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Carta de Machado de Assis ao Secretário do Conservatório Dramático Brasileiro.

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Literatura

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Carta de Machado de Assis ao Secretrio do Conservatrio Dramtico Brasileiro.Machado ea educaoArnaldoNi s ki erJoaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em21 de junho de 1839, ano em que tambm nasceram Casimirode Abreu e Tobias Barreto. Comeou a versejar aos 15 anos e, antesdos 18 anos, publicou o seu primeiro conto (gnero emque foi mes-tre indiscutvel): Trs tesouros perdidos.Machado era mestio, filho de umpardo forro (Francisco Jos deAssis) e de me negra (Maria Leopoldina Machado de Assis). Eramagregados de uma quinta, o pai pintor de paredes. Ficou rfo deme muito cedo (usou o seu nome artstico) e encontrou na madras-ta, a lavadeira Maria Ins, o grande arrimo da sua infncia, especial-mente aps a morte do pai, em 1851.Machado foi contista, poeta, cronista, crtico e autor teatral (oseu Lio de Botnica, nascido de um conto, simplesmente genial).Era um autodidata, que freqentou apenas a escolaprimria. Mor-reu no Rio, no dia 29 de setembro de 1908, com 69 anos de idade.Juntocom Lcio de Mendona, foi um dos fundadores da Acade-13Ocupante daCadeira 18na AcademiaBrasileira deLetras.Pros amia Brasileira de Letras, em 1897, e a presidiu durante dez anos (at a sua mor-te). Ao longo da vida, produziu diversas obras-primas, inclusive algumas p-rolas que denotama existncia de um sagaz olhar pedaggico, mais valorizadopelo fato de no ter sido oriundo de um educador ou de um profissional for-mado no exterior, como era tradicional, naqueles tempos de devoo cultural Europa.De Machado, no Brasil, j se escreveu tudo. Ou quase tudo. Talvez esti-vesse faltando uma abordagem pedaggica, a fim de que dele se extrasse osumo dos seus pensamentos originais e que se mantiveram, a despeito daao do tempo.Em seu estilo e em sua cuidadosa estrutura vocabular, Machado ensinava.Era professor paciente e direto. No conseguamos ns, suas criaturas, en-gan-lo. Em uma releitura de seus romances, contos, crnicas e cartas (que emtudo usava seu tambm extraordinrio talento de educador), descobrimos queele se esmerava em nos mostrar de que maneira cada um de ns pode chegar aser um ser humano melhor.No se tratava de um ensinamento do alto para baixo, mas de uma conversamachadiana, calma, olho no olho, como quem diz veja s como ns somosou imagine como Brs viu o mundo e seus habitantes depois que foi para ooutro lado, mas junto com o veja s e o imagine havia tambm o espantodo quem diria!. Era um olhar pedaggico, refinado, sereno, que nos viapor dentro.Mas Machado de Assis, alcanando a glria dos 69 anos, iluminou a litera-tura brasileira comalgumas das suas obras mais emblemticas e emtodas elaspudemos sentir, desde cedo, uma fagulha pedaggica. Sempre uma lio, mes-mo que no fosse exatamente essa a sua inteno.No nos preocupamos exatamente com lies morais, mas sim com o que oesprito de Machado acolheu e que seria de interesse objetivo da educao doseu tempo. A presena do professor, a forma dos castigos, a valorizao de ln-guas estrangeiras, o pouco prestgio dado educao feminina... so temas re-correntes na obra do Bruxo do Cosme Velho.14ArnaldoNi s ki erCom a colaborao dos integrantes do Centro de Estudos Machadianos,de Belo Horizonte, dirigido pelo professor Mauro Rosa, levantamos uma s-rie de pensamentos em que Machado deixa transparecer o seu interesse pelaeducao.O mundo melanclico de Machado, com as suas voltas infncia sofrida,mescla-se com a nostalgia presente no Conto de escola:Para cmulo do desespero, vi atravs das vidraas da escola, no claro azul docu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo,preso de uma corda imensa, que boiava no ar, uma coisa soberba. E eu na es-cola, sentado, pernas unidas, como livro de leitura e a gramtica nos joelhos.A sua imaginao estava longe dali; os livros, esquecidos; desespero, umapriso?Alembrana certamente da escola pblica emque se deparou como incioda escolarizao, na paisagem buclica do morro em que nasceu e alcanou asprimeiras luzes. Garoto ainda, sonhava, para alm da paisagem do morro,voando junto com o papagaio. O livro e a gramtica no acompanhavam a suaimaginao. o teatro da sua infncia, em que desfilam os conflitos da alma, naqueleestilo sem estilo de Machado,como ele mesmo afirmava:O melhor afrouxar a rdea pena, e ela que v andando, at achar entrada... Palavrapuxa palavra, uma idia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ouuma revoluo.Em Outros Contos [Garnier, 1889], encontramos mais uma preciosidade li-gada idia do magistrio, no sentido que lhe quis dar Machado de Assis:Meu propsito era ser mestre de meninos, ensinar alguma cousa pouca doque soubesse, dar a primeira forma ao esprito do cidado... Calou-se o mes-tre alguns minutos, repetindo consigo essa ltima frase, que lhe pareceu en-genhosa e galante... Omestre, enquanto virava a frase, respirando comestr-15Machadoeaeducaopito, ia dando ao peito da camisa umas ondulaes que, em falta de outradistrao, recreavam interiormente os discpulos. Um destes, o mais traves-so, chegou ao desvario de imitar a respirao grossa do mestre, com grandesusto dos outros, pois uma das mximas da escola era que, no caso de se nodescobrir o autor de um delito, fossem todos castigados; com este sistema,dizia o mestre, anima-se adelao, que deve ser sempre uma das mais sli-das bases do Estado bem constitudo. Felizmente, ele nada viu, nem o gestodo temerrio, umpirralho de dez anos, que no entendia nada do que ele es-tava dizendo, nem o belisco de outro pequeno, o mais velho da roda, umcerto Romualdo, que contava 11 anos e trs dias; o belisco, note-se, erapara cham-lo circunspeco... Daqui em diante, o mestre continuou a ex-primir-se em tal estilo que os meninos deixaram de entend-lo. Ocupadoemescutar-se, no deu pelo ar estpido dos discpulos, e s parou quando orelgio bateu meio-dia. Era tempo de mandar embora esse resto da escola,que tinha de almoar, para voltar s duas horas. Os meninos sarampulan-do alegres, esquecidos at da fome que os devorava, pela idia de ficar livresde um discurso que podia ir muito mais longe. um texto admirvel, de que se podem tirar diversas inferncias: a fina iro-nia com respeito idia abominvel de delao; a existncia somente de meni-nos na classe, revelando a discriminao ento existente; a repetio exaustivada palavra mestre, com que Machado designava os professores; o retrato decorpo inteiro de uma classe tpica, em que ocorrem fatos ainda hoje comunsno esprito da garotada. Isso tudo almdo mestre, que, falando para si mesmo,revelava o inteiro teor do que ento denominvamos magister dixit. Era o pr-prio, no estava nem a para a platia.A ocorrncia desse conto trouxe-me ainda outro momento da obra macha-diana que desenha a escola, no risonha e franca, como a quis apresentarOlavo Bilac, outro membro da Academia Brasileira de Letras e grande poetaparnasiano. O texto diz assim:16ArnaldoNi s ki erMeu propsito era ser mestre de meninos, ensinar alguma cousa pouca doque soubesse, dar a primeira forma ao esprito do cidado. Calou-se o mes-tre alguns minutos, repetindo consigo essa ltima frase, que lhe pareceu en-genhosa e galante...Trazer Machado de Assis para o campo da pedagogia, que no foi sua prio-ridade, uma forma tambmde homenage-lo, mostrando que a sua genialida-de no conheceu limites e por isso mesmo jamais poderia ser insensvel aoque representa a nossa educao para o futuro das novas geraes.17MachadoeaeducaoMascara morturiade Machado de Assis.Tudo somistriosLdoI voAsolido esttica de Machado de Assis se desfaz desde que oseqestremos de sua moldura nativa e nos disponhamos aavali-lo no largo esturio que, emnosso tempo, acolhe as contribui-es destinadas a mudar a face e o destino do romance realista e na-turalista do sculo XIX.Esta perspectiva atualiza as ocorrncias histricas e permite rein-ventar o passado na medida em que se busca interrog-lo critica-mente. Colocado nele, o autor de Dom Casmurro exibe, naquela moinvejvel que narrou o amor desvairado de Quincas Borba e descre-veu o corpo de Sofia emergindo as cadeiras amplas, como umagrande braada de folhas que sai de dentro do vaso, a carta de bara-lho que lhe d o direito de figurar no apenas na nossa literaturacomo um protagonista seminal, mas ainda na mesa faustosa dos querevolucionaram o romance ocidental.Aps a afirmao pica e florida de Jos de Alencar, com as suasfices estuantes de luzes e paisagens, cores e rumores, e aplicadas na19Pros aOcupante daCadeira 10na AcademiaBrasileira deLetras.possesso terrestre e na abrangncia, Machado de Assis abriu, em nossa litera-tura, um caminho de dissidncia que ainda hoje avana. A forma de romanceque ele cultivou colidia com uma consolidada tradio de inteireza e totalida-de e essa coliso prossegue, tornando-o contemporneo da inquietao est-tica dos nossos dias. Os seus modelos literrios favoritos no foram WalterScott ou Balzac, Dickens ou Zola. Administrador sbio de seus dons genunos,e dotado de uma certeira viso crtica de suas possibilidades pessoais a que nofaltava uma nota compulsiva, ele se utilizou de formas de narrao e composi-o do sculo XVIII. Recuou para avanar. Na noite romanesca j finda, bus-cou as luzes de sua alvorada. efuso, grandiosidade e ao transbordamento da fico romntica deBalzac, Victor Hugo e George Sand, preferiu o conto filosfico de Voltaire eDiderot e a ambgua e digressiva prosa ficcional da Xavier de Maistre. Essa in-clinao natural de seu esprito de narrador breve e parco, que prefere a inten-sidade fluncia generosa ou desabrida, completa-se com uma eleio funda-mental: a de Sterne, lido em francs, nos dois volumes de Tristram Shandy e LeVoyage Sentimental (edio Garnier), que ora tenho diante de mim.Desses cultores de romance anterior aos modelos majestosos consagradospelo sculo XIX Machado de Assis aprendeu a lio suprema da aluso e dafragmentariedade, da ironia sucessiva e da descontinuidade psicolgica, da ful-gurao anedtica e da tenso lingstica pronta a reclamar do leitor a pausareverente. E, na medida em que os modelos por ele escolhidos oferecem a dis-cusso da prpria genuinidade do gnero, Machado de Assis engasta em suaobra, no iluminado espao precursor dos seus contos e romances, a propostada discusso crtica da forma adotada. Mas se impe no esquecer que a suaposio heterodoxa e at soberbamente marginal de escritor que se abeberouem fontes privilegiadas de experimentao romanesca extrapola sua condiode ficcionista. Ela o abarca inteiro, conferindo-lhe a coerncia definitiva.Adepto de uma criao literria e potica que seja uma construo e nouma efuso ou melhor, que seja a construo de uma efuso, incumbindo-seo autor de compor e organizar a emoo a ser experimentada pelo leitor ,20LdoI voMachado de Assis respira a sua diferena numa comparsaria intelectual sens-vel ao prestgio dos modelos triunfantes que no foramos seus. Embora a nos-talgia romntica o persiga a vida inteira, como o comprova a sua sincera admi-rao por Jos de Alencar e pelos poetas romnticos portadores dos dons quelhe faltavam, ele se ir destacando, ano por ano e obra por obra, pelo contrastecom o seu ambiente. A curiosidade intelectual que o caracterizou e tanto con-tribuiu para projetar a sua criao pessoal como uma obra de cultura, crescen-temente regida pelo imperativo parnasiano do fino lavor e da energia estilsti-ca, d uma boa medida dessa dessemelhana.Machado de Assis transitou num universo livresco que inclui o teatro deShakespeare, Racine e Molire, os trgicos gregos, a Bblia, a Divina Comdia, OsLusadas, os velhos clssicos portugueses que lhe incutiram o gosto da vernacu-lidade (alis temperada emsua obra por uma admirvel profuso de brasileiris-mos e at de africanismos), os contistas filosficos do sculo XVIII, Heine eMusset, Dostoivski e Renan e at Charles Nodier e Maupassant. Mas pormno nos esqueamos jamais de que esse mundo de leituras estaria incompletose nele no figurassem os grandes moralistas, como Montaigne, Pascal, LaBruyre e La Rochefoucould, os quais fortaleceram a sua viso pessoal de queo homem no flor que se cheire e o romancista que no se renda a essa evi-dncia palmar jamais ser literariamente bem-sucedido.Bebendo em tantas fontes, proclamando-as com um entusiasmo que s ve-zes frisava pela venerao ou escondendo-as nas dobras de sua fina prosa como mesmo cuidado com que ocultava a sua origem familiar, Machado de Assisrepresenta, entre ns, o exemplo mais fulgente de que a criao potica umasolitria aventura lingstica: um problema de linguagem. S a Literatura temo poder de mudar a Literatura. E a mesa de um escritor, com os seus livros epapis, e sua desarrumao afortunada, compara-se a um porto aberto a nave-gaes misteriosas e aparelhado para permitir ao viajante manifestar le blanc sou-ci de notre toile mallarmeano.A uma produo literria e potica assinalada pelo uso incompleto e atpredatrio dos meios, e disposio generosa do talento pessoal, Machado de21Tudos omi s tri osAssis ope a virtude de uma disciplina que favorea a utilizao fecunda da-quilo que umescritor ou poeta traz dentro de si, ou rouba dos outros, nas ope-raes espirituais que levamcada umde ns a descobrir a nossa gua nas fontesalheias. (Na verdade, no nos conformamos com a impertinncia daquelesque, antes de ns, ousaram apropriar-se de nossos pensamentos e sonharam osnossos sonhos.)Numa literatura sempre visitada pela exuberncia regional e pela pressogeogrfica que incita o criador a deter-se na expresso cosmtica, sonegan-do-lhe o caminho da anlise que, situada alm do pitoresco, o habilitaria aperquirir o corao humano e os mveis das condutas individuais e coletivas,Machado de Assis, no obstante o teor regional e at topogrfico de sua obra,que convida o pedestre a atravessar ruas e logradouros j desaparecidos, pro-pala a sua convico de que o instinto de nacionalidade no se resume paisagemexpansiva e aos procedimentos epidrmicos. Ele chega mesmo a invocar oexemplo de Shakespeare e Racine na sustentao da doutrina de que a afir-mao de uma nacionalidade pessoal e artstica prescinde dos condimentosregionais e geogrficos.Nesse sentido,a sua brasilidade evidente e attransbordante nas linhas e entrelinhas de sua obra escancaradamente carioca.Alis, o instinto da nacionalidade que palpita na criao e na teoria literriade Machado de Assis nos faz lembrar Jorge Lus Borges. um curioso casode antecesso, levando-nos concluso feliz de que tivemos o nosso Borgesem pleno sculo XIX e a identificar no autor de El Hacedor um Machado deAssis portenho e sensacionalista.Note-se a cpia de afinidades e coincidncias que caracterizam essas duasfiguras consulares da literatura: a predileo pelo fragmento, o cultivo magis-tral doconto, dafbulaedapardia; adigresso, adeslinearidadeeano-confiabilidade que conferem uma sinuosa seduo sua prosa; o ostensi-vo apelo ao papel da cultura e do aprendizado permanente na individualida-de intelectual; a obsesso pela poesia, sempre citada e praticada por ambos,embora eles tenham sido mais importantes como prosadores; a preocupaometafsica que os leva, ateus, a uma invocao continuada de Deus e dos deu-22LdoI voses; a sobriedade lingstica que lhes assegura as galas de terem modernizadoseus idiomas, expugindo-os de excrescncias e atavios; o antibarroquismo deambos, embora figurantes emritos de uma cena continental indelevelmentemarcada pela predominncia estilstica e existencial do Barroco; a afeio metfora e parbola, a autoridade intelectual que lhes propiciou conduzir odcil ou indcil rebanho literrio, o qual neles reverenciava a superioridade;e tantas outras qualidades... e defeitos.Assim, no de estranhar-se que, nos balces e estantes das livrarias deLondres e Paris, Amsterdam e Nova York, Berlim e Roma, um encaramujadoescritor brasileiro do sculo XIX e incio deste, e um tagarela escritor argenti-no do sculo XX apaream juntos, unidos por um certo ar de famlia ou cum-plicidade. Ambos representam a modernidade cultural da Amrica Latina. E,ainda, encarnam o nosso instinto e vocao de ocidentalidade.As tradues de Machado de Assis para as lnguas consagradoras, que, maisque lnguas, so verdadeiras portas planetrias para o prosador e o poeta vindosde longe desta Amrica tornada neste sculo a ptria e a mtria do romance ede outras paragens tambmobscuras e alternativas , possibilita a aferio crticade que a sua projeo de hoje decorre da antecipadora postura esttica. Ele foi,entre ns, umcaso separado, umexemplo lmpido de divergncia e natao con-tra a corrente. Todavia, esse insulamento se esgota na fronteira natal. Inquiridaemoutras terras e outros ares, a solido esttica de Machado de Assis se converteem comunho com outros solitrios insignes, como Nathaniel Hawthorne, oHerman Melville de Bartleby, Conrad e Henry James. Ajunta-os umar de famlia a famlia literria que operou a grande mudana ficcional de que resultou oaparecimento de Joyce e Proust, Virginia Woolf e Faulkner. Emtodos estes no-mes invocados, que so as culminaes de uma misteriosa e complexa revoluoartstica, o meandro substitui a linearidade romanesca, o pormenor se dilata, aspersonagens sibilinas e inacabadas desacreditam a unidade psicolgica dos tte-res convencionais; a reflexo interior e a emergncia do inconsciente danificamos muros que costumam separar figurantes e cenrios; o imaginrio permeia odocumental, realando os poderes da mentira e da patranha.23Tudos omi s tri osPor ltimo, impe-se que sublinhemos, de modo sobranceiro, a no-confia-bilidade do narrador, umdos processos capitais de Machado de Assis que tan-to o aproxima dos expedientes de narrao de Henry James. Pelo seu teor deambigidade, os romances e contos do nosso clssico atendem plenamente aorequisito de obra aberta que tanto seduz o leitor contemporneo e ajuda a ma-tar a fome e a engordar as apostilas dos pedagogos.Inserido emto prestigiosa comparsaria literria, Machado de Assis emergee eleva-se em sua verdadeira e legtima condio: a de um clssico da literaturaocidental. Um minor classic, como costumam asseverar, de um modo respeitosoe at reverente, os interlocutores com que mais de um de ns se ter defronta-do nas universidades estrangeiras e nos bulhentos encontros literrios trama-dos para dirimir ignorncias. De qualquer modo, um clssico. Eles, os interlo-cutores, nos interrogam: como um pas como o Brasil, marginal e perifrico,exuberante e bagunado, estridente e tropical, pde produzir esse dissimuladoe irnico Machado de Assis que, sendo um mulato e, alm de mulato, gago,epiltico e de baixssima extrao social , parece um ingls?Cabe-nos responder com as palavras do prprio autor de Memrias Pstumasde Brs Cubas: Tudo so mistrios.24LdoI voMachado: atual,imortal e eternoMuri loMeloFi lhoPor um homem chamado Joaquim Maria Machado de Assis,bem cedo comeou a minha vida. Lembro-me bem dos meustempos de infncia, l em Natal, quando, certo dia, ouvi do meuprofessor de portugus a seguinte opinio: Meu filho, se voc pretende algum dia ser um jornalista ou umescritor, aceite desde j um conselho meu: leia e releia Machado deAssis.Na Biblioteca Municipal da minha cidade, eu tinha o direito deretirar um livro de cada vez, assinar um recibo e assumir o compro-misso de devolv-lo em sete dias, num inteligente sistema de rod-zio, que me permitiu ler e reler todos os nove romances de Macha-do, l existentes: Ressurreio, A Mo e a Luva, Helena, Iai Garcia, Me-mrias Pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esa e Jace Memorial de Aires.25Ocupante daCadeira 20na AcademiaBrasileira deLetras.Pros a

Provocante indagaomedida que eu ia me aprofundando na obra e na vida machadianas, comaleitura dos seus romances, me acudia uma instigante indagao: como queuma pessoa de origem to humilde, bisneto de escravos, filho de FranciscoJos, um operrio mulato pintor de paredes, e de Maria Leopoldina, uma lava-deira negra e neta de escravos, criado no Morro do Livramento, bairro daGamboa, atrs do tnel da Central do Brasil, coroinha na igreja da Lampadosae ajudante dos servios litrgicos, rfo de me muito cedo, sem dinheiro parapagar os estudos ou para comprar um par de sapatos, aprendiz de tipgrafo naImprensa Nacional, modesto funcionrio da Secretaria de Agricultura e doMinistrio da Viao, mestio, gago, epilptico e feio, introspectivo, doente,franzino e calado, como que uma pessoa em condies to adversas, repito,conseguiu ser ao mesmo tempo um poeta, um contista, um crtico, um cronis-ta, um tradutor, um teatrlogo, um jornalista, mas sobretudo um maravilhosoromancista e o maior escritor brasileiro de todos os tempos? E que foi tambmum dos fundadores e o primeiro presidente, durante dez anos, da AcademiaBrasileira de Letras?J agora, outra pergunta me ocorre: numa poca emque no existia a mquinadatilogrfica, nemo computador, como que Machado teve tempo para manus-crever tantas dezenas de livros cada um melhor do que o outro , comp-losletra por letra e imprimi-los em precrias mquinas de tipografia? Se hoje emdia, dispondo dos mais modernos recursos de diagramao e de computao,j nos bem difcil a tarefa de escritor, imagine-se ento como elas eram dif-ceis naquele tempo, h mais de 100 anos. Existem, atualmente, uma explicaoe uma interpretao no muito aceitas para o fenmeno: as de que, antes de serum inigualvel escritor, era tambm um competente tipgrafo...Pouco se sabe hoje de sua infncia, dos seus amiguinhos, dos seus brinque-dos e at mesmo do verdadeiro endereo do seu nascimento, que alguns bi-grafos localizam na fazenda do Cnego Felipe, perto dapraia de So Crist-vo, qual Machado voltaria, anos depois, em visitas saudosistas.26Muri loMeloFi lhoAos seis anos de idade, perdeu a nica irm, Maria, de quatro anos, e perdeutambm a madrinha Maria Jos, ambas vtimas da epidemia de sarampo.No tinha ainda dez anos de idade quando morreu sua me, Maria Leopol-dina, tuberculosa, substituda nos afazeres domsticos pela madrasta, MariaIns, uma doceira, tambm mulata.Como coroinha da igreja e sacristo das missas, familiarizou-se com o la-tim, que seria to importante nas suas leituras posteriores com o francs, le-cionado por um padeiro vizinho, alm do alemo e do grego, que aprenderiadepois.Tinha apenas doze anos de idade e j vendia balas e doces fabricados porsua madrasta. Lampies iluminavam suas noites, para que ele devorasse todosos livros ao seu alcance, cedidos por amigos do seu pai ou tomados de emprs-timo nas bibliotecas pblicas.Rondando as livrarias de ento, confessaria depois que tinha muita invejaao ver clientes com dinheiro para comprar livros de suas preferncias.Tinha apenas 15 anos quando publicou seu primeiro poema na revistaMarmota Fluminense, de Francisco de Paula Brito, irmo de Carolina, sua futu-ra mulher.

O primeiro empregoJ ento, era um fascinado pelos romances O Guarani, Iracema, As Minas dePrata, Ubirajara, A Pata da Gazela, O Tronco do Ip e Lucola, de Jos de Alencar, quecitava sempre e que terminou escolhendo em 1897, quando a ABL foi funda-da, para patrono de sua Cadeira 23.Foi imensa a influncia da tcnica ficcionista de Alencar sobre a primeirafase, romntica, da obra de Machado, que vai at 1880, quando ele encerra oseu romantismo e, com Memrias Pstumas de Brs Cubas servindo como divisorde guas, comea a etapa do seu naturalismo realista. E se explica quando,numa crnica, diz que mamou leite romntico e pode meter o dente no bifenaturalista.27Machado: atual, i mortaleeternoColaborou depois, seguidamente, nas revistas O Espelho, A Semana Ilustrada,O Cruzeiro, A Estao, O Futuro, Revista Brasileira e nos jornais Correio Mercantil, OGlobo, Jornal das Famlias e Dirio do Rio de Janeiro.Seu primeiro emprego, na Tipografia Nacional, lhe rendia uma pataca di-ria, com a qual se alimentava.Passou em seguida a trabalhar como tipgrafo na Imprensa Nacional, cujodiretor era Manuel Antnio de Almeida, que ento estava publicando em fo-lhetins o seu Memrias de um Sargento de Milcias. Maneco, certo dia, recebeu umaqueixa contra Machado, que estaria relaxando muito nas suas tarefas, semprecom um livro nas mos e lendo-o.Chamou-o sua presena, fingiu que o recriminava na frente de outros fun-cionrios, mas, quando eles saram, abraou o jovem e muito o estimulou aprosseguir nas suas leituras, mesmo durante o expediente.Nasceu a um grande carinho entre os dois, que levou Machado, anos de-pois, quando a ABL se fundou, a indicar o nome de Manuel Antnio de Almei-da, ento morto, para patrono da Cadeira 28.Tinha 24 anos e j revelava o seu esprito associativo, juntando-se a intelec-tuais contemporneos, como Arajo Porto-Alegre, Gonalves Dias, Lcio deMendona, Joaquim Manuel de Macedo, Gonalves de Magalhes, TavaresBastos, Francisco Otaviano, Quintino Bocaiva, Evaristo da Veiga, Raimun-do Correia e participando de tertlias literrias na Patolgica, de Paula Brito, eno Clube Literrio Fluminense. Tinha a duas distraes: a msica erudita e ojogo de xadrez.Machado j estava tambm atrado por duas fascinaes: a primeira era a davida teatral, da qual foi umcrtico participante, umautor destacado, e, durantealgum tempo, f de artistas bonitas e famosas; a segunda era a de uma jovemportuguesa dos Aores, chamada Carolina Augusta, coma qual se casou no dia12 de novembro de 1869. Tinha trinta anos, e sua futura mulher, 34, a qual,para casar-se com ele, enfrentou uma tenaz resistncia de sua famlia lusitana,um tanto racista. Ela seria uma grande companheira, participante e revisora deseus textos.28Muri loMeloFi lhoForam felizes desde o comeo, quando Carolina, durante uma viagem a Pe-trpolis, assistiu, surpresa e perplexa, ao primeiro ataque epilptico do marido.Desde ento, aprendeu um macete: passou a ter sempre uma borracha mo euma soluo lquida para que, nas suas crises, o marido no mordesse os lbiosou a lngua.Ainda hoje, de Machado no se conhece uma s manifestao de incon-formismo ou de revolta contra a doena que o atormentou sempre. Acei-tou-a como uma fatalidade do destino, sujeitando-se a, pacificamente, con-viver com ela.

A sade afetadaAintensa atividade literria e as muitas responsabilidades como chefe de se-o da Secretaria de Agricultura comeam a afetar-lhe a sade, com a reinci-dncia da epilepsia e o enfraquecimento de sua viso, que o levam s suas pri-meiras frias, gozadas na cidade serrana de Nova Friburgo.A comeam a alterar-se os seus sonhos de autor potico que, em quatro ro-mances, completara o seu ciclo positivo e o seu vis romntico, substitudospor um enfoque de realismo pessimista.Tinha 42 anos de idade quando terminou de ditar para Carolina o seu Me-mrias Pstumas de Brs Cubas, uma denncia contra a ordem social de ento,atravs do negro Prudncio. A explodiu todo o seu talento de ficcionista,meio desiludido da vida, com ironia cptica um pouco no molde e no estilobritnicos , perplexo em face da presena e da destinao do homem, introdu-zindo a excitante de captulos breves, ao lado de uma inteligente tessitura dosseus atores e protagonistas. Revelou-se a um captador das fraquezas humanase um senhor do vernculo, no pleno domnio dos seus muitos segredos.Confessou, ento: Com os anos, adquiri a firmeza e busquei a perfeio.No detestei nem idolatrei o passado. Sempre vi no estudo o mais rigorosodos mestres e no trabalho o mais exigente dos mtodos. Aconselho os jovens aaplicarem seu talento num estudo continuado e severo, sendo ao mesmo tem-29Machado: atual, i mortaleeternopo o mais austero crtico de si mesmos. O melhor meio de progredir andarpara frente. Os novos senes evitam-se com a perseverana e o trabalho.J era a um romancista consagrado, que o velho amigo Quintino Bocaivaprocurava, debalde, conquistar para a campanha republicana. Embora tendonela companheiros leais, como Rui, Pardal Mallet e Salvador de Mendona,Machado nunca se fascinara pelos assuntos polticos.Seus vencimentos como chefe de seo na Secretaria de Agricultura e ospequenos cachs de suas colaboraes em revistas e jornais, acrescidos dosdireitos autorais de seus livros, contratados com a Livraria Garnier, e alia-dos vida discreta e econmica que levava na companhia apenas de sua mu-lher, lhe possibilitaram uma transferncia de moradia: passou a residir numsobrado da Rua Cosme Velho, n.o18, bairro das Laranjeiras, onde viveriaat o resto dos seus anos numa vida reclusa e quase monstica, que lhe vale-ria o ttulo de bruxo.Sem ser um radical, no escondia sua simpatia pela causa abolicionista, atmesmo por uma questo de solidariedade comseus irmos de cor, quando, porexemplo, nas Memrias Pstumas, desnuda o personagem encarnado pelo Sr. Co-trim, um desalmado contrabandista de escravos.E numa crnica para a Gazeta de Notcias, assim saudou a Abolio da Escra-vatura, no dia 13 de maio de 1888: Era um domingo de sol quente e abrasa-dor. Todos samos rua. Eu tambm sa, eu, o mais encolhido dos caramujos,entrei no prstito, em carruagem aberta, e todos ns, em delrio, respirvamosfelicidade.Polticos republicanos chegaram a denunci-lo como monarquista, inimigoda nova ordem reinante. Rui e Lcio de Mendona saram em sua defesa, ma-nifestando uma enorme revolta contra esse patrulhamento poltico, que tenta-va atingir um dos maiores escritores brasileiros. Machado manteve-se sempredistante e indiferente ao radicalismo dessa paixo. Estava a inteiramente dedi-cado sua carreira literria e produo da sua obra.30Muri loMeloFi lho

Fundao da ABLJ tinha, ento, de dedicar-se tambm fundao de um novo rgo liter-rio, desta vez importante e definitivo, a julgar pelos nomes que, em torno dele,estavam envolvidos no projeto: Lcio de Mendona, Medeiros e Albuquer-que, Ingls de Sousa, Rodrigo Octavio, Joaquim Nabuco, Jos do Patrocnio,Domcio da Gama, Carlos de Laet, Afonso Celso, Olavo Bilac, Araripe Jnior,Clvis Bevilqua, Jos Verssimo, Alberto de Oiveira, Coelho Neto, AlusioAzevedo, Oliveira Lima, Graa Aranha e Silva Ramos.Fundava-se, idealizada por Lcio de Mendona, a Academia Brasileira deLetras, com Machado aclamado no dia 15 de dezembro de 1896 para presidira sua primeira reunio preparatria, realizada no escritrio de advocacia deRodrigo Octavio, na Rua da Quitanda n.o47, e que se instalaria solenemente a20 de julho do ano seguinte.Adotou-se a o modelo da Academia Francesa, fundada dois sculos antes,pelo Cardeal Richelieu, com o nmero limitado de quarenta membros. O pri-meiro problema que surgiu foi o da escolha dos quarenta patronos. A fim deevitar queixas e rivalidades, escolheram-se nomes de intelectuais j mortos e al-guns, moos, tinham morrido com bem poucos anos de vida: lvares de Aze-vedo e Casimiro de Abreu, com 21 anos; Junqueira Freire, com 23; CastroAlves, com apenas 24; Adelino Fontoura, 25; Pardal Mallet e Manuel Ant-nio de Almeida, 30; Tefilo Dias e Raul Pompia, 32; Martins Pena, 33; Fa-gundes Varela,34; Tavares Bastos,35; Laurindo Rabelo,38 e GonalvesDias, com 41 anos, quase todos vtimas da tuberculose, uma doena fatal, so-bretudo para os romnticos, numa poca emque ainda no havia antibiticos.Era a prpria mocidade paraninfando a imortalidade. E era tambm umaAcademia que nascia jovem. Quando a instalou, o seu primeiro presidente,Machado de Assis, que hoje nos parece um ancio, tinha 58 anos de idade.A segunda questo surgida foi a da ordem e numerao das cadeiras. Ado-tou-se ento a soluo alfabtica: a Cadeira 1 tinha como Patrono AdelinoFontoura, e a Cadeira 40 o Visconde de Rio Branco.31Machado: atual, i mortaleeterno

A sede prpriaO terceiro problema, que levaria mais tempo para ser solucionado, era o dasede prpria, que no comeo simplesmente no existia.A sesso inaugural, no dia 20 de julho de 1897, foi realizada numa sala doPedagogium, na Rua do Passeio. Machado, em seu discurso inaugural, sintetica-mente, como sempre o fazia, definiu o objetivo da nova Academia com estafrase quase bblica: Conservar, no meio da federao poltica, a unidade lite-rria, como guardi das mais sagradas relquias da inteligncia e da sabedoria.Empossou-se a primeira diretoria, tendo Machado como presidente; Joa-quim Nabuco, secretrio-geral; Rodrigo Octavio, 1.osecretrio; Silva Ramos,2.osecretrio e Ingls de Sousa, tesoureiro.Aprovaram-se o Regimento e os Estatutos, assinados por eles cinco, comclusulas ptreas at hoje.A Academia era, ento, muito pobre e andou peregrinando por vrias sedes:o escritrio da advocacia de Rodrigo Octavio, a Revista Brasileira, o Ginsio Na-cional, os sales nobres do ministrio da Justia e do Liceu Literrio.Por uma deciso, em1904, do Ministro do Interior, Jos JoaquimSeabra, aABL foi alojada na ala esquerda do novo edifcio do Silogeu Brasileiro, situadoentre a Rua da Lapa e o Passeio Pblico.Machado ainda era o seu presidente, e o foi at 1908, muito lutando paramobiliar a nova sede. Durante todo esse tempo, com moderao e sensatez, pre-sidiu a Academia, fazendo com que coabitassem e coexistissem pacificamenteacadmicos monarquistas e republicanos. Semautoritarismo ou imposies, im-pediu choques e atritos, muito comuns numa associao de intelectuais.A no Silogeu, a ABL permaneceu at 1923, quando j haviamterminado ascomemoraes do Centenrio da Independncia. A Frana, para nelas estarpresente, tinha construdo um bonito pavilho, o Petit Trianon, concebidopor Gabriel, o grande arquiteto francs, numa rplica clssica do Palcio deVersalhes, a residncia de Maria Antonieta.32Muri loMeloFi lhoOs franceses no podiam evidentemente lev-lo de volta para a Frana. Oprimeiro-ministro Raymond Poincar o doou ao governo brasileiro, e este,por sua vez, o transferiu Academia Brasileira de Letras, que nele est at hoje,sem nenhuma alterao no projeto original.

Um pintor de almasDiz o professor baiano Gildsio Tavares que Machado foi umescrutinadorde almas, no qual o exterior s interessa quando confrontado com o interior,comuma dialtica que pretende iluminar a sombra de dentro e a luz de fora:Foi tambmumpintor de almas e no de corpos, muito almdo romantis-mo e do realismo naturalista, mais para a densidade psicolgica de um HenryJames do que para a paixo glandular de umZola. Manipulou todo umarsenalretrico, em que se destacavam o florete da ironia e o chicote da stira.Cometeu o pecado, imperdovel no Brasil, da sobriedade, da classe, do re-quinte e da discreta elegncia. Podia dar-se ao luxo de ser o que quisesse, poispossua o mais frtil talento literrio.Dir-se-ia at que ele era a introspeco empessoa, vivendo mais para dentrode si mesmo do que para as coisas externas da vida.Muitas passagens da vida de Machado so, ainda hoje, um denso mistrio:qual era o nome do padeiro vizinho que lhe ensinou francs, para que ele pu-desse, no original, traduzir Victor Hugo e ler Stendhal, Mallarm, Balzac,Chateaubriand e Dumas? Com quem aprendeu ingls, para ter acesso a Sha-kespeare, Poe, Dickens e Joyce? Com quem, aos 43 anos de idade, comeou aestudar alemo, para compreender Nietzsche, Heine e Goethe?Foi umfilsofo, algo pessimista e cptico, umtanto agnstico, umdialticomaterialista, embora tenha chegado a escrever o poema F.Na cultura lusitana, tinha particular admirao por Cames, Camilo e Gar-ret, fazendo srias restries a Ea.33Machado: atual, i mortaleeterno

Duas histriasSobre Machado, o nosso Josu Montello narra duas histrias maravilhosas:Um amigo seu havia sido agraciado pelo Imperador Pedro II com o ttu-lo de baro. Machado estava dando a notcia a Ferreira de Arajo, mas,gago, atrapalhava-se no polisslabo: Baro de Panapi... Paranapi... Paranapi...Ferreira de Arajo, impaciente, interrompeu-o: Acaba, homem.E Machado, sorrindo: isto mesmo... acaba ... Paranapiacaba. Baro de Paranapiacaba.Noutra vez, durante o carnaval, Machado estava na Livraria Garnier e se viuassediado por um folio mascarado de domin: O senhor conhece-me?E Machado: Conheo, conheo, o portugus Rafael Bordalo Pinheiro. Estou co-nhecendo pelo sotaque e pela colocao do pronome.

Choque com Slvio RomeroNo mesmo ano de 1897, em que foi eleito para a presidncia da Acade-mia, Machado teve um grave aborrecimento com os violentos ataques de Sl-vio Romero, justamente o fundador e o primeiro ocupante da Cadeira 17,que lanou umlivro como ttulo de Slvio Romero contra Machado de Assis, de 350pginas.Romero tenta destruir Machado como poeta, dizendo que a sua poesiade nada vale. E crudelssimo ao afirmar que o mal da gagueira de Ma-chado se transmitiu a todos os seus escritos, especialmente poesia, acres-34Muri loMeloFi lhocentando que a sua ndole era inteiramente contrria poesia verdadeira:No era um lrico, nem um pico, sem a fora das emoes e das paixes,requisitos bsicos de um poeta, faltando-lhe imaginao e sobrando-lhedesamor pela paisagem.Machado no se revolta nemtemuma s palavra de indignao contra o seuacusador. Apenas reage em cartas a vrios amigos, lamentando a injustia quecontra ele se praticava e reconhecendo modestamente que essa injustia tinha ocondo de ensinar-lhe a ser humilde.Uma dessas cartas endereada a Magalhes de Azeredo, na qual ele diz oseguinte: Pessoas que me merecem f informam-me que o senhor doutor Sl-vio Romero me espanca.

Uma obra globalA obra machadiana abrangeu todos os gneros literrios.Foi o crtico de Crtica, Crtica literria e Crtica teatral.Foi o contista deContos Fluminenses,Contos Esparsos,Contos Avulsos, ContosEsquecidos, Contos Recolhidos, Contos sem Data, Histrias da Meia-noite, Histrias sem Data,Vrias Histrias, Papis Avulsos, Pginas Escolhidas, Pginas Recolhidas, Dirio e Reflexesde um Relojoeiro e Relquias de Casa Velha.Foi o teatrlogo de Desencantos, Tu, S Tu, Puro Amor, Quase Ministro, O Cami-nho da Porta, Deus de Casaca, O Protocolo e Teatro Completo.Foi o cronista de Crnicas (quatro volumes), Crnicas de Llio e Bons Dias.Foi tradutor do romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, e da peateatral Queda que as Mulheres Tm pelos Tolos.Foi o romancista de Ressurreio, A Mo e a Luva, Helena, Iai Garcia,Memrias Pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esa e Jace Memorial de Aires.35Machado: atual, i mortaleeternoFoi o poeta romntico de Crislidas e Falenas, no modelo de lvares de Aze-vedo, Gonalves de Magalhes e Castro Alves. Foi o indianista de Americanas, moda de Gonalves Dias e Jos de Alencar. E foi o parnasiano de Ocidentais, nomolde de Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, com um totalde 278 poemas e de 21 mil versos.Costuma-se afirmar, com certa leviandade, que geralmente um grande pro-sador nunca um bom poeta. No foi este evidentemente o caso de Machado,um polgrafo e um homem de letras na sua globalidade: cronista, crtico, ro-mancista, tradutor, jornalista, teatrlogo, ensasta e poeta. Nele, humana-mente impossvel diferenar e dissociar um do outro.Embora reconhecendo a existncia de umpreconceito contra o poeta que sededica fico e ao mesmo tempo contra o ficcionista voltado para a poesia,Mario Chamie sustenta que umgnio da palavra, como Machado de Assis, nosensina que a literatura de um autor uma unidade escrita e unida. No se podever nele o cronista longe do romancista; o crtico distanciado do ensasta; e opoeta separado do teatrlogo.Lcia Miguel Pereira diz que, como ningum, Machado se prestou a ser es-tereotipado. Ficou conhecido como o homem da porta da Garnier, conver-sador sbrio e malicioso, hbil em pequenas frases-frmula, logo recolhidascom sorrisos cheios de finura por ouvintes obrigatoriamente boquiabertos; fi-cou sendo o homem da Academia de Letras, formalista, conservador, queprocurou oficializar a literatura e transport-la dos cafs para os sales fecha-dos; ficou sendo o humorista sutil, mulo indgena dos mestres ingleses,para gudio dos nacionalistas com pruridos literrios; ficou sendo o burocra-ta perfeito, aferrado aos regulamentos, s horas certas; o marido ideal, obom burgus caseiro e indulgente; o absentesta, que jamais quis se preocu-par compoltica e que, semmaior interesse, acompanhou as batalhas da Aboli-o e da Repblica.36Muri loMeloFi lho

Dom CasmurroDois anos depois da fundao da ABL, em 1899, j no fim do sculo XIX,Machado lana Pginas Recolhidas, onde rene ensaios, contos e peas teatrais, epublica tambm Dom Casmurro, que seria o seu stimo romance, emblemtico ede maior sucesso popular, escrito em pouco mais de duas mil palavras, com asquais produziu um verdadeiro clssico.Nele, alm de analisar psicologicamente o adultrio em conotaes metaf-sicas, ele construiu uma grande indagao e um indevassvel enigma, que sub-sistem ainda agora, um sculo depois de sua publicao: Capitu, com aquelesolhos de ressaca, traiu ou no traiu Bentinho? Capitu, abreviativo de Capitoli-na, iludiu ou no iludiu o seu marido?Julgamentos e jris simulados, em Nova York e em So Paulo, com juiz,advogados, promotores e jurados tm trazido a herona machadiana ao bancodos rus. E l do seu tmulo o autor deve estar sorrindo com sua fleuma, mor-daz e irnica, diante da esfinge e do segredo que deixou e que at hoje esto apara ser decifrados e descobertos.Desconfia-se inclusive que Machado idealizou mesmo esse misteriosodesfecho para o seu romance, quando deixa claro que o filho de Capitu naverdade uma cpia perfeita (ou um clone?) de Escobar, o colega seminaristade Bentinho.

Morte de CarolinaNovamente, ele vai a Friburgo numa das poucas viagens que faz para forado Rio em busca de melhores ares e condies de sade, no mais para si esim para Carolina, com a qual viveu harmoniosamente durante 34 anos. Notiveram filhos, mas nutriram uma imensa e recproca paixo. Na intimidade,chamavam-se de Quincas e de Cora. Ela era quatro anos mais velha doque ele: uma aoriana dedicada e atenta, no muito bonita, mas simptica, cati-vante e culta, uma desvelada enfermeira, com acentuado sotaque lusitano, quelevou Machado a escrever-lhe cartas intensamente amorosas, guardadas em ri-37Machado: atual, i mortaleeternogoroso sigilo at a sua morte, e que s depois dela foram queimadas. Consa-grou-a tambm num poema cheio de graa e de beleza:Quando ela falaQuando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emudeceQuando ela fala.Meu corao doloridoAs suas mgoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.Pudesse eu eternamente,Ao lado dela, escut-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.Minhalma, j semimorta,Conseguira ao cu al-la,Porque o cu abre uma portaQuando ela fala.Carolina chegou a ler Esa e Jac, seu oitavo romance, mas viria a falecerno dia 20 de outubro de 1904. Tinha 69 anos de idade e h 35 estava ca-sada com Machado, que lhe dedica o mais bonito e o mais conhecido dosseus sonetos:38Muri loMeloFi lhoA CarolinaQuerida, ao p do leito derradeiroEm que descansas dessa longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,Trazer-te o corao do companheiro.Pulsa-lhe aquele afeto derradeiroQue, a despeito de toda a humana lida,Fez a nossa existncia apetecidaE num recanto ps um mundo inteiro.Trago-te flores restos arrancadosDa terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos deixa e separados.Que eu, se tenho nos olhos malferidosPensamentos de vida formulados,So pensamentos idos e vividos.Aps a morte de Carolina, Machado comea tambm a morrer, porque noseu lar ele foi muito querido e muito amado. Do contrrio, dificilmente teriapaz e tranqilidade para produzir uma obra to maravilhosa.Ainda chegou a escrever mais dois livros: um, em 1906, Relquias de Casa Ve-lha, com crticas, ensaios e peas de teatro; e outro, em 1908, Memorial de Aires,com recordaes de sua mulher e da felicidade com ela.

A Santssima TrindadeJuntamente comRui Barbosa e JoaquimNabuco, JoaquimMaria Machadode Assis comps o trio que Graa Aranha chamou de a Santssima Trindadeda inteligncia brasileira.39Machado: atual, i mortaleeternoEles trs viveramda palavra e para a palavra, como autnticos esgrimistas dovernculo, exmios maestros e regentes no emprego dos termos exatos e preci-sos do nosso idioma.Eram trs fascinados pela palavra, que esbanjaram como mgicos: os doisprimeiros Rui e Nabuco na tribuna do Senado, nas misses diplomticas,nos comcios, conferncias, entrevistas, debates, na campanha da Abolio, naEmbaixada em Washington e na Conferncia de Haia, extrovertidos e elegan-tes, falando e pregando sempre, com seus estilos rebuscados e contundentes; eo terceiro Machado introvertido e recluso, no seu refgio, como o bruxodo Cosme Velho, escrevendo e redigindo sem cessar, com um texto enxuto eperfeito, nos romances, crnicas, crticas, contos, ensaios, nas peas teatrais enos poemas.

Os sintomas fataisOs sintomas da doena que o mataria comearam a manifestar-se em junhode 1908, trs meses antes de sua morte. Licenciou-se do emprego pblico, dei-xou de escrever e viu sua casa transformar-se numa verdadeira Meca de ami-gos, confrades e admiradores.Um dos ltimos textos que escreveu foi o de uma dedicatria no Memorial deAires para o seu confrade e amigo Lcio de Mendona, j cego, recebendo deleo seguinte agradecimento: Deixe que lhe beije as mos criadoras. Este seu sero primeiro livro que vou ler com os olhos de outrem.Aps despedir-se dele e dar-lhe umcomovido abrao, o Baro do Rio Bran-co passou por uma pia no corredor e lavou as mos. Machado ainda pode ou-vir uma voz que pedia: Tragam aqui uma toalha bem limpa para o Baro.Na vspera de sua morte, um jovem de 18 anos, sem ser percebido, embara-fustou-se pela sua casa, chegou at a sua cama, ajoelhou-se diante dele, beijan-do-lhe as mos e retirando-se em seguida, sem ser identificado. S anos maistarde foi reconhecido: tratava-se de Astrojildo Pereira, o fundador do Partido40Muri loMeloFi lhoComunista Brasileiro e um grande analista da obra de Machado, que sobre eleescreveria:Embora no tenha sido propriamente um nacionalista, a temtica deMachado intrinsecamente nacional, porque aborda os usos e costumes desua cidade, de sua regio, de seu Estado, de seu tempo, de seu Pas e de seupovo. Encaramujado, solitrio e pessimista, foi o mais brasileiro de todos osnossos escritores.

Enfim, a morteJoaquim Maria Machado de Assis morreu no dia 29 de setembro de 1908,cujo centenrio foi este ano homenageado. Ocorpo saiu do Silogeu Brasileiro,ento sede da Academia, carregado pelos Acadmicos Graa Aranha, OlavoBilac, Euclides da Cunha, Afonso Celso, Rodrigo Octavio, Raimundo Correiae Coelho Neto.Rui, em nome da ABL, pronuncia, beira do caixo, o discurso de despedi-da, que ficou famoso como o Adeus a Machado de Assis:Chegou a hora do grande adeus, que no se pronuncia semter o coraopesado da dor mais funda e sem remdio.Mestre e companheiro. Disse eu que nos amos despedir. Mas dissemal. Porque a morte no extingue, transforma; no aniquila, renova; nodivorcia, aproxima. Para os eleitos do mundo das idias, a misria est nadecadncia e no na morte. A nobreza de uma nos preserva das runas daoutra.O que venho louvar-te no o clssico da lngua; no o mestre da frase;no o rbitro das letras; no o filsofo do romance; no o mgico doconto; no o joalheiro do verso, mas sim o que soube ser intensamente daarte, sem deixar de ser bom.41Machado: atual, i mortaleeternoMachado deixou-nos uma lio e um exemplo de vida, construda com es-foro prprio, que sobreviveu s desvantagens da sua cor e da sua origem, pro-vando que elas podem ser vencidas pela cultura. E legou-nos uma herana delivros que hoje so, cada vez mais, atuais, imortais e eternos.42Muri loMeloFi lhoUns braos:nenhum abraoI vanJ unquei raJ se disse e no sem alguma razo, embora dela eu no partilhe que Machado de Assis foi maior contista do que romancista. Eaqui esclareo logo que no foi este o motivo que me levou a escolher oclebre conto Uns braos como tema deste breve estudo de interpre-tao crtica. A razo bem outra, ou seja, a de tentar aqui avaliar emque medida a trama ficcional de alguns dos contos do autor antecipa ouse desenvolve paralelamente dos romances que escreveu. Posto isso,decidi aventurar-me anlise desse conto exemplar que se intitula Unsbraos, cujo tema, alis, aflora ainda em outra pgina machadiana an-tolgica desse difcil e traioeiro gnero literrio: Missa do galo. Eno s nesses contos nos fala de uns braos o bruxo do Cosme Velho,pois vamos reencontrar o mesmo tema nas Memrias Pstumas de BrsCubas, onde aparece como aluso apenas discreta, emQuincas Borba, onderessurge mais claro e mais cantante, e com mais nfase ainda em DomCasmurro, onde merece do mestre um captulo inteiro em que Bentinhonos fala dos braos de Capitu. L-se ali:43Ocupante daCadeira 37na AcademiaBrasileira deLetras.Pros aEram belos, e na primeira noite em que os levou nus a um baile, no creioque os houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram ento demenina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mrmore,donde vieram, ou nas mos do divino escultor. Eramos mais belos da noite,a ponto de me encherem de desvanecimento. Conversava mal com as outraspessoas s para v-los, por mais que eles se entrelaassem aos das casacasalheias. J no foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homensno se furtavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que ro-avam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido.H em Machado de Assis algo que j se chamou de reticncia, de vagueza,de vaivm de um esprito sempre beira da dvida e da insatisfao. Da a du-plicidade comportamental, ou mesmo a polissemia psicolgica, de suas perso-nagens. E da, tambm, seus mecanismos de recalque sexual, tal qual os vemosem Rubio, em Sofia, em Virglia, em Brs Cubas e, sobretudo, naquela Florade Esa e Jac, que hesita entre os namorados gmeos e no escolhe nenhum dosdois. Flora hesita como o prprio pensamento de Machado de Assis e, comoobserva Augusto Meyer emseu astucioso Machado de Assis (1958), sua razo deser a dvida que vem de uma neutralizao por excesso de clarividncia.Flora encarna, como j se disse, o mito da hesitao e, para ela, a plenitudevive num centro ideal como fantasma inatingvel. E esse mito reaparece emcontos como Trio em l menor, Dona Benedita, Um homem clebreMissa do galo e, particularmente, Uns braos, ou seja, os da severa e amb-gua D. Severina. curioso observar nesse passo que, embora a verdadeira sensualidade ma-chadiana seja a das idias, h no escritor um sensualismo to profundo e enrai-zado que chega mesmo a atingir, quase sempre atravs do recalque, as raias damorbidez. V-se isso, por exemplo, no captulo 144 de Quincas Barba, onde Pa-lha esquadrinha a perna machucada de Sofia para avaliar os danos que lhe cau-sara uma pequena queda. V-se o mesmo, tambm, nos captulos O pentea-do, A mo de Sancha e o j citado Os braos, de Dom Casmurro. E outra44I vanJ unquei ravez em Quincas Borba, onde se l, a propsito de Sofia, que seus braos nus,cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se s espduas e aos seios, toacostumados ao gs de salo. Pode-se dizer que a sensualidade machadianaobedece s leis de um rio profundo e insondvel que parece muito manso, masque carrega em suas guas segredos de correnteza e caprichos de longo e aci-dentado curso. H mesmo, nesses poucos trechos a que recorri e eles somuitssimos , uma certa obsesso tctil e visual matizada de inequvoco feti-chismo, como o caso dessa voluptuosa aluso aos braos.E prova disso so os contos Missa do galo e Uns braos, que cristali-zam a finssima essncia da arte machadiana. Observe-se que, no primeiro de-les, D. Conceio desvela apenas umtmido trecho de seus braos, amostra su-ficiente, contudo, para que paream mais nus do que a inteira nudez. Pelo me-nos assim os viu o Sr. Nogueira enquanto esperava pela missa do galo, entreti-do na leitura de Os Trs Mosqueteiros. Viu-os com to cpidos olhos que chegoua observar de si para si: No estando abotoadas as mangas, caram natural-mente, e eu vi-lhe metade dos braos, muito claros, e menos magros do que sepoderia supor. E logo adiante, mais detalhstico ainda: As veias eram toazuis que, apesar da pouca claridade, podia cont-las de meu lugar. A presenadeConceioespertara-meaindamaisqueolivro.Naverdade, convmacrescentar, espertara-o a tal ponto que foi capaz de dizer consigo mesmo que,embora magra, tinha ela no sei que balano no andar, como quem lhe custalevar o corpo, ou seja, como quem custa levar o desejo que lhe pulsa na carne,ou como assim o imaginou que fosse o Nogueira. Mas aqui, como de resto emUns braos, no se registra um nico abrao, pois ambos os contos perten-cem quela j lembrada vertente da hesitao, essa hesitao que, como j dis-semos, ir culminar em Esa e Jac, onde Flora, personagem que pode ser enten-dida como o prprio pensamento de Machado de Assis, uma virgem estrilque, como sublinha Augusto Meyer, renuncia escolha e no aceita o sacrif-cio indispensvel renovao da vida.Pois bem. Tanto a vertente da hesitao quanto a dos desejos recalcados es-to exemplarmente mostra em Uns braos. E vale aqui, ainda uma vez, re-45Uns braos : nenhumabraocordar a percuciente anlise que esse mesmo Augusto Meyer nos oferece sobreo papel da mulher na fico machadiana. Diz ele:Em quase todos os seus tipos femininos, o momento culminante em que apersonalidade se revela o da transformao da mulher em fmea, quandovem tona o animal astuto e lascivo, em plena posse da tcnica de seduzir.A dissimulao em todas elas um encanto a mais. Ameaa velada, surdinado instinto, sob as sedas, as rendas e as atitudes ajustadas ao figurino social,sentimos que profunda a sombra do sexo.Uma sombra, diramos ns, que s vezes se esbate e se esvai em decorrnciada indeciso moral, como acontece em Uns braos, esses braos que levamIncio ao xtase, pois jamais ps ele os olhos nos braos de D. Severina queno se esquecesse de si e de tudo.Bem se v que Incio no assume de todo a responsabilidade de sua cupideze, com a ajuda do narrador, transfere parte da culpa por esse fascnio fetichista prpria dona daqueles braos to desnudos e lascivos. Assim que se lquando o tormento toma conta de sua conscincia:Tambm a culpa era antes de D. Severina em traz-los assim nus, constan-temente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmoabaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braos mostra. Na verda-de eram belos e cheios, em harmonia com a dona que era antes grossa quefina, e no perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas justo expli-car que ela no os trazia assim por faceira, seno porque j gastara todos osvestidos de mangas compridas.E por que, ora essa, no comprara outros? pergunto-me aqui diante dessaesfarrapada desculpa do moralismo do escritor. Na verdade, sempre que osbraos sobem cena na fico machadiana, no so apenas eles que esto nus,mas sim todo o corpo de suas personagens femininas.46I vanJ unquei raE vai assim o nosso Incio aos poucos desesperando, sobretudo quandopercebe que a nica soluo para aquele impasse ser fugir da casa de D. Seve-rina, onde reside e de cujo marido empregado. Mas no o consegue, hipnoti-zado que est por aqueles braos que, todavia, no o abraam:No foi; sentia-se agarrado e acorrentado pelos braos de D. Severina.Nunca vira outros to bonitos e frescos. A educao que tivera no lhe per-mitia encar-los logo abertamente, parece at que a princpio afastava osolhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles no tinham ou-tras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando.E tanto os mirou e amou que D. Severina comeou a desconfiar. E a gostar,pelo visto, pois escreve o narrador:Tudo parecia dizer dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita aimpresso do assombro, trouxe-lhe uma complicao moral, que ela s co-nheceu pelos efeitos, no achando meio de discernir o que era.Paralelamente, Incio continua a sofrer e a cogitar de sua fuga, o que defato acontece no final do conto, coroando assim todo o tortuoso processoda interdio moral. No se d, pois, o to desejado abrao, embora duran-te todo esse tempo os braos de D. Severina lhe fechem um parntese naimaginao. Mas o fato que, antes da fuga, algo acontece, algo que Ma-chado de Assis,merc de sua inexcedvel habilidade ficcional,empurrapara uma regio fronteira entre o sonho e a realidade, pois somente a cabe-ria alguma forma de ao, e essa ao, como sempre, iniciativa da mulher,dessa mulher que, na fico machadiana, parece ignorar a existncia de quais-quer interrogaes de ordem moral, jamais cogitando de outra forma de re-morsoalmdasinevitveisinterdiesimpostasporseudecoro. Lem-bre-se, a propsito, a personalidade de Capitu, na qual subsiste um vertigi-noso substrato de amoralidade que tangencia as raias da inocncia animal e47Uns braos : nenhumabraoque, impregnada de desejo e de volpia, desconhece por completo o queseja o senso da culpa ou do pecado.Vejamos agora, na trama de Uns braos, como as coisas surdamente seencaminham, embora, como j antecipamos, esses braos de D. Severina ja-mais se fechem em torno de Incio. Mas quem sabe um beijo, um beijo dadoem quem dorme e no sabe que est sendo beijado? E eis aqui como Machadode Assis engendra aquela situao em que o sonho tangencia a realidade. Aoperceber que Incio no lhe tira os olhos, D. Severina, j convicta de que algopecaminoso est em marcha, comea tambm a perturbar-se, e um dia, ao pro-curar o rapaz emseu quarto por algummotivo domstico, encontra-o dormin-do na rede e pe-se a imaginar que ele possa estar sonhando com ela. Bate-lheento mais forte o corao, j que, na noite anterior, fora ela que sonhara comele. Na verdade, desde a madrugada a figura do rapaz lhe andava diante dosolhos como uma tentao diablica. Dormindo, Incio lhe parecia at maisbelo. Uma criana, como ela mesma se diz. Oalvoroo toma conta de D. Se-verina, cuja severidade aos poucos se esvai. A rigor, ela passa a ver-se na imagi-nao do rapaz e, como escreve Machado de Assis, ter-se-ia visto diante darede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mos, cruzando ali osbraos, os famosos braos. E Incio sempre a dormir e talvez a sonhar, comodevaneia Hamlet em seu imortal solilquio.Nesse ponto bem de ver que D. Severina j flutuava tambm nas guas dosonho e de uma imaginao sem peias, supondo que Incio, enamorado deseus braos, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas, clidas, prin-cipalmente novas ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele noconhecia, posto que o entendesse. O crescendo urdido pelo gnio machadianoatinge agora o seu clmax. E assimnos descreve o mestre a pulsao sensual quetoma conta de uma personagem que de severa nada mais tem:Duas, trs e quatro vezes a figura esvaa-se, para tornar logo, vinda domar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor, comtoda a graa robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pega-48I vanJ unquei rava-lhe outra vez das mos e cruzava ao peito os braos, at que, inclinan-do-se ainda mais, muito mais, abrochou os lbios e deixou-lhe um beijona boca.Aqui, todavia, como adverte Machado de Assis, o sonho coincide com a rea-lidade, e as mesmas bocas se unem na imaginao e fora dela. Aturdida com oque fizera, D. Severina recua e v-se engolfada pelo vexame. Beijara-o, beijaraaquela criana adormecida. E conclui Machado de Assis: Fosse como fosse,estava confusa, irritada, aborrecida, mal consigo e mal comele. Omedo de queele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um cale-frio. Incio afinal deixa a casa do patro e, ao despedir-se de D. Severina, es-tranha-lhe a frieza e o azedume. Mas leva consigo o sabor de um sonho, da-quele sonho em que se imaginou beijado por algum que, sem que ele soubes-se, o beijara em sonho e na realidade, ou, mais precisamente, nesse territrioambguo e fugidio em que ambos se tangenciam, nesse cenrio de penumbrapsicolgica em que amide se movem as personagens machadianas.A sutileza da urdidura ficcional e a fina psicologia de Uns braos fazemdesse conto uma obra-prima do gnero. H nele muito da maturidade espiri-tual do autor no s como filsofo pessimista, no raro niilista, mas tambmcomo estilista, o consumado estilista que foi e que nos assombra at hoje. Muitoda sua nsia de perfeio artstica e do impasse em que sempre se debateu a suaalma diante da impossibilidade de realizar uma escolha esto tambm a pre-sentes, pois Machado de Assis, se trazia em si a matriz seminal de Rubio, deBentinho ou de Brs Cubas, trazia sobretudo a de Flora, puro esprito que seconsome na contemplao. O bruxo do Cosme Velho foi antes de tudo umctico, um homem que, queiram ou no seus admiradores, nutriu pela vida umdio entranhado, ou seja, o dio daquele homem subterrneo de que nosfala Dostoievski e que em tudo confirma este comentrio de Brs Cubas: Ovoluptuoso e esquisito insular-se o homemno meio de ummar de gestos e depalavras, denervosepaixes, decretar-sealheado, inacessvel. Ausente....Como ensina Augusto Meyer e se aqui outra vez nele me amparo porque o49Uns braos : nenhumabraoconsidero nosso mais astucioso intrprete da obra machadiana , o mal, nocaso de Machado de Assis, comea com a conscincia aguda, pois o excessode lucidez mata as iluses indispensveis subsistncia da vida, que s podedesenvolver-se num clima de inconscincia, a inconscincia da ao. E tudo,rigorosamente tudo em Machado de Assis obedece s leis da introverso.J se observou, a propsito, que nos romances e contos de Machado deAssis no h nenhuma espcie de ao, mas apenas movimentos concntricosde introverso. Nesse ponto, ele se aproxima vertiginosamente de um Proust,de uma Katherine Mansfield ou de uma Virginia Woolf. Para tais escritores, odrama da conscincia doentia no se resume apenas no absurdo vital da in-troverso, e sim no fato de que essa mesma introverso principia com o amorda conscincia por si prpria, com a obsesso da anlise pela prpria anlise, eda que emerge o homem subterrneo. Alguns crticos vem nisso carnciade pujana, de fora ou de movimento profundo. Sobrar-lhe-iamgraa, humore harmonia de estilo, mas faltar-lhe-iam mpeto e poderio ficcionais. o quepensa, por exemplo, Mrio Matos, quando sustenta que Machado de Assisfilia-se entre os prosadores cuidosos da forma e do gracioso dos pensamen-tos. Falta-lhe patos. No tem flama. Parece-me que esse crtico no entendeuque emMachado de Assis, como sublinha Augusto Meyer, havia umamor vi-cioso que caracteriza o monstro cerebral, a volpia da anlise pela anlise, mashavia tambm e nisso v o ensasta o seu maior drama a conscincia damisria moral a que estava condenado por isso mesmo, a esterilidade quase de-sumana comque o puro analista paga o privilgio de tudo criticar e destruir.Mas justamente a partir desse substrato de ironia, de ceticismo e de pro-fundo pessimismo que se esgalham o seu gnio e o seu estilo inimitvel, sobreos quais muito j se escreveu entre ns, e no seria esse o momento de nosacrescentarmos ciclpica bibliografia j existente sobre o autor do Memorial deAires. Prefiro, muito ao contrrio, recorrer s palavras de umdesses intrpretes,mais precisamente um dos menos lembrados nos dias de hoje, o jornalista, po-ltico e tambm acadmico Alcindo Guanabara, quando, por ocasio da mortedo mestre, proferiu um notvel discurso propondo Cmara dos Deputados50I vanJ unquei raque se fizesse representar no enterro. A certa altura nele se diz, com palavrasmuito simples e concisas, que Machado de Assis tinhaum estilo seu, prprio, singular, nico na nossa e qui alheias lnguas.No sei se direi demais dizendo que tinha, ou que fizera, uma lngua nova,que novo, ou pelo menos inconfundvel, era o portugus que tratava. Eraum irnico, de uma ironia que no era, nem se parecia, com lesprit dos fran-ceses nem o humour dos ingleses; uma ironia que superava a de Sterne ou deXavier de Maistre e dir-se-ia filha da de Anatole France, se no a houveraprecedido. Original e nico, era um filsofo, um comentador, um crtico,um analista analista das coisas e dos homens, das almas e dos costumes,dos indivduos e do meio, das paixes grandes e dos pequenos vcios. Notinha o sarcasmo dissolvente, mas um doce e benvolo ceticismo.E so estas, alm de algumas e concebidas outras, as virtudes que encontra-mos emseus romances e contos, como nesse admirvel Uns braos, que aquitentamos brevemente analisar do ponto de vista da sensualidade recalcada e dahesitao moral, caractersticas que emergem, como j dissemos, em muitasdas personagens machadianas. No que toca a essa sensualidade, entretanto,conviria aqui repetir que, em Machado de Assis, ela floresce antes no mbitodas idias do que propriamente no dos sentidos. Caso contrrio, seria difcilcompreender o que diz a Brs Cubas, em seu delrio, aquela perversa Pandoratravestida de me Natureza: Eu no sou somente a vida; sou tambma morte,e tu ests prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te avoluptuosidade do nada.51Uns braos : nenhumabraoCarolina Augusta Xavier deNovaes Machado de AssisMachado de Assis:cartas a CarolinaDom ci oProenaFi lhoS restam duas. Do tempo de noivado. Datadas de 2 de marode 1869. De Machado para Carolina, ento residente em Pe-trpolis, cujo acesso exigia um trecho de viagem de barca. As demaisforam queimadas, a pedido do missivista, cioso da intimidade doamor que os unia. Mas constituem textos que nos permitem reme-morar, na palavra, instncias daquele afeto verdadeiro / que, a des-peito de toda a humana lida, fez-lhes a existncia apetecida / enum recanto ps um mundo inteiro.

A moa que veio de longeCarolina Augusta Xavier de Novais nasce em Portugal, na ci-dade do Porto, em 20 de fevereiro de 1835. Quatro anos e quatromeses, portanto, mais velha do que o futuro marido, cujo nasci-mento data de 21 de junho de 1839. Filha de Custdia EmliaXavier de Novais e do relojoeiro e joalheiro Antonio Lus de No-53Ocupante daCadeira 28na AcademiaBrasileira deLetras.Pros avais. Irmos: cinco: Emlia, Adelaide, Miguel, Henrique e Faustino, amigode Machado de Assis.Falecidos os pais, por volta de 1867, vem para o Brasil a pedido de Fausti-no, que passara a sofrer de distrbios mentais intermitentes. E desembarca em18 de junho de 1868. Movida tambm por outra razo: perto dos 34 anos,solteira e sem recursos e traumatizada por um misterioso drama ntimo de fa-mlia, sua vida tornara-se difcil. Do fato, sem revelar-lhe a natureza, d not-cia, em suas memrias, o pintor Artur Napoleo, amigo da famlia e de Ma-chado, que a acompanhara em sua viagem no Estremadure, navio francs que atrouxe ao Rio de Janeiro. Nas palavras do artista, transcritas por Jean-MichelMassa, em A Juventude de Machado de Assis:Elimino umcaptulo que julgo no dever dar publicidade. ntimo dra-ma da famlia, em que escapou de ser vtima Carolina Novais.Testemunha da cena pungente e amigo dedicado da famlia, eu, a pedi-do da mesma, fui solicitado para acompanhar Carolina ao Rio de Janeiroe lev-la para junto de seu irmo Faustino, pedido a que acedi da melhorvontade.1Difcil identificar o momento do seu encontro com o jovem Machadinho,ento na plenitude dos seus trinta anos.Sabe-se que o mtuo compromisso se d no relampejar de um minuto. Ma-chado visita Faustino. De repente, a ss com Carolina, senta-se a seu lado, to-ma-lhe das mos e ousa perguntar-lhe se quer casar com ele. A resposta, afir-mativa, firme e decidida. O que restou da correspondncia entre ambos, ain-da que reduzido s duas missivas, d a medida da natureza e da intensidade dossentimentos que os unem.54Dom ci oProenaFi lho1MASSA, Jean-Michel. A Juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1971, p. 582.

Cartas apaixonadasUm trecho da primeira iluminador:Minha querida C.Recebi ontem duas cartas tuas, depois de dous dias de espera. Calcula oprazer que tive, como as li, reli e beijei! A m tristeza converteu-se em sbitaalegria. Eu estava to aflito por ter notcias tuas que sa do Dirio 1 horapara ir a casa, e comefeito encontrei as duas cartas, uma das quais devera tervindo antes, mas que, semdvida, por causa do correio foi demorada. Tam-bm ontem deves ter recebido duas cartas minhas; uma delas, a que foi es-crita no sbado, levei-a no domingo s 8 horas ao correio, sem lembrar-me(perdoa-me!) que ao domingo a barca sai s 6 horas da manh. s quatrohoras levei a outra carta e ambas devemter seguido ontemna barca das duashoras da tarde. Deste modo, no fui eu s quem sofreu com a demora dascartas. Calculo a tua aflio pela minha, e estou que ser a ltima.Seguem-se preocupaes materiais, reveladoras da relao com os futuroscunhados Faustino (F.) e Miguel (M.). A referncia tranqila a este ltimope em xeque a opinio de que, por preconceito racial, acirrava a oposio aocasamento. O texto revela tambm a posio de Machado em relao vidafamiliar:Eu j tinha ouvido c que o M. alugara a casa das Laranjeiras, mas o queno sabia era que se projetava essa viagem a Juiz de Fora. Creio, como tu,que os ares no fazem nada bem ao F.; mas compreendo tambm que no possvel dar simplesmente essa razo. No entanto, lembras perfeitamenteque a mudana para outra casa c no Rio seria excelente para todos ns. OF. falou-me nisso uma vez, quanto basta para que se trate disto. A casa hde encontrar-se, porque empenha-se nisto o meu corao. Creio, porm,que melhor conversar outra vez com o F. no sbado e ser autorizado posi-tivamente por ele.55MachadodeAs s i s : cartas aCaroli naVoltam consideraes sobre o relacionamento do casal:Ainda assim, temos tempo de sobra: 23 dias: quanto basta para que oamor faa ummilagre, quanto mais que no milagre nenhum. / Vais dizernaturalmente que eu condescendo sempre contigo. Por que no? Sofrestetanto que at perdeste a conscincia do teu imprio; ests pronta a obede-cer; admiras-te de seres obedecida. No te admires, a cousa muito natural;s to dcil com eu; a razo fala em ns ambos. Pedes-me cousas to justas,que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse recusar-te alguma cousa,e no quero. /A mudana de Petrpolis para c uma necessidade; os aresno fazembemao F., a casa a umverdadeiro perigo para queml mora. Seestivesses c, no terias tanto medo dos troves, tu que ainda no ests bembrasileira, mas que o hs de ser, espero em Deus.2Observe-se que o noivo tinha conhecimento da intensidade do problemavivido por Carolina antes da vinda para o Brasil.

Curiosidades de noivaEsta mesma carta descreve, na seqncia do texto, uma Carolina desconfia-da e curiosa. Talvez por sofrida. Por fora do mistrio no revelado em tornodo problema familiar emque esteve envolvida. E de que, seguramente, Macha-do tem conhecimento. Ela deseja saber do passado do noivo. Mais precisa-mente de amores desses tempos. O esclarecimento abre-se plena sinceridade,num belo exemplo de discurso de seduo:Acusas-me de pouco confiante em ti? Tens e no tens razo; confiantesou; mas se no te contei nada porque no valia a pena contar. A minha56Dom ci oProenaFi lho2Textos da carta in: Machado de Assis. Obra Completa. V. III Epistolrio. Org. Afrnio Coutinho. Rio deJaneiro: J. Aguilar, 196, p. 1.044.histria passada no corao resume-se em dous captulos: um amor, nocorrespondido; outro, correspondido. Do primeiro nada tenho que di-zer; do outro no me queixo; fui eu o primeiro a romp-lo. No me acu-ses por isso; h situaes que se no prolongam sem sofrimento. Umasenhora de minha amizade obrigou-me, com os seus conselhos, a rasgara pgina desse romance sombrio; fi-lo com dor, mas sem remorso. Eistudo. A tua pergunta natural esta: qual destes dous captulos era o deCorina? Curiosa! Era o primeiro. O que te afirmo que dos dois o maisamado foi o segundo. Mas nem o primeiro nem o segundo se parecemcom o terceiro e ltimo captulo do meu corao. Diz a Stel que os pri-meiros amores no so os mais fortes, porque nascem simplesmente danecessidade de amar. Assim comigo; mas, alm dessa, h uma razo ca-pital, e que tu no te pareces nada com as mulheres vulgares que tenhoconhecido. Esprito e corao como os teus so prendas raras; alma toboa e to elevada, sensibilidade to melindrosa, razo to reta no sobens que a natureza espalhasse s mos cheias pelo teu sexo. Tu perten-ces ao pequeno nmero de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pen-sar. Como te no amaria eu? Alm disso, tens para mim um dote que real-a os mais: sofreste.3O texto deixa perceber uma ponta de cime em torno dos Versos Cori-na, publicados em Crislidas. Musa desse amor no retribudo: Gabriela Au-gusta da Cunha, famosa atriz portuguesa. A outra paixo, correspondida:mais uma figura marcante da ribalta: Augusta Candiani. Dezoito anos maisvelha do que ele. Referncia constante em suas obras. Ambas sombras, me-mrias. O lugar, no corao e na poesia, agora dela, Carolina, a amada. Queinspirar poemas publicados em Falenas, como, entre outros, Quando elafala e Livros e flores:57MachadodeAs s i s : cartas aCaroli na3Id. Ib.Quando ela falaQuando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emudeceQuando ela fala.Meu corao doloridoAs suas mgoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.Pudesse eu eternamente,Ao lado dela, escut-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.Minh alma, j semimorta,Conseguira ao cu al-la,Porque o cu abre uma portaQuando ela fala.4Livros e floresTeus olhos so meus livros.Que livro h a melhorEm que melhor se leiaA pgina do amor?58Dom ci oProenaFi lho4MACHADO DE ASSIS. Falenas. In:___. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Civilizao Braisleira;Braslia: INL, 1977, p. 220.Flores me so teus lbios.Onde h mais bela flor,Em que melhor se bebaO blsamo do amor?5Deixa ver tambm o que, a esse tempo, o criador de Virglia, Sofia e Capitupensa das mulheres.A segunda missiva segue reveladora da intensidade da paixo mtua, de ca-rinhos e cuidados. Depois de explicar a falta de carta no domingo, de dizer deseu dia e de suas saudades, alterna inseguranas e certezas:Minha Carola.(....) Para imaginares a minha aflio, basta ver que cheguei a suspeitarda oposio do F. como te referi numa de minhas ltimas cartas. Era maisdo que uma injustia, era uma tolice. V l: justamente quando eu estava acriar castelos no ar, o bom F. conversava a meu respeito com a A. e pareciaaprovar as minhas intenes (perdo, as nossas intenes). No era de es-perar outra cousa do F.; sempre foi amigo meu, amigo verdadeiro, dospoucos que, no meu corao, tm sobrevivido s circunstncias e ao tem-po. Deus lhe conserve os dias e lhe restitua a sade para assistir minha e tua felicidade.(....) Dizes que, quando ls algum livro, ouves unicamente as minhas pa-lavras, e que eu te apareo em tudo e em toda parte? ento certo que euocupo o teu pensamento e a tua vida? J mo disseste tanta vez, e eu sempre aperguntar-te a mesma cousa, tamanha me parece esta felicidade. Pois, olha:eu queria que lesses um livro que eu acabei de ler h dias; intitula-se A Fam-lia. Hei de comprar um exemplar para lermos em nossa casa como uma es-pcie de Bblia Sagrada. um livro srio, elevado e profundo; a simples lei-tura dele d vontade de casar. Faltamquatro dias; daqui a quatro dias ters59MachadodeAs s i s : cartas aCaroli na5Id. Ib. p. 239l a melhor carta que eu te poderei mandar, que a minha prpria pessoa, eao mesmo tempo lerei o melhor [...]6

Enfim, casadosA paixo consolida-se com o casamento, a 12 de novembro, 1869. O lar:Rua do Fogo, 119, depois Rua dos Andradas. Perto do morro do Livramento.Modestamente mobilhado. Tropeos financeiros. Antigos.No registro do citado Jean-Michel Massa:A julgar pelas inmeras cartas de Machado de Assis a Ramos Paz, os jo-vens casados tiveram algumas dificuldades materiais no comeo do casamen-to. Alguns dias depois da cerimnia, o escritor solicitava ao seu amigo que lheemprestasse algum dinheiro: De ordinrio sempre de rosas o perodo que antecede o noi-vado; para mim, foi de espinhos. Felizmente o meu esforo esteve na altura de minha responsabi-lidade, e eu pude obter por outros meios os recursos necessrios na ocasio. Ainda assim no pudeir alm disso; de maneira que, agora mesmo estou trabalhando para as necessidades do dia, vistoque s do comeo do ms em diante poderei regularizar a minha vida.Carolina, discreta, compreensiva. Como na relao de D. Carmo e Aguiar,no Memorial de Aires: A pobreza foi o lote dos primeiros dias de casados.Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos a escassezdos vencimentos. Assim Machado.Aos poucos, porm, a vida do casal estabiliza-se. Em 1872, o marido deD. Carolina j poeta, teatrlogo e jornalista de sucesso, funcionrio p-blico. Em 1877, Chefe de Seo no Ministrio da Agricultura, escritor re-conhecido, rico de amigos. A relao solidificada pelo sentimento amadu-recido. Posto a prova diante das doenas de Machado: as crises de epilep-sia, a tsica mesentrica que o acometeu, curada em Friburgo, de dezem-60Dom ci oProenaFi lho6In: MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. VIII. Epistolrio. Rio de Janeiro: J. Aguilar, p. 1045.bro de 1878 a maro de 1879. Ela a seu lado, terna, compreensiva e sutilenfermeira. Sem o desespero que avassala o marido. Depois, a retinite gra-ve. Carolina seus olhos e a mo que escreve o que dita. Machado testemu-nha, mais tarde, em carta ao amigo de f, Magalhes de Azeredo, datada de2 de abril de 1895:Meu querido am e poeta:Prometa-me que s ler esta carta, depois que eu me houver absolvido domeu longo silncio. Ter razo se for inflexvel; mas eu conto com a sua afei-o, e da a esperana de que a leitura se far sem ressentimento. Eu queno escreverei sem remorsos. Com efeito, mediou tanto tempo entre a suacarta de 22 de maro (ontem recebida) e a anterior, que a suposio de queesta se houvesse extraviado era natural, e a sua queixa de esquecimento justa.Nemuma nemoutra cousa. Todo o mal veio dos adiamentos; mas no fale-mos mais nisto. Ver daqui em diante que, salvo casos de molstia, estouemendado. A segunda carta d-me notcia da molstia que teve, ou antes daagravao que lhe trouxe o excesso de trabalho sua dispepsia nervosa, e as-sim tambm dos trabalhos da cura. Eu no sei se teria agora tanta pacincia;e contudo j fui doente exemplar, quando padeci de uma conjuntivite, e meproibiramde ler. Estive assimlongas semanas. Era minha mulher que me liatudo. Para o fim serviu-me de secretria.Entre o que ela escreveu estava um certo romance: As Memrias Pstumas deBrs Cubas foram comeadas por esse tempo; ditei-lhe creio que meia-dzia decaptulos. 7Carolina, decerto o modelo referencial de D. Carmo:61MachadodeAs s i s : cartas aCaroli na7VIRGILLO, Carmelo, org. Correspondncia de Machado de Assis com Magalhes de Azeredo. Rio de Janeiro:Instituto Nacional do Livro, 1969. pp. 40-41.Ora, a alma dele era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimentoe a cal que as uniram naqueles dias de crise. (...) Cal e cimento valeram-lhelogo em todos os casos de pedras desconjuntadas. Ele via as cousas pelosseus prprios olhos, mas, se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava re-mdio ao mal fsico ou moral era ela.8

Num recanto, o mundo inteiroA contrapartida, no convvio do lar. Na nova casa da Rua do Catete, 206.Depois, a partir de meados de 1883, o Cosme Velho, chal n 18. Dois anda-res, jardim, rvores, umregato. Embaixo, sala de visitas, sala de jantar, a peque-na varanda de tranqilidade. Emcima, os dormitrios, trs janelas abertas paraa rua, o gabinete de trabalho.No interior, o cuidado, com os tapetes que ela mesma tece, com os borda-dos que adornam o mobilirio. Na companhia, a cadelinha, a quem Machadoregala com biscoitos, na volta do trabalho. v-la, no testemunho-recordao da escritora Francisca Basto Cordeiro:de preto, com uma pequena gravata de renda branca presa ao vestido porumbroche de ouro. (...) Alta, clara, magra, nada bonita, rgida, severa, lbiosfinos, cabelos lisos, que mistura a uns caracis do marido num penteadooriginal, no ri nunca, e raramente sorri. Depois das refeies, marido e mu-lher se sentam na cadeira de balano dupla, mos dadas, gozando o silnciopartilhado de que se entendem. Perto dos dois, sesteia Graziela, a cachorri-nha branca e felpuda, j cega.9De ordinrio, o passeio com o Seu Machado, no repouso do trabalhofuncional e das atividades na Academia Brasileira de Letras, fundada em1896.62Dom ci oProenaFi lho8MACHADO DE ASSIS. Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira; Braslia: INL. 1977, p. 81.9In: VIANA FILHO, Lus. pp. 144-45.Umdesejo, acalentado e no realizado, comtranqilidade: voltar Europa, re-ver sua terra antiga.E assim a vida flui, at a fatalidade inexorvel do dia 20 de outubro de1904: exatamente ao meio-dia, perdia Machado de Assis a sua companheirade 35 anos de amor cultivado e amadurecido. Como se pode depreender dotrecho de mais uma carta, dirigida ao amigo Joaquim Nabuco:Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou s no mundo. Noteque a minha solido no me enfadonha, antes me grata, porque ummodo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa compa-nheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas no h imaginao que noacorde, e a viglia aumenta a falta da pessoa amada. ramos velhos, e eucontava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro, porqueno acharia ningumque melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque eladeixa alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu no tenho ne-nhum. Os meus so os amigos, e verdadeiramente so os melhores; mas avida os dispersa, no espao, nas preocupaes do esprito e na prpria car-reira que a cada umcabe. Aqui fico, por ora, na mesma casa, no mesmo apo-sento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Caro-lina. Como estou beira do eterno aposento, no gastarei muito tempo emrecord-la. Irei v-la, ela me esperar.1063MachadodeAs s i s : cartas aCaroli na10In: MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, V.III, p. 1.094.Caricatura deRafael Bordalo Pinheiro.A crtica deMachado de AssisFbi oLucasAcrtica fruto de uma disposio do esprito que se encon-traemtodasaspessoas, masquealgumasdesenvolvemacentuadamente.Tem-se dito que Machado de Assis foi um cptico. E como sechega a cptico sem um indiscreto olho crtico?Ograndeescritorbrasileiroformuloujuzossobreasobrasalheias durante parte considervel de sua vida: de 1858 a 1879. Dos19 aos 40 anos de idade, portanto.Podemos dizer que exerceu a crtica precisamente no perodo desua formao, pois justamente depois dessa fase que dar o saltoqualitativo que o aguardava na curva da Histria, em 1880.Depois das Memrias Pstumas de Brs Cubas que Machado concebeu asua fico mais densa, mais liberta de influncias, menos caudatria daatmosfera intelectual da poca. Portanto, mais peculiar de seu estilo.O esprito crtico instalou-se no interior do artista, e ele, ento,cessou a avaliao das obras alheias, para contentar-se com a au-65Pros aDoutor emEconomia Polticae Histria dasDoutrinasEconmicas,especializou-se emTeoria daLiteratura. Autorde 40 obras deCrtica Literria eCincias Sociais,entre os quais Razoe Emoo Literria(1982), Vanguarda,Histria e Ideologia daLiteratura (1985),Do Barroco aoModerno (1989),Luzes e Trevas MinasGerais no SculoXVIII (1999),Murilo Mendes, Poeta eProsador (2001).Ocupa a Cadeira27 na AcademiaPaulista de Letras.to-reflexo, ao mesmo tempo em que externava sua radical inconformidadecom o ser humano de modo geral, sua descrena de todos estampada na atitu-de ora cptica, ora custica. s vezes, humorista. Passou a julgar a espcie, dei-xando de lado os exemplos.Como se comportou a crtica machadiana?Sua militncia literria pode resumir-se nos comentrios a espetculos tea-trais e a trabalhos de poesia e fico que se ofereciam a seu julgamento. De vezem quando detinha-se na anlise de correntes, tendncias, aspectos tericos.O marco inicial de sua atividade crtica ocorre com a publicao do ensaioO passado, o presente e o futuro da literatura em 1858.Mesmo na obra de criao, especialmente a narrativa, costumava infiltrarbreves informaes ou conceitos a ttulo de motivos livres, que importavamavaliao de idias e noes literrias correntes.O teatro, como se sabe, constitua um dos entretenimentos mais cultivadospela elite, durante o perodo imperial. Jornais e revistas davam amplo espaopara as representaes, acolhiam e divulgavam as crticas.Machado de Assis manifestava predileo pelo teatro. Era um espectadorexigente, tendo mesmo, em certa ocasio, integrado o rgo de censura tea-tral. Com efeito, esteve a servio do Conservatrio Dramtico entre 1862 e1864, rgo oficial encarregado da censura das peas teatrais propostas paraencenao.Suas exigncias de censor coexistiamcoma sua concepo de arte, pois pro-clamava a necessidade de idias elevadas como suporte do contedo da obra. Edistinguia nitidamente o aspecto moral do aspecto intelectual na avaliao dapea: Julgar o valor literrio de uma composio exercer uma funo civili-zadora, ao mesmo tempo que praticar umdireito do esprito: tomar umcar-ter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberao, escreveu na srie de arti-gos Idias sobre o teatro, quando abordou O Conservatrio Dramtico a25 de dezembro de 1859, em O Espelho.Isso no quer dizer ummoralismo estreito, doutrinrio, ao tratar das conve-nincias pblicas de uma encenao. Nada disto. A pea teatral e a obra narra-66Fbi oLucastiva, para Machado, deveriam conter uma idia geral, a articulao de uma tesecoerente, baseada na verdade.Que verdade seria essa? Evidentemente no seria algo predeterminado, masa arregimentao de quadros e de imagens narrativas que compusessem umtodo coeso, de acordo com a verossimilhana e com as leis literrias.Assim, quando escreveu sobre a obra Verso e Reverso, de Jos de Alencar,(O teatro de Jos de Alencar, Semana literria, Dirio do Rio de Janeiro, 6,13 e 27 de maro de 1866), autor que admirava, viu nela vantagens que di-ziam respeito ao pensamento capital da pea (a idia geral de que fala-mos), ao desenho feliz de alguns caracteres (a criao de personagens au-tnticas representa a segunda condio de valor) e s excelentes qualida-des do dilogo (a soluo formal mais importante do teatro, gerador detenses dramticas).Quando critica o teatro de J. M. de Macedo, Machado incisivo neste pon-to: Estando convencido de que o teatro corrige os costumes, entende o autor,e no se acha isolado neste conceito, que a correo deve operar-se pelos meiosoratrios e no pelos meios dramticos ou cmicos. Amoral no teatro, mesmoadmitindo a teoria da correo dos costumes, no isso: os deveres e as paixesna poesia dramtica no se traduzem por demonstrao, mas por impresses.(Semana literria, Dirio do Rio de Janeiro, 1 de maio de 1866).V-se, aos olhos de Machado de Assis, a tnue relao estabelecida entre amoral e a qualidade da obra. Mas, quanto aos recursos dramticos e formais,torna-se veemente: A reunio de algumas palavras enrgicas e sonoras, em pe-rodos mais ou menos cheios, no supe um estudo das paixes humanas. Orudo no a eloqncia. Adiante, ao tratar da face humorstica de J.M. deMacedo, dir: Para fazer rir no precisa empregar o burlesco; o burlesco oelemento menos culto do riso.A propsito, a cena dramtica para Machado tinha que conter principal-mente o choque de foras contrrias do esprito, de tal modo que a intensidadeda ao dependesse menos da exibio do sofrimento fsico do que da dor mo-ral: Sabemos todos que aflitivo o espetculo de uma grande dor fsica; e, no67Acr ti cadeMachadodeAs s i sobstante, mxima corrente em arte que semelhante espetculo, no teatro, nocomove ningum; ali vale somente a dor moral. o que explica no texto dedicado a O Primo Baslio, de Ea de Queirs. Por-tanto, o conflito de apetites ou a frustrao de esperanas constituem o focode expectativas que a pea de teatro deve explorar.Almdo pensamento elevado, recomendava Machado que o escritor se pre-ocupasse com o apuro formal e o respeito s leis polticas. A forma correta se-ria, a seu ver, a conseqncia de umconhecimento da Literatura, da observaodos bons autores e da comparao.Ao lado da crtica teatral, vamos encontrar emMachado importantes mani-festaes acerca das obras de fico e de poesia. Para ele, a crtica era o estmu-lo necessrio da literatura: Com largos intervalos aparecem as boas obras!Como so raras as publicaes seladas por um talento verdadeiro!... Quereismudar essa situao aflitiva? Estabelecei a crtica (...). o que consta do seuO ideal do crtico, publicado no Dirio do Rio de Janeiro a 8 de outubro de1965.Assistiu ao esplendor e ao declnio da onda romntica. E quando o Realis-mo comeou a inquietar a juventude e a arrebatar os epgonos e crticos, Ma-chado recebeu-o com reservas. o que temos no clebre estudo sobre O Primo Baslio, de Ea de Queirs,em que muitas vezes a capacidade crtica de Machado chega a seu paroxismo:... a realidade boa, o realismo que no presta para nada.Mas o principal o senso esttico do crtico, apoiado sobretudo na tcnicada comparao.No caso de O Primo Baslio, Machado no deixa de correlacionar o esquemanarrativo da obra do escritor portugus ao de Eugnie Grandet, de Balzac.E, na busca da razo ntima da obra, da idia geral, no esconde o ladomordaz de seu juzo crtico: Se o autor, visto que o Realismo tambm inculcavocaosocial e apostlica, intentou dar no seu romance algum ensinamentoou demonstrar com ele alguma tese, fora confessar que o no conseguiu, amenos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: a boa escolha dos fmulos68Fbi oLucasuma condio de paz no adultrio. (Ea de Queirs OPrimo Baslio, emO Cruzeiro, abril de 1878).No repertrio do bom gosto de Machado estava implcito o esprit de finessepascaliano. Da lembrar, invocando o prprio Zola, mestre do novo realismocru e bruto de tantos discpulos exaltados, que o trao grosso no o trao exato.O lado tico da crtica machadiana levava-o a bater-se pela sinceridade tempe-rada pela imparcialidade, numterreno emque as paixes opiniticas conduziamaspessoas aos insultos e difamao. Era indulgente com os iniciantes, mostrava-secompreensivo e receptivo em relao s obras recm-publicadas, que comentavasemazedume. No Ideal do crtico prescrevia a tolerncia, a moderao e a urba-nidade. E em Instinto de nacionalidade leva a sua investigao at os limites deum inqurito sobre as condies sociais do Brasil em 1873.Oseu impressionismo crtico era combinado coma vigilncia quanto cor-reo e justeza do texto. Jos Verssimo, seu admirador, enquadrou sua crticacomo impressionista: Como crtico, Machado de Assis foi sobretudo impres-sionista. Mas um impressionista que, alm da cultura e do bom gosto literrioinato e desenvolvido por ela, tinha peregrinos dons de psiclogo e rara sensibi-lidade esttica. (Histria da Literatura Brasileira, cap. 19, Machado de Assis,Braslia, Universidade de Braslia, 1981, p. 288).Combatia a vulgaridade e a obscenidade, o fortuito, o acessrio e o efmero.Punha-se a favor da parte substantiva da obra formalmente bem realizada.Qual o seu mtodo? Intuitivamente Machado de Assis se punha adiante demuitos dos seus contemporneos.A primeira impresso da obra narrativa, por exemplo, era colhida de umaleitura atenta, revelada nos resumos que apresentava ao leitor.A seguir, prontificava-se a propor emendas, correes tcnicas e sugestesque militassem em favor da credibilidade da obra, sua verossimilhana.Fazia, portanto, uma critica orientadora, quase pedaggica.Adiante, fazia questo de estabelecer o que hoje chamamos intertextualida-de, pondo a obra a dialogar com as demais com que pudesse manter algumaafinidade formal ou conteudstica.69Acr ti cadeMachadodeAs s i s