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Professor Doutor Flávio Carneiro (UERJ) MACHADO DE ASSIS: AUTOR DO SÉCULO XXI? Não é raro ouvir dizer que Machado de Assis, mais que um autor do século XIX, é um autor do século XX, de tal modo sua obra mostrou afinidades com a produção modernista, em especial a da primeira metade do século passado. Acredito que os precursores dessa linha de pensamento, e de certa forma os que a consolidaram, lançando a base para digressões futuras, foram Antonio Candido, Haroldo de Campos e João Alexandre Barbosa. No ano de 1968, no já bastante citado “Esquema de Machado de Assis”, Antonio Candido afirma que podemos encontrar na ficção machadiana, sobretudo entre 1880 e 1900, “disfarçados por curiosos traços arcaizantes, alguns dos temas que seriam característicos da ficção do século XX.” (CANDIDO, 1995, p. 20) A tese de Candido é a de que Machado teria sido reconhecido em vida como grande escritor não pelo que pudesse de fato interessar em sua obra, do ponto-de-vista de uma crítica literária mais amadurecida, e sim por algo que seria apenas uma tintura de superfície: sua erudição, sua elegância, seu estilo vazado numa linguagem castiça. Apenas no decorrer do século XX, em especial depois dos anos 40, segundo Candido, a crítica soube ler Machado como algo além de um escritor bem-comportado, de uma ironia fina mas sem maiores conseqüências para a problematização do status quo de uma casta intelectual movida pela retórica vazia e pela troca de gentilezas nos jornais e nos salões. Para Antonio Candido, a obra machadiana apresentaria alguns traços que a ligariam a uma estética literária moderna. O primeiro deles seria o do tratamento da questão da identidade, que, em Machado, resulta na relativização dos limites entre razão e loucura. Haveria ainda o problema da relação entre o fato real e o fato imaginado – que irá nortear a ficção de Proust, por exemplo, e que ambos irão tratar a partir do tema do ciúme –, relação esta da qual resultaria uma questão ética, norteadora do existencialismo de Sartre e Camus: que sentido tem o ato? Junto a esta questão viria outra, decorrente dela, que Candido define como o problema da aspiração à perfeição, à obra una, completa. Tal problema seria o fio condutor de diversos contos de Machado, em especial “Um homem célebre.” Como afirma o crítico paulista, a confusão entre fantasia e a realidade, a constatação de que a opinião alheia é o que talvez haja de mais autêntico em nós, a impossibilidade de definir com exatidão o que difere o justo do injusto, o certo do errado, tudo isso leva, em Machado, a uma relativização de conceitos que dá lugar ao sentimento do absurdo, base da obra de Gide e de Kafka. Por fim, Candido aponta um outro tema, diferente destes e que, assumidamente, o atrai mais que os outros: a reificação das relações sociais. Ou, para usar de suas próprias palavras: “a transformação do homem em objeto do homem” (CANDIDO, 1995, p. 34), que está presente em seus romances e contos, como “A causa secreta”, por exemplo. E conclui, reiterando sua proposta de leitura: “não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma galeria de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações ficcionais que ele inventou. Tanto aquelas onde os destinos e os acontecimentos se organizam segundo uma

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Professor Doutor Flávio Carneiro (UERJ)

MACHADO DE ASSIS: AUTOR DO SÉCULO XXI?

Não é raro ouvir dizer que Machado de Assis, mais que um autor do século XIX, éum autor do século XX, de tal modo sua obra mostrou afinidades com a produçãomodernista, em especial a da primeira metade do século passado. Acredito que osprecursores dessa linha de pensamento, e de certa forma os que a consolidaram, lançando abase para digressões futuras, foram Antonio Candido, Haroldo de Campos e JoãoAlexandre Barbosa.

No ano de 1968, no já bastante citado “Esquema de Machado de Assis”, AntonioCandido afirma que podemos encontrar na ficção machadiana, sobretudo entre 1880 e1900, “disfarçados por curiosos traços arcaizantes, alguns dos temas que seriamcaracterísticos da ficção do século XX.” (CANDIDO, 1995, p. 20)

A tese de Candido é a de que Machado teria sido reconhecido em vida como grandeescritor não pelo que pudesse de fato interessar em sua obra, do ponto-de-vista de umacrítica literária mais amadurecida, e sim por algo que seria apenas uma tintura desuperfície: sua erudição, sua elegância, seu estilo vazado numa linguagem castiça. Apenasno decorrer do século XX, em especial depois dos anos 40, segundo Candido, a críticasoube ler Machado como algo além de um escritor bem-comportado, de uma ironia finamas sem maiores conseqüências para a problematização do status quo de uma castaintelectual movida pela retórica vazia e pela troca de gentilezas nos jornais e nos salões.

Para Antonio Candido, a obra machadiana apresentaria alguns traços que a ligariama uma estética literária moderna. O primeiro deles seria o do tratamento da questão daidentidade, que, em Machado, resulta na relativização dos limites entre razão e loucura.Haveria ainda o problema da relação entre o fato real e o fato imaginado – que irá nortear aficção de Proust, por exemplo, e que ambos irão tratar a partir do tema do ciúme –, relaçãoesta da qual resultaria uma questão ética, norteadora do existencialismo de Sartre e Camus:que sentido tem o ato?

Junto a esta questão viria outra, decorrente dela, que Candido define como oproblema da aspiração à perfeição, à obra una, completa. Tal problema seria o fio condutorde diversos contos de Machado, em especial “Um homem célebre.” Como afirma o críticopaulista, a confusão entre fantasia e a realidade, a constatação de que a opinião alheia é oque talvez haja de mais autêntico em nós, a impossibilidade de definir com exatidão o quedifere o justo do injusto, o certo do errado, tudo isso leva, em Machado, a uma relativizaçãode conceitos que dá lugar ao sentimento do absurdo, base da obra de Gide e de Kafka.

Por fim, Candido aponta um outro tema, diferente destes e que, assumidamente, oatrai mais que os outros: a reificação das relações sociais. Ou, para usar de suas própriaspalavras: “a transformação do homem em objeto do homem” (CANDIDO, 1995, p. 34),que está presente em seus romances e contos, como “A causa secreta”, por exemplo.

E conclui, reiterando sua proposta de leitura:

“não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma galeria detipos singulares. Procuremos sobretudo as situações ficcionais que ele inventou.Tanto aquelas onde os destinos e os acontecimentos se organizam segundo uma

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espécie de encantamento gratuito, quanto as outras, ricas de significado em suaaparente simplicidade, manifestando, com uma enganadora neutralidade detom, os conflitos essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens,com as classes e os grupos.”1 

No início dos anos 1980, e menos preocupado com temas, ou “situações ficcionais”,do que com um modo específico de lidar com a economia da linguagem, temos o ensaio deHaroldo de Campos, “Arte Pobre, Tempo de Pobreza, Poesia Menos”.

Aqui, Haroldo estabelece que o “procedimento menos” (que ele irá definir ao longodo texto) teria uma data para o registro histórico de sua discussão: 1897, quando SílvioRomero escreve sua crítica a Machado:

“O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notadopor um forte cunho pessoal, é a fotografia exata de seu espírito, de sua índolepsicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nemgrandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-seque o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e dafrase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquernos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. ‘Ele gagueja no estilo, napalavra escrita, como fazem outros na palavra falada’, disse-me uma vez não seique desabusado num momento de expansão, sem reparar talvez que dava-medestarte uma verdadeira e admirável notação crítica. Realmente, Machado deAssis repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem,que nos deixa a impressão dum perfeito tartamudear. Esse vezo, esse sestro,para muito espírito subserviente tomado por uma coisa conscienciosamentepraticada, elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas, repito, oresultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra.”2 

O texto de Silvio Romero estaria apontando, segundo Haroldo de Campos, paradeterminado paradigma: a valorização do estilo “abundante, corrente, colorido,marchetado” (adjetivos usados por Romero para exaltar a escrita de Rui Barbosa).Paradigma, este, que teria guiado grande parte de nossa cultura literária, em detrimento deum estilo mais exato, em que o excesso é tido não como aliado mas como declaradoinimigo.

Ainda segundo Haroldo, o intencional tartamudear do estilo machadiano é umaestratégia voluntária de estabelecer o dialogismo bakthiniano, na medida em que diz edesdiz no mesmo passo, instaurando o tenso diálogo entre vozes, marca de seus contos eromances, como, por exemplo, Dom Casmurro:

“Há quem se contente em buscar em Dom Casmurro um raconto de adultérioou de suspeitas de adultério (...) Quem se lembrar que adulter vem de ‘ad +alter’, e pode significar também ‘alterado’, ‘falsificado’, ‘miscigenado’,‘enxertado’ (formas de estranhamento do mesmo no outro), quem sabeconcordará comigo que que a personagem principal de Dom Casmurro (e, porsinal, a maior criação machadiana para a estética de nosso romance) não éCapitolina/Capitu, mas o capítulo: esse capítulo gaguejante, antecipador eantecipado, interrompido, suspenso, remorado, tão metonimicamente ressaltado

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pelo velho Machado em sua lógica da parte pelo todo, do efeito pela causa,como os olhos e os braços de Capitu.”3 

O estilo machadiano – feito de “lacunas e reiterações, de elipse e redundância, debaixa temperatura vocabular e alta temperatura informacional estética” (CAMPOS, 1992, p.

222) – andaria na contramão de nossa tradição literária, interessada antes numa “poesiamais”. A esta, Haroldo contrapõe a “poesia menos”, que teria tido em Machado seuprimeiro representante, num fio que conduz em seguida a Oswald de Andrade e continuacom Graciliano, Drummond e João Cabral, desembocando em Augusto de Campos e napoesia concreta.

Ao falar, explicitamente, de uma “certa linha rastreável de evolução”, ao colocarMachado de Assis entre alguns dos considerados cânones modernistas (cujo elo final seria avanguarda concretista), Haroldo reitera, sob novo viés, a tese de Candido. Alçando oescritor do ambiente morno do final do século XIX – tão bem representado pelo próprioSilvio Romero – à festa da linguagem proposta e levada a cabo por diferentes geraçõesmodernistas, o crítico reforça o coro dos que vêem Machado como autor do século XX.

Também pensando a partir de um pressuposto, a meu ver, questionável, o de “linhaevolutiva”, João Alexandre Barbosa, em “A modernidade no romance”, elabora análisesemelhante.

No início dos anos 1980, convidado a fazer, em função das comemorações desessenta anos da Semana de 22, um balanço do que teria sido o romance brasileiro noséculo XX, João Alexandre alerta, logo de início, para o fato de que é necessário diferenciarmoderno e modernismo:

“se o primeiro termo indicia um fenômeno de bases universais, apontandopara tudo o que significou problematização de valores literários no amplomovimento das idéias pós-românticas, o segundo termo, confundindo-se, emalguns casos, com a própria idéia de vanguarda, já aponta para a retomada, numnível de intervenção cultural, dos desdobramentos do primeiro.”4 

Moderno, portanto, seria algo mais amplo, com desdobramentos nas diversascamadas da cultura, enquanto modernismo seria um fragmento desse todo, focadoespecificamente no campo estético. Há no modernismo, obviamente, algo do moderno, eeste algo seria, segundo o crítico, a existência de certa insegurança, certa instabilidade nomodo de articulação entre literatura e realidade. Põe-se em xeque a segurança com queromânticos, realistas e naturalistas tratavam dessa articulação e instaura-se a desconfiançaem relação ao que parecia certo.

Modernistas e modernos não são, portanto, necessariamente a mesma coisa:

“são Modernos aqueles Modernistas que criaram as condições indispensáveispara uma reflexão acerca das relações referidas entre realidade e representação,abrindo o espaço para uma outra e fundamental passagem, qual seja, a dareflexão a propósito do próprio sistema articulatório em que se fundam as duasnoções de base.”5 

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  Para João Alexandre, seria chegado o momento de separar o joio do trigo.Estabelecidos seus fundamentos, o crítico parte para a resposta à seguinte pergunta: quem,dentre os modernistas brasileiros, foi verdadeiramente moderno?

O primeiro nome da lista é, como era de se esperar, Machado de Assis. Ao propor,pela ficção, uma reflexão acerca das próprias potencialidades da narrativa, no seu confronto

com o real, ao operar a delicada articulação entre metalinguagem e história, aoproblematizar, por fim, os próprios estatutos que regeriam ficção e realidade, Machado teriasido, segundo João Alexandre, nosso primeiro autor modernista e, ao mesmo tempo, nossoprimeiro autor moderno.

Fazendo par, embora talvez sem se dar conta disso, do que já afirmara AntonioCandido no final dos anos 60, João Alexandre arremata:

“um aspecto pouco tratado pelos críticos que estudaram a obra machadiana: omodo pelo qual a absorção de seus textos ocorreu antes pelo ângulo de umasuposta articulação entre o escritor e seu tempo – daí a glória em vida, o sensode pudor acadêmico, a asfixiante classificação moralista etc. – do que pela viamenos acessível da desarticulação, a qual responde por sua intensamodernidade.”6 

Assim como Haroldo fizera, em seu ensaio, uma listagem de autores que,cultivadores da “poesia menos”, fariam parte da mesma “família”, João Alexandre Barbosatraça também sua linha evolutiva, agora sob novo parâmetro: a problematização dasrelações entre realidade e representação. Em ambos, o nome primeiro é Machado de Assis.Na lista de João Alexandre, que inclui apenas romancistas – como indica o título do ensaio–, a Machado se seguem, nessa ordem: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, GracilianoRamos, Clarice Lispector (que o crítico coloca em nível inferior aos demais) e GuimarãesRosa.

Não há dúvida de que as leituras empreendidas por Antonio Candido, Haroldo deCampos e João Alexandre Barbosa são pertinentes. Há, no entanto, uma outra possibilidadede situar a obra de Machado no plano geral de nossa tradição literária. E esta seria pensarem Machado não como autor do século XX, mas do XXI.

E aí caberia um breve esclarecimento. Sem me ater ao rigor cronológico, acreditoque o século XXI no Brasil – pelo menos no campo da prosa de ficção – tem início nadécada de 80, no período pós-ditadura, e se estende até nossos dias. E se o leitor me permiteuma tosca tentativa de estabelecer algo parecido com uma origem para a ficção brasileirapós-moderna, mesmo correndo o risco do paradoxo – fazer uma leitura moderna da pós-modernidade, buscando estabelecer datas de origem etc. –, diria que esta tem início com apublicação, no início dos anos 80, de duas obras capitais:  Em liberdade, de SilvianoSantiago, e O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de Sérgio Sant’Anna.

Daí até nossos dias, vivemos já o século XXI, não pelo abandono das diretrizes queformaram nossa ficção no século XX, mas por sua rearticulação, em bases mais condizentescom uma nova configuração social, econômica e política, que já não se estrutura mais apartir das conhecidas dicotomias que nos acompanharam desde, pelo menos, o romantismo.

É nesse sentido que compreendo Machado como autor deste século, e não do XIXou do XX.

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  No ensaio “Fechado para balanço”, – que é, na verdade, um comentário ao texto deJoão Alexandre –, Silviano Santiago evita a concepção linear de história (da literaturainclusive) e parte para uma pergunta: não poderia o pós se alimentar do pré?

O texto de Silviano é, de certa forma, dirigido aos representantes das novas geraçõesde ficcionistas, que começavam a publicar justamente no início dos anos 80, quando o

ensaio foi escrito (mesma época, aliás, em que vieram a público pela primeira vez osensaios citados de Haroldo e João Alexandre), e se pauta pela tese de que autoresconsiderados pré-modernistas, como Euclides e Lima Barreto, estariam, na verdade, maispróximos do que se produz no final do século XX do que o que se escreveu no modernismode 22 e 30, e poderiam servir de referência aos novos escritores, que, assim, ficariam livresdo modelo de transgressão proposto pelos modernistas, podendo partir para novas e maisarejadas trilhas.

Acredito que se possa continuar seguindo por esse caminho, buscando ver como aobra de Machado, embora possa ser lida numa aproximação com os cânones modernistas,está mais afinada com o que veio nas décadas de 80-90 e nos primeiros anos do séculoXXI.

Vejamos, a título de exemplo, o caso do conto (ou novela) “O alienista”.Normalmente se diz que se trata, este conto, de uma paródia do discurso cientificista daépoca, de base positivista. Acredito esta seja uma leitura redutora. A paródia, como recursoestilístico, opera a partir de uma base maniqueísta (a não ser que a entendamos naconcepção de Linda Hutcheon, que, a meu ver, se confunde com o que chamamos depastiche). Na paródia, encena-se, pela literatura, o embate entre o bem e o mal,personificados nas figuras do novo e do antigo, que travam mortal batalha, vencida semprepelo mocinho.

Daí o apreço que as vanguardas literárias tiveram pela paródia (vide, obviamente, aobra poética de Oswald). A paródia só existe quando há um adversário definido, e quandohá, da parte do autor, a clara intenção de combate. Não digo que seja impertinente ver talintenção em “O alienista”, mas creio que o conto parte por veredas tortuosas, provocandotransgressões um pouco mais sutis. O que move o estilo machadiano não é o maniqueísmo,embora ele se apresente numa leitura mais imediata, justamente para ser desmontadodepois. E se não há maniqueísmo, não há paródia.

Pensemos, ainda com relação a “O alienista”, nas teorias de Simão Bacamarte sobrea loucura. Disposto a estabelecer definitivamente os limites da razão e da loucura,Bacamarte elabora sua primeira teoria: a razão é o perfeito equilíbrio de todas asfaculdades.

Quando, porém, percebe que já internou na Casa Verde praticamente toda apopulação da pequena Itaguaí, decide mudar sua teoria, que agora é formulada da seguintemaneira: a razão é o desequilíbrio de todas as faculdades.

Caso se leia o conto como uma paródia, a interpretação parece bastante clara:Bacamarte, o suposto alienista, é, na verdade, o grande alienado. Afinal, o que se podedizer de alguém que simplesmente muda de lado e interna a si próprio, apenas paraexperimentar uma nova teoria?

O que me parece equivocado, ou pelo menos apressado, nessa leitura, é queBacamarte não tem uma nova teoria. Ele não muda de teoria. Ou, se muda, não muda oprincipal, quer dizer, não muda o princípio que estaria subjacente a estas supostamente duasteorias.

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  Quando afirma que a sanidade é o perfeito equilíbrio das faculdades mentais, omédico age movido por uma premissa: a loucura é uma exceção, e não a regra. Quandopercebe que internou quase todos os habitantes de Itaguaí, ele tem duas opções: ou mudar ateoria, ou mudar de premissa. Bacamarte, como sabemos, opta pela primeira.

Se de fato quisesse mudar de premissa, ele diria: a loucura, afinal, é a regra. Somos

todos loucos, esta é a verdade, ele diria. Tanto que internei quase todo mundo, continuaria odiscurso desse suposto Bacamarte, justamente porque ninguém – nem mesmo eu, que erreino meu método, ou na minha premissa –, ninguém é completamente são. Somos todosloucos, mais ou menos conforme as circunstâncias, e as diferenças entre os indivíduos estáno modo como cada qual lida com sua própria loucura, concluiria ele.

Mas não. O que ele reafirma é sua equivocada premissa: a loucura como exceção. E,para que a premissa não se perca, ele reverte a teoria: loucos são os ajustados mentais. E seinterna ele próprio na Casa Verde, movido apenas por aquilo que eu diria ser seu lema, seele tivesse um lema: viva a maioria! O que vale dizer: abaixo a diferença!

A premissa de Bacamarte é bastante clara: a loucura é um desvio, portanto os loucostêm que ser necessariamente minoria. Ora, a loucura, sabemos, nada mais é do que o espaçoda diferença levado a seus limites. Na loucura, os opostos se cruzam e nesse cruzamentodeixam de existir enquanto opostos. Não há propriamente oposição no centro da loucura,mas polifonia, caos de vozes diferentes. Ao ridicularizar o método de Bacamarte, Machadoaponta para o outro lado: a loucura não é minoria. A loucura, em menor ou menor grau, é aregra. A diferença, portanto, e não o consenso, é a regra. A suposta razão apenas tentaria,de forma ineficaz, apagar as chamas da diferença.

Por isso o estilo de Machado surge tão forte em “O alienista”, como surge,obviamente, em Dom Casmurro. Capitu, talvez o signo mais evidente da ambigüidade emMachado, precisa ser revivida e novamente morta pela memória de Bentinho para que adiferença não sobreviva e, desse modo, não o ameace. Embora mais sutil, Bentinho repeteBacamarte. Ambos sucumbem à força da ambigüidade. Ambos sucubem à força dadiferença.

O possível alvo de Machado, portanto, nesse conto, não seria o positivismo, ocientificismo, o naturalismo e outros “ismos”, mas certa postura, sem dúvida autoritária, daexclusão. A história de Simão Bacamarte não seria, então, o reverso do pensamentopositivista, como o negativo de uma foto, mas justamente a sua problematização. Não setrata simplesmente de paródia, mas de um investimento naquilo que, a meu ver, é talvez agrande marca de nossa ficção no século XXI (relembre-se: os últimos vinte e cinco anos): oelogio da diferença.

“O alienista” não se propõe como paródia. E se não seria correto dizer que se trataexatamente de um pastiche do discurso positivista – e de fato não é –, podemos pelo menosafirmar que dele se aproxima, na medida em que não bate de frente com seu adversário mascom ele interage criticamente, em tensão, em conflito. Algo como um “enfrentamentolateral” (investindo aqui na ambigüidade da expressão)

Diria, portanto, que Machado opera certo tipo de ultrapassagem, de transgressão,que se mostra mais próxima do que temos visto na pós-modernidade do que nosenfrentamentos levados a cabo pelo modernismo, que, no caso, mesmo parecendoredundante, eu chamaria de “enfrentamentos frontais”.

Entre “frontais” e “laterais”, a diferença me parece óbvia. Se, no primeiro caso,opta-se por uma estratégia de choque, no segundo o que vale é o convívio, tenso que seja,entre as diferentes formas de se escrever ficção. E é aí que Machado se encontra. A crítica

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que subjaz em “O alienista” não é exatamente ao grande inimigo: o discurso cientificista,que se acha capaz de desvelar os meandros da loucura, mas ao discurso totalitário – seja elede que século for –, que se lança ao apagamento das diferenças, buscando encontrar opadrão, a norma que regeria o comportamento humano.

“O alienista” estaria, a meu ver, no campo de certa reescritura em aberto, ambígua,

diferente da reescritura proposta pela paródia, que não permite o meio-termo. Trata-sequem sabe de algo sem nome, texto de múltiplas entradas e quem sabe nenhuma saída,como, para usar uma imagem cara à pós-modernidade, um labirinto borgiano.

E haveria, a propósito, algo mais borgiano do que a moldura ficcional do conto deMachado? É por demais conhecida, mas vale citar a primeira frase do conto: “As crônicasda vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos etc.” (MACHADO, 1995, p.20). Adiluição das fronteiras entre realidade e ficção, operada pelo fato de o narrador se referir àsua suposta fonte – os cronistas, a história oficial – aponta já para o jogo tão caro a Borges,que se reforça, em Machado, pelo uso deste “dizem”, que, por sua vez, relativiza o relato,posto então, desde o seu início, sob suspeita.

É por esse apego ao diálogo entre contrários que o estilo de Machado se aproximado que Haroldo de Campos chama, noutro contexto, de “pós-utópico”. Embora respeite aopinião de que Machado tem mais a ver com a modernidade do século XX do que com ochamado realismo/naturalismo do século XIX, acredito que a equação seja outra. Machadonão pode ser confundido com os modernos, que se empenharam numa luta entre opostos: anovidade versus a tradição. Mário, Oswald, e mesmos os romancistas do nordeste, erammodernos. Machado não. A idéia de luta, de combate, seja no campo estético ou ideológico,não combina com um estilo marcado pelo exercício sinuoso da convivência dos opostos,sempre, repito, em tensão.

Há outros aspectos da obra machadiana que a aproximam do estilo pós-moderno.Um desses aspectos é justamente o que move o conto “O alienista”, e se trata do modo umtanto quanto desconfiado com que se observa o crescimento avassalador do pensamentocientificista.

Em artigo citado, Silviano Santiago diz o mesmo com relação a “Os sertões”, noqual o crítico percebe traços da pós-modernidade:

“No caso de Euclides da Cunha, avulta a sua postura rítmico-reflexiva nummomento crucial da História do Brasil, que se deu com a complexidade queapresenta o momento presente brasileiro para o jovem intelectual que começa adesconfiar dos percalços a que pode levar o progresso (...) A coragem deEuclides é dupla. Primeiro, política (...) Segundo, intelectual, porque coloca emquestão a segurança e a certeza dos esquemas de pensamento, da sua época que,enciclopedista que era, possuía de maneira inequívoca. Não colocá-las emquestão teria sido a sua forma de buscar o poder pelo saber, como tantos dosseus e dos nossos contemporâneos [e como Simão Bacamarte, eu diria,complementando Silviano]. 7 

E conclui Silviano, fazendo a ponte entre Euclides e os ficcionistas atuais:

“O testemunho ficcional que o recente romance brasileiro está dando e podecontinuar a dar é o de oferecer um olhar desconfiado aos grandes sistemas

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hermenêuticos do saber, percebendo neles o ranço de um intelectual autoritário,tão autoritário quanto as forças que permanecem inquestionáveis no poder.”8 

A propósito, em O pós-moderno explicado às crianças, em que Lyotard retoma erealinha alguns conceitos formulados no seu A condição pós-moderna, lemos:

“podemos observar e estabelecer uma espécie de declínio na confiança queos Ocidentais dos últimos séculos punham no princípio do progresso geral dahumanidade. Esta ideia de um progresso possível, provável ou necessário,enraizava-se na certeza de que o desenvolvimento das artes, da tecnologia, docrescimento e das liberdades seria proveitoso à humanidade no seu conjunto(...) Depois destes dois últimos séculos, tornámo-nos mais atentos aos signosque indicam um movimento contrário. Nem o liberalismo, económico oupolítico, nem os diversos marxismos saem destes dois séculos sangrentos semincorrerem na acusação de crime contra a humanidade.”9 

Já no seu “Palimpsesto de Itaguaí”, Luiz Costa Lima apontava para o fato de que há,em “O alienista”, sob o pano de fundo da temática da loucura, uma denúncia dasarticulações entre ciência e poder, que move, em vários momentos da narrativa, os passosde Simão Bacamarte: “o tema central de ‘O alienista’ – que é afinal a loucura? – não éapreensível sem se compreenda a articulação estabelecida entre três variáveis: ciência,linguagem e poder.” (LIMA, 1991, p. 261)

Dessa forma, “O alienista” – como também “Os sertões”, a partir de outraestratégia, apontada com precisão por Silviano Santiago – contribui para a formação desteolhar desconfiado lançado sobre o avanço da ciência, o que de certa forma o liga a umaprática que se pode observar em grande parte da produção ficcional brasileira dos últimosvinte e cinco anos.

Ao contrário do que ocorria, por exemplo, entre os modernistas da Semana – veja-se, apenas a título de exemplo, o encantamento de Oswald com o progresso de São Paulo –,a ficção pós-moderna vê com cuidado redobrado o discurso cientificista, no qual já nãoaposta e com relação ao qual não nutre nem um pouco da euforia modernista das primeirasdécadas do século XX. Nesse sentido, a obra de Machado serviria mais aos propósitos pós-modernos do que propriamente aos modernos, deles se distanciando na medida em queproblematiza, de forma irônica e incisiva, as relações entre ciência, linguagem e poder (parausar os termos apontados por Costa Lima).

Outro traço marcante da obra de Machado, e que também se pode presenciar em “Oalienista”, é a capacidade de lidar com dois estratos de leitura. É possível ler o conto comoapenas uma história divertida, bem contada, do tipo que se lê e se esquece em seguida, umproduto de puro entretenimento, portanto. Por outro lado, o conto resiste a uma análise maisaprofundada, como tantas que se fizeram e se fazem, sob a ótica de alguns de nossosmelhores críticos.

Este duplo alcance de leitura é outro fato que afasta Machado dos modernistas –sobretudo os da primeira fase – e o aproxima da pós-modernidade.

Noutra ocasião, tratando dos possíveis deslocamentos operados na pós-modernidade, discorri brevemente sobre o assunto e retomo aqui as observações feitas àépoca, para tornar mais claro o raciocínio:

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  “Trata-se da diferença entre o modo como os modernistas e a vanguarda dosanos 50 lidavam com os meios de comunicação de massa e a maneira como aliteratura atual se relaciona com esses mesmos meios. Tanto os modernosquanto os contemporâneos empreenderam o diálogo com a mídia, mas hádiferenças.

Os primeiros viram-se fascinados com a potencialidade estética das novaslinguagens, sobretudo a do cinema, no início do século, e a da publicidade, nadécada de 50, mas, ao mesmo tempo, criticavam a massificação decorrentedessas linguagens. A obra dos concretistas, sobretudo, demonstra apreocupação em deixar claro que o interesse pelo discurso publicitário é denatureza estética, acompanhado de uma firme discordância ideológica. (...)

Situação semelhante já podia ser observada em Oswald de Andrade, nosanos 20. Se é marcante o discurso cinematográfico na obra de Oswald, atravésdo corte, da montagem e da multiplicidade do olhar, não está nos seus planosatingir um público tão abrangente quanto o do cinema. Ao contrário, faz partedo ideário dos modernistas e concretistas, como, de resto, de toda vanguarda,certo desprezo à aceitação da obra de arte pelo grande público. Se vende, não ébom – parece ser o lema. O fascínio pela linguagem rápida, fragmentada, e adescoberta da imagem como recurso estético a ser mesclado à palavra naconstrução poética não vem atrelado, portanto, ao desejo de atingir um públicomais vasto.”10 

Ao investir numa escrita que se mostra atraente tanto para o leitor comum comopara o especialista, Machado se afasta das propostas modernistas e se aproxima do que háde mais interessante, a meu ver, na ficção atual, ou seja, justamente este duplo alcance daleitura. O que se opera, aqui, é algo que chamei, em obra citada, de “transgressãosilenciosa”, quer dizer, uma transgressão que não chama a atenção para o próprio atotransgressor, como nas vanguardas, preferindo optar pelo silêncio:

“Silêncio que não é imposto, como nos tempos da ditadura militar, masproduzido intencionalmente, servindo como base para a criação de uma novaliteratura, menos pretensiosa, num certo sentido – porque consciente de seupapel relativo num mundo de verdades relativas –, e nem por isso menosinventiva. O que a ficção dos anos 80 deixa como legado, para a décadaseguinte e para este início de século, é a possibilidade de uma nova forma deruptura, sem o alarde dos modernistas ou das vanguardas.” 11 

Ora, o estilo machadiano recusa justamente o alarde, seja o da retórica parnasiana,seja o da “ousadia” romântica. E, ao invés da transgressão ruidosa dos modernistas, optapelo caminho mais sutil da ironia, como se sua escrita evocasse a cada página não agargalhada mas o sorriso ameno, leve mover de lábios.

E, desse modo, assume de vez seu lugar no panorama de nossa ficção, ocupandovaga não na luxuosa sala reservada aos monstros sagrados da ficção modernista, mas nasala mais discreta, e nem por isso menos valiosa, dos ficcionistas brasileiros do século XXI.

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7/23/2019 Machado de Assis Autor Do Século XXI

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Notas:1. CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”, in: Vários escritos. 3ª ed. rev. eampl. São Paulo: Duas cidades, 1995, p. 39.2. Ver: CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI.

Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

3. CAMPOS, Haroldo. “Arte Pobre, Tempo de Pobreza, Poesia Menos”, in: Metalinguagem& outras metas. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, p. 2244. BARBOSA, João Alexandre. “A modernidade no romance”, in: PROENÇA FILHO,Domício (org.) O livro do seminário. São Paulo: LR Editores, 1983, p. 21.5. Ibidem, p. 23.6. Ibidem, p. 26.7. SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço”, in: PROENÇA FILHO, Domício, op.

cit., p. 97-99.8. Ibidem, p. 100.9. LYOTARD, François. O pós-moderno explicado às crianças. 2ª ed. Trad. TerezaCoelho. Lisboa: Dom Quixote, 1993, p. 95.10. CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 25.11. Ibidem, p. 28.

Referências Bibliográficas:ASSIS, Machado de. “O alienista”, in: O alienista e outros contos. São Paulo: Moderna,1995.LIMA, Luiz Costa. “O palimpsesto de Itaguaí”, in: Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro,Rocco, 1991.SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.SANT’ANNA, Sérgio. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. São Paulo: Ática,1982.