irão até a leitura dos nomes dos senadores favoráveis e diversos. Os espíritos profundos, desde que aceitem a doutrina de Grimm, procurarão saber se na noite da sexta-feira chovia ou ventava” . 111

Os historiadores de espíritos profundos seriam aqueles que justamente se

prenderiam aos detalhes, às miudezas, tal qual fazia o semanista. A primazia recairia, de

novo, sobre a crônica.

É interessante notar que Machado de Assis insere todas essas reflexões de seu

narrador sobre a crônica, várias vezes contraposta à história, nos meses iniciais de “A

Semana”. Ampliando a ideia de que o primeiro texto delineava o perfil que a série teria,

isso pode indicar que estava entre as preocupações do literato definir o que ele entendia por

crônica, por meio de suas tiradas jocosas e de suas ponderações que extrapolavam os

acontecimentos semanais e, por vezes, a lógica. Como se pode depreender da citação de

“História de Quinze Dias”, escrita quase vinte anos antes, aquela não era uma questão nova

para o Machado-cronista.

Reforça-se assim a tese que defendo neste capítulo, ou seja, a da inovação que o

literato traz à crônica dominical da Gazeta de Notícias, deixando o simples resumo semanal

PEREIRA, “Introdução”, in: ASSIS. História de Quinze Dias. op. cit. p.15. 110

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 13 de novembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de 111

Janeiro, 13 nov. 1892, p.1.

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em prol de um texto fluído que ligava os assuntos abordados, à primeira vista desconexos,

por meio de uma escrita elaborada e inteligente. Isso se aproxima do que havia feito em

outras séries, mas que se configurava em novidade na coluna de domingo da folha. Por

meio de argumentação leve, que Machado entendia por seu ofício, ele contribuía para

projetar ao leitor a inovação que empreendia nas páginas daquele periódico.

Isso encampa a hipótese defendida por Ana Flávia Cernic Ramos, ou seja, de que as

crônicas faziam parte de um projeto literário maior de Machado de Assis. A autora afirma

que a partir dos debates travados acerca de O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, e das

polêmicas com os defensores do Naturalismo e do Realismo, Machado expandiria os

questionamentos sobre a literatura a outros gêneros, conformando então “uma frente de

batalha ante as questões colocadas pela ―Nova Geração, pela crise das instituições

políticas e sociais e perante o advento de novas teorias científicas.” Ramos inclui a 112

produção cronística machadiana das últimas duas décadas do XIX neste projeto:

“Em um momento em que as novas escolas literárias diziam-se cada vez mais ligadas a um discurso científico, objetivo, moderno, comprometido com a verdade e com a transformação da sociedade, criar um narrador, cuja proposta é testar essas verdades, reconhecer o caráter retórico que esses discursos acabaram adquirindo, não deixa de ser uma continuidade do que Machado já fizera, por exemplo, em Papéis Avulsos” 113

Pode-se cogitar que a delimitação do gênero cronístico era componente importante

desta empreitada. Ao incutir em suas séries as comparações entre a crônica e história, a

visão que ele tem desta última aproxima-se de um ideal técnico, de recolhimento de fatos.

Isso era entremeado por firulas de estilo que em nada acrescentavam para o conteúdo do

texto, virando alvo de galhofa para nosso narrador. Fortalece-se assim a chave de leitura

aqui proposta: o modo como as coisas eram narradas era valorizado, e não as coisas em si.

Nas outras referências que fez à história, ela aparece reconciliada com a crônica, no

sentido de que o cronista torna-se um historiador, só que de acontecimentos suaves. Isto

RAMOS, op. cit. p.25. 112

Idem, p.26.113

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quer dizer que não contraria a sua posição inicial de que o gênero cronístico estaria

irremediavelmente ligado à leveza e às coisas miúdas. Chega, inclusive, a se definir como

“um pobre historiador de coisas leves”, ao tratar de atentados anarquistas ocorridos na

Europa:

“Há uma leva de broquéis, vulgo dinamite, que parece querer marcar este final de século. De toda a parte vieram esta semana notícias de explosões, e aqui mesmo houve tentativa de uma. Digam-me que paz de espírito pode ter um pobre historiador de coisas leves, para quem a pólvora devia ser, como os maus versos, o termo das cogitações destrutivas.” 114

Acrescentava que seus comentários deveriam ter “um pouco de rabugem” e “outro

pouco de injustiça”. A anarquia poderia acabar sendo uma necessidade política e social.

Mesmo a sintaxe e a ortografia poderiam ser dispensadas, uma vez que a anarquia primeira

seria a da língua: “Antes do último ministro terá expirado o derradeiro gramático.” Tratava

então de sua obrigação semanal do ponto de vista dos leitores, aos quais não interessariam

as agruras e reinações do narrador:

“Há de ser rabugem, creio. Acordei hoje mal disposto. Sei que nada tendes com disposições más nem boas, quereis a obrigação cumprida, e, se estou doente, que me meta na cama. Que me meta na cova, se estou morto. Não, a cova há de ser quente como trinta mil diabos. A terra fria que tem de me comer os ossos, segundo a fórmula, não será tão fria, neste tempo em que tudo arde. Lá mesmo o verão me flagelará com o seu açoite de chamas.” 115

É notório que a comparação entre a “gorda pachorrenta” e crônica se dê

repetidamente em termos de estilo. Ao que parece, nosso literato tinha uma crítica bastante

delimitada à importância dada às narrativas na época.

A História e o ofício do historiador foram abordados em outras ocasiões em “A

Semana”. Elas aparecem novamente em comparação ao trabalho do cronista, nem sempre

em oposição. Chega a colocar a literatura e a história no mesmo patamar, ao afirmar que o

que os poetas diriam em verso, sem documentos, os historiadores o fariam em prosa,

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 114

Janeiro, 18 fev. 1894, p.1. (grifos meus). Idem. 115

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documentada . Também em 1894, dá a conhecer a sua predileção no momento de escolher 116

os fatos a serem abordados:

“Um mestre de prosa, autor de narrativas lindas, curtas e duradouras, confessou um dia que o que mais apreciava na história, eram as anedotas. Não discuto a confissão; digo só que, aplicada a este ofício de cronista, é mais que verdadeira. Não é para aqui que se fizeram as generalizações, nem os grandes fatos públicos. Esta é, no banquete dos acontecimentos, a mesa dos meninos.” 117

Em 1895, depois de dizer que a história é, muitas vezes, um trocadilho , volta à 118

tentativa de defini-la: “A história é isto. Todos somos os fios do tecido que a mão do tecelão vai

compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde nas cores de que é feito o fundo do quadro.” 119

Defende, portanto, que as miudezas, descartadas pela História, com “H” maiúsculo

e de ares científicos, têm importância na trama que é tecida pelo passar do tempo. Nenhum

dos fios era digno de descarte, ainda que servissem para compor o fundo desbotado de um

quadro. Reafirmaria esta ideia ainda naquele ano, ao dizer que os fatos abordados pela

crônica eram “migalhas da história, mas as migalhas devem ser recolhidas” , tal qual fazia 120

o cronista.

A propósito dessa ideia de recolher fragmentos do tempo transcorrido, outra

característica do narrador de “A Semana” são as constantes reminiscências ao passado e a

estranheza com a qual encara o presente. É como se o comentador fosse um senhor entrado

em anos que lembra com clareza os fatos ocorridos em sua infância e juventude e os

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 11 de março de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 116

11 mar. 1894, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de novembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 117

Janeiro, 18 nov. 1894, p.1. (grifos meus). Cf. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 13 de janeiro de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de 118

Janeiro, 13 jan. 1895, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 07 de julho de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 119

07 jul. 1895, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 11 de agosto de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 120

11 ago. 1895, p.1.

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compara com o que acontece no momento em que escreve a crônica. Este senhor se coloca

diante do mundo, como um espectador que observa, estranha e, por vezes, lamenta o que

observa. Ele parece desorientado com o turbilhão de acontecimentos, a velocidade das

transformações e com a mudança de hábitos. Tudo isto aparenta deixá-lo saudoso e até

mesmo melancólico . 121

A lembrança das antigas procissões de São Sebastião, por exemplo, e a comparação

com as que aconteciam na época de escrita de “A Semana”, são alvo de reflexão:

“Não me condenem as reminiscências de Jericó. Foram os lindos olhos de uma judia que me meteram na cabeça os passos da Escritura. Eles é que me fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo único sentido verdadeiro. Tal foi a causa de não ir, desde anos, à procissão de São Sebastião, em que a imagem do nosso padroeiro é transportada da catedral ao Castelo. Sexta-feira fui vê-la sair. Éramos dois, um amigo e eu; logo depois éramos quatro, nós e as nossas melancolias. Deus de bondade! Que diferença entre a procissão de sexta-feira e as de outrora. Ordem, número, pompa, tudo o que havia quando eu era menino, tudo desapareceu. Valha a piedade, posto não faltaram olhos cristãos, e femininos, — um par deles, — para acompanhar com riso amigo e particular uma velha opa encarnada e inquieta. Foi o meu amigo que notou essa passagem do Cântico dos Cânticos. Todo eu era pouco para evocar a minha meninice...” 122

No ano seguinte, ao tratar do reprovável ato de elogiar-se a si mesmo, infração na

qual incorria, diga-se de passagem, asseverava que não conhecia o autor da máxima que

dizia que o “louvor em boca própria é vitupério”, mas que recordava a ter ouvido diversas

vezes quando pequeno: “Memórias da infância! Tempos em que eu tinha corridas de

cavalos sem quinielas; eram cavalos de pau.” 123

A amargura causada pela perda das ilusões, arrancadas pelos saberes técnico-

científicos, também são alvo da pena do cronista. Em 1896, tratou das declarações do

médico italiano Abel Parente, que escrevera ao Jornal do Commercio contestando a crença

de que eucaliptos pudessem curar a febre amarela, “ou, cientificamente falando, o tifo

Cf. SOUZA, Ana Paula Cardozo de, op. cit.121

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 29 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 122

29 jan. 1893, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 14 de janeiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 123

14 jan. 1894, p.1.

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icteróide”. Alegava que o ponto em que a mão do “rude clínico rasgou violentamente o véu

que me cobria os olhos” foi aquele em que disse que, desde o tempo de Hipócrates, a

medicina se ufanaria de apenas três remédios verdadeiramente eficazes e específicos: o

mercúrio contra a sífilis, o quinino contra a malária, o salicilato de sódio contra o

reumatismo articular.

“Não acho, não conheço, não posso inventar palavras que digam a prostração da minha alma depois de ler o que acabais de ler. Vós, filhos de um século sem fé, podeis ler isso sem abalo; sois felizes. Ainda assim, como simples efeito intelectual, é impossível que aquele trecho da carta vos não haja trazido alguma turvação às ideias. Imaginai que terá sido com este pobre de mim que, mental e moralmente, vivia do contrario, não achava limites aos específicos. Li muito Molière, muito Bocage, mas eram pessoas de engenho, sem autoridade científica; queriam rir. A pessoa que nos fala agora, tem um poder incontestável, é ungido pela ciência. [...]

Mas, como ia dizendo, criei-me e vivi na veneração da farmácia. Perdi muita crença, o vento levou-me as ilusões mais verdes do jardim da minha alma; não me levou os específicos. Vem agora, não um homem qualquer, mas um competente, um áugure, e declara público e raso que, no capítulo dos específicos, há só três; tudo o mais ilusão. Criatura perversa, inimiga dos corações humanos, que direito tens tu de amargurar os meus últimos dias, e os alguns desgraçados, como eu?” 124

Entrevê-se aí o deboche do narrador para com o clínico europeu e, por conseguinte,

com os saberes médicos do fim do século. No início dessa mesma “A Semana”, o cronista

lembrava ao leitor que o articulista era o mesmo médico que anos antes causara escândalo

na cidade ao defender um método de esterilização da mulher, que passara a ser conhecido

como “sistema do Dr. Abel Parente”. Naquela ocasião, sem citar o nome do médico, o

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 26 de janeiro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 124

26 jan. 1896, p.1.

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cronista havia mencionado um remédio que preveniria a concepção para sempre e que era o

buchicho da Rua do Ouvidor: “Dizem até que se anuncia, mas eu não leio anúncios” 125

As constantes referências aos bondes elétricos em contraste com os puxados por

burros encaixam-se nessa oposição entre o presente, cientificista e modernizador, e o

passado, visto com certa melancolia.

“Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, vistos que há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bondes tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as coisas, espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus semelhantes.

Convenho que, durante uns quatro meses, os bondes elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas murchas, a todas as coisas decaídas.” 126

Comentar a feitura do texto era outra das manias do narrador de “A Semana”. Em

1892, reclama da falta de espaço ou de planejamento no momento de escrita: “E aí tens o

que fizeste, pena de trinta mil diabos, aí tens o que acabas de fazer; gastaste o tempo todo

em explicações, graças ao sestro de não arranhar o papel, mas descer ao de leve por ele

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 29 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 125

29 jan. 1893, p.1. Na sequência do texto há a seguinte passagem: “No tempo em que os lia, até os ia catar nos jornais estrangeiros. Um destes, creio que americano, trazia um de excelente remédio para não sei que perturbações gástricas; recomendava porém, às senhoras que o não tomassem em estado de gravidez, pelo risco que corriam de abortar... O remédio não tinha outro fim senão justamente este, mas a polícia ficava sem haver por onde pegar do invento e do inventor. Era assim, por meios astutos e grande dissimulação, que o remédio se oferecia às senhoras cansadas de aturar crianças.” Na crônica de 1896, diz: “Não se falou mais nisso. Italiano, patrício de Dante, é provável que o Dr. Abel Parente haja dividido a clínica de parteiro esterilizador entre dois versos do poeta, dizendo a uns embriões: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate; — e a outros embriões: Venite a noi parlar, s'altri nol niega. Assim venceu um princípio, e nós fomos cuidar de questões novas, civis ou militares, políticas ou judiciárias.” ASSIS, “A Semana - Crônica de 26 de janeiro de 1896”, op. cit.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 23 de outubro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 126

23 out. 1893, p.1. (grifos no original).

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abaixo. Glissez, mortels, n'appuyez pas. É gracioso, mas para outros ofícios.” No mesmo 127

ano reclamava da quantidade de acontecimentos importantes a serem comentados:“Os acontecimentos parecem-se com os homens. São melindrosos, ambiciosos,

impacientes, o mais pífio quer aparecer antes do: mais idôneo, atropelam tudo, sem justiça nem modéstia... E quando todos são graves? Então é que é ver um miserável cronista, sem saber em qual pegue primeiro. Se vai ao que lhe parece mais grave de todos, ouve clamar outro que lhe não parece menos grave, e hesita, escolhe, torna a escolher, larga, pega, começa e recomeça, acaba e não acaba…” 128

Em outros casos, a queixa se dava porque as semanas não ofereciam material

suficiente para comentário. O cronista apelava, então, à imaginação: “Velha imaginação,

onde vais tu, pelos caminhos do sonho? ” e acrescentava que “Para crônica, é pouco; mas

para matar o tempo, sobra.” Três anos depois, traçava um arrazoado semelhante, 129

declarando que isso era parte do trabalho de pedreiro literário: “Digo estas coisas assim, à

laia de trocado engenhoso, para tapar o buraco de uma ideia. É o nosso ofício de pedreiros

literários. A vantagem é que, enquanto trabalhamos de trolha, a ideia aparece, ou a memória

evoca um simples fato, e a pena refaz o aço, e o escrito continua direito” . 130

Outras de suas supostas estratégias de composição se dariam em termos mais

práticos. Em 1893, por exemplo, afirmava que antes de relatar a semana, costumava “passar

pelos olhos os jornais dos sete dias”. Era um modo de refrescar a memória, mas que,

eventualmente, servia para achar uma ideia que lhe falhava: “As ideias estão em qualquer

coisa; toda a questão é descobri-las.” 131

Podemos cogitar ainda que o ato de revelar aos leitores as estratégias supostamente

utilizadas para a elaboração de seus escritos também fosse uma maneira de discutir as

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 25 de setembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de 127

Janeiro, 25 set. 1892, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 04 de dezembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de 128

Janeiro, 04 dez. 1892, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 12 de março de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 129

12 mar. 1893, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 24 de maio de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 130

mai. 1896, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 11 de junho de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 131

11 jun. 1893, p.1.

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possibilidades que as escolhas narrativas traziam a um mesmo assunto. A elevação de certos

termos, discutida na primeira “A Semana”, era semelhante aos excessos de estilo dos

historiadores apresentados em outras crônicas. Era comparável ainda às táticas de um

pedreiro literário, comentadas acima, com trocadilhos engenhosos tapando buracos de

ideias. Entre os assuntos advindos da imaginação e os principais casos de cada semana, o

cronista tecia um texto que os englobava de modo compreensível, unindo assuntos

aparentemente dispersos num todo coerente. Discuto o material empregado por nosso

cronista-pedreiro no próximo capítulo.

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CAPÍTULO II

Leituras e usos do jornal.

A intrínseca ligação entre a literatura e a imprensa no Brasil oitocentista faz da

análise do veículo original no qual as obras foram publicadas algo essencial para a sua

compreensão. É inegável que a literatura brasileira no século XIX acontecia na imprensa,

tanto por ser o jornal o difusor primeiro de algumas obras, quanto pelos debates literários

que se travavam nas páginas dos periódicos. A análise das modificações pelas quais

passaram esses veículos pode fornecer elementos que permitam entrever o modo como

eram recepcionados e, em certa medida, lidos os jornais de determinada época. As

modificações e ajustes em um órgão de imprensa estão diretamente relacionados à

necessidade de adequação às demandas do público leitor.

A Gazeta de Notícias teve papel importante nas transformações do jornalismo

brasileiro da segunda metade do século XIX. Este foi o momento em que as pequenas

folhas deram lugar aos grandes jornais, com vistas na obtenção de lucro e preocupados em

atingir o grande público, em um processo de “massificação cultural” . Como se verá mais 1

adiante, a Gazeta usava a literatura como um dos fatores para inovar a imprensa

oitocentista no Brasil, ou, ao menos, dizia fazê-lo.

Para além da revelação de características da imprensa do período, a análise de seu

veículo original revela aspectos que não são imediatamente identificáveis em uma leitura

apenas das crônicas. Conhecer a Gazeta de Notícias é o primeiro passo para desvendar “A

Semana”. Por mais que o foco deste trabalho resida na série de crônicas, é importante

ressaltar que ela é uma parte do periódico e não o contrário. A coerência interna buscada na

ordenação de suas colunas, a posição assumida entre jornalistas e o restante da sociedade, o

seu discurso contraposto às suas práticas e o uso que fazia da literatura em suas páginas são

importantes para entender, em suma, o papel da série enquanto elemento da lógica do

PEREIRA, O Carnaval das Letras: Literatura e Folia no Rio de Janeiro do século XIX. op. cit. p.39.1

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periódico. As mudanças internas e as transformações nas colunas que a cercavam e,

sobretudo, a visão que Machado de Assis tinha da imprensa e de seu próprio trabalho serão

alvo de análise neste capítulo.

Acompanhar os passos do escritor de “A Semana” na construção de sua série, ao

longo de meia década, implica seguir as mudanças da folha que abrigava aquelas crônicas.

É uma via de mão-dupla, pois permite distinguir as estratégias utilizadas por Machado de

Assis para a adequação de sua coluna ao perfil da Gazeta de Notícias, um periódico

respeitado e de sucesso na época. Permite ainda ver o uso que Machado fazia daquelas

páginas na construção de suas crônicas, além de lançar hipóteses sobre sua particular leitura

do periódico e o impacto das mudanças e adversidades pelas quais passa a imprensa da

época.

A chave de leitura proposta no primeiro capítulo está presente também aqui. A

função do cronista era, em larga medida, a de leitor de jornais e Machado brinca com essa

faceta ao longo de seus textos, criando, inclusive, um outro leitor-fictício de periódicos,

como veremos em seguida.

Discuto ainda neste capítulo outras situações por que passou o autor-empírico,

especialmente em 1894, ano agitadíssimo no qual é acusado, por meio da imprensa, de ser

opositor do regime republicano. Procuro levantar hipóteses sobre como esses

acontecimentos influenciaram a escrita da série ou ainda sobre as razões para que ele fosse

discreto em relação a eles.

1. De que era cercada e servida “A Semana”

A crônica de “A Semana” era baseada em acontecimentos noticiados e, por isso,

filtrados pela imprensa. É de se imaginar que as percepções do autor sobre os discursos

impetrados nos jornais, bem como o modo pelo qual expunham os sujeitos de seus escritos,

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fizessem parte da elaboração da série. Como vimos no capítulo anterior, vários artifícios e

estratégias permeavam a escrita e devemos estar dispostos a uma leitura à contrapelo das

crônicas.

Lembrando a já mencionada crônica de novembro de 1894, na qual o narrador

comenta o ofício de dar a semana e diz que esse prefere o que chama de mesa dos meninos

no banquete dos acontecimentos , notemos que a Gazeta de Notícias era apta, por si só, a 2

oferecer diariamente ao cronista um lauto festim. Ao percorrer as páginas do periódico, o

leitor ordinário e, especialmente, o leitor-cronista se refestelariam na imensa “mesa dos

meninos” posta em colunas ou em notas dispersas por toda a folha. Tal fartura poderia ser

notada desde a semana que precedera a estreia da nova crônica dominical até o seu último

texto.

Ao longo dos anos analisados nesta dissertação, a ordenação da Gazeta segue uma

lógica interna muito característica. Embora surjam outras colunas e inovações gráficas, o

jornal mantém, em linhas gerais, a distribuição de seu conteúdo. Entender essa organização

contribui para que nos aproximemos um pouco da experiência do leitor regular da folha

que, acostumado com ela, saberia onde procurar os escritos que mais lhe agradavam ou

pular os que considerava inúteis ou maçantes. Além disso, teremos uma visão mais clara do

uso que o cronista fazia da folha.

A primeira página trazia as seções editoriais, que variavam em nomes dependendo

dos acontecimentos (marcadas pelo sarcasmo e humor, características do personagem-

Gazeta), as principais notícias nacionais e estrangeiras, os telegramas com informações de

última hora, o resumo das atividades parlamentares e dos atos municipais e as principais

notícias de cada Estado. O romance-folhetim, sempre presente, oscilava entre o rodapé

dessa e da segunda páginas, dependendo da extensão de cada edição. Em dias 3

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de novembro de 1894”, op. cit. 2

Durante o período analisado, esse número varia muito. Se a edição era mais longa, 6 ou 8 páginas, o 3

folhetim apareceria no rodapé da segunda página; na edição mais curta, de 4 páginas, ele aparecia em geral na primeira. Não é possível estabelecer um padrão para quando essas alterações acontecem. O que é possível afirmar é que a edição de domingo, a de maior destaque, ficava sempre entre as mais longas da semana.

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determinados apareciam também na primeira página outros escritos literários, como contos

– esses mais esporádicos, em geral na última coluna – e as crônicas . Sobre essas é 4

importante frisar que, além de “A Semana”, a partir de agosto de 1893, Olavo Bilac passa a

ser cronista regular da Gazeta de Notícias . No ano seguinte ao lançamento da “Chronica 5

Livre”, Bilac passa a assinar crônicas com o pseudônimo Fantasio. Estas tinham um caráter

mais leve e bem-humorado e variavam de título, mantendo a coesão apenas pela assinatura.

A exemplo dos textos anteriores, estes apareciam sempre na primeira página do jornal,

embora sem uma coluna determinada, e também não tinham dia ou frequência semanal

fixa. Sua primeira aparição ocorreu em janeiro de 1894, passando a ser regular a partir de

fevereiro e se estendendo até, pelo menos, 1897, quando finda o período por mim

Como aponta Daniela Silveira, em 1882 a Gazeta de Notícias passou por modificações em sua organização e 4

o espaço da oitava (última) coluna ficou sendo reservado para os temas e linguagens literárias. Cf. SILVEIRA, op. cit. Capítulo 6. Vemos que uma década depois, aquele era ainda o lugar dos trabalhos literários no jornal. Podemos ainda cogitar que aquela fosse uma coluna “em construção”, misturando da “tradição” implementada nos anos 1880 com as inovações e experiências dos anos 1890. De acordo com Antonio Dimas, entre abril e junho de 1890, Bilac contribuíra com doze crônicas para a 5

Gazeta de Notícias. Cf. DIMAS, Antonio. Bilac, o jornalista: Crônicas: Volume 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Editora da Unicamp, 2006, p. 21-37. Curiosamente, ao contrário do que ocorrera com a estreia de “A Semana”, a entrada de Bilac é anunciada com pompa e circunstância, na primeira página do jornal: “De hoje em diante abrilhantará as páginas de nossa folha a pena do festejado escritor Olavo Bilac, que se encarregou da seção intitulada Chronica Livre. Estamos certos de que nossos leitores receberão com prazer a notícia desta preciosa colaboração.” “Olavo Bilac”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 ago. 1893, p.1. É plausível cogitar que isso se desse pelo posicionamento combativo de Bilac durante o governo Floriano Peixoto. Segundo Claudia Asperti Nogueira, o escritor sempre se mostrou um ferrenho opositor das ações que culminaram na renúncia de Deodoro da Fonseca, não apenas pelo “apoio irrestrito ao governo deodorista, mas, sobretudo, porque este lhe concedia satisfatórias benesses” Cf. NOGUEIRA, Claudia Miguel Asperti. Cronistas do Rio: o processo de modernização do Rio de Janeiro nas crônicas de Olavo Bilac (Kosmos, 1904-1908) e Lima Barreto (Careta, 1915-1922). Tese de Doutorado em Letras. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Universidade Estadual Paulista, [s.n.], Assis, SP: 2012, p. 39. Em 1892, ao lado de Pardal Mallet e Lopes Trovão, funda o periódico O Combate, libelo confeccionado especialmente para criticar a política de Peixoto. Vida curta teve o jornal, circulando por pouco mais ou menos três meses. Nogueira afirma que não foi somente a índole “cáustica e ferina” dos articulistas que contribuiu para a morte d’O Combate. Bilac participou de uma tentativa de golpe, em abril de 1892, o que lhe custou, além do fechamento da folha, quatro meses de reclusão na Fortaleza da Laje. Sobre o assunto, ver: SILVA, Ana Carolina Feracin da. Entre a pena e a espada: literatos e jacobinos nos primeiros anos da República (1889-1895). Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2001, p.40ss.

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analisado . Ao longo deste período, o autor foi responsável por outras colunas literárias 6

naquele jornal . 7

Outra iniciativa da Gazeta foi a série “Flanando”. Estreou no mês de maio de 1894

com artigo de L.S., de Lulu Sênior, ou seja, de Ferreira de Araújo. Pedia licença para uma

manifestação contra as comemorações da abolição da escravatura, que teriam deixado o

autor de “crista murcha”, devido às ornamentações: “Que coisa triste! que coisa

chinfrim!” . Contava ainda com a colaboração esporádica de outros autores, que sempre 8

utilizavam pseudônimos: Pacífico – que, de acordo com Raimundo de Menezes, seria

Ramiz Galvão ; João Velhinho e P., estes últimos sem identificação. No entanto, seria 9

correto afirmar que a coluna era de Araújo, sendo o aparecimento dos outros autores

espécies de participações especiais, quase sempre colocando mais lenha em alguma

fogueira acendida pelo redator principal daquela folha. Não chega a se configurar uma série

É importante frisar que a colaboração para a folha carioca se intensifica durante o exílio político de Bilac em 6

Minas Gerais. Entre novembro de 1893 e junho de 1894, o literato esteve refugiado nas cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora, onde conviveu muito proximamente a outro homem de letras, Afonso Arinos. Cf. DIMAS, Antonio. “Entre Vila Rica e Belo Horizonte”, in:__________. Bilac, o jornalista: Ensaios, op. cit. p. 69-86.O afastamento forçado do Rio de Janeiro impactou em seu trabalho, tornando-o bastante profícuo. À mesma época que surgia Fantasio, o autor publicava ainda a seção “Chronica Livre”, além de uma série de artigos sobre Belo Horizonte, escolhida para ser a nova capital mineira. Estes últimos saíam assinados com seu nome completo. BILAC, Olavo. “Bello Horizonte – A Nova Capital de Minas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26-28 e 30 jan. 1894. (sempre na primeira página do jornal). Mesmo quando Bilac se encontra envolvido em outras empresas jornalísticas – como as revistas semanais A 7

Cigarra, em 1895 e A Bruxa, em 1896, das quais era redator-chefe – não deixa de publicar suas crônicas na Gazeta. Em ambas, Bilac era o redator e Julião Machado o ilustrador. Cf. “A Cigarra”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 mai. 1895, p.1. E ainda: “A Bruxa”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 fev. 1896, p.1. majoritariamente, os textos de Fantasio, com títulos que variavam a cada edição. Durante janeiro de 1896, o autor publica, em parceria com o ilustrador Julião Machado, o folhetim “Revista do Anno de 1895”, em dez números, traçando a retrospectiva do ano anterior por meio da galhofa com os principais fatos e personalidades que se destacaram no ano anterior (Cf. BILAC, Olavo e MACHADO, Julião. “Revista de Anno de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 jan. 1896, p.1. A publicação deste dia vem designada como a de número 3, logo, deve ter estreado no dia 01/01/1896. Contudo, os exemplares dos dois dias anteriores estão extremamente danificados, impossibilitando a leitura.) Ainda naquele ano, estreia “Rodapé”, publicada semanalmente também no espaço dedicado tradicionalmente ao folhetim. Esta última perdura até, pelo menos, fevereiro de 1897 (Segundo os apontamentos de Antonio Dimas, “Rodapé” é publicada até março de 1897. Cf. DIMAS, Bilac, o jornalista: Crônicas Vol. 1, op. cit. p. 220ss. Tendo em vista que algumas crônicas escaparam a seu levantamento, o que não desmerece sobremaneira o trabalho, prefiro fazer afirmações com os dados elencados durante minha pesquisa.) L.S. (Ferreira de Araújo). “Flanando”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 mai. 1894, p.1.8

MENEZES, op. cit. p. 796.9

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coletiva como “Balas de Estalo”, da década de 1880 . Ainda no agitado ano de 1894, 10

Ferreira de Araújo passa a escrever semanalmente “Às Quintas”, na parte destinada ao

folhetim da Gazeta. Esta sim é uma coluna que vinga e passa a integrar a parte fixa do

periódico . O que ficava denotado, desde a nota que anunciava o lançamento da coluna, era 11

o tom de deboche e galhofa que permearia os comentários de Lulu Sênior. Isso não

configurava nenhuma novidade para os colegas de imprensa e leitores acostumados com o

estilo do redator principal daquele jornal.

Em setembro de 1895, mais um Lulu passava a escrever no periódico: era lançada a

seção “Artes e Manhas”, assinada por Lulu Júnior, pseudônimo de Luís Castro, que passara

a integrar a redação da Gazeta em julho do mesmo ano . A proposta era fazer uma crônica 12

dos sucessos artísticos, sobretudo, da Capital Federal. Teatro, música e exposições estavam

na pauta da coluna. Estreia afirmando que seus mestres são Ferreira de Araújo e Arthur

Azevedo. Ainda em seu primeiro texto, critica a falta de gosto do povo, o que não seria,

contudo, privilégio dos brasileiros. Em toda a parte a maioria gosta de “revistas, de

operetas, de mágicas, de cavalinhos, de tudo quanto agrada a vista, descansa o corpo e não

puxa o cérebro. Os que se deleitam com a arte constituem minoria, e isso em toda parte do

mundo.” 13

Em 1896, Coelho Neto, sob o pseudônimo Caliban, que já utilizara antes, passa a

publicar com regularidade na Gazeta. Os primeiros textos, sob títulos variados, datam de

No decorrer da pesquisa, me deparei com uma retomada de “Balas de Estalo”. Isto ocorre em 1898, por 10

ocasião do 23º aniversário do periódico, quando é anunciado que: “Reaparece hoje na Gazeta, na 2ª página, esta seção.” Cf. “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 ago. 1898, p.1. O primeiro dos textos era assinado por Bob, que era um dos pseudônimos de Olavo Bilac (MENEZES, op. cit. p.787). Apareceram ainda: Lulu Sênior, Zig-Zag, pseudônimo de Henrique Chaves (MENEZES, op. cit. p.800), e os não identificados: Aniceto, Gil Paz e Gil. Este último era um dos pseudônimos utilizados por Machado de Assis, mas é temerário afirmar que fosse ele, muito embora isto fizesse sentido, uma vez que parecia se tratar de uma homenagem à série dos anos 1880.

De acordo com a redação: “A pedido de várias famílias, e fazendo das tripas coração, este nosso antigo 11

colaborados vai publicar na Gazeta de Notícias uma série de folhetins semanais, às quintas-feiras./ Isto de a pedido de várias famílias, é prosa dele; o que é verdade é que ele faz das tripas coração, porque neste tempo de cólera é melhor não ter tripas.” Cf. “Lulú Senior”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 dez. 1894, p.1.

“Luiz de Castro”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jul. 1895, p.1.12

LULU JÚNIOR (Luís Joaquim de Oliveira Castro), “Artes e Manhas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13

07 set. 1895, p.1.

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maio de 1895; entretanto, é somente no ano seguinte que a colaboração se intensifica, com

o lançamento de “Chronica”, em meados de julho . Ainda naquele ano, o autor 14

participaria de “O Filhote”, espécie de mini-jornal comandado por ele e Olavo Bilac,

situado no canto superior direito da primeira página. Além da crítica política, a “cria da

Gazeta” manifestava sua ironia em relação aos procedimentos adotados pela imprensa da

época, trazendo notícias fictícias, anedotas, mini-crônicas e folhetins . Daí concluímos que 15

a literatura estava entre os pratos principais do repasto.

Embora a preferência declarada do semanista residisse na mesa menor, ele dava,

sim, os seus bocados pelas seções de destaque da folha. Como era de supor, a Gazeta de

Notícias dava grande importância à política nacional. Os “Boletins Parlamentares” , 16

publicados diariamente pelo jornal, sintetizavam os principais assuntos discutidos no

Legislativo e transcreviam as falas dos parlamentares que mais chamavam a atenção do

CALIBAN (Coelho Neto), “Chronica”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 jul. 1896, p.1. A estreia da 14

seção trazia um hipotético e fantasioso “novo Estado Cherente” que seria instalado no Brasil, o que nada mais era do que sua visão da sociedade na época: “Nesse dia, Sepê, quando tudo for hipocrisia e sobrecasaca, politicagem e higiene, moral e câmbio, religião pura e código, sufrágio e polícia secreta, miséria e jogo dos bichos, partidos e cabeças quebradas, relatórios e epidemias, intendências e lixo, a tua pátria Cherente, alucinado Sepê, será inabitável.” O pseudônimo não fazia parte de uma estratégia para deixar o autor incógnito, uma vez que, no dia seguinte, Lulu Sênior afirma que Caliban é Coelho Neto. Cf. LULU SÊNIOR (Ferreira de Araújo), “Às Quintas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 jul. 1896, p.1. É notório que a crônica de Neto aproxima-se do trabalho de Olavo Bilac, enquanto Fantasio, no que tange a gama de assuntos abordados, embora com um tom mais sério do que o empregado pelo parnasiano.

Em sua estreia, a mini-folha anunciava que as assinaturas eram gratuitas e que o preço avulso não existia. 15

Trazia também uma espécie de prospecto, assinado por O Pai da Criança:“O Filhote, órgão que não tem partido, vem preencher uma lacuna que há muito se fazia sentir nesta terra em que os partidos não têm órgão./ A empresa que criou este Filhote andou a ver se devia dá-lo em grande formato; resolveu fazê-lo pequeno, teve medo de o deixar andar sozinho pelas ruas, e então resolveu que ele andaria, por ora, no colo da mãe. A gente da Gazeta, que é toda cheia de partes, queria que O Filhote saísse na última página, como matéria paga; mas O Filhote alegou que não era filho de preta Mina e não queria ter de virar de bordo quando chorasse para mamar. Ficou, pois, assentado que O Filhote sairia na primeira página, ao alto, encaixado na Gazeta, como um caso de superfetação. (Nota para o Sr. Malvino, do Liberdade macho: superfetação não é nome feio.)/ E como O Filhote ainda não teve tempo de ler os livros de Mme. Stael, é provável que faça caretas a alguém, coisa desculpável em crianças, e deite a língua de fora, mesmo aos poderes constituídos.” O PAI DA CRIANÇA. O Filhote, in: Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 ago. 1896, p.1. O folhetim, denominado O P.R.F., em provável referência ao Partido Republicano Federal, era descrito como “curiosíssimo romance”, escrito por “um dos brilhantes colaboradores do Filhote” e não era assinado. O primeiro capítulo era “A Morte da Bezerra”.

A seção era publicada de terça a domingo na Gazeta de Notícias. Além dos discursos, trazia os projetos de 16

lei e emendas apresentados no Legislativo. Com o tempo a seção muda de nome; primeiramente, em 1894, passa a se chamar “Boletim do Congresso” e depois, em 1896, “Congresso Nacional”, sem, entretanto, alterar a forma como eram apresentados os dados aos leitores. Ocupavam sempre a primeira ou segunda página do periódico.

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encarregado pela cobertura. Não se tratava de uma reprodução oficial e nem integral dos

trabalhos da Câmara e do Senado, mas sim de uma seleção feita pelo periódico, permeada

por comentários da redação relatando as reações, duvidando de certas afirmativas e até

classificando como entediantes ou inócuos alguns discursos . 17

São raras as menções diretas a essa seção em “A Semana”. Como vimos, desviar, ou

melhor, dizer desviar dos grandes assuntos era uma das marcas da série. Entretanto, as

notícias concernentes à política brasileira são um pano de fundo recorrente para a crônica.

Em uma das “Semanas” de 1895, o narrador deixa claro esse proceder. Começa o texto

dizendo que: “Não há quem não conheça a minha desafeição à política, e, por dedução, a

profunda ignorância que tenho desta arte ou ciência. Nem sequer sei se é arte ou ciência;

apenas sei que as opiniões variam a tal respeito. Faltam-me os meios de achar a

verdade.” Contudo, adiante afirmava também que se ocorria algum caso político sobre o 18

qual devesse falar, dava-se “ao trabalho aspérrimo de ler tudo o que se tem escrito, desde

Aristóteles até às mais recentes ‘publicações a pedido’, e acabo sabendo ainda menos que

os autores destas publicações.” Fica subentendido que ao dizer que não entendia de 19

política, na verdade acusava os autores das publicações de tampouco, ou ainda menos,

compreenderem o assunto que alegavam dominar. Reparemos também que ao afirmar seu

desinteresse pelo tema, tratava justamente dele.

Se não as sessões parlamentares propriamente ditas, a maneira como elas eram

relatadas chama a atenção do narrador. Em crônica de 1896, ele comenta os métodos

Em 1895, ao tratar do lançamento do livro Fruto Proibido, de Coelho Neto, afirma sobre o autor: “[Coelho 17

Neto] É um trabalhador que acha meio de descansar carregando pedra. Compõe romances, compõe artigos, compõe contos, e ainda agora vai tomar a si uma parte da redação dos debates parlamentares…/ — Sim? interrompeu-nos uma senhora, a mim e a um padre-nosso. Pois se se dá com ele, peça-lhe que, depois das páginas que houver de escrever em casa, recolha o seu estilo a algum vaso de porcelana da Saxônia ou vidro de Veneza, e vá sem ele aos debates. Meu marido, que lê muito (onde andara ele a esta hora, meu Deus!) afirma que é de boa regra não confundir os gêneros. Se houver discursos proibidos, literariamente falando, não lhes ponha o mel do seu estilo; talvez que assim a virtude torne a este mundo.” ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 28 de abril de 1895”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 28 abr. 1895, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 07 de abril de 1895”. Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 07 18

abr. 1895, p.1. (grifos meus). Idem. (grifos meus).19

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utilizados pela imprensa na descrição dos discursos dos congressistas e suas possíveis

consequências. De acordo com ele:

“Além de não estar claro no debate, sucede que na publicação do discurso há o uso de imprimir entre parêntesis a palavra lê quando o orador lê alguma coisa. Para as pessoas que estão na galeria, é inútil trazer o que o orador leu, porque essas ouviram tudo; mas como nem todos os contribuintes estão na galeria (ao contrário!), a consequência é que a maior parte fica sem saber o que é que leu, e portanto sem perceber a força da argumentação, isto com prejuízo dos próprios oradores. […] Não há dúvida que esse uso economiza papel de impressão e tempo de copiar; mas eu, contribuinte e eleitor, não gosto de economias na publicação dos debates. Uma vez que estes se imprimem é indispensável que saiam completos para que eu os entenda. Posso ser paralítico, preguiçoso, morar fora, e tenho direito de saber o que é que se lê nas Câmaras. Se algum membro ou ex-membro do congresso me lê, espero que providenciará de modo que, para o ano, eu possa ler o que se ler, sem ir passar os meus dia na galeria do congresso.” 20

O cronista de “A Semana” brinca com a transparência das transcrições que, na

verdade, poderiam ser alteradas ao bel-prazer dos representantes do jornal, ressaltando o

que bem entendessem, ignorando o que não conviesse . A crítica presente no excerto não 21

era a nenhum jornal em específico, logo, poderia ser para qualquer um, Gazeta de Notícias

inclusa. A julgar pelos comentários, a seção era vista como inútil ou mesmo prejudicial

tanto para os leitores quanto para os oradores. Assumindo ainda a presunção que lhe era

característica, o narrador imagina que algum parlamentar-leitor dará um jeito no problema,

afinal fora o eleitor-cronista que solicitara. Tendo em mente a chave de leitura proposta no

primeiro capítulo, vemos que ela nos ajuda a compreender a coerência que Machado

emprestou ao seu narrador. Mais uma vez, era no relato, nas narrativas que ele se centrava.

A preocupação com o quê era publicado e suas possíveis leituras está presente no texto. A

manipulação dos (e)leitores era alvo de crítica naquele domingo.

Voltemos à organização da Gazeta, mas desta vez foquemos a segunda página. Lá

vinham as seções que poderíamos chamar de utilidade pública, como “Avisos”, os

“Editaes” e as “Declarações”, além da “Parte Commercial” com cotações diárias, saídas de

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 13 de dezembro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 20

Janeiro, 13 dez. 1896, p.1. (grifos no original). Os discursos do deputado José Carlos, mencionados na nota 16 deste capítulo, ganhavam destaque na 21

seção.

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navios e etc. Havia ainda os boletins diários sobre o turfe e outras atividades desportivas –

que variavam de acordo com a moda da vez, indo de pelotaris a corridas de pombos-correio

– condensadas na seção “Sport”. Estavam presentes também as notas sobre os espetáculos

teatrais, concertos e outros do gênero em “Theatros e…”. As estatísticas mortuárias, o

movimento nos hospitais, hospícios e consultórios públicos eram divulgados diariamente . 22

Logo depois vinham as “Publicações a Pedido”. Versando sobre assuntos diversos e,

quase sempre, precedidos por um subtítulo, por várias vezes traziam críticas contundentes

ao governo, a algum parlamentar em especial, ou à administração municipal do Rio de

Janeiro, então capital federal. Alguns se referiam a questões políticas bastante específicas,

tais como querelas municipais ou mesmo regionais, permitindo entrever aspectos que,

possivelmente, eram reflexo da turbulência política causada pelo recém-implantado regime

republicano. Era frequente também a publicação de respostas a certas acusações feitas na

própria seção, o que possibilita acompanhar alguns debates acalorados ao longo dos meses.

Havia ainda textos que rebatiam denúncias feitas por meio de outros órgãos de imprensa,

como o Jornal do Commercio e O Paiz, por exemplo. Este último, aliás, vivia metido em

picuinhas com a Gazeta de Notícias. Apareciam também algumas pérolas dos mexericos e

acusações pessoais trocadas pelos missivistas. Vale notar que essa uma coluna ineditorial,

logo, a Gazeta eximia-se de qualquer responsabilidade sobre os escritos . Permeada pela 23

subjetividade dos mais variados autores e temas, os “a pedido” deveriam divertir o cronista,

tanto pelo tom quanto pelos absurdos publicados como se coisa muito séria fossem.

Forneciam, portanto, uma parte considerável do menu da mesa dos meninos.

A refeição era mais farta durante as quadras eleitorais. Segundo nosso semanista, as

recomendações de candidatos nos “a pedido” eram uma “maneira da terra” estabelecida,

As estatísticas mortuárias eram acompanhadas das causas mortis mais comuns, como febre amarela, febre 22

perniciosa, acesso pernicioso, febre palustre e linfatite perniciosa. Em 1894, Olavo Bilac, outro cronista da Gazeta, afirma: “Nunca deixo de ler as seções ineditoriais. É aí 23

que se devem estudar o caráter, as manias, as tendências, as predileções, os costumes da população. De onde se depreende que o Brasil é feliz, porque é a única nação da terra em cuja imprensa há o a pedido, esse subsídio precioso para o estudo dos homens e das coisas.” O.B. (Olavo Bilac). “Chronica Livre”, Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 15 jan. 1894.

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muito embora ele não a visse como um chamariz para eleitores . Em outra das crônicas, 24

descrevia a caceteação por que passavam os leitores em época de votação:

“Toda esta semana foi dada à literatura eleitoral. Não digo que se discutisse largamente a matéria, mas escreveram-se muitos nomes, surgiram candidaturas novas e novíssimas, organizaram-se chapas e contra-chapas, e, desde a circular até à simples indicação de uma pessoa, feita por um grupo de eleitores, por alguns eleitores firmes ou simplesmente pelos eleitores da Gamboa, quase que se não leu outra coisa. Lembra-me que um amigo meu, há anos, querendo ser eleito, teve a ideia singularíssima de recomendar o seu nome nos a pedidos dos jornais (!) com esta assinatura: A aclamação pública. Recolheu dois votos, o meu e o dele.” 25

As propagandas eleitorais eram tantas que causavam o enfado. Por meio da história

de seu amigo candidato, reafirmava a inutilidade daquelas tentativas de angariar votos. O

ridículo do caso do homem que recebera apenas um voto além do seu próprio deveria se

repetir naqueles dias, bem como outras situações cômicas providas pela “literatura

eleitoral”, que revelavam o quão falho era o processo. Além disso, denunciava que a

“aclamação pública” disfarçava o próprio postulante, insinuando que as outras supostas

assinaturas de eleitores também não eram verídicas. Noutra dita, ao tratar novamente do

velho costume de recomendar nomes em listas nos a pedido, alegava que a maior parte

delas era composta por pessoas absolutamente desconhecidas, o que resultava em “uma

multidão de nomes sabidos ou pouco sabidos, que apenas puderam contar um voto”.

Questionava então um organizador de listas de candidatos à deputação sobre um dos

obscuros concorrentes: “Não é candidato, disse-me ele, não terá mais de vinte a vinte e

cinco votos, mas é um companheiro aqui do bairro; queremos fazer-lhe esta

manifestaçãozinha de amigos.” A conclusão do narrador que a amizade era engenhosa,

podendo ir do pudim ao voto, sendo este último mais nobre: “Toda glória é primavera” . 26

Mais uma vez, estava proposta uma reflexão sobre as tão discutidas eleições, mostrando

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 24

Janeiro, 18 fev. 1894, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 25 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 25

Janeiro, 25 fev. 1894, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de novembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 26

Janeiro, 18 nov. 1894, p.1.

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que o sistema eleitoral era discutível, como, aliás, dissera na primeira crônica da série.

Vemos que o narrador era um leitor atento dos jornais, embora o negue em algumas

ocasiões.

De volta à ordem do periódico, vemos que o resto da Gazeta era composto de

anúncios variados que ocupavam praticamente metade do diário, sendo bastante comuns as

propagandas de remédios . Embora afirme que não os lê “Dizem até que se anuncia, mas 27

eu não leio anúncios” , ou ainda que não tinha tempo para apreciá-los: “a semana foi, entre 28

todas, cheia de lances, debates, cóleras, acontecimentos, notícias e boatos; tais coisas não

deixam tempo à leitura de anúncios” , nosso narrador também brinca com esse tipo de 29

publicação ao longo de toda a série. Uma temática que se repete algumas vezes quando ele

se perde pelas páginas de reclame é a de mulheres procurando por parceiros nas páginas

dos jornais. Em 1892, afirma que, farto de vendavais, naufrágios, boatos, acionistas e

diretores – todas notícias daquela semana –, e ainda “farto de mim, de ti, de todos, de um

tumulto sem vida, de um anúncio sem quietação”, preferia ir à páginas de anúncios,

passando em revista “as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magnésias,

sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas de leite, cobradores, coqueluche,

hipotecas, professores, tosses crônicas…” . Comentava então um reclame que chamara sua 30

atenção: uma viúva que desejava encontrar um esposo – sério, instruído e com meios de

vida – que também estivesse cansado de viver só. Os interessados deveriam enviar cartas

endereçadas à Gazeta. O próprio narrador se adiantava em dizer que queria conhecê-la, ou

ao menos possuir seu retrato, pois: “tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das mulheres. Ai de

quem está só! dizem as sagradas letras; mas não foi a religião que te inspirou esse anúncio.

Propagandas de medicamentos também apareciam nas “Publicações a Pedido” sob a forma de atestados de 27

médicos e pessoas ilustres afirmando a eficácia do produto, sobretudo no auge das epidemias. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 29 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28

29 jan. 1893, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 11 de junho de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 29

jun. 1893, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 17 de julho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 30

jul. 1892, p.1.

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Nem motivo teológico, nem metafísico. Positivo também não, porque o positivismo é infenso às segundas núpcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não queres amar; estás cansada de viver só.” 31

Após enfatizar seu próprio enfado, o narrador alegava que o que o prendera no

escrito era o aborrecimento causado pela solidão. John Gledson afirma que havia vários

anúncios deste tipo mostrando o “desespero de mulheres”, comumente dizendo-se viúvas,

sem arrimo. Acrescenta que é até possível que fosse uma maneira de “prostituir-se pelo

jornal” . Essa hipótese parece tomar corpo quando analisamos outros textos da série que 32

tratam do mesmo tema. Em 1893, no auge da Revolta da Armada, o narrador afirma que

enquanto a imprensa anunciava o bombardeamento da capital federal, “duas damas

anunciaram coisa diversa. ‘Uma senhora séria precisa de um homem honesto que a proteja

ocultamente; quem estiver nas condições’ etc. Assim falou uma. Aqui está a linguagem da

outra: ‘Uma moça distinta e bem educada precisa de um cavalheiro rico que a proteja

ocultamente; carta’ etc.” 33

O cronista atenta para as expressões utilizadas por ambas as mulheres – ser

protegida ocultamente – e assegurava que onde outros veriam um eufemismo ou uma

corruptela, ele via o amor. Acrescia que o contraste das forças públicas com as particulares

era apenas aparente, uma vez que as damas procuravam “corrigir a mortalidade pela

natalidade” tornando o que parecia um “ato de moças vadias” em uma operação

econômica. Notoriamente, o narrador trata não só dos anúncios em si, mas do uso que era

feito daquelas páginas de jornal. Alega diferir das opiniões da maioria, destacando que a

amenização da linguagem permitia que práticas vistas como condenáveis ou mesmo

criminosas fossem dadas a público em uma folha de ampla circulação; folha esta que se

dizia arauta dos bons costumes. Observemos que, mais uma vez, o semanista atentava para

a linguagem utilizada na imprensa, que permitia que aquelas notas fossem publicadas.

Idem.31

GLEDSON, John. in: ASSIS, Machado de. A Semana: crônicas (1892-1893). Edição, introdução e notas de 32

John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 88, nota 2. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 17 de setembro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 33

Janeiro, 17 set. 1893, p.1.

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Em 1895, “A Semana” aborda mais uma vez os conteúdos semiocultos que eram

apresentados nos reclames:

“[…] Mas o que é que não há dentro de um anúncio? Durante muitos anos acreditei que as “moças distintas, de boa educação” que pedem pelos jornais “a proteção de um senhor viúvo”, eram vítimas de ódios de família ou da fatalidade, que buscavam um resto de sentimento medieval neste século de guarda-chuvas. Como supor que eram damas nobremente desocupadas que procuravam emprego honesto? Um anúncio é um mundo de mistérios.” 34

Se pensarmos nessas crônicas em sequência, o narrador parece cada vez menos

ingênuo em relação a essa categoria de reclame, embora ainda se mostre um pouco

surpreendido pela descoberta da dubiedade daquelas publicações. No entanto, como já

postulado no capítulo I, nem sempre podemos nos fiar em suas palavras. Ele mesmo

asseverava, aliás, em texto que novamente abordava propagandas, que a primeira

banalidade que aprendera na vida era que as aparências enganam – “e nunca me dei mal

com ela”. Dessa disposição teria nascido o “tal ou qual espírito de contradição” que alguns

nele achavam, além de “certa repugnância em execrar sem exame vícios que todos

execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram” . Por trás do mistério 35

que cercaria as publicações, estava o interesse comercial dos jornais que, se por um lado

condenavam a prostituição e outras práticas tidas como imorais, davam a público anúncios

disfarçados, mas que não enganavam os leitores. Em prol do lucro, a suposta moralidade

convicta se esvaía, afinal, as moças não publicariam anúncios se os jornais não os

aceitassem. Aí se incluía, de novo, a própria Gazeta de Notícias, que recebia em sua própria

redação as respostas dos interessados . A insistência no tema ao longo de toda “A Semana” 36

mostra que, para além do suposto desvio dos principais acontecimentos, o semanista estava

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 23 de junho de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 34

23 jun. 1895, p.1.ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 14 de junho de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 35

jun. 1896, p.1. Nesta crônica, o narrador trata da venda de produtos falsificados. Dizia duvidar se a prática era criminosa, uma vez que na cidade não havia “excesso de invenção”, e imitação era fácil, pronta e despejada. Para relativizar o tal crime, citava casos de propagandas lançadas e logo copiadas por outros anunciantes: “Não se tratará antes de anúncios, reclamos, puffs, — censuráveis decerto, — mas enfim anúncios?”.

Com o crescimento da perseguição ao jogo dos bichos, a Gazeta de Notícias passa a publicar os resultados 36

de forma codificada, muito embora, no seu discurso “oficial” critique duramente a prática. Este assunto será abordado mais detalhadamente no capítulo III.

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atento às contradições presentes nas páginas de imprensa. Por seu escrutínio passava a

disparidade entre o discurso e a prática dos periódicos. Reparemos que ainda que

“descubra” o mistério dos reclames, ele trata a prostituição como emprego honesto,

opondo-se à uma suposta moralidade corrente.

Uma vez que a lógica interna do jornal foi esclarecida, ou ao menos delineada,

voltemos às primeiras páginas da publicação, em busca da seção que era um dos alvos

preferidos de nosso semanista, os acepipes de sua mesa predileta. A “Telegrammas” era

diária e infalível na Gazeta. Notícias nacionais e internacionais ganhavam espaço de

destaque na folha. Muitos deles eram resumos de notícias de determinada localidade

assinados por “Gazeta de Notícias”. Não era raro que mensagens telegráficas com

informações contraditórias fossem publicadas na mesma página. O narrador de “A Semana”

brinca por diversas vezes com a credibilidade desses escritos . Poucas semanas após a 37

estreia da coluna, o narrador trata a sua “fé” nesse tipo de notícia: “Mato Grosso foi o assunto principal da semana. Nunca ele esteve menos Mato, nem mais Grosso. Tudo se esperava daquelas paragens, exceto uma república, se são exatas as notícias que o afirmam, porque há outras que o negam; mas neste caso a minha regra é crer, principalmente se há telegrama. Ninguém imagina a fé que tenho em telegramas. Demais, folhas européias de 13 a 14 do mês passado, falam da nova república transatlântica como de coisa feita e acabada. Algumas descrevem a bandeira.” 38

Logo após frisar a discrepância das informações publicadas na imprensa, professa a

fé nas mensagens telegráficas, o que, convenhamos, não era uma boa estratégia para dar

sustentação ao suposto credo. A ironia se dá quando ele informa que a sua credulidade

naquelas notícias é fruto de uma escolha subjetiva, particular, já que em meio ao desacordo

sobre o que de fato ocorria, a sua regra era crer sempre, pautando-se para tal no que daí

Por exemplo: ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 26 de junho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio 37

de Janeiro, 26 jun. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 08 de maio de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 38

mai. 1892, p.1. No clima de instabilidade do início do governo Floriano Peixoto, chegavam notícias desencontradas sobre a proclamação de uma república independente em Mato Grosso. No mesmo período eram relatadas desordens em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Rio de Janeiro. O assunto torna-se tema, inclusive, de telegramas internacionais, oriundos dos países da Bacia Platina. Na sequência da crônica o narrador declara sua isenção, costumeira na série. Ele afirma: “Eu, rigorosamente, não tenho nada com isto. Não perco uma unha do pé nem da mão, se perdemos Mato Grosso. E não é melhor que me fique a unha que Mato Grosso? Em que é que Mato Grosso é meu?”

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adiante não se pode confiar. A supervalorização da palavra impressa, ainda que ela retrate

coisas falsas, era denunciada aqui.

Ainda em 1892, assevera: “Vá um homem crer em telegramas! A mim custa-me

muito” , acrescentando que o dito por telegrama não pode merecer mais fé do que o 39

“informado” por outras mensagens do mesmo gênero; o melhor era se afastar de

“telegrafices” e esperar por cartas. Em uma leitura desatenta, as duas crônicas pareceriam

estar em oposição, todavia, o narrador mantém a coerência de seu discurso, sendo irônico

ao tratar das notícias de última hora, disseminadas por toda a imprensa, sem que fosse

possível ou mesmo desejado averiguar sua veracidade. A pressa em se destacar da

concorrência não deixava tempo para esse tipo de confirmação. Note-se também que ao

criar a oposição entre os telegramas – rápidos, amplamente divulgados, mas sem

credibilidade –, e as cartas – antigo e seguro meio –, o narrador está contrariando a lógica

dirigente que valorizava e almejava o novo, o moderno.

Em 1893 o narrador comenta a existência de um técnica telegráfica que não

aparentava ser nada confiável. Acerca de agitações políticas causadas pela Revolta

Federalista que se estendia pelo Sul do país, chegara uma mensagem de Santa Catarina

dizendo que o povo estava indignado. O cronista então diz que: “Para quem conhece a

técnica dos telegramas, o povo estava jogando o bilhar. Tanto é assim que o próprio

telegrama, para suprir a dubiedade e o vago daquelas palavras, concluiu com estas:

‘esperam-se acontecimentos gravíssimos’. Sabe-se que o superlativo paga o mesmo que o

positivo; naturalmente o telegrama não custou mais caro.” Pelo telégrafo vinham, pois, 40

palavras jogadas ao vento, com exageros e inverdades. Verdadeiro ou falso, o que era

enviado pelo telégrafo tinha o mesmo valor. Ainda sobre o caso catarinense, dois meses

depois o semanista afirma que não se pode saber da reação do povo, uma vez que os

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 20 de novembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de 39

Janeiro, 20 nov. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 19 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 40

Janeiro, 19 fev. 1893, p.1.

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telegramas noticiavam regozijo e indignação, aclamações e vitupérios dirigidos ao

governantes, gargalhadas e ranger de dentes em todo o Estado. Julga então que é alvo de

“gracejo dos empregados do telégrafo”, e escreve “cinco ou seis mofinas, com assinatura e

estilo diferentes”, cotejando notícias contraditórias com as da agência internacional

Havas . 41

É importante frisar que com a explosão das Revoltas Federalista e da Armada a

censura do governo Floriano Peixoto fica mais cerrada. A partir de julho de 1893 a

publicação de telegramas vindos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, que antes era

diária, fica cada vez mais escassa. Há, primeiramente, a alegação de que o telégrafo parou

de funcionar, por motivos não esclarecidos. Comerciantes da capital chegam a pedir que o

consertem, pois os negócios estão sendo prejudicados. Logo após, é denunciada

abertamente a censura . Talvez por esse motivo o semanista afirme em outra crônica, ainda 42

sobre o Estado catarinense, que: “Também isso me veio por telegrama; eu quase não leio

outra coisa, tanta é a ocupação do meu tempo.” Lia mensagens telegráficas 43

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 16 de abril de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 41

abr. 1893, p.1. Sobre a Havas afirma ainda: “ainda quando esta agência passa da notícia à profecia, como fez agora, a propósito de dois presos políticos de Santiago, dos quais diz que ‘vão ser condenados à morte’. É ter muita ou nenhuma confiança nos tribunais.” Não era somente o cronista que apontava as contradições do serviço de notícias. Sob o pseudônimo Reporter um colunista ironicamente alega que a Agência Havas prima não só pela quantidade como também pela qualidade. Cita então supostas mensagens telegráficas que davam conta de uma indigestão da rainha dos Zulus, causada por patas de rinoceronte, ou a notícia de que o rei dos belgas teria saído para caçar. “Escusado é chamar a atenção dos leitores para a importância desses telegramas que tanto nos interessam”. REPORTER, “Telegrammas de Sensação”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 01 set. 1895, p.1.

Em editorial denominado “A Situação”, a Gazeta afirma: “O título é o mesmo de que diversas vezes nos 42

temos servido para expressar as nossas impressões acerca dos acontecimentos políticos que preocupam e agitam a opinião. As circunstâncias é que variam e infelizmente para pior.(…) O governo declarou oficialmente que o que ali [no Rio Grande do Sul] se está passando não tem a gravidade que se lhe empresta. É dever do governo tranquilizar a opinião pública e proceder de modo a conservar o seu prestígio de mantenedor da ordem e de austero e severo executor da lei. Mas o governo entendeu que um dos meios de conservar esse prestígio e de manter a confiança que o país nele deve depositar, era suprimir as informações acerca do que está se passando no Rio Grande do Sul, e constituir-se ele o único receptáculo de todas as comunicações que dizem respeito à grave situação daquele estado”. “A Situação”. Gazeta de Notícias, Rio de janeiro, 12 jul. 1893, p.1. Para uma análise mais detalhada desse momento por meio da análise do periódico, ver: SOUZA, Ana Paula Cardozo de. op. cit.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 13 de agosto de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 43

13 ago. 1893, p.1.

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desencontradas e, no mais das vezes, anônimas porque quase mais nada havia para ler.

Havia então a dupla crítica: à incoerência telegráfica e, portanto, jornalística, e à censura.

Os telegramas que abordavam “assuntos menores” serviam também como uma

espécie de fuga quando o cronista queria desviar dos assuntos mais comentados do

momento, o banquete principal, tática muito frequente na série. Em 1895, por exemplo,

tratando de uma semana cheia de cadáveres, o narrador se interessa por um telegrama de

Viena sobre a busca por uma princesa europeia para casar com o herdeiro do Japão. Caso

não encontrassem a tal consorte, buscariam uma americana opulenta, frase que chama a

atenção do narrador e dá margem para alguns devaneios . Em outro dos textos, as 44

reflexões sobre as novas vindas pelo telégrafo levam a divagações sobre o estilo

telegráfico. Falando do religioso Manuel da Benta Hora e de suas dezenas de seguidores, o

cronista trata da admiração ao ler que a imprensa baiana aconselhava o governo a prender o

homem e afirma: “Note-se de passagem: a notícia, posto que telegráfica, exprime-se deste modo: ‘a

imprensa pede ao governo mandar quanto antes que faça Benta Hora apresentar as divinas credenciais na cadeia…' Este gosto de fazer estilo, embora pelo fio telegráfico, é talvez mais extraordinário que a própria missão do regente apóstolo. O telégrafo é uma invenção econômica, deve ser conciso e até obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e papéis públicos, e às vezes nem aí. Mas nós amamos os ricos vestuários do pensamento, e o telegrama vulgar é como a tanga, mais parece despir que vestir. Assim explico aquele modo faceto de noticiar que querem meter o homem na cadeia.” 45

Seguindo a lógica do narrador, além da falta de credibilidade do que chegava pelo

telégrafo, havia ainda de se aturar os floreios não muito apreciáveis de quem os enviava.

Podemos especular ainda, sem contudo poder afirmar, que ao tratar da inadequação do texto

ao seu veículo – o telegrama – fique subentendido que à imprensa, ou mesmo aos

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 13 de janeiro de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 44

13 jan. 1895, p.1. Naquela semana fervilhavam denúncias sobre execuções sumárias durante a Revolta Federalista. Ver, por exemplo: “Cousas Políticas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 jan. 1895, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 13 de setembro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 45

Janeiro, 13 set. 1896, p.1.

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dirigentes, também era inadequado condenar o religioso e os populares que o seguiam . 46

Mais uma vez, a crítica é dirigida à imprensa, resvalando na Gazeta. Observe-se também

que, tal qual na primeira crônica da série e em muitas outras citadas neste trabalho, o

narrador atenta para a linguagem empregada nos textos de imprensa, criticando-os.

Podemos cogitar que o alvo teria sido escolhido não apenas pela diversidade temática que

apresentava, mas também por simbolizar de forma conspícua o ideal da imprensa na época:

notícias escritas e averiguadas de modo ligeiro e desatento, com a preocupação de vencer a

concorrência a despeito da qualidade do que era publicado.

Insisto na chave de leitura proposta no primeiro capítulo: Machado está muito

atento não só ao quê era publicado, mas, principalmente, ao como era publicado; atentando

para o jogo das palavras daqueles curtos escritos. Reforça-se a hipótese proposta aqui e

perceptível desde a primeira crônica, de denúncia das contradições e artificialismos das

narrativas publicadas pelos periódicos. Telegramas talvez fossem o melhor exemplo dessa

“imprensa moderna”, daí a insistência neles por parte do narrador. Seu desconserto diante

da velocidade das mudanças e a constante opinião de que o novo não é melhor que o antigo

contribuem para esta ideia.

A Gazeta de Notícias, por sua vez, valorizava os telegramas, ao ponto de essa ser a

única seção que sobrepõe de certa maneira “A Semana”. Da estreia até julho de 1894, a

crônica machadiana era a soberana da primeira coluna do exemplar de domingo do

periódico. Contudo, a partir do dia 08 daquele mês , a seção de telegramas ocupa esse 47

lugar e empurra a série para o final da coluna ou mesmo para a seguinte, dependendo do

volume de mensagens. Isso não ocorre somente aos domingos, mas sim diariamente,

Magali Engel esboça uma análise desta crônica e afirma que Machado estaria defendendo a “liberdade de 46

profetar” e comparando-a à liberdade de imprensa. Ela cita ainda a crônica de 14 de fevereiro de 1897 e diz que: “Machado de Assis atribui à imprensa a maior responsabilidade por transformar Antônio Conselheiro em uma verdadeira celebridade, imortalizando-o como herói na memória popular ignorante”. Note-se que a autora atribui as opiniões diretamente a Machado, o que não tira o mérito de seus argumentos. Cf. ENGEL, Magali Gouveia. “Os intelectuais, o nacional e o popular (Rio de Janeiro, 1890-1910)”, História Social, Campinas-SP, n.11, 2005, p. 211-226.

Cf. “Telegrammas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 jul. 1894, p.1. 47

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portanto, não era só o “A Semana” que perdia o posto. Descarto qualquer espécie de

desprestígio para com a o escrito semanal de nosso literato. Minha hipótese é que se tratava

de uma artimanha editorial, trazendo para o início as últimas notícias, que poderiam ganhar

mais destaque nas edições seguintes, o que facilitaria ajustes na diagramação da folha. O

lançamento de uma segunda seção de telegramas, no alto da segunda página, corrobora a

pressuposição; aparece inclusive uma nota dizendo que os recebidos de última hora seriam

dados a público dessa maneira . Poderia também ser uma tática para acompanhar a 48

concorrência, já que uma olhadela nos exemplares do Diário de Notícias mostra que a

seção telegráfica também encabeçava aquele jornal, pelo menos, desde janeiro de 1894. O

mesmo expediente era usado por A Notícia durante a época e, a partir de meados de 1896, 49

pelo O Paiz. Difícil precisar quem imitou quem, mas é mais que plausível dizer que o

deslocamento nada tinha com o sucesso da série . 50

De volta às crônicas de Machado de Assis, podemos encerrar a discussão sobre os

telegramas em “A Semana” com o trecho de um dos textos de 1896:

“Toda esta semana foi feita pelo telégrafo. Sem essa invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a cidade. Certamente, uma boa cidade como a nossa não deixa os filhos sem pão; fato ou boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se do banquete.” 51

Mais uma vez, o cronista compara o conteúdo do jornal à uma refeição, cabendo

agora ao telégrafo a primazia entre os pratos. No entanto, são as notícias em ritmo

Cf. “Telegrammas (à última hora)”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 out. 1894, p.2. 48

No mês de seu lançamento, A Notícia avisa que: “A urgência da paginação faz com que nem todos os 49

telegramas possam aparecer juntos. Procurar sempre nas 2ª e 3ª páginas”. “Telegramas”, A Notícia, 24-25 set. 1894, p.1.

Leticia Matheus afirma que desde o lançamento de seu prospecto, a Gazeta de Notícias dava destaque à 50

divulgação de telegramas noticiosos da Agência Havas, entendido como um de seus diferenciais. A autora acrescenta que não há consenso sobre qual foi o primeiro jornal a utilizar esse meio para a obtenção de notícias estrangeiras, já que ela contesta a afirmação de Nelson Werneck Sodré de que o Jornal do Commercio teria sido o primeiro a publicar os telegramas da Havas, em 1877. A pesquisadora diz que: “Entretanto, antes do Jornal do Commercio, a Gazeta de Notícias já publicava diariamente os telegramas atualizados da Havas desde 1875. Além disso, a agência francesa não possuía o monopólio do telégrafo e outras trocas telegráficas eram feitas no Império antes da agência francesa abrir sua sucursal por aqui”. MATHEUS, op. cit. p.42.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 20 de setembro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 51

Janeiro, 20 set. 1896, p.1.

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acelerado, sem credibilidade, feitas para serem debicadas, consumidas e esquecidas. Um

retrato daquele fim de século, tão contrastante com o período anterior, o que não significava

melhor . 52

2. José Rodrigues: criado-leitor

Em “A Semana”, Machado de Assis nos apresenta mais uma figura ficcional: José

Rodrigues, o qual o narrador afirma ser seu criado. Sua primeira aparição se dá em uma

crônica em que o semanista contrapõe tradições e progresso, tal qual fizera ao confrontar

cartas e telegramas. Aquele texto era repleto de “reminiscências bíblicas”, comparando

Barata Ribeiro a Josué por sua ação na demolição da estalagem Cabeça de Porco, marcada

pela truculência das autoridades sanitárias e policiais; passando pela mudança nas

procissões de S. Sebastião, sobre a qual constatava que: “Ordem, número, pompa, tudo o

que havia quando eu era menino, tudo desapareceu”. Todavia, era chegada a hora de deitar-

se fora os “sapatos de Israel” para calçar-se “à maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos,

onde a vida passa em burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos

modernos.” Fazia-o pelo comentário acerca das denúncias de emissão exagerada de 53

debêntures, por parte dos diretores da Companhia Geral, assunto aparentemente desconexo,

para então nos apresentar o personagem:

“Um criado meu, que perdeu tudo o que possuía na compra de desventuras… perdoem-lhe; é um pobre homem que fala mal. Ensinei-lhe a correta pronúncia de debêntures, mas

Leticia Matheus afirma que antes da introdução das notícias vindas pelo telégrafo, a comunicação por cartas 52

entre a Corte e as províncias acarretava que as informações fossem publicadas com mais de 15 dias de diferença da postagem. Destaca também que não havia a preocupação de apurar a veracidade das mensagens: o “telegrama chegava e era suficiente para ser publicado”. Acrescenta ainda que: “ocorre uma crescente valorização da velocidade, não importando tanto o conteúdo a ser noticiado desde que seja o mais imediatamente possível. A notícia jornalística é tanto mais valorizada quanto mais próxima estiver da narração simultânea do desenrolar dos acontecimentos. É evidente que seria um exagero afirmar que esse princípio norteou o jornalismo no final do século XIX, mas efetivamente o telégrafo abriu novas possibilidades.” MATHEUS, op. cit. p.45-6.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 29 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 53

29 jan. 1893, p.1.

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ele disse-me que desventuras é o que eram, desventuras e patifarias. Pois esse criado também defende o capital; a diferença é que não acusa a si de atacar o dos outros, e sim os outros de lhe terem levado o seu. Quanto aos caracteres, entende que, se alguma cousa quer demolir, não são os caracteres, mas as próprias caras, que são os caracteres externos, e não o faz por medo da polícia” 54

O autor seguia a fórmula de “A Semana”, citando vários assuntos que seriam

amarrados na parte final do texto. Embora seja o contrário do que diga o narrador, a

impressão que o trecho passa é a de que José Rodrigues entende melhor a situação do que o

patrão. Ao passo que este o considera um pobre homem que “fala mal”, o criado traduz em

uma palavra o cenário que o cerca: desventuras. As desventuras do empregado se dão não

apenas com as debêntures, mas com todo o aparato que o impede tanto de reaver seu

dinheiro, quanto de se vingar de quem o embolsou – lembremos que ele só não quebra as

caras de seus algozes por medo da polícia, instituição esta que, de acordo com o cronista,

tinha: “o poder iníquo de interromper os estudos de gravura e meter toda uma academia na

Detenção”. Se recordarmos que na crônica são citadas desventuras outras, como a dos

habitantes do cortiço demolido com os seus móveis e demais pertences, podemos cogitar

que Machado esteja nos mostrando, por meio do criado-ficcional, a outra face do progresso,

tão bem quisto pelas autoridades.

Em outro trecho da mesma crônica o narrador assevera que: “Lê tudo o que os jornais

publicam, este homem. Foi ele quem me deu notícia da nova denúncia contra a Geral; ele

chama de nova, não sei se houve outra.” José Rodrigues nos é, portanto, apresentado 55

como um leitor. Sabe-se que a série de crônicas trata majoritariamente de notícias

publicadas em periódicos, inclusive em outros que não a Gazeta, que vão de pequenas

notas às grandes manchetes . Ao atribuir ao criado a leitura dos jornais, o narrador reforça 56

a ideia de que não se interessa pelos acontecimentos noticiados, já presente no

Idem.54

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 29 de janeiro de 1893”, op. cit.55

John Gledson afirma que Machado cita, nos dois primeiros anos da série, sete outros jornais: Jornal do 56

Commercio, Diário de Notícias, O Paiz, O Tempo, Jornal do Brasil, Cidade do Rio e Rio News. Cf. GLEDSON, op. cit. p.29.

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procedimento de apenas enumerá-los, ou no de dizer que lhe entediam. Pode ser ainda a

tentativa de criar outras visões acerca dos assuntos tratados, já que são duas as vozes

ficcionais apresentadas e elas estão em posição social diametralmente oposta. Isso se

reflete nas leituras: ao passo que o narrador-patrão lê os jornais com indiferença, distração

ou mesmo não os lê, José Rodrigues busca na leitura notícias que sejam de seu interesse

particular, que afetem a sua vida de forma direta.

A oposição de classe presente na relação dos dois personagens acaba por definir os

interesses, as leituras e as linguagens de ambos. É o que acontece na crônica que nos traz

os comentários acerca do projeto de regulamentação do serviço doméstico. O narrador

argumenta que uma vez que não era ele quem tinha o “infortúnio” de servir e que o

regulamento era muito mais a favor dele do que a favor do criado, desejava que ele fosse

aprovado . Acrescentava que “Na parte em que me constrange, não será cumprido, porque 57

eu não vim ao mundo para cumprir lei, só porque é lei. Se é lei, traga um pau; se não traz

um pau, não é nada.” O nome de José Rodrigues não aparece desta dita, todavia podemos 58

perceber o pensamento do patrão em relação ao empregado, aliás, muito de acordo com as

características do narrador-ficcional que Machado constrói ao longo de “A Semana”. O

personagem é agora usado como base para reflexões sobre as relações de trabalho na

época. O que fica implícito naquela crônica é que ou a lei não seria cumprida, ou seria

apenas em parte, à medida que conviesse aos empregadores. Ao colocar-se do lado destes

últimos, o cronista revela que mesmo que leis que beneficiassem os criados fossem

concebidas, ficariam no papel, já que não havia fiscalização ou emprego efetivo das

determinações. Tais como os discursos que diferiam da prática, a legislação tornava-se

mero ornamento retórico, destinado ao fracasso, e a corda arrebentaria do lado mais fraco.

Naquela semana, a Gazeta de Notícias apenas menciona a discussão do projeto e a proposta de criar uma 57

repartição de serviços domésticos, sem maiores detalhes. Cf. “Conselho Municipal”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 abr. 1893, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 09 de abril de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09 58

abr. 1893, p.1.

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Além disso, depreende-se a reprovação à tentativa de intervenção do poder público na

regulação da relação do empregador com os empregados.

Após um hiato de meses, o personagem volta à serie e vai ganhando contornos

próprios: “Abri os olhos, vi ao pé da cama meu criado José Rodrigues – aquele mesmo

ignaro que traduzira debêntures por desventuras. Ao cabo, um bom homem; pouca

suficiência intelectual, mas uma alma… Deu-me água e ficou ao pé de mim, contando-me

histórias alegres, até que adormeci.” Para o narrador-patrão, o criado, embora seja um 59

homem bom, prestativo e dedicado, é ignaro, estúpido. Na visão que nos é apresentada,

talvez sejam sua própria amabilidade e docilidade que o prejudiquem e o transformem em

alvo fácil para os desmandos de terceiros. É interessante que o próprio cronista tenta

recordar ao leitor a existência de José Rodrigues, como que o inserindo na série novamente,

e desta vez para ficar. Note-se também que essa recordação implica leitores regulares dos

escritos, bem como a ideia de continuidade de características que reforçam a hipótese de

um narrador-ficcional. Interessante ainda que esse personagem tem um nome, ao contrário

do narrador, provavelmente porque o autor o imaginava com características fechadas, ou

mesmo como um personagem mais próximo dos de romance.

Um aspecto comum a estas aparições é que elas ocorrem quando o narrador alega

voltar de seus sonhos e devaneios. Por vezes, ele chega a fazer parte da ilusão do patrão,

como no caso em que este, após confessar a mistura de preguiça e temor em acompanhar os

tiros da Revolta da Armada que ainda assolavam o Rio de Janeiro, compenetrava-se na

leitura de Homero, imaginando-se um dos personagens da Ilíada. O criado aparece para

dar-lhe uma cajuada e, na fantasia, fortalecer o ego, dizendo: “Tu és já um deus, tu estás no

próprio Olimpo, ao lado de Júpiter.” Note-se que o narrador confunde Rodrigues com a 60

deusa Hebe que, de acordo com a mitologia, era ligada aos trabalhos domésticos,

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 27 de agosto de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 59

27 ago. 1893, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 18 de março de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 60

mar. 1894, p.1.

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desempenhando o papel de uma criada em sua família, logo, mesmo quando o criado é

“elevado” ao Olimpo, permanece um servidor, submisso e adorador de seu empregador . 61

Em outro dos textos, novamente é a literatura que conduz ao sonho. Não tendo

acabado a leitura dos jornais de manhã, resolvera concluí-la na hora de dormir: “Pouco já

havia que ler, três notícias e a cotação da praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem

sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na

hora em que aparecem.” Logo partiria dos jornais para Hamlet: “essa mistura de poesia e

cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom” e passa a

sonhar que era o personagem principal do livro de Shakespeare, enquanto José Rodrigues

se tornava Horácio. Somente é despertado pelas palavras do criado: “Acorde, patrão!

acorde!” 62

É José Rodrigues quem simbolicamente traz o narrador à realidade, ainda que isso o

irrite; é o criado que, por meio de suas preocupações mais imediatistas – comumente

associadas às finanças, dado importante em uma sociedade que vivia os efeitos do

Encilhamento, ou à saúde – parece mais atento ao contexto que os cerca. Rodrigues sempre

lê os jornais da semana, demarcando mais uma vez a sua relação mais próxima e,

sobretudo, mais atenta aos acontecimentos do que seu patrão-sonhador. Sua ligação com a

leitura se dá pelo exame dos jornais e também pelas personagens literárias que encarna.

Note-se também que o criado se incumbe de uma tarefa que deveria ser do cronista, ou

seja, repassar os acontecimentos da semana relatados pelos diários. A “terceirização” de

sua obrigação nos remete à uma faceta muito perceptível da relação dos dois personagens

em “A Semana”: o narrador-patrão ao tempo todo reforça sua condição superior em

comparação à de seu empregado. Este aparece sempre como o explorado, o enganado, o

ingênuo. A caricata descrição aponta para a lógica de dominantes e dominados na

Cf. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução de Victor Jabouille. 5ª edição. 61

Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2005 [1951], p.193. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 03 de junho de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 62

jun. 1894, p.1.

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sociedade de fins do XIX, que, numa primeira leitura, aparenta não diferir muito da do

Império. Contudo, não podemos parar aí . 63

Na análise que faz das aparições de Rodrigues em “A Semana”, Mariana Lima

afirma que o personagem cumpre, na maior parte das vezes, a função tradicional do criado

na comédia. Acrescenta que ele: “não só rouba a cena em algumas das crônicas em que

aparece, mas também, por assim dizer, rouba a voz do patrão (e até mesmo suas ideias),

instaurando com este uma relação de tal ordem que nos levar a pensar em uma pequena

dialética do senhor e do escravo.” Creio que o autor estava, sim, discutindo as questões 64

de classe por meio do criado-ficcional, no entanto, ele não demarcava meros continuísmos.

Temos que lembrar que tudo nos é relatado por um patrão reconhecidamente egoísta e

presunçoso. Mesmo quando o diálogo nos é apresentado, temos um narrador que tenta, a

todo o tempo, reforçar a sua suposta superioridade. Nas minúcias dos textos, é José

Rodrigues quem se demonstra esperto, quem atenta para as incoerências de narrativas e

teorias que permeiam as páginas dos periódicos. Enquanto isso, seu empregador atém-se ao

seu orgulho, buscando incluir-se na lógica falha dos que escrevem aqueles argumentos,

ainda que ele mesmo não os entenda. Também não acho que a função cômica seja a

principal que lhe é atribuída.

Não é o criado que rouba as ideias do patrão, mas o contrário, tanto que se utiliza

dos conhecimentos do empregado, conquanto verbalmente os despreze. Assim como na

primeira aparição de José Rodrigues, quando vemos que a palavra desventuras traduz

melhor a situação vivenciada, é ao seu discernimento que o semanista apela quando debate

as perdas pecuniárias de companhias de bondes por causa da suposta desonestidade de seus

condutores:

Como demonstrou Sidney Chalhoub acerca das relações entre outro narrador machadiano e seu escravo, as 63

crônicas continham significados, para além de uma primeira leitura, que precisavam ser desvendados. Cf. CHALHOUB, Sidney. “Visões da Liberdade”, in:___________. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhias das Letras, 2003 [1990]. Ver, sobretudo: p.91-102.

LIMA, op.cit. p.129. (grifos no original).64

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“[…] O interesse é mais constante. José Rodrigues, a quem consultei sobre esta matéria, disse-me que isto de perder são os ônus do ofício; também a companhia de que ele tinha debêntures, perdeu-os todos. Mas lembrou-me um meio engenhoso e útil: incumbir os acionistas de vigiarem por seus próprios olhos a cobrança das passagens. Interessados em recolher todo o dinheiro, serão mais severos que ninguém, mais pontuais, não ficará vintém nem conto de réis da caixa.” 65

O narrador admite, ao menos, os rompantes de genialidade de seu “estúpido” criado.

Admite também que ele é mais entendido que o patrão naquela matéria, tanto que o

consulta. Mais uma vez, a solução de Rodrigues é simples, porém efetiva. Sem rodeios

nem firulas, o prático empregado tem uma visão ampla da situação e propõe saída que

liquidaria o problema. Na crônica estava insinuada a ideia de que ainda que condutores e

mesmo passageiros cometessem pequenos e lucrativos deslizes, nada se comparava aos

ganhos das companhias que determinavam o preço de passagem e o montante dos salários

de seus empregados, explorando ambos. Enquanto aqueles trabalhadores conduziam e

pegavam bondes, os acionistas deleitavam-se com enormes somas de dinheiro. O “ônus do

ofício” era mínimo comparado ao benefício dele tirado. Se assim não fosse, a proposta de

José Rodrigues há muito seria prática e os acionistas estariam vigilantes. A suposta

desonestidade de quem trabalhava tanto para receber tão pouco soava como uma pequena e

merecida vingança.

Helen Caldwell compara os Josés fictícios da obra machadiana, afirmando que eles

teriam traços tipificados pelo nome: “um homem convencional, ordinário, com os pés no

chão, um homem de inteligência e imaginação limitadas, intrometido e prolixo, dado a

repetir o óbvio ou o que passa geralmente por verdade. É com frequência um criado, ou

alguém de modos servis, como também um hipócrita” . Especificamente sobre José 66

Rodrigues, Caldwell diz ser um dos Josés mais bem-acabados, revelando “sua natureza em

toda sua imaculada simplicidade” e parecendo “representar um veio singelo do colunista

sofisticado – seu lado tolo e prosaico, o homem das ruas por oposição ao poeta-filósofo na

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 02 de setembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 65

Janeiro, 02 set. 1894, p.1. CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de 66

Fábio Fonseca de Melo. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2008, p.70.

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torre de marfim, o corpo por oposição à alma, Sancho Pança por oposição a Dom Quixote –

e, com frequência, existe um veio de sabedoria prática em suas conversações

desconexas.” 67

De fato a oposição patrão-empregado, bem como a sabedoria prática de José

Rodrigues parecem uma constante em todas as suas aparições em “A Semana”. Todavia,

Rodrigues não é um cínico e, como já disse, tampouco um estúpido. A visão negativa do

criado nos é passada por um narrador não confiável. No mais das vezes, a interação dos

dois personagens dá a ideia de que a hipotética sofisticação e superioridade do patrão são

tão artificiais que não se sustentam por mais que algumas linhas. O conhecimento prático,

popular, do criado é muito mais coerente e firme que os rodeios imaginativos do

empregador.

As questões que aparecem nas vozes do narrador e de seu criado expressam temas que

eram debatidos não só pelo literato, mas também por seus contemporâneos. Como já disse,

junto com as reflexões de ambos vem a diferença de classe que as permeia, presente tanto

nas preocupações materiais dos dois (ou na falta delas), quanto no modo pelo qual

interpretam o contexto que os cerca. Essas duas leituras tão diversas de uma mesma

situação têm reflexo na linguagem utilizada por José Rodrigues e por seu empregador. É o

que vemos quando, ao tratar de mais um sonho em que acabava conversando com S. Pedro,

o narrador esquece de todo o resto para ficar só com as “sugestões léxicas” presentes na

fala do empregado, explicitando novamente a preocupação com o uso das palavras. Em

meio à Revolta da Armada, com o bombardeamento da cidade do Rio de Janeiro, o

semanista preferia tecer considerações sobre o verbo “explodir”. A esse propósito, afirmava

que imitava Molière com a cozinheira: “Eu escrevo, — não sei se lhes disse isto alguma

vez, — pela língua do meu criado”. José Rodrigues nunca vira uma bomba explodir já que

“Para ele tudo estala, rebenta, estoura. O que ele faz, é graduar a aplicação dos verbos, de

modo que jamais a pipoca estoura. Quem lhe ensinou isto, não sei. Talvez o leite de sua

Idem, p.71.67

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mãe.” Era às palavras do empregado que se voltava novamente quando tratava dos que 68

lucrariam apesar ou por causa do bombardeamento da capital, desde os vidraceiros, que

teriam muito trabalho pela frente, aos que aproveitavam a atenção voltada aos graves

acontecimentos para fazer emissões particulares bilhetes, o que era ilegal: “simplesmente

no crédito, ‘essa alavanca do progresso e da civilização’, para falar como o meu criado.

Isto posto, a sociedade terá achado o eixo que perdeu desde a morte do feudalismo. A fome

morrerá de fome. Ninguém pedirá, todos darão.” 69

José Rodrigues é um leitor voraz dos jornais e, mais que isso, um intérprete das

notícias lidas na imprensa, traduzindo para a sua própria linguagem o conteúdo dos diários.

Quando o personagem se vê perdido frente às páginas dos periódicos, o narrador o trata

como burro, ignaro etc. Entretanto, a incompreensão do criado pode ser lida como uma

crítica à inadequação das narrativas que são apresentadas nas folhas, Gazeta de Notícias,

mais uma vez, inclusa. É o que aparenta acontecer em uma das crônicas de maio de 1894,

na qual patrão e empregado discutem o tratamento do Padre Kneipp . Desta dita, ambos 70

leem o jornal. Em um primeiro momento o narrador afirma que se a água do sacerdote

alemão fosse milagrosa, não precisaria de tantos anúncios. Todavia, num segundo olhar,

acha algo de interesse no invento que “não só cura e ressuscita, como é a mais gratuita das

farmácias deste mundo. Só o que parece custar algum dinheiro, é a roupa, que há já feita e

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 24 de setembro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 68

Janeiro, 24 set. 1893, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 12 de novembro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 69

Janeiro, 12 nov. 1893, p.1. A cozinheira referida na crônica é Martine da peça Les Femmes Savantes. Ela é despedida por “agredir” a patroa com um “solecismo ignaro”, “um absurdo léxico realmente raro”. No desenrolar do enredo, Martine é tida como mais sábia que a patroa, apesar de sua linguagem considerada ruim. MOLIÈRE, As Eruditas. Tradução de Millôr Fernandes. São Paulo: LPM, 2001. Ver, sobretudo, cena VI. Nessa tradução o nome da cozinheira é Martina.

Machado se refere ao padre alemão Sebastian Anton Kneipp (1821-1897), criador de um conjunto de 70

práticas terapêuticas, com destaque ao uso da hidroterapia. Em 1892, Max Nordau faz referência ao “curandeiro de Wörishofen” e suas efusões frias e passeios descalços sobre a relva. Cf. NORDAU, Max. “Correspondências – Cartas da Alemanha”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jun. 1892, p.1. Sobre o sacerdote e suas teorias, ver: BAUBÉROT, Arnaud. “Un projet de Réforme Hygiénique des modes de vie: naturistes et végétariens à la Belle Époque”, in: French Politics, Culture & Society, Vol. 26, no. 3, Winter 2008.

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apropriada; o mais é a água, que Deus dá. Água e pouca.” O fiel José Rodrigues faz 71

algumas ponderações para dizer que “água sem alma” dificilmente daria vida a alguém. O

semanista pede que ele explique então o que é a alma da água:

“— Senhor, a alma da água (perdoe-me vosmecê que lhe ensine isto) é a uva. Ponha-lhe dois ou três dedos do tinto, e beba-a, em vez de se meter nela; é o que lhe digo. O vendeiro da esquina podia muito bem, agora ainda aí esse doutor Naipe... Naipe de quê? há de ser copas, de certo. Copas como elas se pintavam nas cartas antigas, que eram o que chamamos copos — copos de beber.” 72

Como nos outros textos, o criado tem uma atitude extremamente humilde,

desculpando-se, inclusive, por ensinar algo a seu sábio patrão. A opinião do empregado

estaria relacionada à crença popular do uso de bebidas alcoólicas com fins medicinais . 73

Podemos cogitar que Machado, por meio dos dois personagens, estivesse apontando para a

vantagem da sabedoria popular em relação às novas teorias e práticas medicinais surgidas

naquela segunda metade do XIX, uma vez que não era a primeira vez que ridicularizava as

crenças daquele fim de século. Ademais, a receita de Kneipp era apenas água.

Há ainda a suposta confusão quanto ao nome do “doutor” que receitava o

tratamento, à qual o cronista emenda uma correção: o certo era Kneipp.

“— Ou o que quer que seja, que a mim nunca me importaram nomes, desde que não sejam cristãos. Pois o vendeiro da esquina, como ia dizendo, podia muito bem vendê-la pura, e ganhava dinheiro; mas é consciencioso, põe-lhe uns dois dedos de alma, e é o que eu bebo todos os dias. Vosmecê sabe que saúde é a deste seu criado. Água no corpo de um homem, pelo lado de fora, isso dá maleitas, senhor; eu tive umas sezões, há muitos anos, que com certeza foram obra de um banho frio que me deram pelo entrudo. O banho deve ser pouco e morno, para a limpeza que Deus ama, contanto que nos não leve a sustância, que é o principal...”

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 6 de maio de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 71

mai. 1894, p.1. Idem.72

O dicionário de medicina popular de Chernoviz indicava, por exemplo, o licor de absinto diluído em água 73

para abrir o apetite, ou, enquanto componente de fórmulas estimulantes e tônicas. Dizia que a aguardente, em doses moderadas, era salutar para excitar as forças. O vinho tinha diversas aplicações, dentre elas enquanto fortificante para convalescentes, lavagem de úlceras antigas, aplicação em torceduras e até mesmo para banhos em crianças fracas; a ingestão da bebida por crianças da mais tenra idade também era aconselhada em alguns casos. De um modo geral, sobre as bebidas alcoólicas o autor afirmava que: “Tomadas em pequena quantidade, as bebidas alcoólicas, e principalmente o vinho, tem por efeito habitual ativar a circulação e produzir uma exaltação geral, ordinariamente assinalada por maior facilidade no exercício das faculdades intelectuais e uma espécie de satisfação interior, acompanhada de disposições benévolas para com os outros.” CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de medicina popular e das sciencias acessórias para o uso das famílias. 6ª edição, 2 volumes. Paris: A. Roger & F. Chernoviz, 1890. Vol. 1, p.939.

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A simplicidade de José Rodrigues expõe a crítica à mania cientificista da época. A

diferença entre a hidroterapia de Kneipp e a água com alma do vendeiro da esquina residia

no fato de esta última ser mais eficaz e até mais honesta. Mesmo a possível esperteza do

vendeiro, que “batizava” o vinho e com isso lucrava mais, era conhecida de todos, logo,

não havia enganados. Outra leitura possível é de que as crendices de José Rodrigues quanto

às causas das enfermidades não diferiam da fé nos tratamentos à base de água . Mais uma 74

vez, as ideias expressas na crônica contrariavam o discurso que se queria hegemônico e

mesmo a atenção que a Gazeta de Notícias dava às novidades ditas científicas. Na semana

anterior ao texto, o periódico publicava o último artigo de uma série intitulada “Tratamento

Kneipp”, publicada na primeira página, atestando a eficácia das prescrições. As matérias

vinham sem assinatura, com o alerta de que se tratava de uma “pessoa autorizada” no

assunto . Por meio de seus personagens ficcionais, Machado de Assis se colocava na 75

contramão do que era pregado nas colunas do próprio veículo de seus escritos.

Na sequência, “o pobre diabo” do criado pondera vender suas debêntures ao patrão

por uma quantia ínfima comparada ao montante que perdera. Afirmava ele que sendo o

cronista “mais atilado” encontraria um jeito de descobrir algo, “ainda que fosse um

micróbio — porque os micróbios (ficasse eu certo disso), com os progressos da ciência em

que vamos, ainda acabam alimentando a gente em vez de nos pôr a espinhela abaixo.”

Cansado de ouvir as meditações do empregado, o narrador o manda buscar água no chafariz

da Carioca. “Não havia passado meia hora, voltou José Rodrigues à casa, sem água, cheio

de espanto. O chafariz não tinha água.” Logo, o medicamento barato não estava acessível.

Não era a primeira menção à credulidade de José Rodrigues. Em fevereiro de 1893, enquanto o narrador 74

relata o sonho que tivera na noite anterior, no qual morrera, ascendera aos céus e conversara com S. Pedro e S. Paulo, aparece uma menção rápida ao criado, enfatizando o argumento da única crendice que o narrador dizia carregar: o tesouro do Morro do Castelo. Esta é a segunda aparição do empregado na série. Cf. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 12 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 fev. 1893, p.1.

O primeiro texto da série apareceu em “Tratamento Kneipp”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 mar. 75

1894, p.1. É possível que a tal pessoa autorizada fosse o Visconde de Taunay, adepto e defensor do kneippismo. Ele chegou inclusive a publicar, em 1895, um livro intitulado Como me tornei kneippista, sob o pseudônimo Jorge Palmer. O lançamento foi comentado em: Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 mai. 1895, p.2. e em “Como me tornei kneippista”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 mai. 1895, p.2.

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O semanista alega conhecer a sua gente, logo, percebera que a lembrança das debêntures

havia transtornado o homem, “tal era a confusão das palavras, a trapalhice das idéias.” Em

seu costumeiro egoísmo, dizia: “Qual foi o remédio que me curou, não sei; talvez a vista de

algum mais doente que eu.”

A trapalhice das ideias apareceria ainda na crônica de 23 de dezembro, na qual o

narrador diz que: “Este José Rodrigues é bom, é diligente, respeitoso, mas coxeia do

intelecto, não que seja doido, mas é estúpido. Não digo burro; burro com fala seria mais

inteligente que ele” . Trava então um extenso diálogo com o criado, que afirmara não 76

entender nada de leis nem de política. Sua transcrição, apesar de ser longa, é elucidativa

sobre os personagens e, por conseguinte, sobre seu criador:

“– Patrão, leio aqui estes dois anúncios: ‘Para tosses rebeldes, xarope de jaramacaru’. ‘Para intendente municipal, Calisto José Paiva’. Qual destes dois remédios é melhor? E que moléstia é essa que nunca vi? – Tu és tolo, José Rodrigues. – Com o perdão da palavra, sim, senhor. – Pois se as moléstias são duas, como é que me perguntas qual dos dois remédios é melhor? É claro que ambos são bons, um para tosses rebeldes, outro para intendente municipal. – E esta moléstia é como a neurastenia, que o patrão me ensinou a dizer, e ainda não sei se digo direito, a tal moléstia nova, que é bem antiga; é a que chamávamos espinhela caída. Ou intendente será assim coisa de dentes?… O patrão me desculpe; eu não andei por escolas, não aprendi leis nem medicina… – José Rodrigues, há coisas que, não se entendendo de logo, nunca mais se entendem. Onde andas tu que não sabes o que é intendente? Sabes o que é vereador? – Vereador, sei; é o homem que o povo põe na Câmara para ver as coisas da cidade, a limpeza, a água, os lampiões. – Pois é a mesma coisa. – A mesma coisa? Entendo; é como a espinhela caída que hoje se chama anatomia ou neurastenia. Pois, sim, senhor. Intendente é o mesmo que vereador. Cura-se então com o Paiva do anúncio? Mas se o Paiva é o remédio, conforme diz o patrão, não entendo que se aplique a neurastenia ou intendente… – Tu não estás bom, José Rodrigues; vai-te embora. – Para dizer a minha verdade, bom, bom, não estou; amanheci com uma dor do lado, que não posso respirar, e é por isso que vim perguntar ao patrão se era melhor o xarope, se o Paiva. Talvez o Paiva seja mais barato que o xarope. Isto de remédios, não é o serem mais caros… Às vezes os mais caros não prestam para nada, e um de pouco preço cura que faz gosto. Mas, enfim, não faço questão de preço. A saúde merece tudo. Vou ao Paiva… isto é, o jornal fala também de um Canedo, para a mesma moléstia… Não é Canedo que se diz? Talvez o Canedo seja mais barato que o Paiva.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 23 de dezembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 76

Janeiro, 23 dez. 1894, p.1.

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– Isto é cousa que só à vista das contas do boticário. Toma o que puderes; mas, antes disso, faz-me um favor. Vai ver se estou no Largo da Carioca.” 77

José Rodrigues ganha voz em “A Semana”. É uma voz tímida, vacilante, submissa, mas

que também arrisca, põe em dúvida os arrazoados do cronista. Ele está perdido diante das

novas instituições que, na prática, não eram tão novas assim, apenas mudaram de

nomenclatura. Além disso, a visão que tem das coisas, principalmente as políticas, é de

baixo para cima. A posição do narrador-patrão também é interessante: ele faz todo o esforço

para que seu criado continue na posição inferior e, mais que isto, passe por tolo aos olhos

do leitor. Coloca-se como alguém bem instruído que se depara com alguém que não

entende nada dos acontecimentos políticos. No entanto, é a inocência de José Rodrigues,

seu olhar de estranhamento, que revela as coisas mais próximas do que são, ou seja, a rigor

continuam as mesmas, somente mudaram de nome. A posição do narrador também causa

humor: ao procurar demonstrar ao leitor a sua superioridade, deixa transparecer que

também não entende a situação por completo, como talvez não entendessem também os

leitores. Tendo em vista a ideia de apego ao passado e desprezo pelo novo, devemos

lembrar que o criado por vezes serve como âncora naquele tempo mais seguro, longe das

modernidades que dizia abraçar. Por trás de tudo isso, está ainda a crítica às eleições

municipais, entendidas como uma moléstia. E uma moléstia que persistia.

Machado provavelmente cria José Rodrigues para dar sustentação às características de

seu narrador. Talvez seja por isso que do total de dezesseis aparições de José Rodrigues na

série , o mais delas se concentre entre 1893 e 1894. Isso não era novidade nas crônicas do 78

literato. Em “Bons Dias!” aparecera Pancrácio, o “moleque” (leia-se escravo) do narrador

dessa série . Arrisco dizer que o criado de “A Semana” não era mero “calço” para o 79

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 23 de dezembro de 1894”, op.cit.77

Em 1893, seis aparições (crônicas de 29/01; 12/02; 09/04; 27/08; 24/09; 12/11); em 1894 outras oito 78

(crônicas de 18/03; 06/05; 03/06; 12/08; 02/09; 16/09; 02/12; 23/12) e ainda uma em 24/03/1895 e a final em 28/06/1896. Incluo aqui as crônicas que mencionam o criado do narrador, ainda que não citem José Rodrigues nominalmente.

Cf. CHALHOUB, Sidney. “Visões da Liberdade”,op.cit. Nesse texto o historiador afirma que “Machado 79

estava criando a partir de uma experiência histórica particular, produzindo um texto de auto-esclarecimento e de atuação.” p.102.

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narrador. A sua recorrência na série demonstra que Machado criou um personagem com

características próprias e procurou lhe dar coerência. Rodrigues é um representante de uma

camada economicamente desfavorecida e, portanto, está a representar uma maioria. O

criado seria uma síntese da população pobre do Rio de Janeiro que também se deparava

com as promessas frustradas de melhorias que viriam com o novo regime. Depara-se ainda

com a tentativa de controlar e modificar costumes, modernizando-os à marra.

Em 1895 apenas uma crônica conta com a presença do personagem. Nela o narrador

colocava-se em oposição ao empregado, como o de costume: “Há quem pense,

transpirando; eu, quando transpiro, não penso.” Deixava tal função a José Rodrigues, que

“pensa sempre, embora seja o contrário do que me é agradável; por exemplo, escova-me o

chapéu às avessas. Naturalmente, ralho.” A bronca consistia em ordenar que o criado

deixasse de pensar alguma vez na vida, recebendo a seguinte resposta: “— Há de perdoar,

mas o pensamento é influência que vem dos astros; ninguém pode ir contra eles”. O patrão

calava-se então, alegando que: “Nos dias que correm, ter um criado que pense barato, é tão

rara fruta, que não vale a pena discutir com ele a origem das idéias. Antes mudar de chapéu

que de ordenado.” 80

A última menção a José Rodrigues aparece em junho de 1896. A crônica começa por

convidar os leitores a fugirem da Babilônia que tinha se tornado o Rio de Janeiro,

despertando o medo do narrador-patrão:

“Temo tudo. O meu velho criado José Rodrigues... (Lembram-se do José Rodrigues?)... não anda bom, padece de tonteiras, dores de peito, ânsias; para mim, está cardíaco. Se não temesse que a farmácia aviasse um veneno por outro, como ainda esta semana sucedeu, há muito que o teria feito examinar. Mas, se o médico receitar alguma droga, terei a fortuna de já a achar expedida para Ouro-Preto e outras partes? Não sei... Pobre José Rodrigues! É um grande exemplo das vicissitudes humanas. Mal sabendo assinar o nome, ganhou um milhão no encilhamento, e quando começava a aprender ortografia, achou-se com três mil réis. — Ai, patrão! dizia-me ele uma vez, eu nunca me devia ter metido em ortografias; um B de mais ou de menos não é que faz um homem feliz.” 81

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 24 de março de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 80

mar. 1895, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 28 de junho de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 81

jun. 1896, p.1.

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O criado está doente e, muito embora demonstre alguma compaixão, o patrão não

parece muito empenhado em buscar uma cura para o enfermo. Daquele trecho em diante, o

texto todo girava em torno da morte. Suicídios, batalhas, doenças… Causas diversas de um

mal inevitável: “parece que anda um vento de morte no ar”, quem não ia por vontade, ia por

força. Podemos cogitar então que a morte de Rodrigues se aproximava. Sujeito às

vicissitudes, o criado arrependera-se de ter se “metido em ortografias”, que somente

complicaram sua existência. Culpa as narrativas, a linguagem, pelo mal de que padece. Ao

longo da série, José Rodrigues dividiu suas preocupações entre as finanças e a saúde. Suas

angústias estão, portanto, ao rés do chão, em muito diferindo de seu avoado empregador. A

incompreensão frente ao discurso vigente, o mais dele retirado das páginas dos jornais,

aponta para a crítica de Machado de Assis à inadequação dessas narrativas para dar conta

de uma realidade muito mais ampla e diversa do que pressupunham seus incentivadores. A

língua científica (que nessa crônica é comparada literária, em prejuízo da primeira),

adotada para instruir e controlar o cotidiano não dá conta do que de fato acontece na cidade.

Na tentativa de forçar a higienização de práticas e crenças, muitos Josés Rodrigues

padeciam, atropelados por algo estranho às suas vivências. Outros, como o seu patrão,

compreendiam ainda menos, preferindo abraçar o ideal progresso que, naquela situação,

melhor lhes convinha.

3. As agitações de 1894

O primeiro semestre de 1894 foi extremamente agitado para nosso escritor. Para

além de sua obrigação semanal na Gazeta de Notícias, Machado de Assis integrou o júri do

concurso de contos daquele periódico. De acordo com o anúncio, ele estaria ao lado de

Ferreira de Araújo e Capistrano de Abreu, colaboradores efetivos, “e de dois ou mais

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homens de letra que não sejam concorrentes” . Como mais tarde foi revelado, esses seriam 82

Sylvio Romero e Silva Ramos . 83

O concurso recebeu ligeiros comentários do cronista de “A Semana”, com elogios

ao vencedor, Magalhães de Azeredo. Após desvelar aos leitores o seu desejo de ser rei, com

apenas dois súditos, na Ilha de Trindade e de analisar o crescimento expressivo dos

números nos obituários, dizia que:

“Mas deixemos números tristes, e venhamos aos alegres. O dos concorrentes literários da Gazeta é respeitável. Por maior que seja a lista dos escritos fracos, certo é que ainda ficou boa soma de outros, e dos vencidos ainda os haverá que pugnem mais tarde e vençam. Bom é que, no meio das preocupações de outra ordem, as musas não tenham perdido os seus devotos e ganhem novos. Magalhães de Azeredo, que ficou à frente de todos, pode servir de exemplo aos que, tendo talento como ele, quiserem perseverar do mesmo modo. Vivam as musas! Belas moças antigas não envelhecem nem desfeiam. Afinal é o que há mais firme debaixo do sol.” 84

“Concurso Litterario”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 fev. 1894, p.1.82

Na primeira reunião do júri, afirmou-se que ele era “composto dos Srs. Drs. Silva Ramos e Sylvio Romero, 83

que gentilmente acederam ao convite que lhe fizemos, e dos Srs. Machado de Assis, Capistrano de Abreu e Ferreira de Araújo, da redação desta folha.”“Concurso Litterario”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 mar. 1894, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 11 de março de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 84

11 mar.1894, p.1.

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Além do elogio ao amigo, notemos que não havia discordância aparente com o

parecer divulgado pela Gazeta . Destacava ainda as circunstâncias que agitavam aquele 85

período, nas quais a literatura e suas musas serviam como um refúgio.

Na “Chronica Livre” daquele mesmo fevereiro de 1894, Olavo Bilac comentava o

que denominava um fenômeno raro e singular, “digno de ocupar o estudo e a reflexão de

um Sylvio Romero ou de um Araripe Júnior”, que seria a florescência literária em tempos

de Revolta e sangue derramado. O escritor pontuava que, há poucos meses, os jornais

tinham plena liberdade e pleno uso de garantias, dedicando suas colunas a “artigos de

combate e a noticiários sem cor, de que a literatura parecia ser propositalmente afastada.

Um ou outro conto aparecia de quando em quando, assinado por nome já conhecido.”

Comentava então que A Semana, revista de Valentim Magalhães e Max Fleiuss, estava

repleta de revelações, tanto no verso quanto na prosa. Era um novo exército, jovem e

corajoso, que entusiasmava o escritor não pelo seu talento, mas sim pelo trabalho e

Friso ainda que, a julgar pela pesquisa de Raimundo Magalhães Júnior, Machado de Assis e Magalhães de 85

Azeredo entretinham relações desde 1889. Na ocasião, o jovem aspirante a poeta pedira que Machado prefaciasse o livro que poderia ter marcado sua estreia, intitulado Inspirações da Infância, mas que jamais foi publicado. Segundo o biógrafo, nosso escritor não só acedeu ao pedido, mas se prontificou também a encaminhar os originais à tipografia Lombaerts, embora não tenha obtido êxito. A carta que Azeredo escreveu em agradecimento, datada de 2 de junho de 1889, teria dado início a uma “animada e intensa correspondência” que se estenderia por quase vinte anos. Ainda de acordo com o biógrafo, Azeredo seria para Machado um “pupilo literário” e um “filho espiritual”. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit., vol. 3, p.164-5. A correspondência de Machado, publicada pela Academia Brasileira de Letras, também traz 02/06/1889 como a data inicial da troca de cartas entre o autor e Magalhães de Azeredo. Cf. ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo II, 1870-1889. Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2009. Acerca da intensidade das missivas, os organizadores da publicação afirmam que: “Examinando-se a distribuição dos correspondentes, nota-se uma participação desproporcional de Magalhães de Azeredo. Esse nome já aparecera no tomo II (em [274], [275] e [279], de 1889), mas ainda numa posição modesta. A partir de 1892, as cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador. Até o final de 1900, são 58 cartas de Azeredo para Machado, e 32 deste para Azeredo, ou seja, ao todo 30,1% do conjunto de documentos coligidos neste volume. O prefácio da edição preparada por Carmelo Virgillo da correspondência de Machado e Azeredo (1969) explica a razão dessa abençoada avalanche. Ao contrário das dezenas de cartas escritas e recebidas por Machado que se perderam irremediavelmente ou jazem no fundo de um velho baú de colecionador, as trocadas entre Machado e Azeredo foram guardadas até o fim pelos dois correspondentes. Sentindo-se próximo da morte, Machado pediu a Veríssimo que devolvesse a seu autor os originais das cartas dele recebidas. Posteriormente Azeredo doou todo esse acervo epistolar à Academia Brasileira de Letras. E eis como um escritor pouco valorizado hoje em dia chegou à posteridade pelo mero fato de ter tido o dom de relacionar-se com o maior escritor do Brasil.” Cf. ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011, p. VIII.

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abnegação com que se atiravam à profissão em que “a cabeça ganha louros, as calças

ganham remendos e os paletós, por falta de reforma, perdem a cor”. Ficava claro, pois, que

para Bilac a censura impetrada pelo governo Floriano Peixoto obrigava parte da imprensa a

suprir com literatura o espaço antes destinado às notícias e à análise política. Em tempos de

Revolta da Armada e de Revolta Federalista, sobrava espaço para escritores e aspirantes. . 86

Vimos que, ao contrário de Bilac, Machado procurava se manter discreto nas linhas

de seu texto semanal. Agora um adendo sobre outras turbulências enfrentadas pelo autor

naquela época. Desde o lançamento de “A Semana” até meados de 1894, é possível

perceber o enrijecimento da censura imposta pelo governo de Floriano Peixoto. Os jornais

são proibidos de dar notícias consideradas alarmantes sobre a Revolta da Armada e a

Revolta Federalista. O clima de tensão cresce com o ataque a pessoas e instituições 87

consideradas contrárias ao governo, comandado pelos chamados florianistas. A Gazeta de

Notícias e, aliás, toda a imprensa fluminense, convivia de perto com a rigidez imposta pelo

regime florianista. O momento mais dramático para o periódico foi em fins de 1893

quando, no auge da Revolta da Armada, o jornal teve a publicação suspensa . 88

A última “A Semana” daquele ano trata do tédio sentido pelo narrador. Ele estaria

fatigado com a situação atual, assim como, de acordo com o periódico, a população: “Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, o burro que puxa o bonde, o bonde que leva a gente, a gente que fala ou cala, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Tal era a reflexão que eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que em diriam eles que não fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia, até o sétimo em que o Senhor

BILAC, Olavo. “Chronica Livre”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 fev. 1894, p.1.86

Para uma discussão mais detalhada, ver: SOUZA, Ana Paula Cardozo de. A Semana: a República em 87

crônicas de Machado de Assis (1892-3). op. cit. Embora faltem os primeiros três primeiros números do diário quando, em janeiro de 1894, ele volta a 88

circular, pode-se depreender, por sua numeração, que isso ocorreu logo no primeiro dia do ano.

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descansou. O meu velho colega bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento de caducidade da obra.” 89

Naquele dia o narrador se mostrava mais sisudo que o de costume, não escondendo a

chateação com o contexto que o cerca. Assumindo a perspectiva do leitor de diários, não

poupa críticas à imprensa, feitas de um modo muito mais direto que o habitual: os jornais

são decrépitos! Neles nada há de novo. A Gazeta de Notícias foi fechada no dia seguinte,

por ordem do governo do vice-presidente Floriano Peixoto. A voz do narrador ficcional,

cansado do mundo que o cerca, era calada por ora.

Os colegas de imprensa da Gazeta publicaram algumas notas sobre o fechamento. O

Paiz, principal rival da Gazeta e conhecido pelo apoio às ações do governo Floriano

Peixoto, dizia lamentar que a sociedade fluminense ficasse “privada alguns dias da leitura

do nosso esforçado colega, no qual sempre reconhecemos um respeitável órgão da opinião

pública, guiado por boas intenções e inspirado por ideias patrióticas.” Já o Diario de 90

Notícias afirmava que: “Segundo comunicação que recebemos dos nossos colegas da

Gazeta de Notícias, foi suspensa a publicação do nosso popular órgão da imprensa

fluminense por ordem da polícia.” Alguns dias depois, a folha acrescentava que o governo 91

podia “ter-se excedido algumas vezes, como aconteceu no caso da suspensão do nosso

ilustrado colega da Gazeta de Notícias, o que muito lastimamos, neste momento

melindroso”, ou ainda cometido alguns erros administrativos, mas não restava dúvida de

que a sua “convicção” frente aos acontecimentos era uma garantia à consolidação e

estabilidade da República . Logo, apesar de lastimar o empastelamento, o texto era antes 92

uma defesa de Floriano Peixoto e suas enérgicas ações.

Não era apenas a Gazeta a ser prejudicada; Machado de Assis sofreu na pele a

perseguição dos florianistas. Em abril de 1894, o polêmico Deocleciano Martyr publicava,

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 26 de novembro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 89

Janeiro, 26 nov. 1893, p.1. “Gazeta de Notícias”, O Paiz, Rio de Janeiro, 28 nov. 1893, p.1.90

Diario de Notícias, Rio de Janeiro, 28 nov. 1893, p.1. 91

“O Boato”, Diario de Notícias, Rio de Janeiro, 01 dez. 1893, p.1.92

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nas colunas da “Secção Livre” de O Tempo, uma longa relação de nomes de funcionários

públicos que seriam inimigos da República. Eram cerca de setenta acusados, dentre os

quais José Veríssimo de Matos, então reitor do Gymnasio Nacional, Visconde de Taunay,

lente catedrático aposentado da Escola Militar e Machado de Assis, do Ministério de Viação

e Obras Públicas. Os termos utilizados pelo autor da suposta denúncia eram fortes: “Ao governo e ao partido republicano brasileiro apresento hoje, conforme prometi, uma das muitas extensas listas que tenho em meu poder, dos maus patrícios e hipócritas monarquistas pagos fartamente pelos cofres da nação para dizerem mal de si próprios e cavarem a ruína da Pátria! [...] Joaquim Maria Machado de Assis, diretor geral do comércio na secretaria da indústria, viação e obras públicas.” 93

Assegurava ainda que na terça-feira seguinte seria publicada uma nova listagem

com cinquenta outros nomes e prometia ser impiedoso para com eles: “Tudo pela Pátria e

pela República!”. Para enfatizar o tom de ameaça aos funcionários públicos listados,

publicou ainda uma nota dizendo que não iria “deixar em paz essa canalha de inimigos

encampados da República!” e afirmando que a mocidade do Brasil teria a necessidade de

“castigar esse bando de inimigos da nação, que vivem à custa do tesouro” e que deveriam

viver uma “vida danada” .94

O cronista não faz nenhuma menção à denúncia, preferindo silenciar sobre o caso.

Talvez esperasse que o problema se dissipasse, não alimentando a controvérsia. Não há

alterações perceptíveis no estilo de “A Semana”, muito embora Magalhães Júnior ligue sua

ausência do posto no dia 29 de abril ao abalo sofrido, hipótese um tanto estranha, uma vez

MARTYR, Deocleciano. “Funccionalismo Inimigo da República”. O Tempo, Rio de Janeiro, 12 abr. 1894, 93

p.2. Dois dias depois, o jornal reproduz novamente o artigo com a observação de que o fazia por ter a primeira versão ter saído com alguns erros. Nada se alterava em relação a Machado. MARTYR, Deocleciano. “Funccionalismo Inimigo da República”. O Tempo, Rio de Janeiro, 14 abr. 1894, p.2. De volta ao dia da primeira denúncia, a primeira página da edição de O Tempo trazia versos citando Martyr: “E o mártir Deocleciano/Vai dar os nomes, em listas,/N’O Tempo (que desumano!)/Das senhoras monarquistas.” Cf. CICERO, “Calháos”, O Tempo, 14 abr. 1894, op. cit. p.2.

MARTYR, Deocleciano. “Funccionalismo Inimigo da República”. O Tempo, Rio de Janeiro, 16 abr. 1894, 94

p.2. No dia anterior, O Tempo publicara nota elogiando alguns oficiais do “heroico e bravo” Batalhão Tiradentes que iniciaram uma subscrição para comprar uma perna mecânica a Martyr. “prestam aqueles patriotas ao denodado jacobino uma justa homenagem ao seu caráter e lealdade política, com relação à causa da lei.” O Tempo, Rio de Janeiro, 15 abr. 1894, p.2.

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que, antes disso, foram publicadas outras duas crônicas da série . A propósito dessa 95

substituição, é importante ressaltar que, naquele domingo, Machado foi substituído por

Ferreira de Araújo. A crônica foi nomeada “Uma Semana”, reforçando a hipótese de que os

cronistas davam características particulares aos escritos. Esse texto também não é assinado,

o que fortalece a afirmação de que a não-assinatura era parte do protocolo da crônica

dominical da Gazeta de Notícias . 96

Nas páginas d’A Semana, Lúcio de Mendonça, sob o pseudônimo Z. Marcas,

manifesta-se em defesa de Machado . Refere-se à denúncia como um “fato minúsculo”, 97

sem indicação de culpa dos supostos réus e sem levantar prova alguma. No entanto, a

acusação estava a causar reboliço na cidade do Rio de Janeiro e a meter o “lívido horror e a

perspectiva da miséria no seio de mais de uma família de empregado público”. Afirmava

ainda que Martyr, a quem de “mocinho”, havia sido atacado a tiros de revólver, e dizia-se

que teriam sido disparados ou mandados disparar por um dos acusados. Tal circunstância

levara a “exaltação ao delírio”, tornando-se o assunto do momento na capital federal. Para o

cronista, o caso não merecia tanta bulha, já que o denunciante estava a dar bordoadas de

cego:“Com um nome, então, foi você caipora como nos seus piores dias: - com

o nome de Machado de Assis. Quem é este homem, sabem-no todos, menos talvez o sr. Deocleciano

Martyr. É um filho de si próprio, ‘ex se natur’, na enérgica expressão de Tácito; obscuro, artista anônimo, tipógrafo, depois revisor de provas, depois noticiarista, depois cronista, folhetinista e poeta, depois chefe incontestado da literatura brasileira. Apenas isto: uma reputação nacional, feita a pouco e pouco, passo a passo, dia por dia, na modéstia, na perseverança e no trabalho, no honrado trabalho para o pão de cada dia, e no estudo e no esforço nobre para a conquista do saber e da glória. Se há um homem para honrar toda a democracia moderna, é este. Quem quer que tenha uma leva intuição de justiça, uma centelha de paixão republicana, há de venerar este homem. O sr. Deocleciano Martyr apedreja-o.

É medonho - para você, jacobino.” 98

MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol. 3, p.285-6. Talvez o biógrafo levante tal hipótese porque data a 95

denúncia de Martyr como ocorrida no dia 24 de abril e não no dia 12, como de fato ocorreu. Cf. ARAÚJO, Ferreira de. “Uma Semana”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 abr. 1894, p.1. No texto, 96

Araújo cita características do cronista, que alegara dor de cabeça para não escrever a crônica. Cf. MENEZES, op. cit. p. 800.97

Z. MARCAS (MENDONÇA, Lúcio de). “História de Sete Dias”, A Semana, Ano V, Tomo V, n.39, op. cit., 98

p.1.

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Marcas considerava antipático o vezo de procurar fazer o nome às custas do nome

alheio. Citava inclusive o caso entre José de Alencar e um crítico de suas obras, que

“encarniçado em demolir lhe a glória literária a furiosos golpes de folhetins semanais”,

atacara o escritor nas páginas do jornal O Globo. Asseverava também que o crítico não

seria um anônimo, como Martyr, mas sim Joaquim Nabuco, autor estimado e conhecido:

“Ah! Quanto é maior, incomensuravelmente maior, a distância entre Machado de Assis e

seu censor!” 99

O atentado a que Marcas, ou antes, Mendonça, se referia tinha acontecido no dia 17

de abril, cinco dias após a famigerada lista, portanto. Sob o título “Infame Attentado”, O

Tempo trazia informações sobre o caso, em texto carregado de elogios a Deocleciano

Martyr, “o conhecido republicano e jacobino intransigente”. Ele teria sido alvo de uma

emboscada, intentada por “dois miseráveis, assalariados sem dúvida por quem, covarde e

ignóbil, não ousou apresentar-se”. Insinuava que talvez alguns dos que, vendo-se

descobertos e não podendo por isso “ocultar a traição e a perfídia, pretendeu vingar-se

daquele que até hoje, de viseira erguida, tem trilhado o caminho da honra e da

honestidade” . 100

Idem.99

“Infame Attentado” O Tempo, Rio de Janeiro, 18 abr. 1894, p.1. Os dois homens teriam detonado diversos 100

tiros de revólver contra a vítima, que foi atingida na mão esquerda. Os supostos agressores, Manuel Gabriel Correia, português e foguista na Estrada de Ferro Central do Brasil, e Estevão Lopes, também português, servente da Imprensa Nacional e empregado de Nunes Galvão. Ambos foram recolhidos ao xadrez da estação das Oficinas. “São assim os inimigos daqueles a quem chamam jacobinos”, que permaneceriam nas trevas, agachados atrás de assassinos mercenários, vibrando seus “golpes covardes e traiçoeiros”. Interessante é notar que a nacionalidade dos presumidos agressores era justamente a que era condenada por florianistas/jacobinos (sobre o assunto, ver: RIBEIRO, Gladys Sabina. Mata Galegos: os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1990; e PENNA Lincoln de Abreu. Por que somos Florianistas? Ensaios sobre Florianismo e Jacobinismo. Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2002). Pouco tempo depois, o mesmo jornal publica mais detalhes sobre o caso. Em texto, mais uma vez, bastante tendencioso, alegava que a “proteção oculta dos sebastianistas encobertos aos assassinos de Deocleciano Martyr”. que seria até esperada, teria facilitado a fuga de Correia, um dos supostos criminosos. “Infame Attentado” O Tempo, Rio de Janeiro, 21 abr. 1894, p.1. Ainda de acordo com O Tempo, antes da escapada, o suspeito teria confessado a coparticipação no crime, como mandatário, calando, porém, o nome do mandante. O periódico acrescentava que continuava uma “romaria” à casa de Martyr e divulgava alguns dos nomes dos que teriam visitado o ferido. Além disso, “profligando o infame atentado”, várias cartas teriam sido recebidas pela redação, algumas das quais transcritas na folha.

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Coincidentemente, no mesmo dia em que Martyr denunciava Machado, nas páginas

de O Paiz eram publicados os preparativos para uma passeata em homenagem ao Marechal

Floriano Peixoto. A comissão geral organizadora designava comissões parciais, que

serviriam de intermediárias entre ela e as respectivas corporações. Na comissão da

Secretaria de Estado da Agricultura estavam: “Dr. Machado de Assis, Francisco Calazans

Rodrigues e Francisco de Carvalho” . É plausível que os designados estivessem pisando 101

em ovos, por toda a atmosfera de insegurança que cercava o momento – a Armada ainda

estava acontecendo – e uma vez que o Comendador Calazans também figurava na lista de

Martyr . 102

De volta ao fechamento da Gazeta, a suspensão por certo abalou a empresa

jornalística, uma vez que o retorno se dá com um número reduzido de páginas e, portanto,

de publicações pagas. Das seis ou oito páginas publicadas entre 1892 e 1893, a folha passa

a ter apenas quatro. O clima ainda era de tensão, tanto que, referindo-se ao empastelamento,

há apenas uma menção à “coisa pouco agradável” acontecida em fins de novembro e:

“agora, em princípio de janeiro, quando voltamos ao antigo estado, e a Gazeta de Notícias

pode reaparecer, sentimos verdadeira emoção com as felicitações de toda a parte nos foram

“Revolta Restauradora”, O Paiz, Rio de Janeiro, 12 abr. 1894, p.1. No dia seguinte, os mesmos dados 101

apareceram na Gazeta: “Grande Passeiata em homenagem ao Marechal Floriano Peixoto”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 abr. 1894, p.2. O texto publicado deveria ser uma transcrição de um comunicado oficial, visto que a publicação em O Tempo era exatamente a mesma. O Tempo, Rio de Janeiro, 13 abr. 1894, p.1.

Aliás, Martyr causou muito barulho durante o ano de 1894. Em fevereiro, lançou sua candidatura a 102

deputado pelo Distrito Federal. Dirigindo-se ao “eleitorado brasileiro”, na seção de apedidos da Gazeta de Notícias, apresentava-se dizendo que tinha “um passado obscuro de lutas pela abolição e pela República” e como salvo-conduto o seu “programa puramente republicano e radicalista”. Declarava-se ainda moço, portanto teria ânimo, entusiasmo e coragem para fazer vingar a sua luta, sua “ideia sublime”. Seu programa consistia em ser inimigo encarniçado do “elemento estrangeiro” no seio da pátria, sendo um dos “fervorosos partidários do Nativismo!”. Era contrário à chamada “Grande Naturalização”, partidário da livre religião, do casamento civil, da pena de morte e do voto feminino. Contrário ao jogo, à loteria e à aposentadoria. Pretendia ainda acabar com os abusos cometidos impunemente pelos “infames exploradores de além-mar”. MARTYR, Deocleciano. “Ao Eleitorado Republicano Brasileiro”, Gazeta de Notícias, 18 fev. 1894, p.2. No segundo semestre, Martyr lançava o seu próprio jornal. A Gazeta de Notícias publicou uma nota sobre o lançamento de O Jacobino, pedindo licença ao colega para transcrever linhas que se referiam a ela:“A Gazeta de Notícias já está pondo as manguinhas de fora com a sua amalanjada oposição./ Que declare-se francamente, para sabermos com quem lidamos. / Nada de subterfúgios e deixemos de manhas!” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 set. 1894, p.1. A Gazeta limita-se a transcrever as palavras do novo concorrente, sem comentar nada sobre elas. Acrescenta ainda outra passagem de Martyr, em que dizia não publicar anúncios ou reclames de comerciantes estrangeiros.

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enviadas” . Obviamente, para os bons entendedores da época, ali estava uma crítica ao 103

governo responsável pelo fechamento da folha e mesmo um arremedo de solução: políticos

vindos da imprensa. Notoriamente o clima ainda era de incertezas, como pode ser

percebido, no mesmo exemplar, por uma nota dizendo que o jornal A Metralha tinha sido

fechado por ordem do chefe de polícia, coronel Valadão . 104

A Gazeta de Notícias volta ocupando-se de todo e qualquer assunto. As notícias iam

das discussões parlamentares ao homem que fora recolhido no Hospício de Alienados

porque se dizia perseguido por “baratas de bigodes grandes” . Inova ainda com a 105

publicação diárias de gravuras, no mais das vezes fazendo galhofa com o assunto do

momento. Cabe ressaltar que antes as ilustrações só apareciam em casos excepcionais,

como em algum crime de grande repercussão, ou o busto de uma figura célebre . 106

Com o fim do governo Floriano Peixoto, a Gazeta de Notícias passa a fazer críticas

muito mais abertas aos atos do governo federal. Sobretudo, faz questão de demonstrar seu

descontentamento com as medidas adotadas durante o período em que o marechal estava no

poder. Enfatiza ainda, em vários momentos, que a censura não permitira que isto fosse feito

antes, mas que, uma vez que ela terminara, a folha poderia ter sua vingança, e os trabalhos

literários fazem parte dessa estratégia de ir à desforra. Em setembro de 1894, dois meses

antes de Prudente de Moraes assumir a presidência, já começam a surgir anúncios do

romance O Sanatorium, de Jayme d’Athayde . Este nome, na verdade, escondia a real 107

autoria da obra, que pertencia a Olavo Bilac e Magalhães de Azeredo, como seria revelado,

pela própria Gazeta, algum tempo depois. Com ares de mistério, procurando despertar a

curiosidade do público, o jornal passa a alardear diariamente o lançamento do folhetim. São

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 jan. 1894, p.1.103

Idem, p.2. 104

Ibidem, p.2. 105

Nesse contexto, a hipótese de Bilac sobre o concurso literário ser para encher jornal não parece descabida, 106

muito embora, como disse, outras razões devam ser consideradas. Por exemplo: “Sanatorium”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 set. 1894, p.1. Neste anúncio, a Gazeta 107

afirma se tratar de um enredo ambientado em Minas Gerais, para onde muita gente se mudou por causa da febre amarela e do estado de sítio. É importante frisar que os próprios autores estavam em Minas durante parte do governo Floriano Peixoto. Bilac havia sido preso por escrever contra o presidente.

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inclusive divulgadas gravuras de cenas que fariam parte da trama, sempre em destaque, na

primeira página. Antes da estreia, Ferreira de Araújo, sob as iniciais L.S., afirma que, dado

ao reclame que vinha sendo feito para o romance, o público poderia imaginar que se tratava

de “um livro pantafaçudo à Montépin, ou de uma pieguice amorosa para deleite dos Paulos

e Virgínias, que ainda têm ilusões depois de terem provado todas as realidades” , mas 108

estaria redondamente enganado. Acrescentava que, exceto pela parte que dizia respeito às

senhoras, nada daquela obra era inventado. Cada um dos personagens vivera em minas nos

“tempos tormentosos” de revolta e febre amarela, tendo pedido “às montanhas mineiras ar

sem micróbios e aos hotéis abrigo mais cômodo que os cubículos da Correção”.

Recomendava a leitura do romance e sugeria a substituição dos “nomes dos personagens

machos por nomes conhecidos em toda esta vasta amarelópolis.” 109

Em 11 de novembro, quatro dias antes de Floriano Peixoto deixar seu cargo,

estreava O Sanatorium . Por certo a data era escolhida a dedo e poderia ser entendida 110

como uma provocação ao ainda então presidente da República e a seus defensores, uma vez

que o enredo, ambientado em 1893, tratava de temas fresquíssimos e polêmicos. Tratava

abertamente, por exemplo, da Revolta da Armada, da violência durante a vigência do estado

de sítio e associava patriotismo a Saldanha Marinho, líder da rebelião da esquadra. Tocava

ainda em temas caros à época, ironizando os ares científicos que mascaravam a ignorância

do médico-diretor do Sanatorium. Considerava charlatães os defensores do kneippismo e o

L. S. (Ferreira de Araújo). “Flanando”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 nov. 1894, p.1.108

Idem. No que tange aos “personagens machos” de que tratara Araújo, de fato os autores pretendiam que 109

alguns deles fossem logo identificados. Para ficar em poucos exemplos, um dos personagens citados seria o “Barão de Raymond”, que aparece em um diálogo referente a um zoológico. Não deveria ser difícil que o leitor associasse a figura ao Barão de Drummond, dono do Jardim Zoológico no Rio de Janeiro e tido como o criador do jogo do bicho, prática já condenada naquele momento. Além disso, apareceram ainda “homens de letras, de nome conhecido”: Vincentim de Guimarães, Manhães de Azevedo e Olivio Bivar, em uma clara referência a, respectivamente, Valentim Magalhães e aos próprios autores, Magalhães de Azeredo e Olavo Bilac. D’ATHAYDE, Jayme (BILAC, Olavo e AZEREDO, Magalhães de). O Sanatorium, Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 02 dez. 1894, p.2.

D’ATHAYDE, Jayme (BILAC, Olavo e AZEREDO, Magalhães de). O Sanatorium, Rio de Janeiro, Gazeta 110

de Notícias, 11 nov. 1894, p.1. Na década de 1970 foi lançada uma edição em livro desta obra. Cf. BILAC, Olavo & AZEREDO, Carlos Magalhães de. O Sanatorium. São Paulo: Clube do Livro, 1977.

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hipnotismo. A publicação se estende até 12 de dezembro de 1894 e o final da trama se dá

quando acaba a Revolta da Armada . 111

No entanto, é somente em 07 de fevereiro de 1895, com Floriano há tempos fora do

poder, que Lulu Sênior realiza sua confissão pública. De maneira bem-humorada historia,

sob seu particular ponto de vista, os acontecimentos desde a Proclamação da República. Ao

tratar da rigidez do governo Floriano Peixoto, que impusera um duro controle sobre o que

era publicado pela imprensa, afirma que: “E quando me apareceu em casa um sujeito muito

amável, de espada à banda, pedindo-me muito bons modos e a mão na garrucha, que trazia

à cinta, que eu não desse pio nem a favor nem contra o que estava fazendo, eu respondi-lhe

que faria todo o possível para evitar que ele tivesse o incômodo de vir visitar-me outra

vez.” Diz ainda que a partir de então teria conspirado e torcido para que o governo caísse. 112

Tal afirmação seria completamente inconcebível enquanto o Marechal ainda estava no

poder . 113

Portanto, a plena liberdade de imprensa só é retomada após a saída de Floriano do

poder. Acontece então a desforra pelos meses de mordaça. O ex-presidente, bem como seus

aliados e os periódicos que o defendiam são esculachados quase diariamente. Denúncias de

torturas e assassinatos pululavam nas páginas da Gazeta de Notícias.

Em abril do ano seguinte, na coluna em que Bilac assinava com o pseudônimo Fantasio, é publicado um 111

poema de Jayme d’Athayde, “nos moldes da escola decadista”, sobre uma “antevisão” do fechamento do Jardim Zoológico. Importante frisar que a campanha contra o jogo dos bichos estava então em seu auge. Ao menos no período analisado, esta foi a última aparição de Athayde. Cf. FANTASIO (Olavo Bilac). “Um Poema”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 abr. 1895.

LULU SENIOR (Ferreira de Araújo), “Às Quintas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 fev. 1895, p.1.112

Os ânimos estavam muito mais amainados no governo de Prudente de Morais, tanto que no mês seguinte, 113

os redatores também comentam o empastelamento:“Mas é engraçadíssimo este caso da suspensão da Gazeta. O Sr. coronel Valladão concordou com a inconveniência da medida no primeiro dia e manteve-a durante trinta e três dias. Os Srs. secretários de Estado declararam que não sabiam nada a tal respeito e que foram como nós e toda a gente surpreendidos com tão extravagante medida. O Paiz manifestou publicamente o seu pesar por tal acontecimento e o Sr. Floriano Peixoto nem sequer soube que a Gazeta esteve suspensa, porque supomos, nem mesmo sabia que havia uma folha com esse título!/ Não é engraçado o caso? Pois, engraçado como é, há de em tempo oportuno ser explicado com todas as minúcias, para se ficar sabendo quem foi o autor de umas medidas condenadas, principalmente por todos aqueles que a poderiam suspender, ou não ter posto em execução.” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 mar. 1895, p.1.

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“A Semana” tem características e estilo tão bem definidos que permanecem sólidos

aos abalos daquele 1894 tão conturbado. Em meio a ataques políticos, o narrador e a

fórmula da série prosseguem inalterados. No entanto, embora optasse por não bater de

frente com florianistas, no que diferia de alguns de seus colegas , o cronista enxergava 114

problemas mais profundos que não eram ligados a um governo, mas ao contexto geral que

permeava a sociedade da época. Como veremos no capítulo seguinte, o semanista não

poupará críticas a essa conjuntura que era refletida nos discursos e narrativas dos jornais e

mostrará empatia para com os Josés Rodrigues que eram expostos nesses textos.

Em 1893, Bilac não parecia temeroso em continuar a divulgar seu antiflorianismo. Já em sua estreia, a 114

coluna polemizava contra a ação da polícia na perseguição ao jogo nos frontões, o que chamava de “cruzada contra os vícios” naquela “Gomorra fim de século”. Assegurava que aqueles estabelecimentos tinham advogados demais: “Não aumentarei o número de seus defensores, embora convencido de que o jogo, de bola ou de cartas, de loteria ou de dado, é um direito sagrado, tão sagrado quanto qualquer dos outros que a grande revolução proclamou. Santo Deus! Por que não hei de eu ter o direito de jogar o dinheiro que me pagam por este artigo, se tenho o direito de jogar a vida, continuando a ser cidadão brasileiro neste inefável regime de revoluções e golpes de Estado?” O. B. (BILAC, Olavo). “Chronica Livre”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 ago. 1893, p.1. (grifos meus). Esta referência escapou ao trabalho de Dimas, que data a primeira crônica de Bilac em 1893 como tendo sido publicada no dia 27 de agosto. Cf. DIMAS, op. cit., p.41. O texto passava longe de poder ser considerado moderada oposição ao regime florianista, que classificava como inefável. Criticava ainda a sanha da polícia em acossar o jogo, sob o principal pretexto de proteger os meninos vadios que ficariam expostos ao vício. Bilac questionava este súbito “moralizador entusiasmo” em fechar os frontões e ironizava as motivações da polícia, uma vez que ela não se importava com o destino de vendedoras de flores, de quatro ou cinco anos, que passavam a noite em claro, em jardins de teatros e gabinetes reservados de “restaurantes alegres”, repletos de ébrios e cocotes. Tampouco estariam entre as preocupações das autoridades as crianças, exploradas por “sindicatos de marmanjos vadios”, que mendigavam a caridade pública expondo chagas propositalmente feitas com ácido sulfúrico. De acordo com o autor, a polícia também não fiscalizava os asilos que anemiavam cérebros e espatifavam músculos de menores, obrigando-os a “decorar discursos louvaminheiros aos grandes da terra e esfalfar-se em marchas militares espetaculosas pela cidade”, como um reclame vivo dos que lhe dão pão.Nota-se aí a diferença de postura e estilo entre a “Chronica Livre” e “A Semana”, crônicas publicadas na mesma época, periódico e, por vezes, mesma página. Os assuntos selecionados por Bilac são tão variados quanto os de Machado, contudo o primeiro os trata com bem menos discrição, escrevendo um texto endereçado e com críticas declaradas à ação do governo e da polícia.

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CAPÍTULO III

Ciência, polícia, imprensa…

“São migalhas da história, mas as migalhas devem ser recolhidas.” Machado de Assis, “A Semana”, 11 de agosto de 1895.

O tom memorialista, com alusões ao passado, pautado em experiências reais ou

imaginadas, evoca a “gorda pachorrenta” que anda de braços dados com o cronista durante

toda a série. A visão que ele tem dos fatos do presente, que constitui, em tese, a maior parte

do material de seu ofício, não se desatrela do passado; muito pelo contrário, recorre a ele

para interpretar, de maneira propositadamente torta, lenta, esquiva e fingidora, os

acontecimentos que o cercam e que urgem por comentários. O falso desvio destes,

característica da série, demonstra o desprezo pelo que é tido como novidade, entendida à

época como sinônimo de melhoria.

O velho senhor de A Semana já viu muito, desconfia do novo, não o compreende e,

principalmente, o entende como máscara para antigas mazelas que as mudanças superficiais

tentam esconder. Haja vista os melhoramentos empreendidos na cidade do Rio de Janeiro,

que não beneficiam os pobres e que os tomam por sinônimo de problemas e perigos e

empurrando-os para “debaixo do tapete” da capital que se queria europeia. O desajuste do

narrador recorda a situação desses outros desajustados na tentativa de modernização da

cidade, empreendida sem a resolução de questões básicas, como moradia e saneamento, e

por meio de instituições que nem de longe acompanham o ritmo pretendido, cujo exemplo

mais notório é a violenta e arbitrária polícia fluminense. No mais das vezes, o narrador

inclusive mostra empatia para com a arraia-miúda não só dos acontecimentos, mas também

da população.

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1. Gazeta: de Notícias e de Ciências

Vimos que uma das faces da Gazeta era a de incentivadora da literatura, ideia

propagada aos quatro ventos. Uma outra face não tão explicitada era a da valorização dos

saberes técnico-científicos, presença constante nas páginas do jornal. A bandeira era

defendida pelos redatores, que deixavam transparecer esse discurso em variados escritos . 1

Havia os exemplos mais óbvios, como a coluna “Novidades Scientificas e Industriaes –

Apontamentos Immediatos” – que consistia em uma compilação de anedotas científicas,

novas invenções e curiosidades, a maioria trazida do Velho Continente, seguidas por notas

curtas sobre cada assunto – que pareciam mais querer entreter o leitor do que informá-lo . 2

Outros escritos abandonavam a mera descrição das novidades para sugerir medidas que

incidiam mais diretamente na vida da população, tendo como viés os argumentos

científicos e higiênicos. É a eles que quero me ater.

No auge do verão e das epidemias, um dos editoriais da folha tratava de espezinhar

os perniciosos costumes daquela gente que teimava em não ouvir os conselhos dos doutores

da higiene. O articulista afirmava que dentre as indicações que há muito as autoridades

sanitárias faziam estava a de não permitir que crianças acompanhassem enterros,

advertência que era completamente ignorada. Na opinião ali expressada, a teimosia exigia

da parte daquelas autoridades que redobrassem os esforços, “empregando medidas

Magalhães Júnior ressalta que o diretor da folha, Ferreira de Araújo, era formado em medicina. O biógrafo 1

cita como exemplo da influência deste dado na condução do periódico a campanha em prol da vacinação de 1882, à qual a Gazeta deu grande ênfase. MAGALHÃES JÚNIOR, op. cit. Vol. 3, p.138. A título de exemplo, posso citar o sumário de uma das colunas, publicada em janeiro de 1894. Ela 2

exemplifica a miscelânea presente naqueles tais apontamentos: “Novas pontes e jangadas militares em França – Uma expedição brasileira alemã a Mato Grosso e Alto Amazonas – A grande escola do magnetismo aplicado à medicina em Paris – Kutzuy, o fundador do estudo científico das algas – Como se anuncia graxa em Chicago – O congresso de Aeronáutica em Chicago – Estatística da cremação em Paris – Proposta para o governo inglês administrar todos os telégrafos, telefones e estradas de ferro – Dormir sempre de norte a sul para viver 100 anos – Dubamel-Dumonceau, o primeiro experimentador científico agrícola – Descoberta em Hamburgo de um remédio contra o tifo – A Índia, a China, a polícia francesa e as impressões dos dedos – O barco submarino Fontes Pereira de Mello – Empregos do aço niquelado – A direção dos balões segundo o Sr. José Benedy – Se houve no Brasil uma época glaciária – Companhia para a distribuição por casas particulares do fumo do tabaco – A causa da cintilação das estrelas.” Cf. “Novidades Scientificas e Industriaes – Apontamentos Immediatos”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 jan. 1894, p.1.

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coercitivas, se fosse preciso.” Dias depois afirmava ainda que: “Parece-nos que desde que 3

se trata de evitar mal maior, ninguém tem o direito de se julgar ofendido em sua liberdade.

Esta nunca pode ser absoluta e as suas restrições estão indicadas pelas razões de ordem

pública.” A culpa era toda da população, uma vez que as autoridades sanitárias eram 4

exemplares em suas recomendações. O periódico defendia ainda, de maneira escancarada, o

emprego de medidas de coerção para que os conselhos virassem, na marra, prática. Esse

tipo de alusão era recorrente nas páginas daquele diário, revelando um posicionamento bem

demarcado não somente em relação à sapiência dos médicos frente a uma população ignara,

como também acerca da necessidade de que os primeiros estabelecessem uma tutela sobre

aquela massa de ouvidos moucos. Para que essa subordinação fosse tornada realidade e o

“mal” deixasse de ser propagado, o uso de força não estava descartado.

Naquele mesmo verão a Gazeta de Notícias dava mais um passo no sentido de

auxiliar no combate aos maus hábitos que empesteavam a deseducada cidade do Rio de

Janeiro: no início de fevereiro lançava a seção chamada “Saúde Pública”, com intenções

bem definidas:

“No intuito de tornar conhecidas das autoridades sanitárias as várias causas particulares da insalubridade nos diferentes pontos da cidade, e ao mesmo tempo proporcionar à população fácil ensejo de produzir as reclamações que lhe sugerirem os fatos que observar e cujos efeitos é a primeira a sentir, nesta seção daremos inserção a todas as comunicações que nos forem dirigidas. É necessário, no entanto, que tais comunicações sejam feitas com a maior clareza, de modo a poder ser verificada por qualquer a sua veracidade.” 5

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26 jan. 1894, p.1. 3

“Saúde Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 fev. 1894, p.1. Dias depois afirmava que a contenção 4

da epidemia de febre amarela requeria medidas mais enérgicas e que a população pobre era mais afetada, justamente por não tomarem medidas sanitárias. Sugeria visitas domiciliares surpresas nas casas dessas pessoas, a fim de flagrar as ações cotidianas insalubres. “Saúde Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 fev. 1894, p.1. Reafirma que o povo precisa de uma tutela no que tange às questões de higiene e salubridade e enaltece o poder dos sanitaristas: “Antigamente, nos nefastos tempos da Junta Central de Hygiene Publica, quando esta repartição sanitária não gozava das altas prerrogativas de que se acham de posse a Directoria de Hygiene Publica (repartição municipal); quando carecia de autonomia, dependendo inteiramente os seus conselhos da sanção do ministério do império do antigo regime; quando eram escassos os recursos de que se podia lançar mão; nessa época houve comissões sanitárias, cujos membros gratuitamente fizeram, durante alguns anos, que não foram poucos, o serviço da polícia sanitária.” Cf. “Saúde Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 fev. 1894, p.1. “Saúde Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 01 fev. 1894, p.1. Sobre o usa da imprensa como 5

receptáculo de queixas populares, ver: SILVA, Eduardo. As Queixas do Povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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A folha desejava que a vigilância em torno das práticas insalubres fosse ampliada,

disponibilizando um espaço para que as denúncias fossem dadas a público e,

principalmente, chegassem ao conhecimento das autoridades. Sob a capa de prestação de

serviço público, a Gazeta incentivava uma rede de fiscais e informantes anônimos

espalhados pela cidade . Colaborava então para a ideia de que a vigilância e controle dos 6

hábitos tidos como nocivos deveria ser ampliada, tornando concidadãos em vigias e

delatores . 7

Coroando o verão, tão profícuo em orientações higiênicas e pedidos de ações

enérgicas contra os que propagavam a insalubridade pela cidade do Rio de Janeiro, o Dr.

Souza Lima lança uma série de artigos, intitulada “Hygiene Pública”, que teriam como 8

objetivo instruir a população. O então Diretor Geral de Higiene empregava um tom

veemente para criticar a população da capital. De acordo com ele, em todas as “quadras

epidêmicas” as autoridades sanitárias tentavam instruir a população, mas ele estava

convicto de que de nada adiantavam “conselhos higiênicos a um povo como o nosso, pela

maior parte rebelde a eles, e que parece até dizer timbre em desprezá-los”. Acrescentava

que as autoridades viviam em luta constante para que os regulamentos e posturas fossem

cumpridos por aquela parte da gente que procurava “a todo o transe iludir e sofismar,

incorrendo mais e mais nas multas respectivas”. Mostrava-se indignado com a regra dessas

pessoas, que consistiria em ter o direito de reclamar, de exigir dos poderes públicos a maior

As primeiras acusações já eram emendadas logo em seguida. Na Rua Malvino Reis, havia um terreno onde 6

funcionara um circo de cavalinhos que deixara como lembrança várias depressões, nas quais se acumulava a água das chuvas. Tendo em conta o “calor elevado da estação”, a “evaporação rápida” formaria em breve um “grande pântano”. O rio Comprido que atravessava o bairro se achava em “lastimável estado de imundície”, bem como as estalagens daquela mesma rua. “Saúde Pública”, 01 fev. 1894, op.cit. Aparentemente, algumas das reclamações e denúncias do periódico surtiam efeito. Em abril daquele mesmo 7

ano, a Gazeta agradece ao prefeito do Rio de Janeiro por ter prontamente atendido às suas reclamações, ordenando a demolição de um prédio por causa de suas condições higiênicas e de segurança. Os moradores daquela construção teriam sete dias para se alojarem em outro lugar. Se não encontrarem lugar em outras casas, podem ir para barracões da prefeitura. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 01 abr. 1894, p.1. Agostinho José de Souza Lima, “bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II, doutor em Medicina pela 8

faculdade do Rio de Janeiro, lente catedrático de medicina legal na mesma faculdade, tenente cirurgião do sétimo batalhão da guarda nacional da corte, oficial da ordem da Rosa, membro da sociedade de aclimação e da sociedade velosiana.” Cf. SACRAMENTO BLAKE, op. cit. Vol. 1, p. 16-7.

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vigilância sobre tudo o que afetava sua saúde e bem-estar, “ficando-lhe, porém, inteira

liberdade de fazer o que lhe aprouver, de viver como entender! As menores restrições

impostas a essa liberdade são mal recebidas e sofismadas!”. Ainda assim, o doutor elencava

medidas que seriam comuns a qualquer moléstia e, portanto, deveriam ser de conhecimento

de todos, como evitar excessos de toda a espécie, de alcoólicos a gelados, dormir em

cômodos espaçosos, arejados e limpos, etc. Admitia, no entanto, que “a parte necessitada

deles á a que menos pode observá-los, quando mesmo leia os jornais”. Para o doutor, era a

classe proletária, sem recursos para escolher alimentos e moradias adequados, nem tempo

para ter asseio “quanto mais lavagens desinfectantes”, a responsável pelo espalhamento das

epidemias . 9

O cronista de “A Semana” tinha uma perspectiva diversa dos tais conselhos

higiênicos. Tratando da lei que proibira as folias do Carnaval daquele ano, divagava sobre

esse tipo de imposição: “Não se diga que calunio o meu século. Quem tem culpa, se há culpa, é o sr.

Dr. Souza Lima, que todos os anos dá uma edição nova dos seus conselhos e súplicas, lembra os regulamentos sanitários, e mostra a vaidade dos seus esforços higiênicos. Isto quando se trata de morrer, que é a ação mais dura da gente viva. Talvez haja demasiada confiança nos conselhos. Quanto aos regulamentos, se os considerarmos à luz da verdadeira filosofia (a falsa é a do meu vizinho) reconheceremos que não passam de puras abstrações. Há coisas mais concretas.” 10

Se a Gazeta divulgava e endossava as advertências do doutor, o semanista via

vaidade e excesso de confiança naqueles arrazoados. Em seguida, afirmava que nem os

regulamentos do céu, que eram obra divina, eram mais eficazes que os nossos. Usava

inclusive da linguagem jurídica para dizer que havia dúvida sobre a “significação de alguns

dos respectivos artigos”. A presunção do Dr. Souza Lima e companhia era tanta que o

SOUZA LIMA, Agostinho de. “Hygiene Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 jan. 1894, p.1.9

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 11 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10

11 fev. 1894, p.1. Já na crônica anterior havia reflexões sobre a proibição dos festejos carnavalescos. “Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba.” Cf. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 04 de fevereiro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 fev. 1894, p.1. Para uma análise dos significados sociais dessas medidas, ver: PEREIRA, O Carnaval das Letras, op. cit. Sobretudo o capítulo “Por trás das máscaras: Policarpo e o sentido da festa” no qual o autor analisa essa e outras crônicas de Machado de Assis.

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narrador lembrava de normas celestes para trazer o médico para um ambiente mais terreno,

humilde. De lambuja, aproveitava para mostrar o caráter falho de mais um ramo científico:

a astronomia. Não havia consenso entre os astrônomos quanto ao suposto fim do mundo,

dizendo uns que um cometa destruiria a Terra em 1899, enquanto outros contestavam tal

hipótese “não com palavras, mas com raciocínio, com algarismos, com leis científicas” . 11

Citava ele então uma série de números e estatísticas para evidenciar as contradições

inerentes à ciência. Mais uma vez, portanto, usava a linguagem dos que criticava para

ironizar a suposta sabedoria. Ora, se os princípios científicos eram a base para os conselhos

e para a legislação que procurava gerir os hábitos da população pobre, o semanista deixava

implícito que elas eram tão contraditórias ou ridículas quanto seus alicerces.

Outro doutor inundaria as páginas do jornal com suas orientações. Na série de

artigos intitulada “Palestras com o Povo”, o Dr. João de Castro Lopes defendia a ideia de

que a linguagem também era uma ciência. A Gazeta, ao anunciar o lançamento da seção,

afirmava que o “ilustrado” senhor mostraria e corrigiria os erros de linguagem geral,

empregados e aceitos como “muito bom português” . O tal cientista da língua tinha 12

pretensões didáticas para com o povo, seja lá o que ele entendesse por isso. Contando

narrativas com extensos diálogos, constituídas por palavras pomposas, Lopes apontava o

que considerava serem os “destruidores da língua”: os termos empregados na conversação

com sentido diferente, a má pronúncia e os galicismos. “Estes são verdadeiros micróbios,

mas o mal não prosperará, pois o purismo é o sangue deste idioma.” Acrescentava ainda

que: quanto à “corrente popular, esse outro nariz de cera, convém que antes se diga:

corrente de papagaios, porque a massa popular fala mais de oitiva, do que

conscientemente.” Por fim, permitia-se “o símile: assim como o esculápio do corpo humano

ASSIS. “A Semana - Crônica de 11 de fevereiro de 1894”, op. cit. Os astrônomos citados por Machado 11

eram o alemão [Rudolf] Falb, defensor da teoria de que o mundo seria arrasado por um cometa, e seu opositor, o brasileiro Dr. Antão de Vasconcelos. Ainda sobre a astronomia, o narrador acrescentava que: “Creio até que, de todas as ciências, é a astronomia a que maior número conta de amadores. Qual será a causa deste fenômeno? Talvez a vertigem dos números. Realmente, por mais que a invisibilidade dos micróbios assombre a gente, não chega a estontear como os algarismos astronômicos”

“Palestras com o Povo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 fev. 1894, p.1. 12

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extirpa o vírus morbidum, assim também pode o glotólogo extirpar do corpo da ciência da

linguagem o vírus que a corrompe.” 13

As palestras de Lopes se estenderam por todo o primeiro semestre de 1894.

Misturando vocábulos e micróbios, o linguista, que também era médico , expunha seus 14

argumentos. Eles deram margem para que nosso semanista, mais uma vez, mostrasse o

outro lado da moeda, contrariando de certa forma o periódico para o qual escrevia. Em

novembro daquele mesmo ano, afirmava que o linguista, que seria “a nossa Academia

Francesa”, admitira em seu dicionário a palavra atualidade. O intento, todavia, havia sido

frustrado: “Em vão a pobre atualidade andou por livros e jornais, conversações e discursos; em vão Littré a incluiu no seu dicionário. A Academia não lhe deu ouvidos. Só quando uma espécie de sufrágio universal decretou a expressão, é que ela canonizou. Donde se infere que o Sr. Castro Lopes, sendo a nossa Academia Francesa, é também o contrário dela. É a academia pela autoridade, é o contrário pelo método. Longe de esperar que as palavras envelheçam cá fora, ele as compõe novas, com os elementos que tira da sua erudição, dá-lhes a bênção e manda-as por esse mundo. O mesmo paralelo se pode fazer entre ele e a Igreja Católica. Igreja, tendo igual autoridade, procede como a academia, não inventa dogmas, define-os.” 15

O narrador denunciava que a imposição de certos vocábulos e normas linguísticas

eram vãs, já que apenas a popularização de certas palavras as consolidava no léxico

brasileiro. Divagando sobre outros termos e seus usos, afirmava que alguns vocábulos,

independentemente de seus criadores, caíam no gosto popular e passavam a integrar as

falas. Era o caso de engrossador: “certo é que este, apesar de anônimo e popular, ou por

isso mesmo, espalhou-se e prosperou; não admirará que fique na língua, e se houver, aí por

LOPES, João de Castro. “Palestras com o Povo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06 fev. 1894, p.1.13

De acordo com Sacramento Blake, Antonio de Castro Lopes, nascido no Rio de Janeiro em 1827, era 14

formado em medicina pela Faculdade da Corte, mas também trabalhara como professor de gramática latina no Colégio D. Pedro II. Clinicou como médico homeopata. Suas inúmeras obras tratavam de variados assuntos: desde a utilidade da dor, passando por astronomia, poesia, dicionários, até a arte de ganhar dinheiro. Cf. SACRAMENTO BLAKE, op. cit. Vol. 1, p. 133-6. Faleceu em 1901. Cf. também: BORTOLANZA, João. “O Poeta Novilatino Carioca: Antônio de Castro Lopes”, Humanitas, Vol. LI (1999), p.301-316.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 25 de novembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 15

Janeiro, 25 nov. 1894, p.1.

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1950, uma Academia Brasileira, pode bem ser que venha a incluí-lo no seu dicionário. O Sr.

Dr. Castro Lopes poderia recomendá-lo a um alto destino.” 16

Lopes era alvo de comentários em “A Semana” desde 1892, quando tratava da

“legalização, e portanto a legitimação” da palavra zangão, com o seu plural zangões.

Segundo o cronista, apesar do esforço da “prosódia verdadeira” em instituir zângãos, “o

povo achou mais fácil ir carregando para diante, e pôr o acento na segunda sílaba, fazendo

zangão e zangões”. Tratava então da tentativa do “Sr. Dr. Castro Lopes que há pouco tratou

de bençam, querendo que se diga benção, e bênções, é que há de explicar por que razão o

povo em um caso escorrega para diante e em outro para traz. Eu creio que tudo provém da

situação da casca de banana, que, se está mais próxima do bico do sapato, faz cair de

ventas, se mais perto do tacão, faz cair de costas.” Também naquele caso, o uso popular 17

sobrepunha as investidas dos que queriam impor normas. Essa era a mesma ideia presente

na crônica de março de 1893 em que novamente tratava de Castro Lopes “que trabalha no

silêncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo.

Anuncia-se agora um volume de questões econômicas, em que ele trata, além de outras

coisas, de uma moeda universal”. O estudioso atacava, portanto, em várias frentes, muito

embora não parecesse ser bem sucedido em nenhuma delas, uma vez que o semanista dizia:

“Acabo de ler que um dos mais influentes propugnadores daquela língua reconhece a

inutilidade do esforço. O comércio do mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres

antigos às combinações dos que gramaticaram aquele invento curioso. É que o artificial

morre sempre, mais cedo ou mais tarde.” Esta última sentença parecia definir o trabalho 18

do cientista da língua.

A artificialidade e mesmo os devaneios linguísticos de Castro Lopes, que

continuavam a ser divulgados pela imprensa, viravam alvo dos comentários de “A

Idem.16

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 08 de maio de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 17

mai. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 26 de março de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26 18

mar. 1893, p.1. (grifos meus).

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Semana”. Em 1895, o semanista dedica quase uma crônica inteira para discorrer sobre suas

teorias e métodos. No Carnaval daquele ano o cronista discorria sobre a filosofia da festa,

que era: “A alegria é a alma da vida”:

“Tal é a filosofia do carnaval; mas qual é a etimologia? O Sr. Dr. Castro Lopes reproduziu terça-feira a sua explicação do nome e da festa. Discordando dos que vêem no carnaval uma despedida da carne para entrar no peixe e no jejum da quaresma (caro vale, adeus, carne), entende o nosso ilustrado patrício que o carnaval é uma imitação das lupercais romanas, e que o seu nome vem dali. Nota logo que as lupercais eram celebradas em 15 de fevereiro; matava-se uma cabra, os sacerdotes untavam a cara com o sangue da vítima, ou atavam uma máscara no rosto e corriam seminus pela cidade. Isto posto, como é que nasceu o nome carnaval? Apresenta duas conjecturas, mas adota somente a segunda, por lhe parecer que a primeira exige uma ginástica difícil da parte das letras. Com efeito, supõe essa primeira hipótese que a palavra lupercalia perdeu as letras l, p, i, ficando uercala; esta, torcida de trás para diante, dá careual; a letra u entre vogais transforma-se em v, e daí careval; finalmente, a corrupção popular teria introduzido um n depois do r, e ter carneval, que, com o andar dos tempos, chegou a carnaval. Realmente, a marcha seria demasiado longa. As palavras andam muito, em verdade, e nessas jornadas é comum irem perdendo as letras; mas, no caso desta primeira conjectura, a palavra teria não só de as perder, mas de as trocar tanto, que verdadeiramente meteria os pés pelas mãos, chegando ao mundo moderno de pernas para o ar. Ginástica difícil. A segunda conjectura parece ao Sr. Dr. Castro Lopes mais lógica, e é a que nos dá por solução definitiva do problema. Ei-la aqui. ‘Era muito natural, diz o ilustrado linguista, que nessas festas se entoasse o canto dos irmãos arvais; muito naturalmente também ter-se-á dito, às vezes, a festa do canto arval (cantus arvalis), palavras que produziram o termo carnaval, cortada a última sílaba de cantos e as duas letras finais de arvalis. De canarval a carnaval a diferença é tão fácil, que ninguém a porá em dúvida’.” 19

Os segredos etimológicos de Lopes eram difíceis, cheios de voltas. Não eram, por

certo, as soluções definitivas ironizadas pelo semanista. Mais uma vez, denotava-se o

caráter artificial dessas explicações cheias de pompa e com ares de teoria científica.

Lembremos que nosso cronista era muito reservado ao comentar nomes de pessoas

conhecidas, ainda mais das ainda vivas. Todavia, tendo em mente a chave de leitura

proposta nesta dissertação, o linguista decerto era alvo fácil para as críticas. Além disso, a

insistência ao longo dos anos no nome do estudioso revela que o ridículo de suas teses

saltava aos olhos, sobretudo pela teimosia em impor normas que não seriam seguidas e em

criticar o linguajar popular. O cronista chega a citar trechos de seus escritos, demonstrando

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 03 de março de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 19

mar. 1895, p.1. (grifos no original).

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o interesse com que lia aquelas suposições estapafúrdias. O próprio doutor deveria estar

ciente de que suas proposições não eram seguidas, uma vez que o narrador assevera:

“O que eu nego ao nosso Castro Lopes, é o papel de Cassandra que se atribui, afirmando que não é atendido em nada. Não o será em tudo; mas há de confessar que o é em algumas coisas. Há palavras propostas por ele, que andam em circulação, já pela novidade do cunho, já pela autoridade do emissor. Cardápio e convescote, são usados. Não é menos usado preconício, proposto para o fim de expelir o reclame dos franceses, embora tenhamos reclamo na nossa língua, com o mesmo aspecto, origem e significação. Que lhe falta ao nosso reclamo? Falta-lhe a forma erudita, a novidade, certo mistério. Eu, se não emprego convescote, é porque já não vou a tais patuscadas, não é que lhe não ache graça expressiva. O mesmo digo de cardápio.” 20

Embora aparente demonstrar certa condescendência para com os arrazoados do

cientista da língua, o narrador isenta-se do uso das palavras que em tese eram aceitas. As

patuscadas deveriam ser muito mais populares que os convescotes.

A coluna de Castro Lopes na Gazeta de Notícias, que parecia ser uma tentativa de

instruir seu público leitor, não estava isolada. No segundo semestre, o periódico lançava “A

Medicina Contada aos Doentes”, assinada pelo Dr. J. Velloso, que escreveria diretamente de

Londres. O tema do primeiro artigo, recheado de referências científicas e de teóricos, como

o professor Victor Horsley, era “A ressurreição dos que morrem com um tiro na cabeça” . 21

O sumário do artigo era ambicioso, pois prometia elucidar, dentre outras várias coisas,

“como é possível que alguém morra só porque lhe entrou uma bala na cabeça”, as “teorias

para explicar como se morre de tais lesões”, desvendar “como é que as cozinheiras matam

os coelhos e as aves e como os toureiros matam os touros”, além da “necessidade da

divulgação popular deste meu artigo” . O público-alvo do escrito seria o leigo que nem 22

sempre pode ter à mão “um sábio médico”. O autor dizia ter aceitado o convite da

“ilustrada” redação do jornal com o objetivo de tratar dos progressos mais importantes da

Idem. (grifos no original).20

DR. VELLOSO, “A Medicina Contada aos Doentes”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 out. 1894, p.21

1-2. Idem. (grifos meus). O Dr. Velloso já havia dado as caras no periódico no ano de 1892. Cf. “Sciencias – A 22

Medicina Contada aos Doentes”, Supplemento Litterario da Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 jan. 1892. No dia anterior a Gazeta anunciara que o Supplemento era organizado por Eça de Queiroz. “Supplemento Litterario”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 jan. 1892, p.1.

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medicina, “por forma que todos pudessem compreender o seu alcance”. Acrescentava que

algumas pessoas, prudentemente, o haviam aconselhado a não falar de medicina aos

enfermos, mas que tal objeção não faria sentido, uma vez que poderia “levantar o moral”

dos convalescentes.

Naquele mesmo ano a Gazeta passou a publicar ainda uma série intitulada

“Esoterismo”. O periódico justificava a escolha dizendo que desde alguns anos o assunto

despertava a atenção de “vários sábios e de profundos literatos nos centros mais civilizados

da Europa.” O autor da série seria uma pessoa que se aplicara ao estudo das ciências 23

ocultas enquanto esteve durante muitos anos no velho Continente; além disso, teria sido

“um dos chefes dos grupos esotéricos de Paris”. Com a certeza de que seus leitores muito

apreciariam o “método oculto aplicado às ciências modernas”, assegurava que eles veriam

confirmados muitos fenômenos que até aquele momento eram considerados puras

hipóteses. A seção seria, para melhor compreensão, acompanhada por ilustrações.

A Gazeta fazia ainda a seguinte ressalva:“Convém não confundir o estudo das ciências ocultas com o espiritismo.

Não há evocação de almas do outro mundo, há observação científica de fenômenos naturais. Os leitores da buena-dicha, os ciganos que pretendem ler o futuro nas linhas da mão, são uns empíricos, que abusam da credulidade do Zé Povinho. A quiromancia científica tem sido posta à prova milhares de vezes, e os nossos leitores vão ver como em mãos de pessoas habilitadas as linhas das mãos revelam os fatos mais curiosos.” 24

No dia seguinte era publicado um longo artigo, assinado por Lamed, explicando aos

leitores o que eram as ciências ocultas. O articulista argumentava que no século em que “as

ciências exatas caminham a passadas de gigante; o observador dos fenômenos fisiológicos,

que, ainda ontem, parecia não querer prestar à psicologia toda a atenção que merece, ver-

“Sciencias Occultas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 jun. 1894, p.1. (grifos meus).23

Idem. (grifos meus).24

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se-á no dia seguinte a braços com o misterioso Desconhecido.” Os textos e as ilustrações 25

se centravam na Astrologia e na Quiromancia. Eram publicados quase que diariamente até

o final de 1894, mas a seção perdurou, embora bem mais esparsamente, até fevereiro de

1895, quando a Gazeta anunciou a suspensão da coluna que, de acordo com ela, havia

despertado a atenção e a curiosidade do público por vários meses. A razão alegada seria a

intenção de Lamed de lançar em livro sua obra completa sobre a leitura das mãos . 26

Machado incluiu comentários sobre essa seção em “A Semana”. Aliás, o fez englobando

outros assuntos científicos do periódico: “Toda esta semana foi de amores. A Gazeta deu-nos o capítulo esotérico do anel de

Vênus desenhado a traço grosso na mão aberta do costume. Da Bahia veio a triste notícia de um assassinato por amor, um cadáver de moça que apareceu, sem cabeça nem vestidos. Aqui foi envenenada uma dama. Julgou-se o processo do bígamo Louzada. Enfim, o intendente municipal Dr. Capelli fundamentou uma lei regulando a prostituição pública, — “a vaga Vênus”, diria um finado amigo meu, velho dado a clássicos” 27

O narrador utiliza o pretexto das ideias científicas publicadas pela Gazeta para

supostamente divagar sobre o amor. O artigo a que ele se refere era do dia anterior à

crônica. Nele, Lamed explicava aos leitores que o anel de vênus, localizado na base do

dedo médio, indicava o amor devasso, desenfreado, cego, lúbrico e obsceno. Se o tal anel

fosse “quebrado nas duas mãos” significaria: “paixão excêntrica, sodomia ou, pelo menos,

gosto dos amores depravados”. As coisas pioravam se o anel tivesse linhas profundas, que

implicavam “atração fortíssima para todos os tipos de prazeres impuros”. O possuidor de

tais características poderia ser “salvo” se o anel fosse até o monte de Mercúrio e

permanecesse aberto; aí “a ciência e o trabalho vêm combater e anular esses terríveis

instintos de luxúria desenfreada” . 28

LAMED. “Esoterismo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 jun. 1894, p.1. Essas ciências se dividiriam 25

em cinco partes: Fisiognomonia, ou arte de adivinhar o homem físico pelos traços da face; Frenologia, que consistiria em reconhecer tendências, aptidões e caráter pelo exame das protuberâncias cranianas; Grafologia, ou ciência da letra, que permitiria conhecer o escritor por seus manuscritos; a Quiromancia, que saberia definir o caráter e aptidões pelo estudo da forma das mãos e, finalmente, a Astrologia, “mãe e síntese de todas as outras – que, mesmo sem conhecer o consultante, pode penetrar em sua vida íntima e relatar-lhe os acontecimentos com exatidão quase rigorosa.” Idem.

“Esoterismo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 fev. 1895, p.2. 26

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de outubro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 27

Janeiro, 21 out. 1894, p.1. LAMED. “Esoterismo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 out. 1894, p.1.28

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Tal qual o texto do colega de Gazeta, os outros assuntos mencionados no trecho

eram bastante recentes, o que leva à hipótese de que a crônica fosse escrita na véspera, ou

ainda que Machado tivesse acesso a ele antes de ser dado a público. Ao pinçar e juntar esses

assuntos, o narrador alega que o fazia porque todos tratavam de amor, todavia, algo que

eles têm em comum são as questões morais levantadas pelos periódicos, usando, em

alguma medida, argumentos científicos. O caso da Bahia aparecera nos telegramas que

davam conta de uma mulher branca encontrada decapitada em Mares, cuja cabeça fora

enviada à Academia de Medicina para exames, depois de fotografada . A dama envenenada 29

era Mathilde Amelia do Sacramento, cujo ex-amante acresceu ao seu bule de café uma dose

de estricnina; reações e consequências da intoxicação eram apresentadas aos leitores . Já o 30

capitão Manuel Ferreira Louzada havia sido preso no mês anterior por bigamia . 31

Misturando autópsias, descrições de sintomas e moralidade, todas aquelas notícias tentavam

provar o contrário do que dizia o cronista: não tratavam de sentimentos, e sim de

características inatas à la Lombroso , que poderiam ser provadas pela ciência. 32

Contudo, o narrador insiste no argumento do amor, centrando seus comentários no

projeto do Dr. João Baptista Capelli. A proposta do intendente, que também era médico , 33

previa que as “infelizes mulheres” que na capital se entregavam “ao degradante vício da

prostituição pública” fossem submetidas a exames médicos semanais ou quinzenais, sob o

“Bahia 16”, in: “Telegrammas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 out. 1894, p.1. e “Bahia, 18” in: 29

“Telegrammas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 out. 1894, p.1. Em O Paiz apareceram mais detalhes do caso, afirmando que se tratava de um crime passional, cometido pelo amante da vítima, “rapaz de precedentes pouco abonadores”. “Bahia 17”, “Telegrammas”, O Paiz, Rio de Janeiro, 18 out. 1894, p.1. As informações sobre a identificação da assassinada e do suposto criminoso seriam desmentidas no telegrama do dia 19, publicado pela Gazeta, denotando mais uma vez o desencontro das notícias vindas pelo telégrafo.

“Envenenamento”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 out. 1894, p.1.30

Louzada foi ainda acusado de ter abandonado a primeira esposa, que vivia do trabalho honesto, e dois filhos 31

de maneira cruel. “Bigamo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 set. 1894, p.1. Em sua defesa, Louzada dizia que a sua suposta primeira esposa era na verdade sua cunhada. A verdadeira esposa teria se entregado à prostituição e falecido nessa “má vida”. “Bigamo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 set. 1894, p.1.

LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. 1ª reimpressão. Tradução de Sebastião José Roque. São 32

Paulo: Ícone Editora, 2010. De acordo com a revista O Álbum, Capelli era médico, nascido em 1860, e também publicara poesias na 33

imprensa de São Paulo e Minas Gerais. Tal qual Machado, em 1893 ele é homenageado com a publicação de seu perfil e de seu retrato no periódico de Azevedo. Cf. AMARANTE, “Dr. João Baptista Capelli”, O Álbum, Rio de Janeiro, out. 1893, p.321-2.

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ponto de vista das moléstias contagiosas ou infectantes. Os comissários e agentes de

higiene seriam os responsáveis pelos procedimentos. Além disso, deveria ser feita uma

relação das moradas das mulheres “reconhecidamente desse quilate”. Era ainda

expressamente proibido nessas casas qualquer “sinal de ostentação ou indício” que

chamasse a atenção pública. A infração por parte “das delinquentes” seria punida com

multa . 34

O cronista de “A Semana” alegava que os discursos de Capelli não eram apenas

justificações “rápidas e locais” de um projeto de lei, apresentando “verdadeiras

monografias” que, de tão completas, esgotavam o assunto. O estilo do intendente era

classificado como “meio didático, meio imaginoso”, o que era raro nas câmaras

legislativas, onde mesmo os moços que brilharam em associações acadêmicas e literárias

despiam-se “da clâmide e da metáfora” para falar “chão e natural” . Na aparente divagação 35

elogiosa, o narrador comentava as abordagens que eram feitas por políticos, doutores e pela

imprensa para tratar de uma realidade que não pareciam captar. Ridicularizava ainda o

estilo e os argumentos de Capelli, que se sobressaía na intendência com os projetos que

previam medidas extremas, pautadas pelo sanitarismo . 36

O semanista dizia que o amor deveria ser defendido para que não se corrompesse,

nem se desvirtuasse. Quando não fosse possível tolher o mal, seria necessário “acudir-lhe

com a lei, e obstar à inundação pela canalização”. Dizia acreditar que era essa também a

tese de Capelli, que, ao tratar da prostituição, fizera ao mesmo tempo uma monografia do

amor. O cronista lera atentamente o discurso do intendente, uma vez que a ele se atém por

várias linhas, descrevendo as causas e soluções mencionadas:

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 set. 1894, p.1. A Gazeta dá destaque ao projeto, publicando-o em 34

separado das outras atividades do Conselho Municipal, na primeira página. ASSIS, “A Semana – Crônica de 21 de outubro de 1894”, op. cit.35

Em 2 de junho de 1894, apresentou o projeto de um plano de saneamento para a cidade do Rio de Janeiro 36

que incluía a extinção de quiosques, abertura de avenidas, arrasamento dos morros, aterro de algumas praias e do canal do Mangue, além da extinção das estalagens. “Conselho Municipal”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 jun. 1894, p.1.

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“[…] O discurso enumera as causas da prostituição. A primeira é a própria constituição da mulher. Segue-se o erotismo, e a este propósito cita o célebre verso de Hugo: Oh! n’insultez jamais une femme qui tombe! Vem depois a educação, e explica que a educação é preferível à instrução... O luxo e a vaidade são as causas imediatas. A escravidão foi uma. Os internatos, a leitura de romances, os costumes, a mancebia, os casamentos contrariados e desproporcionados, a necessidade, a paixão e os D. Juans. De passagem, historiou a prostituição no Rio de Janeiro, desde D. João VI, passando pelos bailes do Rachado, do Pharoux, do Rocambole e outros. Nomeando muitas ruas degradadas pela vida airada, repetia naturalmente muitos nomes de santos, dando lugar a este aparte do Sr. Duarte Teixeira: ‘Arre! quanto santo!’

Vieram finalmente os remédios, que são quatro: a educação da mulher, a proibição legal da mancebia, o divórcio e a regulamentação da prostituição pública. Toda essa parte é serena. Há imagens tocantes. ‘No pórtico da humanidade a mulher aparece como a estrela do amor’. Depois, vem o projeto, que contém cinco artigos. Será aprovado? Há de ser. Será cumprido?” 37

O narrador ironizava o discurso do intendente por meio da proposta de uma leitura

diversa dos argumentos. Ao passo que o projeto se centrava na normatização de práticas

que a própria fala classificava como seculares, o cronista de “A Semana” fazia questão de

enfatizar os rompantes retóricos do discursista que causam involuntariamente o humor . 38

Além disso, põe em xeque o cumprimento da lei, muito embora preveja que ela seria

aprovada. A propósito, aquela não era a primeira vez que Capelli era alvo dos comentários

na série. Sobre o plano sanitário proposto por ele, afirmava o semanista que, se ele não

resolvia a questão higiênica completamente, ao menos o fazia em parte, uma vez que o

primeiro artigo previa concurso para a nomeação dos comissários de higiene, que passariam

a se chamar inspetores sanitários. A troca de nome era meio caminho andado para a

ASSIS, “A Semana – Crônica de 21 de outubro de 1894”, op. cit. Em O Paiz aparecia um breve resumo 37

dos argumentos do “longo e importante” discurso. De acordo com o relato, a opinião de Capelli era de que as principais “causas produtoras” do mal seriam “a natureza da mulher, a falta de educação moral e religiosa, o histerismo, a escravidão, os costumes, a miséria ou a necessidade de D. Juans e os casamentos desproporcionados”. As soluções seriam proibir legalmente a mancebia, instituir o divórcio e as regulamentações policial e higiênica da prostituição pública. Cf. “Conselho Municipal”, O Paiz, Rio de Janeiro, 18 out. 1894, p.1. O semanista cita as mesmas palavras, na ordem em que apareciam no periódico. Menciona ainda que a descrição do discurso ocupara sete colunas e meio de uma folha, o que nos leva a imaginar que o tenha lido em outra fonte que não os jornais mencionados. Todavia, O Paiz teria se baseado em alguma versão oficial divulgada na imprensa. A Gazeta de Notícias limitou-se a divulgar o projeto, ignorando a fala.

Para uma análise pormenorizada da experiência das prostitutas frente aos dispositivos jurídicos utilizados 38

no período, ver: PEREIRA, Cristiana Schettini. “Que Tenhas Teu Corpo”: a história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional, 2006. Cf. também: GARZONI, Lerice de Castro. Vagabundas e conhecidas : novos olhares sobre a polícia republicana (Rio de Janeiro, início século XX). Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2007.

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solução, ou seja, nada mudaria . Isso nos recorda o genro da primeira “A Semana” que se 39

queria agrimensor apenas para ser chamado de doutor, crônica já analisada nesta

dissertação.

Apesar das críticas do cronista, a Gazeta seguiu científica. O verão de 1895 é

recheado de pendengas em torno do assunto, com a coluna “Estado Sanitário” trazendo

diariamente notícias sobre as epidemias, as últimas teorias sobre elas, bem como os

medicamentos e terapias indicadas para combater sua propagação. Em 1896, é lançada a

“Revista Scientifica”, assinada por Ômega, com as novidades do exterior. Aparecem ainda

as colunas intituladas “Saneamento da Cidade” e a “Lembranças Hygienicas” nos mesmos

moldes e ainda indicando ações enérgicas. A última, por exemplo, sugeria que tuberculosos

fossem impedidos de casar, evitando assim a “degeneração da prole” e a “decadência

orgânica”. Adiantava que a medida não teria “resultado absoluto”, uma vez que haveria

fraude e erro de diagnóstico, mas ainda assim criaria embaraços sérios aos tuberculosos

que, ao contrair matrimônio, fatalmente incorreriam em uma “prole assassinada em breve

pelos seus próprios pais” . Dias depois o Dr. Souza Lima endossava a proposta e 40

acrescentava que não via naquilo uma afronta à liberdade individual, mas um fator que

contribuía para o “saneamento do matrimônio, uma das bases da higiene social” . 41

Candido Barata Ribeiro, ex-prefeito municipal, publica uma série de artigos

intitulados “Questões Municipais” nos quais indica medidas firmes para transformar a

cidade em uma capital higiênica. Seu principal argumento é sobre a necessidade histórica e

higiênica de alargar as ruas da capital . A Gazeta de Notícias trata-o como figura ilustre e 42

exemplo de administrador público. Como veremos adiante, durante sua administração isso

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 01 de abril de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 01 39

abr. 1894, p.1. “Lembranças Hygienicas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 jun. 1896, p.2.40

“Lembranças Hygienicas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 jul. 1896, p.2.41

Ver, por exemplo: BARATA RIBEIRO, Candido. “Questões Municipais”. Gazeta de Notícias, Rio de 42

Janeiro, 29 mar. 1895, p.2.

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não era diferente. O leitor e o cronista-leitor se deparavam com uma farta gama de textos

defendendo as teses sanitaristas e tratando os doutores da higiene como sábias celebridades.

2. Micróbios e meias ciências…

“Mas, francamente, que é que lucramos com a explicação? A realidade

é seca, a ciência é fria; viva o mistério e a credulidade!”

Machado de Assis, “A Semana”, 10/09/1894.

Pouco tempo depois de sua estreia, a crônica semanal de Machado de Assis fazia

referência aos minúsculos inimigos que atormentavam os médicos sanitaristas. O tom de

galhofa na abordagem desse assunto se tornaria uma constante ao longo de toda a série. Ao

tratar rapidamente da influenza argentina que, de acordo com as notícias, atacara cerca de

quatorze mil pessoas somente em Buenos Aires, diz que o faz com o fim único de dizer que

um afilhado seu, “doutor em medicina, pensa que o homem é o condutor pronto e seguro do

bacilo daquela terrível peste, mas que eu não acredito, nem no bacilo do mal, nem na

balela, que é alemã. Gente alemã, quando não tem que fazer, inventa micróbios” . 43

A descrença em relação ao arrazoado do afilhado médico é notória. Os bacilos

condutores de enfermidades não passam de rumores para o semanista. Os micróbios, tão

temidos, seriam invenções de alemães desocupados, sem coisa melhor para fazer. As

certezas científicas, pautadas em uma suposta lógica, são desfeitas pela lógica própria do

narrador e, muitas vezes, após a análise atenta, a incoerência dos cientistas é visível.

Para enfatizar esse tipo de ideia, o cronista esporadicamente diz abraçar algumas

teorias, ao passo que as expõe ao ridículo. É o que acontece no texto de 24 de julho de

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 05 de junho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 43

jun. 1892, p.1.

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1892, quando o assunto gira em torno de uma vaga na deputação da Capital Federal. Em

suas conjecturas, traça os argumentos que levaria à tribuna:

“E que faria eu se entrasse na Câmara? Levaria comigo uma porção de ideias novas e fecundas, propriamente científicas. Entre outras proporia que se cometesse a uma comissão de pessoas graves a questão de saber se o dinheiro tem sexo ou não. Questão absurda para os ignorantes, mas racional para todos os espíritos educados. Qual destes não sabe que a questão do sexo vai até os sapatos, isto é, que o sapato direito é masculino e o esquerdo é feminino, e que é por essa sexualidade diferente que eles produzem os chinelos? Na casa do pobre a gestação é mais tardia, mas também os chinelos acompanham o dono dos pais. Os ricos, apenas há sinal de concepção, entregam os pais e os fetos aos criados.” 44

Acerca da porção de ideias que o narrador carregaria para a Câmara, assegurando

serem todas muito científicas, vemos que, a julgar pelo exemplo, giravam em torno de

coisas estapafúrdias. O argumento traz embutida a ressalva de que a questão do sexo do

dinheiro pareceria um disparate somente aos espíritos deseducados. Fica subentendida a

crítica aos argumentos utilizados por discursistas que apelariam para a ciência, podendo,

quando muito, serem somente entendidos por seus pares. Pode-se cogitar ainda que as

palestras deste tipo tratassem de tópicos tão esdrúxulos como o proposto pelo semanista. A

diferença estaria na crítica de fundo, contida em suas proposições. Tanto na primeira

crônica mencionada, quando há o descrédito em relação ao afilhado doutor em medicina,

quanto na última, em que o narrador parece encampar os discursos supostamente baseados

em preceitos científicos, o alvo é o uso das teorias do cientificismo em voga para a

justificação de ações arbitrárias que incidiam sobre a vida da população.

Em crônica de agosto de 1892, o narrador de “A Semana” mais uma vez brincava

com os saberes ditos científicos. Após enfatizar que toda a semana fora empregada em

comentar a eleição para a Câmara dos Deputados, ocorrida no domingo anterior, ou melhor,

a ausência de parcela majoritária do eleitorado e mesmo de mesários, afirmava que as

opiniões se dividiam entre os que viam naquele fato a indiferença pública, os que alegavam

se tratar de descrença e outros de abstenção. Todos estavam de acordo, porém, em que

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 24 de julho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 44

jul. 1892, p.1. (grifos meus).

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aquele era um grande mal. Por sua vez, o narrador, em sua típica atitude de salientar sua

superioridade, começava por pontuar o “abismo” que o afastava dos demais comentadores.

Estes diziam o mal sem acrescentar o remédio, ele trazia o medicamento que havia de curar

os doentes: “Tudo está em acertar a causa da moléstia.” Excluía logo a abstenção, uma vez

que somente concederia que houvesse algumas, talvez centenas, mas não vinte e oito mil

pessoas. Descartava também a descrença, “explicação fácil e nem sempre sincera” e 45

citava um caso para ilustrar seu argumento: “Conheço um homem que despendeu outrora vinte anos da existência em falsificar atas, trocar cédulas, quebrar urnas, e que me dizia ontem, quase com lágrimas, que o povo já não crê em eleições. ‘Ele sabe — acrescentou fazendo um gesto conspícuo — que o seu voto não será contado’. Pessoa que estava conosco, muito lida em ciências e meias ciências, vendo-me um pouco apatetado com essa contradição do homem, restabeleceu-me, dizendo que não havia ali verdadeira contradição, mas um simples caso de ‘alteração da personalidade’.” 46

Àquela altura, Machado trazia à roda a discussão do uso da ciência, ou de

pseudociências que eram colocadas sob tal título, para a justificação de interesses

particulares que interferiam na vida da população brasileira, ou mesmo a regiam. No

exemplo mencionado, o narrador faz questão de enfatizar a condição da pessoa,

supostamente ilustrada, que na verdade traçava uma explicação de modo a apaziguar os

ânimos, mascarando a fraude, eximindo o autor de culpa, mesmo que, na prática, o crime

eleitoral se mantivesse. Tudo era uma questão de escolha de palavras, o que percebemos ser

uma constante crítica na série.

Curiosamente, a explicação encontrada pelo semanista também se reveste do

disfarce lógico e moderno. A ausência do eleitorado seria causada pela inércia. Prescrevia,

inclusive, que o eleitor fosse alvo de estudo: “Estudai o eleitor; em vez de andardes a trocar

as pernas entre três e seis horas da tarde, estudai o eleitor”; o que confirmava as intenções

de aproximar-se do discurso cientificista para elaborar sua interpretação. Esta se mostraria,

a princípio, tão estapafúrdia quanto a de seu conhecido. Para ele, embora o eleitorado fosse

Cf. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 07 de agosto de 1892”. Gazeta de Notícias, Rio de 45

Janeiro, 07 ago. 1892, p.1. Idem. (grifos meus). 46

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“bom, honesto e desejoso da felicidade nacional”, sair de casa para votar nada tinha de

pitoresco, além de não trazer nenhum gozo pessoal – como os teatros, as procissões e os

bailes – sendo antes o que se chamava vulgarmente uma “caceteação”. E complementava:

“Que tem o eleitor com isso? Pois não há governo? O cidadão, além dos impostos, há de ser

perseguido com eleição?” 47

Identificada a moléstia, então, como prometido, era oferecida a cura, que se daria,

assegurava o narrador, por meio de sua “medicação soberana”. Consistiria na

sistematização de acordos prévios entre eleitores e candidatos, facilitados pela estratégia da

urna ir até o eleitor e não o contrário. Listas seriam levadas de porta em porta, ao passo que

os eleitores, “estendidos na chaise-longue”, as assinariam. Para evitar reações adversas ao

medicamento, antecipava que os coletores de votos poderiam bater em casas cujos votos já

tivessem sido recolhidos, o que não deveria causar embaraço, uma vez que se podia alegar

que a primeira lista fosse, na verdade, do dia seguinte, ou seja, mais uma fraude. A solução

científica do semanista nada tinha de definitiva, uma vez que os hábitos se adaptariam ao

novo contexto imaginário.

Recordemos que na primeira “A Semana” o narrador tratava do mesmo assunto: a

ausência do eleitorado nas votações. Tal qual naquela crônica, Machado aqui brinca com as

palavras para demonstrar a superficialidade que permeia o contexto que o cerca. O título de

doutor de um futuro genro se equipara à solução de chamar a fraude eleitoral de alteração

de personalidade. Mudavam os títulos, porém não a substância.

Meses mais tarde, o narrador voltava à ideia de que a modernidade das teorias

científicas, então em voga, não diferiam substancialmente de outros credos vistos, naquele

momento, como ultrapassados ou sem fundamento. Citava o discurso de Teixeira Mendes,

que afirmava que as igrejas positivista e católica, às quais o narrador chamava de

“assustadoras utopias”, estariam de acordo sobre um ponto: ambas poderiam ser

suplantadas pelas “teorias científicas sobre o mundo, a sociedade e o homem que acabarão

Ibidem. 47

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por fazer com que a razão reconheça a sua impotência, e a necessidade de subordinar-se à

fé...”. Que fé? Não mais em Deus, mas sim na humanidade. O narrador emitia então o seu

juízo:

“Pelo que me toca, eterno divergente, não tenho tempo de achar uma opinião média. Temo que a Humanidade, viúva de Deus, se lembre de entrar para um convento; mas também posso temer o contrário. Questão de humor. Há ocasiões em que, neste fim de século, penso o que pensava há mil e quatrocentos anos um autor eclesiástico, isto é, que o mundo está ficando velho. Há outras ocasiões em que tudo me parece verde em flor.” 48

Em 16 de abril de 1893, ao comentar o eclipse do sol que ocorreria naquele dia,

anunciado com muita antecedência por astrônomos, o cronista dava conta da chateação

causada pelo advento das explicações científicas, que arrasavam tradições, superstições e

fés. Uma casta enorme de fenômenos era perfeitamente descrita, com a hora exata de

ocorrência, e ninguém mais precisava aguardar para descobrir como eram. Uma vez que o

incerto era “o sal do espírito”, assim se ia o “melhor da vida”. Bons eram os tempos em que

eclipses, assim como os cometas, não andavam em almanaques e queriam dizer alguma

coisa: “Tudo acabou. Eclipses, cometas, sonhos, entranhas de vítimas, número

treze, pé esquerdo, quantos capítulos rasgaram à alma humana, para substituí-los por outros, exatos e verdadeiros, mas profundamente insípidos. Quando Javé tomou conta do Olimpo, os homens tinham um resto dos antigos medos, e porventura criaram outros; mas o tempo os foi roendo. Pode ser que ainda agora haja algum, em vilas interiores, como as modas do ano passado; mas são restos de restos. O cálculo substituiu a novidade, o anúncio matou o espanto.” 49

Aos olhos do narrador, o cientificismo tirava a graça das coisas e acabava com o que

antes era visto como espetáculo. Essa é a mesma ideia que está presente em crônica do mês

seguinte. Aquela “A Semana” começava por asseverar que: “Tudo se desmente neste

mundo, e o século acaba com os pés na cabeça. Podia acabar pior” . Exemplificava 50

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 04 de dezembro de 1892”. Gazeta de Notícias, Rio de 48

Janeiro, 04 dez. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 16 de abril de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 49

abr. 1893, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de maio de 1893”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 50

mai. 1893, p.1.

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dizendo que o verão anterior deixara saudades, por seus dias frescos e seu obituário pobre.

O atual era justamente o contrário, com doenças, calor e cada vez mais mortes. E isso não

era tudo:

“A própria ciência parece não saber a quantas anda. Tempo há de vir em que o xarope de Cambará não cure, e talvez mate. Já agora são os bondes que empurram as bestas; esperemos que os passageiros os não puxem um dia. Quando éramos alegres, — o que dá no mesmo, quando eu era alegre, — aconteceu que o gás afrouxou enormemente. Como se despicou o povo da calamidade? Com um mote: O gás virou lamparina. Ouvia-se isto por toda a parte, lia-se no meio de grande riso público. Lá vão trinta anos. Agora nem já sabemos pagar-nos com palavras. Quando, há tempos, o gás teve um pequeno eclipse, levantamos as mãos ao céu, clamando por misericórdia.” 51

A declaração de que o tempo em que ele era alegre estava findo demonstra o

descontentamento do narrador com o presente e a crença de que no passado a vida era

melhor, ideia, aliás, muito comum na série, como visto no capítulo anterior. A opinião do

narrador desmerecia o avanço da ciência que explicava tudo muito racionalmente,

arrancando a graça dos mistérios cotidianos.

Esse pensamento está no extremo oposto do que defendia a Gazeta de Notícias, que

se colocava em geral ao lado das ações municipais para higienizar o Rio de Janeiro. O

jornal procurava ainda divulgar as teorias que faziam sucesso no exterior. A propósito dos

microrganismos citados na crônica em que aparecia o afilhado médico, a folha publicava

um trecho de uma conferência feita pelo “sábio professor” Poiton-Duplessy perante

L'Union des Femmes de France, sociedade de senhoras. Ali estariam expostos, com a

“máxima clareza e brevidade”, os princípios atualmente aceitos na ciência acerca da

“interessante questão dos micróbios”. Segundo o ilustrado palestrante, todas as moléstias

transmissíveis e contagiosas, sem nenhuma exceção, gozariam do triste privilégio de se

reproduzirem indefinidamente e seriam, com certeza, causadas “pela presença de

organismos vivos infinitamente pequenos (cinco mil milhões deles cabem perfeitamente em

um milímetro cúbico)” , designados pelo nome genérico de micróbios, divididos em dois 52

Idem. (grifos no original).51

“Resumo succinto das theorias microbianas”, Gazeta de Notícias, 21 set. 1893, p.1-2. (grifos no original).52

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grupos: “monococos, estafilococos, estreptococos” e os “bacilos e bactérias”. Poderiam

causar a morte de seres humanos por sua simples presença, ou pelos “venenos especiais”

que segregam, chamados de toxinas. Eles somente se desenvolveriam se encontrassem

condições favoráveis, portanto, um homem de perfeita saúde teria o interior do corpo

protegido dos “germens dos seres inferiores”. Adiante, tratando da ação dos minúsculos

organismos, que por vezes poderia ser benéfica, o professor os chamava de “obreiros

invisíveis da vida ou da morte”.

No dia seguinte, o periódico dava a continuação do artigo, no qual Poiton-Duplessy

advogava que: “é absolutamente preciso coibir, em nome do interesse supremo da defesa social, e não obstante quaisquer reclamações fundadas no direito de propriedade e no interesse particular, não somente ruas estreitas, onde o sol nunca penetra, como também essas habitações úmidas, insalubres, privadas de ar e de luz, onde as moléstias epidêmicas encontram todo o tempo um lugar de implantação bem preparado, para daí irradiarem e propagarem-se em toda a cidade.” 53

O tom didático do professor que se dirigia às senhoras francesas coincide com o

caráter da maioria dos textos de mesma natureza publicados pela Gazeta, como vimos no

tópico anterior. Aliás, esse era o tipo preferido de artigo que o periódico utilizava para

preencher suas páginas em momento de censura, uma vez que a Revolta da Armada

acontecia naquele momento. Impedida de comentar os acontecimentos que agitavam a

população, a folha era preenchida com todos os tipos de curiosidades, especialmente

oriundas dos Estados Unidos e da Europa, alguns contos e outros trabalhos literários e

artigos que aparentavam ser de utilidade pública, com o claro objetivo de instruir os

leitores. A título de exemplo, a primeira página da edição de 5 de outubro de 1893 trazia

uma longa coluna intitulada “Europa”, além de “O Dever de Ser Bella”, “Inventores em

Penca!”, “O maior diamante do mundo”, “Cozinha Electrica” e “Canhão Electrico” . O 54

folhetim, O Dedo de Deus, de Xavier de Montépin, ocupava um espaço muito maior que o

de costume. O número de páginas de cada edição passara de seis para quatro.

“Resumo succinto das theorias microbianas”, Gazeta de Notícias, 22 set. 1893, p.1. (grifos no original).53

Gazeta de Notícias, 05 out. 1893, p.1.54

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Vale lembrar que em alguns dos trabalhos literários divulgados na Gazeta de

Notícias também transpareciam as teses higiênicas misturadas a argumentos sobre a

moralidade. Era o caso do conto A Febre Amarella, de Cunha Mendes. O enredo tratava de

Henrique de Almeida, o “último e miserável rebento de uma família que arrastou vida de

nevropata”, trazendo no “corpo raquítico” a “ruína do sangue”. O personagem é descrito

como um homem que passava os dias numa casa de jogo, entregue “às brutalidades do

acaso” até que se apaixona e casa-se com D. Alice de Azevedo, já grávida de outro homem.

O autor alerta que ela trazia “o germe do mal para arruinar esse novo modus vivendi que ele

pensava encontrar no casamento”. Após encontrar um lenço com o nome do antigo amante

da mulher, Henrique vive atormentado pelo desejo de assassinar a esposa e a criança. No

desenrolar da história, o bebê contrai febre amarela e o protagonista executa um estranho

plano de vingança:

“Subitamente a criança abriu os lábios num vômito angustioso; ele [Henrique] conservou-a suspensa nos braços, achegou-se à sua esposa [adormecida] e, quando da pequenina boca do enfermo, estava prestes a fugir um outro vômito, Henrique de Almeida uniu os lábios infantis aos lábios entrecerrados de D. Alice, indo os germes da pavorosa e mortal doença, de mistura com as matérias expulsas do estômago do filhinho, despejar-se na boca entrecerrada de sua própria mãe…” 55

A criança morre no dia seguinte e Alice uma semana depois. Cunha Mendes

acrescenta que nunca ninguém suspeitara do assassinato perpetrado por meio do

“envenenamento”. O crime se dera por meio dos famigerados micróbios, tão comentados

nas páginas da Gazeta.

Nosso cronista estava bastante atento à presença desses minúsculos agentes nas

narrativas publicadas no jornal. Em texto de 1894 dizia: “‘A questão dos micróbios nada

tem com o orçamento’, disse há dias o presidente do conselho municipal, advertindo um

orador. Dia virá também em que tenham tudo, quando esses interessantes colaboradores da

CUNHA MENDES, A Febre Amarella, Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 19 abr. 1894, p.1.55

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morte entrarem definitivamente na cogitação de todos os mortais.” No ano seguinte, 56

voltava ao tema:

“Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! Que belas coisas que ele há de dizer, erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas verdes! Naturalmente maldirá o século XIX, com as suas guerras e rebeliões, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, coisas que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é ofício de pacíficos.” 57

Previa que naquela altura a “doutrina microbiana, vencedora na patologia” seria

aplicada à política. Os povos seriam curados das revoluções e maus governos “dando-se-

lhes um mau governo atenuado e logo depois uma injeção revolucionária. Terão assim uma

pequena febre, suarão um tudo-nada de sangue e no fim de três dias estarão curados para

sempre.” O amor também deixaria de ser uma “coisa corrupta e supersticiosa; reduzido a

função pública e obrigatória, ficará com todas as vantagens, sem nenhum dos ônus.” Em 58

suas previsões fantasiosas o semanista usava os mesmos argumentos dos doutores que viam

a ciência como a solução para todos os males. Percebemos que, a julgar pelo que era

publicado pela Gazeta de Notícias, o narrador não extrapolava os absurdos que, com muita

frequência, lia naquelas páginas. No tópico seguinte veremos a visão do semanista sobre as

implicações práticas dessas teorias e, sobretudo, sobre seus efeitos sobre a população pobre

do Rio de Janeiro.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de janeiro de 1894”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 56

21 jan. 1894, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 06 de janeiro de 1895”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 57

06 jan. 1895, p.1. Idem.58

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3. A ciência das posturas municipais

Em junho de 1892, o narrador de “A Semana” tratava das boas intenções de que o

inferno estaria cheio. A reflexão surgira a propósito da criação de um clube cívico, para

“desenvolver o sentimento de patriotismo” dos cidadãos brasileiros. Retomando em parte a

matéria da crônica de estreia, o narrador ironizava a tentativa de forjar um anseio ufanista e

adiantava que era bem possível que o resultado valesse menos que o esforço. Divagava

ainda sobre o “patriotismo local” de cada Estado, que faria com que, naquele momento, a

ideia de União não passasse “dos subúrbios ou da barra” e arrebentasse “logo no Engenho

Velho ou em Santa Cruz”. Passando à organização distrital, dizia: “A nova assembleia local acabará provavelmente com a mania de condenar casas à demolição. Só no mês passado foram condenadas mais de quarenta. Ora, eu pergunto se o direito de propriedade acabou. Eu, dono de duas daquelas casas, a quem recorrerei? Para tudo há limite, defesa, explicação. Uma casa sem livros ou com livros mal escriturados, outra sem dinheiro, outra sem ordem, acham amparo nas leis, ou, quando menos, na vontade dos homens. Por que não terão igual fortuna as casas de pedra ou de tijolo? Que certeza há de que uma casa venha a cair, pela opinião do engenheiro X, se eu tenho a do engenheiro Z, que me afirma a sua perfeita solidez, e ambos estudaram na mesma escola? Já admito que o meu engenheiro desse aquela opinião com o fim exclusivo de me ser agradável; mas onde é que a delicadeza de sentimentos de um homem destrói o direito anterior e superior de outro?

Estas questões pessoais irritam-me de maneira que não posso ir adiante. Sacrifico o resto da semana.” 59

A mania de condenar casas à demolição, respaldada por argumentos higiênicos,

técnicos e científicos, vinha de anos antes, contudo, tinha se intensificado durante as

primeiras administrações republicanas. O alvo principal eram as habitações coletivas: casas

de estalagem e cortiços, que abrigavam as classes pobres, consideradas sinônimo de

“classes perigosas”. Como postula Sidney Chalhoub, isso se dava tanto porque poderiam

oferecer problemas para a organização do trabalho e manutenção da ordem pública, como

também por oferecerem o perigo de contágio. Os hábitos de moradia dos pobres eram

diagnosticados como nocivos à sociedade. As habitações coletivas seriam focos de

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 05 de junho de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 59

jun. 1892, p.1. (grifos meus). Este texto foi alvo de análise em SOUZA, Ana Paula Cardozo de. A Semana… op. cit.

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irradiação de epidemias, além de terrenos férteis para a propagação de vícios . Sanitaristas 60

erigiam as condições de higiene como elemento definidor do grau de civilização de um

povo e a administração pública era guiada por critérios objetivos, “científicos”. A partir

dessa crença, os higienistas se fechavam numa lógica ferrenha, totalmente baseada em

procedimentos autoconfirmadores: só quem detinha o saber técnico-científico podia

interferir na condução dos negócios públicos . 61

Ao tratar da controvérsia entre as opiniões dos senhores engenheiros, o cronista de

“A Semana” faz graça com sua suposta sabedoria, que era ilusória e não confiável, ou ainda

com a ideia de que no saber dos engenheiros não havia saber algum, muito embora a

aparência fosse muito científica e moderna. Podemos lembrar aqui a primeira crônica da

série, abordada no primeiro capítulo, na qual o narrador fazia galhofa com o caso do

agrimensor que preferia casar após obter o título e assim ser tratado como doutor. Além

disso, no momento específico da escrita da crônica, a sanha de demolir prédios vistos como

nocivos deveria estar mais intensa, uma vez que, cerca de um mês antes, ocorrera o

desabamento de um prédio na Rua do Carmo, deixando sete mortos e muitos feridos. O

assunto ocupou páginas de sensação na imprensa carioca e O Paiz acusara os engenheiros

da Intendência Municipal de negligência, responsabilizando-os pelo desastre e, por

conseguinte, pelas mortes. A julgar pelas notícias publicadas pela imprensa, o caso causara

comoção na cidade: ocorrido no meio da madrugada, o desastre atraíra curiosos e muitos

voluntários para o resgate das vítimas. Mesmo o prefeito teria se entregue ao trabalho de

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril, op. cit. p.29.60

Idem, p.44.61

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remoção dos escombros: “com ambas as mãos o Dr. Barata Ribeiro escavava, aliviando o

local.” 62

Não era somente o risco de desabamento que impulsionava os doutores a fecharem

habitações e despejarem moradores. Desde a estreia da série, podem ser encontradas na

Gazeta de Notícias notas sobre o fechamento de estalagens e desinfecção de quartos e das

chamadas “casinhas”. Os delegados de higiene, investidos de autoridade, estavam

espalhados pela cidade, inspecionando moradias. A situação parecia tão comum que o

periódico dá conta, inclusive, de que “gatunos narcotizadores” teriam usado o cargo de

delegado de higiene como disfarce para entrar em casas e roubar dinheiro e objetos de

valor . 63

“Horrível! Desabamento e Mortes”, O Paiz, Rio de Janeiro, 17 mai. 1892, p.2. O Paiz afirmava que aquele 62

tipo de construção era uma “ratoeira” e que não se poderia evitar que novas edificações daquele tipo fossem feitas. Os culpados eram bem identificados:“E a cor rubra de sangue dessa família que ali teve sepultura em vida há de também produzir hórridas visões para alguns dos Srs. Engenheiros que a municipalidade remunera, e que sabem só andar de metro na mão a ver se as dimensões das janelas do pé direito das casas que se levantam estão de acordo com as posturas em vigor./ De construção nada inspecionam, porque até mesmo entre nós não se professa esse ramo da engenharia. A nossa escola politécnica ainda não teve quem a dotasse com os cursos mais sérios que exigem as modernas indústrias.” “Horrível! Desabamento e Mortes”, O Paiz, Rio de Janeiro, 18 mai. 1892, p.1. O jornal acrescentava que naquela instituição não se estudava arquitetura, resistência de materiais, metalurgia e não se tinha “a série de cadeiras científicas que preparam o engenheiro para o exercício das mais variadas profissões industriais.” Ainda segundo aquela folha, por toda parte havia prédios ameaçando ruína e nenhuma providência era tomada pelas autoridades. Aquelas mesmas edificações da Rua do Carmo, tornadas “cemitério de tantas vidas”, já há muito eram indicadas como “pardieiros” que desabariam com o mais ligeiro abalo. Dias depois, dava prosseguimento a um renque de denúncias sobre possíveis desastres – emendando críticas aos prédios que se transformavam em valhacouto de “vagabundos e salteadores” – para acrescentar que os habitantes do Rio de Janeiro se fiavam antes na intervenção da imprensa do que no cumprimento do dever dos profissionais responsáveis. “Horrível! Desabamento e Mortes”, O Paiz, Rio de Janeiro, 19 mai. 1892, p.2. Denunciava ainda que na Rua do Rosário estava uma “série de caranguejolas reservadas para cenário de alguma grande catástrofe”. Na Rua do Mercado, um prédio apresentava tal iminência de desabamento que a polícia tratou logo de proibir a passagem por junto dele. Ironizava dizendo que, se aquela instituição se propusesse a esse serviço público, ver-se-ia obrigada a proibir a passagem na maioria das ruas da cidade.

“À moradora da casa n. 80 da rua do Livramento, apresentaram-se, anteontem, às 3 ½ horas da tarde, dois 63

indivíduos bem trajados, intitulando-se delegados da inspetoria de higiene, e declararam que desejavam ir ao interior da casa a fim de examinar a latrina./ Declarando-lhes a senhora que seu marido, Antonio de Souza e Silva, não se achava em casa e que por essa razão não lhes podia dar ingresso, os dois indivíduos retorquiram que se achavam em cumprimento de um dever, e assim não admitiam oposição e embaraços ao seu serviço./ Persistindo a senhora em sua primeira declaração, os dois indivíduos arrombaram a rótula da porta e, uma vez no interior da casa, agarraram violentamente a indefesa senhora e a narcotizaram./ Imediatamente deram minuciosa busca na casa e roubaram dinheiro, joias e outros objetos de valor que encontraram, retirando-se em seguida, tendo antes rasgado uma caderneta da Caixa Econômica, pertencente a Silva.” “Gatunos Narcotisadores”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09 mai. 1892, p.1.

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A título de exemplo, somente na semana de estreia da crônica machadiana, o Sr. Dr.

Frederico Fróes, secretário da Inspetoria de Hygiene, comunicava que a Comissão de

Vistoria de Estalagens, acompanhadas de delegados extraordinários, os Drs. Bulhões

Carvalho e Venâncio Lisboa, visitara “45 dessas habitações julgadas insaneáveis, havendo

conseguido, por força das disposições regulamentares ou com auxílio da polícia, o

fechamento de 15” . Entre essas estava a ala esquerda do famoso Cabeça de Porco, que 64

em breve se tornaria palco de uma ação simbólica do governo municipal, comandado por

Barata Ribeiro, sob as bênçãos de Floriano Peixoto. O relatório acrescentava que se

requisitara à polícia a interdição de, pelo menos, outros quatro estabelecimentos.

A interferência na vida cotidiana dos habitantes da então capital federal, pautada na

justificativa de higienizar a cidade, ia além da tentativa de erradicar habitações coletivas

vistas como focos de epidemias. Em 1893, o narrador de “A Semana” voltava a tratar das

posturas municipais, sugerindo sua arbitrariedade. Principiava pela tristeza despertada ao

passar por uma das ruas de sua cidade: “Mas vamos ao meu ofício, que é contar semanas. Contarei a que ora

acaba e foi mui triste. A desolação da Rua Primeiro de Março é um dos espetáculos mais sugestivos deste mundo. Já ali não há turcas, ao pé das caixas de bugigangas; os engraxadores de sapatos com as suas cadeiras de braços e os demais aparelhos desapareceram; não há sombra de tabuleiro de quitanda, não há samburá de fruta. Nem ali nem alhures. Todos os passeios das calçadas estão despejados delas. Foi o prefeito municipal que mandou pôr toda essa gente fora do olho da rua, a pretexto de uma postura, que se não cumprira.” 65

Dando vazão à ironia, confessava ainda que amava as posturas, porém de um amor

desinteressado, que pressupunha sua existência, mas não sua execução. Acrescentava que o

prefeito era da “degradante escola” que dava à arte um fim útil, quando era ela, de todas as

coisas humanas, a única que tinha um fim em si mesma. Em seus dizeres, que se

cumprissem algumas posturas, vá lá, mas que as outras todas ficassem dormindo “nas

“Cortiços e Estalagens”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 abr. 1892, p.1.64

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 08 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 65

08 jan. 1893, p.1. (grifos meus).

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coleções edis. Elas têm o sono das coisas impressas e guardadas. Nem se pode dizer que

são feitas para inglês ver.” 66

Por trás da caçoada com as leis que existiam para não se cumprirem, ficava a crítica

aos excessos da administração municipal, que transformava práticas populares há muito

consolidadas em alvo dos sanitaristas. Isso ficava mais denotado quando o narrador

advogava que a “posse das calçadas” era antiga, passando a historiá-la longamente, num

relato de quem há muito transitava pelas ruas cariocas: “Há vinte ou trinta anos, não havia a mesma gente nem o mesmo negócio. Na velha Rua Direita, centro do comércio, dominavam as quitandas de um lado e de outro, africanas e crioulas. Destas, as baianas eram conhecidas pela trunfa, — um lenço interminavelmente enrolado na cabeça fazendo lembrar o famoso retrato de Mme. de Stäel. Mais de um lorde Oswald do lugar achou ali a sua Corina. Ao lado da igreja da Cruz vendiam-se folhetos de vária espécie, pendurados em barbantes. Os pretos minas teciam e cosiam chapéus de palha. Havia ainda... Que é que não havia na Rua Direita? Não havia turcas. Naqueles anos devotos, ninguém podia imaginar que gente de Maomé viesse quitandar ao pé de gente de Jesus. Afinal um turco descobriu o Rio de Janeiro e tanto foi descobri-lo como dominá-lo.” 67

Citava ainda a conversão desses imigrantes ao catolicismo e inclusive a celebração

de missas com a assistência de “coloria turca”, de maneira que os “nossos próprios turcos”

eram cristãos, compensando os muitos “cristãos nossos, que são meramente turcos, mas

turcos de lei”. Para o cronista, o que interessava era que, cristãos ou não, turcos e demais

mercadores de calçada obedeceriam, supostamente, à postura.

Toda aquela diversidade urbana, expressa pelas variadas nacionalidades e tipos de

negócios que se davam nas ruas anos antes, estava sendo varrida pelo executivo municipal.

Em meio à tristeza ocasionada pela determinação, havia quem encontrasse alternativas para

lucrar. Seria este o caso dos italianos, “patrícios do grande Nicolau”, que tinham o

“maquiavelismo” de cumprir a lei sem perder: compraram as cadeiras de braços utilizadas

pelos engraxadores de sapatos, bem como as escovas – “tudo por dois vinténs”.

Idem. 66

Ibidem. 67

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Todavia, retomando a ideia de que as leis deveriam ser relegadas à inexecução e ao

esquecimento, o narrador previa que era uma questão de tempo para que as caixetas dos

engraxadores de sapatos, bem como todo o resto, tornassem à rua: bastava que o prefeito,

Cândido Barata Ribeiro, fosse embora. A suposta obediência à norma era temporária e tinha

prazo para ser abandonada. Ratificava o argumento ao dizer que “Assim renascem, assim

morrem as posturas” e a prova era a que acabava de restituir o Carnaval aos seus dias

antigos. A tentativa de fazer dançar, mascarar e pular no inverno durara o que duram duas

rosas: “l’espace d’un matin”. Ficava então compensada uma notícia pela outra. Além disso:

“A volta do carnaval é uma lição científica. O conselho municipal, em grande parte

composto de médicos, desmente assim a ilusão de serem os folguedos daqueles dias

incompatíveis com o verão. Aí está uma postura que vai ser cumprida com delírio.” 68

Reafirmada estava a ideia de que os esforços da municipalidade, personificados pela

figura do prefeito, eram efêmeros. Além disso, caso não estivessem clarificadas as teorias

que respaldavam a criação daquelas posturas, o narrador dava conta de que o Conselho

Municipal era, em sua maioria, formado por médicos que ditavam, muito cientificamente, o

que seria propício ou não para a população pobre, sem levar em conta a opinião ou os

interesses dos atingidos. Em contrapartida, esses mesmos doutores tinham tomado uma

“lição científica”: somente se agradassem ao povo e, neste caso, mantendo ou retornando a

Ibidem. (grifos meus).68

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costumes há muito arraigados, as posturas seriam levadas a cabo e, aí sim, com delírio. A

ciência dos doutores ficava, pelo menos em parte, subjugada à vontade popular . 69

Aquela administração ainda renderia muita pauta para o nosso cronista. Naquele

mesmo mês de janeiro, “A Semana” dava conta de outra ação, ainda mais enérgica e

estrondosa, da Intendência Municipal, representada, mais uma vez, pela figura de quem,

desta feita, o narrador dizia gostar: “Gosto deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito

municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a ver correr as águas do Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de Jericó, vulgo Cabeça de Porco. Chamou as tropas segundo as ordens de Javé durante os seis dias da escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza bíblica, até carneiros saíram de dentro da Cabeça de Porco tal qual da outra Jericó saíram bois e jumentos. A diferença é que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros, não só conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações de sociedades anônimas.” 70

Barata Ribeiro é comparado ao personagem bíblico Josué, que, de acordo com o

Antigo Testamento, após a morte de Moisés, teria guiado os israelitas à Terra Prometida.

No percurso, seguindo as ordens de Javé, comandara a destruição da cidade de Jericó,

ordenando a morte, à espada, de mulheres, crianças e animais, poupando apenas a casa da

prostituta Raab, que abrigara seus mensageiros . O prefeito então se incumbia da “missão” 71

de transformar o Rio de Janeiro na cidade prometida, aos moldes das capitais europeias, e

Na semana do Carnaval, o cronista afirma: “— Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a 69

restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.” Na sequência, explicava aos moços como nascera a festa: “Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos, se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dois anos que o entrudo era alguma coisa semelhante às tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d'água despejadas à traição. Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses. Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, rouquidões e tosses, e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmacêuticos ainda eram boticários.” ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 12 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 fev. 1893, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 29 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 70

29 jan. 1893, p.1. Cf. Josué. Português. In: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus Editora, 2002. p. 318-22.71

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começara por derrubar a Jericó carioca, centro irradiador de vícios e bacilos. Na

continuação da crônica, o narrador afirma que, ao contrário da velha cidade bíblica,

nenhuma casa foi salva: “Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. Lá estavam para

fazer cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanitária, a força pública, cidadãos de

boa vontade, e cá fora é preciso que esteja aquele apoio moral, que dá a opinião pública aos

varões provadamente fortes.” A suposta aprovação do cronista aos atos do governo 72

chefiado por Barata Ribeiro é discutível. Até aquele ponto, as medidas da Intendência

Municipal tinham sido alvo de questionamento, sobretudo por sua arbitrariedade. A crítica à

truculência da ação pode ser depreendida dos comentários analisados anteriormente. A

enumeração de toda a força empregada na destruição do Cabeça de Porco demonstra o

quão violenta a ação tinha sido. Ao elencar os motivos pelos quais gostava do prefeito, o

semanista utilizava os mesmos termos que os jornais publicavam naquele momento.

A construção que fora posta abaixo era alvo antigo da Gazeta de Notícias, que

deixaria claro seu apoio irrestrito aos atos do governo municipal. O jornal considerava o

cortiço uma vergonha para a capital que se arrogava “a foros de civilidade” , além de um: “Verdadeiro repositório de vagabundos e criminosos, ponto de reunião de

tudo quanto de ruim possui esta cidade, ali vivem ou vegetam na mais repugnante promiscuidade, homens, mulheres, velhos e crianças.

No seio daquele antro de perdição pode-se dizer que de todo desapareceu o pudor e o brio.

Como uma afronta à moral, permanece de pé ali, no centro da capital, essa coisa suja e infecta, graças à proteção imerecida de alguém que sobrepunha aos interesses gerais os interesses particulares.” 73

Os termos eram extremamente claros e fortes, carregados de reprovação ao que

consideravam fonte de imoralidade e sujeira. Reclamavam a imediata erradicação do que

entendiam ser uma mácula, localizada bem no centro da Capital Federal.

Exemplos do que o jornal considerava uma afronta à moral e aos bons costumes,

ainda que em tom de chacota, apareciam com frequência em suas páginas. Sob o título

“Pancada de Cego”, a Gazeta dava conta de que Francisco José de Almeida, morador da

Idem. 72

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jul. 1892, p.1.73

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estalagem Cabeça de Porco, era um homem “rixoso e dado ao vício da embriaguez”. Tinha

ainda a “infelicidade” de ser cego e, por isso, viveria sempre “prevenido” com as pessoas

que o cercavam. No dia anterior à divulgação do ocorrido, tendo chegado “um tanto

alcoolizado” em casa, agredira sua mulher, Rosalina Thomazia da Conceição, com “o

bastão que lhe serve de guia”. Um de seus filhos, de quatro anos de idade, ao ver sua mãe

“metida em pancadaria”, agarra-se aos vestidos de Rosalina, na tentativa de impedir que

seu pai a continuasse espancando. O resultado foi o pequeno também ter recebido

cacetadas, que produziram um grande ferimento na cabeça. Foi conduzido à delegacia, para

o exame de corpo de delito, e Almeida recolhido ao xadrez. 74

Rosalina, Almeida e seu pequeno são apenas um exemplo no mar de notas

condenatórias da Gazeta de Notícias. A exposição do cotidiano das classes pobres, bem

como o juízo de valor pejorativo atribuído a elas é frequente no periódico. O cego e sua

família, motivo de caçoada na notícia, são tratados do mesmo modo com que o jornal se

referia a criminosos. Como veremos adiante, as notas policiais publicadas pela imprensa da

época e, principalmente, os juízos de valor acerca dos envolvidos também são alvo de

crítica do narrador de “A Semana”.

Em contrapartida, os elogios ao “Josué carioca” também eram recorrentes. O

periódico dizia que o prefeito municipal estava resolvido a executar todas as medidas que,

há muito reclamadas como urgentes para o saneamento da capital, não tinham, no entanto,

sido levadas a efeito. Quando o cortiço Cabeça de Porco que, de acordo com o jornal,

deveria se denominar Cabeça de Medusa, vem abaixo, a folha afirma que ele teria sido

vencido por um Perseu, bastante forte e corajoso, investido “não com o escudo de Minerva,

“Pancada de Cégo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 ago. 1892, p.2. 74

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mas com a força soberana da lei” – o Sr. Dr. Prefeito Municipal . Barata Ribeiro, que a 75

Gazeta alegava ser um homem “que não sabe o que são embaraços quando se trata de

cumprir a lei”, fora o “braço bastante robusto” que riscara aquela mancha da capital e

estaria “destinado a prestar serviços inolvidáveis” à população . A derrocada do monstro 76

foi marcada pela truculência, sob os aplausos da Gazeta: “Quando começavam a destelhar a ala esquerda, saíram de algumas casas,

que se julgavam desabitadas, mulheres, crianças, carregando móveis, colchões, etc. Derrubada esta parte, atacaram os trabalhadores outras seções da estalagem, destelhando e derrubando paredes.

Parece incrível o que se observou nessa ocasião. Moradores antigos da estalagem, habituados talvez a ameaças de medidas nunca levadas a efeito, só deixavam seus aposentos quando estes começavam a ser destelhados. Então quem ali se achava, pode observar um espetáculo que não deixou de impressionar tristemente. Via-se saírem daqueles quartos estreitos e infectos mulheres e homens que imploravam às autoridades os deixassem permanecer ali por mais 24 horas.

Muitas dessas mulheres e algumas crianças, banhadas em lágrimas, retiravam as suas camas, cadeiras e outros objetos de uso.” 77

Algumas portas teriam permanecido fechadas até a última hora e foram abertas por

ordem do chefe de polícia, revelando então áreas enormes, onde havia outros cortiços e

grande número de cocheiras com animais e carroças. No meio do caos, a folha relata que

em uma delas havia grande quantidade de carneiros e que muitos deles escaparam em

disparada pelas ruas, sendo agarrados e recolhidos logo depois. Vemos que esta notícia era

a referência utilizada pelo semanista da Gazeta, que citara os animais que teriam sido

poupados a mando do “Josué carioca”. Ao reafirmar, de certa forma, os argumentos dos que

“A Cabeça de Porco”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 jan. 1893, p.1. Anos depois Barata Ribeiro 75

relembraria na própria Gazeta aqueles atos: “Devo significar-lhe que a Cabeça de Porco não é o meu noli me tangere; como administrador, não tive amores privilegiados; o ato da demolição naquele caso obedeceu ao mesmo regime que em todos os outros: tapume da Carioca, casas de Estácio de Sá e S. Cristóvão, Cabeça de Porco, etc. etc., foram questões de mero expediente administrativo, processadas pelo mesmo modo pelo qual se proibiram engraxadores nas ruas, cortiços nos mercados, botequins nos quiosques e pelo qual se exigiam calçamentos estanques nas cocheiras, prescrições técnicas nos estábulos e açougues, recuo das casas a construir-se, aterro dos terrenos paludosos etc. etc.” BARATA RIBEIRO, Cândido. “Questões Municipaes”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 29 mar. 1895, p.2.

Aparentemente, naquele momento as ações da prefeitura se estendiam aos arredores da Cabeça de Porco. 76

Na seção de a pedidos da própria Gazeta aparecera um protesto de proprietários do prolongamento da Rua dos Cajueiros que foram intimados a, num prazo de três dias, demolir seus prédios, construídos em 1888. Afirmavam que as construções haviam sido realizadas com licença, prospecto, arruação e todos os demais documentos legais exigidos e que nada tinham com a famigerada estalagem. Assinavam: Antonio Ferreira da Costa Guimarães, Bernardino José da Cruz e José de Oliveira Lopes. Cf. “À Prefeitura Municipal – Protesto”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jan. 1893, p.2.

“A Cabeça de Porco”, op. cit. p.2.77

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enxergavam as medidas contra os cortiços como necessárias, o narrador de “A Semana”

expunha a violência dos meios utilizados. Entre os lamentos de mulheres e crianças que

tentavam salvar o pouco que tinham, destaca-se a arbitrariedade das ações que, ainda assim,

mereciam os elogios da imprensa.

Os planos do prefeito eram revelados: “realizar no local desocupado o

melhoramento proposto pelo Sr. Dr. Carlos Sampaio ao ministério do interior, prolongando

a rua Dr. João Ricardo por meio de um túnel até a Gamboa, e alargando ao mesmo tempo a

parte mais estreita da Rua dos Cajueiros.” Sampaio, autor da proposta, era ainda elogiado

pelo grande auxílio prestado durante a demolição do cortiço. Ficavam denotados os

interesses particulares que permeavam as ações que, em tese, eram postas em curso em prol

do benefício público. Na crônica em que trata da demolição o narrador afirma que: “Os

carneiros, não só conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações de sociedades

anônimas.” Segundo John Gledson, esta seria uma “alusão maliciosa” à empresa Empresa

de Melhoramentos do Brasil, e talvez às outras companhias que lucrariam com a derrubada

da estalagem . 78

Em fevereiro, o cronista de “A Semana” voltava à carga contra as posturas

municipais. Após algumas divagações sobre rosas e borboletas, relatava ter sido visitado

por um homem estranho em seu jardim. O que a princípio pensara ser um “trapo do

carnaval”, na verdade era um fiscal da prefeitura, que trazia às mãos uma intimação da

Intendência Municipal. Após alguma conversa e a entrega do documento, o narrador atenta

para o fato de que o endereçado não era ele, mas seu vizinho. Isto não faz com que ele

deixe de ler o papel: “Esta intimação começava dizendo que ele tinha de ir pagar a certa casa, na Rua Nova do Ouvidor, a quantia de mil e quinhentos réis, preço da placa do número da casa em que mora. Concluí que também eu teria de pagar mil e quinhentos quando recebesse igual papel, porque a minha casa também recebera placa nova. O papel

GLEDSON, John. Nota 2, in: ASSIS, Machado de. A Semana, op. cit. p.188.78

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era assinado pelo fiscal. Achei tudo correto, salvo o ponto de ir pagar a um particular, e não à própria intendência; mas a explicação estava no fim.” 79

Denota-se a insinuação da aleatoriedade com que a medida era executada, uma vez

que a intimação chega para o vizinho, mas não para o cronista. Ele estranha ainda a

instrução para que o pagamento seja feito em outro lugar que não a própria Intendência

Municipal. Fica claro ainda o descomedimento da medida, que previa multa e prisão para

quem não pagasse a importância no prazo de três dias. O cronista estranha o valor (trinta

mil-réis) a ser pago por “um serviço que, a rigor, a intendência é que devia pagar”. No

entanto, o documento trazia outras informações: “Mas estava longe dos meus espantos.

Continuei a leitura, e vi que, no caso de reincidência, pagaria o dobro (sessenta mil-réis) e

teria oito dias de cadeia. Tudo isto em virtude de um contrato” . 80

Ao passo que a crônica reafirma a arbitrariedade da ação do governo municipal,

também expõe a fragilidade das medidas, uma vez que, em sua continuação, diz que um

legista, seu amigo, garantira que não existia carcereiro que recebesse um devedor remisso

de placas. Outro, que não era legista, mas sim devedor havia mais de três meses, asseverava

que ninguém o “convidara” para a Detenção. Em clara referência à mania de demolir casas,

arrematava dizendo que: “A pena é um espantalho. Que desastre! Justamente quando eu

começava a achá-la útil. Pois se não há cadeia de verdade, é caso de vistoria e

demolição.” 81

Semanas depois, o cronista dava conta de outras medidas que procuravam sanear a

capital da República brasileira. Desta feita, os alvos do Conselho Municipal seriam os

quiosques: “Que metro é preciso para contar que vamos perder os quiosques? Dizem que o conselho municipal trata de acabar com eles. Não quero que morram, sem que eu explique cientificamente a sua existência. Logo que os quiosques penetraram aqui, foi nosso cuidado perguntar às pessoas viajadas a que é que os destinavam em Paris, donde vinha a imitação; responderam-me que lá eram ocupados por uma

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 19 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 79

Janeiro, 19 fev. 1893, p.1. Idem.80

Idem. (grifos meus). 81

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mulher, que vendia jornais. Ora, sendo o nosso quiosque um lugar em que um homem vende charutos, café, licor e bilhetes de loteria, não há nesta diferença de aplicação um saldo a nosso favor? A diferença do sexo é a primeira, e porventura a maior; a rua fez-se para o homem, não para a mulher, salvo a rua do Ouvidor. O charuto, tão universal como o licor, é uma necessidade pública. Não cito o café; é a bebida nacional por excelência. 82

Vê-se que a crítica presente neste excerto é profunda, embora esteja subentendida.

O cronista diz querer historiar cientificamente a existência daquele tipo de negócio antes

que a Intendência dê cabo dele, deixando implícita a argumentação em que se apoiavam os

intendentes para justificar o procedimento que acabaria com os quiosques. Ao atribuir à

sua explicação caráter científico, mostra a suposta utilização da mesma linguagem dos

senhores doutores sanitaristas. Ressalta ainda a tentativa de imitar as modas europeias.

Continuava dizendo que:

“Não obstante, lá vão os quiosques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as turcas e árabes, os engraxadores de botas, uma porção de negócios da rua, que nos davam certa feição de grande cidade levantina. Por outro lado, se Renan fala verdade, ganhamos com a eliminação, porque tais cidades, diz ele, não têm espírito político, ou sequer municipal; há nelas muita tagarelice, todos se conhecem, todos falam um dos outros, mobilidade, avidez de notícias, facilidade em obedecer à moda, sem jamais inventá-la. Não; vão-se os quiosques, e valha-nos o conselho municipal. Os defeitos ir-se-ão perdendo com o tempo. Ganhemos desde logo ir mudando de aspecto.” 83

Comentava também a solicitação feita à polícia para a autorização de uma guarda

particular, que foi negada: “Isto de guarda particular de um bairro, feita à custa dos

moradores, até parece caçoada com o poder público. Há opiniões contrárias a esta; mas eu,

no capítulo das opiniões, tenho verdadeiros despropósitos. Não deferia o requerimento;

diria que quem guardava a casa era eu, e só eu responderia por ela.” Para finalizar suas

reflexões de cunho científico, assegurava que continuaria a leitura do último artigo do autor

da esterilização , escrito em resposta aos que depuseram contra suas ideias e métodos. “É 84

comprido e custa ler, por causa da muita fisiologia e anatomia de alcova, que exige palavras

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 16 de abril de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 82

abr. 1893, p.1. (grifos meus). Idem. 83

O médico Abel Parente, já mencionado nesta dissertação. 84

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científicas.” Em sua despedida, chegava à conclusão de que estava ficando

“excessivamente científico”.

Em 1894 “A Semana” traz um texto icônico sobre as posturas municipais e os

chamados melhoramentos desejáveis à cidade. O narrador principia dizendo que achava-se

impresso mais um livro que seus olhos nunca haveriam de ler: o Código de Posturas.

Afirmava que isso não se daria por ser código, nem por serem posturas, uma vez que as leis

devem ser lidas e conhecidas; no entanto: “eu conheço tanta postura que se não cumpre,

que receio ir dar com outras no mesmo caso e acabar o livro cheio de melancolia.” 85

Discorria então sobre as possíveis explicações para o não cumprimento da legislação: “Também não é por serem posturas que muitos não gostam de obedecer-lhes; o nome não faz mal à coisa. É por ser coisa legal. Pessoas há que acham palavras duras contra a inobservância de um decreto federal, e, ao dobrar a primeira esquina, infringem tranquilamente o mais simples estatuto do município. O sentimento da legalidade, vibrante como oposição, não o é tanto como simples dever do indivíduo. A primeira criatura que me falou indignada (há quantos anos!) da postergação das leis, era um homem ruivo, que não pagava as décimas da casa.” 86

Exemplificava com uma ocorrência de “alguma significação” que se dera há pouco. Um

homem fez um cortiço em seu quintal. O narrador diz desconhecer o nome do homem e a

localização. Sabia apenas que: “não podendo por lei municipal fazer o cortiço, o

proprietário deixou de tirar licença. Realmente, seria loucura, uma vez que tinha de

infringir a lei, ir declará-lo à autoridade; e se era vedada a construção, vedada era a

licença”. O Conselho Municipal acudiu a tempo e “querelou” o homem, vencendo a

demanda. Todavia, os pedreiros foram mais ativos e, ao passo que terminava o processo,

acabada também estava a construção. Daí então o problema suscitado era outro: deveria ser

a sentença executada, ou era melhor que a municipalidade desistisse da demanda, ainda que

com prejuízos? “Árdua questão! Venceu o segundo alvitre, pela consideração de que,

havendo falta de casinhas para as pessoas pobres, e satisfazendo aquelas as prescrições

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 21 de janeiro de 1894”, op. cit.85

Idem.86

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higiênicas, segundo se provou com vistoria, era absurdo mandá-las pôr abaixo.” O 87

semanista ainda acrescenta que: “Eu teria votado o contrário, sem todavia afirmar que a

verdade estivesse comigo; votaria para machucar o infrator da postura”. Na mesma página

em que era publicada a crônica machadiana, aparecia a notícia de que o prefeito do Distrito

Federal negara a sanção às resoluções do Conselho Municipal: “autorizando-a a ordenar aos procuradores dos feitos municipais a desistência dos efeitos da sentença contra Joaquim Martins da Silva para a demolição das pequenas casas construídas nos fundos do prédio de sua propriedade, à rua dos Arcos n.86, conforme faculta o §9º do art. 15 da lei n. 85 de 20 de setembro de 1892, pagando o proprietário todas as custas do processo e uma indenização de 500$ à municipalidade, a qual seria aplicada em benefícios dos asilos municipais; e a lavrar contrato para construção de Villas Operárias de acordo com a proposta preferida na última concorrência, e bem assim com a do sistema de madeira e amianto.” 88

No debate daquele “negócio”, um dos membros do Conselho afirmara que, em regra, a

municipalidade sempre perde suas demandas. Para o narrador, não se podendo admitir que

o governo municipal deixasse de ter razão em tudo o que reclamava, e sendo surpreendente

que os juízes ainda assim o contrariassem, “a conclusão é que há mau-olhado, quebranto ou

coisa análoga, lesão para a qual é remédio eficacíssimo um livro de S. Cipriano, que por aí

se vende, e tira tudo, até o diabo do corpo.” Ficava claro que a discrepância entre os 89

argumentos técnico-científicos da Intendência Municipal e a sugestão do cronista era para

lá de proposital. Este apela para o misticismo para a resolução da querela, já que o amparo

da ciência expunha ao ridículo o Conselho Municipal e, mais profundamente, a legislação

por ele implementada.

Se não fosse o caso de benzedura, era de “encomendar a alma a Deus” e esperar.

Tempo viria em que a municipalidade venceria suas demandas. Comentava que um dos

intendentes proferira um discurso que o narrador considerava ser a mais extensa e completa

monografia sobre os usos funerários dos povos, desde a mais remota antiguidade.

Assegurava que acomodar o discurso à matéria não era tão simples quanto parecia. Como

Ibidem. (grifos meus).87

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 jan. 1894, p.1.88

ASSIS. “A Semana – Crônica de 21 de janeiro de 1894”, op. cit.89

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saber onde a matéria acaba? Em segundo lugar, se era verdade que o “regimento da casa é a

postura que obriga os seus membros, não menos o é que não há ali artigo restringindo os

discursos. São coisas de praxe e de costume, que se irão estabelecendo com o andar dos

anos. Não se há de regular instantaneamente a liberdade oral, e acaso cerceá-la, o que é

pior.” A justificativa poderia estar no fato de que a imprensa diária brasileira não dava 90

espaço para que pensadores publicassem o fruto de seus estudos e meditações. Além do

mais, a tribuna comum era inexistente, não por falta de direito, mas de gosto e de uso.

Logo, restava somente a tribuna legislativa, onde os assuntos poderiam ser abordados com

maior amplitude.

Implícito estava que os próprios membros do Conselho Municipal, responsável pela

criação das leis daquela cidade, driblavam seu regimento interno. Ora, se eles não

cumpriam as próprias determinações, como exigir que elas fossem cumpridas? Além disso,

ao falar da questão dos micróbios e da monografia sobre ritos funerários, o narrador esbarra

mais uma vez no cientificismo que permeava os discursos dos intendentes, em sua ferrenha

defesa da higienização e modernização da cidade. A título de exemplo, posso citar os

assuntos que ocupavam aqueles senhores durante a semana de publicação do escrito

machadiano: as sessões, presididas por Dias Ferreira, tiveram como mote a votação de

projetos de desapropriação de terrenos, a extinção de cães de rua e a instalação do chamado

“Pavimento Sanitário”, novo tipo de calçamento que contribuiria para o saneamento da

capital . A discussão sobre o orçamento municipal também estava em pauta, muito embora 91

na Gazeta de Notícias não constem as informações mencionadas na crônica; aliás, o relato

do jornal sobre aquelas reuniões é extremamente sucinto, evidenciando que Machado de

Assis buscava os dados em outras fontes.

Na sequência, o cronista frisava que o maior mal era “o gosto de não obedecer às

leis”. Emendava um exemplo, que dizia ser mínimo, “mas nem todas as flores são dálias e

Idem. 90

“Conselho Municipal”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 a 20 jan. 1894, sempre na página 1. 91

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camélias; o pequeno miosótis também ocupa lugar ao sol.” Relata então que, estando em

um bonde, acompanhado por três pessoas, uma delas notou que o cocheiro fumava. Ela

questiona então se isso não era proibido, ao que o condutor, muito serenamente, responde

que de fato não era permitido que cocheiros fumassem. E acrescenta: “— Mas ele fuma só

aqui, no arrabalde; lá para o centro da cidade não fuma, não senhor.” O interlocutor teria

ficado espantado ao ouvir o que o narrador chama de tradução de Pascal, tão ajustada ao

cigarro e ao bonde: “Verité en deçà, erreur au delà. Mas, pensando bem, este caso não é

igual aos outros; aqui a singeleza da resposta mostra a sinceridade da interpretação.” 92

Unindo as duas pontas da crônica, como era usual, o escritor torna ao Código de

Posturas, assunto com o qual iniciara suas reflexões naquela edição. O compilador da obra

era o Dr. Melo Morais, que também seria poeta e estaria iniciando a publicação de

documentos da cidade. Todo o texto girava em torno das determinações que não sairiam do

papel, ou que seriam burladas por seus próprios mentores. Essa conclusão se aproxima

inegavelmente das demais crônicas sobre as posturas municipais, abordadas anteriormente.

O comércio popular vinha sendo varrido das ruas, habitações populares eram interditadas e

demolidas, ações estrambólicas do Dr. Barata Ribeiro e companhia eram elogiadas pela

imprensa. As autoridades interferiam e procuravam controlar o cotidiano das classes

pobres, vistas como perigo iminente de contágio e proliferação de vícios. Contudo, a

resistência se dava de formas mais ou menos silenciosas. Embora os sanitaristas e demais

interessados obtivessem algumas vitórias, como no caso do Cabeça de Porco, não havia lei

que chegasse a todos os recantos da Capital, principalmente porque elas não atendiam a

anseios da maioria da população. Não havia gosto no cumprimento de leis que não eram

entendidas como melhorias.

No desfecho deste texto extremamente representativo, o cronista declarava seu amor

pelo Rio de Janeiro: “Eu, como gosto muito da minha Carioca, por maiores taxas que lhe

ponham, amo os que a amam também, e os que a bendizem. Terá defeitos esta minha boa

ASSIS. “A Semana – Crônica de 21 de janeiro de 1894”, op. cit..92

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cidade natal, reais ou fictícios, nativos ou de empréstimo; mas eu execro as perfeições.

Tudo há de ter o jeito de coisa nascida, — e não cabal, portanto.” 93

4. Diversões e ofícios ilícitos

A repressão às práticas populares se dava também em relação aos divertimentos,

crenças e meios de ganhar dinheiro, como nos mostra o semanista: “A autoridade recolheu nessa semana à detenção duas feiticeiras e uma cartomante, levando as ferramentas de ambos os ofícios. Achando-se estes incluídos no código como delitos, não fez mais que a sua obrigação, ainda que incompletamente. A minha questão é outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte réis, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feijão, arroz, farinha, sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de frangos. Uma delas, porém, chamada Umbelina, trazia no bolso não menos de quatrocentos e treze mil-réis. Eis o ponto. Peço a atenção das pessoas cultas. Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo mais vai pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos não falam em feitiçaria, mas de furto. A feitiçaria, por isso mesmo que não está entre o homicídio e a impiedade, é delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam, é preciso examinar a afirmação, comparar o ato ao rendimento, e concluir. Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou indigno de criticar o código, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: ‘O nariz do povo é a sua imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser.’ O que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?” 94

No excerto citado acima, publicado no dia 10 de março de 1895, pode-se perceber a

riqueza dos comentários e a possibilidade de análise historiográfica que eles fornecem. Ao

dirigir-se às “pessoas cultas” o narrador brinca, mais uma vez, com os saberes e discursos,

procurando criar a sua própria explicação para o ocorrido, explicação esta que contraria o

procedimento da polícia e a condenação por parte da imprensa. O que a princípio poderia

ser tomado como uma espécie de defesa das duas feiticeiras e da cartomante, ao final do

Ibidem. 93

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 10 de março de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 94

10 mar. 1895, p.1.

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trecho parece ter adquirido – por meio de ironia, é verdade – o tom de crítica à credulidade

do povo. Contudo, é latente também o argumento de que esse mesmo povo tem o “direito”

de ser crédulo, e até de ser enganado, se caso assim o preferir, bem como o de buscar meios

para a sua sobrevivência, mesmo que os ilícitos, ainda mais em tempos em que o “pão é

caro e pequeno”. A crítica, portanto, parece dirigir-se prioritariamente contra a

normatização jurídica dessas práticas, afirmando inclusive que isso é uma criação humana,

e os homens erram. Essa assertiva fica mais clara quando, um pouco mais adiante, o

narrador afirma que: “A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só creem

naquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras

verdades, como se a verdade fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral

dos homens”, postulando, ainda que sutilmente, a arbitrariedade do Código Penal . Mais 95

adiante o cronista revela que ele mesmo está inclinado a acudir à feitiçaria, pois está doente

– “sempre o interesse pessoal!” – e talvez um bom tanto de dinheiro lhe devolva a saúde.

Essa seria a alegada causa da importância que dá à prisão das três mulheres, mais uma vez

com alta dose de ironia.

Na seção policial da Gazeta de Notícias de 04 de março de 1895, encontramos o

fragmento que deu início às reflexões expressas na crônica: “Ontem, às 8 horas da noite, foram acomodadas no xadrez da 1ª estação policial duas feiticeiras de nome Maria Umbelina e Maria José, por serem encontradas com uma cesta de vime que pretendiam abandonar no armazém da rua do Ouvidor n.2, contendo pombos, frangos e outras aves mortas, diversos saquinhos contendo sal, arroz, canjica, feijão e outros gêneros alimentícios, moedas de 10 e 20 rs. uma perna de ceroula velha e outras bugigangas. Em poder de Umbelina encontrou-se a quantia de 413$000.” 96

Vemos que o narrador foi bastante fiel à nota ao reportar os objetos e a quantia que as

supostas feiticeiras carregavam. Notas como essa eram muito frequentes na Gazeta de

Idem. A crônica faz referência ao artigo 157 do Código Penal de 1890: “Praticar o espiritismo, a magia e 95

seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica”. BRASIL. Código Penal Brasileiro (Decreto n.847, de 11 de outubro de 1890). Collecção de Leis do Brazil – 1890, Página 2664 Vol. Fasc. X (Publicação Original). Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049

“Policia da Cidade”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 mar. 1895, p.2. (grifos no original).96

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Notícias. A prisão de feiticeiras, cartomantes, curandeiros e médiuns fazia parte dos casos

policiais relatados pelo periódico e vinham acompanhados por elogios ao serviço da

polícia, pedidos para que a fiscalização fosse aumentada e da condenação moral e higiênica

daqueles sujeitos e práticas. Era o caso de Tito Augusto Diniz dos Santos, “preto mina, que

se achava em sessão com uma mulher” para consulta amorosa; ele e todas as pessoas que

assistiam o ritual foram presos, sendo recolhidas todas as “bugigangas” encontradas na

casa . O mesmo se dava com João Moreira Barbosa, curandeiro que exercia a profissão há 97

40 anos, preso em seu “casebre de feiticeiro”, com ervas, raízes, garrafas e chaleiras

destinadas ao fabrico de medicamentos . Antonio Eloy, “preto africano” que dizia “contar 98

com mais de 90 anos”, era acusado de ter envenenado com seus remédios um proprietário

de casa de pasto. De acordo com a Gazeta, Eloy residia na Estalagem do Buraco e se dava

ao vício da embriaguez, além de sua casa ter o “aspecto sórdido das habitações de

estalagem” . Esses são apenas alguns dos inúmeros casos que inundavam as páginas 99

daquele jornal.

Desde o início da série o narrador se punha na contramão dessa visão, defendendo o

direito de buscar meios de vida que a polícia e a imprensa condenavam e, portanto,

mostrando empatia para com os perseguidos. Em 1892, ao discutir o livre exercício da

medicina, permitido pela legislação estadual do Rio Grande do Sul, afirmava que “não

faltará quem deseje vê-la [a lei] aplicada, quando menos ao distrito federal; eu, por

exemplo.” Comentava ainda a prisão de “um curandeiro conhecidíssimo, do qual é vítima

uma pessoa de posição e popular entre nós” e afirmava: “Não há curandeiros. O direito de curar é equivalente ao direito de pensar e de falar. Se eu posso extirpar do espírito de um homem certo erro ou absurdo, moral ou científico, por que não lhe posso limpar o corpo e o sangue das corrupções? A eventualidade da morte não impede a liberdade do exercício. Sim, pode suceder que eu mande um doente para a eternidade; mas que é a eternidade se não uma extensão

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 nov. 1894, p.2.97

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 fev. 1895, p.1. Esse último caso se dera no mesmo mês em que o 98

jornal protestava contra os feriados católicos, dizendo que os ateus e outros religiosos deveriam ser respeitados. Cf. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 fev. 1895, p.1.

“Envenenamento”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 fev. 1896, p.1.99

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do convento, ao qual posso muito bem conduzir outro enfermo pela cura da alma? Não há curandeiros, há médicos sem medicina, que é outra coisa.” 100

O semanista colocava no mesmo patamar os curandeiros e os doutores da medicina,

o que em muito contrariava a valorização dos saberes médico-científicos, além de defender

o próprio direito de limpar o corpo alheio das doenças. Ao opor o saber popular ao

científico, contrapunha ainda o passado e o presente. Alegava também preferir a medicina

popular à ciência moderna dos doutores. Em 1894, tratando do bacilo vírgula, causador do

cólera, dizia: “Francamente, prefiro os tempos em que as doenças, se não eram maleitas,

barrigas d'água, ou espinhela caída, tinham causas metafísicas e curavam-se com rezas e

sangrias, benzimentos e sanguessugas. A descoberta do bacilo foi um desastre.

Antigamente, adoecia-se; hoje mata-se primeiro o bacilo de doença, depois adoece-se, e o

resto da vida dá apenas para morrer.” Defendia então a simplicidade que a vida possuía 101

antes do advento não só do vírgula, mas do domínio das explicações dos doutores. Como já

fizera outras vezes, o narrador punha em xeque os conhecimentos científicos que eram

empurrados goela abaixo da população. Assumia a linguagem popular para a defesa de seus

argumentos, contrapondo-a aos arrazoados dos teóricos dos bacilos e dos micróbios.

O semanista denunciava a diferenciação no tratamento dado à população pobre e

suas práticas e o excessivo reconhecimento do trabalho dos doutores. A repressão às

tradições e religiões populares se refletia na lei. É importante frisar que o Código Penal de

1890 é de suma relevância para o entendimento das reformas sociais instituídas pelo regime

republicano com o objetivo de “regenerar” a população. Dain Borges afirma que a

legislação do início da República foi mais repressiva que permissiva; mais excludente que

inclusiva . Liberal mas antidemocrática, a República brasileira teria ampliado a exclusão 102

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 11 de dezembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de 100

Janeiro, 11 dez. 1892, p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 02 de dezembro de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de 101

Janeiro, 02 dez. 1894, p.1. (grifos meus) BORGES, Dain. “Healing and Mischief: Witchcraft in Brazilian Law and Literature, 1890-1922.”, in: 102

SALVATORE, Ricardo D. et al. Crime and Punishment in Latin America: Law and Society since Late Colonial Times. London: Duke University Press, 2001. p.181-210.

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eleitoral, limitando o voto aos homens alfabetizados. Outra forma de exclusão teria sido a

interferência no catolicismo popular. Borges afirma parecer paradoxal que o “esclarecido e

secularizado Estado” sinta a necessidade de reviver a repressão à magia. Entretanto, ao

explorar esse aparente paradoxo, revelam-se profundas divisões e a real confusão entre

intelectuais brasileiros – inclusos os legisladores, reformadores da saúde pública,

psiquiatras, padres e ocultistas – acerca dos significados do curandeirismo e da feitiçaria. 103

A distinção entre práticas populares e os desejados saberes dos doutores perpassava

diferenças de classe, gênero e cor. Isso ficava claro nas já mencionadas colunas que

apareciam na Gazeta, mas também pode ser ilustrado em outras situações. Se os nomes,

endereços e ocupações dos cidadãos pobres eram expostos sem o menor pudor, os de

“pessoas respeitáveis” ganhavam tratamento bem diverso. Em 1896, por exemplo, o jornal

dá conta da prisão de Sophia Moran, cartomante de 70 anos e completamente cega. A

autoridade chegara no momento em que a mulher “dava consultas aos seus fregueses” e

tendo a seu lado “uma senhora respeitável e um negociante da Rua Sete de Setembro”. A

reportagem acrescentava que “muitas senhoras, algumas das quais esposas de cavalheiros

que ocupam elevados cargos na nossa sociedade”, aguardavam para serem atendidas.

Cartomante e freguesas haviam sido conduzidas à delegacia, sendo lavrado auto de

flagrante contra Sophia, que foi solta mediante fiança . No dia seguinte, a folha afirma 104

que publicará os nomes de todas as pessoas que estavam na casa da cartomante . Embora 105

as intenções da Gazeta ao divulgar apenas o nome da septuagenária não fiquem totalmente

claras, podemos cogitar que a indicação de que os outros nomes viriam a público se trate de

uma ameaça que não chegaria a ser cumprida. A “colher de chá” dada às esposas de ricos

“Images of witchcraft and religious healing were shaped by the reforming drives of the professions, always 103

in some relation to the judicial system. These images inspired reflections on social relations by Brazilians thinkers in the early twentieth century, particularly in the cities of Salvador da Bahia and Rio de Janeiro.” BORGES, op. cit. p.182. Ver também: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas Trincheiras da Cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. Campinas: Editora da Unicamp, 2001 [1ª reimpressão, 2005].

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 mar. 1896, p.2. De acordo com o redator, muitas daquelas mulheres 104

moravam nas imediações da Rua dos Inválidos, na Glória e na Cidade Nova. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 mar. 1896, p.1.105

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comerciantes não se repetia quando o periódico tratava de esmiuçar a vida de populares que

supostamente se envolviam em crimes . 106

Nosso semanista não comentou o caso na “Semana” subsequente, mas a crônica

analisava as práticas da imprensa e seus diferentes discursos: “Assim é o resto das coisas

nesta vida de papel impresso. Não é raro o artigo que conclui pelo contrário do que

começou. Aos inábeis parece que falta ao escritor lógica ou convicção, quando o que

unicamente não há é tempo de fazer outro artigo. No meio ou no fim, percebe ele que

começou por um dado errado, mas o tempo exige o trabalho, o editor também, e não há

senão concluir que dois e dois são cinco”. Tratava da variedade de palavras que nada

tinham com “alterações populares; nasciam da imprensa culta e política” . Ao que parece, 107

a imprecisão jornalística de que fala o cronista poderia servir a interesses bastante

específicos.

A relativização dos supostos delitos se dava também quando comentava os

lucrativos divertimentos que caíam no gosto da população. Ainda na crônica que tratava da

prisão de Umbelina e suas companheiras, aborda-se outro tema cuja aparição fica cada vez

mais frequente na série: a loteria dos bichos do Jardim Zoológico, que popularmente passa

a ser conhecida como o jogo dos bichos . Também sobre ela o narrador divergia da 108

Gazeta, dizendo:

“Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra feitiçaria sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa, e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa e sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a viagem de bonde, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do que perde, e tal é o

Em longa coluna publicada no dia 17 de fevereiro de 1894, Olavo Bilac critica veementemente a prática do 106

que considera um “abuso de imprensa” que, embora conceituado como um crime pelo autor, era tão comum na prática jornalística cotidiana que adquirira as regalias do uso, ou seja, ninguém reparava nele. O abuso: “Quase não há dia em que os jornais não insiram uma notícia como esta: ‘Foi preso ontem o menor Fulano (e vem o nome por extenso), por ter subtraído a quantia de... da gaveta do Sr. Sicrano, cujo empregado era.’” Cf. BILAC, Olavo. “Chronica Livre”, Gazeta de Notícias, 17 de fevereiro de 1894, p.1.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 15 de março de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 107

15 mar. 1896, p.1. “Jogo dos bichos” é o termo utilizado para designar o divertimento durante todo o período analisado, por 108

isso, o emprego nesta dissertação.

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segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que prova que é melhor.” 109

Os bichos de Vila Isabel seriam, portanto, um meio de ganhar dinheiro fácil,

depressa, “tudo sem trabalho”, ainda que com o risco inerente de perdê-lo nos mesmos

termos. Todavia, o lucro é maior do que os prejuízos, logo, a empreitada compensa, ainda

que quem provavelmente ganhe não sejam os apostadores e sim os vendedores das apostas.

O narrador afirma ainda que os homens, com toda a “civilização antiga e moderna”, ainda

não alcançaram o tal segredo de ganhar mais do que perder, mal pelo qual não passam os

“bons animais” do zoológico.

Era o mesmo pensamento que expressara tempos antes ao fazer a primeira menção

direta ao jogo dos bichos na série “A Semana”, que se dá justamente quando a atividade

passa a ser criticada pela imprensa, numa campanha pela moral e pelos costumes. Após

revelar o hábito de levantar cedo e passear por seu jardim, comparava suas ideias às

borboletas: “vão com igual presteza, senão com a mesma graça”. Passava a comentar então

um processo envolvendo um banqueiro que dera a uma companhia a ideia de emissão de

bilhetes de loteria e por ela recebera dois milhões de francos, afirmando que: “Tivesse eu a

mesma ideia, e não a venderia por menos. Olhem, não fui eu que ideei esta outra loteria,

mais modesta, do Jardim Zoológico; mas, se o houvesse feito, não daria a minha ideia por

menos de cem contos de réis; podia fazer algum abate, cinco por cento, digamos dez.

Relativamente não se pode dizer que fosse caro. Há invenções mais caras.” 110

A crônica brinca com o quão lucrativa a “loteria” do Zoológico poderia ser,

justamente em um momento em que ela estava proibida. Acrescenta que, se ele fosse o

autor da lucrativa ideia, também se aproveitaria dela para obter o seu quinhão. Ao contrário

da Gazeta, o narrador não condena a chamada jogatina, mas antes deseja que ele tivesse

sido o criador de tão eficiente meio de ganhar dinheiro. Ao passo que o periódico se

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 10 de março de 1895”, op. cit.109

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 19 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de 110

Janeiro, 19 fev. 1893, p.1. (grifos meus).

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manteria firme na oposição ao jogo dos bichos, o semanista também defenderia durante

toda a série a ideia de que o bicho não era tão feio como se pintava.

Desde o lançamento da loteria dos bichos havia quem a criticasse, afirmando que se

tratava de uma fonte de vícios . Contudo, de 1895 em diante, a repressão fica mais 111

ferrenha e as publicações que condenavam a atividade se tornam diárias. Ferreira de Araújo

resume a opinião declarada da Gazeta de Notícias dizendo que o jogo dos bichos era uma

fonte de imoralidade, vícios e vagabundagem; alastrava-se como uma praga e dava lugar

“às maiores vergonhas”, atentando contra a moralidade pública e impossibilitando a

frequência no Jardim, que era o seu pretexto . As constantes denúncias reforçavam esta 112

visão, como no caso da reportagem intitulada “Jogo na Rua” em que se afirmava que às

bancas de jogo espalhadas pela Praça da República concorriam “soldados de linha,

mulheres vagabundas, alguns soldados de polícia e grande número de meninos”; seria um

perigo passar pelo local, uma vez que o jogo tinha passado “dos bookmakers da Rua do

Ouvidor e das casas de tavolagem do largo do Rocio para o meio da rua e em lugar onde a

polícia não pode dizer que não sabe da sua existência”. Urgia acabar com aquele abuso,

Ainda no mês do lançamento do novo divertimento, o chefe de polícia, Bernardino da Silva, dirigia ofício, 111

publicado pela Gazeta de Notícias, no qual afirmava que, no empenho de atrair visitantes ao Jardim Zoológico, o seu diretor solicitara licença para “certo recreio público”, que lhe foi concedida pela polícia, em vista “da feição disfarçadamente inocente” que da descrição do divertimento parecia se deduzir. Entretanto, “posta em prática essa diversão se verifica que tem ela o alcance de verdadeiro jogo manifestadamente proibido”. Era “prejudicial aos interesses dos incautos que, com a esperança enganadora de um certo lucro, se deixam ingenuamente seduzir, é precisamente um verdadeiro jogo de azar, porque a perda e o ganho dependem exclusivamente do acaso e da sorte.” Acrescentava que a prática não poderia mais ser tolerada e que “muitas queixas me têm sido dirigidas pelas pessoas lesadas”, logo, intimaria o diretor do Zoológico para que suspendesse imediatamente a continuação do aludido jogo, sob pena de ser processado na conformidade dos art. 369 e 370 do código penal.” “Jogo Zoologico”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jul. 1892, p.1. O documento não ficaria sem resposta. Dias depois, a seção de “Publicações a Pedido” trazia críticas às ações do Chefe de Polícia, que fazia com que o “inocente divertimento com os bichos do Jardim Zoológico” incorresse em fatal desagrado, uma vez que dependia de sorteio. Insinuava que os que arriscavam a sorte naquele jogo estavam em busca de compensação pelos prejuízos provocados pelo Encilhamento. Acrescentava que o Dr. Silva não deveria lutar contra a sorte, já que ela era a responsável por ele ter alcançado a chefatura da polícia da Capital Federal. Cf. O PALPITE. “O Sr. Dr. Chefe de Polícia e o sorteio”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 ago. 1892, p.2.

LULÚ SENIOR (Ferreira de Araújo). “Às Quintas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 abr. 1895, p.1.112

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“não tanto pelos viciosos, na maior parte indivíduos da pior espécie, mas pelos menores que

estão ali aprendendo coisas que deveriam ignorar” . 113

Todavia, a posição era dúbia. A segunda página do jornal trazia diariamente o

resultado do jogo dos bichos. Ao mesmo tempo em que criticava duramente a fonte de

vícios que se espalhara por toda a cidade, a Gazeta se utilizava dela enquanto chamariz para

os leitores. Quando a perseguição à prática, personificada pelo delegado Carijó, se

intensifica, a folha apela para um expediente que mascarava o seu procedimento: ao invés

de reportar o resultado do jogo na seção “Sport”, como era o seu costume, é lançada a

coluna “Tiro ao Alvo”, assinada por Felix Caipora, que, supostamente, trazia charadas.

Aliás, ela aparece dias depois da reportagem citada acima. O pulo do gato estava em trazer

sempre problemas que acabavam com a figura de animais que eram palpites para o jogo . 114

Além disso, a Gazeta publicava os resultados do derby diariamente, embora fosse

muito bem sabido que as apostas eram feitas sobre esse tipo de divertimento. O próprio

semanista afirma que os lances eram feitos pelo telefone: “Uma das vantagens das corridas

“Jogo na Rua”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 08 mar. 1896, p.1.113

Felipe Magalhães afirma que a imprensa se tornou um dos maiores aliados da prática do jogo do bicho. Os 114

primeiros contatos teriam se travado logo após o surgimento do jogo, em 1892, por meio da publicação de notas que informavam o bicho que havia aparecido no dia anterior, o valor dos prêmios e quantidade de ganhadores. Merecia destaque neste período inicial o Jornal do Brasil, no qual figurava entre os sócios o próprio Barão de Drummond. Na primeira década do século XX, algumas tipografias percebem a demanda em torno deste tipo de loteria e investem na impressão dos chamados jornais de bicho. Segundo o historiador: “Estas folhas não precisavam ocupar muito espaço nas tipografias, tampouco precisariam de uma grande organização. Suas edições eram pequenas, não passavam de quatro páginas, além de não exigir grande apuro tecnológico ou redacional. Deste modo, os jornais de bicho representariam mais um produto posto no mercado por uma empresa gráfica.” Ainda de acordo com Magalhães, a primeira destas folhas surgiu em 1903. Era denominada O Bicho e teria sido publicada até 1914. Na mesma senda surgiram outros periódicos voltados para o mesmo público, que teriam circulado com maior intensidade na primeira década do século XX. Neles havia uma imensa variedade de colunas dirigidas ao fornecimento de palpites, resultados do dia anterior, estatísticas acerca dos bichos que mais “davam” e dos que haviam “sumido”, dicionários de sonhos, protestos contra banqueiros que eram acusados de fraudar a loteria e mesmo romances de folhetim. A despeito da prática ter sido proibida, os periódicos acabavam por incentivar as apostas e a lucrar com isso. MAGALHÃES, Felipe. “Os ‘Jornais de Bicho’ e os resultados na imprensa (1890-1910)”, in: LASA 2010: Crise, Resposta e Recuperação. 6-9 de Outubro de 2010. Toronto/Canadá.

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de cavalos é poder a gente apostar nelas sem sair da freguesia” . O incômodo do jornal 115

com o jogo dos bichos assumia então uma perspectiva classista: era a prática popular que

despertava a ira dos defensores da moral e dos bons costumes, enquanto elogios e

incentivos eram dados à atividade ligada à elite. Essa contradição foi apontada diversas

vezes nos “a pedido” da folha e também, raramente, por colunistas como Alfredo Riancho.

Em série de artigos intitulada “Costumes”, ele alega que as corridas de cavalos teriam sido

instituídas a pretexto de melhorar a raça cavalar, mas seria sabido que esses eventos

subsistiam pela “jogatina infernal” que se daria nos prados e nos “book’s maker-banks, que

se desenvolveram e multiplicaram com a rapidez de cogumelos, com o poder prolificador

de verdadeiras coelhas!” Coisa semelhante se daria com o Jardim Zoológico, criado para

expor nossa riquíssima fauna, mas o que o alimentaria seriam “os apostadores dos jacarés,

elefantes e macacos, na desenfreada jogatina de todas as tardes.” Acrescentava ainda que a

maior parte dos melhoramentos empreendidos teria por móvel o “febril jogo de praça” que,

como todos os jogos, só enriqueceria os que “trabalhavam pela certa!” Achava fora de 116

propósito perseguir as casas de roleta e de jogos de azar que pululavam por toda a capital,

já que: “essas, ao menos, como ficha de consolação, dão jantarzinho ou uma ceia, que nos

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 13 de agosto de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 115

13 ago. 1893, p.1. Afirmava também que: “Houve domingo passado o grande prêmio do Derby-Club. Dizem que se apostaram cerca de quatrocentos contos de réis no lugar das corridas. Mais, muito mais, deram as apostas cá em baixo [pelo telefone].” e, comparando com o turfe da Inglaterra, onde o cavalo seria uma instituição nacional, dizia: “Que seria aqui esse nobre exercício do cavalo, se, para acompanhar as corridas, fosse preciso ir vê-las? Com certeza, morria.” Em outro texto afirmava que “A vós, sim, tumultos de circo, a vós digo eu adeus, porque se adotarem o que proponho aos homens, não há mais tumultos nesse gênero de espetáculos, ou seja nos próprios circos, ou seja nas casas cá de baixo, onde se aposta e se espera a vitória pelo telefone; modo que me faz lembrar umas senhoras do meu conhecimento, que têm ouvido todas as óperas desta estação lírica, indo para a praia de Botafogo ver passar as carruagens das senhoras assinantes. Não haverá tumultos, porque faço evitar a fraude ou suspeita dela aposentando os cavalos e fazendo correr os apostadores com os seus próprios pés. Cansa um pouco mais que estar sentado, mas cada um ganha o seu pão com o suor do seu rosto.” ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 11 de setembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 set. 1892, p.1. (grifos meus).

RIANCHO, Alfredo. “Costumes IX – O Jogo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 jan. 1893, p.1. Dizia 116

ainda que seriam inúteis as “preleções contra o vício e mais inúteis ainda as objurgatórias contra os viciosos”, porque o povo brasileiro confiava mais na sorte que no trabalho, tinha mais fé nos caprichos do azar do que nos frutos do raciocínio e que olhava de maneira descuidosa para o futuro. Em tudo se via que descendíamos de povo ou povos que sempre contaram com a “inesgotável e munificente cornucópia da Providência”, sendo, por isso, “um povo milagrento, supersticioso, que não prepara o futuro cálculo, mas na grata confiança do Deus dará.”

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matam a fome por vinte quatro horas; ao passo que outras casas de jogatina, e essas em

ponto grande, passam a salvo, apesar de nos deixarem, não sem dinheiro e com barriga

cheia mas sem vintém e a pedir pão laranja.” 117

Os argumentos de Riancho, que englobavam o turfe e outras formas de apostas no

mesmo bolo que abrigava o jogo do Zoológico, passam longe do discurso que era

empregado pela Gazeta de Notícias e por outros órgãos de imprensa. Os divertimentos das

camadas abastadas e os das pobres seriam não apenas diferenciados, mas completamente

apartados. Durante o período analisado, a folha que abrigava a série “A Semana” jamais

pediu o fim das corridas de cavalos; pelo contrário, as enaltecia como mais um símbolo de

progresso e civilidade. O mesmo não se pode dizer sobre o jogo dos bichos.

O narrador de “A Semana” também estava atento à incoerência do discurso.

Tratando do parecer de um magistrado que decidira, “e não o fez por si, mas com vários

textos italianos e adequados”, que a briga de galos não era jogo de azar, o cronista dizia

que: “Realmente, — e sem sair da nossa língua, — parece que não há maior azar na briga

de galos que na corrida de cavalos, pelotaris e outras instituições. O fato da aposta não

muda o caráter da luta. Dois cavalos em disparada ou dois galos às cristas são, em

princípio, a mesma coisa. As diferenças são exteriores.” Atentando mais uma vez para a 118

linguagem, apontava para as distinções apenas aparentes e superficiais que encobriam a

essência mesma das duas práticas. O turfe era europeizado e chique, logo, desejável; já as

apostas em rinhas de galo e jogo dos bichos, que atraíam os populares, deveriam ser

extintas. Aquela crônica denuncia ainda que as corridas de cavalo tinham “prendas” que as

Idem. Riancho também alegava que: “Apesar das mais rigorosas medidas disciplinares, joga-se nos 117

quartéis e nos navios, porque não há medidas que possam impedir que, mesmo na forma, os soldados joguem, com o movimento das nuvens e os marinheiros com as moscas que pousam nas tábuas do tombadilho; joga-se no bonde, joga-se na barca de Petrópolis, não em jogo aberto como queríamos que fossem todos os jogos, mas por combinações secretas, sub-repticiamente feitas antes da viagem; joga-se enfim em tudo e por tudo; jogamos mesmo uma cartada arriscada quando nos casamos, jogamos no azar, quando destinamos a profissão de um filho; jogamos por fim de contas, porque o jogo é uma resultante inevitável da nossa raça e das raças de onde derivamos. [...] Não discuto aqui se o jogo é ou não é um vício; mas se o é, estamos viciados em todos ou quase todos os atos que fazemos.”

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 20 de maio de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 118

mai. 1894, p.1. (grifos meus).

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disputas entre galos ainda não possuíam: “parece que já chegamos à economia de fazer

correr só os nomes sem os cavalos, não havendo o menor desaguisado na divisão dos

lucros. Desceremos às sílabas, depois às letras; não iremos aos gestos, que é o exercício do

pick-pocket.” A tal vantagem advinha da desonestidade dos promotores das provas e dos

apostadores. Reafirmava que o turfe não era jogo de azar, mas “se a sentença fosse outra, podia não ser legal, mas seria justa, ou quando menos,

misericordiosa. Os galos perdem a crista na briga, e saem cheios de sangue e de ódio; não é o brio que os leva, como aos cavalos, mas a hostilidade natural, e isto não lhes dói somente a eles, mas também a mim. Que briguem por causa de uma galinha, está direito; as galinhas gostam que as disputem com alma, se são humanas, ou com o bico, se são propriamente galinhas. Mas que briguem os galos para dar ordenado a curiosos ou vadios, está torto.” 119

A propósito da popularidade do jogo, em outra crônica o narrador dizia que tivera

uma comoção muito grande ao ler o relatório da polícia sobre o Jardim Zoológico: “Vou dizer por quê. Sabeis que o jogo dos bichos acabou ali há muito tempo.

Carneiro, macaco, elefante, porco, tudo fugiu do Jardim Zoológico e espalhou-se pelas ruas. Este fenômeno é igual a atos que se dão na organização das cidades. A principio, os moradores é que vão buscar a água às fontes; mais tarde, o encanamento é que a leva aos moradores. Dá-se com os bichos a mesma coisa. Não há casa, não há cozinha, e raro haverá sala que não possua uma pia, onde vá ter a água de Vila Isabel.” 120

Especificamente sobre a perseguição ao jogo dos bichos, dizia que: “trava-se contra ele uma rude campanha. Começada na imprensa, vai sendo continuada

pela polícia. As ordens expedidas por esta são positivas, e a execução por parte dos seus agentes vai sendo pontual. O quinhão da luta na imprensa é copioso. Medidas há (força é dizê-lo) que se não expedem logo pelo receio de que a imprensa as condene ou critique, o serviço fique mal visto, e a ação afrouxe. Mas, uma vez que os jornais, como os parlamentos, votem uma moção de confiança nestes termos: ‘A opinião, certa de que o jogo será morto, passa à ordem do dia’, a autoridade assim apoiada e reforçada emprega todos os seus recursos.

A minha dúvida única é se o bicho morto não ressuscitará com diversa forma. Agora mesmo nem tudo são bichos; há prêmios de bebidas, distribuição de gravuras e outras convenções de azar. Convém ter em vista que os jogos são muitos.” 121

Citava a loteria, um dos mais velhos jogos, que vinha desmoralizando a sociedade,

mas não era a “culpada única desta perversão de costumes.” Ela corrompia e deveria ser

extirpada, bem como outras “instituições de dar fortuna”, mas não se poderia esquecer que

Idem.119

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 12 de janeiro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 120

12 jan. 1896, p.1. (grifos meus). ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 12 de julho de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 121

12 jul. 1896, p.1. (grifos meus).

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ela também era efeito: novamente, em ocasiões de dificuldade financeira, as apostas

serviam de alento. Recomendava ao leitor:

“Meditai bem. Uma paixão do azar tão grande, que o próprio cavalo (era já o bicho!) do agente da ordem servia de dado aos jogadores, não sai assim com duas razões. Não tenho remédio senão citar as estrebarias de Áugias para poder invocar Hércules. É preciso ser Hércules. Quem sabe se este número e esta nota que acabo de ler nos jornais: ‘19.915 foi o número de vidros de xarope de alcatrão e jataí vendidos no mês passado’, não é já uma forma nova para substituir os bichos? Tudo pode ser bicho; os próprios jornais, os mesmos artigos que combatem o mal, expõem-se a servir de pasto ao jogo, se os empresários deste se lembrarem de vender sobre a primeira letra do artigo de amanhã.” 122

Duvidava ainda que: “por mais pura vontade que tenha a intendência municipal

rejeitando a nova concessão ao jogo da pelota, e a polícia caçando os bichos. Creio que o

mal está muito fundo.” O narrador punha no mesmo saco os eventos do Jockey Club e os

bilhetes dos bichos que se espalhavam pelas esquinas da Capital Federal.

A comparação entre as apostas populares e as da elite já havia aparecido em “A

Semana”. Comentando o sucesso importante daqueles dias, isto é, vencera o burro, dizia

que: “Estávamos afeitos a dizer e ouvir dizer que venciam cavalo Fulano e Sicrano. É

verdade que era no Derby e outras arenas de luta animal; mas, enfim, era só o cavalo que vencia, porque só ele apostava, deixando dez ou vinte mil réis nas algibeiras de Pedro, e outras tantas saudades nas de Paulo, Sancho e Martinho. Dizem até que eram os mil réis que corriam, e centenas de pessoas que vão às próprias arenas creem que os cavalos são puras entidades verbais. Fenômeno explicável pela frequência das casas em que não há cavalos: acaba-se crendo que eles não existem.” 123

Aproveitava para distinguir a linguagem empregada pela imprensa da linguagem

popular: “Venceu o burro. Digo venceu para usar do termo impresso; mas o verbo da

conversação é dar. Deu o burro, amanhã dará o macaco, depois dará a onça, etc.” Afirmava

que essa expressão, que se ouvia pelas ruas do Rio de Janeiro, era “mais breve, mais viva, e

não duvido que mais verdadeira. Não duvido de nada. A zoologia corre assim parelha com a

loteria, e tudo acaba em ciência, que é o fim da humanidade”.

Idem.122

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 17 de março de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 123

17 mar. 1895, p.1.

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Amy Chazkel postula que as elites locais e nacionais empreenderam a repressão

programática de muitas formas de cultura popular, além da vigilância policial sobre a vida

cotidiana das classes mais pobres no início do regime republicano. Ela também analisa

dispositivos legais criados pelo Código Penal de 1890, sobretudo os referentes aos

pequenos delitos e aos vícios, e afirma que os governantes brasileiros tentaram implementar

uma nação moderna por meio da lei . A autora trata especialmente da repressão ao jogo 124

do bicho, criado em 1892 pelo Barão de Drummond, mas que logo se espalhou pela cidade,

tornando-se um problema a ser controlado . Por trás do grito de “ordem e progresso” 125

subsistia a interferência estatal, particularmente a policial, na vida da população urbana

pobre. Seria necessário mostrar que as preocupações oficiais sobre a desordem social

emergiram como parte de um processo de “marginalização legal” dos pobres da cidade. 126

Afirma ainda que no Rio de Janeiro, antes e especialmente depois dos bilhetes do jogo do

bicho passarem a ser vendidos fora do zoológico, tem-se no medo endêmico das elites em

relação às "classes perigosas" uma explicação um tanto quanto conveniente para a

repressão oficial de práticas populares. A autora afirma também que, sem pretender

diminuir a influência que esses medos das supostas massas perigosas possam ter exercido

sobre as políticas de repressão, eles próprios devem ser submetidos ao escrutínio histórico.

O jogo do bicho seria um exemplo (de muitos) de como os meios de subsistência e os

passatempos das então chamadas classes populares frequentemente despertam a suspeição

“As the country’s new national leadership shed what it reviled as an outdated regime of slavery and 124

monarchy, it sought to implement a modern nation through the law. In the new penal code of 1890, lawmakers included articles that aimed control what today is called vice and increasingly defined popular practices like the jogo do bicho as affronts to the public good.” CHAZKEL, Amy. Laws of Chance: Brazil’s Clandestine Lottery and the Making of Urban Public Life. Durham and London: Duke University Press, 2011. p.27.

De acordo com a autora, a reação oficial contra o jogo do bicho sugere como as raízes do controle social 125

moderno cresceram em torno do que Thompson, em Senhores e Caçadores, chamou de funções classistas e mistificadoras da lei. CHAZKEL. Laws of Chance: Brazil’s Clandestine Lottery and the Making of Urban Public Life. op. cit. p.17.

Idem. p.18.126

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oficial, mesmo que as atividades em questão não afetem diretamente a vida, integridade

física ou a propriedade privada . 127

Chazkel afirma ainda que a criminalização de atos antes tolerados e as mudanças

geopolíticas e econômicas que acompanharam a transição para o capitalismo apontam para

a versão urbana de um processo associado à história agrária: “the enclosure of the

commons”. Isso porque também nas cidades bens que eram tidos como de uso comum

desde tempos imemoriais passam a ser de acesso restrito. O processo decorrente compele os

cidadãos a conduzirem suas atividades cotidianas fora das barreiras legais. A criminalização

das práticas populares não faz com que elas deixem de existir, mas sim com que elas caiam

na informalidade . A reflexão relembra a do próprio narrador que demonstra a ineficácia 128

da lei e as maneiras utilizadas para driblá-la não só no caso dos bichos, mas também nos

das habitações e do comércio populares, mencionados anteriormente.

Ao apontar para esse problema, o narrador denunciava também que, bem como no

caso das posturas municipais, o interesse da população não era respeitado. Em tempos de

pão caro e pequeno, a nova loteria, barata e acessível, acabava servindo de esperança aos

que acreditavam na possibilidade de mudar sua sorte. Era ainda um ganha-pão aos que

vendiam bilhetes pela cidade. Como apontou o próprio semanista, em tempos difíceis,

aquela era uma alternativa bastante procurada: “Nós, para quem tudo é caro, desde a sopa

até a sobremesa, vivemos a ver em que param os preços, — os preços ou os bichos.” 129

A historiadora afirma também que a crônica tomou parte do processo cultural e social pelo qual a 127

sociedade designou certas atividades como lícitas ou ilícitas. A análise desses textos enquanto fonte histórica deve reconectar as observações do cronista ao processo histórico do qual eles emergiram e no qual os autores participaram. Para o historiador que desejar estudar o submundo, entendido como o mundo do ilegal e do amoral associados à população pobre e não-branca, as crônicas que tratam do cotidiano urbano não são meros acessórios, mas sim o foco da análise historiográfica. De acordo com a autora, além de preencher lacunas do conhecimento histórico existentes em outros tipos de documentação, os textos ajudam a decifrar como e por que a sociedade urbana brasileira definiu a fronteira entre o moral e legalmente permitido e o ilícito. CHAZKEL, Amy. “The Crônica, the City and the Invention of the Underworld: Rio de Janeiro, 1889-1922”. Estudios Interdisciplinarios de America Latina y el Caribe, v.12:1, 2000-2001. (artigo sem paginação).

CHAZKEL. Laws of Chance: Brazil’s Clandestine Lottery and the Making of Urban Public Life. op. cit. p.128

07ss. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 04 de outubro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 129

04 out. 1896, p.1.

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CAPÍTULO IV

Singulares amores, singulares crimes: Notas policiais em “A Semana”.

“O que me atraiu nesse crime foi a força do amor”.

Machado de Assis, “A Semana”, 28 de julho de 1895.

Machado de Assis tratou de várias notícias policiais em “A Semana”. Algumas delas

despertavam particular interesse e reflexões do narrador e, muito provavelmente, do

público leitor. A atenção dada pela imprensa a esses eventos e, sobretudo, o uso que fazia

das informações coletadas, ao passo que expunha a vida íntima de anônimos em suas

páginas, foram alvo da pena do escritor na composição de suas crônicas. Três casos,

envolvendo relações amorosas e mortes, ganham um especial tratamento na série. Muitos

outros foram mencionados de forma ligeira nas crônicas, mas os aqui expostos receberam

maior atenção do semanista, muito provavelmente pelo choque das revelações que

diariamente eram dadas a público. Advogo aqui que o que mais prendeu o interesse do

narrador não foram os atos em si, mas a cobertura deles por parte da imprensa.

O cruzamento com as reportagens publicadas pela Gazeta de Notícias e por outros

periódicos cariocas demonstra o quão atento o escritor estava àqueles textos, que em tese

eram instrumento de seu ofício, e, principalmente, o olhar crítico que ele permite que se

apreenda nas entrelinhas. O literato percebia a distinção de classe e gênero que permeava o

tratamento dado aos indivíduos mencionados naquelas notas. Os singulares amores tratados

aqui também expõem o uso que se fazia dos conhecimentos científicos pela polícia e pelos

jornais. As narrativas científicas e policiais expostas pela imprensa tentavam, mas não

pareciam dar conta da rica e variada cultura popular que se manifestava nas ações

estranhadas pelas autoridades. Cada um dos casos citados aqui traz embutida uma carga

enorme de julgamento e de repulsa às atitudes daqueles anônimos que, repentinamente,

viravam matéria de jornal.

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Contrariando o discurso propagado naquelas reportagens, a leitura que o narrador

faz daquelas ocorrências contribuem para que entendamos melhor o olhar de Machado de

Assis acerca da cultura popular e do tratamento que ela recebe do Regime Republicano. Os

acontecimentos relatados pelos periódicos e aqui abordados corroboram o entendimento das

estratégias do narrador ao longo de “A Semana”.

1. Maria de Macedo

Em setembro de 1892, o narrador de “A Semana” tratava do assunto que ocupava as

folhas cariocas no momento: “Todavia, como há um limite para tudo, não ames como outros amaram aquela Maria de Macedo, cujo cadáver apareceu no Largo do Depósito. Digam o que quiserem; o homem gosta dos grandes crimes. Esta sociedade estava expirando de tédio. Uma ou outra sentença sobre negócios anônimos e ações nominais mal satisfazia a curiosidade, e não de todos, porque há muita gente que não conta de cem contos para cima; eu nem creio em milhares de contos. Ratonices de queijos e outras miudezas são como os biscoitos velhos e poucos; enganam o estômago, não matam a fome. E a fome vivia e crescia, sem nada que lhe pusesse termo, até que um gato descobriu no largo do Depósito aquele tronco de gente. Foi um banquete pantagruélico. Um simples pedaço de cadáver, ensopado em mistério, bastou a fartar toda a cidade. Os mais gulosos pediam ainda a cabeça, as pernas e os braços. O mar, imensa panela, despejou esse manjar último. Agora pedimos os cozinheiros; venham os cozinheiros.” 1

O crime ao qual o cronista se referia tinha acontecido dias antes e, como ele mesmo

mencionara, causado o estupor na capital federal. O escritor fazia graça com o noticiário

que se ocupava de todo e qualquer detalhe que pudesse escandalizar e, por conseguinte,

atrair a opinião pública. A própria Gazeta de Notícias havia aplicado uma forma peculiar

para dar conta dos sucessos envolvendo o caso. No dia 21 de setembro, sob o título

“Singular Crime!”, logo após os restos mortais da vítima terem sido encontrados, o diário

trazia a seguinte narração: “Era meio-dia quando entramos no necrotério. Uma atmosfera formada por gases

pútridos e pelo cloro enchia o ambiente, sufocante, nauseabunda.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 25 de setembro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1

25 set. 1892, p.1.

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Sobre uma mesa à direita, o cadáver mutilado de uma mulher de cor parda estava sendo autopsiado pelos médicos, que procuravam descobrir a causa da morte!

No coração e nos grandes vasos não existia gota de sangue. A morte devia ter sido causada por abundante hemorragia. E aqui esbarrava a ciência dos médicos legistas, que iam cumprir sobre um pedaço de carne morta a obrigação do seu cargo, para apresentarem o relatório que a lei exige.

E enquanto eles abriam o tórax daquele tronco, que pela manhã fora encontrado sem cabeça, com o braço esquerdo desarticulado pela cabeça do úmero, o antebraço direito com a mão decepada e em flexão sobre o braço, as pernas cortadas pelo terço inferior do fêmur, e as partes pudendas queimadas por ácido azótico, a polícia lançava os seus mais finos limiers à cata do autor daquele crime, sem igual nesta capital.” 2

Note-se que os termos empregados pelo articulista na composição de seu texto

remetem à linguagem científica utilizada pelos médicos na composição de seus escritos.

Além disso, ele tenta criar um relato que se aproxima dos de ficção, começando por

descrever a atmosfera que cercava o ambiente, passando para a narração do que vira

entremeada pela dramaticidade que por certo queria dar ao caso, utilizando-se, inclusive, de

exclamações e frases de efeito. Menciona o emprego dos “mais finos limiers”, termo

francês que designa detetives. De acordo com Ronald Thomas, novas técnicas e mesmo

equipamentos de investigação policial estavam em voga naquele momento . A exploração 3

dos detalhes e instrumentos investigativos faziam parte da estratégia de impressionar e

prender os leitores, além de servir como um elogio ao trabalho da polícia.

Machado estava atento às narrativas apresentadas pela imprensa, o que era, como

vimos, uma constante em “A Semana”. O escritor deve ter achado graça na exposição de

seu colega e, mais que isso, notado a frequência com que os relatórios de polícia e

necropsias apareciam nas páginas dos periódicos, influenciando a escrita das reportagens.

Para além das colunas fixas da Gazeta, um mar de pequenas notas dava conta diariamente

dos crimes e, principalmente, dos supostos criminosos que assolavam a então Capital

Federal. Como mencionado no capítulo anterior desta dissertação, tais escritos traziam

embutidos juízos de valor bastante claros, prevendo a condenação antecipada daqueles

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 set. 2

1892, p.1. (grifos no original). THOMAS, Ronald R. Detective Fiction and the Rise of Forensic Science. Cambridge, UK: Cambridge 3

University Press, 1999. O autor demonstra ainda a influência dessas novidades sobre a literatura do período.

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sujeitos que eram exibidos como indivíduos a serem temidos pelos cidadãos de bem e uma

mácula a ser extirpada.

Tendo em mente a chave de leitura proposta neste trabalho, ou seja, a atenção do

narrador de “A Semana” às linguagens e narrativas empregadas pela imprensa, poderíamos

cogitar que, ao abordar aqueles casos que causavam sensação nas folhas fluminenses, o

cronista estivesse mais uma vez chamando a atenção dos leitores para os absurdos e

incongruências contidos naquelas publicações, o que ele fazia por meio das estratégias e

características de seu narrador ficcional que distorcia as explicações e julgamentos,

trazendo à tona a fragilidade daqueles arrazoados. Lembremos ainda que o semanista já

demonstrara o seu enfado com a ciência, vista como uma estraga-prazeres que tirava a

graça de tudo.

Especificamente sobre o caso Maria de Macedo, a exagerada atenção dada ao caso é

alvo da crônica. Termos policialescos e científicos se misturavam naquelas páginas, mais

uma vez. Uma intensa carga dramática acompanhava as notas sobre “aquele tronco

decepado”. O “crime tão horrível” era equiparado à “série de monstruosidades com que

Jack o Estripador encheu de terror a city de Londres!” Aqui como lá, os mesmos mistérios

envolveriam o “singular acontecimento”. Além disso, o trabalho da polícia era comparado,

desabridamente, ao dos doutores de medicina: “E, como o clínico que, diante da entidade

mórbida pouco frequente, procura aproveitar-se do caso que se lhe depara para pôr em

prática toda a soma de conhecimentos que possui, assim o honrado Sr. chefe de polícia tem

infelizmente agora ensejo de revelar qual o valor dos elementos com que acaba de

reorganizar o serviço policial.” 4

Como dissera o semanista no texto que abordava o crime, “Um simples pedaço de

cadáver, ensopado em mistério”, bastava para fartar toda a cidade. Todavia, os mais gulosos

pediam ainda a cabeça, as pernas e os braços.” Era na tarefa de saciar essa expectativa que

a Gazeta parecia centrar esforços. Com o passar dos dias, matérias do caso Maria de

“Singular Crime! …”, op. cit., 21 set. 1892. (grifos meus).4

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Macedo, ocupando quase páginas inteiras do diário, dão conta de outros detalhes do

macabro enigma. Apesar dos elogios à atuação policial, a Gazeta não se contentava com as

novidades vindas da Repartição de Polícia e vestia ela mesma a capa de detetive, apurando

por conta própria informações que acreditava serem relevantes para desvendar o crime . 5

Quando os outros membros do corpo mutilado são encontrados, a narrativa tomava ares de

auto de autópsia – e, provavelmente, era retirada de um – dando detalhes das feridas, traços

fisionômicos, cicatrizes e tatuagens do “corpo da pobre Maria de Macedo, a vítima do mais

bárbaro assassinato cometido nesta cidade.” 6

O leitor regular da Gazeta de Notícias, se não estava familiarizado com tais termos

técnicos, o que seria bastante compreensível, ao menos não ficava surpreendido com a

frequência com que apareciam no periódico. Além disso, uma parcela dos leitores, ao

menos, deveria estar ávida por esse tipo de pormenor. Como dissera o narrador de “A

Semana”, havia o fascínio pelos grandes crimes.

Dava conta, por exemplo, de pequenas ocorrências no entorno do Largo do Depósito e de um homem que 5

oferecera carne de porco ao dono de uma venda. Demonstrado o interesse do possível comprador, o homem abrira o saco que carregara deixando ver que “continha um corpo de mulher”. Dias depois, a pista levantada pelo periódico de fato seria seguida pelos investigadores oficiais, aproximando, como parecia ser o intuito inicial, os labores jornalísticos e policiais. “Singular Crime! …”, op. cit., 21 set. 1892. O jornal ainda diz que foram apresentadas ao Sr. Dr. 1º delegado nove mulheres apontadas como “conhecedoras do fato criminoso”, as quais foram “submetidas a rigoroso interrogatório”. Uma delas havia estado no necrotério e declarava que o tronco humano, que vira sobre uma das mesas, “parecia-lhe ser o de uma prima sua de nome Maria, por ter, como essa sua prima, uma fístula em uma das coxas”. Naquela época não havia sido instaurado um método preciso para a identificação de cadáveres. Segundo o historiador Pierre Darmon, a antropometria passou a ser empregada para a identificação de criminosos na década de 1880. Somente no final da década seguinte os mesmos princípios seriam utilizados para a identificação de cadáveres. Cf. DARMON, Pierre. “Da antropologia à antropometria: Alphonse Bertillon”, in________________. Médicos e Assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Tradução de Regina Grisse de Agostino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 [1989], p. 209-228. Ver também: MACHADO, Maria Helena P. T. “Corpo, gênero e identidade no limiar da abolição: a história de Benedita Maria Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (Sudeste, 1880)”. Afro-Ásia, 42 (2010), 157-193. A autora aborda formas de identificação e o uso práticas da medicina legal na década anterior ao período analisado nesta dissertação. “A cabeça apresentava na parte superior uma fenda contusa, em forma de T, e pela fenda enorme deixada 6

pela separação do tronco escoava-se a massa encefálica./ A face, lívida, com a epiderme separada pela putrefação, não apresentava sinal algum característico. Fisionomia vulgar de um tipo tapuio: rosto redondo, testa ampla, olhos deformados, com as pálpebras caídas, tumefactos, boca ligeiramente aberta, lábios intumecidos./ Nos braços e nas pernas cicatrizes, e em um dos braços uma tatuagem, em forma de estrela. Os restos mortais foram encaminhados ao anfiteatro anatômico da Faculdade de Medicina e cosidos ao tronco. Cf. “Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 set. 1892, p.1.

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Sempre que possível, os redatores pareciam empregar as comparações e a própria

linguagem científica na escrita. Tais arroubos não ficariam impunes nos comentários do

narrador, o que era de esperar, uma vez que ele estava tão atento às narrativas dos

periódicos desde a primeira “A Semana”, como vimos nos outros capítulos. A utilização de

termos típicos dos relatórios da polícia nas notícias da Gazeta parecia proposital. É possível

dizer que, para os homens de imprensa do século XIX, a aproximação com os saberes

técnico-científicos fosse, inclusive, almejada, mas era vista com maus olhos pelo semanista.

Como ele frisaria ainda mais uma vez na série, aquele tipo de narrativa só o interessava

para a constatação de que ela diferia muito da literatura: “[...] Li o termo da autópsia; nunca deixo de ler esses documentos, não para aprender anatomia, mas para verificar ainda uma vez como a língua científica é diferente da literária. Nesta, a imaginação vai levando as palavras belas e brilhantes, faz imagens sobre imagens, adjetiva tudo, usa e abusa das reticências, se o autor gosta delas. Naquela, tudo é seco, exato e preciso. O hábito externo é externo, o interno é interno; cada fenômeno, como cada osso, é designado por um vocábulo. A cavidade torácica, a cavidade abdominal, a hipóstase cadavérica, a tetania, cada um desses lugares e fenômenos não pode receber duas apelações sob pena de não ser ciência. Daí certa monotonia, mas também que fixidez! As conclusões é que não podem ser tão rigorosas. No caso a que aludo, a morte foi produzida por “intensa hemorragia pulmonar”. Mas o que é que produziu a hemorragia? Essa é a parte deixada ao incognoscível. As crianças do meu tempo costumavam dizer por pilhéria que uma pessoa havia morrido “por falta de respiração”. Pilhéria embora, se a considerarmos bem, é uma conclusão científica; o mais é querer ir ao incognoscível, que é um muro eterno e escuro.” 7

Os textos de ares científicos não ensinavam nada, servindo apenas para causar o

enfado. Em nova menção aos autos de necropsias publicados pela imprensa, o narrador

tratava do interesse despertado por aquele tipo de narrativa. Ao comentar a autópsia de uma

atriz, diz: “O que também se compreende, é que a exumação e a autópsia se hajam

feito, conforme li nos jornais, diante de grande número de curiosos. Essa espécie de curiosidade não é menos legítima nem menos nobre que outras muitas. Nada mais comum que ver um cadáver em caixão aberto ou na rua. [...] Também se podem ver cadáveres no necrotério e rara é a pessoa que ali passa, a pé, de carro ou de bonde, que não deite os olhos para o mármore, a ver se há algum corpo em cima. Exumações e autópsias é que não são comuns, mormente de pessoas conhecidas; e se estas são atrizes, cresce naturalmente o gosto do espetáculo”. 8

ASSIS, Machado de. “A Semana – 28 de junho de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 jun. 1896, 7

p.1. ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 30 de agosto de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 8

ago. 1896, p.1.

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Ao que parece, todo o espetáculo montado em torno de casos bárbaros, chocantes,

não empolgava o narrador. Este preferia referir-se a terceiros que se engajavam em tais

curiosidades mórbidas. Tendo em vista ainda os comentários citados no capítulo anterior

sobre a ciência que tirava a graça de tudo e, o mais das vezes, se equivocava, pode-se supor

que a pormenorização de casos como o de Maria de Macedo fosse considerada má

literatura pelo cronista.

Ao longo dos dias detalhes eram publicados fomentando a curiosidade dos leitores

em torno do caso estarrecedor. O nome da “vítima trucidada” era Maria de Macedo e os dos

suspeitos não tardaram a aparecer: Sol Posto, indivíduo muito conhecido, “sem ocupação

nem domicílio certo” , além de um “patife de marca maior” ; Pedro de Oliveira Leitão, 9 10

conhecido por Cadete, vendedor de balas na estrada de ferro e, por fim, Timotheo Ferreira 11

da Silva, também conhecido por João Crioulo, ex-escravo “do Dr. Peregrino José Freire, de

quem herdara um prédio, de cujo rendimento tira os meios de sua subsistência” . Ao longo 12

das reportagens, a trama construída afirma que tanto Timotheo quanto Cadete tiveram um

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 set. 9

1892, p.1. “Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 set. 10

1892, p.1. A reportagem diz que não se sabe ao certo o nome completo do suspeito, mencionando três possibilidades: Antonio Paulino Sol Posto, João Paulino Sol Posto ou José Valentim Sol Posto. “Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 set. 1892, p.1.

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 set. 11

1892, p.1. “Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado – Sol Posto preso.”, Gazeta de Notícias, Rio de 12

Janeiro, 29 set. 1892, p.1. A casa é descrita como “modesta, mas decentemente mobiliada” e tinha o retrato do Dr. Peregrino na parede. A Gazeta acrescentava o que chamava de “curiosa e importante informação”: aquele “crioulo” gozava da confiança de seu antigo senhor, que “o levava para auxiliá-lo nas operações cirúrgicas que praticava. Daí o conhecimento, embora rudimentar, do manejo de instrumentos cirúrgicos”. A informação coincidiria com a observação de alguns dos médicos que examinaram o cadáver de Maria “de que a operação praticada para esquartejamento do cadáver da mesma revelava certos conhecimentos empíricos, ao menos de cirurgias.” Para completar o juízo sobre o homem, a folha dizia que algumas pessoas que o viram na delegacia “dizem já ter ele praticado alguns furtos.” “Singular Crime! – Planta da Casa.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 set. 1892, p.1. O homem alegava que somente acompanhara o ex-senhor, mas não o vira “fazer curativos ou trabalhos de cirurgia”. Cf. “Primeiro Depoimento”, in: “Singular Crime! – Revelações de Timotheo.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 out. 1892, p.2. Falta o exemplar do dia 01 de outubro de 1892.

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envolvimento amoroso com a assassinada e que Sol Posto, o terceiro criminoso, fora

contratado para auxiliar na vingança de ambos.

As publicações sobre os três não deixavam dúvida sobre a autoria e revelavam

curiosos procedimentos policiais. A prisão de Cadete, por exemplo, foi seguida de um

interrogatório em pleno necrotério, com direito à confrontação com a cabeça putrefata da

vítima . Para além de seu suposto envolvimento no assassinato, é interessante notar que 13

não há nenhum questionamento por parte da Gazeta sobre os peculiares métodos

investigativos do delegado Sodré. A maneira com que o jornal relata o ocorrido também é

muito particular, enfatizando o nervosismo do rapaz durante a “acareação”. Àquela altura, a

maioria dos leitores ainda duvidaria da implicação do vendedor de balas na morte da

mulher? Poucos dias depois, o rapaz supostamente confessava o crime, dizendo que a

amava muito e que não desejava matá-la; queria apenas pagar-lhe a sova que recebera . 14

A culpa de certa forma recaía também sobre a própria vítima. A Gazeta insinuava

sua dose de responsabilidade, uma vez que seu “comportamento irregular” não a favorecia.

Ao longo das inúmeras reportagens Maria é chamada de “mulher perdida”, “infiel”, além

de ser acusada de se dar ao vício da embriaguez e de não zelar por sua filha pequena . 15

Além disso, suas amigas que prestavam depoimento também não eram bem vistas. Era o

caso da “preta Sebastiana, mulher de má vida, como Maria de Macedo, e que a conhecia de

perto.” O jornal acrescentava também que a mulher assassinada, “cujo verdadeiro nome é 16

Fluencia Maria de Jesus”, teria sido amante de um ex-militar, casando-se com outro homem

e separando-se logo depois. “Ultimamente a infeliz vagava pela rua da Harmonia e outras

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 set. 13

1892, p.1.“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 set. 14

1892, p.1. “Singular Crime! – Revelações de Timotheo.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 out. 1892, p.2. Falta 15

o exemplar do dia 01 de outubro de 1892. Dias depois, teria sido presa, no Realengo, Arminda Cândida de Jesus, amiga e companheira da vítima, que 16

confirmava as alegações de Sebastiana. No mesmo dia, Cadete foi transferido para a Casa de Detenção, fotografado pela polícia e o cadáver da vítima finalmente enterrado, no cemitério de S. Francisco Xavier. “Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, 27 set. 1892, op. cit.

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circunvizinhas, sem que soubesse a sua residência. Diz-se que o seu comportamento

irregular levou-a algumas vezes à Casa de Detenção.” 17

Notório é também que onde os jornalistas viam detalhes anatômicos e

comportamentais estarrecedores, o narrador via traços de amor. A desaprovação expressa

naquela crônica – “não ames como outros amaram aquela Maria de Macedo” – não

mencionava nenhum julgamento moral sobre os amores da vítima, e sim o extremo a que

tinham chegado seus hipotéticos autores. Embora não possamos traçar muitas conjecturas

sobre aquela frase única, fica denotado que a Gazeta nunca se referiu às relações de Maria

com os homens envolvidos no inquérito pelo viés sentimental. A questão moral sempre

preponderou nos artigos sobre o caso, arrasando as reputações dos suspeitos e da

assassinada.

A linguagem empregada para os sujeitos sem arrimo difere muito da outra que

descreve pessoas ilustres. Os termos científicos vinham dar suporte ao discurso que

colocava a população pobre como suspeita preferencial ou ainda condenada sem formação

de culpa. Sobre a sentença antecipada, lembremos que, neste mesmo caso, a Gazeta de

Notícias afirmava que a cumplicidade de um certo cabo Gomes parecia averiguada. O

jornal colocava como fora de dúvida que os assassinos eram Cadete, Gomes e Sol Posto , 18

apresentando os endereços, filiações e tudo o mais que pudesse encontrar sobre cada um

deles. No dia seguinte, Gomes foi solto por se averiguar que nada tinha com o crime . 19

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 set. 17

1892, p.1. Finalizando o relato do dia sobre o macabro crime, a Gazeta aludia a uma ocorrência na estalagem Cabeça de Porco. O Sr. Dr. Vaz Pinto remetera à polícia uma “posta de carne queimada”, encontrada em um dos quartos na ala esquerda, mandada fechar por ordem da mesma polícia. A latrina desse quarto estaria completamente entulhada com terra e pelo chão viam-se manchas de sangue. O Dr. Nabuco de Freitas, convidado a examinar o pedaço de carne, manifestara dúvidas se ela seria humana ou não. Havia também o auto de corpo de delito, apresentado pelos médicos legistas, e que era mera repetição sobre as condições do cadáver, descrito havia pouco pela Gazeta de Notícias.

Curiosamente, afirmava não revelar o verdadeiro nome daquele último, tendo em vista não dificultar o 18

trabalho da polícia, que o trazia vigiado. Ora, havia dois dias que a folha propalava o nome do suspeito. Que diferença faria agora?

“Singular Crime! – Mulher assassinada – Corpo trucidado.”, op. cit. 25 set. 1892.19

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Na sanha de atrair o público-leitor, a Gazeta tentava dramatizar o caso por meio do

emprego de termos escolhidos a dedo. Tratando das manchas de sangue encontradas na casa

do ex-escravo, dizia que tais evidências: “mostram que foi ali naquele quarto, tendo por

única testemunha a imagem de Cristo na cruz, que a infeliz Maria de Macedo sucumbiu às

mãos dos seus algozes.” A propósito da moradia do suspeito, no alto da primeira página 20

do jornal vinha o desenho de sua planta, mostrando a localização do cubículo em que

estariam os objetos apreendidos pelos investigadores. Importante ressaltar que ilustrações

não eram comuns na Gazeta de Notícias, pelo menos até 1894, quando elas passam a ser

mais frequentes. Esse fato demonstra o interesse e o destaque dado ao caso pela folha. Isso

acarreta a conclusão de que os leitores estavam ansiosos pelos detalhes do que era chamado

de o mais bárbaro crime que ocorrera no Rio de Janeiro. O narrador de “A Semana” tinha

razão quando mencionara o fascínio exercido pelos grandes crimes.

Apesar de o rebuliço continuar no jornal, o cronista prefere não mencionar o caso

em seu texto seguinte. Quando o faz, mais de quinze dias depois do ocorrido, é para colocá-

lo na mesma cesta de assuntos que prefere deixar de lado: “Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos bancários, debates e debates

financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de outros, dois mil comerciantes marchando para o Palácio Itamaraty, a pé, debaixo d'água, processo Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo isso grave, soturno, trágico ou simplesmente enfadonho. Uma só nota idílica entre tanta coisa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan.” 21

É à morte de Ernest Renan que se destina boa parte daquela crônica. O caso Maria

Antônia estava entre os que eram trágicos ou enfadonhos, merecendo, quando muito, uma 22

menção bastante rápida. No entanto, ele apareceria ainda na série, atestando o quanto a

imprensa o explorava, ou ainda o quão deveras chocante ele tinha sido para a sociedade da

“Singular Crime! – Planta da Casa.”, op. cit. 20

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 09 de outubro de 1892”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21

09 out. 1892, p.1. A vítima foi chamada de muitos nomes ao longo daquelas reportagens: Antônia Maria, Maria Antônia 22

Cezaria da Conceição, Fluencia Maria de Jesus e Maria de Macedo, nome pelo qual o caso ficou conhecido. Em um dos depoimentos, Timotheo afirma que não procurou a polícia para falar do caso, mesmo depois de que os jornais terem noticiado o assassinato, porque “os jornais falaram em Maria Macedo e não Antonia Maria”. “Singular Crime!”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 out. 1892, p.1.

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época. Com todo o alarde em torno do crime, ele parece ter calado fundo na memória de

seus contemporâneos e volta e meia era relembrado. Ainda em 1892, a Gazeta noticia, com

deboche, o aparecimento de outra Maria de Macedo: uma mulher embriagada que alegava

ser a vítima “do João Creoulo & C.”. O jornal dizia que ela havia sido presa até “até passar-

lhe a mona, mesmo porque antes disso nada se lhe conseguiria arrancar. […] E lá está a

Maria de Macedo (2ª edição) a cozer a ressaca”. Finalizava-se a nota “O único ponto de

contato até agora conhecido entre as duas [Marias] é a embriaguez.” 23

Em dezembro, enquanto a folha dá grande destaque ao Sumário de Culpa dos

suspeitos, as comparações jocosas em torno da tragédia ainda aparecem. É o caso, por

exemplo, de uma nota tratando do fornecimento de carne verde, que comparava as carnes

frigorificadas aos restos mortais de Maria: “Mas acontece uma coisa: o gado em pé d’aços

vem metidos nuns sacos brancos, e aí é que pega o carro, porque o Zé Povinho quando vê

carne, assim em saco, pensa logo que é de alguma Maria de Macedo.” O narrador de “A 24

Semana” critica tais analogias, dizendo que: “O assunto era a questão das carnes verdes;

mas eu não falo de carnes verdes, como não falo das congeladas, que algumas pessoas

comparam às carnes espatifadas de Maria de Macedo. Creio que esta pilhéria fará carreira;

é lúgubre, mas é também medíocre.” O quase sempre bem-humorado semanista se 25

“?”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09 nov. 1892, p.1. (grifos no original).23

“Migalhas”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 31 dez. 1892, p.2. O paralelo entre o caso da mulher 24

assassinada e a carne aparecia também em publicações a pedido, como a seguinte: “Será carne de Maria de Macedo a que atualmente se vende nos açougues por ordem do Sr. Prefeito?/ Só assim se pode explicar os casos de diarreia que se tem manifestado na população./ Olha o cholera.” OLHA O CHOLERA. “Carne verde”, in: “Publicações a pedido”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 jan. 1893, p.3. Ainda sobre o assunto: A Gazeta de Notícias abria espaço para as considerações do Dr. Henrique de Sá, clínico e membro da Sociedade de Hygiene do Brasil, acerca das “carnes frigoríficas”. Em certo ponto, o médico dizia: “É pueril, é grotesca, é mesmo irrisória a oposição que se faz às carnes fornecidas pelos vapores frigoríficos, emprestando-lhes até epítetos poucos agradáveis e comparando-as aos fragmentos humanos dessa desgraçada mulher que se chamou Maria de Macedo, cuja história tão contristadora deveria até ser calada, respeitada e sepultada com ela!” SÁ, Henrique de. “Alimentação Pública”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09 fev. 1893, p.2. Em outro momento, atesta que o apelido para as carnes refrigeradas se popularizara: “Enfim, aparecendo no mercado a carne frigorífica importada de Buenos Aires, amigos da tal liberdade encheram as folhas diárias de artigos em que se propalava que a referida carne vinha cheia de germens de moléstias contagiosas e provocaram a repugnância dos consumidores, dando-lhe o nome de Maria de Macedo.” MUNICIPE, “A carne - II”, in: “Publicações a Pedido”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 mar. 1893, p.2.

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 15 de janeiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25

15 jan. 1893, p.1.

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mostrava algo irritado com a insistência no assunto e também com o mau gosto da

comparação. Por certo, ninguém imaginaria esse tipo de “brincadeira” caso a vítima fosse

uma “dama respeitável”.

O caso parecia ter realmente marcado seus contemporâneos e o tema voltaria a “A

Semana” por, pelo menos, mais duas vezes. Em uma delas, é interessante notar que a crítica

continuava a ser à exagerada atenção que era dada ao ocorrido, chamada, agora

diretamente, de má literatura:

“A organização social podia ser dispensada. Entretanto, é prudente conservá-la por algum tempo, como um recreio útil. A invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale bem o dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. Algumas dessas narrativas são demasiado longas e enfadonhas, como a Maria de Macedo, cujo sétimo volume vai adiantado; mas isso mesmo é um benefício. Mostrando aos homens os efeitos de um grande enfado, prova-se-lhes que o tipo de maçante, — ou cacete, como se dizia outrora — é dos piores deste mundo, e impede-se a volta de semelhante flagelo. Uma das boas instituições do século é a falange das coisas perdidas, composta dos antigos gatunos e incumbida de apanhar os relógios e carteiras que os descuidados deixam cair, e restituí-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais.” 26

Tal qual a crônica que tratava da piada sobre as carnes verdes, o semanista

manifestava aborrecimento com a insistência no ocorrido, o que chamava de “flagelo”.

Notemos que os termos empregados por ele falam de crimes inventados. Podemos cogitar

que, com as contradições das grandes descobertas que logo eram desmentidas, como no

caso do cabo Gomes, o narrador não via naquelas longas exposições algo que pudesse ser

confiável. Aquelas narrativas, escolhidas para prender a atenção dos leitores e justificar o

discurso cientificista, não davam conta dos dramas que se propunham a relatar, além de não

serem fidedignas. Outra hipótese é a de que o cronista esteja criticando a propagação dos

“romances de sensação”. Alessandra El Far trata do sucesso desse tipo de publicação nos

anos finais do século XIX . Os casos de sensação não se restringiam às páginas ficcionais 27

dos romances de baixo custo. Com personagens reais, os periódicos, também leitura barata

e popular, procuravam captar o fascínio de seus leitores, utilizando a exposição de todos os

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 26 de fevereiro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26

26 fev. 1893, p.1. EL FAR, Alessandra. “Romances de Sensação”, in:____________. Páginas de Sensação: literatura 27

popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 113-183.

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pequenos detalhes do caso e divulgando, inclusive, os boatos que surgiam na época. Tais

quais os romances de sensação analisados por El Far, os personagens reais também

quebravam paradigmas, expectativas sociais e normas de conduta . 28

Ana Gomes Porto trata da atração que as histórias de crime exerciam na época. De

acordo com a autora, entre as décadas de 1870 e 1920 é possível definir um gênero de

literatura de crime, sem considerar as especificidades do “romance policial” ou de

“aventuras” . Por meio de sua pesquisa, sabemos que, em 1930, José Giancarulo publicou 29

A morte trágica de Maria de Macedo, advertindo os leitores de que aquela era: “a narrativa

romantizada e minuciosa de um drama brutal, bárbaro e emocionante, que em fins de 1892

empolgou profundamente a população da cidade.” Afirmava ainda que não seriam muitos

os “habitantes do Rio de Janeiro, que não tenham ouvido ao menos uma ligeira referência

ao esquartejamento de Maria de Macedo, que, pelo imprevisto, pela brutalidade, pela

covardia feroz com que agiram os criminosos, causou demorada inquietação na alma da

cidade”. Terminava dizendo que todo o mistério que envolveu o caso fora desvendado em

poucas horas, “não pela argúcia das autoridades policiais, mas simplesmente por um acaso

providencial” . 30

O caso de fato marcou a sociedade carioca em finais do XIX. A brutalidade que o

envolvia por certo bastava para escandalizar a muitos. Todavia, podemos cogitar que a

cobertura feita pela imprensa tenha sido muito mais fundamental nesse sentido. Os leitores

se deparavam diariamente com detalhes de depoimentos, laudos de autópsia, transcrições

de interrogatórios, detalhes dos julgamentos, retratos da vítima e dos criminosos, desenhos

Outras formas de exploração comercial sobre o caso não tardam a aparecer. Ao anunciar “Grandes 28

Novidades chegadas ultimamente de Paris”, como a Lanterna Mágica, o Musée Parisien, cito à rua do Lavradio, 59, prometia que brevemente estrearia O assassinato de Maria de Macedo. Outros anúncios garantiam que estariam “em exposição os quatro quadros mecânicos” representando o crime. “Musée Parisien”, in: “Annuncios”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 jan. 1893, p.8.

PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920). Tese de Doutorado 29

em História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, [s.n.], Campinas, SP: 2009.

Aos Leitores”. Giancarulo, José. A morte trágica de Maria de Macedo (Narrativa romantizada de um crime 30

sensacional). Rio de Janeiro: Oficinas gráficas do Jornal do Brasil, 1930, pp. 3-4. Apud: PORTO, op. cit., p. 98-9.

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da cena do crime etc., lembrando o que o narrador de “A Semana” disse na primeira vez em

que abordou o caso, isto é, que aquele “pedaço de cadáver” veio quebrar o tédio,

proporcionando um “banquete pantagruélico” nas páginas dos periódicos fluminenses.

Quanto ao desenrolar das investigações, Timotheo não chegou a ir a julgamento:

faleceu no hospital de beribéricos de Copacabana . As notícias dão a entender que o 31

homem estava enfraquecido desde os primeiros dias de cárcere, quando suas preocupações

se voltavam para a feitura de seu testamento, que asseguraria a destinação de seu espólio

para os tios e amigos. O ex-escravo seria matéria da “Semana” subsequente à sua morte: “Tirando o caso dos cheques, a morte do preto Timotheo, indigitado autor do

assassinato de Maria de Macedo, o benefício de Sarah Bernhardt, a perfídia de dois sujeitos que venderam a um homem, como sendo notas falsas, simples papéis sujos, zombando assim da lealdade da vítima, e pouco mais, todo o interesse da semana concentrou-se no Congresso. […]; a morte de Timotheo veio suspender um processo interminável, e o logro das notas falsas põe ainda uma vez em evidência que a boa fé deve fugir deste mundo; não é aqui o seu lugar. Contra um homem leal, há sempre dois meliantes.” 32

O comentário citava o interminável processo que, a propósito, enchia as primeiras

páginas da Gazeta de Notícias, com os mínimos detalhes dos depoimentos. Todavia, a

morte de Timotheo não encerrava as investigações . O primeiro dos acusados a ir a júri 33

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 jun. 1893, p.1.31

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 02 de julho de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 02 32

jul. 1893, p.1. Ainda sobre a exploração do caso pela imprensa, é interessante notar que mesmo os defensores dos 33

suspeitos utilizavam as linhas do jornal para tratar do caso. O Dr. João Correa Benevides, advogado de Sol Posto, assegurava que tal prática era um vezo seu e “mais do que isso deve ser regra de conduta dos advogados vir pela imprensa sustentar as causas que lhe são entregues”. Isso aconteceria para não se dissesse ou pensasse que “à moda dos estóicos, ou dos retóricos da Roma antiga se fala e se escreve ao sabor dos príncipes ou dos governos”. Não, a missão do advogado seria muito outra e teria “fundamento mais sólido e fins mais elevados. O direito não é o sofisma e o embuste”, nem o advogado seria “pregoeiro da mentira”, ou “mendigo de favores”, “muito menos nesta terra onde tudo é grande e ninguém morre de fome.” Perguntava se era lícito estar preso um cidadão, “ainda que se chame Sol Posto”, um ano depois do crime, sem flagrante, sem pronúncia, a pretexto de necessidade de “diligências intermináveis”, que não teriam relação com ele, apenas porque isso aprazia ao advogado de Cadete Baleiro e ao promotor. “Ainda estará talvez a polícia estudando a identidade de Maria de Macedo, ou se o sangue encontrado no quarto e na cama de Timotheo é de gente ou de camundongo.” Concluía dizendo: “Grande país!!! Indecifrável justiça!!!”.Afirmava ainda que não discutiria os dois habeas-corpus negados, porque compreendia que:“[…] Sol Posto é vítima da fatalidade, mas o crime a que a polícia dos Frontões ligou o seu nome é singular e horroroso./ É de mais, um homem carregador, de cara feia, assinalado com orelha cortada, defendido por um cidadão que incomoda com verdades que ninguém gosta de ouvir, quem pode resolver? Vá para o júri, lá pode falar à vontade./ Entretanto, no dia 18 de setembro próximo, faz um ano que Maria Antonia ou Antonia foi assassinada em seu leito como Desdemona pelo Othelo preto Timotheo, cuja acusação póstuma não faço, nem a farei. […]”. BENEVIDES, João Maria Correa de Sá e. “Processo Maria de Macedo – Habeas-corpus de Sol Posto”, in: “Publicações a Pedido”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 ago. 1893, p.3.

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seria Cadete, o que somente ocorreria em 1895. O vendedor de balas, de 25 anos e 34

analfabeto, afirmava sua inocência. Dizia ainda que a declaração feita anteriormente,

perante a polícia, de que estivera na casa de Timotheo na noite do crime: “a fez obrigado,

por terem-lhe dado muitas pancadas, fazendo-o declarar, o que não era verdade”. Conhecia

Maria de Macedo e ela estava viva, presa na Casa de Detenção. Somente dissera que o

corpo esquartejado que viu no necrotério era o dela porque “os polícias secretas o

obrigaram”. O mesmo em relação à suposta declaração de que Sol Posto dera o golpe fatal

na vítima, acrescentando que não se lembrava o que tinha dito na pretoria “por estar fora de

seu juízo”. Foi condenado no grau máximo do art. 294 §1º do Código Penal , a 30 anos de 35

prisão celular, a qual o juiz converteu em prisão com trabalho. No mês de junho, Cadete é

submetido a segundo julgamento. Repetia o que dissera no interrogatório anterior e acusava

nominalmente o delegado Sodré e um certo alferes Dourado de o terem coagido, à base de

ameaças e espancamento, a dizer que participara do crime. Reafirmava que nunca

conhecera a vítima, “e quanto a Maria de Macedo, está viva e é sua amiga”. Foi

absolvido . 36

Dias depois do primeiro julgamento de Cadete, era julgado Sol Posto. Declarava ter

40 anos, ser “natural da Bahia, solteiro, morador à Praia da Formosa, estalagem, havia três

meses, analfabeto”. A afirmação leva a supor que aguardava o julgamento em liberdade.

Alegou não saber o motivo por que era acusado, nem onde estava quando se deu o crime.

Repetia a alegação de que apenas transportara a “carga”, a mando de Timotheo, sem saber o

que ela continha. Pelo cheiro, teria inferido de que se tratava de carne de porco e, por isso,

tentara vendê-la como tal. Somente na taverna, ao abrir a boca do saco, percebera que se

“Maria de Macedo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 mar. 1895, p.2.34

Artigo 294: “Matar alguém” e o §1º “se o crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias 35

agravantes”, mencionadas nos artigos 39 e 41. Dentre estas, estavam: “Ter o delinquente procurado a noite, ou o lugar ermo, para mais facilmente perpetrar o crime”; “Ter o delinquente sido impelido por motivo reprovado ou frívolo”; “Ter o delinquente superioridade de sexo, força ou armas, de modo que o ofendido não pudesse defender-se com probabilidade de repelir a ofensa”; “Ter o crime ter sido ajustado entre dois ou mais indivíduos” e “Quando a dor física for aumentada por atos de crueldade”. BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Codigo Penal dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro.

“Jury – Segunda Sessão Ordinaria”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 jun. 1895, p.2.36

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tratava de um tronco de mulher. Perguntado por que razão, ao invés de lançar o corpo ao

chafariz do Largo do Depósito, não o levou para a estação policial, respondeu que “porque

não teve tino” . 37

Esmeraldino Bandeira pedia a condenação de Sol Posto ao grau máximo,

emendando que: “os gritos da vítima, vibrando ainda nos ouvidos dos Srs. jurados,

imploram justiça!” De maneira um tanto inusitada, o Sr. Dr. Joaquim José de Carvalho, que

fora médico legista da polícia “durante o fato delituoso”, pediu a palavra para treplicar.

Com a alegação de Carvalho de que tinha “revelações importantes a fazer”, lhe é concedida

a tribuna. A Gazeta dá a entender que este foi o ponto decisivo da audiência. O legista

declara que no exercício de seu cargo:

“[…] tivera de estudar este processo, nele intervindo desde o princípio; que fora ele quem lembrara a providencia que deu em resultado a recomposição do corpo da assassinada, que tinha todos os elementos para asseverar que a sociedade já estava satisfeita com o desaparecimento do verdadeiro e único criminoso, Timotheo, de quem por vezes ouvira que Sol Posto nenhuma comparceria tinha no crime; que, como médico, asseverava sob sua palavra de honra e fé profissional, nunca ter ouvido nem podido colher elemento algum probatório no crime de Sol Posto ou de uma situação por ele estudada para obter indébita inocentação.

Protestava pela inocência de Sol Posto que fora mero e inocente carregador de um crime alheio, e pedia sua absolvição que, demais, pouco vinha aproveitar a quem já é cadáver.” 38

O júri se retirou então para a sala secreta. Voltando, declarou-se que Sol Posto fora

absolvido. É interessante notar que o parecer médico-científico tem um peso incrível nos

rumos do julgamento. A autoridade de Dr. Carvalho não é contestada, embora contrarie

todo o trabalho da polícia na composição do inquérito e tudo o que fora publicado nos

jornais ao longo de três anos. Suas declarações alteram até mesmo a ordem dos

procedimentos, ao abrir uma exceção apenas para que ele seja ouvido.

O caso de Maria de Macedo expunha o afã pela modernidade que permeava

segmentos da sociedade carioca na década de 1890: não se trata somente da exposição do

inquérito policial, é também a consagração dos termos científicos, dos exames

“Maria de Macedo”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09 mar. 1895, p.2.37

Idem.38

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microscópicos e da lógica que anulam a comoção das complicações amorosas, do parecer

médico sobre todos os outros. O capítulo sobre aquela história, ou melhor, os sete volumes

de que fala nosso narrador, começam e terminam com o uso da ciência, cuja autoridade soa

como incontestável.

Ocorrido em 1892, primeiro ano da série “A Semana”, o caso era exemplo não só do

tipo de narrativa que o leitor da Gazeta de Notícias encontraria com frequência naquelas

páginas, como também de como o narrador machadiano, bem caracterizado, se opunha ao

que era defendido e vendido pelo periódico: ao passo que o jornal explorava as minúcias do

crime, o semanista mencionava o mau gosto daquela cobertura e repetia seu enfado para

com ela. O episódio parece revelar também que Machado de Assis desaprovava a

exploração das notícias envolvendo as classes populares, nas quais o misto de

sensacionalismo e ciência parecia um demérito. A hipótese ganha força quando analisamos

o assassinato Maria de Macedo ao lado das outras notas policiais que se seguem.

2. Manuel de Souza e Silva, Nenê

Na crônica de 28 de julho de 1895, o narrador diz:

“Raramente leio as notícias policiais, e não sei se faço bem. São monótonas, vulgares, a língua não é boa; em compensação, podem achar-se pérolas nesse esterco. Foi o que me sucedeu esta semana, deixando cair os olhos na notícia do assassinato de João Ferreira da Silva. Não foi o nome da vítima que me prendeu a atenção, nem o do suposto assassino, nem as demais circunstâncias citadas no depoimento das testemunhas, as serenatas de viola, o botequim, a bisca e outras. Uma das testemunhas, por exemplo, fala do clube dos Girondinos, que eu não conhecia, mas ao qual digo que, se não tem por fim perder as cabeças dos sócios, melhor é mudar de nome. Sei que a história não se repete. A Revolução Francesa e Otelo estão feitos; nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras peças, e assim se cometem, literariamente falando, os plágios.” 39

ASSIS, Machado de. “A Semana – 28 de julho de 1895”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 jul.1895, p.39

1. (grifos meus).

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De maneira bem-humorada, o cronista criticava mais uma vez o modo como eram

tratadas as notícias policiais na imprensa do Rio de Janeiro. Para ele, a sensaboria e a

vulgaridade prevaleciam naquele mar de notas escritas para, aparentemente, preencher o

espaço do jornal mais do que informar. Se o narrador não acusa, todavia também não exime

de culpa a própria Gazeta de Notícias, que, a bem da verdade, não diferia dos outros

periódicos ao tratar das novidades saídas da Repartição de Polícia. Como já disse, estas

eram quase sempre acompanhadas por algum juízo de valor sobre o caso em questão, ou

ainda por algum trocadilho, muitas vezes infame, revelando que os redatores e, decerto,

parte do público leitor encontrariam alguma graça em tais casos. Todavia, quando o crime

causava maior alvoroço entre a opinião pública, como no caso Maria de Macedo, a folha

dedicava-lhe várias colunas, com informações recolhidas nos dias subsequentes ao

acontecido. Era nessa última categoria que também se encaixava o assassinato de João

Ferreira da Silva.

Seis dias antes da crônica de “A Semana”, a Gazeta publicara uma longa notícia

sob o título “Assassinato”. Dava-se conta de que: “Às 2 e ½ horas da madrugada de ontem, um indivíduo, que corria da rua da Relação

em direção à repartição da polícia, caiu morto junto à porta principal do edifício, apresentando no peito um profundo ferimento.

Ato contínuo um outro indivíduo, que também se achava ferido no rosto, parou junto ao cadáver procurando certificar-se se o indivíduo que ali se achava caído estava com vida.

Tornando-se o referido indivíduo suspeito, foi imediatamente preso e apresentado ao Sr. Dr. Carijó, 1º delegado auxiliar.

A referida autoridade, depois de providenciar sobre a remoção do cadáver para o necrotério, interrogou o indivíduo que fora detido, que declarou simplesmente chamar-se Luiz Torres Nogueira, não sabendo explicar o nome do falecido, o lugar do crime e nem mesmo a origem do ferimento que ele apresentava no rosto.

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Tratando-se de um crime misterioso, no qual parece ter Nogueira tomado parte, a autoridade policial mandou recolhe-lo ao xadrez, a fim de o submeter a rigoroso interrogatório.” 40

Tendo em vista que o narrador principia a crônica comentando a “pérola”

encontrada entre o esterco das notas policiais, há de se convir que ela não primava pelo

estilo. Uma das hipóteses para tal é que ela tenha saído a toque de caixa, na urgência

imperiosa da imprensa. A outra, que considero mais provável, é que esse tipo de texto tenha

sido muito influenciado pelos próprios relatórios da polícia. O que reforça essa ideia é a

presença desse tipo de narrativa em outros diários no mesmo período, não se tratando de

um cacoete de escrivão policial daquele jornalista específico. Ademais, embora as hipóteses

não sejam excludentes, isto é, talvez a pressa justificasse o uso plagiário da versão oficial, é

inegável que havia a influência dos relatórios no emprego de termos técnicos, como no caso

abordado no item anterior.

Ao longo dos dias, novos detalhes eram inseridos nas reportagens sobre o crime.

Verificara-se que o ferimento se dera a poucos passos da Repartição da Polícia. Além disso,

a vítima era ex-corneta da brigada policial, de onde tivera baixa três meses antes . Decerto 41

esta ligação estreita entre a vítima e a polícia dava novas tintas à investigação do caso que,

somadas ao tal mistério que o circundava, aumentava a pressa em encontrar o(s) culpado(s).

Junta-se a isso o fato, já comentado, de o crime ter se dado a poucos metros da Repartição

Central, o que reforçaria os argumentos dos que opinassem pela incompetência policial.

“Assassinato”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jul.1895, p.1. Fica clara ainda a tentativa do repórter 40

de enfatizar a suposta energia com que o Dr. Pedro Augusto de Moura Carijó trata o caso. Este delegado, tido como intrépido, é figura recorrente nas páginas da Gazeta, em especial por liderar, na época, o cerco de repressão ao jogo dos bichos. O procedimento adotado nessa feita, aliás, era o mais frequente: na dúvida sobre a culpa, a combinação “xadrez e rigoroso interrogatório”, seguida da promessa de um “rigoroso inquérito”, fórmula pronta para esse tipo de situação. Machado de Assis deve ter experimentado o que era o “rigoroso inquérito” policial pelos idos da década de 1890. Na Gazeta de Notícias de 10 de junho de 1893 aparecera a seguinte nota: “Joaquim Machado de Assis, morador à rua do Cosme Velho n.18, queixou-se ao delegado da 13ª circunscrição policial de que desaparecera de sua casa um criado de nome Augusto Pereira da Silva, que subtraiu-lhe uma porção de joias com brilhantes.” Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 jun. 1893, p.1.

“Assassinato”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jul.1895, p.1.41

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Como parecia ser a praxe naqueles casos, a narrativa era incrementada com os detalhes da

autópsia realizada no assassinado . 42

A dramaticidade vinha também na exposição dos pormenores da vida particular da

vítima: Silva era casado, pai de dois filhos menores e residia em uma estalagem. A viúva,

Maria Virgínia da Costa, informava que o marido “era homem pacato, de bons costumes” e

trabalhava como servente de pedreiro. Não fora visto desde que entrara em um botequim,

“ponto de reunião de indivíduos suspeitos”. Ora, se verdadeira, a declaração era um tanto

contraditória, já que se poderia perguntar o que um homem pacato, trabalhador e de bons

costumes fazia em um ponto de encontro de “indivíduos suspeitos”. Contudo, é bem

provável que a adjetivação do botequim nem tenha partido de Maria Virgínia, pois tem

certo sestro de escrivão.

Novamente, as narrativas policial e jornalística parecem ter se misturado. O

narrador de “A Semana” estava atento a essas circunstâncias e escolhe traçar novas

possibilidades para analisar o caso. Deixando de fazer digressões, toca logo ao assunto,

explicando o interesse que o caso lhe despertava:

“Vamos, porém, ao assassinato da Rua da Relação. O que me atraiu nesse crime foi a força do amor, não por ser o motivo da discórdia e do ato, — há muito quem mate e morra por mulheres — mas por apresentar na pessoa de Manuel de Sousa, o suposto assassino, um modelo particular de paixões contrárias e múltiplas. Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram.

As tatuagens são todas ou quase todas amorosas. Braços e peito estão marcados de nomes de mulheres e de símbolos de amor. Lá estão as iniciais de uma Isaura Maria da Conceição, as de Sara Esaltina dos Santos, as de Maria da Silva Fidalga, as de Joaquina Rosa da Conceição. Lá estão as figuras de um homem e de uma mulher em colóquio amoroso; lá estão dois corações, um atravessado por uma seta, outro por dois punhais em cruz...

Quando os médicos examinaram este homem fizeram-no com Lombroso na mão, e acharam nele os sinais que o célebre italiano dá para se conhecer um criminoso nato; daí a veemente suposição de ser ele o assassino de João Ferreira. Eu, para completar o juízo científico, mandaria ao mestre Lombroso cópia das tatuagens, pedindo-lhe que dissesse se um homem tão dado a amores, que os escrevia em si mesmo, pode ser verdadeiramente criminoso.” 43

Idem. “Os Drs. Moraes e Brito e Cunha Cruz, que autopsiaram o cadáver, verificaram que o mesmo 42

apresentava, além de duas feridas contusas no frontal e face esquerda, uma outra penetrante no tórax, tendo interessado o pericárdio e o coração em toda a extensão do ápice à base, achando-se fraturada a sexta costela.”

ASSIS, “A Semana – 28 de julho d 1895”, op. cit. (grifos meus).43

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Seguindo a lógica das afirmações do próprio semanista, ou seja, de que o “esterco”

era por ele evitado por ser considerado má literatura, a pérola da vez o teria fascinado, uma

vez que ele escavava fundo atrás de detalhes sobre o crime. Para ele, havia um lado

romântico no caso, o que o levava a questionar se um homem tão dado a amores poderia ser

considerado um delinquente. Essa perspectiva humanizava o indivíduo que era tomado

como mero objeto de estudo científico nos relatórios de polícia e na imprensa. Brincava

ainda com os saberes de Lombroso, propondo-se a corrigir ou complementar as teorias do

italiano. Machado de Assis, fora o estupor que o caso como um todo causava, deve ter

achado certa graça no procedimento de seu colega da Gazeta de Notícias e, sobretudo, nos

absurdos dos doutores de medicina, que serão abordados a seguir. Note-se ainda que

algumas das minudências não estavam na Gazeta, reforçando o pressuposto de que o

cronista se utilizava de diversos periódicos durante a confecção de seu texto e enfatizando o

interesse que o caso despertara. Reparemos ainda que, de uma só tacada, o escrito contraria

a polícia, os sábios doutores da medicina e mesmo o julgamento da imprensa.

Em sua abordagem do caso, o narrador fora bastante fiel ao parecer dos médicos

da polícia, que havia sido publicado na íntegra pela Gazeta. Eles começavam por citar o

famoso livro de Cesare Lombroso, L’Uomo Delinquente, bem como a localização e a

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descrição das tatuagens e do nome das amadas de Manuel . Podemos cogitar que, ao dar 44

tanta importância ao relatório médico – literatura que repetidas vezes dissera ser ruim,

como vimos anteriormente – o cronista procurasse demonstrar o quão falha era aquela

narrativa ao lidar com as particularidades e comportamentos dos indivíduos que procurava

descrever.

Enfatizando que o amor era o móvel daquelas inscrições marcadas no corpo, o

narrador se opunha à explicação fornecida pelos doutores, que, ademais, era de fato

absurda: poderia um homem ser considerado assassino porque tatuara os nomes de suas

amadas? Sobre Manuel ainda não recaíra nenhuma acusação formal, contudo, é notório que

a listagem de suas várias tatuagens despertava a curiosidade da imprensa e, principalmente,

dos médicos da polícia. Se estes, de maneira declarada, faziam a análise com Lombroso à

mão, por certo o tratavam não só como suspeito do crime em questão, mas sim como um

criminoso nato, o que, aliás, seria salientado pelo cronista dias depois.

Em seu livro, tomado pelos doutores da polícia como um manual de conduta,

Cesare Lombroso dedicava todo o segundo capítulo às tatuagens, entendidas como uma

característica psicológica, difundidas somente entre as “ínfimas classes sociais;

camponeses, marinheiros, operários, pastores, soldados, e mais ainda entre os

“Manuel de Souza e Silva, de cor branca, com 21 anos de idade, português, solteiro, morador à rua do 44

Rezende n. 109./ Apresenta uma ferida incisa na região tenar, dois centímetros de extensão, dirigida de cima para baixo, de dentro para fora, na mão esquerda; apresenta, entre outras, as seguintes tatuagens: um crucifixo na face anterior do braço esquerdo; um signo de Salomão, na face externa do mesmo braço; as iniciais I. M. C. (Isaura Maria da Conceição) isto no dorso da mão do mesmo lado; no dorso da mão direita um signo de Salomão; na face anterior do antebraço, do mesmo lado um coração, com ápice para baixo, atravessado por uma seta, e um punhal em cruz; na área representada pelo coração, as iniciais M. S. S. (Manuel de Souza e Silva); por baixo dessas iniciais, e na mesma área, as iniciais S. E. S. (Sara Escaldina dos Santos); por sobre o coração, na mesma face do braço, uma estrela; sobre a estrela, uma fita com as iniciais M. S. F. (Maria da Silva Fidalga); por sobre a fita as iniciais M. J. R. C. (Maria Joaquina Rosa da Conceição); no peito, na região precordial, um coração atravessado por dois punhais em cruz. Uma figura de mulher e outra de homem, em colóquio amoroso, na face anterior do braço direito.” Cf. “Assassinato”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jul.1895, p.1. A hipótese de que a versão oficial do relatório médico era dada à imprensa fica mais plausível quando vemos que o Diário de Notícias publicava exatamente o mesmo conteúdo. Cf. “Assassinato”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23 jul.1895, p.1. O Diário acrescentava que “Estas tatuagens cabalísticas são admiravelmente descritas pelo célebre criminalista Lombroso em um dos seus apreciados livros sobre espécies de criminosos”. Dizia ainda que Souza e Silva, enquanto respondia as perguntas dos médicos, “fazia esforços para se conservar calmo, notando-se, entretanto, um leve tremor no seu corpo.”

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delinquentes” . Afirmava que as tatuagens eram “traços eternos das ideias e das paixões 45

predominantes no homem do povo.” As de amor: “São o nome ou as iniciais da mulher

amada, escritos em letras maiúsculas; ou a época do primeiro amor; ou um ou mais

corações trespassados por uma flecha; ou duas mãos que se apertam.” De acordo com o 46

historiador Pierre Darmon, as proposições de Lombroso, descobrindo no homem criminoso

um ser meio-animal, marcado por estigmas atávicos e propensões sanguinárias, teriam

causado um frenesi na Europa a partir de 1876, ano do lançamento da primeira edição de

L’Uomo Delinquente. Entretanto, em 1895, suas ideias estavam em decadência naquele

continente, abaladas pelo surgimento de teorias de caráter antropológico ou sociológico. Ao

mesmo tempo, os países latino-americanos se tornam “verdadeiros eldorados” da escola

positivista, como era conhecido o grupo de criminologistas italianos defensores dos

princípios lombrosianos . 47

O fato de Manuel de Souza e Silva ser considerado um “criminoso nato” ficaria

ainda mais evidente quando são publicadas as novidades sobre o caso. Mesmo com a

ressalva de que o inquérito corria em segredo de justiça porque ainda não havia sido preso o

principal criminoso, o Sr. Dr. Souza Lima, lente da Academia de Medicina do Rio de

Janeiro, requisitou ao Dr. Carijó a presença do detido. O pedido foi de pronto atendido e

Manuel foi apresentado em uma aula de medicina legal como “um dos indivíduos que

deviam estar sempre sob as vistas da polícia”, já que suas tatuagens eram “uma cópia fiel”

das descritas no livro de Lombroso. Acrescentava que os legistas, ao chamarem a atenção

para os desenhos, “haviam prestado um bom serviço à ciência e à causa pública” . 48

A condenação era, portanto, antecipada e pública: Manuel de Souza e Silva era

criminoso e isto não estava em discussão – era o próprio Lombroso quem afirmava. É

provável que para muitos leitores que seguiam a argumentação policial e jornalística, que

LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone 45

Editora, 2007. (Coleção Fundamental de Direito), p.30. Idem. 46

DARMON, op. cit., p. 110.47

“Assassinato”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 24 jul.1895, p.1. (grifos meus).48

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quase se confundiam, o caso a esta altura já estivesse praticamente desvendado, haja vista a

suposta culpa que o suspeito trazia marcada no próprio corpo. Além disso, os doutores

deixavam claro que se o tatuado não tivesse implicação no assassinato de João Ferreira da

Silva, por certo teria em algum outro crime.

O Diário de Notícias também explora o acontecimento, usando de doses de certo

sensacionalismo. Por tal, acaba por fornecer mais detalhes sobre o caso, inclusive sobre a

famigerada aula do Dr. Souza Lima, que, de acordo com o jornal, ocupava “proeminente

lugar entre as nossas notabilidades médicas”, e sobre Manuel de Souza e Silva, ainda

tratado como testemunha do caso e “cujas esquisitas tatuagens” haviam sido descritas aos

leitores no dia anterior. O lente da Academia de Medicina solicitara sua presença a fim de

mostrar aos alunos, em suas palavras, um “exemplo vivo” das teorias do criminalista

italiano . O relato assemelha-se muito ao da Gazeta, mas acrescenta detalhes que o próprio 49

periódico chama de “notas curiosas”. Por exemplo, o professor de medicina legal dizia que

graças às pesquisas dos médicos da polícia, podia ele apresentar aos futuros clínicos um

caso de que a “ciência médica neste país se ocupava pela primeira vez”. Aproveitava ainda

a ocasião para emendar uma queixa, dizendo que no Brasil ainda não fora possível fazer um

estudo como o de Lombroso sobre as tatuagens, devido talvez à falta de elementos com que

lutavam os profissionais interessados na questão; faltavam tatuados, portanto.

Embora o ilustre doutor afirmasse que Souza e Silva “nenhuma culpabilidade

tenha no misterioso crime da travessa da Relação, como ele confessa, a polícia, disse o

ilustrado profissional, deve considerá-lo sempre para o futuro como suspeito”. Não

interessavam as declarações do homem que era exposto a uma sala repleta de estudantes e

jornalistas; não bastavam as próprias investigações não terem comprovado nenhuma culpa

até o momento e não interessava, sobretudo, se ele era, como alegava, inocente. Manuel de

“Assassinato”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 jul.1895, p.1.49

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Souza e Silva carregava os estigmas do criminoso nato e deveria ser sempre considerado

suspeito . 50

Após ter reclamado da falta de tatuados para estudo como quem reclama da falta

de camundongos em um laboratório, a continuação da preleção de Souza Lima torna-se

cada vez mais caricata. O orador perguntava à atenta plateia como se explicava que um

“indivíduo sem conhecimentos científicos mandasse fazer em seu corpo, pagando ainda a

quem lhe fez essa operação, todas as tatuagens atribuídas aos indivíduos dotados do instinto

do crime?”. O fenômeno merecia “sérios estudos”, da mesma forma que a morte da vítima,

“pois é difícil de explicar como é que um homem, tendo como diz o auto de autópsia, o

coração atravessado desde o ápice à base, pode caminhar com vida desde a travessa da

Relação até o edifício da polícia.” Para o médico, chamado de Sua Excelência pelo 51

periódico, a ciência em que se agarra tinha por desvendar alguns mistérios. Ao passo que

afirma a imperiosidade do saber científico, o lente acaba por falsear seu próprio discurso

revelando o espanto que os dados lhe causavam. Os comentários reforçam a aura de enigma

que o caso carregava e as dúvidas que pairam na fala de Souza Lima beiram a fantasia: um

criminoso tão nato que reproduzira todas as tatuagens elencadas por Lombroso, quase num

plágio que trazia impresso no próprio corpo, e um morto-vivo que, durante a madrugada,

caminhara pela Rua da Relação com uma faca cravada no peito, estrebuchando, de maneira

Findas as considerações do doutor, continuava o suplício de Manuel. Após ser humilhado em público, 50

exposto perante uma plateia ávida por identificar os indícios que “provavam” ser ele um criminoso nato e ser praticamente acusado de plágio dos desenhos de Lombroso, o cocheiro era desnudado e confrontado com as imagens de L’Uomo Delinquente. Como se isto não bastasse, foi ainda inquirido sobre as origens das tatuagens, ao que respondeu: “[...] que a primeira tatuagem, o crucifixo do braço, fora-lhe feita a seu pedido por um americano na casa de correção, quando ali esteve para ser deportado para Fernando de Noronha pelo ex-chefe de polícia Dr. Sampaio Ferraz./ Quanto às outras tatuagens, disse que também as mandou fazer por outro americano, a quem também pagou, no princípio da revolta de 6 de setembro, quando era praça de um batalhão da guarda nacional./ Algumas tatuagens são feitas a duas cores.” “Assassinato”, Diário de Notícias, 24 jul.1895, op. cit.

Idem.51

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simbólica, em frente à Repartição Central de Polícia e deixando um dramático rastro de

sangue pela via . 52

Não deve ter sido muito difícil ao nosso semanista notar o absurdo contido nos

argumentos do lente de medicina. Recordemos que, como mencionado no capítulo anterior,

ele já caçoara dos conselhos higiênicos e da pretensão de Souza Lima . Muito embora os 53

jornais tratem o doutor com deferência, não era preciso muito esforço para derrocar seus

frágeis arrazoados. Ao adotar a explicação amorosa para desvendar o mistério daquele

corpo tatuado, o narrador acabava por elaborar uma teoria que poderia ser considerada até

mais plausível que a científica, ou seja, no corpo daquele homem estavam marcados traços

de amor e isso bastava para provar o contrário do que o queriam os médicos.

Contudo, em sua última nota sobre o caso que causara sensação, a Gazeta de

Notícias afirma que o Dr. Carijó tinha chegado à conclusão de que Manuel Souza e Silva,

vulgo Nenê, era o assassino de João Ferreira da Silva. Acrescentava que Nenê já havia

cumprido pena “por crime de morte” e reforçava que o suposto criminoso era o indivíduo

com o corpo repleto de tatuagens. Segundo testemunhas, o móvel do crime teriam sido os

Souza Lima terminava suas observações enfatizando o quanto “lucraria a ciência” se anexa à Repartição 52

Médica da Polícia estivesse uma das cadeiras de medicina legal. Defendia, portanto, que polícia e ciência deveriam caminhar juntas não apenas para desvendar crimes, mas também para preveni-los, já que era possível identificar numa piscada de olhos os suspeitos potenciais. O desvelo com que é tratado pelo Dr. Carijó demonstra que, na contraparte, a polícia concordava com as proposições do lente de medicina. Pouco tempo antes tinha sido anunciada a volta da Associação de Anthropologia e Assistencia Criminal. Composta por médicos e advogados, prometia importantes serviços aos estudos das ciências penais, além de patrocínio aos presos pobres, à estatística criminal e à divulgação do movimento prisional, segundo métodos científicos. Teria desempenhado papel importante à adoção do serviço de identificação de criminosos pelo sistema antropométrico, além de desenvolver estudos dos criminosos da Casa de Detenção e Correção da Capital. “Associação de Anthropologia e Assistencia Criminal”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 31 mar.1895, p.1.

Ver o item: “Gazeta: de Notícias e de Ciências”.53

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ciúmes por causa de uma mulher . A insinuação de dias antes tornava-se portanto 54

incriminação inquestionável. Para a polícia e os médicos, o ocorrido reforçava a tese de que

Nenê era um “criminoso nato”, muito embora a informação tivesse vindo à baila muito

depois que polícia, médicos e imprensa já o tivessem condenado. Os leitores que

acompanhavam as notícias não devem ter se surpreendido muito.

Considerações científicas à parte, o narrador de “A Semana” elaborava a sua

própria sua explicação daquele crime:

“Se pode, e se foi ele que matou o outro, não será o “anjo do assassinato”, como Lamartine chamou a Carlota Corday, mas será, como eu lhe chamo, o Eros do assassinato. Na verdade, há alguma coisa que atenua este crime. Quem tanto ama, que é capaz de escrever em si mesmo alguns dos nomes das mulheres amadas... Sim, apenas quatro, mas é evidente que este homem deve ter amado dezenas delas, sem contar as ingratas. Convém notar que traz no corpo, entre as tatuagens públicas, um signo de

“Assassinato”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 jul.1895, p.1.Cf. também: “Assassinato”, Diário de 54

Notícias, Rio de Janeiro, 25 jul.1895, p.1. Nenê figurava nas notícias policiais da Gazeta de Notícias desde o ano de 1890, pelo menos. A análise dessas ocorrências é interessante uma vez que, por meio das colunas, seguimos suas estratégias quando se via às voltas com a polícia. Além disso, Machado era colaborador e leitor do jornal à época, logo, topara com Souza e Silva algumas vezes. A primeira aparição por mim identificada se dera em 21 de setembro daquele ano, quando ele fora levado à polícia por “desrespeitar uma família”. O jornal dizia: “Nenê (não vão agora supor que se trata de alguma criança) é cocheiro da companhia Carris Urbanos, e nas horas vagas dá muito honradamente a sua rasteira, e faz sair qualquer freguês no passo do urubu malandro./ Nenê é o nome de guerra do cujo, porque o seu verdadeiro nome é Manuel de Souza e Silva, sendo que Manuel de Souza é exatamente o que ele não é./ Anteontem desrespeitou o tal Nenê uma família, na rua do Riachuelo, próximo à estação da citada companhia, e, como já é conhecido freguês do xadrez, foi enviado para a polícia, afim de ter o conveniente destino./ Que a polícia trate de desmamar esse Nenê, é o que desejamos para o bem de todos.” Cf. “Nenê”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 set. 1890, p.1. Para além do humor intencional dessa nota, é interessante ressaltar, a título de comparação, a maneira como o acontecimento é registrado pela Gazeta, expondo e julgando de antemão o cocheiro, o que denota o modo característico com que o periódico lida com as notícias policiais envolvendo cidadãos pobres e anônimos, um dos temas da crônica. Em 1891, o cocheiro foi acusado da morte de Carlos Antônio Palma, também cocheiro (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 jan. 1891, p.2). O cadáver da suposta vítima de Nenê é, curiosamente, autopsiado pelo Dr. Moraes Brito, o mesmo médico que faz o relatório de suas tatuagens quatro anos depois. O suposto assassino foi preso no dia seguinte (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 jan. 1891, p.1.) Submetido a julgamento, foi condenado a 2 anos de prisão celular, grau mínimo do art. 295, § 2º combinado com art. 38 § 2º do código penal. Cf. “Jury – 4ª Sessão Ordinária”, in: “Parte Jurídica”, Gazeta de Notícias, 31 mai.1892, p.2. O artigo 295: “Para que se repute mortal, no sentido legal, uma lesão corporal, é indispensável que seja causa eficiente da morte por sua natureza e sede, ou por ter sido praticada sobre pessoa cuja constituição ou estado mórbido anterior concorram para torna-la irremediavelmente mortal.” O § 2º “Se resultar, não porque o mal fosse mortal, e sim por ter o ofendido deixado de observar regime médico-higiênico reclamado por seu estado.” O artigo 38, § 2º, tratava das circunstâncias atenuantes de um crime: “c) quando o crime não for revestido de circunstância indicativa de maior perversidade; d) quando o criminoso não estiver em condições de compreender toda a gravidade e perigo da situação a que se expõe, nem a extensão e consequências de sua responsabilidade”. BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Codigo Penal dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro. Ressalta-se que era prática comum na Gazeta de Notícias a citação apenas dos números de artigos da lei e não o seu conteúdo.

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Salomão. Ora Salomão, como se sabe, tinha trezentas esposas e setecentas concubinas; daí a devoção que Manuel de Sousa lhe dedica. E isso mesmo explicará a vocação do homicídio. Salomão, logo que subiu ao trono, mandou matar algumas pessoas para ensaiar a vontade. Assim as duas vocações andarão juntas, e se Manuel de Sousa descende do filho de Davi, coisa possível, tudo estará mais que explicado.” 55

O Eros do assassinato, com os nomes e a lembrança das amantes marcadas na

própria pele. Tudo se esclarecia e era atenuado pelo amor, distante, portanto, das

explicações da criminologia, dos termos de autópsias, da ciência, enfim. Note-se que é

provável que, ao tratar de Salomão, tanto Machado quanto boa parte dos leitores teriam em

mente o episódio mais conhecido do personagem do Antigo Testamento: a ordem para que

se dividisse ao meio a criança disputada por duas mulheres, cada qual alegando ser a mãe

do pequeno. Destarte, o símbolo que Nenê carregava no corpo é atrelado à ideia de justiça,

precisamente o que, como dá a entender o narrador, faltava ao caso. Tais detalhes estariam

ocultos aos homens de ciência, ocupados em condenar o suposto criminoso. O semanista

afirma que havia muito mais sentimento naquele homem do que os olhos dos médicos viam

e muito mais do que carregava na pele: “é evidente que este homem deve ter amado

dezenas delas, sem contar as ingratas”.

Curiosamente, o tribunal contrariaria as expectativas dos defensores da hipótese de

sua culpa. Pelo suposto assassinato de João Ferreira da Silva, Nenê foi a julgamento em

1896. Na curta nota, publicada pela Gazeta de Notícias, não há nenhuma menção às

tatuagens ou a Lombroso, nem sombra do alarde que o caso causara pouco mais de um ano

antes. O acusado foi defendido por Evaristo de Moraes e absolvido por unanimidade de

votos . 56

ASSIS, “A Semana – 28 jul. 1895”, op. cit. Anos mais tarde, João do Rio, ao tratar dos tatuadores do Rio do 55

Janeiro, diz que: “[...] o signo de Salomão, o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar”. Acrescenta que: “Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada”. RIO, João do (Paulo Barreto). “Os Tatuadores”, in: . A Alma Encantadora das Ruas. op. cit. p.66.

“Jury – 11ª Sessão Ordinária”, in: “Parte Jurídica”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 nov. 1896, p.2.56

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O interesse despertado pelo caso de Nenê residia em suas peculiaridades, mas,

sobretudo, na representatividade do ocorrido no contexto em que o semanista escrevia. O

que passava por seu escrutínio não eram apenas os acontecimentos relacionados à morte de

Ferreira da Silva, porém antes o procedimento da polícia e a própria abordagem da

imprensa à época. Como mencionado no início deste texto, a crônica estava na contramão

do defendido pelos jornais e também pelas autoridades. Para além da ironia presente no

escrito e da fantasiosa possibilidade de enviar seus apontamentos para Lombroso, há a

crítica aos métodos adotados em relação aos indivíduos vistos de antemão como perigosos.

A condenação antecipada, pautada em desenhos que, em última análise, de fato se

baseavam nas ligações amorosas do suposto criminoso era ridícula. Em sua perspicácia,

Machado deve ter achado aquilo tudo uma tremenda patacoada, digna de figurar em sua

crônica semanal, pelo contrassenso presente nas atitudes de homens que se diziam muito

gabaritados e prontos a guiar a acreditavam ser a “massa ignara” de que Nenê fazia parte.

O deslocamento de indivíduos como Nenê, às margens das peripécias dos doutores

de medicina e da polícia, é frisado na crônica de 1895, mas também refletido no desajuste

do narrador ao longo de toda a série. O caso de Manuel nos ajuda a entender a visão do

autor Machado sobre o tratamento dado às classes populares durante a Primeira República,

uma vez que expõe o extremo a que eram levadas as teorias científicas, nunca vistas com

bons olhos por seu narrador-criatura, e a inabilidade dos médicos, policiais e jornalistas em

dar conta de uma realidade diversa e ramificada, que não era compreendida e, sobretudo,

não se encaixava nos padrões por eles estabelecidos, tornando-se problema a ser combatido.

As características atribuídas a seu personagem ficcional contribuíam para a demonstração

da falibilidade das teorias científicas perante a realidade das classes populares. Por meio de

seus escritos literários, distantes ou mesmo opostos de modo radical à ciência que invadia

relatórios policiais e colunas de jornais, Machado denunciava a arbitrariedade com que era

tratada a população, arbitrariedade esta que não se detinha nem mesmo nos limites do

absurdo.

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3. Ambrozina Cananéa do Brazil & Mathilde da Silva Terra.

Em 09 de fevereiro de 1896, mais uma notícia de sensação virava assunto de “A

Semana”. Após divagar sobre os serviços de detetives particulares, oferecidos por meio de

anúncios dos jornais cariocas, o narrador comentava:

“Pois que a fortuna trouxe às nossas plagas um perfeito conhecedor do ofício, erro é não aproveitá-lo. Não se perdem somente objetos; perdem-se também vidas, nem sempre se sabe quem é que as leva. Ora, conquanto não se achem as vidas perdidas, importa conhecer as causas da perda, quando escapam à ação da lei ou da autoridade. Não foi assassínio, mas suicídio dessa Ambrozina Cananéa, que deixou a vida esta semana. Era uma pobre mulher trabalhadeira, com dois filhos adolescentes e mãe valetudinária; morava nos fundos de uma estalagem da rua da Providência. O filho era empregado, a filha aprendia a fazer flores... Não sei se te lembras do acontecimento: tais são os casos de sangue destes dias que é natural vir o fastio e ir-se a memória. Pois fica lembrado.” 57

A Gazeta de Notícias mencionara o caso muito rapidamente, afirmando que, por

“desgostos particulares”, suicidara-se no dia anterior: “ingerindo uma dose de sal de azedas,

a nacional Ambrozina Cananéa do Brazil, viúva, de 37 anos de idade e moradora à rua da

Providência n. 53.” Nenhuma menção sobre os tais desgostos e nem sobre as 58

investigações policiais que decorreram do caso.

Em contrapartida, O Paiz deu grande destaque ao ocorrido em reportagens que se

estenderam por vários dias, sempre sob o título “Drama Intrincado – de mulher a mulher”.

As circunstâncias singulares que teriam motivado Ambrozina a acabar com a própria vida

passaram a ser estampadas na primeira página da folha. Suponho que, com base nos

detalhes mencionados na crônica, foi na cobertura deste periódico que o cronista tenha se

pautado. Por certo, como fizera em outros casos, ele atentou para o estilo do articulista que

procurava carregar as tintas dramáticas do ocorrido. A reportagem descrevia a estalagem

que a mulher residia tendo em vista destacar a pobreza do local: “pequena, estreita, com

cinco ou seis quartos só, funebremente pintados no exterior a ocre e piche.” Ambrozina fora

encontrada em seu “cubículo”, estendida sobre “verdadeira tarimba, apenas forrada por

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 09 de fevereiro de 1896”, Gazeta de Notícias, Rio de 57

Janeiro, 09 fev. 1896, p.1. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07 fev. 1896, p.1.58

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uma esteira.” Era um “tipo acaboclado, longos cabelos, grossos e negros, rosto anguloso e

sobre o oval, cor macilenta, dentes altos e falhados”. Vestia-se humildemente e estava

descalça. Acrescentava que não havia o que ver em torno do cadáver, não existindo nenhum

móvel “digno de habitação humana. Extrema pobreza, portanto.” O redator tratava ainda da

família da morta: a viúva tinha dois filhos menores, “um rapaz de 15 anos, empregado no

arsenal da marinha, e uma menina de 12, aprendiz de florista”; sua velha mãe morava em

quarto contíguo e encontrara o corpo da filha. Ambrozina lavava roupas para fora para

sustentar os três. O jornal acrescentava ainda os efeitos do envenenamento dado pela

ingestão de sal de azedas e ácido fênico: “Um tóxico horroroso. Morta em 5 minutos;

determinando primeiramente dores de estômago e vômitos, depois tornando lenta a

circulação, o pulso imperceptível, e produzindo frio glacial e suores viscosos, até expirar

sem um gemido.” . 59

O estilo adotado pelo autor da reportagem em muito lembra o tom das notícias sobre o

já mencionado assassinato de Maria de Macedo. Há a tentativa de compor uma narrativa

que desperte a curiosidade e a atenção dos leitores. Pode-se dizer, inclusive, que há a

intenção de construir um clima de suspense em torno do caso que, à primeira vista, poderia

parecer banal. É justamente para essa característica que o narrador de “A Semana” aponta

na crônica em que menciona o fato, uma vez que cita os termos usados na notícia,

relembrando o leitor do suicídio de Ambrozina e até mesmo afirma que talvez ele tenha

sido esquecido, uma vez que os casos de sangue eram muitos, traziam fastio e, em breve,

esquecimento.

Como no caso de Nenê, o semanista atentava para o que escapava das narrativas

jornalísticas e policiais. Desta feita, declarava, inclusive, que importava “conhecer as

causas da perda, quando escapam à ação da lei ou da autoridade”. O narrador hierarquizava

as notícias e construía a sua própria lógica, como lhe era bastante característico.

“Drama Intrincado – De mulher a mulher”, O Paiz, Rio de Janeiro, 07 fev. 1896, p.1.59

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As peculiaridades que avivam a exploração do ocorrido pela imprensa aparecem na

continuação do artigo d’O Paiz. De acordo com o periódico, durante o “exame cadavérico”,

o legista teria encontrado no seio de Ambrozina “uma carta aberta, e um pequeno embrulho

de cartas antigas”. A carta explicava as razões do suicídio daquela mulher “a quem

nenhuma vizinha atribui vícios nem defeitos. ‘Era uma boa alma’, dizem todos, ‘e uma

criatura muito sincera’”. Segundo a reportagem, o tal escrito levantava o “véu de um drama

extraordinário”.

O extraordinário do caso vinha na revelação de quem era a destinatária das últimas

palavras da suicida: Mathilde, descrita pela reportagem como uma moça de dezesseis anos,

“formosa”, criada “quase com Ambrozina”, sendo sua vizinha fronteira. Seria herdeira de

alguns bens e a intenção de sua mãe seria fazê-la casar com o próprio amante para que

pudesse dispor de tudo à vontade, “ficando com tudo em casa”. A menina repeliria os

galanteios do indivíduo e, tendo Ambrozina por sua “amiga íntima, fazia dela a sua

confidente e lhe contava todos os seus desgostos”. Essa circunstância e o fato de

“Ambrozina tomar grande parte nas dores de Mathilde produziram exacerbação de ânimos

na casa desta; e inaugurou-se então o regime da pancada”. Tal regime consistiria em

castigos físicos todas as vezes que a menor falava com a vizinha, se lhe escrevia, se lhe

mandava uma fruta, se recebia dela o quer que fosse, se abria a janela que dava para o lado

de sua casa e até mesmo quando pronunciava o nome. Apesar de “apertado o círculo de

ferro em que estava metida e que também angustiava o coração de Ambrozina”, Mathilde

persistia na recusa ao “grosseiro noivo”. Os gritos da menina teriam motivado a declaração

da vizinha de que se mataria só para não vê-la sofrer. Quanto à missiva, afirmava-se que era

escrita a lápis, com mão firme e sem indicar o menor tremor; inclusive a última palavra

estava escrita com firmeza. O jornal dizia reproduzir o texto da carta “escrupulosamente”: “Mathilde – Vou dar-te a última prova de amizade a ti por este meio de

existência. É impossível tolerar a vida por tua causa deixando eu de existir você deixa de

sofrer. Tantos esbordoamentos, tanta prisão como tens sofrido desfeiteada por este vil

do teu padrasto que se prevalece do meu nome e de sermos amigas para saquear uma vingança sobre ti por não quereres casar com ele, e sua mãe, depois de ter te criado com

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tanto desvelo, depois de estares moça ela procurar este homem para seu amante dela depois ele se manifestar apaixonado de ti ela sua mãe querer satisfazer todos os intentos deste homem até o ponto bárbaro de todos os dias das pancadas como quase todos os vizinhos sabem e escutam teus gritos teu chorar teu desespero e desculpas que é por minha causa tudo isto, por causa da nossa amizade, pois por esta razão eu deixo de viver porque assim tudo de descobre com o tempo. Eu morro, mas pensando em ti Mathilde, o meu corpo cai por terra mas meu espírito junto de ti estará e breve nós estaremos juntos no espaço infinito.

Adeus, Mathilde; recebe o meu último suspiro como prova de amizade.” 60

O periódico também tratava das outras cartas que Ambrozina tinha sobre o seio.

Todas eram de Mathilde, exceto por duas que eram da mãe da menina, pedindo para que ela

não se intrometesse no que passava em casa alheia. Sobre a correspondência entre as duas

amigas, a folha dizia que eram “verdadeiras cartas de amor, cheias de expressões

afetuosas, repassadas de um lirismo doentio”. A menor fazia versos a Ambrozina, “só

deseja estar a seu lado, chama-lhe seu tesouro, mostra-lhe acrisolada adoração, e anseia

pela sua liberdade para novamente lhe pertencer”, enviava beijos e lhe remetia a alma. 61

Era evidente que as palavras escolhidas para descrever a correspondências das

vizinhas levaria o leitor a opinar que o relacionamento era mais que uma simples amizade.

Eram cartas de amor! Depreendia-se também que a intervenção da mãe de Mathilde se dera

pela natureza dos escritos. Muito embora o redator não tenha declarado abertamente, o

texto trazia a ideia de que existia entre a menor e a suicida um relacionamento

homossexual, o que seria enfatizado nas reportagens subsequentes que exploravam a

ocorrência.

O Paiz fechava o artigo dizendo que a originalidade do caso prendera a atenção –

era “forte demais esta paixão”, tanto que fazia com que uma “mãe valetudinária”

esquecesse de tudo para dar-se “à morte por amor de uma jovem estranha à sua família”.

Sobre Ambrozina – descrita como “um tipo sem expressão, sem um traço ameno,

vulgaríssimo, ordinário”, pobre e que vivia miseravelmente – acrescentava que ela era

inflamada por um “fogo singular” que a crestara até o desvairamento e fizera como que

Idem.60

Ibidem. (grifos meus). 61

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suas últimas palavras fossem “expressões do mais entranhado afeto e da mais extremada

dedicação”. Pedia à polícia que não deixasse apodrecer com seu corpo “os papéis que

sentiram o calor de seu seio e o gelo de seu cadáver” . Reparemos também que a 62

influência médico-científica aparecia nos termos que descreviam o comportamento das

duas mulheres: Mathilde tinha um lirismo doentio, Ambrozina deixara que o fogo singular

a levasse à loucura. O narrador de “A Semana” estava bastante atento a essas insinuações

contidas na narrativa jornalística do caso:

“A causa do suicídio não foi a pobreza, ainda que a pessoa era pobre. Nem desprezo de homem, nem ciúmes. A carta deixada dizia em começo: “Vou dar-te a última prova de amizade... É impossível mais tolerar a vida por tua causa; deixando eu de existir, você deixa de sofrer.” Você é uma mocinha de dezesseis anos, vizinha, dizem que bonita, amiga da morta. Segundo a carta, a mocinha era castigada por motivo daquela afeição, tudo de mistura com um casamento que lhe queriam impor; mas o casamento não vem ao caso, nem quero saber dele. Pode ser até que nem exista; mas se existe, fique onde está. Não faltam casamentos neste mundo, bons nem maus, e até execráveis, e até excelentes. O que é único, é esta amiga que se mata para que a outra não padeça. A outra era diariamente espancada, quase todos os vizinhos o sabiam pelos gritos e pelo pranto da vítima, — ‘tudo por causa da nova amizade.’ Não podendo atalhar o mal da amiga, Ambrozina buscou um veneno, meteu no seio as cartas da amiga e acabou com a vida em cinco minutos: ‘Adeus, Mathilde; recebe o meu último suspiro.’”

O semanista também indicava a singularidade daquele suicídio e, mais do que isso,

ele apontava para a forma como se dera a exploração do ocorrido pela imprensa. Vemos que

ele chega a citar passagens das reportagens e da carta de Ambrozina e até os detalhes dados

pelo legista – morte em cinco minutos – eram lembrados na crônica. Podemos imaginar que

não havia necessidade do cronista se mostrar bem informado, levando-me à hipótese de que

a menção se dá como uma crítica ao estilo adotado pelo colunista do periódico, que, a rigor,

não era incomum em casos de comoção ou sensação, como demonstram os casos de Maria

de Macedo e de Nenê. Ele por certo reparara que a preocupação em não abordar

diretamente a homossexualidade nada tinha com a preservação da intimidade das

envolvidas e de suas famílias. É possível dizer que o cuidado na escolha dos termos

refletisse antes a questão da moralidade da imprensa. Em um concurso promovido pela

Gazeta de Notícias contos considerados boa literatura foram descartados por não poderem

Ibidem. 62

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ser lidos por todos os leitores do “jornal, cuja leitura as mães permitem às filhas” . Além 63

do mais, as relações entre pessoas do mesmo sexo eram tabu na época, ainda mais se

tratando de duas mulheres.

A estratégia talvez soasse como hipocrisia ao narrador, uma vez que os supostos

amores de Ambrozina e Mathilde estavam para lá de insinuados. Nos dias subsequentes à

morte, O Paiz estamparia, com todas as suas incorreções, “missivas encontradas no seio da

mulher, cuja alma tinha tão doentiamente exacerbados os sentimentos afetivos”, que seriam

a expressão daquela “singular paixão” . Daria espaço também aos depoimentos de 64

Mathilde e de sua família, acompanhados de um julgamento antecipado. Para os redatores,

a mãe e o padrasto da menor tinham montado uma “comédia” para se livrarem de qualquer

envolvimento com o caso e, especialmente, desmentir que infligiam castigos à menina . 65

O depoimento da menor ganha maior destaque na narrativa traçada pelo periódico.

D. Mathilde da Silva Terra, natural de Faro, Portugal, seria uma “vistosa morena”, de ar

gracioso. Afirmava ter lido tudo o que O Paiz publicara e dizia que era tudo falso. De

maneira curiosíssima, o representante da folha intervém, alegando não poder se conter. O

delegado concede-lhe a palavra e ele alega que o jornal recolhera as informações in loco e

que seria “inútil, portanto, essa obstinação em negar tudo; mesmo porque a carta de

Ambrozina não foi obra de vizinhos perversos, está escrita pela que foi sua amiga

“Concurso Litterario”. Gazeta de Notícias, 09 mar. 1894, Rio de Janeiro, p.1. 63

“Drama Intrincado – De mulher a mulher”, O Paiz, Rio de Janeiro, 08 fev. 1896, p.1. Uma das cartas, em 64

tese publicada na íntegra, era de Mathilde: “‘Querida Bujú – Eu sinto muito estares te acabando por minha causa eu queixo-me igualmente do mesmo mal, diz-me que não tenho feito sacrifício por tua causa digo-te que muitos, eu não estou mal com E. se ela ficou não tenho culpa pois ainda ontem falei com ela fiquei somente sentida por ela, me dizer o que disse, dizes que estás contrariedade, logo vai distrair que eu aqui fico, e consolando-me com a vontade de Deus, disse e repito, que a amizade que te tenho é tanto que não há nada que me console, senão tu, se a minha janela falasse dizia-te muita coisa, eu também sofro muito e conforto-me pois que não há outro remédio, quanto a falar com seu A. você sabe que quem mora junto não pode deixar de falar por minha vontade e por sua causa nunca falaria; em dizeres que é um engano eu não o ser tua pelo contrário sou tua de todo o meu coração para isto a minha primeira carta não foi um juramento de coração?/ Adeus, com muitas e muitas saudades aqui fico ao teu dispor nem que seja para abrir o peito e disparares uma bala morria com satisfação eras assassina pelo amor – Desta tua fraca e reles amiga – Mathilde.’/ ‘Tu és a fonte a deslizar-se límpida/ Eu sou o arbustro a mirrar se na água./ Tu és o espelho das manhãs pulcherrimas/ Eu sou a noite em que se espelha a mágoa.’” O jornal esclarece que Bujú era o apelido familiar de Ambrozina.

“Drama Intrincado – De mulher a mulher”, O Paiz, Rio de Janeiro, 09 fev. 1896, p.1.65

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dedicada.” De acordo com a folha, depois disso a depoente confirmara que sua mãe

“cismou com a nossa correspondência e Ambrozina era mesmo um pouco esquisita. […]

parece que não regulava bem…” Apesar de se dizer que Ambrozina “não batia bem”, 66

Mathilde teria afirmado ser muitíssimo amiga da falecida e que sim, tinha sido castigada

pela mãe por teimar em se corresponder e se encontrar com a vizinha. O redator atribuía a

confissão ao fato de a menina não “resistir ao impulso da verdade; a corrupção não lhe fez

ainda mossa no coração de donzela”. A donzela dizia, no entanto, que Ambrozina era uma

“má língua”. Na suposta transcrição do depoimento consta ainda que a depoente teria dito

que chorava aos gritos para chamar a atenção da vizinha.

A intromissão do repórter no depoimento é, no mínimo, curiosa. Dá a entender que

havia certa parceria entre imprensa e polícia. Nos dois casos anteriores, explorados pela

Gazeta, a divulgação de autópsias e relatórios policiais, bem como os elogios às

autoridades responsáveis pelas investigações, parecem reforçar essa ideia. Talvez, ainda, o

caso específico do depoimento de Mathilde revele que a presença da imprensa durante

interrogatórios fosse comum, já que, na via contrária do concorrente, O Paiz criticava a

atuação da polícia nas investigações do suicídio.

A suposta relação homossexual das duas mulheres, insinuada ao longo das

reportagens, era sempre chamada de amizade. Denotava–se com isso a escolha deliberada

da folha em julgar de antemão o que era moral o suficiente para ser dado a conhecer. Essa

atitude chamara a atenção do semanista, que chega a citar na crônica uma frase retirada dos

periódicos – “tudo por causa da nova amizade”. Tendo em vista os tiques e cacoetes de

nosso narrador, sabemos que ele só mencionaria dessa forma algo que deveras prendesse

seu interesse. Como veremos adiante, a estratégia fazia parte da crítica que fazia à cobertura

jornalística do caso.

A propósito, A Notícia também explorava as minúcias do suicídio. Afirmava que o

“caso extraordinário de Ambrozina do Brasil” despertava de tal modo a atenção que parecia

Idem.66

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um dever tomar todas as informações a respeito do drama. À semelhança d’O Paiz,

reforçava a estranheza da mulher que deixava “os seus ao desamparo” na esperança de por

fim aos sofrimentos de Mathilde. Todavia, se o concorrente procurava zelar pela memória

da morta, A Notícia buscava provar que a suicida era desequilibrada e dada a práticas pouco

dignas. A própria Mathilde teria declarado, após prantos, que sua amiga era uma mulher “de

gênio esquisito e arrebatado” e, quando voltava das sessões espíritas que costumava

frequentar, tinha com ela “expressões e modos inexplicáveis”. Em conversas íntimas, teria

dito, repetidas vezes, que se mataria se algum dia tivesse a certeza de qualquer alteração na

amizade das duas. Suspeitando que Mathilde gostava de um moço, exasperou-se de tal

forma que a menina não a pode conter, chegando ao extremo de “exigir satisfação” do tal

rapaz. “A ideia de outra vida, eterna, vida de gozos, cheia de prazeres, era o seu assunto

predileto quando voltava das suas sessões espíritas”. Dá-se a entender que participar de 67

sessões espíritas era visto como um demérito e podia acarretar loucura. Afirmava ainda ter

conseguido obter a cópia de uma poesia escrita pela falecida por ocasião do aniversário de

Mathilde, em 08 de setembro de 1895: “São onze horas passada/ Tudo está em solidão/ Todos dormem eu escuto/ O palpitar do coração/ A noite corre veloz/ Por entre as trevas de além/ A brisa espera sorrindo/ Pela aurora que lá vem./Vem chegando ao despontar/ Da bela aurora formosa/ Vem surgindo o seu clarão/ Por entre o galho da Rosa./ Vem saudar muito contente/ O seu querido botão/ Que é sua filha Matilde/ Amada do seu coração./ Mathilde eu te saúdo/ Com amor de coração/ Te envio em regozijo/ Um saudoso aperto de mão./ A.C. Brasil.” 68

O comentário do jornal acerca desses escritos revelava o sentido que era dado pela

imprensa à relação das duas mulheres: “Os versos não são formosos como os de Sapho,

“Uma Suicida”, A Notícia, Rio de Janeiro, 08 fev. 1896, p.1-2. O jornal publicava também um bilhete que 67

teria sido escrito por Ambrozina: “Tildinha – Incomodou-me bastante o teu bilhete já estava me animando mais,... porque tenho compreendido a tua amizade mais te peço que não façais o que dizes seremos então duas vítimas, deixe que eu sofra sozinha tenho resistência para tudo você é muito tenra és criança pode dar o teu amor a quem mais mereça do que eu... eu estou preparada em tudo para sofrer qualquer consequente por tua causa se fores embora em um dia no outro podes leres nas folhas o que deve ser feito de mim salvar-te sempre e tu conforte e que em breve estarais esquecida da desgraçada beijú que não por tua causa é e serei vítima por minhas mãos próprias vais por teu amor peço-te só que me perdoas algumas audácias minhas se seu sair e não voltar mais a minha casa você desfaça tudo aceita como única prova a minha vida meus filhos me perdoarão a minha fraqueza Adeus tua amiga. – Ambrozina.” Em se julgando verdadeiro o bilhete, pode-se dizer que Ambrozina sabia que o destino dos “casos de sangue” eram as folhas dos jornais.

Ibidem.68

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mas talvez obedecessem à inspiração idêntica” . Esta era, talvez, a expressão mais 69

declarada das insinuações que apareciam nos jornais desde a publicação da notícia do

suicídio de Ambrozina Cananéa, ou seja, de que ela e Mathilde mantinham uma relação

amorosa.

Machado deve ter acompanhado os dois jornais atacarem-se mutuamente. O Paiz

era acusado de transformar a suicida em uma mártir e de conduzir inquérito e investigações

por conta própria. Já o acusado assegurava que A Notícia soubera do caso por meio das 70

páginas d’ O Paiz, “único jornal que o levantou da vulgaridade com que costumam ser

noticiados os suicídios de pessoas desconhecidas”. Além disso, dizia que o colega tinha

ouvido apenas a parte acusada, fazendo com que suas declarações fossem uma obra de

defesa . O fato é que ambas as folhas expunham sem pudores o cotidiano e a intimidade 71

dos envolvidos. A legitimidade de tal intromissão chega, inclusive, a ser defendida: “Tínhamos, portanto, diante de nós um caso interessantíssimo: o de uma mulher que se suicidara por amor de outra, e mais revelação de um crime repugnante, qual o de uma senhora que pretende casar a filha com o próprio amante, e se enfurece contra a resistência da jovem, e contra os conselhos da sua amiga e confidente. Podíamos desprezar este caso rodeado de circunstâncias tão singulares? Será cuidar da vida íntima de alguém esmiuçar ocorrências de natureza prevista no código penal? Então não é mais crime o assassinato, que um acidente de vida íntima determinou. Então não é mais crime o roubo, ato que pertence à vida íntima do ladrão.” 72

Se nos casos de Maria de Macedo e de Nenê a imprensa fazia questão de enfatizar

que os envolvidos tinham uma vida desregrada, repleta de vícios e passível de condenação,

O Paiz trata de santificar a conduta de Ambrozina, mulher trabalhadeira e honesta, mãe e

filha valorosa. A Notícia, em contrapartida, a demonizava: era uma mulher histérica,

Ibidem, (grifos meus).69

“Uma Suicida”, A Notícia, Rio de Janeiro, 11 fev. 1896, p.1. 70

“Drama Intrincado – De mulher a mulher”, O Paiz, Rio de Janeiro, 12 fev. 1896, p.1. No dia seguinte era a 71

vez da Gazeta de Notícias entrar na briga, em defesa d’ A Notícia. Sem mencionar Ambrozina ou Mathilde, afirmava que: “É adorável esta presunção. Fiquem sabendo os brasileiros e os outros povos do mundo que a coisa mais absurda desta vida é um jornal julgar-se mais bem informado do que O Paiz.” E ainda: “Tem graça, e tanta graça como dizer-se que uma coisa é hostil quando é muito absurda.” “Os Jornaes de Hontem”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 fev. 1896, p.2.

“Drama Intrincado – De mulher a mulher”, O Paiz, Rio de Janeiro, 13 fev. 1896, p.2.72

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enxerida, futriqueira, que frequentava sessões espíritas e dormia com padres . O que ficava 73

das acusações era o uso do caso, permeado pela dramatização, que pretendia prender a

atenção dos leitores. Além disso, os dois diários viam com maus olhos a provável

homossexualidade das envolvidas.

É notório que nessa disputa entre os periódicos, a Gazeta de Notícias opta por ignorar

quase por completo o caso de sensação daquele momento. Sobre as motivações, somente

podemos conjecturar. A preocupação com a moralidade do caso, uma vez que expunha um

caso de amor entre duas mulheres, poderia ser uma das alegações. No entanto, aquele era o

mesmo periódico que expunha praticamente todos os detalhes das autópsias de crimes,

sendo o caso de Maria de Macedo o mais notório do período analisado. H á d e s e

destacar que, embora a Gazeta opte por ignorar o assunto que ocupava páginas e páginas

dos jornais cariocas e que deveria estar correndo de boca em boca no Rio de Janeiro,

Machado escolhe abordá-lo, dedicando a ele um considerável espaço de sua crônica

dominical. Como aventado no segundo capítulo desta dissertação, defendo a hipótese da

liberdade de que o escritor gozava na composição de seus textos. O caso de Ambrozina e

Mathilde parece sustentar essa ideia.

Reforçando as características do narrador que construía a sua própria hierarquia dos

fatos e desprezava as explicações de fundo científico, a visão apresentada em “A Semana”

era distinta das outras colunas dos periódicos que se ocuparam do caso. Ele dizia que: “Os tempos, desde a antiguidade, têm ouvido suspiros desses, mas não são últimos. Que a morte de uma trouxesse a da outra, voluntária e terrível, não seria comum, mas confirmaria a amizade. As afeições grandes podem não suportar a viuvez. O que é único é este caso da rua da Providência, — com a agravante de que a lembrança da mãe e dos filhos formam o post-scriptum da carta. Acaso seriam o post-scriptum na vida? Ao médico não custará dizer que é um caso patológico, ao romancista que é um problema psicológico. Quem eu quisera ouvir sobre isto era o ex-secreta de Londres e de New

Cf. “Uma Suicida”, A Notícia, Rio de Janeiro, 11 fev. 1896, p.1. A mulher teria uma vida “nômade e 73

irriquieta”, “dando-se com todos, brigando com muitos e não raro prestando obséquios à vizinhança. Parecia haver nessa mulher uma duplicidade de caráter, digno de exame severo”. A reportagem acrescentava que a morta tinha uma: “moral, bebida na convivência das tabernas e cortiços, era de estofo baixo, de modo de Ambrozina de preferência recrutava para amigas mulheres de costumes duvidosos.”

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York, onde a polícia pode ser que penetre além do delito e suas provas, e passeie na alma da gente, como tu por tua casa.” 74

O narrador apontava então não só para a exploração por parte dos periódicos, cada

qual tomando o partido que lhes aprouvesse, como também para as múltiplas interpretações

que o caso poderia suscitar. O que se depreende no final é que médicos, romancistas e

policiais achariam o caso interessante, mas eram inábeis para penetrar além do delito e

compreender a alma daquela gente. Por conseguinte, as narrativas adotadas por eles não

davam conta da complexidade das relações que buscavam dar a público. A patologia e a

psicologia não apanhavam a lógica própria daqueles sujeitos que contrariavam as normas

de conduta impostas por doutores e intelectuais. Isso se aplica não só ao caso de Ambrozina

e Mathilde, mas também aos de Maria de Macedo e de Nenê. O fato de os jornais buscarem

explicações de fundo científico, tentativa esta que se mostrava falha, não escapava ao

atento cronista. Este prefere apelar para o amor, os sentimentos, para desvendar os

mistérios que cercavam cada um dos ocorridos.

Embora não declare a discrepância entre a linguagem e a realidade, Machado de

Assis a registra em suas crônicas. Seu narrador nota que os produtores daquelas narrativas

que apareciam no jornal não tinham a abstração necessária para desvendar a lógica dos

indivíduos que entendiam como perigosos e de vida desregrada. Disso resultava a

ASSIS, Machado de. “A Semana – Crônica de 09 de fevereiro de 1896”, op. cit. O post-scriptum a que o 74

narrador se refere era: “Meu Deus o que será de meus filhos e de minha mãe”. O Paiz afirmava que a última letra da palavra “mãe” estava por concluir, aparentando que o lápis ali se detivera “por qualquer acidente”, deixando subentendido que a morte alcançara a mulher antes dela terminar o escrito. Cf. “Drama Intrincado – De mulher a mulher”, 07 fev. 1896, op. cit.

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inadequação dos discursos. O autor já observara que as definições de certo e errado

variavam de acordo com classe e gênero . 75

Em agosto de 1894, foi publicado um texto icônico sobre essas distinções. Nele, o

narrador de “A Semana” instigava os leitores dizendo: “Quereis ver o que são destinos?

Escutai.” Os destinos mencionados naquela crônica coincidiam no uso de punhais, mas

tinham protagonistas e ações muito diversas. No primeiro, um “punhal ficou sendo

clássico”. Era o punhal de Lucrécia, “honesta moça”, que arrancara a própria vida após ter

sido desonrada por Sexto Tarquínio. Teria servido de símbolo para a revolução que tirara o

governo da realeza para passá-lo à aristocracia romana, exaltando a virtude conjugal . 76

Continuava dizendo que Roma não era Cachoeira, município baiano em que se dera

o caso do segundo punhal, o de Martinha. Ressaltava também que as gazetas da cidade não

Na coletânea Histórias sem data, de 1884, aparecem dois contos que ilustram essa afirmação. Em Noite de 75

Almirante”, os leitores se deparam com Genoveva, “caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido”, a grande paixão de Deolindo Venta-Grande, “a fina flor dos marujos”. Antes do rapaz partir em nova viagem, eles fizeram um juramento de fidelidade: “Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular.” No retorno , após dez meses, o marinheiro descobre que a amada se apaixonara pelo mascate José Diogo e com ele vivia. Genoveva dá a sua versão dos fatos: “— Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo./ Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações.” Para a moça, nada havia de errado com sua conduta. O narrador do conto se impressiona pelo fato de a personagem não mostrar nenhum sentimento de culpa. Ao mesmo tempo, Genoveva tem um sentimento de virtude muito grande, tanto que, em sua visão, ela nunca enganara Deolindo. Questionada pela suposta quebra do juramento, respondera: “Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele…” Também nas Histórias sem data aparece o “Capítulo dos Chapéus” em que Mariana, esposa do advogado Conrado, está determinada a fazer com que o marido troque o velho chapéu por um mais vistoso e moderno. Sua amiga Sofia, que parecia o avesso da primeira, procura ensinar-lhe estratégias para dobrar a teimosia do cônjuge. Ao final da história, Mariana se dá conta de que preferia que tudo em seu lar se mantivesse como era antes, chapéu velho incluso. Cf. ASSIS, Machado de. “Noite de Almirante”, in:______________. Histórias sem data, in: Obra Completa em quatro volumes, Vol. 2, p.420ss. e ASSIS, Machado de. “Capítulo dos Chapéus”, in:______________. Histórias sem data, in: Obra Completa em quatro volumes, Vol. 2, p.377ss. Como aponta Daniela Silveira, as falas das personagens femininas dos dois contos “mostram como aquelas mulheres formavam suas opiniões levando em consideração algumas regras de conduta vigentes àquela época, mas, ao mesmo tempo, tentavam burlar tais convenções sociais” Todavia, mesmo quando tentavam subverter as convenções, Mariana e Sofia não fogem da lógica dominante. A protagonista de “Noite de Almirante”, por sua vez, intriga por seguir a sua própria razão que, ao menos para ela, era simples e compreensível. SILVEIRA, op. cit. p. 218. A autora faz uma análise muito mais profunda desses e de outros contos da coletânea.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 05 de agosto de 1894”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 76

05 ago. 1894, p.1.

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poderiam competir com os “historiadores de gênio”, como Tito Lívio, demonstrando seu

descontentamento com o que chamava “parcialidade dos tempos, que só recolhem,

conservam e transmitem as ações encomendadas nos bons livros, é que me entristece, para

não dizer que me indigna.” Não era possível que a grandiosidade do punhal de Lucrécia não

deixasse um canto para o da anônima baiana. Todavia, admitia que a “pobre arma” seria

consumida pela “ferrugem da obscuridade”. Estava claro que Martinha não era Lucrécia e

que a gorda pachorrenta, tão invocada na série, não tratava as duas em pé de igualdade.

A crônica tentava emendar a injustiça histórica dando destaque ao caso. Aliás, ela é

inteira dedicada ao ocorrido. Citando o periódico A Ordem, o narrador afirmava que:

“‘Martinha (diz ele [o jornal]) é uma rapariga franzina, moderna ainda, e muito conhecida

nesta cidade, de onde é natural’. Se é moça, se é natural da Cachoeira, onde é muito

conhecida, que quer dizer moderna? Naturalmente quer dizer que faz parte da última leva

de Citera. Esta condição, em vez de prejudicar o paralelo dos punhais, dá-lhe maior realce,

como ides ver.” Tal qual nos casos de Maria de Macedo, Nenê, Ambrozina e Mathilde, a 77

linguagem jornalística passava pelo crivo do semanista.

Martinha não dera hospedagem a ninguém de “sangue régio”. Ela passeava quando

foi agredida e insultada por João Limeira, o “Tarquínio da localidade”, que irritara-se com

os desdéns da moça que não cedia a seus galanteios. Limeira não desiste e faz nova

agressão na porta da casa da “rapariga” que adverte: “Não se aproxime, que eu lhe furo”.

Ele aproximou-se e ela lhe deu uma punhalada, matando-o. Ao contrário de Lucrécia, a

cachoeirense não espera que nenhum homem lhe vingue, indo ela mesma à desforra. O

narrador de “A Semana” afirma então:

“Isto posto, em que é que o punhal de Martinha é inferior ao de Lucrécia? Nem é inferior, mas até certo ponto é superior. Martinha não profere uma frase de Tito Lívio, não vai a João de Barros, alcunhado o Tito Lívio português, nem ao nosso João Francisco Lisboa, grande escritor de igual valia. Não quer sanefas literárias, não ensaia atitudes de tragédia, não faz daqueles gestos oratórias que a história antiga põe nos seus personagens. Não; ela diz

Idem. Não constam no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional os números de A Ordem do 77

ano de 1894. Na Gazeta de Notícias, embora haja referências a notícias outras publicadas no periódico baiano naquela semana, não há nenhuma menção a Martinha e o agressor assassinado. Portanto, não foi possível buscar os detalhes do caso a que Machado se refere nesta crônica.

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simplesmente e incorretamente: “Não se aproxime que eu lhe furo”. A palmatória dos gramáticos pode punir essa expressão; não importa, o eu lhe furo traz um valor natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucrécia. E depois, que tocante eufemismo! Furar por matar; não sei se Martinha inventou esta aplicação; mas, fosse ela ou outra a autora, é um achado do povo, que não manuseia tratados de retórica, e sabe às vezes mais que os retóricos de ofício.”

A arma de Martinha era superior à de Lucrécia porque a “moderna rapariga”

demonstrava fibra, defendendo a si própria e safando-se do agressor. Para tal, não recorria a

nenhum historiador, sanefa literária ou tratado de retórica. Valia-se de uma lógica simples

que era traduzida na sua fala: furava João Limeira e com isso salvava a honra e a vida. Ao

tomar a dianteira da situação, invertia o suposto papel que lhe cabia, ou seja, o de mulher

desprotegida e suscetível à violência e aos desmandos masculinos. Além disso, mais uma

vez, o narrador atentava para a linguagem utilizada tanto pelos envolvidos quanto pelos

jornais. Também desta dita, a fala popular era vista como superior aos “retóricos de ofício”,

tais como o Dr. Castro Lopes. O “achado do povo” mostrava sua sabedoria.

Assim como nos casos mencionados neste capítulo, Machado de Assis, por meio de

seu narrador ficcional, punha em evidência personagens reais que viravam objeto das

firulas retóricas de jornalistas, médicos e policiais. O caso de Cachoeira, que, como aponta

o próprio semanista, logo cairia no esquecimento, ganhava o espaço de um dos principais

periódicos do Brasil na época e era o assunto principal e quase exclusivo daquela

“Semana”. Tudo isso por uma opção deliberada do cronista.

Na crônica ficava o elogio àquela conduta que mostrava a agência de Martinha,

representante do povo. Emendava ainda a critica às narrativas históricas que eram seletivas,

tendenciosas, injustas e ignoravam a “arraia-miúda” da população, considerada uma massa

amorfa e perigosa. O narrador previa que mesmo “Com tudo isso, arrojo de ação, defesa

própria, simplicidade de palavra, Martinha não verá o seu punhal no mesmo feixe de armas

que os tempos resguardam da ferrugem”. A arma da moça iria “rio abaixo do esquecimento.

Tais são as coisas deste mundo! Tal é a desigualdade dos destinos!”.

O punhal de Martinha tinha ainda outra vantagem sobre o de Lucrécia: era real!

Essa era a ideia que finalizava a crônica:

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“Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma, nem tal ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda, que a história meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção. Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas... Mas não falemos mais em Martinha.”

A gorda pachorrenta metia em seus livros mentiras, não reservando às classes

populares, das quais a baiana fazia parte, nem um mísero “lugarzinho”. Tornava-se,

portanto, ficção. O narrador machadiano oferecia uma outra leitura do tempo, que dava

protagonismo aos populares que eram ignorados nas demais narrativas ou, quando muito,

tomados como discrepâncias do modelo de sociedade que era desejado. Martinha, Maria de

Macedo, Timotheo, Sol Posto, Cadete, Nenê, Ambrozina e Mathilde viravam matéria de

imprensa, porém, nem por isso, eram compreendidos, logo, dificilmente a eles seria feita

justiça. O consolo vem do fato de que o semanista via em suas ações “a força do amor” ou 78

a própria força do povo. Demonstrava assim empatia para com aqueles sujeitos, empatia

essa que faltava aos criadores dos discursos médicos, policiais e jornalísticos.

Neste capítulo, optei por abordar majoritariamente três textos que, entre centenas de

outras crônicas, pareceram refletir de modo especial o posicionamento de um narrador em

relação às narrativas que encontrava na imprensa, demonstrando-se um leitor atento e

perspicaz. Em cada um deles está presente a crítica à inadequação das linguagens, à

valorização do supérfluo, à exploração sensacionalista e enviesada do cotidiano das classes

populares, à exagerada fé na ciência e à pretensão de explicar sujeitos sem que eles ganhem

voz própria. Nesta tarefa, Machado de Assis empregava a gama de características que dera

à sua criatura ficcional, brincando com a hierarquia dos fatos e com a importância de

discursos e teorias. O resultado eram textos ricos, que questionavam a suposta lógica que

apareciam nos demais escritos dos jornais e davam certo protagonismo a indivíduos que

eram tratados como espécimes a serem estudadas ou mesmo erradicadas. Em “A Semana”

eles ganhavam voz e até certa superioridade que lhes era negada.

ASSIS, “A Semana - Crônica de 28 de julho de 1895”, op. cit.78

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EPÍLOGO

Em carta endereçada ao amigo e também escritor Magalhães de Azeredo, em 26 de

maio de 1895, Machado de Assis comentava o andamento de seus trabalhos literários e de

suas pretensões:

“Não trabalho continuadamente; tenho grandes intervalos de dias, e até de semanas. As tarefas administrativas são muitas, como já lhe disse, não tenho noites. Se puder concluir o livro este ano, tanto melhor. Se pudesse fazer uma escolha das Semanas, publicá-la-ia; mas valeria a pena o trabalho? Demais, há em muitas delas erros tipográficos, palavras trocadas, não emendadas oportunamente, e que me obrigariam agora a fadigas sem utilidade. Já lá vão três anos que faço esta crônica da Gazeta... Como passa o tempo!” 1

Nosso autor deixa conhecer a sua falta de tempo e cansaço oriundos de suas

obrigações de funcionário público, que não davam lugar a um labor contínuo aplicado à

escrita literária. No que toca ao objeto desta dissertação, interessa, sobretudo, a intenção de

editar algumas de suas “Semanas”. Machado pergunta ao seu correspondente se o resultado

valeria o esforço. Aproveita também para emendar uma crítica à Gazeta pela constante

publicação de seus textos com erros tipográficos e palavras invertidas . Vê-se aí que o autor 2

não via aqueles escritos como desprovidos de interesse literário e demonstrava o cuidado

com que os escrevia, causando irritação o fato de os editores não procederem do mesmo

modo.

Em outra carta a Azeredo, o autor, mais uma vez, trata dos erros tipográficos que

apareciam na série:

“saíram erros, que os conhecedores da língua saberão serem tipográficos; aqueles, porém, a quem doem erros tipográficos saberão, como o autor, o que custa ler tais coisas. As minhas semanas raro saíram com pequenas trocas de letras, trazem sempre erros mais ou menos graves. Eu, algumas vezes, mando correção; as mais

ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. op. cit. p.82.1

Eram constantes as “Erratas” publicadas pela Gazeta de Notícias nas segundas-feiras seguintes à publicação 2

de “A Semana”. O narrador machadiano chega a brincar que a culpa de erros semelhantes seria de sua letra: “Não pus o ano exato do ministério, por me não lembrar dele, não por esconder a minha idade. Assim também, — entre parêntesis, — se na crônica passada disse conhecer o finado Garnier, há vinte anos, a culpa não foi minha, nem da composição, nem da revisão, mas desta letra do diabo. Trinta anos é que devia ter saído. Mas que querem? Também a letra envelhece.” ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 15 de outubro de 1893”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 15 out. 1893, p.1.

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delas calo-me. Crônicas não se fizeram para ficar lembradas. Os erros vão no mesmo enxurro.” 3

Desta feita o autor se mostra um tanto mais desanimado em relação à perenidade

dos escritos. Todavia, em 1899, dois anos depois do final da série, lançava a coletânea

Páginas Recolhidas. O livro trazia seis crônicas de “A Semana”, publicadas entre 1892 e

1894, que encerravam o volume. Sobre elas, afirmava:

“Enfim [saem também], alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas.” 4

O próprio literato achara que, ao menos retalhos daqueles textos, deveriam, sim, ser

lembrados. Aquelas “semanas” ainda lhe falavam ao espírito e mereciam folhas mais

duradouras que as de jornal.

É interessante notar que naquelas correspondências Machado se mostrava

preocupado com os efeitos que pequenos ou graves erros acarretavam às crônicas. Eram

letras trocadas que para ele faziam toda a diferença, uma vez que “A Semana” era a sua

“gazeta da Gazeta” . No entanto, ao longo desta dissertação vimos que o escritor estava 5

atento ao que era publicado não apenas em sua gazeta particular, mas também em toda a

imprensa. Suas crônicas denunciavam a incoerências de trabalhos jornalísticos que,

pautados por critérios e discursos técnico-científicos, não apanhavam o contexto que os

cercava. Mais do que isso, os textos não davam conta de explicar a realidade das classes

populares que eram vistas como um mundo à parte, que não se encaixava nas “modernas”

teorias.

ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900, op. cit. p.128-130.3

ASSIS, Machado de. Páginas Recolhidas, in:_______________. Obra Completa de Machado de Assis em 4

quatro volumes. op. cit., Vol. 2, p. 534. As crônicas de “A Semana” selecionadas pelo autor, com os respectivos títulos que atribuiu a elas, seguidas da data original de publicação na Gazeta de Notícias, são as seguintes: Vae Soli! (17 de julho de 1892); Salteadores de Tessália (26 de novembro de 1893); O Sermão do Diabo (4 de setembro de 1893); A Cena do Cemitério (3 de junho de 1894); Canção de Piratas (22 de julho de 1894) e Garnier (8 de outubro de 1893). Esta listagem obedece a ordem em que foram publicadas no volume. ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900. op. cit. p.111.5

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O narrador mostrou-se sempre atento às outras narrativas que compunham a trama

dos periódicos. Por meio de sua criatura, Machado de Assis expunha sua visão daquela

época e suscitava reflexões acerca dos arrazoados que eram apresentados, contrapondo-se a

eles em larga medida. Foi o que procurei demonstrar neste trabalho.

Por fim, lembro uma das “semanas” publicada em 19 de agosto de 1894. Nela o

narrador dirigia-se aos leitores do futuro:

“Compilador do século vinte, quando folheares a coleção da Gazeta de Notícias, do ano da graça de 1894, e deres com estas linhas, não vás adiante sem saber qual foi a minha observação. Não é que lhe atribua nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável aos meus manes saber que um homem de 1944 dá alguma atenção a uma velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: “Um escritor do século XIX achou um caso de cor local que não nos parece destituído de interesse...”, se fizeres isto, podes acrescentar como o soldado da canção francesa:

Du haut du ciel, — ta demeure dernière, — Mon colonel, tu dois être content. Sim, meu jovem capitão, ficarei contente, desde já te abençoou, compilador do

século vinte; mas vamos à minha observação.” 6

De fato o escritor do século XIX encontrou quem desse atenção às suas velhas

crônicas. Fica aqui o resultado do lavor. Não me parece ter feição final, mesmo porque sua

“A Semana” trata de uma infinidade de temas, e toda uma vida poderia ser gasta em seus

meandros. Espero, todavia, que, apesar do atraso de setenta anos em relação àquelas

previsões, eu tenha de algum modo honrado o coronel.

ASSIS, Machado de. “A Semana - Crônica de 19 de agosto de 1894”, Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, p.6

1. Na peça Michel et Christine, de 1821, há o seguinte trecho: “C'était l'argent d'un brave militaire,/ Qui pour la gloire et son pays/ Au champ d'honneur terminat sa carrière,/ Comme un dépot en mes mains l'a remis./ Du haut des cieux, ta demeure dernière,/ Mon colonel, tu dois être content:/ Je viens de fair' des heureux, je l'espère;/ Selon ter voeux j'ai placé ton argent.” SCRIBE, Eugène e DUPIN, Henri. Michel et Christine, comédie-vaudeville. Paris: Chez Pollet, 1821, Scène XV, p.36. Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=zOtKAAAAcAAJ&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_BR&pg=GBS.PA4, acessado em: 11/02/2014.

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FONTES

Periódicos Consultados

Gazeta de Notícias

Almanak da Gazeta de Notícias

A Cigarra

A Estação

A Notícia

A Semana

Cidade do Rio

Correio da Tarde

Diario de Notícias

Gazeta da Tarde

Jornal do Brazil

O Álbum

O Brazil-Médico

O Paiz

O Tempo

Penna & Lapis

Revista Brazileira

Revista da Exposição Anthropologica Brazileira

Revista Illustrada

The Rio News

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Obras Literárias

Machado de Assis

ASSIS, Machado de. A Semana: crônicas (1892-1893). Edição, introdução e notas de John

Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996.

____________________. Obra Completa em quatro volumes. Organização: Aluizio Leite

Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

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____________________. Bons Dias! Introdução e Notas de John Gledson. Campinas:

Editora da Unicamp, 2008.

____________________. Notas Semanais. Organização, Introdução e Notas de John

Gledson e Lúcia Granja. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

____________________. Comentários da Semana. Organização, Introdução e Notas de

Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

____________________. História de Quinze Dias. Organização, Introdução e Notas de

Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

____________________. O Espelho. Organização, Introdução e Notas de João Roberto

Faria. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

____________________. Correspondência de Machado de Assis: tomo II, 1870-1889.

Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por

Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2009.

____________________. Correspondência de Machado de Assis: tomo III, 1890-1900.

Coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida, organizada e comentada por

Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: ABL, 2011.

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Outros autores

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Pimpão. Apresentação de Aníbal Pinto de Castro. 4ª edição. Lisboa: Ministério dos

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