m. delly - o meu vestido cor do ceu (doc)(rev)

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O MEU VESTIDO COR DO CÉU

T r a d u ç ã o de A. A U G U S T O DOS S A N T O S

2.A EDIÇÃO

RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE TRADUÇÃO E PUBLICAÇÃO EM PORTUGAL E COLÔNIAS

NO original o título desta obra é

<MA ROBE COULEUR DU TEMPS>

http://groups.google.com/group/digitalsource

EDITORA —LIVRARIA PROGREDIOR - PORTO

Page 3: M. Delly - O Meu Vestido Cor do Ceu (doc)(rev)

I

Numa manhã de Junho, entrou no meu quarto a senhora Barduzac, na altura em que estava terminando uma das peças do meu enxoval. Sentou-se na única poltrona que ali havia, e esta, que já não era nova, rangeu sob o respeitável peso da esposa do meu tutor.

— Temos um convite bastante desagradável, Gillette.— Que foi, minha senhora? — perguntei, num tom de indiferença.— Os Samponi mandaram-nos convidar para uma festa que vão dar,

dentro de quinze dias.— Os Samponi?... Que idéia!A minha voz revestiu-se duma entoação irônica, acompanhada duma

leve expressão de menosprezo.— Mas talvez tenham razão!... Talvez seja uma boa idéia para

tentarem casar as filhas!Sabia há muito que a senhora Barduzac tinha um enorme prazer em

me contrariar sobre qualquer opinião, gosto ou antipatia que eu manifestasse. Ela não via com bons olhos os Samponi, italianos de nascimento, palradores, indiscretos e um tanto excêntricos; todavia, logo se lhe tornaram simpáticos, quando notou o pouco interesse que manifestei pela festa.

— Muito bem — respondi com calma. — Podem casá-las à vontade. Desejo-lhes muitas felicidades, e para fazerem a festa não necessitam da nossa presença.

A senhora Barduzac mordeu os lábios grossos, sombreados por uma escura penugem.

— Ah! É assim que corresponde à sua gentileza?... As nossas relações são tão cerimoniosas, que acho que foram muito amáveis, lembrando-se de nós.

— É claro!... Quem é que não gosta de ter os seus salões cheios em tais ocasiões?... Por mim, suponho que é bastante agradecermos-lhes o convite com a mesma gentileza com que o fizeram.

A senhora Barduzac encolheu os largos ombros.— Supõe que é o bastante? Temos que arranjar um pretexto aceitável,

para não ficarmos mal vistos.— Então é arranjá-lo, minha senhora.— Eu é que não vou arranjá-lo, porque não vejo razão para que não

queira ir à festa.Fitei-a, surpreendida.— Como?!... Então não foi a senhora que recusou todos os convites este

inverno?... Não foi a senhora que disse sempre que nada tinha a fazer nessas festas, arranjando então pretexto para se desculpar em todas elas?

Nos seus olhos frios e encovados, devido à gordura descorada que os cercava, notei aquela irritação que eu lhe conhecia há muito. O tom da sua voz tornou-se mais rude e autoritário.

— Isso foi no inverno, quando há o perigo de se apanhar um resfriado, ao sair dessas festas. Agora o caso é outro... Vou-lhes dizer que aceitamos

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o convite.— Não tenho um vestido apresentável, minha senhora.— O vestido branco do ano passado!— Está muito desbotado. Iria fazer uma triste figura, ao lado das suas

amigas Samponi, sempre bem vestidas.Não percebeu a minha ironia... Reflectiu um instante, e concluiu,

esfregando os dedos gordos no seu penteador, de cor lilás:— É preciso então mandar fazer um.— Não posso fazer essa despesa.— Há despesas inevitáveis.Dizendo isto, olhou para o trabalho que estava fazendo, e acrescentou:— Para quê, tanto luxo no enxoval?... Podia ser feito dum tecido mais

ordinário. Devemos fazer economias, quando temos apenas um pequenino dote, que no fim de contas é insignificante para a quadra que atravessamos.

— Paciência — respondi-lhe com frieza. — Prefiro privar-me doutras coisas e fazer os meus vestidos e os meus chapéus por minhas próprias mãos; além disso não ficam tão caros como aqueles que a senhora manda buscar às grandes casas de Paris.

— Sim!... Já sei que é sempre a menina que está dentro da razão. Pobre do felizardo que a escolher para esposa!...

Era sempre este, pouco mais ou menos, o prognóstico que me lançava em rosto, no final de todas as nossas discussões, aliás bem freqüentes. Não me impressionava já com isso e evitava até responder-lhe, para não prolongar estas conversas pouco agradáveis, em que a senhora Barduzac tinha sempre a última palavra.

Naquele dia, porém, estava tão irritada, que repliquei, sem bem saber o que dizia:

—- Sim! Um felizardo!... Fique, no entanto a saber que não será o primeiro que me apareça.

— Que quer dizer com isso?... Pretende talvez um príncipe ou um milionário?

Com um sorriso irônico, respondi-lhe:— Talvez! Quem sabe?... O que lhe posso garantir, é que não casarei

com o primeiro menino bonito que me queira impingir, como fizeram àquela pobre Elisa Duteil, que hoje é tão infeliz. Prefiro ficar solteira toda a vida, a aceitar um indivíduo que não conheça e que não ame ou possa vir a amar.

A senhora Barduzac tomou uma expressão taciturna, o que a tornava hilariante, com o seu rosto gordíssimo.

— Na verdade estas jovens de hoje são intoleráveis. Amar! Amar!... No meu tempo essa palavra não existia no vocabulário duma menina bem educada.

— Não existia para os outros; porém, no íntimo, quem é que o pode garantir?...

Fingiu não perceber e prosseguiu num tom doutorai:

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— Quando casei com o senhor Barduzac, tinha-o visto apenas duas vezes; no entanto entendemo-nos muitíssimo bem.

— Não duvido. O senhor Barduzac era capaz de viver bem com o próprio Satanás.

As raras sobrancelhas da senhora Barduzac fizeram menção de se aproximarem.

— Queria saber o que é que pretende insinuar com isso. Ousa talvez comparar-me ao demônio?Tomei uma expressão inocente e respondi-lhe:— Não, minha senhora! Quis apenas dizer-lhe que o meu tutor dá-se

bem com toda a gente, e que só não viveria bem com ele quem fosse dotado dum gênio verdadeiramente infernal.

— Olhe que a mim não me tem faltado paciência para aturar os seus defeitos, que também os tem.

Dizendo isto levantou-se, não sem esforço, e deitando um olhar investigador a todo o quarto, deteve-se sobre umas rosas que ornavam um velho vaso de Rouen.

— Já lhe disse, Gillette, que não é bom ter flores no quarto.— Ponho-as ali fora, durante a noite, minha senhora.— Tem sempre a mania das complicações. Para que são estas flores?...

Só para fazer perder tempo. Eu... não uso disto onde quer que seja.- Cada um tem os seus gostos. Eu, por exemplo, não posso suportar as

flores artificiais que a senhora conserva com tanto mimo na sua sala de visitas.

Barduzac teve um gesto de arrogante superioridade.- Não tem nenhum gosto, Gillette!... Mesmo nenhum!... É demasiado

pretensiosa!... Tem pretensões com fartura!Dizendo isto retirou-se e recomecei o meu trabalho; contudo a sua

visita deixou-me de tal modo mal disposta, que os pontos já não tinham a necessária regularidade. Levantei-me, sacudi os pedaços de linha que estavam agarrados à saia e fui encostar-me à janela, depois de ter dado algumas voltas pelo quarto.

Diante de mim estendia-se o jardim dos Barduzac, sempre bem tratado, com um canteiro redondo ao centro e estreitos alegretes ao longo da parede, tendo no meio alguns arbustos e um castanheiro ainda novo. A senhora Barduzac não gostava de árvores, e desta antipatia resultava que o jardim tornava-se intolerável durante o verão, quase desde que o sol nascia.

Por um dos estreitos arruados, cobertos de areia avermelhada, passeava o senhor Barduzac, trazendo vestido um fato às riscas e na cabeça um chapéu de panamá desabado. Arrastava um pouco a perna esquerda, devido ao reumatismo, e parava a cada instante para contemplar as suas flores.

Observava-lhe o duro perfil, de queixo saliente. Era um homem doente e calmo, tão incapaz dum gesto de bondade como de maldade; podia-se dizer que era um verdadeiro autômato nas mãos da senhora Barduzac, a

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cujos maleáveis caprichos se submetia estúpidamente, para evitar qualquer discussão. Sabia já que nunca encontraria nele nenhum auxílio, no caso da omnipotente senhora pretender impor-me alguma descabida exigência.

Apesar do meu caracter enérgico, pouco dado à melancolia, não deixava no entanto de sentir necessidade de afeição e confiança. Em certas ocasiões sentia-me acabrunhada, dentro desta estranha casa, entre estes dois seres, dos quais um me era hostil e o outro indiferente. Tinha a certeza de que a senhora Barduzac me detestava. Porquê?... Inveja própria de mulher que foi bonita? Sim, porque, segundo me parece, ela fora uma mulher bonita!... Custava-me a acreditar em tal, pois revelava uns baixos sentimentos!... Seria talvez a triste inveja duma estúpida burguesa, contra a nobreza da minha origem? Talvez fosse possível. Porém, o que não havia dúvidas, é que os nossos gênios se chocavam em todas as suas manifestações. Exasperavam-na as minhas respostas incisivas, a minha franqueza, o meu espírito independente... Vivíamos num contínuo estado de guerra, desde que deixara, aos dezoito anos, e com que saudade, o meu convento.

O meu pai, o capitão de Arbiers, morrera num reconhecimento em Marrocos, de que resultou a saída da minha mãe para Tours, onde tínhamos velhos amigos. Aí alugou um modesto andar, porque embora os seus rendimentos lhe permitissem um certo conforto, resolveu fazer economias para aumentar o meu dote. Vivia na mesma casa a família Barduzac. O senhor Barduzac era juiz de paz. Ainda que fossem considerados como gente honrada, nem por isso eram mais estimados na vizinhança, em especial ela, que era tida como uma mulher autoritária, pretensiosa e desgovernada.

A saúde da minha pobre mãe agravou-se desde a morte de meu pai. Um dia teve uma síncope que assustou a nossa criada; esta, como primeiro gesto, correu a casa da vizinha. Veio a senhora Barduzac, que prodigalizou a minha mãe todos os cuidados necessários, voltando no dia seguinte e nos subseqüentes. Não era discreta, como não compreendia nem as idéias nem os gostos da minha mãe; esta, por outro lado, sentia-se tão só, tão fraca e doente, que não podia prescindir dalguém que lhe prestasse os necessários socorros. Nestas condições aceitou o oferecimento da senhora Barduzac. Depois morreram-nos os velhos amigos, e ela viu-se ainda mais isolada, numa cidade onde, entregue à solidão da sua viuvez, não tinha criado relações. A saúde desaparecia--lhe dia a dia, enquanto que por outro lado aumentava de mais em mais a influência da vizinha. Nesse tempo era eu uma pequena esperta e afectuosa, e queria muito a minha mãe; começaram no entanto as divergências entre mim e a senhora Barduzac, com grande mágoa para a minha mãe.

Pobre mãe!... Morreu suavemente, num dia de inverno, na altura em que eu completava catorze anos... Sempre que no meu pensamento perpassam esses dias, sinto uma dor pungente ao recordar as horas dolorosas que então passei!... Ela era a minha única afeição; tínhamos apenas alguns parentes afastados, desconhecidos para mim. Não gostava

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dos Barduzac; e todavia foi a eles que a minha mãe confiou o cuidado da minha tutela. Foi sem entusiasmo que tal soube, e desde então o meu maior desejo foi entrar para um convento, tal o desgosto que sentia ao lembrar-me que ia ficar a viver com eles.

Durante os quatro anos do meu internato, apenas os via na época das férias. Tendo resolvido um dia retirar-se para o campo, o senhor Barduzac adquiriu uma casa em Largillais, pequena cidade da Touraine, onde vivia um grande número de modestos capitalistas. Como possuíam apreciáveis rendimentos, eram tratados com certa consideração, o que muito lisonjeava a grande vaidade da senhora Barduzac. Além disso servia-se da minha pessoa para subir mais alto no seu pedestal: "A pupila de meu marido, uma órfã a quem dispensamos os nossos cuidados, e que é tratada como nossa filha... A menina Gillette de Arbiers, nossa pupila, filha do pobre conde de Arbiers, morto em Marrocos... Um herói, minha senhora!... (ou meu caro senhor!)".

E chegada a este ponto começava uma comovente descrição da expedição em que meu pai tomou parte e a qual lhe custou a vida. Esta história, ouvida tantas vezes, parecia-me sempre muito bonita e comovia-me. Quis, porém, a pouca sorte, que um certo dia, procurando nas estantes do senhor Barduzac uma obra de Corneille, encontrasse um livro onde se tratava das nossas conquistas em África. O volume abriu-se como que por si mesmo, numa certa página, e o que leio?... A descrição exacta e literal da expedição tantas vezes contada pela senhora Barduzac. A única diferença consistia em que o herói, nesse relato, não se chamava capitão de Arbiers.

Nada disse desta minha descoberta, mas dias depois, numa reunião em casa da senhora Geolle, esposa do escrivão, fui apresentada a uma recém-chegada: “Gillette de Arbiers, etc...”, e a senhora Barduzac começou a contar a tão velha história. Esperei que chegasse quase ao fim; nessa altura, aproveitando-me dum momento em que se calou, para poder respirar, e enquanto se ouviam por toda a sala uns murmúrios de comiseração, disse com toda a calma:

— A senhora não estará enganada?... Essa passagem refere-se à morte do capitão X...

Enrubesceu e olhou-me um tanto de lado.— Como?... Que significa essa estúpida idéia?— Li-a no livro intitulado: As nossas conquistas em África. A páginas

quarenta e duas encontrará essa descrição tal como a acaba de contar. Parece-me até que não lhe falta uma palavra.

O rubor tornou-se maior no rosto pálido da senhora Barduzac, que emudeceu por instantes, depois dos quais continuou, evitando olhar-me:

— Pode ser que exista uma coincidência entre essas duas mortes. Porém o que estou contando, ouvi-o à sua própria mãe.

Desde esta ocasião deixou de repetir o conto mentiroso; no entanto a sua animosidade recrudesceu contra mim, a par da sua vaidade intimamente ferida. Isso contudo não me incomodou. Até me senti

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satisfeita por lhe ter mostrado como tinha descoberto a sua falsidade, pois tenho uma arreigada aversão à mentira, e sentia-me irritada contra ela por ter ludibriado assim a minha infantil ingenuidade.

Aos dezoito anos saí do colégio, com vários diplomas, mas bastante desolada por ter de ir viver com o meu tutor. A Madre Superiora, minha confidente, aconselhou-me: “Sê boa e paciente. Não te indisponhas com a senhora Barduzac, seja por que motivo for; é preciso na vida ser-se transigente, minha filha”. Desta forma, foi com a melhor das disposições que cheguei à “Vila das Palmas”, assim chamada, com certeza, em honra daquelas que o senhor Barduzac usava — e empreguei os melhores esforços por as conservar o maior tempo possível. Não creio fazer a mim própria imerecidos elogios, se disser que fui verdadeiramente angélica durante quase um ano. Sucedeu porém que a senhora Barduzac, valendo-se da minha paciência, tentou fazer de mim sua escrava. Era destas criaturas que só cedem diante da brutalidade. Compreendi-o logo e por isso levantei também a minha lança. Foi então declarada a guerra entre nós. A existência tornou-se-me penosa, pelo que esperava ansiosamente a minha maioridade, a fim de poder agradecer aos Barduzac todos os favores dispensados e dizer-lhes adeus com todo o prazer. Tornava-se necessário esperar por esse dia feliz, que apenas chegaria dentro de oito meses...

Para onde iria eu?Não o sabia ainda. Naturalmente instalar-me-ia como pensionista

nalgum convento, até me casar — admitindo que encontrasse um marido a meu gosto, pois não exagerei, quando disse à senhora Barduzac que não seria qualquer um que me havia de servir.

Em última análise, se fosse necessário, ficaria solteira, procuraria alguma ocupação que me agradasse e trataria de me tornar útil ao próximo.

Preferia, porém, muito mais o casamento — desde que o marido me agradasse de facto.

II

Na tarde do dia em que a senhora Barduzac me deu conhecimento do convite dos Samponi, saí a dar umas voltas. O tempo estava a ameaçar chuva e eu caminhava vagarosamente, com o mesmo ar fatigado, segundo me parecia, de todas as pessoas com quem me encontrava. Ao atravessar uma rua, cumprimentou-me um jovem bem parecido, em quem reconheci o doutor Borday, médico formado há pouco, que a senhora Geolle apresentara à minha tutora, por ocasião da sua última reunião mensal.

Enquanto continuei a caminhar, fui relembrando algumas das palavras amáveis que ele então me dirigiu, bem como as suas maneiras distintas e a sua agradável apresentação. Naquele dia notei que me olhou um pouco mais demorada-mente, talvez até mais do que devia ter feito, e eu desviara os olhos com certo ar de dignidade. Só pelo facto de eu ser bonita, concluia-se que já me podiam olhar assim?

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Era na verdade bonita. Dizer o contrário seria, com certeza, uma falsa modéstia. Talvez deixasse um pouco a desejar a regularidade dos meus traços; mas a pele era delicada, os cabelos eram castanhos escuros, ondulando ao vento, e os olhos grandes e pretos eram vivos e ternos. Segundo me disse um dia a senhora Geolle, a minha fisionomia era muito expressiva. Além disso era bastante magra, de talhe elegante, qualquer roupa me ficando bem, e tendo nas mãos e na delicadeza dos meus atractivos uma comprovação da minha origem aristocrática, no dizer da senhora Geolle.

A existência destas qualidades não me tornaram vaidosa, como seria de supor; ainda não conhecia a garridice. Se gostava de me apresentar sempre bem vestida, não era para chamar a atenção dos rapazes, pelos quais, devo confessá-lo, sentia a maior indiferença; nenhum dos cinco ou seis que até então me tinham sido apresentados, entre as pessoas das relações da senhora Geolle, conseguiu atrair a minha simpatia.

Pensando nisto, cheguei ao estabelecimento. “Os reis magos”, razão de ser do meu passeio. Em frente ao correio encontrei-me com o senhor Huchard, um antigo comerciante, amigo dos Barduzac, com os quais ia jantar todos os domingos e jogar uma partidinha. Huchard passava já muito além dos cinqüenta anos; tinha uma cabeleira escura, e apesar da pouca atenção que eu lhe dispensava, dava-se à veleidade de me fazer a corte. Desta vez ainda saudou-me com um largo cumprimento e parou para se informar da saúde da senhora Barduzac, todo enfatuado no seu casaco, confeccionado a capricho. Respondi--lhe lacònicamente e retirei-me para entrar no estabelecimento.

Fiz as minhas pequenas compras, e demorei-me ainda uns instantes examinando as prateleiras do estabelecimento. No balcão viam-se desenroladas peças de tecidos de toda a espécie, oferecendo aos olhos dos fregueses a atracção aliciante das suas diversas cores. Havia-os para todos os gostos. O meu, porém, inclinou-se nesse mesmo instante para um crepe azul claro — um azul suave, delicado, que recordava o dum céu estivai, depois duma chuvada.

"É assim que quero o meu vestido para a festa dos Samponi" — pensei comigo.

Logo um plano se delineou no meu espírito. A senhora Barduzac ia com certeza indicar-me a sua costureira, mas ela trabalhava muito mal. Além disso, ambas tentariam impor-me o seu gosto, que era sempre o contrário do meu. E se eu comprasse este crepe Com a minha habilidade faria eu própria o vestido!... Naturalmente a senhora Barduzac ia ficar furiosa, mas teria de se conformar, visto já nada poder alterar, pois que no estabelecimento não aceitavam a devolução de cortes de fazenda.

Um caixeiro veio atender-me. Depois de verificar que tinha o dinheiro suficiente, mandei cortar os metros que precisava. Saí, levando o embrulhinho da linda fazenda, satisfeita pela minha compra e antegozando o dissabor que a senhora Barduzac ia sentir.

No momento em que entrava em casa, quis o acaso que ela atravessasse

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o vestíbulo. O embruIhinho chamou-lhe logo a atenção.— Que traz ai, Gillette?— Um crepe azul claro, minha senhora, para fazer o meu vestido.— Crepe... para o seu vestido? Então foi fazer compras sem mim e sem

pedir a opinião da menina Boitte?— Não preciso da opinião da menina Boitte, porque eu própria farei

este vestido.Soergueu os braços, soltando uma risada de troça:— Deve ficar uma beleza!..., uma elegância!... O que eu não quero, é

tornar-me ridícula levando à casa dos Samponi uma caricatura.— Fique sossegada, minha senhora — respondi-lhe. — Farei um vestido

inteiramente a meu gosto, e não irei torná-la ridícula, nem originar-lhe qualquer vexame.

— Oh! As suas idéias são sempre admiráveis!... Deixe-me ver isso...Abri o embrulho e estendi o tecido sobre a mesa da sala de jantar. A

luz clara do sol, que entrava livremente pela janela, o meu crepe ainda me pareceu mais bonito.

Encolheu os ombros e torceu o nariz largo e curto.— É um tecido muito fino, que não se pode usar. E azul!?... Depois de

o vestir umas três ou quatro vezes, vai ver em que estado fica o vestido!...Os seus dedos grosseiros iam apalpando o crepe, enquanto sorria com

ironia:— ...Esta compra foi uma tolice!... Foi o resultado de não me querer

consultar!...Tive ímpetos de lhe responder: “Naturalmente!”, mas dominei-me.—...Além disso, sabe que o azul claro é uma cor da minha antipatia...

Foi talvez por isso que a escolheu, não?— Não, minha senhora! Era incapaz disso. Escolhi-a apenas porque

gosto dela.Com um gesto desdenhoso afastou de si o tecido.— Nunca há-de ser uma mulher ajuizada. Sempre disse isso a meu

marido, e ele agora vai certificar-se que eu tinha razão.Dizendo isto levantou-se e saiu, encolhendo os ombros, gesto

freqüente nela, em especial no decorrer das nossas discussões. Por mim embrulhei e guardei o crepe, que parecia uma estreita nesga do céu.

Devo dizer, com toda a sinceridade, que o meu vestido foi um dos mais encantadores entre os muitos que enchiam as salas dos Samponi. Tinha-o enfeitado com uns lindíssimos bordados brancos, que herdara de minha mãe, os quais, e só eles, lhe davam um ar de elegância discreta, visto que tinha escolhido um modelo, o mais simples. Olhei-me ao espelho e verifiquei que me ficava muitíssimo bem, e que este azul-pálido ligava admiravelmente com o tom da minha pele. A senhora Barduzac, no entanto, achou maneira de me dizer num tom áspero e examinando-me da cabeça aos pés, antes de sairmos:

— Este vestido não lhe fica nada bem. Está provado que a cor da sua pele não liga bem com as cores claras. Mas isso pouco lhe importa, e

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muito menos quando sejam conselhos de pessoas experientes.Estas palavras não me impressionaram; pelo contrário, eram uma

evidente prova de que o meu vestido me ficava bem, e mais ainda me convenci, devido às expressões lisonjeiras com que mo deram a entender os meus companheiros de dança.

A tarde estava quente e bonita; em face disso era com prazer que as visitas deixavam os salões e se espalhavam aos grupos pelo jardim, cheio de sombra, onde tinham improvisado uma pequena barraca para bebidas. Ao terminar uma dança qualquer, em que tinha sido meu par o doutor Borday, este perguntou-me se lhe dava o prazer de aceitar uma taça de champanhe. Aquiesci, e fomos para o jardim.

— Veja — disse-me ele a meia voz, mostrando-me uma nesga azul do céu, que se via através dos ramos das velhas faias — o seu vestido é da cor do céu...

O seu olhar dirigiu-se de novo para mim, o que me fez corar um pouco, porque nele notei um vislumbre de admiração.

Sentamo-nos não longe das mesas da barraca, conversando, enquanto bebíamos lentamente as nossas taças. Possuía um espírito delicado e uma tal cultura intelectual, que se destacava entre todos os outros rapazes que se encontravam nessa festa; o seu olhar era também agradável e um tanto reflexivo.

Teria por outro lado encontrado este doutor Borday ainda muito mais simpático, se não fosse um certo ar de fatuidade que lhe notei. Se há coisa que eu deteste, acima de tudo, é a vaidade.

Ele no entanto parece que simpatizou bastante comigo, porque, mais duma vez, me convidou para dançar, o que se tornou muito notado, no dizer da senhora Barduzac.

— Sim, minha querida — declarou-me, peremptória, no regresso —, as suas maneiras atraíram esse rapaz; toda a gente o notou.

Respondi-lhe friamente:— Contudo, parece-me que o meu namoro foi quase nada, comparado

com o descaramento de Carlota Samponi.— A Carlota procede com mais franqueza. A menina, aparentando

esses seus modos reservados, sabe muito bem fazer-se salientar. Mas não se iluda; o doutor Borday não vai atrás de qualquer dote.

— Isso é com ele... e não vou chorar por isso.Ao passarmos diante duma casa, modestamente mobilada, parei

alguns instantes, a cumprimentar uma senhora idosa, que eu socorria — o que me valeu uma boa descompostura da senhora Barduzac, quando consegui juntar-me a ela.

III

Após aquele dia, o sol não se deixou ver durante várias semanas. No guarda-vestidos, o meu vestido cor do céu continuava à minha espera. Vesti-o apenas duas ou três vezes ainda, durante aquele verão. Depois veio

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o outono, e lá continuou fechado durante meses. Em casa dos Barduzac a vida ia-se tornando cada vez mais difícil para mim. Por felicidade, em breve surgiria a alvorada da minha maioridade, além do casamento, que já se delineava no meu horizonte.

Desde a festa dos Samponi, eram freqüentes os meus encontros com o doutor Borday; e eu não podia acreditar que tais encontros fossem ocasionais. Em fins de Novembro a senhora Geolle veio preparar o terreno para um pedido oficial. Passado o primeiro momento de comoção, respondi-lhe que precisava reflectir, e que apenas daria a minha resposta no princípio de Janeiro, época em que atingia a minha maioridade.

Neste meio tempo surgiram desagradáveis questões com a senhora Barduzac:

—Então precisa de dois meses para resolver?... Eu, quando fui pedida pelo senhor Barduzac, disse logo que sim.

— O que prova que a senhora não compreendeu a gravidade do acto que ia realizar.

— Ora essa!... Tanta esquisitice para aceitar um belo rapaz, senhor duma invejável posição e filho de pais abastados?

— Esse belo rapaz é para mim, no campo moral, quase um desconhecido. Se o aceitar como noivo, é para viver com ele toda a minha vida. O caso merece por isso que seja bem reflectido.

Soltou uma estridente gargalhada:— Faça como quiser. Mas se lhe fugir, cansado de esperar, não se

queixe de ninguém!— Fique descansada, minha senhora, que não lhe tornarei a culpa.

Costumo assumir sempre a responsabilidade dos meus actos.Esta resposta foi para atingir tão arrogante criatura, que, quando

qualquer assunto tratado por ela, não corria bem, atribula sempre aos outros o insucesso.

Sentia-me portanto bastante embaraçada cora o pedido do doutor Borday. Era certo que não me desagradava. Sob o ponto de vista físico e intelectual era dotado de grandes qualidades; porém o seu lado moral era para mim ainda desconhecido. Como disse já, Borday parecia um tanto envaidecido da sua pessoa. Sob esta estranha aparência, sob a doçura do seu sorriso e do seu olhar podiam esconder-se muitos e graves defeitos. Como sabê-lo? O assunto era bastante melindroso, e eu via aproximar-se o dia em que devia dar a resposta, sem que me sentisse mais convencida ou mais decidida, a menos que o amor não viesse tomar a sua parte.

Até aqui o meu coração não tinha sentida mais do que um leve estremecimento. Por acaso esse normal pulsar iria aumentar dentro de dois meses?... Então a minha decisão torna-se-ia mais rápida, se um qualquer acontecimento não viesse contrariar as boas informações dadas pela senhora Geolle.

Naquele ano o Natal apresentou-se todo branquinho. No nosso jardim, coberto de neve, viam-se impressos os largos rastros da senhora Barduzac e as pegadas mais delicadas do marido. Por mim não me cansava de

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contemplar as árvores, adornadas daquele branco e gélido manto; depois o meu pensamento concentrava-se no doutor Borday e na resposta que devia dar-lhe dentro de oito dias. Fui à missa do galo, na companhia da senhora Geolle. Pedi muito a Deus que me esclarecesse sobre o que devia fazer, visto nada ainda ter resolvido. O pulsar do coração acentuava-se um pouco mais, cada vez que me encontrava com o doutor, sempre amável e visivelmente apaixonado, o que até certo ponto perturbava o meu coração e lisonjeava o meu amor próprio. Parecia-me ser bom filho e os seus clientes estimavam-no muito; por outro lado parecia-me também que era demasiado amigo de pândegas, gostando bastante da vida fora de casa. Todavia, quando tivesse casa e família, era talvez muito possível que estes hábitos e estas tendências se transformassem — em especial se gostasse muito de mim...

Nessa manhã de Natal, quando pensava neste assunto, com o rosto apoiado ao vidro gelado da janela, ouvi a voz da senhora Barduzac:

- Gillette!... Venha cá a baixo! Impressionou-me aquela voz, onde se notava um grito de triunfo. Com o

coração oprimido, pensei logo: "Alguma coisa desagradável está para acontecer!... É talvez o doutor que se vai embora!..."

Desta impressão concluí que me era de todo indiferente, e que a minha resposta não seria talvez afirmativa.

Desci devagar e encontrei a senhora Barduzac à porta do gabinete do marido. Estava muito vermelha, tendo nos olhos a expressão de alegria maldosa, que lhe conhecia há muito.

— Escute, Gillette. O seu tutor tem uma notícia muito grave para lhe dar, uma notícia que vai transformar por completo a sua vida.

Senti um leve arrepio, mas consegui ficar impassível sob o olhar da senhora Barduzac, que procurava avaliar a minha inquietação.

Entrei atrás dela no gabinete, pequeno compartimento bastante quente, que cheirava demasiado a bafio, e diante de cuja secretária se encontrava sentado o senhor Barduzac, alisando com a ponta dos dedos uma folha de papel estendida diante dele. A grande preocupação que o domina, manifestava-se logo no boné, posto muito a trás, e no cachimbo, que descansava sobre a pilha de livros. Como de costume, estendi-lhe a mão:

— Bom dia, senhor Barduzac.— Bom dia, Gillette. Como vai?... Tossiu, passou a mão pelo bigode grisalho e olhou-me embaraçado:— Sente-se... Recebi uma notícia muito agradável para si.— O que foi, senhor Barduzac? Sentei-me numa cadeira, junto dele, e a esposa sentou-se de maneira a ficar

na minha frente. O meu tutor mordeu os lábios, esticou o pescoço mais do que costumava, e estendeu a mão sobre o papel desdobrado na sua frente.

— Acabo de saber que faliu o Banco do Loire, onde, conforme o desejo da senhora de foi colocada a maior parte da sua fortuna, agora perdida, absorvida pelas especulações aventurosas dos seus directores.

Foi nessa ocasião que avaliei a minha grande força de vontade, pois

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consegui manter-me quase impassível, sob o olhar maldoso que me observava.

— É na verdade uma grande desgraça — respondi, com serenidade. — Que foi então que me ficou?

O senhor Barduzac fitou-me um instante, sem responder, com a boca aberta e os olhos absortos:

— Mas..., no entanto..., parece não compreender a gravidade da sua situação?

— Oh! Sim! Muito bem!... É o que se chama a ruína, não é verdade?— Isso... exactamente; a ruína quase completa. Restam-lhe apenas vinte

mil francos e a sua quinta da Meulière.— Ou seja uma renda total de...?— Quatro mil francos pagos pelo caseiro e cerca de oitocentos francos

provenientes dos títulos, que são bons. — Vai agora precisar de trabalhar...— concluiu a senhora Barduzac, cujos

lábios grossos se contraíram num ricto de ironia.— ... Mas não vejo nada em que possa trabalhar. Apesar de todos os seus

diplomas, suponho que não está à altura de se dedicar ao magistério!... No comércio também nada fará... Talvez encontre um lugar de dama de companhia.

Foi com a mesma calma que respondi:— Preciso reflectir; no entanto espero que dentro de oito dias já

estejam livres de mim, visto que a minha maioridade coincide com a minha ruína.

O senhor Barduzac protestou com frieza:— Não há pressa, Gillette!... A nossa casa...A esposa interrompeu-o:— Certamente; até lá pode-se deixar estar. Durante esse tempo

procurarei encontrar-lhe, entre as minhas amigas, um emprego conveniente. Se não for muito exigente, encontraremos com facilidade.

Senti que rejubilava com a minha ruína, que esta era para ela uma queda de posição, ela que estava habituada a considerar as pessoas conforme a importância dos seus rendimentos. Isto, portanto, era mais uma razão para que mantivesse uma atitude altiva e calma ante este rude golpe, ainda mais doloroso devido ao ingrato abandono destes dois seres, que me tinham conservado na sua companhia, em virtude do bom rendimento que lhes proporcionava, pois que a despesa que faziam com a minha manutenção era muito inferior ao que recebiam da minha pensão.

Levantei-me, declarando com voz firme:— Tenho a dizer-lhe que não aceitarei qualquer emprego. Não irei

morrer de fome e poderei provisóriamente ir viver para a Meulière.A senhora Barduzac informou com ar desdenhoso:— Parece que a casa está a cair aos pedaços...— Sempre terá um quarto para me abrigar, enquanto não surgir um

emprego conveniente. Em casos como este, sempre é bom agir com calma.

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— Quer dizer com isso que não vai aceitar os meus conselhos, como é seu costume?... Fique certa de que isso nada lhe adiantará. Se há dois meses tivesse aceitado o pedido do doutor Borday, como lhe disse, agora estaria quase casada e ele seria obrigado a engolir a pílula. Hoje..., oh! pobrezinha!..., creio que...

Senti o sangue subir-me às faces e interrompi-a com um tom brusco.— Eu sei muito bem!... A partir de hoje pode considerar-se livre.

Respondo ao seu pedido com uma recusa, e está tudo terminado. É natural que ninguém queira desposar uma jovem arruinada, mesmo quando se está numa invejável posição como a do doutor Borday! Fique tranqüila, minha senhora, que ainda sou bastante inteligente para o compreender.

— Saí do gabinete e regressei ao quarto. Uma ligeira febre me assaltava as têmporas, e toda a minha coragem me abandonou por momentos, quando me senti só, longe do olhar maldoso e inquiridor da senhora Barduzac. Com um grande esforço conseguira ainda há pouco afrontar essa mulher; porém agora a reacção começava e uma certa angústia oprimia-me o coração.

Arruinada!..., estava arruinada!...Tão amiga de ser independente, seria forçada a trabalhar na casa dos

outros!...Fiquei imóvel, mergulhada numa poltrona. No meu cérebro os

pensamentos entrechocavam-se um pouco desordenadamente. Só passados minutos dois deles se delinearam claramente: o meu supremo desprezo pelos Barduzacs, que tanto tinham prometido à minha pobre mãe que me tratariam sempre como filha, e a certeza de que, nas atuais circunstâncias, o casamento seria de facto impossível para mim.

A senhora Barduzac afirmava quase todos os dias que, na sociedade a que pertencíamos, não se desposavam pequenas pobres. E eu tinha quase a certeza de que Marcos Borday não a deixaria mentir. É certo que lhe agradava, porém com os meus trezentos mil francos de dote no cofre. E sem contar ainda, conforme ele supunha, que os Barduzac, sem parentes próximos, me deixariam toda a sua fortuna. Agora uma Gillette de Arbiers quase pobre, era outro caso!...

Faltaria à verdade se não dissesse que sofri muito, ao ver evaporar-se este pequeno sonho azul; e entretanto o jovem médico tinha feito bater, ainda que ao de leve, o meu pobre coração, e eu supunha que precisaria ainda dalgum tempo para o esquecer.

Os minutos iam passando e eu mantinha-me sempre na mesma posição, procurando coordenar as minhas idéias; só me sobressaltei quando o relógio de parede bateu onze e meia. Os Barduzac tinham alguns convidados para o almoço. Precisava por isso mudar de roupa e descer como se nada se tivesse passado.

IV

Vesti-me quase sem dar por isso, pensando no duro golpe que me atingira;

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entretanto uma relativa calma começava a dominar o meu espírito, onde se delineou um plano: abandonar esta casa logo que o meu tutor me prestasse as suas contas e ir para a Meulière dentro de oito ou dez dias. Por pouco confortável que pudesse ser a casa da Meulière, era-me muito mais agradável do que esta, onde era detestada, onde todos procuravam avidamente perscrutar nos meus olhos os menores vislumbres de abatimento ou tristeza. Além disso estaria na minha própria casa, onde encontraria, na intimidade, o afectuoso apoio da caseira, Catarina Bardeaume; esta fora minha ama, e todos os anos, no primeiro dia de Janeiro, me escrevia uma linda carta, perguntando-me, invariavelmente, quando me resolvia a ir passar uns dias à Meulière, onde todos se sentiriam felizes em me receber.

Tomada esta decisão senti-me menos abatida, e foi com toda a calma que entrei no salão, onde já se encontrava o senhor Huchard, conversando com os Barduzac.

O assunto da conversa devia ser com certeza a minha ruína, pois que, ao cumprimentar-me, notei-lhe na fisionomia uma expressão de mágoa, a que respondi com um leve sorriso de ironia. À mesa mostrei-me despreocupada e alegre como de costume. O senhor Huchard, sentado à minha direita, rodeava-me das suas atenções um tanto rudes, proferindo pretensiosas frases, que só conseguiam causar-me tédio. Ao levantar-me da mesa, tomou-me o braço e sussurrou-me ao ouvido:

— É muito corajosa!... Nada receie, porém, porque não ficará na miséria.

— Voltei-me com calma e respondi-lhe friamente:— Não ficarei na miséria, senhor, porque graças a Deus sou ainda nova e

tenho saúde bastante para poder trabalhar.Chegados ao salão, deixei-o, e fui sentar-me junto da senhora Geolle, que não

me agradava também muito, mas que era preferível a esse amigo dos Barduzac. Em seguida, logo que me foi possível, voltei ao meu quarto, a fim de escrever à Catarina, enquanto a senhora Barduzac se vestia para visitar algumas das suas boas amigas e contar-lhes a desgraça que me havia atingido, já do conhecimento de todos os convidados do almoço, conforme pressenti, pelo que senti à minha volta de sussurros e de olhares — uns de protectora piedade e outros de maldosa satisfação.

Catarina Bardeaume respondeu-me logo no primeiro correio. Divagava em longas e comovidas frases acerca da minha ruína, maldizendo todos os banqueiros, e avisando-me de que me esperavam com a maior ansiedade e satisfação.

"Previno-a, no entanto, de que a casa está em muito mau estado... Chove na sala de visitas e em vários quartos, e as portas estão empenadas. Além disso não tem móveis, visto que a humidade fez apodrecer os poucos que restavam. O seu pobre pai deixava que as coisas corressem de qualquer maneira, e quando morreu, já tudo necessitava de reparações. São decorridos vinte anos, e entretanto a humidade continuou a sua devastação. Talvez haja apenas um quarto habitável; é grande e bonito, voltado ao sul

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e com frente para o jardim; o teto e as paredes não estão deterioradas como as dos outros, e o soalho não custará a pôr-se lustroso, porque é de óptimo carvalho. Porém não está convenientemente mobilado para a menina. Se aceitasse, teria muito prazer em lhe oferecer um quarto aqui na quinta, o da minha filha Angelina. Faço-o com a maior vontade e suponho que deve ficar melhor aqui, apesar de tudo, do que sozinha na sua velha casa».

Terminada a leitura da carta circunvaguei os olhos pelo quarto. Tinha ali o mobiliário do quarto da minha mãe, os adornos que ela estimava, dois ou três retratos de família e um lindo espelho antigo. Alguns móveis ainda, muito bem conservados e dum certo valor, alguns objectos de arte e outros retratos ornavam a sala de visitas da senhora Barduzac. Tudo isto chegaria muitíssimo bem para mobilar a parte habitável da minha casa. E apesar de reconhecida à Catarina, pelo seu oferecimento, resolvi logo comigo manter toda a minha independência, por mais incômoda que fosse a velha casa.

Enquanto assim pensava, entrou a senhora Barduzac. Deitou um olhar disfarçado à carta que segurava nas mãos, e perguntou:— É alguma carta da sua amiga Julieta?— Julieta Mancel era uma das minhas antigas colegas de colégio, com quem sempre me correspondi.

— Não, minha senhora. É da minha ama de leite, da Catarina Bardeaume, que insiste comigo para que vá para a Meulière. Estou portanto disposta a ir para lá, logo que o senhor Barduzac já não precise de mim para regularizar as suas contas da tutela.

— Então sempre está resolvida a ir viver para a Meulière?— Provisoriamente, estou.— No entanto talvez fosse possível encontrar outra solução para o seu

caso.— Outra solução?... Qual?E de súbito, ante a sua hesitante expressão, pensei: «Estará o doutor

Borday disposto a manter a sua palavra, apesar de tudo?"Senti de novo uma leve pulsação, e senti também que um leve rubor me

subia ao rosto.— Sim, uma solução inesperada... Um óptimo casamento...—Era na verdade o que eu pensava!... As pulsações tornaram-se-me

mais fortes...— ... Está deveras apaixonado por si, o que é uma loucura, naquela

idade!...Como?... Que dizia ela?... Marcos Borday tinha trinta anos e eu vinte e

um... Talvez que...— ... Mas nada tenho com isso!... Agora pelo seu lado suponho que terá

a necessária compreensão para ser sempre a esposa digna dum homem que lhe oferece uma bela fortuna...

Ao dizer isto tomou uma expressão grave, dilatou as flácidas faces, examinou-me de alto a baixo, como quem diz: «Não merece tanto!»

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— Mas a quem se refere a senhora? — exclamei eu.— Ao pobre senhor Huchard, que, se a menina aceitar, faz a maior

tolice da sua vida...O pulsar do coração parou de súbito e o rosado pálido das faces

tornou-se em vivo rubor de indignação.A senhora Barduzac prosseguiu:— ... Nada menos do que três milhões, minha querida, honestamente

ganhos no trabalho... Nunca mais volta a ter uma sorte como esta...A sua voz tomou um tom de amarga ironia fina seus olhos rebrilhou a

cobiça. Interrompia-a, bruscamente:— A senhora está a gracejar!... Como lhe pôde caber na imaginação que,

com a minha Idade, pudesse casar com um homem de cinqüenta e oito anos?

— E por que não?... Continua a manter-se tão inacessível, ainda agora?... Sem dote, não encontra já um marido a dizer com os seus vinte anos. Fique certa disto.

— Sei-o muito bem e tentarei tirar desta situação o maior proveito; mas nunca farei um casamento como aquele que a senhora pretende insinuar-me.

Encolheu os ombros.— Já sei há muito que parece não ter o juízo todo; no entanto, Huchard é

um homem agradável, tem um caracter honesto e está ainda bem conservado...

— Não insista, minha senhora... Mesmo que fosse mais novo, o senhor Huchard não me convinha, porque pertence a um meio que, por muito honrado que seja, não é o da minha família, e a sua educação e os seus gostos são muito diferentes dos meus.

Toquei justamente no ponto fraco da senhora Barduzac, invejosa da classe social a que eu pertencia; logo que se fizesse qualquer alusão à sua origem modesta ou às famílias das suas relações, ficava toda nervosa. Tornou-se bastante vermelha e tentou fulminar-me com o olhar.

— Oh! Logo vi!... São esses miseráveis pergaminhos de amor-próprio que prejudicam o pedido do nosso amigo!?... Um pedido com que devia até sentir-se muito honrada, em face dos quatro centavos que lhe ficaram!... Faça porém como quiser; é melhor morrer de fome na sua casa desmantelada. Tenho a certeza de que, por mais duma vez, há-de lembrar-se, com pesar, daquele que a quis fazer rica, porque os milhões, hoje, valem muito mais do que os títulos de nobreza!...

A senhora Barduzac saiu furiosa, e eu sentei-me deveras pensativa e com o coração oprimido. Assim, só porque estava arruinada, já se atreviam a propor-me este casamento, como se fosse uma transacçâo!... Supunham que ficaria muito feliz em encontrar esta maneira de sair dos meus embaraços!... Que importava para elas que o pretendente fosse quase sexagenário, sem nada que o recomendasse, e pretensiosa? Nessa altura estava muito bem para Gillette de Arbiers!...

Senti os olhos cobrirem-se-me de lágrimas. Oh! Como a vida era estúpida, quando olhada por certas faces!... E que tristeza o encontrar-me

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só, totalmente só, para me defender contra os Laços que seriam armados à minha mocidade!

Fui forçada a ficar ainda durante quinze dias em casa dos Barduzac, a fim de regularizar pessoalmente os meus negócios. Durante esse tempo mandei proceder ao engradamento e à expedição da minha mobília. Para a senhora Barduzac foi um momento desagradável, quando lhe tiraram da sala de visitas o pequeno sofá Luís XVI, tão bonito, as duas poltronas, a linda secretária em pau-rosa, a mesa guarnecida de finas incrustações e os retratos dos meus antepassados, que ela dispusera pelas paredes, bem à vista. Parece-me que chegara a supor que estas damas antigas, de anquinhas e vestidos de musselina, estes fidalgos envergando trajes palacianos e uniformes militares, eram seus avós e não meus.

Um dia ouvia dizer à senhora Geolle:— Com franqueza, minha amiga, não acha que, depois de tudo quanto

fiz pela Gillette, não era muito que ela me deixasse ficar estes velhos móveis, e não me obrigasse a recompor assim a minha sala de visitas?

A senhora Geolle, sempre de igual opinião à da pessoa com quem falava, respondeu:

— Sim, com certeza! Era até a sua obrigação!...Oh! Sim, não esquecia que tinha olhado por mim, que me tinha tido na

sua casa!... Parecia-me no entanto, que lhe tinha pago régiamente a sua interesseira hospitalidade. Nada lhe ficava a dever, pois nunca recebera dela um pouco de afeição ou um pouco de simpatia.

Uma semana antes da minha partida comecei a fazer as minhas visitas de despedida. Algumas pessoas, ao receberem-me, julgaram por bem dever apresentar um certo ar de compaixão; porém o meu desembaraço e a minha despreocupação deixavam-nas admiradas. Declarava-me encantada por viver algum tempo no campo.

— Vai-se aborrecer!—prediziam-me algumas.Era possível; mas de momento, sentia-me bastante satisfeita em deixar

os Barduzac e adquirir a minha liberdade.Não ouvi mais falar do doutor Borday, a quem a senhora Goelle devia

ter transmitido a minha resposta. Na véspera da minha partida encontrei-o na Rua Nova, ao regressar da igreja, Cumprimentou-me, desviando logo os olhos. Corei um pouco, mas não senti mais do que uma ligeira comoção, um leve constrangimento. Felizmente não chegara a ter tempo de amar este desconhecido. Nestas condições a sua reserva não me fez sofrer. Concluí apenas que este homem, filho de pais abastados, com a perspectiva dum belo futuro, não tinha a necessária nobreza de espírito, para o belo gesto de manter, apesar de tudo, a sua palavra!

Portanto, tudo quanto dissera, nunca fora um amor desinteressado.Ao chegar a casa tratei de dobrar a minha roupa, arrumando-a na

mala. Ao ver o meu lindo vestido azul, lembrei-me dum belo dia de Junho, e dum jovem médico muito atencioso e deveras enamorado. Encolhi os ombros, murmurando:

— O meu pobre vestido cor do céu!... Ambos descemos um degrau,

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depois daquele dia!

V

A pequena propriedade da Meulière, situada na Vendeia, tinha pertencido a um velho tio de meu pai, o senhor de Sauriages, que fora o meu padrinho, e que ma deixou no seu testamento. Quando poderia eu pensar que ainda um dia devia tornar-se o meu único refúgio!... E nesse dia de Janeiro, enquanto o comboio me levava ao termo da minha viagem, senti uma leve apreensão apoderar-se de mim, no momento em que chegava a esse lugar para mim desconhecido.

O tempo estava cinzento e melancólico. Os extremos do horizonte estavam velados por escunas nuvens, que se estendiam lentamente pelos primeiros planos. A atmosfera apresentava-se tão desoladora, como as expressões carrancudas das minhas companheiras de viagem — duas senhoras mais ou menos idosas, duas irmãs, segundo pareciam, que logo que deixaram de cochichar, passaram a mimosear-se com palavras acres, nada amáveis, devido a uma das suas criadas, que uma queria mandar embora e a outra teimava em manter.

Refleti: "Se ao menos a minha boa Catarina estivesse na estação! Como ficaria satisfeita se me viesse esperar!"

Por volta das quatro horas o comboio parou na pequena estação de S. João da Bottellerie. Saltei, caindo quase aos braços duma mulher alta e muito magra, que se encontrava mesmo em frente da minha carruagem. - Oh! minha querida menina! - Oh! minha boa Catarina! — exclamei eu, beijando-a nas duas faces.

Afastou-se um pouco, para melhor me observar, - Mas como está bonita!... Como está bonita..

E dirigindo-se a um aldeão de blusa azul, que estava de pé, um pouco atrás, com o chapéu na mão, perguntou, cheia de inocente orgulho:

— Hem?!... Não achas, Bardeaume, que está muito bonita a minha filha de leite?...

Na sua fisionomia corada esboçou-se um sorriso, enquanto os pequenos olhos do caseiro me analisaram com benevolência dos pés à cabeça.

— Está bonita, está!... Oh! minha senhora, como estamos contentes em a vermos de novo na Meulière! A última vez que aqui esteve era ainda muito pequena, mas já no entanto todos nós lhe queríamos muito.

Estendi-lhe a mão, que as suas mãos calosas apertaram.— É uma grande alegria para mim ver-me de novo aqui. Recordo-me

muito bem da minha saudosa mãe me dizer muitas vezes: «Gillette, os Bardeaume são das poucas pessoas que nos estimam e com quem se pode contar».

Pelos olhos do caseiro passou um clarão de contentamento.— A senhora de Arbiers não se enganava. A menina estará aqui como

na sua própria casa... Mas vamos indo, não?Neste meio tempo Catarina pegou na minha maleta. Dei ao marido a

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guia das minhas bagagens e acompanhei-os para a saída.Atrás de mim ouvi uma voz masculina, dizendo:— Deixou cair o lenço, minha senhora, Voltei-me. Um cavalheiro, duma

elegante estatura, novo e muito bem vestido, em traje de viagem, descobria-se, apresentando-me o objecto em questão.

— Oh! muito obrigada, cavalheiro! Catarina, que também se tinha voltado, disse respeitosamente:— Boa tarde, senhor visconde.E afastou-se, para o deixar passar. Respondeu-lhe com um certo ar de dignidade:— Boa tarde, senhora Bardeaume! Quando se afastou um pouco, Catarina disse-me em voz baixa,

enquanto saíamos, por nossa vez:— É o senhor visconde de Trézonnes, o dono da mais bela propriedade

de toda a Vendeia.— Não parece ter um aspecto muito prazenteiro murmurei, pensando

na sua expressão altiva, dura, um tanto irônica, mas distinta, que mal tivera tempo de observar.

— Não, menina!... Não é bem o que parece!... Gosta-se dele. O que é, é um homem que só pensa em dominar os outros, e a quem nunca ninguém conseguiu dominar.

Quando saímos da estação, vimos um automóvel que se afastava. Avistei, dentro dele, a bela fisionomia do desconhecido. Bardeaume, que seguiu a direcção do meu olhar, disse, com um riso que lhe sulcou ao de leve as faces:

— Que pena, minha senhora, não termos um carro tão bom como aquele para lhe oferecermos!... O da Meulière está ali...

Assim dizendo, indicava um velho carro, coberto com um toldo, suspenso sobre arcos de madeira.

— ...Temos dentro dele uma pele de cabra e alguns cobertores... Espero que não terá frio... Catarina, acompanha a senhora, enquanto eu vou buscar a bagagem.

Quinze minutos depois seguíamos a caminho da Meulière. A bruma estendia-se pelos campos, que me pareceram por isso muito melancólicos e cinzentos. Com o cabo do chicote, Bardeaume indicou-me um vasto castelo, com ameias, que se avistava vagamente à direita.

— È a Bottellerie, o castelo do senhor de Trézonnes — explicou ele.— E vive aqui durante o inverno? - perguntei à Catarina, que seguia

sentada ao pé de mim.— Sim, menina, o ano todo, salvo durante umas breves idas a Paris.

Quem não gosta muito disso é a senhora viscondessa, a madrasta, e a menina Jaquelina, a irmã. Estas senhoras gostam mais da sociedade e da vida de Paris. Porém o senhor visconde não lê por essa cartilha.

— Então não são senhoras de fazer o que lhes apetece?— Não, menina... E onde iam arranjar o dinheiro para isso? É ele que

lhes dá uma mensalidade, com a condição de viverem na Bottellerie. Ele

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defende-se, porque a senhora de Trézonnes é uma esbanjadora e os filhos foram educados nos mesmos princípios.

— Tem muitos filhos?— Três: um filho, que é oficial e comete toda a espécie de asneiras,

porque foi criado com muito mimo; uma filha, casada com um castelão dos lados de Niort, o senhor da Bancelière, e a menina Jaquelina, que já tem vinte e cinco anos e não encontra casamento. Também quem a há-de querer!... Quando não se tem dote, e se é ainda pessoa pródiga, é de fazer fugir os poucos pretendentes que apareçam.

— O senhor de Trézonnes é rico?— Riquíssimo! Possui a fortuna de sua mãe, bastante aumentada, depois

das grandes melhorias que introduziu no domínio da Bottellerie.— Sendo assim, é muito provável que dote a irmã!— Oh! não creio muito nisso. O senhor visconde não é afectuoso com os seus. É muito inteligente, muito enérgico, mas coração ninguém sabe se ele o tem.— É solteiro?— É sim, menina, e já tem perto de trinta e dois anos. Com a sua

fortuna e bonito como é, basta-lhe apenas escolher...— Parece-me que a sorte da futura viscondessa não será talvez muito

agradável, com um marido assim tão áspero..., e nada afectuoso.— Assim deve ser... No entanto é um homem justo e correcto. Imagine

que, quando o pai lhe morreu, arruinado pelo jogo e pelos esbanjamentos da sua segunda esposa, o senhor Gui tinha vinte e dois anos, e até então nada mais tinha feito do que viajar e divertir-se. De repente tomou a direcção da casa, veio instalar-se na Bottellerie, onde apenas aparecia na época das caçadas, e começou a cuidar das suas terras, auxiliado por um velho e sincero amigo, o senhor Rouchenne, proprietário da Sauvaie. Todos diziam cá na aldeia: «O senhor visconde não percebe nada disto; acaba por perder o pouco dinheiro que tem, em vez de ganhar». Ele porém estudou, e seguiu o conselho das pessoas experientes. Depois, tem uma inteligência privilegiada, e quando quer alguma coisa, consegue-a sempre, seja de que maneira for. Assim, hoje, as terras da Bottellerie valem muito mais do que há dez anos e produzem amplos rendimentos.

Bardeaume, que ouvia apenas a nossa conversa, atento à ladeira que o animal ia subindo e que o havia obrigado a diminuir o passo, observou no entanto:

— Além disso a terra é boa e toda junta. É uma linda propriedade!... E o senhor visconde vai-a aumentando todos os dias. Qualquer dia fica senhor de toda a região... A propósito, menina, podia fazer um bom negócio com ele... A menina tem um prado, um belo prado, próximo do rio, e que ele deseja comprar, por estar contíguo aos da sua propriedade. Eu, quando ele me falou nisso, o ano passado, respondi-lhe que a menina de Arbiers ia atingir em breve a maioridade e talvez lha quisesse vender em qualquer ocasião.

— Se é um bom negócio, como diz, nada tenho a opor.

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— Depende do preço que ele oferecer. Mas temos tempo de tratar disso.

Neste momento, como terminasse a ladeira, o cavalo começou a trotar, num passo certo, todavia. Estávamos porém perto. Em breve chegámos à quinta da Meulière, toda cinzenta no meio da bruma. Ao estrépito do cavalo, uma jovem abriu a porta e caminhou em direcção a nós.

- Angelina, a sua irmã de leite, menina Gillette - disse a Catarina.Era uma moçoila alta e magra, de cabelos louros, com um vestido curto,

dum azul forte, e um pequeno avental. Cumprimentou-me com ar pretensioso, a que respondi, estendendo-lhe a mão e dirigindo-lhe palavras amáveis. Seguidas pelo olhar inquiridor da pequena, entrámos todos na sala, onde nos esperava uma leve refeição.

Se a Catarina e o marido me pareceram óptimas pessoas, devo confessar que o mesmo não podia dizer da filha, que me desagradou logo desde o primeiro momento.

Nela tudo denotava afectação, desde a apresentação aos gestos, e até à maneira de se exprimir. Como a boa da mãe me parecia mais digna e mais bonita, na verdade, com o seu vestido asseado e simples de dona de casa!

Como é que esta boa gente permitia que a filha se tornasse tão diferente deles?... Esta pergunta fixou-se no meu espírito desde aquela noite, quando vi o quarto de Angelina, onde devia ficar dois ou três dias, até que o meu ficasse pronto. O dela era pequeno e claro, forrado a papel com grandes flores garridas, guarnecido com móveis vulgares, com formas a fingir arte moderna, e dois espelhos em frente um do outro. As paredes estavam adornadas com quadros, de caixilhos dourados, e cujos motivos me pareceram um tanto em desacordo com a idade da pequena. No ambiente flutuava um perfume bastante forte, que me pareceu muito desagradável.

Era a falsa elegância em todos os seus lamentáveis aspectos — desde as meias demasiado finas, às botas de altos tacões, à espessa camada de pó de arroz que cobria o rosto desta rapariga, cujo principal dever era ajudar a mãe nos trabalhos da quinta.

A pobre Catarina mostrava-me tudo isto com tal expressão de vaidade, que me incomodou. Então esta pobre mulher não via o perigoso caminho que a filha ia seguindo, se não com o seu consentimento, pelo menos com o tácito apoio da sua fraqueza maternal?

Ao jantar conheci o Tiago, o filho mais velho do casal, belo rapaz de vinte e cinco anos, de fisionomia calma e bondosa. O mais novo, o Francisco, estava cumprindo o serviço militar.

À mesa, cujo lugar de honra me coube, sentou-se também o criado, entretanto que a Catarina é que nos servia. Quanto à Angelina, essa comia com toda a calma, mas quase sem parar. E a sua figura empoada, de cabelos curtos, onde tinham tentado fazer uma desajeitada ondulação; a sua maneira desastrada de manejar o talher - em suma, toda a sua pretensão rústica, pareceram-me a mais triste, a mais deplorável das notas, naquela grande sala patriarcal, que amei desde logo, com as suas vigas

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enfumaçadas, o seu grande fogão preto e os seus sólidos móveis de velha nogueira polida, que tinham atravessado os séculos.

VI

No dia seguinte, logo pela manhã, fui ver a minha nova residência, em companhia da Catarina» que me repetiu, com certeza para me evitar qualquer desilusão:

— É muito velha aquela casa, menina. É uma casa muito triste.Apesar desta prevenção, o meu coração sentiu-se oprimido quando vi as

paredes enegrecidas, marcadas com compridas listas esverdeadas, o pavimento desconjuntado do terreiro, o velho alpendre coberto de musgo, com a balaustrada destruída e quebrada em parte. Lamentável estréia, tendo ainda a torná-la mais triste a chuva que caía...

Senti um arrepio de comoção ao penetrar no vestíbulo, que tresandava a humidade e a bafio. Em todos os arruinados compartimentos que a Catarina me mostrou, flutuava o mesmo cheiro, com excepção do quarto do primeiro andar, que devia ser o meu, e onde a minha boa Catarina vinha fazendo umas fogueiras há vários dias.

— Este é habitável — disse-me ela. — Quando há qualquer ponta de sol, entra logo aqui; porém o resto da casa não vale nada.

O quarto era iluminado por duas janelas bastante largas. Aproximei-me duma delas e abri-a. Ante os meus olhos estendia-se um grande jardim. Com excepção dum canteiro em frente da casa, onde algumas árvores erguiam os ramos sem folhas, o resto tinha sido transformado em horta.

— Foi o Bardeaume quem plantou esta horta, para aproveitar a terra — explicou a caseira. — Os legumes dão-se aqui maravilhosamente; porém, se não gostar, menina Gillette, pode-se modificar.

— Confesso que preferia ver um jardim cheio de flores; todavia os meus minguadíssimos rendimentos não me permitem esse luxo, minha boa Catarina, e suponho que será mais razoável deixar continuar aí os legumes.

— Isso é certo, menina; no entanto o Tiago, que gosta de jardinar, arranjar-lhe-á da mesma maneira um jardinzinho. E depois, como verá, existe na parede do quarto uma velha roseira, que dá as mais belas flores de toda a região. É delas que todos os anos levo, ao senhor abade, um ramo, por ocasião da festa do “Corpo de Deus”.

De pé, junto da janela, contemplava a chuva, lenta e fria, que caía ininterruptamente, embebendo profundamente a terra escura, formando diante da casa uma grande poça pardacenta, cuja superfície era agitada pela queda de incessantes e numerosas gotas. A meu lado a Catarina murmurou:

— Seja como for, a menina Gillette sempre está resolvida a ficar aqui?... Não lhe parecerá muito triste?...

Voltei-me, observando-lhe a fisionomia amorável e inquieta.— Nos primeiros dias, é provável; depois, como tudo, acostumar-me-ei.

Aliás, não pretendo ficar aqui por muito tempo. Já escrevi à superiora do

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meu convento, pedindo-lhe para me arranjar um emprego, e qualquer dia poderei ser chamada.

— Vai ser professora, ou qualquer coisa parecida, não, menina?— Talvez, pois tenho de me sujeitar ao que vier; no entanto preferiria

outra coisa qualquer.Catarina reflectiu em voz alta:— É pena!... Uma menina tão bonita ir ensinar meninos mal educados, e obedecer a pessoas que talvez nem lhe cheguem aos pés!...Pus-me a rir, para esconder a minha melancólica comoção.— É a sua afeição por mim que a faz pensar dessa forma, minha boa

Catarina. No fundo a minha sorte será igual à de tantas outras jovens da minha idade e linhagem, que trabalham corajosa e dignamente... Bem, fica resolvido; instalar-me-ei aqui o mais depressa possível, pois os meus móveis já devem estar na estação.

— Vamos mandá-los buscar hoje, à tarde. O Bardeaume e o Tiago arranjarão tudo da melhor maneira possível, e a Mayote virá dormir todas as noites aqui... Lembra-se dela, menina?

— Sim, uma mulherzinha muito morena, a quem a senhora me confiava, quando tinha de se ausentar.

— Exactamente. O marido morreu, já lá vão uns anos, e ela passa os dias aqui e ali, para viver. Não conheço pessoa melhor, e ficará muito satisfeita em poder prestar-lhe este serviço, muito fácil para ela, porque vive perto daqui. Preparei-lhe uma cama num quartito, lá em baixo, visto a menina estar resolvida a não querer ficar connosco...

— Não, não posso, minha boa Catarina. Como sabe, sou muito independente. Fique certa, porém, de que isso não me impedirá de lhe fazer muitas visitas.

— Oh! Cada visita será para mim um grande prazer, menina Gillette!...Voltámos à quinta, atravessando o pomar, cheio de macieiras, única

parcela de terreno que a separava da minha casa. Na sala, a Angelina varria preguiçosamente. Parecia desanimada, e respondeu com palavras ásperas a uma observação da mãe. Perguntou-me depois, enquanto observava o meu vestido cor-de-cinza, muito simples, mas bem feito:

— O quê?... Sempre lhe serve a casa, minha senhora?...— Como não!... Estou até muito satisfeita, Angelina. O quarto é

cômodo, e o resto parecer-me-á mais alegre quando vier o sol.— Parece-me que não deve ser nada agradável para quem já viveu na

cidade, como a senhora.— Sim, um pouco, no começo. Porém pretendo trabalhar muito...Em seguida, voltando-me para a Catarina, que começava a lidar, perto

do fogão, acrescentei:— E a propósito, sabe a idéia que tive agora? Quero que me ensine os

trabalhos da cozinha, a fazer a manteiga e a cuidar das galinhas.— A mulher olhou-me com um ar de espanto:— O quê, menina?... Então pensa em tornar-se caseira?— Quem sabe?... Não seria das piores idéias. Em todo o caso esses

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conhecimentos são sempre úteis, além de que poderei ajudá-la um pouco.— Oh! Por isso nunca, minha menina!Aproximei-me dela e, passando-lhe o braço em volta do pescoço, beijei-a.— Não lhe estou a pedir a sua opinião. Sou como o senhor de

Trézonnes: quando quero alguma coisa, quero!Catarina pôs-se a rir.— Sempre queria ver, se estivesse em luta com ele, qual dos dois

ganharia!... Pela menina não ficava eu!... Porém com a sua ama, oh! sim!...ganhava sempre. A menina é tão boa!... E depois, todos aqui lhe querem muito, não é verdade, Angelina?

A minha irmã de leite respondeu com uma voz fraca:— É sim, minha mãe...E quase imediatamente acrescentou, com um riso irônico, que lhe fez

mostrar, entre os lábios grossos, uma fileira de dentes um tanto grandes, mas muito brancos:

— Havia de ser muito engraçado, nós, nesta idade, tratarmos do insuportável trabalho da quinta.— Não me parece que seja pior que os outros!... Além disso é bom

para a saúde. A si não lhe agrada, Angelina?— Não, minha senhora. Não nasci para esses trabalhos. E tanto assim,

que só casarei com um rapaz da cidade.A mãe retorquiu, num tom de amorável censura:— Ora, não penses em tolices!... É verdade que o campo dá trabalho,

mas vive-se melhor no campo do que na cidade, por muitos motivos.— Não sou dessa opinião, e o que sei, é que não fui feita para viver

aqui.Assim dizendo, começou de novo a manejar a vassoura e a levantar

poeira.Catarina soltou um fundo suspiro, e depois murmurou:— Ah! Estas meninas!... Não as podemos segurar em casa!... A

Angelina vive amofinada nesta casa!... É verdade que tem um certo ar de menina da cidade!...

E o seu peito arfava de vaidade satisfeita. Triste vaidade materna, que se orgulhava de ver a filha, educada com tão criminosa indulgência, prestes a aumentar a dolorosa multidão das transviadas.

"Pobre Catarina!" — pensei eu. "Que dias de amargura estás preparando!"

Desde o dia seguinte, à tarde, que fiquei instalada na minha casa. Bardeaume e o filho tinham operado maravilhas em pouco tempo. O meu quarto estava deveras encantador, com as cortinas de linho, com desenhos à Luís XVI, a cama de bronze e a linda cômoda antiga. As paredes estavam ornadas com um espelho e diversas fotografias. No fogão, entre dois pequenos candelabros de porcelana de Saxe, coloquei o relógio carrilhão, o mesmo que fora da minha mãe. Um grande tapete, com folhagens, um tanto usado, mas ainda bastante conservado, cobria o

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soalho, o que dava ao quarto um aspecto confortável.

Os outros móveis guardaram-se numa sala do rés-do-chão, aguardando que o Tiago pusesse em ordem um pequeno quarto que dava para o jardim. Faltava apenas refazer a pintura das madeiras que encobriam as paredes. Feito isso, ficaria com uma espécie de salinha de visitas, muito agradável para o verão, admitindo que ainda ali estivesse por ali.

Pronto o meu quarto, chamei a Catarina e a Angelina. A primeira exclamou:

— Como está lindo, menina Gillette!... Isto ficou um verdadeiro ninhozinho, onde dá gosto viver!

Angelina observou tudo com olhares inquiridores, dizendo por fim, num tom um tanto irônico:

— Não está mal. Prefiro porém os móveis novos, a estas velharias.Ironicamente, retorqui-lhe:— Cada um tem o seu gosto, e além disso os velhos móveis têm muito

mais valor.— Como são bonitos os móveis da Bottellerie! — exclamou

Catarina, com um acento de admiração. Oh! Se visse o salão, menina Gillette! Tudo aquilo porém não serve para nada. Não é por que as senhoras não gostem de receber, mas o senhor visconde não permite mais do que três ou quatro recepções, por ocasião das caçadas. Então é que é magnífico! O senhor de Trézonnes não olha a despesas naquelas ocasiões. Depois volta a calma, e as senhoras têm de se contentar em fazer e receber visitas entre as famílias dos arredores.

Tiago, que batia um prego para um quadro, exclamou do alto da escada:

— Isso deve mudar talvez quando o senhor visconde se casar.Notei um leve estremecimento no rosto da Angelina, um rosto fresco,

mas destituído de encanto e de expressão, porque o olhar era sempre frio e pretensioso. Aliás não dei nenhuma importância a este sintoma de comoção, e continuei a fazer as honras do meu pequeno domínio, enquanto o Tiago, deveras satisfeito com a sua obra, dava a última demão ao trabalho.. Feito isto, fomos fazer a nossa festa para a sala da quinta, em homenagem à minha instalação nesta casa isolada. Naquela noite dormi já na minha cama; um levíssimo aroma a íris substituiu o perfume vulgar, tão do gosto da Angelina, e os meus olhos, antes de se fecharem, pareceram admirar as formas familiares dos móveis e dos objectos que tinham pertencido a minha mãe.

VII

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Por conselho da Catarina fui alguns dias depois fazer uma visita ao abade da aldeia e a uma velha senhora, os quais, tanto um como a outra, tinham conhecido o senhor de Sauriages, sendo òptímamente recebida pelos dois. A senhora Mossette, uma velhinha quase cega, mas muito agradável, pediu-me que a fosse ver algumas vezes. Falou-me dos meus pais, que vira noutros tempos na Meulière, quando vinham passar alguns dias a casa do tio.

— Tem a mesma voz de seu pai, minha menina; era uma voz tão encantadora e expressiva, que logo nos dominava. Parece-se com ele no físico?

— Parece que sim, minha senhora. Em especial nos olhos.— Então devem ser muito bonitos. Os dele tinham um encanto

inesquecível Era também muito afectuoso e terno para com a esposa... Pobre senhora de Arbiers! Fiquei deveras contristada quando soube da sua desgraça...

Saí bastante reconfortada da pequena casinha, toda pintada de cinzento, que a senhora Mossette habitava, à entrada da aldeia, e dirigi-me para a igreja. As mulheres, quando eu passava, baixavam a cabeça, olhando-me depois com mais benevolência do que curiosidade. Os homens cumprimentavam-me, e as crianças diziam-me: “Bom dia, minha senhora!”. Mantinham-se ainda, entre esta boa gente, estes gestos de delicadeza, hoje tão menosprezados.

A igreja, misto do século XIV e dos primeiros alvores da Renascença, tinha alguns lindos motivos esculturais, que logo pensei vir um dia admirar com mais vagar. Entrei e ajoelhei-me ao fundo da nave escura. Do íntimo da minha alma pedi a Deus para abençoar os meus passos nesta aldeia, e comigo, os de todos aqueles que haviam acolhido com tanta bondade a órfã arruinada.

Assim fiquei por longos minutos, na calma obscuridade da nave deserta, na suave doçura daquele ambiente divino. Como precisava porém de fazer a minha visita, dirigi-me para o presbitério, velha construção que se erguia à direita da igreja. A irmã do abade fez-me entrar para uma sala de espera, onde, pouco depois, apareceu um sacerdote, muito idoso, baixinho e magro, e cuja fisionomia mantinha uma admirável vivacidade de expressão. O abade mostrou-se muito bondoso, muito paternal, e falou-me também de meus pais, mas sobre tudo do senhor de Sauriages.

— Era um bravo, mas muito original. Éramos muito amigos!... Mas a sua casa está na verdade em condições de ser habitada, minha senhora?

— Um compartimento do primeiro andar está bastante razoável, senhor abade. Já estou ali instalada e parece-me que fiquei bem.

— Oh! tanto melhor!... Pensa ficar algum tempo entre nós?... Principiei por lhe explicar a minha situação. Abanou a cabeça e

reflectiu um momento:— Oh! É pena!... É pena!... Se pudesse ficar aqui!... As nossas

jovens aldeãs apenas pensam em sair... Assim, seria um óptimo exemplo o

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verem uma jovem da cidade fixar residência entre nós. — Mas, senhor abade, preciso trabalhar para viver.— Sim, tem razão; mas talvez se pudesse arranjar qualquer coisa

que lhe permitisse ficar aqui...Respondi-lhe, sorrindo:— Talvez seja possível fazer de mim uma lavradeira?... Já esta

manhã a Catarina me começou a ensinar como se faz a manteiga, e desde anteontem tenho ido com ela ao galinheiro.

— Não seria assim muito mal pensado!— O que acontecia, era eu ficar uma lavradeira sem quinta,

senhor abade. A Meulière está arrendada aos Bardeaumes. E, além disso, antes que eu adquira alguma prática, ainda leva muito tempo.

— Não poderia tentar outro serviço qualquer, que lhe permitisse ficar em casa?... Uns bordados, por exemplo?

— Bordo regularmente. O difícil será arranjar alguém que compre os meus trabalhos por um preço razoável.

— Sim, é isso o pior da questão. Mas vou-me informar e falar com a senhora Mossette, que tem umas sobrinhas em Paris. Seria uma grande corsa se pudesse evitar o ir viver para casa dos outros.

Quando contei à Catarina esta conversa, exclamou:— Também sou da opinião do senhor abade. Já que a menina se

conforma em viver na casa, no estado em que se encontra, seria muito preferível que aqui ficasse. Os bordados é que estão de acordo com os seus finos e brancos dedos.

— Os meus finos e brancos dedos!... Precisam calejar-se muito, minha boa ama. Assim, dê-me alguma coisa da sua costura para terminar o dia.

Catarina protestou, mas vendo a minha insistência teve de ceder. Sentada junto à janela, pus-me a coser algumas camisas de pano grosso, enquanto no outro lado da sala Angelina passava roupa, com toda a indolência.

Sentia-me muito vacilante sobre a decisão a tomar. As palavras do abade haviam arreigado em mim o intimo desejo de me instalar em definitivo na minha velha casa, pois receava ter de ir viver, como empregada, na casa dos outros. Que seria de mim? Por que desgostos não teria eu de passar ainda? Por outro lado, com excepção do vestuário, estaria livre de todas as despesas, o que me permitiria, todos os anos, guardar alguma pequena economia para o futuro. Ora precisamente no dia seguinte, recebi a resposta da superiora do meu convento, aconselhando-me também a ficar na Meulière:

"Tem um feitio muito independente, minha filha" — acrescentava ela—, "e por isso ficará muito melhor aí. Segundo depreendi das cartas que me escreveu, noto que é sempre a mesma, muito impulsiva, muito franca, e apenas se deixando levar por quem a estime. Creio que o lugar de professora em casa duma família não seria muito aconselhável, e muito menos ainda como dama de companhia. Com os seus pequenos

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rendimentos, e estando já instalada, não poderá arranjar de forma a poder viver no campo? Parece-me que sim. Acho esta solução a melhor para si, minha filha. Inteligente como é, dum espírito clarividente e engenhoso, encontrará sempre em que se ocupar. Talvez mesmo, auxiliada pelos seus bons caseiros, possa conseguir algumas fontes de rendimento com os produtos agrícolas, como sei de muitas senhoras de igual posição social. Creio que estaria à altura de tal tarefa, visto que é activa e perseverante. Enfim, pense bem. Se não estiver de acordo comigo, seja franca; procurar-lhe-ei um emprego".

Esta carta pôs termo à minha indecisão. Resolvi seguir estes conselhos, que estavam tão de acordo com os meus desejos. Ia arriscar-me, mas estava sempre a tempo de seguir qualquer outro caminho, mais tarde, se o julgasse conveniente. Para o momento, e feito o meu pequeno orçamento, estava certa de poder viver modestamente na minha velha casa — pelo menos enquanto ela se mantivesse de pé, visto que me era de todo impossível proceder a quaisquer reparações, ainda as mais urgentes. Enquanto estivesse direita e a chuva não invadisse o meu quarto, como sucedia já nos outros compartimentos, teria ali um abrigo, estaria “na minha casa”, palavras mágicas, que me fizeram preferir uma vida de privações, a uma existência luxuosa "em casa dos outros".

Catarina exultou de alegria, quando lhe comuniquei a minha resolução. Em seguida tratámos da minha pensão, que continuariam a mandar-me à herdade, e que ela se obstinava em querer fornecer-ma de graça. Como chegasse Bardeaume, enquanto conversávamos a tal respeito, foi combinado que continuasse a vender, em seu proveito, os legumes do meu jardim, afirmando ele que o negócio ia compensá-los largamente da pequena despesa que iam ter comigo.

Quando dois dias depois, o abade veio agradecer-me a minha visita, ficou muito satisfeito com as notícias que lhe dei, e disse-me que a senhora Mossette, de perfeito acordo com ele, escrevera a uma das sobrinhas, pedindo-lhe para se informar junto das pessoas conhecedoras do negócio, sobre as probabilidades de venda dos meus trabalhos.

Todos pareciam muito satisfeitos com a minha resolução, excepto a Angelina, segundo notei na sua fisionomia. Tinha a impressão de que a nossa antipatia era recíproca; porém isso importava-me pouco, visto que todos os outros, mesmo o criadito, eram óptimas pessoas, que me rodeavam de atenções e se julgavam felizes por me terem junto deles.

Na semana seguinte voltei a visitar a senhora Mossette. Ainda não tinha tido resposta da sobrinha. Li-lhe um bocado num livro do seu agrado e prometi voltar mais amiudadas vezes. Tinha por ela já uma grande estima, e o seu espírito, ainda vivo, e a sua cultura intelectual tornavam-na muitíssimo interessante. Falou-me do castelo da Bottellerie, onde vivera na sua mocidade, descrevendo-me, com lindas palavras, as caçadas com galgos em que tinha tomado parte.

— Os Trézonnes foram sempre uns apaixonados caçadores — disse ela. — O actual castelão mantém o costume tradicional, segundo creio.

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Conheço-o pouco. Vem fazer-me uma visitinha de cinco minutos, uma vez por ano — em Janeiro. É um homem elegante, dum andar aristocrático, mas dum espírito bastante reservado, segundo parece. É temido e não amado. No entanto conseguiu entre nós uma esplêndida situação. Não é evidentemente uma inteligência vulgar, mas não queria por maneira nenhuma ser sua mulher.

Lembrando-me da fisionomia que conseguira entrever, exclamei também:

— Nem eu!A senhora Mossette riu-se.— No entanto ficar-lhe-ia muito bem o título de viscondessa, e além

disso riquíssima, como será a futura senhora de Trézonnes!Ri-me também, respondendo:— Só isso não me bastaria. Antes de tudo estará o marido. Ora o

senhor de Trézonnes é um espírito pouco acessível, segundo ouvi dizer. Afirmam mesmo que não tem coração.

— Isso não sei; mas pode muito bem ser que o cérebro, tão admiràvelmente equilibrado, o tenha absorvido. E seria uma grande desventura para ele, porque o coração, é sempre o coração!...

O seu rosto enrugado pareceu iluminar-se, enquanto pensava, talvez, em todas as afeições da sua vida, já desaparecidas, mas sempre vivas na sua alma.

VIII

Estou convencida de que a Catarina supôs, de início, que não passasse dum simples capricho passageiro o meu desejo de ser iniciada nos trabalhos duma verdadeira aldeã; ao cabo porém de pouco tempo foi obrigada a convencer-se de que a minha perseverança era sincera, e pasmou quando me viu levar a cabo, com muita perfeição, todos os serviços que lhe pareciam incompatíveis com a minha situação de “senhora”.

— Nunca vi tal!... Olhe que já está trabalhando melhor do que a Angelina, menina Gillette! Será possível que num mês?... E não se aborrece?

— Por maneira nenhuma!... Pelo contrário, até me sinto deveras interessada.

— Que pena não ter a Angelina essas mesmas idéias!... Só pensa em ir para a cidade, e por isso não tem gosto nenhum por estas coisas.

Brandamente, respondi-lhe:— E porque lhe deixou adquirir esses hábitos e essas pretensões,

impróprias do seu meio? Considera-se naturalmente fora do seu ambiente, e não aceita de bom grado estes serviços, que supõe muito pesados para ela. Na sua imaginação julga-se superior a todos os seus, desprezando o trabalho do campo, que foi o de todos os seus antepassados. É um grande mal para ela e para si, minha boa Catarina.

—Foi educada com muito mimo, menina!... Agora já perdemos a força moral. Às vezes, quando o pai quer zangar-se com ela, digo-lhe que a

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culpa é nossa e não dela, visto que a deixámos crescer à vontade. No fundo, não é má, como vê: mas é nova, não reflecte...

Angelina abusava largamente da fraqueza materna. De manhã levantava-se tarde, aparecia mal penteada, vestida de qualquer maneira, com os pés enfiados numas sujas chinelas. Depois de fingir que tinha trabalhado um pouco, voltava para o quarto, arranjava os cabelos cortados à última moda, empoava o rosto, vestia um vestido muito curto, de cor berrante, um avental vistoso, uns sapatos elegantes, e em seguida dignava-se aparecer na sala, a menos que não preferisse ficar a ler, junto da janela, algum romance vulgar, como o que encontrei no seu quarto, e cujo título me tinha chamado a atenção.

No entanto a mãe começava a ficar cansada; às vezes dizia, abanando a cabeça: “Oh! bem se vê que já não estou nos meus vinte anos!”... Contudo era corajosa para trabalhar e poucas vezes se queixava.

Sob a sua direcção iniciei-me nos diversos trabalhos domésticos. Ajudava-a a tratar do galinheiro, a fazer a manteiga, a preparar as refeições, a remendar e a passar a roupa. Uma tarde em que foi obrigada a ir à aldeia, deixou-me só na sala, com dois ferros de brunir e uma boa pilha de roupa, enquanto a Angelina se enfeitava no quarto.

Com as mangas arregaçadas e um avental branco diante de mim, trabalhava com afinco. Na outra extremidade da sala, a porta entreaberta deixava entrar o ar fresco dessa tarde de Fevereiro, que amenizava o calor irradiado pela estufa. Por vezes ouvia lá fora o barulho do rodar dum carro, ou o cacarejar duma galinha. A certa altura ouvi um maior tropel no chão duro do quinteiro. Pensei: “Deve ser talvez Bardeaume, ou o filho, que regressa do trabalho”.

Levantei a cabeça e o meu braço ficou imóvel, com o ferro no ar. No rectângulo da porta surgiu uma alta silhueta masculina, que reconheci logo ser o senhor de Trézonnes.

Senti um vivo rubor subir-me às faces, sem nenhuma razão. Ele parou um instante, depois adiantou-se alguns passos, tirando o chapéu.

— Queira desculpar, minha senhora... Poderia dizer-me se está o senhor Bardeaume?— Não está. Saiu para Bressuire, esta manhã.— Sinto muito. Precisava pedir-lhe umas informações. Quer ter a fineza

de lhe dizer para me ir procurar amanhã, de manhã cedo?— Com todo o prazer. Logo que ele volte, dar-lhe-ei o recado.— Fico-lhe muito agradecido.Teve um gesto de quem se vai despedir, mas, reflectindo, perguntou-me

no mesmo tom de severa cortesia:— Suponho ter a honra de falar à menina de Arbiers?— Exactamente, senhor.Continuava com o ferro suspenso, numa atitude de ridículo

acanhamento. Pela primeira vez pude ver de perto o castelão da Bottellerie; até agora desconhecia o poder dominador do seu olhar, que se fixava em mim, causando-me um sério mal estar. Era um lindo olhar, na verdade, mas

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ao qual faltava, no entanto, um pouco de ternura.O senhor de Trézonnes prosseguiu:— Bardeaume já lhe falou, talvez, minha senhora, numa pretensão que

tenho e que há tempos lhe disse? Trata-se dum prado que é propriedade da senhora, e que eu desejo adquirir por estar em continuação dos meus, situados na margem do rio.

— Disse-me isso quando cheguei, mas não voltámos a falar em tal.— Opor-se-ia a essa venda?— Não senhor!... Mas conversarei primeiro com o Bardeaume, pois

ainda sou muito inexperiente para tratar desses assuntos. Terá por isso a bondade de se dirigir a ele.

— Sim, para tratar com ele a questão monetária; porém, antes de lhe falar, quis certificar-me se a senhora dava ou não o seu consentimento, visto que com os nossos camponeses, sempre muito espertos, gosto de ir logo ao fim.

Neste momento abriram uma porta ao fundo da sala e apareceu a Angelina. Ao cumprimento pretensioso que dirigiu ao senhor de Trézonnes, este correspondeu com um simples movimento de cabeça. Com um olhar, ao mesmo tempo muito humilde e muito insistente, a minha irmã de leite perguntou-lhe:

— O senhor visconde procurava alguém cá de casa?— Sim, o senhor seu pai — respondeu o senhor de Trézonnes

secamente. — Acabo porém de saber, por esta senhora, que está ausente. Esperá-lo-ei amanhã de manhã no castelo.

E voltando-se para mim, acrescentou:— Falaremos também do seu campo, minha senhora, e tenho a certeza

de que havemos de nos entender.— Assim o espero, senhor.Inclinou-se com uma cortesia um tanto altiva, que parecia ser-lhe muito

habitual, e nessa altura pude ver-lhe ainda no olhar a mesma chama dominadora. Depois saiu, acompanhado até à porta pela Angelina, humilde e solícita como eu nunca a vira.

Ainda um tanto perturbada com o incidente, fui colocar o ferro na estufa e peguei no outro. Ao voltar-me, encontrei-me face a face com a minha irmã de leite. Chamou-me a atenção a chama de ódio que se reflectia no seu olhar. Com as faces vermelhas, bastante agitada, falou-me num tom um tanto áspero:

— Devia ter-me chamado para atender o senhor de Trézonnes, menina Gillette. Isto não são assuntos da sua conta.

— Se estivesse aqui, no seu lugar — respondi prontamente —, o senhor de Trézonnes não se teria dirigido a mim, do que teria dado graças a Deus, porque, como bem diz, não é da minha conta.

Dizendo isto limpei o ferro e passeio sobre um avental estendido diante de mim. Angelina soltou uma risada.— Que boa empreitada!... Aí está um bonito divertimento para a gente

se cansar um pouco!...

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— Para mim, felizmente, é um grande prazer contribuir para que a minha boa Catarina descanse um pouco. Infelizmente estou vendo que é incapaz de compreender ou tentar fazer isso.

Encolheu os ombros. — Não me quero aborrecer. Prefiro antes fazer alguma coisa que seja

mais fácil...— Que não lhe suje as mãos! — disse eu com ironia.Envolveu-me num olhar mal humorado:— Certamente que não as quero sujar!... Se não são tão delicadas como as

suas, pelo menos podem ser tão brancas... Olhe!...E estendeu os dedos grossos, brancos e per fumados com qualquer "água

de colônia". Os seus braços, a descoberto até aos ombros devido às mangas curtas, retesaram os músculos fortes sob a pele trigueira.

Aproximou-os depois dos meus, muito finos brancos e nacarados, e das minhas mãos esguias e de contextura delicada. Retirou-os quase logo. O clarão de triunfo que acabara de iluminar-lhe os olhos extinguiu-se, e afastou-se, mordendo os lábios.

Num tom de calma censura, disse-lhe:— Não tem o direito de ter umas mãos tão brancas, Angelina, quando

as da sua mãe se gastaram e deformaram no trabalho. E posso afirmar--lhe que não é nisso que está a felicidade!

Afastou-se sem dizer palavra; concluí, porém, que me invejava e detestava. Concluí também que esta pequena, toda vaidosa, muito enfatuada da sua pessoa, que não dispensava a menor atenção à companhia das outras pequenas do lugar, sabia mostrar-se deveras servil para com as pessoas mais importantes da terra.

Estas descobertas não eram de molde a provocar no meu espírito uma opinião mais favorável à Angelina, e concluí com mágoa, naquela tarde, que a nossa mútua antipatia poderia ser, um dia qualquer, a causa, dum conflito.

IX

No dia seguinte pela manhã, quando o Bardeaume se encaminhava para a Bottellerie, resolvi ir ver o tal famoso prado que ainda não conhecia. Às dez horas, mais ou menos, deixei a quinta e meti-me pelos atalhos estreitos, entre sebes fechadas, que em breve a primavera viria reverdecer.

Enquanto caminhava, li uma carta da senhora Barduzac, trazida pelo carteiro havia ainda poucos instantes. Não me apressara a abri-la, sabendo de antemão quais as palavras ternas e os conselhos que ela devia conter. De facto, a minha resolução de ficar na Meulière era considerada uma loucura, predizendo-me que em breve me arrependeria.

“De resto, esta asneira da sua parte não me causa admiração” —

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concluía a minha gentil tutora.Voltei a dobrar a carta, meti-a no bolso, e ao cabo de alguns minutos já

não me lembrava dela. A manhã estava deliciosa, bastante fresca, mas vibrando toda duma claridade que já não eram as claridades hibernais. Ao longe estendiam-se raras brumas sobre os bosques, dentro em pouco ressuscitados pelo sopro da primavera. Acabava de evaporar-se o orvalho das sebes, das terras agricultadas, ainda fofas do recente labor, e da grama rasteira dos prados, de que se viam os grandes espaços verdes, entre os choupos, ao longo do rio. Bardeaume tinha-me dito: “O da menina, é o primeiro, depois da nossa casa”, e por isso encontrei-o logo. Ficava em declive suave para a corrente. Empurrei a cancela e entrei. A terra húmida cedia debaixo dos meus pés, enquanto o sol me envolvia, me acariciava—este sol de Fevereiro, que não conhece o obstáculo das folhagens, privando-nos da doçura das penumbras. No prado podia espraiar-se à vontade, no amplo espaço deserto, entre os claros troncos dos alamos, cujos ramos altos, que a seiva percorria em haustos vigorosos para a festa da primavera, um vento ligeiro brandamente agitava. Sentei-me à margem do rio, que deslizava lentamente, cambiando a sua tonalidade de instante a instante, ou melhor, ostentando todas as tonalidades ao mesmo tempo, ao sabor da luz, da corrente, do ar que passava, agitando-a. Ora verde, como se nela se reflectisse o campo que lhe ficava fronteiro; ora cinzenta, da cor de cinza da ardósia, raiada de sol; ora surgia ainda dum azul celeste, com demoradas reverberações de ouro, no marulhar das suas águas claras.

Fiquei demoradamente a contemplá-lo. As horas passaram, o dia tornara-se mais escuro, porque uma nuvem tênue e muito comprida flutuava diante do sol. Sobre o rio, sobre o prado, contornado por grossos e belos muros, na outra margem, adelgaçavam-se as sombras. Senti um ligeiro estremecimento, ao ouvir uma voz que me chamava:

— Olá, menina Gillette! É a hora do almoço!Pus-me de pé e atravessei o prado. Bardeaume esperava-me junto da

cancela, com um amável sorriso nos lábios grossos.— Veio procurar-me, Bardeaume?— Não, menina. Venho da Bottellerie. Ao passar por aqui vi-a à beira do

rio e pela maneira como estava, pensei que se tivesse esquecido da hora.— Era isso mesmo — respondi-lhe a sorrir. — Acho lindo este rio, e este

prado deve ser encantador na primavera. Pensando bem, tenho vontade de ficar com ele, Bardeaume.

Teve um gesto de desaprovação.— Não sou da sua opinião, menina. É um bom prado, é certo, mas que

não fará falta, porque o de lá de cima basta para a nossa criação. O senhor de Trézonnes dará bom dinheiro por ele, porque está ligado com os das suas propriedades. Já ofereceu três mil francos.

— E que tal?—Óptimo, é certo que vale isso, porém não se encontraria tão grande

oferta em todo o lugar. O senhor visconde podia comprá-lo mais barato — mesmo por dois mil e quinhentos francos tê-la-ia aconselhado a aceitar,

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porque ainda era um bom negócio; mas ele estabeleceu logo o seu preço, e assim não precisei discutir, o que é sempre desagradável com o senhor de Trézonnes. Tem um jeito para embaraçar as pessoas!... Basta olhar para elas!... E depois, quando diz uma coisa, está dita. É verdade!... É um homem..., e um homem difícil de contrariar!

Caminhávamos, conversando, pela estrada que ladeava os campos. Bardeaume estendeu o braço para a direita... e para a esquerda...

— Veja, menina Gillette; tudo isto é dele...-, lá em baixo... e além... e lá ao longe...

Recordando-me de que, nos meus primeiros passeios, os meus amigos me tinham mostrado soberbas terras pertencentes ao castelão da Bottellerie, exclamei, rindo:

— Parece o marquês de Carabas, este senhor de Trézonnes!— Quase, menina!... Possui quase toda a região... Suponho que

gostaria de comprar a Meulière.— Já lho disse?— Não, menina, mas disse-me um dos seus caseiros, Carbille, de Haie-

Blanche, que o ouviu um dia falar nisso.— Não a venderei por coisa nenhuma!... Estou vendo que este senhor

quer tornar-se o rei de toda a região!— Também assim penso!Nesta altura metemos por um atalho. Um alto muro, à direita, estendia-se ao longo dum jardim. De pé, junto duma pequena porta aberta, um velho, de blusa azul, esperava um criado que vinha da estrumeira. Ao ver-nos, tirou o pequeno barrete que lhe cobria a cabeça calva.— Bom dia, senhor Rouchenne! — disse Bardeaume abrandando o passo.— Bom dia, meu rapaz... E bons dias também, menina de Arbiers.

Aproveito a ocasião para lhe apresentar os meus melhores votos de boas vindas.

Parei para lhe responder e agradecer. Aos Bardeaumes tinha já ouvido fazer, por mais duma vez, referências ao velho Rouchenne, proprietário da Sauvaie, antigo solar escondido entre as árvores e as flores dum bonito jardim. Na missa cantada do domingo anterior chamara-me já a atenção este asseado velhinho, de barba escanhoada e calva luzidia, onde se viam raros cabelos brancos. Ocupava sempre o mesmo lugar na igreja e acompanhava os ofícios com recolhimento, sem afastar os olhos do altar ou do seu livro de missa, em couro preto, com fechos de metal, bastante grande e provavelmente pesado, porque o apoiava na beira do genuflexório, inclinando para ele o rosto magro, duma tonalidade de terra seca, todo sulcado por pequenas e profundas rugas, tal como um solo seco há muito. Sabia que o velho Rouchenne pertencia a uma família de revoltosos, célebre nos anais da Vendeia; o seu avô, com perigo da própria vida, arrancara das mãos dos "azuis" o bisavô do senhor de Trézonnes, a quem este tratava como amigo, como igual, apesar de descendente de camponeses que haviam combatido com os senhores da Bottellerie em prol

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da religião e da realeza; assim como não ignorava também que em toda a região chamavam ao ancião da Sauvaie: “Um santo homem”.

Todas estas coisas tinham-me despertado a curiosidade de o conhecer mais de perto e por isso apertei com prazer aquela mão que se estendeu para mim com toda a cordialidade.

— Conheci muito bem o senhor de Sauriages, que era uma boa pessoa, salvo quando discutia política. Então era terrível, minha senhora!... Nessas ocasiões era capaz de matar todo o mundo!...

Um leve sorriso se lhe esboçou no rosto pensativo e deslizou-lhe pelas pupilas cinzentas, cujo olhar sereno e profundo me envolveu.

—...E, de facto, era o melhor dos homens, muitíssimo sossegado. Porém a senhora não o conheceu, e agora conhece apenas a sua velha casa, onde me parece impossível que a menina possa viver.

— Estou acostumada a adaptar-me às circunstâncias, senhor Rouchenne. E a verdade é que me sinto muito bem entre as ruínas da minha casa.

— A menina deve ser corajosa e alegre! — disse, olhando-me com mais atenção.

— Alegre, sim; corajosa..., algumas vezes.— Estou certo de que é sempre corajosa, e isso é muito bom, é muito

cristão...Bardeaurne interveio:— É inegável!... A menina Gillette é muito corajosa. Se visse, senhor

Rouchenne, como ela trabalha! Aprendeu já a fazer manteiga, ajuda a minha mulher a tratar do galinheiro, etc. Oh! na verdade não é nenhuma boa vida!

Vislumbrei nos olhos do velho um crescente interesse.— Admirável!... admirável!... E isso interessa-lhe, menina Gillette?— Muitíssimo.Bardeaurne retorquiu, entusiástico:— E além de tudo isto faz uns lindos bordados! A nossa menina é completa!— Ora, não exagere, Bardeaurne! — exclamei eu.O senhor Rouchenne sorriu.— Estou convencido de que não exagera e que as fadas lhe

concederam todos esses dons e mais ainda, o da bondade. E é essa a razão por que um velho solitário se atreve a pedir-lhe para que venha algumas vezes trazer-me a esmola da sua juventude e da sua alegria. Já soube pela senhora Mossette que a menina gosta dos velhos, o que é um predicado raro, mas deveras consolador para os nossos corações, já tão próximos do túmulo.

Num impulso de comoção, disse: — Sim, senhor, terei muito prazer em vir vê-lo. Não conheci os meus

antepassados, que ainda choro. Junto do senhor e da senhora Mossette terei a impressão de os ter ao meu lado.

A sua mão trigueira, de veias salientes, estendeu-se para mim, e

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envolveu-me com todo o seu olhar, cheio duma paternal doçura.— Desejaria ser para a menina como um bom avôzinho, em quem tivesse

toda a confiança e de cuja experiência pudesse receber os devidos conselhos. Não demore muito em vir ver-me. Mostrar-lhe-ei o meu jardim, bem como os trabalhos da minha falecida esposa, que foi a mais hábil bordadeira de toda a Vendeia.

No nosso regresso para a Meulière, Bardeaume disse-me:— O senhor Rouchenne simpatizou muito com a menina para lhe fazer

tal convite!... Em geral não aprecia muito as pessoas novas.— A simpatia foi mútua... Como é bondoso o seu olhar!... Que idade

tem ele, Bardeaume?— Parece-me que tem oitenta e seis anos, minha senhora.— Oitenta e seis anos!... Não lhe supunha tanta idade!— Está bem conservado. Ainda há dois anos ia vigiar os criados pelo

campo, pela quinta, por toda a parte. Depois vendeu as terras ao senhor de Trézonnes e agora trata apenas do jardim. No verão, às cinco da manhã, já anda em volta das flores.

— Vive sozinho nesta casa?— Não, menina. Tem um criado, mas não tem família. Os três filhos

morreram-lhe ainda novos, e a mulher faleceu já há muito tempo. Durante toda a sua vida passou por grandes sofrimentos!... Já sofreu por todos! — concluiu filosòficamente Bardeaume.

X

Quando fui visitar a senhora Mossette, no dia seguinte, domingo, comunicou-me a resposta que tinha recebido da sobrinha. Na carta indicava duas casas que podiam adquirir os meus trabalhos. Dizia ela: “será inútil qualquer tentativa, se os trabalhos não forem impecáveis de execução e não se distinguirem dos modelos em voga, por um cunho pessoal, por qualquer cousa de inédito e original”.

Ao ler estas linhas lembrei-me duma frase dita a meu respeito pela minha professora de bordados, no colégio: “Não se pode dizer, Gillette, que imite quem quer que seja. Tudo quanto faz, mostra logo o seu traço característico”.

Era muito possível que os trabalhos feitos, depois que deixei o colégio, sobre desenhos da minha imaginação, pudessem ter a sorte de agradar a esses comerciantes parisienses. Nesse caso seria um óptimo auxílio para os meus modestos rendimentos.

Escolhi os que me pareceram melhores: lenços, pequenas toalhas e uma roupinha de criança. Oh! que mimo!... E pus-me a fantasiar, diante daquela leve musselina estendida nos meus joelhos. Pelos meus olhos passou a imagem dum corpito frágil de criança, duns rechonchudos bracitos saindo das mangas bordadas, dum rostozito rosado, emoldurado por uma golinha quadrada, em volta da qual a minha agulha tinha bordado umas

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leves grinaldas de minúsculas rosas, e uma vozita leve exclamar: “Mãe!” Os meus lábios roçaram pela sua face tépida, macia como uma pétala de rosa, e apertei contra o peito este pequenino ente delicado, que era uma parte de mim mesma...

Tive um ligeiro estremecimento. Sem querer, num gesto rápido, afastei o tênue vestidinho, que caiu. Em que estava eu pensando? Gillette de Arbiers, tão pobre, como havia de se casar?... Nunca teria o prazer de ser mãe. Já agora essa felicidade não lhe seria permitida...

Apanhei do chão o vestidinho e dobrei-o com cuidado, antes de o colocar na caixa da embalagem. Estava de pé diante da janela e a luz do poente iluminava-me em cheio, nesta hora silenciosa da tarde. Contudo eu não a sentia e via apenas o meu coração, que se entristecera de súbito, e a vida que me esperava, sem família e sem amor. Pelos meus olhos deslizou uma lágrima, que foi humedecer uma das pequeninas rosas daquela vaporosa musselina... “Vai, meu lindo vestidinho” — disse comigo. “Vai adornar algum pequenino desconhecido. Nunca serás para aquele que eu teria amado muito — para o meu filhinho”.

Na manhã do dia seguinte fui ao correio mandar a minha caixa. Feito isso, voltei a passos lentos por um caminho de atalho, a fim de passar perto da Bottellerie, que apenas tinha visto de longe. Uma estrada bem conservada seguia ao longo do alto muro avermelhado, que cercava o parque; segui por ela até ao grandioso portão, perto do qual se erguia a casa do guarda. Por entre uma dupla fila de faias imponentes e seculares seguia uma alameda, ao fim da qual se levantava um solar majestoso, de cor cinzenta e um tanto ladeado por algumas pequenas torres. Depois de o ter admirado, continuei o meu caminho, revendo na imaginação, enquanto caminhava, as pessoas que nele viviam e que tinha visto na missa cantada do dia anterior, a que assistira pela primeira vez. A senhora de Trézonnes era uma mulher ainda forte, de cabelos louros e muito elegante. Em virtude do sítio onde me encontrava, perto do estrado dos castelões, tinham-me chamado a atenção os inúmeros bocejos embargados, que lhe faziam encolher os ombros, sob a capa de veludo, guarnecida de peles. A filha tinha com ela alguma semelhança, tanto quanto mo permitiu a minha observação. Ambas pareciam bastante aborrecidas, como alunos atrapalhados ante o olhar severo do mestre.

O mestre era, neste caso, o senhor de Trézonnes. A sua alta estatura, duma elegância vigorosa, bem delineada, num sobretudo de fino corte, erguia-se na extremidade do banco e parecia fazer desaparecer as duas senhoras, que mais semelhavam bonecas, perto deste soberbo homem, duma atitude correcta e de infundir respeito. Durante o sermão, nos momentos em que se voltava para ouvir melhor, podia ver-se o seu perfil, muitíssimo belo, e a sua boca voluntariosa e altiva, que nunca sorria, talvez, segundo me parecia. Ao sair, perguntei aos Bardeaume:

— É um bom cristão, este senhor de Trézonnes?... Não me parece que seja.— Bom cristão, depende, menina Gillette. Não é um cristão praticante,

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mas não falta à missa, mesmo no tempo da caça; diz ele que na vida todos nós precisamos da religião, e que um Trézonnes deve sempre dar o exemplo.

Não sei porquê, tinha feito do castelão da Bottellerie uma idéia muito diferente; no entanto fiquei satisfeita em saber que, pelo menos, tinha uma certa compreensão da sua responsabilidade, do seu dever de dar o exemplo às pessoas que o rodeavam.

Caminhava, pensando assim nos habitantes do castelo, quando pela estrada surgiu a silhueta dum cavaleiro, em quem reconheci o senhor de Trézonnes. Vinha a passos curtos, bem montado num animal nervoso e delgado, de pêlo escuro. Ao lado dele trotavam dois galgos de carreira, destes grey hounds muito em voga.

Quando passou, a alguns passos de mira, cumprimentou-me com um gesto elegante e discreto, inclinando a cabeça para lhe responder, tornei-me deveras escarlate, tal como outro dia. Senti-me por isso muito vexada, até mesmo ante a idéia de que me iria tomar por uma menina ingênua. Não era interessante pensar como os ares desta região me punham tão nervosa e tão facilmente impressionável?

Angelina passeava no pátio, quando cheguei à Meulière. Fitando-me com o seu habitual olhar desconfiado, perguntou-me:

— Então já deu o seu passeio, minha senhora?.. E o tempo?... Parece estar bom?— Magnífico!... E tanto assim que, voltando despreocupada, passei pelo

castelo... Tem um aspecto imponente!— E por dentro é muito bonito, segundo dizem!... O senhor de Trézonnes parece que tem muito gosto e não olha a despesas quando uma coisa lhe agrada.— Acabo de o encontrar. O que ele monta, é admiravelmente.— Sim!... Na verdade!...Um fulgor intenso passou nos olhos azuis da Angelina e um vivo rubor lhe

coloriu as faces; apesar de muito empoadas. Depois acrescentou:—Não tem rival na nossa região! Da sala, Catarina chamou:— Vamos, pequena!..., vem ajudar-me um pouco!Afastou-se e eu dirigi-me para o meu quarto, pensando, admirada:

“Será possível que goste dele? Não!... Não são idéias que se possam ter!... No entanto lembra-me agora da sua mal contida comoção, dos seus olhos brilhantes, do seu servilismo, ao mesmo tempo humilde e ousado, no dia em que ele veio à herdade! E cada vez que se fala dele na sua presença” — lembrava-me agora também —, “os seus olhos tomam aquele mesmo fulgor e quase chega a ficar bonita”.

Que loucura!... Que insânia!... Que diria a Catarina se soubesse a que fantasias romanescas se entregava o espírito mal orientado da filha?... E saberia ele desta paixão vulgar de que era objecto? Dar-lhe-ia importância, ou fingiria ignorá-la com desdém?

Certa ocasião, quando falávamos, não sei a que propósito, do senhor

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da Bottellerie, Bardeaume dissera:— O senhor visconde é orgulhoso e inacessível; isso porém não impede

que todas as mulheresse apaixonem por ele, desde as grandes senhoras de Paris até às nossas jovens camponesas — talvez por causa dos seus olhos, que no fim de contas são iguais aos de todos nós!...

Os seus olhos?... Tinha-os visto mal, e mal poderia dizer como eram. Todavia, dessa visão rápida, tinha-me ficado a impressão dum olhar deveras dominador. Este homem, se amasse, devia ser um senhor exigente, inflexível — e bastante frio!...

Estremeci ao de leve, enquanto introduzia a chave na fechadura. Era natural que compreendesse muito bem que este elegante e orgulhoso senhor, aliás um magnífico modelo de homem, parecesse a estas humildes camponesas uma espécie de semi-deus, que exaltava as suas infantis imaginações. No entanto começava a pensar comigo, como poderia uma mulher, com aquela educação, pensar em tornar-se sua esposa, isto é, escrava duma vontade que devia ser insuportável, segundo a opinião geral?

“Ah!... É muito rico! Isso é verdade! — pensei de repente. Há mulheres que encontrariam nessa riqueza uma compensação para todas as servidões. O que eu não sei é que coração é o dessas mulheres!... Como seria desgraçada em semelhantes condições!... E creio que também teria sofrido um pouco se tivesse desposado o doutor Borday, porque não teria sido para mim mais do que um delicado companheiro.

“Um marido deve ser outra coisa. Deve ser um amigo muito bondoso, muito terno, muito mais forte e mais pensador do que eu, e o qual se deve tornar o meu confidente e o meu conselheiro ...”

Chegada a este ponto das minhas reflexões concluí que não passavam de infantilidades, e por isso obriguei-as a desaparecer.

Um pouco antes do jantar instalei-me no meu quarto, para trabalhar. Enquanto a minha agulha ia e vinha, lentamente, através do fino tecido, pensava ainda em Angelina e na descoberta que acabava de fazer dos seus sentimentos com respeito ao castelão. A mãe devia ignorá-los. Se o senhor de Trézonnes não lhe ligasse importância, esta loucura terminaria por ela própria e a lição seria proveitosa para a vaidade desta pobre pequena. Mas se, pelo contrário, ele se divertisse com aquela tolice?...

Neste momento recordei o seu rosto frio e altivo, a sua boca orgulhosa e a sua fisionomia cheia de distinção. Pensei comigo: “Não, este homem nunca terá a idéia de baixar os olhos, um só instante que seja, para esta vaidosa e pretensiosa camponesa. Não deve querer saber nunca duma paixão que deve em absoluto desprezar”.

XI

Não me esqueci do convite feito pelo senhor Rouchenne e, na semana seguinte, fui à Sauvaie. Era um velho solar de paredes escuras, sulcadas

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pelo emaranhado, ainda adormecido, das plantas trepadeiras, que em breve a primavera viria cobrir de folhas e flores. Algumas esculturas, em parte deterioradas, formavam festões em volta da porta de entrada. O senhor Rouchenne mostrou-mas, dizendo que representavam margaridas e espigas de trigo, as quais faziam parte do brazão dos Trézonnes. De facto a Sauvaie tinha sido, em tempos, a residência dos criados e guardas da família. Após as guerras da Vendeia, o visconde Henrique de Trézonnes tinha-a dado como presente, juntamente com as terras que lhe pertenciam, a Pierre Rouchenne, que lhe salvara a vida.

Tudo isto ele me explicou, enquanto me mostrava o seu jardim, onde o primeiro sol de Março já fazia surgir algumas esperanças de floração. Caminhava devagar, e o vento fresco que vinha de leste arfava-lhe a blusa azul, em volta do corpo magro e mexido.

Passeámos pelas pequenas alamedas cobertas de seixos alvos, que escorregavam sob os nossos pés. Orlados de buxos, artisticamente aparados, estendiam-se os canteiros, onde as pereiras bem podadas, mas ainda esqueléticas, se erguiam a intervalos regulares. Ao fundo, perto da horta, viam-se umas colmeias, pois o senhor Rouchenne era um apaixonado apicultor.

Ora, enquanto me dava algumas explicações sobre a vida das abelhas, tive de súbito uma idéia, que exprimi em voz alta:

— Senhor Rouchenne, será difícil instalar algumas colmeias no meu jardim?— Óptima idéia!. .. Seria uma ocupação ao mesmo tempo interessante

e lucrativa. Estou àssuas ordens para todos os conselhos de que precisar, minha senhora.

Sentámo-nos próximo dum pequeno caramanchão rústico, e troquei impressões com o ancião sobre o assunto que começava a interessar-me, pois pareceu-me que estava ali uma fonte de trabalho e dalguns pequenos rendimentos. Deu-me todos os esclarecimentos e ofereceu-se para me ir colocar as minhas primeiras colméias e orientar a minha inexperiência.

Agradeci-lhe reconhecida este precioso auxílio, mas ele interrompeu-me:

—Nada tem que me agradecer, minha senhora. É sempre um prazer quando se pode auxiliar uma jovem corajosa e boa como a senhora, as quais é raro encontrarmos na vida. A Angelina de Bardeaume era incapaz duma coisa dessas. Fico admirado, ao ver como se cria uma filha daquela maneira! É uma preguiçosa, uma vadia. Quando a vejo com o rosto enfarinhado e uns berloques de saltimbanco nas orelhas, fico arreliado para todo o resto do dia. Fico mesmo mal disposto, minha senhora, ao pensar que aquela jovem pertence a uma das melhores famílias aldeãs da nossa região. Ah! Se a avó soubesse disto!

Falando assim, o senhor Rouchenne suspirou e levantou-se lentamente.

— O tempo está a esfriar. Vamos entrar, minha senhora? Vou-lhe dar a

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provar o meu licor de framboesas, e em seguida mostrar-lhe-ei os bordados da minha falecida.

Segui-o para casa, que se apresentava um pouco ensombrada, porque uma nuvem carregada começava a interceptar o sol. Um belo fogo crepitava no fogão da sala grande, onde o velhote costumava habitualmente ficar. Provei-lhe o licor e em seguida subimos ao quarto da falecida senhora Rouchenne. O quarto, sempre fechado, cheirava a bafio. O senhor Rouchenne abriu a janela, empurrando uma das meias portas; em seguida dirigiu-se para uma cômoda de velha nogueira, e, curvando-se, introduziu a chave na fechadura duma das gavetas, onde se viam rimas de roupa branca, amarelecida pelo tempo.

—É tudo novo — murmurou o ancião. — Morreu com vinte e seis anos, não teve tempo de a usar...

Os seus dedos, magros e calejados, deformados pelo trabalho da terra, levantavam com cuidado as camisas de linho, as saias enfeitadas na barra com pequeninos laços. Com o mesmo cuidado tirou do fundo da gaveta um embrulho comprido, envolto em papel de seda.

— Estão aqui os seus últimos bordados, os que ela fez depois do nosso casamento.

Ergueu-se, afastou de sobre a cômoda alguns dos objectos que nela se encontravam e pousou o embrulho. Na sua fisionomia transparecia uma expressão quase de triunfo; abriu o papel e disse:

— Veja, minha senhora.Sim, aquela que tinha traçado estes originais desenhos sobre o fino

tecido de linho e tule, era de facto uma hábil bordadeira. As grinaldas pareciam feitas de flores naturais, e os laços tinham a graça elegante dos laços lançados por um artista. Sobre um pedaço de tule, as hastes das fúcsias pareciam agitar-se e encher-se de seiva.

— Como isto é bonito! — exclamei eu.E ele, numa meia voz, como se ela estivesse ainda ali, no seu amplo

leito de nogueira envernizada, no extremo do quarto, disse:— Foi o seu último bordado; repare que ainda nem está acabado...O tule tremia nos seus dedos. Na meia luz do ambiente notava-se um

ligeiro frêmito, no seu rosto envelhecido, e a mágoa do passado, que enublava os seus olhos calmos. Não me atrevi a falar, para não perturbar as pungentes e ternas recordações que este tule evocava àquele coração angustiado. O meu olhar, cheio de comoção e simpatia, percorria o grande quarto, de soalho luzidio, onde se alinhavam, de espaço a espaço, pequenos tapetes de fundo vermelho, cobertos de flores e bordados com listas escuras. Sobre o fogão, entre dois candelabros de bronze, estava um relógio dourado, encimado por um globo; na cômoda, umas conchas nacaradas cor-de-carne, estavam espalhadas por entre faianças rústicas, fotografias, flores artificiais já velhas, encaixadas no musgo duma jardineira de vime enegrecido. A cama estava coberta com uma colcha de seda verde, e das galerias de nogueira caíam umas cortinas do mesmo tecido. Junto da segunda janela, a que estava fechada, vi uma mesa de acajú, sobre a qual

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estava uma delicada caixinha de pelúcia vermelha, com cantoneiras de prata — uma destas caixinhas de costura, como ainda havia no tempo da minha infância em todas as casas que tinham à venda objectos para presentes. A pelúcia tinha tomado uma tonalidade arruivada e as cantoneiras haviam-se tornado da cor do cobre. Seria pelo contacto das mãos?... Seria por que ela não tivera tempo de a usar, ou o próprio tempo encarregara-se de lhe roubar a frescura?

A voz do ancião, sempre lenta e grave, perguntou-me:— Talvez lhe agradasse, minha senhora, copiar alguns destes desenhos?—Agradava, sem dúvida, porque são na verdade bonitos. Porém não me atreveria. São sempre gratas recordações...— E bem gratas!... No entanto à menina permito-lhe isso... Gosto dos

seus olhos, olhos francos, onde transparece toda a sua alma. Escolha o que desejar copiar; sentir-me-ei feliz se quiser aceitar, e tenho a certeza de que isto agradará, no céu, à minha pobre Madalena, que foi sempre muito prestável.

Conservava na mão o pedaço de tule, o trabalho incompleto, dum soberbo relevo, pelo qual o meu olhar era involuntariamente atraído. Com ternura, como se se desculpasse, acrescentou:

— Só tenho este, e teria pena em me separar dele, mesmo por momentos; porém se quiser vir copiá-lo aqui?

— Não senhor, não me atreveria a vir incomodá-lo assim!— Pelo contrário, dar-me-á um grande prazer — respondeu com simplicidade.Vi que era sincero, que havia simpatizado deveras comigo, e por isso

não protestei mais. Ficou combinado que voltaria, quando me conviesse, para copiar alguns dos bordados de Madalena Rouchenne.

A senhora Mossette, a quem fui visitar no dia seguinte, felicitou-me por ter conquistado a amizade do solitário da Sauvaie. O senhor Rouchenne vivia em boa harmonia com todos os moradores da região, que o estimavam e admiravam, mas vivia retirado, e não abria de muito boa vontade as suas portas a quem quer que fosse, a não ser ao senhor abade, ao senhor de Trézonnes, e a um velho amigo, que vinha vê-lo umas cinco ou seis vezes no ano.

Reflecti em voz alta:— Não posso compreender as relações do senhor de Trézonnes,

sempre tão altivo, com este bom senhor Rouchenne.— No entanto visita-o muitas vezes. O visconde seguiu os seus

conselhos, quando começou ele próprio a administrar os seus domínios, e não se esqueceu disto, o que mostra a existência dum bom predicado.

— Sem dúvida. O reconhecimento não é coisa tão vulgar, que não tenhamos de o admirar quando o encontramos no nosso caminho. Isso leva-me a ter uma certa estima pelo senhor de Trézonnes.

A senhora Mossette exclamou, num tom meio sério, meio alegre:— Cuidado, minha querida menina!... Não vá entusiasmar-se muito

pelo nosso belo castelão, como todas as pequenas das redondezas!

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Enrubesci — o que não pôde ser notado pelos pobres olhos da velha senhora — e respondi, a sorrir:

— Oh! não tenha receio! Primeiro, porque não terei ocasião de o ver, depois, porque nãosou assim tão impressionável como as nossas boas aldeãs — como a Angelina, por exemplo.

E contei-lhe que supunha a minha irmã colaça apaixonada pelo castelão.

A senhora Mossette encolheu os ombros: — Pobre tola!... Mas isso não tem importância, ante a reserva desdenhosa do senhor de Trézonnes. E ela consolar-se-á, desposando um operário qualquer da cidade, que talvez a maltrate e a abandone. Sou capaz de crer que um rapaz sério não prestará atenção àquela cabeça de vento.

XII

Na semana seguinte recebi uma carta da senhora Barduzac, em que me comunicava, depois dalgumas considerações preliminares, o casamento do doutor Borday com a filha dum viticultor charantês — “trezentos mil francos de dote, outro tanto a receber mais tarde, muito bem dotada, muitíssimo cativante e um tio bem relacionado. Foi um casamento perfeito sob todos os pontos de vista. O doutor vive radiante”.

"Tanto melhor para ele" — pensei comigo, sem sentir o menor abalo. "Digo com sinceridade que não o lamento. Falava muito bem, não era mau rapaz, segundo me pareceu, dotado duma inteligência mediana e um pouco culto—mas dum caracter banal, conforme revelou. Com certeza não teria sido infeliz junto dele — mas talvez também não fosse muito feliz”.

Ao terminar a sua carta, a senhora Barduzac não deixava de me criticar a respeito do pedido que noutros tempos recusara. Supunha, talvez, que tinha trazido de Largillais uma ferida incurável, e, “caridosamente”, vinha envenenar essa suposta ferida. Ficaria convencida de que perdia o seu tempo, se me visse ler, sem o mais leve abalo, esta carta, na sala da herdade, onde a Catarina se preparava para nos servir o almoço.

A Angelina mostrava-se contrariada, conforme o seu habitual costume; todavia, notei que o rosto se lhe iluminou, quando o pai pronunciou o nome do senhor de Trézonnes, ao comunicar-me a realização da venda.

— A menina precisa ir qualquer dia destes ao notário, para assinar a escritura — acrescentou ele.

— Está bem, Bardeaume... Em todo o caso tenho pena do meu lindo prado, onde ainda ontem mesmo passei. Os rebentos verdes já começam a aparecer nos ramos, e dentro de quinze dias aquilo será uma delícia.

—Nada a impede de lá ir, não só àquele, mas a qualquer outro, como achar mais interessante. Terá apenas que abrir a cancela, e não

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encontrará ninguém que a incomode.— Sim, bem sei. Mas já não será “o meu prado” — disse eu, abanando

a cabeça.— Mas, se quiser, menina Gillette, ainda é tempo. Nada foi assinado.— Não, não, Bardeaume; não seria razoável, na situação em que me

encontro. O senhor diz que a venda é vantajosa, e quem sabe se encontrarei amanhã, quando o quiser vender, quem me dê tanto por ele.

— É bem possível que não. Está muito bem pago, mesmo porque o prado não é assim muito grande...

E com um risinho de ironia, acrescentou:— ... Está-me parecendo que o senhor visconde não teria sido tão

liberal se o prado fosse do tio Bardeaume, em vez de pertencer a uma linda menina da sua categoria.

A ironia espicaçou-me, e foi com uma pontinha de impaciência que objectei:

— Segundo o que ouvi dizer do senhor visconde, não creio que ligue importância a coisas desse gênero.

— Isso não sei... Tive esta idéia ao vê-lo oferecer-me aquele preço, que eu nunca me atreveria a pedir-lhe.

A estas palavras notei que o olhar da Angelina me fitava um pouco de lado, invejoso e desconfiado. Com uma certa ironia desviei o meu. Suporia, talvez, que me preocupava, como ela, em ser notada pelo castelão?... Este Bardeaume tinha às vezes idéias bem estranhas!

Aquela tarde fui de novo a casa do senhor Rouchenne. O frio era penetrante e o tempo estava carregado; encontrei porém na sala um belo fogo de carvalho. O senhor Rouchenne fez-me sentar numa poltrona, aproximou de mim uma pequena mesa e foi buscar o bordado, cujo desenho eu queria copiar. Enquanto trabalhava, iamos falando da localidade e dos seus moradores. O senhor Rouchenne contou-me alguns episódios das guerras da Vendeia, muitos dos quais tinham tido por cenário S. João da Bottellerie e seus arredores. Sentia-me bem naquela velha sala de teto enfurnado, de paredes cobertas duma pintura escura, saindo aos bocados, e sobre a qual a luz forte do fogão projectava móveis claridades. À meia luz do ambiente cintilavam os metais dum armário, o cano duma espingarda, pendurada entre dois azouagues de caça, dispostos na panóplia, e o cobre dum castiçal, a um canto. Diante do fogão dormia, preguiçosamente, um gato cinzento, com listas escuras. Perto de mim, sobre a mesinha, o senhor Rouchenne colocara uma pequena jarra de faiança com as primeiras violetas do seu jardim, e cujo perfume discreto se espalhava em volta de nós, no tépido ambiente da ampla sala, ensombrada devido à luz indecisa da tarde.

Um retinir de campainha anunciou que alguém abria a cancela do jardim, que precedia a casa. Um passo firme fez ranger os seixos do passeio. O senhor Rouchenne inclinou a cabeça, escutou com atenção e disse com calma:

— É o senhor de Trézonnes.

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Senti um ligeiro estremecimento, e quase deixei cair o tule que tinha nas mãos.— O senhor de Trézonnes! — balbuciei. — Então vou deixá-lo, senhor

Rouchenne. Voltarei em qualquer outro dia.— Que idéia, minha senhora! Não nos incomoda nada; o senhor

visconde vem apenas fazer-me uma visitinha, como de costume, e não temos segredos a contar.

Levantou-se e encaminhou-se para a porta, que uma vigorosa mão acabava de abrir, surgindo logo o senhor de Trézonnes. Ao ver-me, teve um ligeiro movimento de surpresa; apertou a mão do senhor Rouchenne, com um breve: “Bom dia, meu velho amigo”, e em seguida dirigiu-se para mim, inclinando-se com aquela cortesia, um tanto altiva, que já lhe tinha notado.

Oh! desolação!... Logo o maldito rubor me subiu de novo às faces.O ancião explicou com voz calma:— A menina de Arbiers quis dar-me a honra de visitar um velho como eu.

Está copiando um bordado da minha falecida, como vê, senhor Gui.— Estou vendo... E o desenho parece muito bonito...Inclinou-se e segurou um dos cantos do tule. Notei-lhe as belas mãos,

compridas e nervosas, cujos movimentos deviam ser firmes, rápidos e autoritários. Senti um levíssimo perfume, mais próximo e subtil que o das flores que estavam na mesa. Em seguida o tule recaiu nos meus joelhos, e o senhor de Trézonnes tomou a poltrona que o senhor Rouchenne lhe ofereceu, ao pé do fogo, na minha frente.

— Agrada-lhe a nossa província, minha senhora?— Muito, senhor visconde!— Parece-me que se está tornando uma perfeita lavradeira?Ri com certo embaraço e perguntei:— Quem lho disse?— O seu administrador e também o nosso amigo, aqui presente.

Permita-me que a felicite por essa iniciativa. É um belo exemplo para a nossa mocidade feminina. Se elas vissem muitas senhoras da nossa melhor sociedade deixar a cidade para se entregarem à vida do campo, talvez reflectissem muito mais, antes de abandonarem a província.

O senhor Rouchenne abanou a cabeça:— Talvez!... Talvez!... A cidade fascina-as, e os pais já não têm

autoridade para as segurar. Olhe os Bardeaumes como educaram a filha!— Não os felicito por isso, coitados!... Além de tola, ainda atrevida —

o que já não é pouco.As palavras sairam-lhe friamente dos lábios irônicos; compreendi que

não ignorava os sentimentos da Angelina, e que esta devia ter imaginado qualquer ridículo e humilhante processo de galanteio para lhos dar a entender. Senti, mais por ela, que não por mim, uma tão grande confusão, que o rubor das minhas faces acentuou-se. Tentei desviar os meus olhos, mas o olhar profundo e frio do visconde prendia-os. Enquanto o senhor Rouchenne fazia o café, o senhor de Trézonnes falou dos progressos da agricultura e dos melhoramentos que era necessário ainda introduzir.

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Em seguida passou à história da Vendeia, abordando questões literárias. A sua voz, apesar dumas notas breves, tinha inflexões agradáveis, que se juntavam ao encanto da sua inteligente conversa, despida de qualquer pedantismo. Notava-se nele a plenitude duma inteligência bastante culta, cheia de reflexão e já de experiência. Quando assim falava, o seu olhar animava-se, iluminado por uma espécie de chama dominadora. E empolgava..., empolgava cada vez mais!...

Como?... Estaria eu louca?... Ou eram as tolas idéias de Bardeaume que me voltavam ao espírito, e por isso me perturbavam, cada vez que se fixavam em mim, aqueles olhos cuja cor ignorava... Castanhos? Verdes? Escuros?... Não, não podia pronunciar-me. Havia neles, contudo, de quando em quando, um como que clarão de vida concentrada, violenta, profunda, e então supunha-os cheios duma fulva claridade, enquanto o rosto, nervoso e viril, de lábios fortes, dum vermelho escuro, ficava frio, duro e impassível.

Acedendo ao desejo expresso com cortesia pelo senhor de Trézonnes, retomei o traçado do meu desenho, enquanto ia conversando. Contudo o trabalho pouco se adiantava, visto as minhas mãos não manterem a firmeza habitual, e portanto acabei por dizer:

— Se mo permite, senhor Rouchenne, voltarei outro dia para terminar. Já está escurecendo bastante.

— Sim, o tempo está escuro... Volte quando lhe aprouver, minha senhora, mas o mais breve possível. Sinto-me sempre muito feliz quando a vejo.

Levantei-me e guardei o tule bordado. Os meus movimentos eram nervosos, incertos, porque sentia que o senhor de Trézonnes me observava. Tinha-se também levantado e encostara-se ao fogão, com os braços cruzados sobre o peito. O senhor Rouchenne, com passos rápidos e vivos, foi buscar o meu chapéu e o casaco, guardados na outra extremidade da sala, perguntando-me, com paternal solicitude, se estava bem agasalhada.

— Olhe que está fazendo um frio que penetra os ossos. E se tomasse ainda uma chàvenazinha de café bem quente?

— Oh! Muito obrigada, senhor de Rouchenne!... Estou com bastante calor, e vou caminhar depressa até à Meulière.

— Leve estas violetas. Hão-de recordar-lhe a primavera, pelo caminho, e dar-lhe-ão a impressão de que estará vendo o sol. Espere, vou buscar um lenço para lhes embrulhar os pés, porque ainda estão todos molhados...

— É inútil incomodar-se; estão muito bem.O senhor de Trézonnes, descruzando os braços, tirou do bolso

pequeno do casaco um lencinho de seda azul. Protestei logo:— Obrigada, senhor. Vou levá-las como estão, envoltas neste papel.Fazendo de conta que não me ouviu, foi para a mesa, tirou com

cuidado da jarra as violetas, e envolveu-lhes no lenço as hastes molhadas.Feito isso, entregou-me o pequeno ramo, no qual peguei com mão

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trêmula.— Obrigada, senhor... Amanhã mando-lhe o lenço...— Oh! Não se preocupe! Quando voltar aqui pode dá-lo ao senhor

Rouchenne, que mo entregará no nosso próximo encontro. Isso não tem a menor importância.

Os dois, apesar dos meus protestos, fizeram questão em me acompanharem até à cancela. Apertei ainda a mão ao senhor Rouchenne e respondi ao cumprimento do senhor de Trézonnes, tomando o caminho da Meulière, com um andar apressado.

Como estas violetas tinham um cheiro forte!.. A cada instante lhes aspirava o perfume, sem saber bem ao certo se era o das flores, ou o outro, o perfume discreto e subtil do lencinho azul. E pensava neste encontro, nas palavras que trocámos, naquela fisionomia forte que acabava de ter observado durante mais de meia hora, sentado na minha frente — e que pudera desta vez examinar à minha vontade.

Compreendi então a sedução que o senhor de Trézonnes, mesmo sem querer, exercia sobre as almas femininas... Eu mesma, se não tivesse sido prevenida, talvez pudesse ter sucumbido...

Que perfume tão estranho? Era delicioso, mas um pouco inebriante... Já evitava aspirá-lo, porque me subia ao cérebro...

Quando cheguei a casa, apressei-me a tirar as violetas do lenço, que dobrei e guardei num canto do meu guarda-vestidos, fazendo tenção de não me esquecer de o levar, por ocasião da minha próxima visita à Sauvaie. Sentei-me depois à mesa de trabalho, mas o meu pensamento estava obcecado, voltando a cada instante à sala escura, onde a chama do fogão projectava largos raios de luz sobre um belo rosto de homem, de olhos dominadores e duma energia serena, orgulhosa e concentrada. De súbito apoiei a cabeça e perguntando com inquietude: “Mas, afinal, por que foi que este homem me deitou um mau olhado, como dizem as nossas camponesas?”

XIII

Junho chegara, e com ele toda a região se cobrira duma encantadora verdura, daquela bela verdura do começo do verão, que o sol ainda não tivera tempo de crestar. Nas paredes da casa desabrochavam as rosas, enquanto nos canteiros, que Tiago Bardeaume tinha arranjado para minha distracçâo, os lírios e os goivos se desfaziam em suaves perfumes, junto à porta de vidro da minha pequenina sala de visitas. O bom rapaz, auxiliado pelo irmão, que então se encontrava em gozo de licença, por ocasião da Páscoa, tinha restaurado a pintura das paredes, encerado o soalho e colocado um vidro quebrado. Foi ali que eu coloquei os móveis que não couberam no meu quarto: uns aparadores, a secretária de pau-rosa, o pequeno sofá e a mesa com incrustações de cobre. Da parede pendiam fotografias dos meus antepassados. Com o auxílio do Tiago, prestável e

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habilidoso, tinha colocado as cortinas de seda amarela, com umas riscas azuis-claras, um tanto desbotadas, nas janelas, separadas por uma vidraça que se tornara esverdeada, encaixada no forro de madeira da parede. Assim, pois, tinha uma discreta e encantadora sala de visitas, onde me instalei para trabalhar, desde que começou o verão.

Da casa de bordados, a quem tinham agradado os modelos enviados, haviam-me chegado algumas encomendas. Procurava desenhos novos, e para isso inspirava-me nas flores e nas folhagens que via à minha volta. Este trabalho, no entanto, não me tomava todo o tempo; continuava a ir junto da Catarina completar a minha educação de perfeita lavradeira e dona de casa, tratava das colméias que o proprietário da Sauvaie tinha vindo instalar no meu jardim, e, não poucas vezes também, ia passar as tardes a casa da senhora Mossette ou do senhor Rouchenne. Em qualquer das duas era sempre bem recebida e dispensavam-me uma afectuosa simpatia. A minha predilecção, porém, era por ele, pelo meu velho amigo, discreto e prestável, pela sua velha casa e pelo seu jardim florido, todo embalsamado dos perfumes das tílias, dos jasmins, e agora das rosas.

Ia bordar para junto dele, sob um grande castanheiro, que estendia a sua sombra diante da casa, ou então na sala fresca, onde, ao meio dia, o sol já não dava. Palestrávamos sobre tudo, às vezes alegremente, pois o senhor Rouchenne era bem disposto e tinha um espírito delicado, por vezes brincalhão, apesar do seu caracter reflexivo, mas nunca mau ou irônico. “A menina é uma flor na minha vida” — costumava ele dizer-me. ‘Quanto é bom chegarmos ao fim da vida e termos junto de nós um belo sorriso de juventude, o esplendor duns tão lindos olhos, que nos aquecem um pouco e parecem interessar-se por um velho como eu!”

— Não parecem interessar-se, interessam-se de verdade — respondi-lhe eu, apertando-lhe a mão enrugada, cor da terra cota. — Eu, senhor Rouchenne, é que tenho a obrigação de lhe ser sempre reconhecida, por ter acolhido com a sua paternal bondade uma órfã, que sente com extrema mágoa o vácuo deixado pela ausência de qualquer afeição familiar.

Assim, dia a dia, mais se estreitava esta amizade, que não manifestávamos por palavras, mas que ambos sentíamos, confiante e indestrutível, no fundo da nossa alma. Eu deixava-a transparecer nas minhas atenções filiais para com ele; e ele, com a compreensão própria duma verdadeira bondade, sabia mostrar-me, discretamente, que me tornava cada vez mais querida ao seu coração, como se fosse sua própria filha.

Encontrei o senhor de Trézonnes por quatro vezes, na Sauvaie, sempre cortês e até mesmo amável, a dentro da sua frieza. As longas temporadas no campo não lhe tinham prejudicado as suas maneiras de homem da sociedade. Falando com ele sobre literatura, procurava tornar-me natural, como se estivesse só com o senhor Rouchenne, e não deixar transparecer o mal estar perturbador, a comoção receosa que sentia sempre na sua presença e que, mesmo depois de deixar a Sauvaie, ainda me

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acompanhava. Irritava-me com esta inquietação, prometendo a mim mesma não ser tão ingênua para a próxima vez... Todavia, em cada uma delas sofria uma igual influência daquele olhar dominador e muito belo, que um raro sorriso por vezes iluminava, mas sem o tornar meigo.

O senhor de Trézonnes não era alegre; falava da vida e das suas manifestações diversas com um cepticismo um tanto áspero, com a amarga ironia de quem provou de tudo e só encontrou desilusões no seu caminho.

O senhor Rouchenne dizia num tom de censura discreta:— Nem tudo está perdido, senhor Gui; ainda há no mundo qualquer

coisa de bom, de bondoso e verdadeiro.O castelão respondia:— Sim, porque o senhor está no mundo.

Estes dois homens, tão diferentes na aparência, na educação e no feitio, pareciam unidos por uma amizade indestrutível e muda, pois que, pelo menos diante de mim, não se tinha mostrado expansiva; sentia-se porém entre eles, via-se no olhar do velho, onde uma afeição circunspecta se revelava cheia de respeito, e nas maneiras atentas e delicadas do visconde, que vinha visitar este solitário, tratando-o como a um igual.

Um dia, quando me encontrava só com o senhor Rouchenne, após a saída do castelão, perguntei-lhe:

— Gosta muito do senhor de Trézonnes?— Sim, muito.E depois dum breve momento de silêncio, acrescentou:

— É um homem que não conhecemos. A aparência nele nada revela.— Parece-me bastante autoritário e áspero. O velho meneou a cabeça, repetindo, pensativo:— Ninguém o conhece.O senhor Rouchenne falava muito pouco de quem quer que fosse, e

por isso não me admirei de que deixasse sem uma resposta mais minuciosa a reflexão que acabava de lhe fazer. Todavia, concluí que talvez não tivesse nenhuma objecção razoável a fazer.

A festa de S. João caiu naquele ano num domingo. Como a festa era a do padroeiro da localidade, todos se prepararam com antecipação, e eu fui convidada pelo abade para aumentar o coro das cantoras... Tendo depois o bom abade verificado que a minha voz era agradável e bem timbrada, fui quase forçada a aceitar a incumbência de cantar um solo na missa cantada e nas vésperas.

Dois dias antes, em casa de cada lavrador, todos estavam atarefados em fazer os doces para a festa. Catarina, algum tempo antes, ensinara-me a fazer essa espécie de bolos folhados, um pouco grandes, mas deliciosos, que ela fazia melhor do que nenhuma das outras lavradeiras das redondezas. Como tivesse uma queimadura na mão e a Angelina estivesse num dos seus períodos de mau humor — estado que se lhe tornou quase normal —, ofereci-me para bater a massa; depois, seguindo as instruções da Catarina, fiz muitos bolos de diversos tamanhos. Havia-os para os vizinhos, para os amigos, e um deles era destinado ao castelo. Catarina, um tanto

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orgulhosa, contou-me que o senhor de Trézonnes dissera certa vez: “No dia de S. João não como outro bolo que não seja o daMeulière; é muito superior a todos os que me mandam os meus caseiros".

Estava a acabar o meu serviço quando a filha do padeiro passou, para levar os bolos para o forno. Entreguei-lhos e fui lavar as mãos enfarinhadas numa vasilha cheia de água. De súbito tive uma exclamação:

— Perdi o meu anel!Era um pequenino aro de ouro, ornado de pérolas e duma turquesa,

jóia bastante simples e a única que usava habitualmente. Estimava-a muito por ter pertencido a minha mãe.

Após algumas buscas minuciosas na sala, tornou-se evidente que, tendo-me esquecido de o tirar, como em geral costumava fazer nestes trabalhos de cozinha, devia ter-me escorregado do dedo, um pouco magro, enquanto batia a massa, e naturalmente encontrava-se num dos bolos levados pela filha do padeiro.

— Que pena!— exclamou a Catarina. — Mas não se arrelie por causa disso, menina Gillette. Sefoi nalgum bolo, facilmente se encontrará. Vou prevenir as casas onde levar os bolos, e como são todos pessoas honestas, com certeza lho entregarão. Quanto ao castelo, nada tem a recear. Os meus bolos vão para a mesa dos fidalgos. Se o anel lá estiver, o senhor visconde manda-o cá.

— Em todo o caso será melhor avisar, Catarina. Pode-se dar o caso de alguém quebrar um dente ou mesmo engulir o anel.

— Tem razão, menina. O Bardeaume, quando for levar o bolo, avisará o mordomo.

Combinado isto, fui-me vestir e dirigi-me para a igreja, onde ia realizar-se o penúltimo ensaio.

O coro, pela primeira vez, cantou regularmente. A menina Brunet, filha do escrivão, atendeu às observações que lhe fez o organista e abrandou a expressão da voz. Enfim, tudo correu bem, e o abade, que apareceu para julgar do efeito, declarou, esfregando as mãos, que a festa ia ser muito linda, graças a nós, as suas melhores auxiliares, e aos castelões, que tinham mandado flores magníficas para a decoração da igreja.

O trabalho de limpar e ornar a igreja ficou igualmente a nosso cargo, no dia seguinte. Cheguei tarde nesse dia e um tanto fatigada, devido ao calor da tempestade, que ameaçava; a cabeça tornou-se-me pesada por ter respirado o aroma de todas aquelas flores e escutado, durante duas horas, as vozes e a música do pequeno órgão, a repetir as mesmas passagens, na atmosfera penumbrosa da igreja.

Pela primeira vez, depois daquele célebre dia, voltei a vestir o meu vestido azul claro. Olhando-me porém ao espelho, achei-me um tanto diferente do ano anterior; contudo não podia dizer ao certo o que tinha mudado na minha fisionomia. Com certa comoção, pensei: “Parece-me que estou mais bonita”.

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Catarina, quando entrei na sala onde me esperava, na companhia da filha, exclamou, juntando as mãos:

— Como está bonita, menina Gillette! Nem é bom dizer! Esse vestido é da cor do céu de hoje!... E como está bem feito!... Vês, não eras capaz de fazer um assim, Angelina!... Imagine, menina, que tivemos de pagar oitenta francos do feitio, na cidade, para lhe fazerem este vestido que tem no corpo, que mais parece do carnaval!

Catarina referia-se ao vestido de seda corai que a filha trazia, e que tão mal lhe ficava. Os cabelos louros — pelo menos o que deles restava, depois de terem passado pelas tesouras do cabeleireiro—desapareciam por completo sob uma espécie de chapéu de palha, de cor amarelo-gema, que apenas lhe deixava ver o nariz, bastante empoado, e os lábios coloridos com um pavoroso vermelho avinhado.

Um terrível olhar de ódio me fitou, enquanto a mãe prosseguia, um tanto colérica:

—Estive quase para lhe dizer que me envergonhava de a ver com aquela roupa, mas ela...Angelina interrompeu-a com um gesto de concentrado furor:— Está bem!... Saio já, se as incomodo!... Não preciso de ninguém.Dizendo isto, saiu. O seu andar, bastante antipático, tornava-se

grotesco devido aos altos facões dos sapatos delgados, que lhe comprimiam incòmodamente os pés e a obrigavam a dobrar os joelhos, ao caminhar, pois com dificuldade podia manter o equilíbrio.

Catarina soluçou:— Oh! "Será possível uma coisa destas?... Será possível!?... Que irão

dizer na aldeia?... Isto serão modos para uma jovem como a Angelina? O pai ainda não a viu com estes enfeites, mas garanto-lhe que vai ficar bastante aborrecido!

— E terá razão. Mas por que não lhe proibiu que se vestisse assim?— Porque não adiantaria nada, menina! — murmurou a Catarina com os

olhos cheios de lágrimas. — Ainda se ri de mim, quando lhe digo qualquer coisa. Agora já é muito tarde para a educar!... Já é muito tarde!..

Suspirou, enxugando as lágrimas. Pobre Catarina, que procurava colher na alma da filha o que não tinha ali semeado!

Esta breve cena comoveu-me e entristeceu-me... Seria talvez por isso que cantei com mais fervor naquela manhã, chegando a esquecer-me em absoluto da assistência que enchia a igreja!... O canto é uma prece e eu sentia necessidade de rezar pela Catarina, por essa infeliz Angelina, por mim mesma, que me sentia por vezes perturbada, inquieta, sem conhecer a razão destes estados de alma...

A família Trézonnes estava no seu banco, próximo do coro. Da pequena tribuna, onde me encontrava com as companheiras, observava estas senhoras sempre tão elegantes, e ao lado delas uma alta silhueta, de espáduas fortes e cabeça altiva. Ao lado do castelão estava um outro cavalheiro; muito baixo, que não conhecia.

Terminada a missa, desci do coro e fui ter com os Bardeaume, que estavam ao pé da tribuna, saindo todos em grupo. De passagem, o senhor

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Rouchenne apertou-me a mão, dizendo-me, comovido:— Oh! Como cantou bem!... Vá amanhã ver-me, pois quero dar-lhe os

parabéns.Outras pessoas vieram ter comigo para me apresentarem as suas

felicitações. Quando sai, opórtico da igreja, vi que o senhor de Trézonnes se destacou também do seu grupo e veio ao meu encontro.

— Minha madrasta e minha irmã ficaram encantadas, minha senhora, e por isso desejam conhecer a possuidora duma tão bela voz, que acabamos de admirar. Quer dar-me a honra de aapresentar?

Balbuciei um ligeiro agradecimento, enquanto a senhora Trézonnes e a filha se dirijiam já para mim. Mostraram-se muito amáveis, apresentaram-me os seus melhores cumprimentos, bem como os outros castelões da vizinhança, que conversavam com elas, na ocasião em que eu saía da igreja. A viscondessa apresentou-me o seu filho, Paulo de Trézonnes, oficial de caçadores, em gozo de licença, para convalescer duma pneumonia. Era um rapaz bastante simpático, mas todos os seus atractivos desapareciam ante a forte e altiva beleza do irmão. Em compensação pareceu-me muitíssimo menos orgulhoso, pois o seu olhar era meigo e as suas maneiras bastante delicadas.

A menina de Trézonnes, que parecia satisfeita e entusiasmada, exclamou num tom de súplica:

— Oh! minha senhora... Dar-me-ia o maior prazer se quisesse algumas vezes cantar comigo!...Tenho uma infinidade de lindos duetos. Seria tão interessante!

Procurei desculpar-me, mas a senhora de Trézonnes confirmou o pedido da filha, consultando com um olhar respeitoso e tímido o enteado, perfilado junto dela. Até então parecera estranho às palavras trocadas a seu lado; tinha nos olhos uma expressão vaga, que já lhe havia notado na Sauvaie. Neste momento voltou-os para mim, enquanto disse, respondendo assim à muda interrogação da senhora de Trézonnes:

— Certamente. Ficaremos muito gratos e encantados se a senhora de Arbiers quiser dar-nosa honra de nos deliciar com a sua voz, na Bottellerie; porém não me atrevo a insistir, porque seiquanto está sempre ocupada e receio ser indiscreto.

A menina de Trézonnes disse com voz suplicante:— Oh! Gui, peço-lhe que insista, mesmo assim!... A senhora de Arbiers

deve ter com certeza alguns minutos!... Promete ir algumas vezes?... Uma vez na semana, por exemplo?

Como já não me era possível recusar, ficou combinado que iria na quinta-feira seguinte passar uma parte da tarde à Bottellerie. Depois disso despedi-me dos castelões e fui juntar-me aos Bardeaume, que me esperavam mais adiante.

Estes bons amigos transmitiram-me todos os elogios que tinham ouvido a meu respeito; pareciam visivelmente orgulhosos com isso, e creio que

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passaram a considerar-me uma figura da mais alta importância, agora que tinha sido notada por tanta gente e convidada a ir ao castelo.

— Belo, menina Gillette!... Está no seu elemento! — concluiu Catarina. — A menina tem as maneiras duma princesinha, mesmo quando trabalha como uma lavradeira. Estou certa de que não vai ficar embaraçada naqueles belos salões.

— Assim mesmo vou sentir-me atrapalhada. Não conheço estas senhoras e devemos ter gostos pouco comuns. Além disso tenho tanto que fazer!...

— Isso vai descansá-la e distraí-la, menina Gillette. E depois irá conhecer outras pessoas da sua classe, e talvez algum cavalheiro muito delicado que a queira para esposa.

Encolhi os ombros com um risinho forçado.— Não penso no impossível, minha boa Catarina. Na nossa terra as

jovens pobres não se casam.— Algumas vezes, quando são bonitas.— Nesses casos são sempre casamentos detestáveis. Dão a beleza em

troca da fortuna, e casam sem amor, por vezes sem amizade até. Espero em Deus que não me suceda assim!

Catarina, continuando na sua obstinação, abanou a cabeça e disse baixinho com ela: "A menina Gillette não é daquelas que têm de ficar para tia".

Angelina tinha entrado antes de nós. Ao almoço não apareceu. Catarina tinha os olhos vermelhos e Bardeaume procurava, mas sem o conseguir, parecer alegre. Após o jantar, Catarina disse-me que o marido tinha censurado a Angelina por causa do vestido e das suas maneiras. Ela respondera-lhe com insolência, e como o pai lhe batesse, erguera também a mão para ele. Então a Catarina colocara-se entre os dois e arrastara o marido para fora do quarto.

— Estava como louca, minha senhora, e gritava-nos: "Verão! Verão se me deixo dominar! Vestirei os vestidos que quiser e não têm nada com isso!" Que desgraça!... Quem diria que a minha Angelina se tornaria assim tão má!

Procurei consolá-la, prometendo acalmar o Bardeaume, que dizia: "Se a vejo de novo com a cara pintada, dou-lhe com uma correia, que lhe há-de ficar de lembrança!"

Todas estas legítimas indignações tinham a desvantagem de surgirem muito tarde. A fraqueza dos pais, a sua inconsciente vaidade por terem uma filha que usava vestidos iguais às meninas elegantes da cidade, a sua queda moral e o afrouxar das suas idéias religiosas produziam este triste resultado, que hoje fazia desesperar os pobres Bardeaume, tão culpados como infelizes.

Às três horas voltei para a igreja, a fim de cantar as vésperas. A assistência era menos numerosa e não estava ninguém do castelo. A senhora Mossette, â saída, levou-me para casa dela, a tomar um cálice de licor; em seguida voltei com todos os vagares para o meu quarto. A quinta estava deserta. Todos os Bardeaume — salvo a Angelina, que estava talvez metida no quarto — tinham ido passar a tarde a casa dos amigos e o criado tinha

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tido também licença para sair. Atravessei o pátio e dirigi-me para o pomar das macieiras. Entre as árvores corria uma leve aragem. Ainda estava quente, mas sentia-me bem, depois deste dia tempestuoso. Tirei o chapéu e sentei-me num velho banco, entre duas macieiras. Estava fatigada, com uma pequena dor de cabeça, e este breve descanso, naquela calmaria da quinta, só me podia ser favorável.

Não havia dez minutos que ali estava, pensando na pobre Catarina, na Angelina e na visita que devia fazer à Bottellerie, quando um cão ladrou no quinteiro, fazendo ruído com a corrente.

Pensei: "A casa está fechada e a Angelina está lá. Que vá ver quem é". E deixei-me ficar. Depois dum dia fatigante, era-me benéfica esta espécie de bem estar que experimentava, na paz deliciosa deste fim de dia. Tinha a impressão de que não poderia mais levantar-me, vencer a curta distância que me separava do meu quarto...

Porém ouvi uns passos sobre a grama do canteiro, atrás de mim, visto estar de costas voltadas para a entrada. Pensei de súbito: "Se é algum vagabundo?" E assaltaram-me o espírito os contos terríveis que conhecia.

Levantei-me, voltei-me rápida e trêmula de medo, e lancei um olhar inquieto sobre o recém-chegado. À luz do poente vi a altiva fisionomia do senhor de Trézonnes e os seus olhos autoritários, que me observavam. Descobriu-se, continuando a avançar. A tépida claridade incidia ainda sobre os seus cabelos castanhos, que eram um pouco compridos e ondulavam ao de leve. Passou entre as duas macieiras e parou na minha frente.

— Minha senhora, queira-me desculpar...Mantinha-me de pé, atrás do banco, com os braços estendidos ao longo

do corpo. O meu coração continuava oprimido, devido ao susto do minuto anterior, e o receio, como é natural, devia estar ainda reflectido nos meus olhos, porque o senhor de Trézonnes interrompeu-se, dizendo com certa vivacidade:

— Minha senhora, receio ter-lhe causado qualquer susto!— Não..., isto é..., pensava nos vagabundos!... — murmurei, sem bem

pensar no que dizia.— De facto é uma imprudência estar aqui sozinha. A quinta parece

deserta!— Parece-me que está só a filha dos Bardeaume. Mas não sou

medrosa. Esta idéia surgiu-me de repente, quando ouvi passos atrás de mim.

Procurava sorrir, mas um ligeiro estremecimento percorreu-me o corpo — com certeza um efeito retrospectivo da comoção que acabava de ter experimentado. E pensava: “Porque está ele aqui? Que virá aqui fazer?”

— Lamento ter sido a causa desse receio. Venho entregar-lhe um objecto que me parece, lhe pertence...

Assim falando, meteu os dedos no pequeno bolso do casaco e tirou um anel de ouro, que me apresentou.

Cheia de surpresa, exclamei:— Oh! sim! é o meu anel!— Então não me enganei... Parecia-me ter visto esta jóia nos seus

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dedos; quando a encontrei no bolo da Meulière, pensei logo que a senhora a tinha deixado cair na massa.Estava escarlate e sentia uma terrível confusão invadir-me o espírito,

porque no olhar do senhor de Trézonnes pareceu-me ver cintilar uma vislumbre de ironia, coisa que até então nunca lhe tinha notado.

Procurando conter o trêmulo da voz, repliquei-lhe:— Realmente caiu-me do dedo, enquanto batia a massa, o que apenas

notei depois dos bolos estarem prontos; ignorava no entanto em qual deles se encontrava e isto arreliou-me bastante. Os Bardeaume ficaram de avisar em todas as casas onde mandassem os bolos, a fim de evitar qualquer acidente. Não o fizeram na sua casa, senhor visconde?!

— É provável, mas o mordomo nada me disse.— Lamento muito!... Na verdade foi uma coisa bem desagradável...— Oh! minha senhora! Isso não tem a menor importância!... Mesmo

porque nem sequer o trinquei!Sorriu — dizendo isto—, com aquele sorriso que não lhe tornava meigo

o olhar. Entre os seus lábios nacarados e grossos surgiram uns lindos dentes, duma brancura de marfim.

Maquinalmente coloquei no dedo o pequeno anel. Encontrava-me constrangida, muito incomodada com aquele olhar de expressão cambiante, segundo me parecia, tornando-se um tanto langoroso, ao mesmo tempo que se mantinha imperioso e levemente irônico.

Desviei os olhos. O sol poente incidia sobre nós, espalhando manchas de luz pela superfície da grama. Nos meus cabelos parecia sentir um reflexo dessa luminosidade crepuscular, bem como nas minhas mãos nervosas e inquietas, e no anel que sem querer enfiara no dedo.

Um longo silêncio pairou entre nós, enquanto uma ligeira viração agitava os ramos das macieiras e mudava de lugar as manchas luminosas espalhadas pela grama.

A voz do senhor de Trézonnes fez-se ouvir, límpida e serena:— É sempre agradável ouvir a história do "Peau-d´Anne", admirando

um vestido cor do céu.Os nossos olhares encontraram-se de novo, e desta vez pude ver no

seu, com toda a nitidez, uma mal disfarçada ironia, sob o fulgor longínquo do olhar.

Enrubesceram-se-me as faces com mais violência. Que queria dizer?... Talvez!..., talvez tivesse imaginado que deixara cair o anel, de propósito, no bolo destinado ao castelo, como na história do "Peau-d'Anne"?

Esta idéia perturbou-me com uma tal intensidade, que estive quase para perder a fala.Mas serenei logo e respondi-lhe com altivez, olhando-o bem de frente:— Se este infeliz caso relembra de qualquer maneira o conto de

Perrault, quero adverti-lo, senhor visconde, de que então se torna para mim ainda muito mais desagradável.

— Estou convencido disso, minha senhora — respondeu após alguns segundos.

Depois acrescentou, inclinando-se:

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— Queira-me desculpar por a vir incomodar.Balbuciei não sei que palavras, talvez algum agradecimento. Pôs o

chapéu e afastou-se, desaparecendo na direcção do pátio.Só então me voltei, apanhando com um gesto maquinai o pequeno

chapéu de palha branca, enfeitado com uma fitinha preta, que me caiu dos joelhos, quando me levantei. O meu rosto queimava, e o coração sentia-se oprimido, cheio duma tímida comoção e duma súbita surpresa. Que significaria a expressão que acabava de notar na fisionomia do castelão?... Essa expressão nãome era de todo desconhecida; vira-a já nos olhos de Marcos Borday, quando me fitava. Todavia, como este olhar era tão diferente no senhor de Trézonnes!... Como tinha de facto estremecido sob o seu domínio!...

Seria medo ou comoção o que me fizera palpitar tanto e me levara a semi-cerrar os olhos? Não sabia. Procurava coordenar os meus pensamentos, convencer-me de que estava louca, que tinha sonhado, que nunca esse vislumbre de apaixonada admiração lhe tinha passado pelos olhos, por aqueles lindos olhos, altivos e sonhadores.

Era de facto uma tola imaginação da minha parte. À força de viver numa atmosfera onde se sentia o prestígio do senhor da Bottellerie, também eu terminei por engendrar as mais ingênuas e romanescas idéias. Agora já não me assistia tanto o direito de censurar a Angelina, pois que também começava a ser ridícula, imaginando que o senhor de Trézonnes...

Encolhi os ombros, num gesto de impaciência, censurando-me a mim mesma, porque acabava de reconhecer, num relance, que este desconhecido começava a chamar-me a atenção um pouco além do que devia ser, há um certo tempo a esta parte. Mal o conhecia, mas havia nele uma chama que me fascinava, que me dominava...

Absorvida nestes pensamentos, encaminhei-me lentamente para o meu quarto, enquanto o sol desaparecia por trás da velha casa. Quando entrei na sala de visitas, os seus raios iluminavam ainda as janelas abertas sobre o jardim silencioso... Aproximei-me do peitoril duma delas e respirei o ar quente, impregnado do aroma das tílias. As mãos contrairam-se-me sobre o peito... Sofria, estava louca..., tinha não sei o quê!...

— Vamos lá, Gillette!... Em que estamos a pensar!— murmurei comigo.

Debrucei-me sobre o parapeito e pus-me a chorar, toda nervosa, enquanto os reflexos do sol poente me acariciavam o rosto e os cabelos". Baixei os olhos e notei que eles fitaram o crepe azul do meu vestido..., do meu vestido cor do céu...

O senhor de Trézonnes tinha-me comparado à princesa do conto, julgando que a imitara de caso pensado. A esta simples idéia enrubesci de novo. Teria conseguido convencê-lo do seu erro?... Ignorava-o!... No entanto desejava sabe-lo...

Uma abelha zumbiu junto de mim, passou-me pelos cabelos, voejando um instante na claridade frouxa da tarde. Um sopro da brisa agitou as tílias e vergou um pouco as hastes dos girassóis, no pequeno canteiro. Envolveu-

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me o tão variado perfume dos campos, das flores e da terra... Encostei-me ainda mais à velha parede. O meu pensamento instável e solitário, e o meu coração triste e melancólico voaram para aquela que me deixara, para o rosto amoroso, para os ternos olhos da minha mãe. E pensei comigo: "Que triste solidão! Que falta ela me faz!"

XIV

Depois deste incidente mais contrariada fiquei em ter de ir à Bottellerie, que já de início me tinha entusiasmado muito pouco. Receava encontrar o senhor de Trézonnes, observar de novo o seu olhar... Todavia estávamos destinados a encontrarmo-nos ali, ou onde quer que fosse. E como tinha aceitado o convite dos fidalgos, já não era possível esquivar-me, sem um pretexto plausível.

Na quinta-feira seguinte, portanto, dirigi-me para o castelo. A senhora de Trézonnes e a filha receberam-me com as maiores atenções possíveis, Jaquelina e eu tocámos e cantámos durante uma hora, acompanhando-nos ao piano, Paulo de Trézonnes. Em seguida foi servido o chá no jardim, sob os ramos das árvores seculares. Mostrei-me bastante alegre, sem preconceitos. Uma palavra da viscondessa, no início da minha visita, dera-me a perceber que o enteado sairá de automóvel e apenas voltaria para jantar. Assim, pois, escusava de recear que ele aparecesse, e podia gozar desta linda tarde sem a menor preocupação. A senhora de Trézonnes, frívola e um pouco orgulhosa, não me agradou muito. O filho, igualmente amável, muito alegre e muito solícito comigo, devia ser dotado dum temperamento apático, leviano e dum medíocre valor moral. Jaquelina parecia-me mais simpática. Pequena, feiosa, mas viva e agradável, possuía umas maneiras muito graciosas, um olhar sempre afectuoso, às vezes risonho até. Sendo dotada duma inteligência mediana, mas culta, conversava com graça e sem afectação. Contudo, talvez por influência da educação que recebera, muitas vezes pecava pela falta de sisudez e reflexão.

Começava a inebriar-me aquela atmosfera de luxo discreto e de elegante bem estar, a afabilidade dos castelões e a solicitude de Paulo de Trézonnes para comigo. Quando Jaquelina me pediu que voltasse, não me foi possível recusar, apesar das resoluções tomadas antes. Jaquelina exclamou, jubilosa:

— Oh! como é boa!... Tenho a certeza de que seremos umas óptimas amigas. É deliciosa ter-se assim uma vizinha tão amável! Isto vai levar-me a fazer as pazes com a Bottellerie.

— Não se sente bem aqui? — perguntei.— Nem sempre. A minha mãe e eu gostamos da sociedade, do

movimento. Aqui não se pode viver assim.— Todavia é fácil arranjar aqui muitas ocupações úteis e interessantes.— Sim, para si, que é muito corajosa. No entanto parece-me que deve

ser um trabalho bastante pesado!Paulo de Trézonnes acrescentou:

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— E violento para a sua idade!— Posso garantir-lhes que não é, nem pesado nem violento. Os dias

passam sem que me sinta um só instante enfadada.— É admirável!... Era assim que o meu irmão desejava que a Jaquelina fosse!...Ela murmurou, com uma leve expressão de arrufo:— Oh! O Gui é muito exigente!... Hei-de continuar a ser como sou, pois

tenho a certeza de que nunca o contentarei.— Tens muita razão! — concluiu Paulo de Trézonnes.Não era essa a minha opinião. Parecia-me que nesta região, onde o nome dos seus tinha tanto

prestígio, a menina de Trézonnes devia levar uma vida mais útil, dando o exemplo da dedicação à região e ao trabalho. Neste particular achava que o irmão mais velho tinha razão.

Ao acompanhar-me até ao portão, pouco depois, Jaquelina perguntou-me:

— Porque não vestiu o seu lindo vestido azul?... Gosto tanto dele, e fica-lhe tão bem!

— Foi o que calhou...Como poderia dizer-lhe que não me atrevia a usá-lo, a esse pobre

vestido, tão simples, desde que fora comparado pelo visconde de Trézonnes ao maravilhoso vestido da princesa do conto, e pela qual o príncipe ficara apaixonado?

— Traga-o no próximo domingo, sim? O enfeite da gola é admirável e eu desejava copiá-lo.Prometi vesti-lo para a minha próxima visita. Depois de me ter despedido

deles, voltei para a Meulière, contente com os meus vizinhos e com a bela tarde passada. Tudo correra muito bem e eu não encontrara o castelão. Contudo, não sei que pontinha de mágoa se mantinha no fundo da minha alma, que me perturbava a alegria sentida.

Ao jantar, perguntou-me Bardeaume:— Então, minha senhora, como foi a visita à Bottellerie?— Muito bem. As senhoras foram muito amáveis, e obrigaram-me a prometer que voltaria domingo.Catarina exclamou, satisfeita:— Oh! tanto melhor!... Estas relações devem ser-lhe muito agradáveis,

menina Gillette.Tiago, que estava cortando um bocado de presunto para o seu prato,

observou:— O senhor visconde não devia lá estar, pois vi-o passar de carro em

direcção â Bohellière.— Sim, estava só o irmão.— O senhor Paulo não lhe chega nem aos calcanhares! — declarou

Bardeaume. — Não é mau rapaz, mas é frágil como um caniço, e curva-se diante do senhor Gui, como toda a gente.

— Pareceu-me, na verdade, que a senhora Trézonnes e os filhos não pareciam estar muito à vontade naquela casa. Tenho a impressão de que

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se encontram sob uma influência omnipotente, que se mantém sobre eles, mesmo à distância.

— É isso mesmo, minha senhora. A senhora viscondessa vive no castelo como uma visita. A governanta recebe directamente as ordens do senhor visconde, e ninguém se atreve a ordenar qualquer coisa de maior importância sem o seu consentimento.

Reflecti em voz alta:— A situação não deve ser das melhores para essas senhoras. E se fizer

o mesmo à esposa, quando casar, coitada dela!Neste momento olhei por acaso para a Angelina, sentada na minha

frente; notei-lhe nos olhos a expressão de rancor e de maldade que já lhe havia notado nos dias anteriores. Esta pequena detestava-me. Porquê?... Ignorava-o, mas fazia tenções de lho perguntar na primeira ocasião oportuna, pois que esta surda animosidade era-me deveras desagradável.

Tinha um vago receio de encontrar o senhor de Trézonnes na Sauvaie, ao ir lá no dia seguinte, mas tal não se deu. Passei algumas horas em companhia do meu velho amigo, a quem contei a minha visita à Bottellerie.

— É preciso ir lá mais vezes — disse-me ele. — A menina Jaquelina não foi lá muito bem educada, mas é boa e amável. A companhia da menina far-lhe-á muito bem; além disso, distrair--se-á também.

— Oh! distracções já eu tenho, e muitas, com os meus trabalhos.— Mas não é a mesma coisa. É preciso pôr-se em contacto com a

sociedade a que pertence.— E não receia que o luxo desse solar, a elegância dessas senhoras

exerçam sobre mim uma influência perniciosa?Abanou a cabeça, olhando-me com um sorriso bondoso:— Não, nada receio por esse lado.— Talvez esteja enganado!— Não o creio — replicou, sorrindo.Quando cheguei à Bottellerie, no domingo seguinte, encontrei lá os

castelões da vizinhança, aos quais já fora apresentada à saída da missa do dia de S. João. Lá estava também o senhor de Trézonnes, desta vez. Quando me cumprimentou, tive de fazer um grande esforço para conter a comoção; parece que senti tremer-me a mão ao estender-lha. No entanto, apenas senti o seu olhar, fiquei logo mais à vontade. De resto, pouco se preocupou comigo, limitando-se apenas a um breve cumprimento quando acabei de cantar. Conversou demoradamente com uma senhora de bela aparência, a senhora de Castellier, que era, segundo me informaram, uma escritora de grande talento. Tinha uma tez pálida e uns belos olhos azuis, que pareciam contemplar com carinho o seu interlocutor. Não gostei dela, por a achar muito afectada.

Paulo de Trézonnes, em compensação, mostrou-se muito amável comigo. Confesso que isso causou um certo orgulho ao meu amor-próprio, porque compreendi que me achava bonita e que a minha palestra lhe agradava; e então, cedendo à tentação dum demônio qualquer, comecei também a falar num tom afectado como "a outra". Esta nova táctica

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divertiu-me e por isso não a abandonei. Notava bem que Paulo de Trézonnes estava dominado por mim, e compreendi então, como nunca o tinha percebido, quão grande era o poder de que podia dispor. O coração encheu-se-me duma orgulhosa satisfação. Fitando a senhora de Castellier, pensei: "Tem mais de trinta anos, começa já a envelhecer, os seus olhos vão-se tornando mortiços, quando eu tenho apenas vinte e os meus olhos podem ainda reflectir a máxima vida!... "

Os convidados dos Trézonnes deviam jantar na Bottellerie aquela tarde. As senhoras queriam que eu ficasse também, mas não aceitei, vendo que o senhor de Trézonnes não apoiava muito o convite da mãe e da irmã. Sentado junto da escritora, ouvia-a falar da Noruega, por onde tinha viajado, e parecia-me indiferente à animada conversa que se travava do outro lado da sala. Provavelmente a minha presença era-lhe desagradável. Nesse caso não o forçaria a suportá-la por mais tempo!...

Recusei-me com amabilidade, opondo uma formal negativa às instâncias de Paulo de Trézonnes, e despedi-me dos castelões e dos seus amigos. O senhor de Trézonnes levantou-se, ao ver-me prestes a sair, e adiantando-se, disse secamente ao irmão:

— Eu acompanharei a casa a senhora de Arbiers.Balbuciei apenas:— Por amor de Deus não se incomode, senhor visconde; não é preciso

incomodarem-se por minha causa...Sem me atender, seguiu-me até ao vestíbulo. No limiar da porta quis

ainda dizer-lhe que não se incomodasse mais, mas ele interrompeu-me logo:— Deixe-me, minha senhora, cumprir o meu dever de dono da casa. É

para mim um grande prazer.Saimos do castelo. Diante de nós estendia-se uma alameda orlada de

faias, já um tanto sombria, porque o céu começava a escurecer. Caminhamos calados durante uns instantes; o meu coração pulsava com violência. Àquela hora, o meu maior desejo era encontrar-me a cem léguas dali, e no entanto estava ao seu lado, toda trêmula de comoção, dominada por uma vaga inquietação.

Perguntou-me:— Vive sempre satisfeita como lavradeira, minha senhora?— Sempre, senhor visconde.— O meu velho amigo Rouchenne disse-me que a senhora se dá muito

bem com a criação de abelhas.— Graças aos seus conselhos, é claro, e porque de facto me interesso

muito por esse estudo.— Tem razão; é um trabalho são, inteligente. .., e até mesmo poético.

Vale muito mais que muitos outros, e em especial mais que os divertimentos das nossas elegantes, como o namoro e as festas.

— Assim me parece — murmurei a custo. Sentia nas faces uma grande sensação de calor, e comigo, pensei: "Dirá isto por mim?"

A minha consciência começava já a censurar-me as inocentes brincadeiras da tarde, e estas palavras vieram a propósito para aumentar o meu remorso. Tornaram maior também a minha confusão e o meu

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sofrimento, ao pensar que me tomava agora por uma estouvada!Estávamos perto do portão; parei, fitando-o resolutamente, ainda que

um leve arrepio me percorresse a pele.— Tem razão, senhor visconde. Por mim estou resolvida a não trocar

nunca estas distracções tão inocentes para a alma e para o corpo pelos prazeres da sociedade; elas, pelo menos, não deixam ressaibos de arrependimentos e inquietações.

— Não quero dizer assim, por completo, minha senhora. E ser-nos-ia agora de facto penoso o deixarmos de ouvir a sua voz deliciosa, com que acabou de nos encantar.

Que poderosa sedução brilhava no seu olhar!... Não podia compreender como conseguia, sem ternura, mas apenas com o poder duma vontade íntima e concentrada, dominar-me o coração e o pensamento, lançar-me na alma uma comoção desconhecida, onde se misturavam angústias e delícias!...

O senhor de Trézonnes acrescentou:— Precisamos aprender a viver na sociedade, sem nos viciarmos ao

seu contacto. É bastante difícil, mas não impossível, quando se tem uma alma nobre e pura.

— Talvez a minha não tenha esses predicados — murmurei.—Pelo contrário, parece-me que o é.Dizendo isto, pegou-me na mão, que eu sem querer lhe estendi, e

apertou-a com uma pressão forte, mas sem excesso.— Até sempre, minha senhora. Esperamo-la qualquer dia da semana,

como lhe pediu minha irmã. Hei-de-lhe emprestar uma obra interessantíssima sobre as abelhas, de que já lhe falei, por ocasião do nosso último encontro na Sauvaie.

Transpus o portão e tomei o caminho em direcção à Meulière.Dum lado e doutro erguiam-se fechadas sebes, que terminavam, vinte

metros adiante, na curvado caminho, onde principiavam uns campos de trigo.

De repente vi sair duma dessas sebes um vulto de mulher, que desapareceu na curva da estrada. “Parece a Angelina!” — exclamei. Mas eram tantas e tais as minhas comoções, que este facto não me preocupou mais; no meu íntimo baralhavam-se os remorsos, o receio, a confusão, e uma espécie de surda alegria.

No entanto, a impressão predominante era a que me tinha deixado no final o senhor de Trézonnes. Este fidalgo podia ser áspero, intratável e orgulhoso; podia ter outros defeitos que eu ignorava; tinha porém uma alma nobre, era um homem leal e honesto.

XV

Passou-se uma semana sem que eu voltasse à Bottellerie. No desejo de acalmar a minha imaginação e o meu pensamento, sempre sonhando com o senhor de Trézonnes, entregava-me ao trabalho dia e noite, um pouco

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febrilmente, sem um momento de descanso. Catarina estava maravilhada com a minha actividade, e suspirava, comparando-me à Angelina, cuja indolência e má vontade se iam tornando intoleráveis dia a dia. Nem as censuras da mãe, nem as cóleras do pai, conseguiam arrancá-la à sua insensibilidade. Ria-se deles e dizia-lhes:

— Quero viver à minha vontade; se me contrariam muito, vou para Paris, e emprego-me.Agora evitava falar-me; contudo encontrava muitas vezes o seu olhar

hostil e cheio de ódio, que parecia vigiar todos os meus gestos.Quando chegou o sábado, fui visitar o senhor Rouchenne, que encontrei

um pouco fatigado e sonolento.— O senhor de Trézonnes esteve ontem aqui — disse-me ele. — Trouxe

este livro e pediu-me que lho entregasse, receando não estar em casa quando fosse visitar a menina Jaqueline.

Peguei no volume, encadernado em carneira cor-de-vinho, vendo-se gravadas na lombada as iniciais e as armas do seu dono.

O velho olhava-me pensativo.— Vou lê-lo o mais depressa possível — disse eu, folheando o livro distraidamente—, e dar-lho-ei depois, para fazer o favor de o entregar ao senhor de Trézonnes na sua próxima visita.— Oh! o senhor Gui disse que não precisa dele, por isso não tem

necessidade de se apressar. Além disso ele pretende falar com a menina.Contudo, quando o vi no dia seguinte no castelo, disse-me apenas umas

ligeiras palavras a tal respeito. Falando-me em especial de música, revelou-se-me um espírito deveras artista, executando mesmo com leveza e expressão. Acompanhou-me ao piano e deu me alguns conselhos claros e breves. Executou, ante um meu tímido pedido, Les Adieuxt por ser essa composição de Beethoven uma das minhas sonatas predilectas.

O senhor de Trézonnes pôs termo, apenas com um olhar, a uma tentativa de namoro do irmão. A autoridade de mais velho, do chefe da casa, não era para ele uma palavra vã. Não se podia negar que tinha uma aparência dominadora, um caracter imperioso, e que, além de tudo, tinha nas mãos a administração da casa, vigiando os gastos da madrasta e dos dois filhos. Tudo isto explicava a razão por que cada um "passava de mansinho" diante dele, como dizia Bardeaume.

Desta vez entrei em casa muito mais satisfeita do que no domingo anterior. Não fui estouvada,e o senhor de Trézonnes mostrou-se muito mais amável, quase atencioso. Passeando comigo e a irmã, colheu umas lindas rosas, que eu tinha admirado de passagem, e ofereceu-mas, dizendo-me com delicadeza:

— Serão as suas companheiras na solidão do seu quarto.E, na verdade, quando me instalei de tarde junto da minha mesa de

trabalho, com um livro na mão, senti-me menos só, naquela casa silenciosa, com estas rosas ainda vivas diante de mim. Pela janela aberta entrava o ar fresco da noite, trazendo-me os odores do jardim e beijando ao de leve as corolas rosadas, nacaradas ou amareladas. Em volta do candeeiro adejava uma escura borboleta, e o surdo ruído do seu corpo, batendo no vidro,

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vinha quebrar o silêncio. Inclinada diante da luz, tinha os olhos fitos nas páginas do livro, mas nada lia: o meu pensamento estava muito longe dali... O meu pensamento voava para a Bottellerie, para um compartimento que eu não conhecia, mas que imaginava dum luxo sóbrio, muito aristocrático. "Ele" tinha dito nesse dia que todas as noites lia, por muito tempo, no seu gabinete de trabalho. A essa hora devia lá estar. Neste meu pensamento via o seu belo e altivo perfil desenhar-se nas paredes do gabinete, bem como o seu olhar resoluto e profundo, quando se interrompia para reflectir...

Fiz um movimento brusco e involuntário, e o livro caiu-me das mãos; senti o coração vibrar sob o afluxo duma estranha comoção e, cheia de medo, pensei: "Que tenho?... Que será que tenho?..."

Fiquei toda trêmula, mas imóvel. A borboleta continuava, infatigável, a debater-se em volta da luz. Todos os aromas dos arredores vinham acariciar o meu olfacto, deliciando-me. E sentia medo e não ousava interrogar-me,..

Seria possível que me tivesse prendido também o coração?... Seria assim por acaso tão ingênua e tão fraca?

Dominada por estes tristes pensamentos, ocorreu-me um nome que balbuciei com o coração-opresso:

— Minha mãe!... Minha mãe!...Era o apelo instintivo que saía da minha solidão e da minha angústia.

Depois, juntando as mãos, que ardiam, acrescentei:— Meu Deus!... Afastai do meu coração- esta idéia louca!Ouvi um estalar de asas e em seguida um leve ruído. Era a borboleta

que acabava de queimar as asas na luz e vinha cair na mesa, junto de mim.

Levantei-me, deitei fora o pequenino cadáver, e peguei de novo no livro com mãos trêmulas. Não queria mais devanear; era forçoso que removesse, que repelisse da minha imaginação este pensamento..., e depois o outro..., e o que me falava da simpatia que havia inspirado a Gui de Trézonnes, que naturalmente me amaria a seu modo — como um homem com o seu caracter, isto é, sem ternura, mas com uma paixão concentrada, despótica, aniquiladora.

Dirigi-me ao pequeno armário onde costumava guardar o livro que o senhor de Trézonnes me emprestara. Tinha-me parecido, ainda há pouco, que alguém mexera nas minhas gavetas; desta vez, porém, vi, sobre o mármore cor-de-rosa do móvel, um papel, que até então me tinha passado despercebido. Peguei nele e notei que havia qualquer coisa escrita, com uma detestável caligrafia, visivelmente disfarçada:

"Sei muito bem porque vai à Bottellerie e com quem se encontra na Sauvaie. Tome cuidado!... Em breve toda a gente o saberá na aldeia".

Fiquei imobilizada e aturdida por uns instantes; logo porém reagi e senti-me indignada. Como?... Atreviam-se a imaginar que procedia com reservadas intenções?... Atreviam-se a escrever-me isto?... Quem teria sido o covarde autor deste miserável bilhete?... Quem seria que e detestava tanto para...?

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Angelina!No meu pensamento desenhou-se logo este nome com letras de fogo!...

Sim! essa pequena odiava-me, eu bem o sabia. A sua paixão pelo castelão inspirava-lhe esta odiosa inveja e levava-a a procurar todos os meios para me desmoralizar. Devia ser ela que estava escondida na sebe, oito dias antes, naturalmente a espiar-me, e devia ter-me visto ao portão da Bottellerie a falar com o senhor de Trézonnes. A sua vista de lince devia ter notado a minha comoção e daí concluir erroneamente em favor da sua louca inveja.

Depois, que importavam a esta inconsciente pequena as mentiras e as calúnias?... Tinha o pressentimento de que para ela todas as armas seriam boas contra mim.

Naquela noite não dormi quase nada. Grandes inquietações me oprimiam e me perturbavam o espírito. De manhã levantei-me, resolvida a ir contar tudo ao abade e pedir-lhe um conselho. Às sete horas por isso já me encontrava na igreja. No entanto, com grande surpresa minha, não houve missa e o padre não apareceu. Dirigi-me à sacristia, onde me informaram que o senhor abade estava doente e que receavam, fosse uma febre infecciosa.

Voltei para a Meulière bastante contrariada; com muita pena, tinha de aguardar o restabelecimento do velho sacerdote, a única pessoa a quem podia fazer as minhas confidencias. O mais difícil para mim foi encontrar-me com a Angelina à mesa. Quando nos sentamos, uma em frente da outra, como de costume, fitei-a com altivez e desprezo; ela voltou-se, toda vermelha, apesar da espessa camada de pó de arroz, e baixou os olhos. Se já não estivesse em absoluto convencida da sua culpabilidade, esse instante teria sido suficiente para mo provar.

Prometera à menina Jaquelina que iria passar uma hora com ela, na quarta-feira seguinte, para tocarmos um bocado. Como não queria dar a entender que havia ligado importância à carta anônima, não deixei de ir ao castelo, onde, contudo, não vi o visconde nem o irmão, ambos ausentes durante o dia todo. Esta ausência foi para mim um alívio. Agora, ai de mim!..., que sabia qual era a natureza dos sentimentos do senhor de Trézonnes a meu respeito, a idéia de me encontrar de novo na sua presença, era-me deveras penosa.

E se ele adivinhasse! Esta lembrança bastava para aumentar a minha comoção. Como precisava agora vigiar-me a mim mesma!... O seu olhar parecia tão perspicaz!... A melhor solução, a que com certeza me iria aconselhar o abade, seria evitar a todo o custo encontrar-me com ele. Neste caso devia manter-me afastada da Bottellerie e da Sauvaie. Isto porém tornava-se inteiramente impraticável, em especial agora, que, tanto numa como noutra casa, era tratada como se fosse família.

"E eu que julgava encontrar aqui a tranqüilidade!"— pensava, com tristeza. "Em vez disso, estou ante a perspectiva de ser obrigada a deixar esta terra, que já estimo, estes bons amigos que se me tornaram todos tão queridos. No entanto a Angelina, com as suas calúnias, poderá tornar-me a vida insustentável... É tão fácil desvirtuar o acto mais inocente!... "

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Às vezes um outro pensamento me assaltava o espírito: "E se ele me ama? E se pensa em desposar-me?..." Logo me recordava porém das palavras que proferira certa ocasião, parece-me que para a senhora Mossette, a qual mas repetira uma vez, em que acidentalmente falámos dos moradores da Bottellerie: "Só admito o casamento de conveniência. Outro qualquer não passa duma quimera, seguida sempre da desilusão”.

Como se podia acreditar que o homem que assim falara, pensasse em desposar uma jovem sem eira nem beira, apenas porque ela era bonita e lhe agradava?... Seria isto um casamento de conveniência?...

De resto, admitindo mesmo por um instante a hipótese deste pedido, como poderia eu responder, que não fosse com uma recusa, sabendo de antemão que a esposa de Gui de Trézonnes devia submeter-se sem reservas à imperiosa vontade do marido?

Não podia, nem por um instante, pensar na perspectiva dessa escravidão. Não!... Mesmo com todo o amor que pudesse existir por ele no meu coração, nunca podia suportar o jugo dum senhor absoluto, severo, orgulhoso, friamente dominador, como ele devia ser. Todo o meu orgulho se revoltava, só ao pensar em tal coisa. Procurava então rir-me de mim mesma, das minhas loucuras, da minha doida imaginação. Procurava esquecer o olhar que se tinha fixado em mim, aquele olhar reflectindo uma paixão calma, mas contida, que havia tentado roubar-me o coração..., que talvez o tivesse conseguido!... Não queria amar este Trézonnes!..., não era possível!...

Alguns dias mais tarde, ao cair do crepúsculo, dirigi-me à Sauvaie. O meu velho amigo devia estar pensando que já o tinha esquecido aquela semana. O abalo moral que acabava porém de sofrer — e que seria talvez apenas o começo dos aborrecimentos que teria de experimentar—, modificara os meus hábitos. Receava sobretudo encontrar em sua casa Gui de Trézonnes, que resolvi deixar de ver, se possível fosse, após a descoberta que acabava de fazer sobre os seus sentimentos para comigo. Assim, o meu espírito excitado acalmar-se-ia mais depressa. Queria ter a certeza de que apenas a minha imaginação fora atingida, pois o coração não podia estar seriamente apaixonado por esse homem que a atemorizava.

Quando cheguei à pequena herdade, o sol já se ia escondendo. Passei pelo vestíbulo, e na passagem deitei uma vista de olhos para a sala. Estava deserta; o senhor Rouchenne devia estar no jardim.

Desci os dois degraus de pedra limosa que levavam até ele, mas de súbito parei. O velho estava sentado à sombra do castanheiro e ao lado dele estava aquele que eu queria evitar.

À minha aproximação, ambos se levantaram. O senhor de Trézonnes, com o chapéu na mão, deu alguns passos na minha direcção. Adiantei-me então, indecisa, e sem querer, estendi-lhe a mão.

— Julguei que me tinha esquecido, menina Gillette! — disse o senhor Rouchenne, num tom de amigável censura.

— Oh! não! por maneira nenhuma!... Não pude. Tenho estado muito ocupada...

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— Trabalha muito — disse o velho, agarrando-me a mão paternalmente. — Bem se vê pelo seu aspecto, não é assim, senhor Gui?— Assim parece. Então não se dá bem com os ares do campo, minha

senhora?— Creio que sim... Não sinto nada.Por que seria que me olhava daquela forma, com uma insistência

perturbadora, como se quisesse penetrar até ao âmago da minha alma? Voltei os olhos e sentei-me na cadeira que o senhor Rouchenne me ofereceu.

— Está bem aí, minha senhora? Essa rèsteainha de sol não a incomoda?— Nada! Estou muito bem.— Vou deixá-los por um instante, enquanto vou buscar o licor de

cerejas.Oh! céus!.. Ficar a sós com ele, no estado de perturbação em que me

encontrava!..— Não vá! — exclamei. — Não posso tomar nada, agora... É muito

tarde.— Mas um licorzinho de cerejas...O senhor de Trézonnes interrompeu-o:— Fique, meu velho amigo. Bem sabe o que tenho a dizer à senhora de

Arbiers; é inútil que se afaste, como ia a fazer, por discrição.Que teria ele a dizer-me?... O meu coração entrou a pulsar com

desespero, a bater loucamente ...O visconde tinha-se sentado ao pé de mim. Em frente a nós colocou-se

o senhor Rouchenne, que parecia bastante comovido, e olhava-me com uma expressão de avô feliz. Quanto a mim, não me atrevia a erguer os olhos para o senhor de Trézonnes. Com as mãos cruzadas sobre a minha cesta de costura, esperava ansiosa...

Com voz clara, que nenhuma comoção conseguia alterar, falou:— Vim visitar o senhor Rouchenne para lhe pedir que me conseguisse,

em sua casa e na sua presença, uma entrevista com a senhora. Sei que é órfã, sem família, é maior e vive isolada; pela minha parte não dependo de ninguém; e não me agradaria, sendo bastante independente como sou, pedir a mediação da minha madrasta, sempre considerada por mim como uma estranha. Assim, julguei poder quebrar as regras protocolares dos nossos costumes franceses, dirigindo-me directamente à senhora, para lhe perguntar se me daria a honra de usar o meu nome.

As últimas claridades do poente infiltravam-se através dos castanheiros, envolvendo-nos na sua doce tepidez. Havia levantado os olhos, e via junto de mim esse rosto sereno e enérgico, onde apenas os lábios palpitavam um pouco. Fiquei imóvel, emudecida, com um nó na garganta; as mãos começaram-me a tremer sobre os fios de seda da minha pequena cesta.

Como responder?... No meu cérebro as idéias volteavam uma dança fantástica; o que me tinha parecido loucura, quimera romanesca, tornava-se uma realidade.

O senhor de Trézonnes parou alguns instantes e depois continuou:— Sempre desejei encontrar uma companheira que pudesse auxiliar-me no

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meu papel de proprietário agricultor, que quisesse viver na Bottellerie a maior parte do ano, que fosse capaz de se interessar também pelos seus deveres de castelã. A senhora parece gostar do campo, tem-se mostrado corajosa, e não trepidou em se iniciar num trabalho, que outras mulheres, de linhagem inferior à sua, teriam tolamente desprezado. Aí está porque pensei que a senhora saberia cumprir dignamente a tarefa que lhe vai competir, como viscondessa de Trézonnes.

Sob a doce claridade crepuscular zumbiam algumas abelhas, enquanto uma leve aragem trazia até nós os perfumes dos heliotrópios, que se dobravam, lânguidos e doces, castigados pelo calor do dia. Olhei para o senhor Rouchenne, e o meu olhar devia ter perguntado: "Como deverei responder?" Oprimiam-me, até ao sofrimento físico, o embaraço, a angústia, uma comoção que era quase alegria. O velho, imóvel, com as mãos cruzadas sobre a pequena mesa que tinha diante dele, mantinha fitos em mim os seus olhos cheios de bondade, que pareciam encorajar-me, mas nada disse. Julgava, e muito bem, que tudo devia decorrer entre mim e o senhor de Trézonnes, sem mediação estranha.

Por fim, balbuciei:— Agradeço-lhe, senhor, o bom conceito que faz de mim, mas não sei!...

Para lhe responder, precisarei reflectir...— É natural!... Mas creia, minha senhora, que me consideraria muito

feliz se me concedesse uma resposta favorável.Oh! Como era correcto e ao mesmo tempo reservado!.. Aí estava o

casamento de conveniência!... Contudo não ocultava as razões da sua escolha. Eu gostava do campo, era pobre e órfã, tudo lhe ficaria devendo. Excelentes condições para ser uma esposa que ele poderia dirigir a seu belo prazer!... Devia ser esse o motivo primordial da sua orientação. No fim de contas talvez também não lhe desagradasse o eu ser fisicamente bem proporcionada e de espírito um tanto culto; isto, todavia, era uma questão de segunda ordem, de que lhe parecia inútil dizer-me qualquer coisa.

Apenas passaram pelo meu espírito estas idéias, readquiri logo a minha presença de espírito. Vendo-o tão calmo, tão... razoável, a minha grande comoção desapareceu, e pude então falar-lhe, senhora de mim, ainda que o meu coração palpitasse bastante forte:

— Espero, senhor, que não se iluda demasiado acerca das minhas qualidades. É verdade que gosto do trabalho, que a vida agitada da sociedade não me atrai; devo contudo esclarecê-lo que não sou dum caracter muito... passivo. Aceitando a autoridade dum marido, no que tem de legítimo, de acordo com a minha dignidade e os direitos da minha consciência, desejaria não abdicar por completo de toda a minha vontade, de todas as minhas opiniões, nem daquela parte de autoridade moral, que me parece toda a mulher deve manter em sua casa.

Isto tinha de ser dito. Porém com que dificuldade as palavras me saíram da boca, sob aquele olhar cuja expressão me parecia tão enigmática!

— Falando duma forma tão clara, quer dizer, minha senhora, que receia encontrar em mim uma espécie de déspota, que pretende curvá-la sob o

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jugo duma vontade prepotente?...O senhor de Trézonnes manteve-se sempre calmo e sempre reservado;

nesta altura inclinou-se um pouco e mostrou nas comissuras dos lábios uma leve expressão de ironia.

— ... Não ignoro que fazem de mim, ainda que gratuitamente, esse amável conceito. Sempre me recusei contrariar as opiniões desse gênero. Para com a senhora, porém, o caso é diferente. Compreendo que me fale assim, que deseje ser esclarecida sobre esse ponto, visto encontrar-se em jogo a sua dignidade de mulher. Fique tranqüila, minha senhora; não procuro uma escrava, mas uma esposa, uma companheira tal como a senhora a concebe, que terá no lar o lugar a que tem direito e cujas opiniões serão acatadas, desde que sejam sensatas.

Calou-se um instante, e prosseguiu:— O senhor Rouchenne poderá contar-lhe os meus numerosos defeitos;

mas dir-lhe-á também que sempre cumpro o que prometo.O ancião aprovou com um gesto de cabeça.Sobre a pequena cesta as minhas mãos cruzavam-se e descruzavam-se.

Olhava agora a direito, na minha frente, admirando a parte do jardim ainda batida pelo sol. Com voz firme, mas um pouco irônica, perguntou de repente:

— Disseram-lhe, não é verdade, que era um homem inflexível, dominando sempre como senhor absoluto?

— Disseram, na verdade.Deixou transcorrer um curto silêncio e depois prosseguiu:— Sê-lo-ei, de facto. Contudo há diferentes maneiras de se interpretar

esta palavra. Espero que a senhora descobrirá a que for mais acertada.Desta vez os meus olhos ergueram-se, procurando os dele, e

perguntando-Ihe timidamente: "Que quer dizer?..." Não encontraram resposta no seu olhar, que se voltou rápido.

De novo pairou o silêncio. O senhor Rouchenne olhava-nos. De súbito interveio:

— E agora, senhor Gui?... Posso ir buscar o licor de cerejas?— Sim, mas não para mim. Tenho de me retirar.— Nem para mim, senhor Rouchenne. Não tomo nada a esta hora —

acrescentei eu. — Não se incomode. Ficará para outro dia.— Para quando estiverem noivos — disse ele, sorrindo.O senhor de Trézonnes replicou com calma:— Isso agora depende da senhora de Arbiers.Dizendo estas palavras levantou-se. A sua alta estatura reflectiu-se,

elegante e vigorosa, na claridade da tarde. Nunca me pareceu tão alto e tão bem constituído. Senti um leve arrepio percorrer-me a pele. O seu aspecto enérgico atemorizou-me, porque me parecia o reflexo exterior duma força íntima, duma vontade que procurava sempre dominar a fraqueza feminina, por uma persuasão instintiva da sua superioridade, pensando, talvez de boa fé, respeitar a independência do espírito da esposa.

— Muito bem, minha senhora. Então vai reflectir, não é verdade?... Queira ter a bondade de comunicar a sua decisão ao nosso comum amigo,

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senhor Rouchenne... Amanhã será muito cedo?— Amanhã!... Oh! tão depressa!... Contudo habituara-me a gostar das resoluções rápidas. De que me

serviria torturar o meu próprio espírito na indecisão de muitos dias? O abade estava doente; restava-me apenas a senhora Mossette, a quem poderia pedir alguns conselhos. Depois disso era necessário decidir-me de qualquer maneira.

Tentando falar com a mesma naturalidade que ele, respondi:— Amanhã dar-lhe-ei a minha resposta, senhor visconde.— Agradeço-lhe imenso, minha senhora. Inclinou-se, apertou a mão que eu lhe estendi, e afastou-se,

acompanhado do senhor Rouchenne.Fiquei só por uns momentos. A esta hora da tarde pairavam no

ambiente todos os perfumes da natureza. Pareciam-me muito suaves e um tanto embriagadores. Fechei os olhos, procurando ver se não tinha sonhado; mas o meu coração continuava oprimido, não sei se de angústia, se de alegria...

O senhor Rouchenne voltou e sentou-se perto de mim, no lugar ocupado há pouco pelo senhor de Trézonnes. Sem quase erguer as pálpebras, peguei-lhe nas mãos engelhadas e murmurei:

— Diga-me: isto não será um sonho?— Oh! não, minha querida! É perfeitamente real; acaba de lhe pedir

que queira ser sua esposa.—Sim, realmente é verdade!..., é verdade!... Mas que devo fazer?Abri muito os olhos, fitando-os naquele querido rosto enrugado, de olhar terno e profundo.— O que deve fazer, minha senhora? Parece-me que... Enfim, nada

posso dizer!... Se o senhor Gui lhe agrada...— Tenho um certo medo dele — disse eu a meia voz.O senhor Rouchenne olhou-me por um instante, e depois perguntou-me:— Ama-o, no entanto?Enrubesci, mas sustentei com franqueza o seu olhar e respondi:— Sim..., parece-me.— Então aceite, e nada receie. É um homem honrado e bom, muito bom.

Como já lhe disse, ninguém o conhece; a ninguém, nem mesmo a mim, dá a conhecer os seus mais íntimos pensamentos. À força de o ver, no entanto, cheguei a adivinhá-los algumas vezes. Suponho que lhos dirá, menina Gillette, se souber despertar-lhe confiança, porque a ama loucamente.

— Não, não!... Não creio isso!... Viu-o ainda há pouco, quando me falava?... Nunca esteve tão frio!... Nem um vislumbre de comoção!.. Por acaso seria assim, se gostasse de mim, como diz?

O ancião abanou levemente a cabeça, apertando-me os dedos, que conservava entre os seus.— Oh! a menina ainda não o conhece!... Mas conhecê-lo-á... É

preferível que o conheça por si mesma... Antes de responder, reflita bem, até amanhã. Quanto a mim, só lhe posso dizer uma coisa: se fosse minha

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filha, dá-la-ia de todo o coração ao senhor de Trézonnes.Estas últimas palavras acabaram por me convencer. Sempre achei muito

judicioso o critério do senhor Rouchenne. Sabia-o bastante severo no que dizia com respeito à moral e pouco habituado a transigir nos seus compromissos de consciência. Se tinha em tal conta o senhor de Trézonnes, a quem já conhecia há muitos anos, podia ter a certeza de que o castelão merecia-o.

— Parece-me um tanto áspero para com a família... — observei ainda.O velho exprimiu o seu desdém com um leve movimento dos lábios.— A sua família! Pobre do senhor Gui, se fosse contar com ela para o

fazer feliz!... Tirando a menina Jaquelina, os outros nada valem. Se não tivesse sido intransigente, e mesmo áspero, como diz, a sua fortuna já teria desaparecido, como a do pai, para pagar as frivolidades da viscondessa e as estroinices do senhor Paulo. Pode acreditar,minha senhora: o senhor de Trézonnes merece ser louvado, por se ter tornado um homem sério, ante a deficiente educação doméstica que recebeu, devido ao exemplo do falecido visconde, que era, moralmente falando, um caracter de lamentar. Esse homem dizia ao filho: "Diverte-te, meu caro, tanto quanto puderes, porque a mocidade é um sopro, que passa breve; aproveita-a bem, pelo menos". Felizmente o senhor Gui não o ouviu por muito tempo. Preferiu uma vida útil, vindo viver para o campo, para os seus domínios, para dar aos camponeses o exemplo do amor à sua terra.. Pois muito bem: quando um jovem, que era rico e livre, tendo no mundo todas as regalias que desejava, tem a energia de fazer o que ele fez, e de nela se manter há mais de oito anos, é porque na verdade tem qualquer coisa de grande e de nobre no coração. Que me diz a isto, menina Gillette?

— Sim, tem razão... —respondi, convencida.A minha inquietação e a minha incerteza acalmaram-se um pouco. Gui

de Trézonnes não era destes homens volúveis, que se deixam levar ao acaso da vida; tinha uma grande concepção do dever, dentro do qual não transigia, o que se tornava uma preciosa garantia para aquela que se tornasse sua esposa. Esta alta qualidade sobrepunha-se a alguns inconvenientes de caracter, a uma frieza um tanto excessiva, talvez, a uma vontade um tanto prepotente..., a tudo quanto eu ignorasse dele. Despedi-me do ancião. O sol, agora quase afogado no horizonte cor-de-malva, iluminava todo o ambiente à minha volta, com as suas últimas claridades. Segui pelo estreito caminho, marginando um campo de trigo, que devia levar-me mais depressa à Meulière. À esquerda, perto dum cerrado, vi mover-se um vulto feminino, que se encaminhou para mim. Era a Angelina. A boca mostrava um sorriso maldoso, e os olhos brilhavam-lhe, ao fixarem-se em mim.

— Olá, menina Gillette! — exclamou ela com insolência. — Acabo de ter a certeza das suas entrevistas com o senhor de Trézonnes, em casa do Rouchenne... A menina sabe delinear bem a sua vida!... Vejam lá!...

Ergui o busto com altivez e medi-a de alto a lixo com indignação e desprezo:

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— Como se atreve a falar-me assim?... Não atribua aos outros os actos de que era capaz, Angelina!... É uma filha má, indigna das óptimas pessoas que são seus pais. Como se atreveu escrever-me aquela carta que encontrei no meu quarto?... Que quer dizer com aquelas ameaças?... Fique sabendo que não me deixarei caluniar. Ser-me-á fácil divulgar os motivos da sua inveja, e todos na povoação virão a rir-se de si, e não acreditarão nas suas mentiras.

— Os motivos da minha inveja?... Sabe-os muito bem!... Eu também o amo!... E por que não?... Não lhe parece que tenho o mesmo direito?. .. E agora fique sabendo que não preciso das suas lições!...

Como me insultava com arrogância, falei-lhe com desdenhosa calma:— Sim, posso dar-lhe lições, porque entre nós há uma certa diferença:

eu posso tornar-me a esposa do senhor de Trézonnes, e a Angelina...Soltou uma surda gargalhada.— Sua esposa?... Muito bem!... E acha que ele irá casar com uma

pobretona como a menina?... Fique descansada que não é homem para isso.

— Engana-se. A prova é que... Interrompi-me durante alguns segundos. Que ia eu dizer?... Diante de

mim estava aquele rosto crispado, aqueles olhos cheios de ódio. Decidi-me: ia pronunciar as únicas palavras que podiam tapar a boca a esta pequena, prestes a conspurcar a minha reputação.

Com voz mal segura conclui:—... acaba de me pedir em casamento. Sou a sua noiva.Angelina teve um sobressalto; os lábios descerraram-se-lhe e balbuciou,

com os olhos muito abertos:— É mentira...— Seja. Tem a liberdade de acreditar ou não. O futuro lho dirá.Dizendo isto voltei-lhe as costas e afastei-me a passos rápidos,

agitando ao de leve as hastes amareladas do trigo, quase imóveis na luminosa quietude daquela tarde.

Afastava-me, apressada, desta infeliz, que tinha bebido o leite do mesmo seio que eu bebi, e que me detestava, porque eu era bonita e de boa família, porque trabalhava melhor do que ela, porque adivinhava o meu íntimo desprezo — e em especial porque era amada pelo homem para o qual, na sua vaidosa inconsciência, se tinha atrevido a erguer os olhos.

Mas acabava de me comprometer... A cartada estava jogada, pois tinha dito: "Sou sua noiva". Seria uma resposta afirmativa aquela que eu iria transmitir ao senhor Rouchenne.

O ar ainda estava quente e um tanto pesado, mas tive frio de repente e pensei: "Será possível?... Tão depressa!... Nem sequer tive tempo de reflectir!... Que marido será ele?"

Um marido leal, um marido honrado..., que talvez me estime. Porém há tantas maneiras de amar!... E o amor de que eu tinha sede, na solidão da minha alma, era o amor feito de confiança, de protectora meiguice, de suave e terna intimidade.

Pensei, angustiada: "O dele não será assim. Neste casamento não

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encontrarei a união profunda, a união de dois corações, tal como tenha sonhado. Já foi por este motivo que vacilei em aceitar o pedido do doutor Borday. Com esse porém não teria sido nem muito feliz, nem muito infeliz. Com o senhor de Trézonnes tenho o pressentimento de que serei as duas coisas.

"Depois, naturalmente..., ele não saberá compreender, não saberá nunca o quanto o meu coração é ávido duma doce afeição, de domésticas alegrias... Amar-me-á "loucamente", como disse o senhor Rouchenne, e eu também o hei-de amar; porém estou certa de que, apesar de toda a paixão do mundo, continuaremos a considerar-nos isolados, visto que as almas não se unem..."

XVIIO meu casamento ficou oficialmente estabelecido. Participei-o aos

Bardeaume e à senhora Mossette. A admiração dos meus bons caseiros transformou-se logo em alegria, e Catarina exclamou:

— A menina bem merece este bom casamento! Uma jovem tão corajosa!... Deixe lá, que o senhor visconde não teve mau gosto!... Dará uma linda castelã, não é verdade, Julião?...

— Sem dúvida!... O senhor Gui será mais feliz com a menina do que se desposasse milhões, porque a menina é trabalhadeira, entende de tudo, e além disso já é estimada em toda a região, onde é tão compassiva para com os infelizes... Agora cumpre esperar que ele não seja tão altivo, única coisa que é para recear...

Catarina deu-lhe um repelão no braço:— Ora cala a boca!... Já estás a atemorizar a menina Gillette com as

tuas idéias!... Olha!... Já está pálida!... Ora vamos, minha boa menina, não pense nisso. Estou segura e que a tornará muito feliz, porque a ama muito.

Catarina procurava imprimir à sua expressão um cunho de convicção, mas eu sabia bem que o caracter do senhor de Trézonnes lhe deixava alguma dúvida acerca da minha felicidade. Estas mesmas dúvidas fui encontrá-las na senhora Mossette. Quando perguntei à velha senhora se podia precisar as suas duvidas a este respeito, respondeu-me:

— Como já lhe disse, vejo raras vezes o senhor de Trézonnes, e a minha opinião é baseada no que ouço dizer a seu respeito cá na aldeia. Sempre ouvi dizer, quando se falava do seu eventual casamento: «Não será um marido muito meigo». No fundo, porém, ninguém sabe nada. O que se sabe ao certo é que o senhor de Trézonnes tem óptimas qualidades. E quanto ao seu caracter, que é a sua maior dúvida, fique certa, minha filha, de que uma mulher inteligente, discreta e amável pode quase sempre exercer sobre o marido uma influência muito grande e transformadora.

Nada disto me tranqüilizava o bastante; apenas as palavras do senhor

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Rouchenne eram francamente animadoras. Convencia-me de que, melhor do que ninguém, só ele conhecia o jovem castelão, e que não devia dar demasiada atenção à opinião geral, que apenas preconizava desgraças para a futura viscondessa de Trézonnes. Todavia ficava inquieta, partilhando da angústia e da alegria tímida, quase medrosa, que me invadia. Foi nesta disposição de espírito que recebi a primeira visita do meu noivo, no dia seguinte á resposta por mim dada ao senhor Rouchenne.

O senhor de Trézonnes vinha acompanhado da madrasta e da irmã. Depondo um beijo na minha mão, agradeceu-me em termos bastante amáveis; a senhora de Trézonnes e Jaquelina abraçaram-me, confessando-se encantadas com a escolha do seu enteado e irmão. Fomos para a pequena sala de visitas, toda perfumada com o aroma das belas flores chegadas da Bottellerie naquela manhã. Vestira o meu vestido azul, tendo na cinta uma das minhas rosas, dum lindo vermelho escuro. A viscondessa e Jaquelina falaram muito, felizmente, porque eu estava tão comovida, tão perturbada, que não encontrava nenhum assunto para falar. O senhor de Trézonnes também falou pouco; já tinha notado que não gostava de tomar parte na conversa, quando provocada pela sua madrasta. Devo convir que na verdade era pouco interessante e duma desagradável futilidade, o que me permitia responder apenas com algumas frases curtas, por monossílabos até, e dissimular o embaraço que sentia com a presença do senhor de Trézonnes.

— Quer mostrar-nos o seu jardim, menina Gillette?... Estou ansiosa por ver as suas colméias — disse Jaquelina.

O dia estava um tanto cinzento e brumoso; cercava-nos uma quente humidade, enquanto marguiávamos os canteiros de legumes, tão bem tratados pelo Bardeaume e pelo Tiago. À margem dos passeios desfolhavam-se as anémonas sobre as couves, as quais impregnavam o ar com o seu odor acre e pesado. A chuva da noite tinha humedecido a terra, e os pés afundavam-se ao de leve no solo argiloso dos estreitos carreiros. Íamos adiante, o senhor de Trézonnes e eu, e as senhoras um pouco atrás. Ao voltar para casa, após termos visitado as colméias, encontrámo-nos, pelo contrário, atrás delas.

— Já está de verdade bem acostumada a esta casa? — perguntou-me ele.— Tanto quanto nos podemos habituar, quando se tem um caracter afeito à

solidão e à tristeza, como eu.Abrandou o passo, e senti que o seu olhar pousava sobre mim.— Um caracter como o seu?... Então como é?Ergui os olhos e encontrei os dele, sempre enigmáticos. Com os lábios um

tanto trêmulos, murmurei:— Precisa de afectos e de ternura familiar.Passávamos perto duma cerejeira; um fruto bastante maduro caiu sobre as

costas de Gui de Trézonnes e esmagou-se no chão. O visconde observou:— Já é tempo de colher as suas cerejas, minha senhora.O seu olhar tinha-se afastado do meu, examinando atentamente as

árvores frutíferas. O meu coração sentiu uma opressão tal, que me pareceu

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experimentar uma espécie de sofrimento físico. Demos alguns passos calados. Observava a senhora de Trézonnes, que caminhava com cuidado, nuns passos miúdos, para não sujar os seus pequeninos sapatos abertos; e pus-me a imaginar o desdém que transbordava da sua alma pelo meu pobre jardim!... Mas como tudo isso me importava pouco!... Se "ele" tivesse sido outro!... Oh! Como poderia acreditar que me amava?...

Teria ele tido esta atitude e esta expressão?. ..Parou sob as tílias e olhou as rosas vermelhas, que cobriam a fachada

quase em ruínas. Com um gesto nervoso eu ia desfolhando maquinalmente a que trazia na cinta; o senhor de Trézonnes, porém, voltando-se para mim, disse-me a meia voz:

— Deixe-a; ela forma um lindo contraste com o azul claro do seu vestido.

De novo os nossos olhos se encontraram, e vi nos seus aquela claridade de vida longínqua e concentrada, mas ardente, que já lhe tinha notado algumas vezes, quando os seus olhos incidiam sobre os meus. Senti o coração perturbar-se-me, e os meus olhos trêmulos baixaram-se um pouco.

Com a mesma voz grave e calma o senhor de Trézonnes acrescentou:— É encantador o seu vestido cor do céu. Posso-lhe pedir que o traga

muitas vezes durante o nosso noivado?...Murmurei:— Pois sim!.. Usá-lo-ei, se lhe agrada.Na sala de visitas reunimo-nos às duas senhoras. Os visitantes então

despediram-se, ficando combinado que, como o senhor de Trézonnes não podia vir a minha casa, devido à minha condição de isolamento, iria eu mais vezes ao castelo. Acompanhei-os até ao portão enferrujado; em seguida voltei lentamente e sentei-me perto da mesa. Embriagava-me o perfume das flores de noiva; encostei a cabeça às mãos e fiquei por muito tempo pensativa — tanto tempo, que o crepúsculo veio surpreender-me, toda palpitante de receio e tristeza, porque pensava na minha mãe, na minha triste solidão de órfã, no futuro e no meu noivo, a quem amava, tremendo, receando que não fosse para mim o terno amigo idealizado, mas unicamente o prepotente senhor.

No dia seguinte o senhor de Trézonnes partiu para Paris, a fim de comprar o meu anel e o enxoval. O nosso casamento devia realizar-se três semanas depois, visto que na minha situação um noivado muito prolongado teria sido incômodo. Esteve ausente quarenta e oito horas; depois disso vi-o quase todos os dias, quer no castelo, quer na Sauvaie. A sua atitude não mudava: sempre cortês, sempre amável, muito reservado, e raras vezes lhe notava nos olhos aquele brilho que tanto me perturbava. Procurava libertar-me do embaraço que me dominava, sempre que estava perto dele, mas era forçoso confessar que a sua atitude não me ajudava.

Quando estávamos perto do bom senhor Rouchenne, este envolvia-nos num olhar de terna satisfação. O ancião não ocultava o prazer que este casamento lhe proporcionava.

— Creia que o senhor Gui há-de dar um bom marido, menina. Vai ver

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como será feliz!Respondi-lhe, esforçando-me por sorrir:— Não tenho muita esperança nisso! Veja como é reservado!... — São as aparências, apenas. Vai ver, menina Gillette, quando se

conhecerem melhor!. ..Na Meulière, ao contentamento tinha sucedido a inquietação. Catarina

envaidecia-se ao pensar que a "sua menina Gillette" ia tornar-se "castelã". E que castelã!... Muito rica, senhora dum lindo castelo, e tendo um marido à volta do qual andavam todas as mulheres!

— Ora veja, menina Gillette!... Ele queria a Meulière, e obteve-a. Consegue tudo o que quer!

Por outro lado esta pobre gente vivia muito desconsolada. Angelina, talvez para não se encontrar mais comigo, tinha partido para Niort, onde vivia uma sua tia, que possuía uma pequena loja de miudezas. Esta tia há muito que a andava convidando para a auxiliar no seu negócio; porém até então os pais tinham-se oposto a que ela deixasse o campo. Desta vez, no entanto, após uma séria questão, deixaram-na partir. Estava lá apenas há oito dias e já a tia se queixava dos seus modos, da sua preguiça e das suas vaidades. E os Bardeaume perguntavam, desesperados: "Que havemos de fazer?"

As senhoras de Trézonnes continuavam a patentear-me as mais vivas provas de amizade. Por parte da Jaquelina sabia que estas demonstrações eram sinceras; o mesmo já não se dava com a mãe. Quando a conheci mais intimamente, desvaneceu-se logo a pequenina simpatia que sentia por ela, e assim compreendi melhor a atitude de Gui a seu respeito. A senhora de Trézonnes era destas almas deveras frívolas, que nunca pensaram na sua responsabilidade, e que em toda a sua vida apenas amaram os prazeres, o luxo e as f utilidades. Nestas condições mostrava-se bajuladora ante o jugo do enteado, pois que apenas este podia dispensar-lhe um pouco daquele ouro que tinha dissipado outrora, e que hoje lhe fazia falta para continuar a sua vida ociosa, elegante e frívola.

Uma tarde, oito dias antes da data fixada para o casamento, encontrei-a só, na pequena sala de visitar, onde regra geral costumava estar. Fez-me sentar perto dela, dizendo-me que a Jaquelina andava colhendo flores no jardim e que o Gui me pedia desculpa pela ausência, devida a um pequeno acidente ocorrido numa das suas quintas, e que o obrigara a sair de automóvel logo depois do almoço.

— ...Deve estar aqui provavelmente às cinco horas, e a Jaquelina estará de volta dentro dalguns minutos. Pobre pequena!... Estou convencida de que saiu, mais para chorar um pouco, para se isolar uns instantes, do que para apanhar flores. Abanou a cabeça com um ar de profunda mágoa.

— Chorar?... E que tem ela?... Algum desgosto?— Sim, um grande desgosto. Posso confiar--lho, agora que vai fazer

parte da nossa família... Jaquelina ama o Luís de Subrennes, que também lhe quer muito. Ele deseja desposá-la, mas o pai proibiu-lho terminantemente, por achar muito insignificante o dote. O Gui não quer

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dotar a irmã com mais de cem mil francos!...Luís de Subrennes?... Já o tinha visto várias vezes na Bottellerie. Era

um belo rapaz, de olhar franco, simpático, e de maneiras distintas. Tal como o senhor de Trézonnes, mas numa escala mais modesta, o pai e ele administravam os seus domínios, situados a alguns quilômetros da Bottellerie.

— Pobre Jaquelina!... — disse eu, compassiva. — Que pena!... Parece-me que devia ser muito feliz com ele!... Mas quem sabe se o pai não acabará por ceder?

— Duvido bastante. O senhor de Subrennes não muda facilmente de idéias. E sobre esta, dou-lhe toda a razão. Cem mil francos?... De que servem hoje em dia?... Com o seu nome e a sua bela fortuna, Luís pode encontrar um melhor partido.

— Sim, mas se ele ama a Jaquelina?... Parece-me que em tais casos a questão monetária deveficar em segundo plano.

A senhora de Trézonnes olhou-me com um sorriso de piedade:— Oh! minha querida menina!... Como desconhece a vida!... Fique

sabendo que no casamento o dinheiro é a primeira condição!— Nem sempre! — respondi eu. — Prova-o o senhor de Trézonnes, que

escolheu uma noiva pobre.— É uma excepção, e isso da parte dele admirou-me muito. Supunha-o

mais interesseiro. Porém com a sua fortuna pode dar-se a esse luxo. Imagine que não gasta nem metade das suas rendas!... Penso portanto que podia dotar melhor a irmã, sem ter com isso nenhum prejuízo.

— Ele sabe que é apenas essa questão de dinheiro que impede a felicidade da Jaquelina?

— Oh! É claro que não pode ignorá-lo!... Mas ficou impassível. E sei, por experiência, que pedido directo não dá resultado.

A senhora de Trézonnes suspirou, passando pelo rosto o lenço perfumado.

Fez-se um longo silêncio. Pensando em Jaquelina, deixei errar o meu olhar ao acaso, admirando a luz que entrava pelas janelas abertas, incidindo sobre os claros tapetes e sobre os móveis elegantes. Quebrou o silêncio a voz da senhora de Trézonnes, que, pondo a mão no meu braço, murmurou:

— Talvez que a menina pudesse fazer alguma coisa em nosso favor.Voltei-me, fitando-a com surpresa.— Eu, minha senhora?— Sim!... Por muito reservado que seja, o Gui ama-a muito. Quando for

sua esposa, quando o conhecer melhor, parece-me que poderá tentar obter dele que seja mais generoso, na parte que diz com respeito ao casamento da irmã.

Fiz um instintivo movimento de protesto:— Oh! minha senhora!... Que me está pedindo?... Pense no quanto

esse caso seria delicado para mim, a quem o senhor de Trézonnes vai desposar sem dote!...

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— Oh! não!... Seria muito natural. Ele não pode pretender que todos tenham o seu desinteresse. Aliás, a menina escolherá o momento propício para lhe fazer tal pedido. Como um homem como o Gui é preciso ter uma infinita cautela e muita inteligência. Tenho porém a certeza de que neste particular a menina tem os requisitos necessários, sem falar nos seus lindos olhos, que evidentemente o encantaram, por mais insensível que seja.

Mantive-me calada. Não obstante, demonstrava o desgosto que me causava tal pedido. Neste momento agravou-se a minha antipatia para com a senhora de Trézonnes; pensava em retirar-me, pretextando ir ao encontro da Jaquelina, quando esta apareceu. Trazia os olhos vermelhos e uma expressão de profunda mágoa, que ao ver-me, procurou encobrir, sob um forçado sorriso. Mostrei-me mais afectuosa para ela, lamentando com sinceridade o não poder advogar junto do irmão a sua causa, para lhe minorar a mágoa que a apoquentava. Mas era impossível. A minha posição impunha-me a mais restrita delicadeza, e estava sentindo um certo ódio à senhora de Trézonnes, por não o ter compreendido.

Gui chegou pouco depois das cinco horas; o acidente que motivara a sua ausência não fora de gravidade. Ao voltar, tinha-se demorado uns minutos na Sauvaie, onde encontrou o senhor Rouchenne um pouco adoentado. Ficou de voltar no dia seguinte e demorar-se lá mais tempo.

— Irá também à Sauvaie? — perguntou-me, enquanto me acompanhava até ao portão, como de costume.

— Vou, sim. Irei vê-lo à tarde e ficarei a trabalhar um pouco, junto dele.— Ficará muito satisfeito, porque a ama sinceramente. Ainda há pouco

me disse: "o seu casamento com a menina Gillette é a minha última alegria".

Murmurei com comoção:— É um bom amigo!...Tínhamos chegado perto do portão; estendi-lhe a mão:— Então até amanhã, senhor visconde.— Não acha que poderíamos suprimir este cerimonioso “senhor" e

“senhora”?Respondi, corando:— Sim, talvez...Beijou-me as mãos, e murmurei:— Até amanhã, Gui.Transpus o portão num passo apressado; uma violenta comoção se

apoderara de mim. A mudança de tratamento acabava de me tornar mais evidente a próxima transformação da minha vida, a intimidade que ia ter dali para o futuro com este estranho. Até aqui custou-me a convencer que este noivado não era um sonho; hoje, porém, compreendi com mais clareza que já estava unida por um forte liame ao senhor de Trézonnes.

Em lugar de entrar directamente em casa, dei uma volta, supondo que o caminhar e o ar livre poderiam acalmar os meus nervos um tanto excitados; ao mesmo tempo fui saber duma pobre viúva doente, a quem ia algumas vezes levar uma pequena esmola, que os meus modestos

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rendimentos permitiam. Cheguei a casa da indigente, onde a encontrei com os dois filhos. Demorei-me um pouco, e quando cheguei à Meulière o sol já se tinha posto. De passagem, o carteiro entregou-me uma carta da senhora Barduzac. Abri-a e percorri as suas linhas, enquanto entrava em casa. A esposa do meu ex-tutor respondia à minha participação de casamento com umas felicitações calorosas. Esta brilhante união reconciliava-a por completo comigo. Já não era a "pobretona", que não quiseram agasalhar na sua confortável "Vila das Palmas". Informava-me também que o senhor Barduzac se sentiria muito feliz em me servir de padrinho.

Dobrei a carta com um sorriso de desprezo: — Não, minha querida senhora—murmurei—, não será pelo braço do senhor Barduzac que entrarei na igreja. Outro substituirá mais dignamente o pai que não tenho.

Mudei de vestido distraidamente. O meu pensamento evolava-se para essa cerimônia, já agora tão próxima. Seria uma grande festa para a aldeia. Seria servido um almoço a todos os caseiros e seus criados, assim como a todos os habitantes da aldeia, numa das grandes alamedas que convergem para o castelo. Em seguida haveria um baile e todos deviam ficar satisfeitos. Apenas a noiva, um tanto trêmula, se manteria mergulhada na incerteza do seu destino.

E repetia comigo mesma: "Daqui a oito dias!... Dentro de oito dias!..."Com o espírito perturbado, devido a estas preocupações, no meio das

quais procurava uma luzinha de esperança, dirigi-me para a quinta. Na sala, agora mergulhada na indecisão do crepúsculo, estava o Bardeaume, de pé, com os braços pendentes ao longo do corpo. Próximo do fogão, estava a Catarina, sentada, a chorar, com o rosto entre as mãos.

— Que há? — exclamei, inquieta.Foi o Bardeaume quem falou, com voz rouca:— Acabamos de receber uma carta da minha cunhada. A Angelina

deixou-a, para se ir empregar em Paris. E sem nada nos dizer, compreende, menina Gillette?

— Será possível que nos dê um tão grande desgosto? — gemeu a Catarina. — Uma filha por quem tanto temos sofrido!... A Juliana diz que com certeza se vai perder!...A minha pobre ama causava-me pena. Tentei persuadi-la de que a

Angelina em breve sentiria remorsos e voltaria à casa paterna. Bardeaume porém, abanando a cabeça, disse entre dentes:

— Nunca mais voltará. Os filhos de hoje não têm coração, menina... Só pensam neles...

E filosofei com tristeza : “Porque não os ensinaram a pensar nos outros!. .."

X V I I I

Alguns dias depois o senhor de Trézonnes ofereceu-me o enxoval que tinha comprado em Paris. A meu pedido não o mandou para minha casa,

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pois não me parecia segura bastante para nela se guardarem objectos como esses, que representavam uma verdadeira fortuna. O senhor de Trézonnes tinha-se mostrado duma admirável generosidade. Na sala de visitas, onde me levou, esses esplendores maravilharam-me, pois só os havia contemplado em sonho. Um quente sol de verão, infiltrando-se pelas janelas semi-abertas, vinha acariciar as peles e as rendas, fazia cintilar osdiamantes, as esmeraldas e os rubis muito bem trabalhados. Dois leques, um antigo, outro em platina, com varetas adornadas de diamantes, estavam nos seus estojos de cetim branco.

— Oh! Gui!... obrigada!...— murmurei. — Mas isto é muito, muitíssimo!... Não estou habituada a ser assim mimoseada!

— É uma coisa a que facilmente nos habituamos. .. Então, tudo isto te agrada?

— Oh! muitíssimo!Ia duma coisa para a outra, exprimindo a minha admiração, e Gui seguia-

me com os olhos. Depois adiantou-se, pegou numa pele e chegou-a perto do meu rosto.

— Fica-te muito bem, como eu pensava.— O que é, Gui?— Raposa prateada.— Oh! mas é uma loucura!... Um vestuário assim!... Nunca me atreverei a

usá-lo!...Exclamou com calma:— Por quem poderia eu fazer loucuras, senão por ti?Vendo-lhe de novo aquele olhar apaixonado, ocultei os meus olhos sob as

pálpebras frementes. Com um gesto maquinai pousei sobre uma mesa o estojo que tinha na mão; Gui pousou a pele sobre uma poltrona e perguntou-me :

— Queres ver o meu gabinete de trabalho?.., É o lugar onde de preferência me encontrosempre.

Como eu concordasse, abriu uma porta e fez-me entrar numa ampla sala de quatro janelas, cheia de tapeçarias antigas. Móveis da renascença, marfins, esmaltes, maravilhas de velhos artistas e alguns quadros de antigos mestres, faziam desta sala uma espécie de museu, dum gosto sóbrio e magnífico.

— Oh! Como gosto disto! — exclamei com espontaneidade.Fui até uma janela. Na minha frente estendia-se um terraço, donde se

descortinavam os jardins e o parque. O sol não iluminava já esta fachada, e a sombra espalhava-se com tal doçura, tão perfumada e emoliente, que murmurei a meia voz:

— Que delícia!Estava perto de mim e tão inclinado, que sentia o seu hálito no meu

rosto; tive a impressão de que os seus lábios se aproximavam e me iam beijar; não me atrevi a esquivar-me, e pensava, num misto de angústia e alegria : "Já lhe assiste algum direito; dentro de três dias será meu marido".

Ele porém endireitou-se, sem que os seus lábios me tocassem.

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— Esta parte do castelo é a mais agradável — disse ele com a mesma voz tranqüila. — Lá em cima ficam os meus aposentos e também uma parte dos teus.

— Ah! sim! — murmurei.Não me tinha ainda refeito por completo da minha comoção, e todavia

estava sentindo no coração uma espécie de sofrimento, duma leve decepção.

Voltei para a sala. O senhor de Trézonnes mostrou-me alguns objectos mais preciosos, explicando-me as respectivas origens. Em cima da secretária vi a fotografia de sua mãe ao lado da minha. Vendo que me inclinava para a observar, pegou nela e apresentou-ma.

— Tem uma grande expressão de bondade e doçura!— pensei em voz alta.

— Sim, era uma santa!... Quase não a conheci, mas a lembrança que dela conservo é indelével e profunda.

Calou-se por um breve instante, depois do que prosseguiu, numa voz que de súbito se tornou áspera:

— Há duas coisas que nunca pude perdoar a meu pai: foi o ter feito sofrer minha mãe, e tê-lasubstituído por essa boneca sem miolos da minha madrasta.

Teve um encolher de ombros, deu alguns passos pela sala, depois voltou até junto de mim e inclinou-se para ver melhor o retrato.

— Vês que lindos eram os olhos da minha mãe?... Quase tão lindos como os teus, Gillette.

Nas minhas mãos tremeu ao de leve o porta-retratos, com uma moldura delicadamente trabalhada. Ainda uma vez mais as minhas faces enrubesceram. O senhor de Trézonnes deixou escapar um sorriso um tanto irônico:

— Permite que te felicite!... Como coras depressa, a qualquer coisa que te digam. As jovensde hoje não coram assim, fica sabendo, minha querida Gillette... E fico imensamente satisfeitoque não sejas dessas!...

Estaria escarnecendo de mim, ou falaria sério? Coloquei o retrato sobre a secretária e dei um passo para trás; ele porém susteve-me com um gesto.

— Queres dar-me um instante de atenção? Tenho uma pergunta a fazer-te. Na situação em que já estamos, espero que te não irá parecer muito indiscreta... Já estiveste noiva antes de me conhecer?

— Sim, em Largillais.— Ah!... E recusaste?Em breves palavras expliquei-lhe como se deu a minha ruína, antes da

minha resposta ao doutor Borday.— Mas qual teria sido essa resposta?— Naturalmente teria aceitado.— Amava-lo?—perguntou-me, com uma espécie de aspereza.Abanei a cabeça.

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— Não. Só agora percebo que não o poda ter amado, pelo menos com um amor profundo.Era um espírito agradável, mas superficial. Não podia ser para mim um guia, um conselheiro.

Calei-me, confusa, ante as palavras que acabava de pronunciar; porém o senhor de Trézonnes parece que não o notou. Deu-me a impressão de estar dominado por outra idéia.

— Nunca amaste? — perguntou-me no mesmo tom breve e áspero.— Nunca.— E a mim?... Amas-me?...Desta vez foi uma verdadeira vermelhidão que me incendiou as faces.

Fiquei quieta e calada, sem me atrever a olhá-lo.—Não, não me respondas!... Perguntar-te-ei isso mais tarde!... Agora

vem. Vamos dar um passeio pelo parque, antes do chá.— Peço-te desculpa, mas estou um pouco fatigada — balbuciei eu.—Nesse caso vamos sentar-nos ali fora. O dia está lindo e esta hora é

bastante agradável.Segui-o e sentámo-nos num banco, perto do grande canteiro central,

donde se admirava, diante dos nossos olhos, toda a fachada do castelo. Jaquelina, no limiar da porta, brincava com os galgos do irmão. Para quebrar o silêncio, visto que o senhor de Trézonnes nada dizia, observei--lhe:

— A Jaquelina parece que anda abatida há uns tempos para cá, não achas?

— Parece que sim; mas isso há-de passar. Ergui os olhos para ele. Talvez percebesse neles a censura que

intimamente formulava, porque perguntou:— Achas-me severo para ela, Gillette?— Sim, um pouco.— Não tenho simpatia por ela, nem pelo irmão, nem pela irmã. Sempre

os tratei como estranhos, porque sabia que, a exemplo da mãe, só viam em mim apenas o dinheiro, diante do qual se baixam aduladores. O ouro que lhes dou, que lhes posso dar, é tudo quanto amam em mim.

Os lábios contrairam-se-lhe num rito de amargo desprezo.— Não! — protestei eu. — Afirmo-te que a Jaquelina merece um melhor

conceito. Tem um grande fundo de bondade e um coração capaz duma estima sincera. Se lho tivesses permitido, garanto-te que te teria dedicado um certo afecto.

— A mãe encarregou-te de defender a sua causa junto de mim?A pergunta, feita à queima-roupa, apanhou-me de surpresa; refiz-me

porém logo e, fixando-o bem de frente, repliquei:— Quis na verdade encarregar-me disso, mas recusei. Não me

competia, a mim, que vou casar sem ter o mais pequeno dote, imiscuir-me em questões dessa natureza. Tratei de o fazer ver à senhora de Trézonnes, mas não creio tê-lo conseguido. Em todo o caso, Gui, não quero que vejas nas minhas palavras mais do que um juízo sincero, e sem segunda intenção, a respeito do teu coração, que eu muito admiro.

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— Posso assegurar-te, Gillette, que não me molestarás, intervindo em seu favor. Agrada-me a tua delicadeza, que para mim constitui mais um dos teus encantos; porém quando estivermos casados, não me causes a mágoa de me julgar um indivíduo vulgar, que lembrasse à esposa que o dinheiro é dele, como se tudo não passasse a ser comum entre nós. E se, por simpatia pela Jaquelina, desejas que lhe aumente o dote, diz-mo com toda a confiança.

Um tanto surpreendida, murmurei :— Oh! Gui, como ficaria satisfeita se tal fizesses!... Ela ama o senhor

de Subrennes, e sofre muito...— Muito bem. Esse caso será solucionado logo após o nosso

casamento... Desde já podes dar qualquer esperança a minha irmã; isso ajudá-la-á a aguardar com paciência.

— Oh! Gui! Como agradecer-te!... — murmurei, comovida. — A Jaquelina ficar-te-á deveras satisfeita.

— Não o faço pela Jaquelina — faço-o por ti. Estendi-lhe a mão, replicando:— Agradeço-te por ela e por mim.O senhor de Trézonnes inclinou-se e pousou os lábios nos meus dedos;

endireitando-se, falou com suavidade:— Agora, Gillette, se te aprás, vamos tomar chá.

XIX

Chegou finalmente o grande dia. Estava de pé, no meio do quarto, enquanto a Jaquelina e uma criada da Bottellerie andavam à minha volta, arranjando-me o véu e a cauda do vestido nupcial. Pensava: "Em breve estará tudo terminado!... Será um juramento para toda a vida!..." Olhava com enternecimento para as paredes do quarto, para os móveis, para tudo enfim quanto eu ia deixar para seguir a Gui de Trézonnes, com quem ia compartilhar das alegrias e das tristezas da vida. Oh! era bem velha e bem triste a minha pobre casa, "mas foi aqui que encontrei um refúgio para a minha pobreza, foi aqui que passei em sossego estes curtos meses, e vou trocá-la agora pelas incertezas do desconhecido.

No salão esperavam-me, o Gui, a senhora de Trézonnes e os filhos; estava também o senhor Rouchenne, que devia levar-me ao altar, e alguns amigos íntimos dos castelões. Levou-me à igreja um automóvel enfeitado a flores brancas. O abade, apenas restabelecido dos seus violentos acessos de febre, tinha-me servido de padrinho no civil. Um beneditino, primo de Gui, pronunciou uma breve alocução, que me comoveu bastante. Prometi a Deus, do fundo da minha alma, ser uma esposa dedicada e tentar sempre bem cumprir os meus deveres. Oh! mas se ao menos o Gui fosse um pouco menos enigmático. .. Às vezes parecia-me que me amava muito!... Outras, tornava-se frio, reservado!..

Enfim, quem sabe se não faria felizes descobertas, depois de o conhecer

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melhor?...A assistência não coube na igreja: ficou por isso cá fora, espalhada

pelo adro; quando saí do templo, pelo braço de Gui, fui o alvo de todos aqueles olhares; e ouvi então algumas opiniões elogiosas a nosso respeito.

Sorri, para agradecer a estes bons camponeses. O meu espelho e as exclamações da Jaquelina já me tinham feito notar que o vestido branco me ficava uma maravilha. Acabei de me convencer desta verdade, pelo olhar com que me recebeu o senhor de Trézonnes, quando entrei no salão.

Logo que ficámos sós no carro que nos levou ao castelo, Gui pegou-me nas mãos, olhando-me longamente, sem dizer palavra. Sentia-me embaraçada e muito comovida, lançando uns vagos olhares para as flores que se ostentavam diante de mim. Por fim disse-me, a meia voz:

— Obrigado, Gillette, por seres tão bonita.Voltei a cabeça, olhando-o, a sorrir, timidamente.— Não é a mim que deves agradecer, Gui, mas a Deus, que assim me

fez.— Tens a vantagem de não te tornar feia, vestindo essas modas

descabidas, deveras extravagantes. Tens um gosto distinto.— Agrada-te o meu vestido?— Imenso. Mas em qualquer outra não alcançaria metade dessa

elegância, desse harmonioso conjunto. És muito linda, Gillette, e infinitamente sedutora. Continua a não te envaidecer com essa beleza e faz desses dons do céu o ornamento do teu lar...

E depois duma breve hesitação, concluiu:— E a alegria do teu marido.Estremeci ao de leve. Inebriava-me uma felicidade ainda velada dum

vago receio. Não podia desviar os meus olhos dos dele, tão ardentes eram, que mos prendiam, ofuscando-os.

Pondo a mão nos meus ombros, murmurou:— Gillette, gosto dos teus olhos.Depois calou-se e ficou estático, admirando-me durante os poucos

minutos que decorreram, até o carro chegar à porta do castelo.Foi então a grande recepção; o almoço, abundantemente servido, e o

baile dos caseiros, que eu e Gui abrimos. Foi apenas pelas seis horas que os convidados deixaram a Bottellerie. Gui conduziu-me então até aos meus aposentos, onde estava uma criada à minha disposição. Deixou-me ali, dizendo:

— Espero-te no meu gabinete.Só devíamos partir para a nossa viagem à Noruega no dia seguinte.

Esta tarde jantaríamos sós, nos aposentos de Gui.— Que vestido deseja, minha senhora? — perguntou-me a criada.Olhei para todos os vestidos que tinha mandado fazer em Niort. O

vestido branco era encantador; mas o outro, duma cor-de-malva esbatida, tão delicado, era também bonito. Oh! se pudesse saber a preferência do meu marido?... Parecia-me que devia gostar deste, de linhas elegantes e com uns graciosos ornatos de renda...

— Vestirei o cor-de-malva, Júlia.

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Um quarto de hora depois entrava no gabinete de Gui. A sala estava deserta; dirigindo-me porém para a janela, vi o meu marido de pé, no terraço. Não me tinha visto; e quando cheguei junto dele e lhe toquei ao de leve no braço, teve um ligeiro estremecimento.

— Oh! desculpa!...Olhou-me, calado, por muito tempo. Diante de nós estendiam-se os

jardins do castelo, na doce calma do dia que agonizava. A luz desvanecia-se lentamente e o céu cobria-se duma clara tonalidade rosa-lilás. Gui murmurou :

—O teu vestido tem ainda a tonalidade do céu.— Fica-me bem? — perguntei, numa voz um pouco trêmula.Não respondeu e voltou os olhos. Depois olhou-me, pegou-me

nas mãos e apertou-as contra os lábios.— Gillette, compreendi um dia que tinhas medo de mim!... E eu...

tenho medo de ti!...— Oh! Gui!Com voz dolente, sem parecer ter-me ouvido, continuou, meio trêmulo:— Amei-te desde o dia em que te vi na sala da Meulière... Estavas

encantadora, fazendo o teu trabalho de dona de casa; depois, tinhas tanta franqueza, tanta expressão de pureza e coragem nos belos olhos!... Amei-te cada vez mais, em cada um dos nossos encontros, e decidi um dia que serias minha esposa. Mas sou um orgulhoso e... um sentimental. Nunca imaginaste que eu fosse assim, não é verdade?... É que me revesti desta frieza e desta aparente severidade, com receio dos dissabores da vida. Aí está a razão por que tenho medo do que não conheço de ti, das desilusões que poderás causar-me!... Sei que me amas. Há porém tantas maneiras de amar!... Desejo que o teu amor seja todo feito de ternura e confiança, e que nunca enfraqueça. Não ignoro que estou pedindo uma coisa quase impossível; porém, se experimentasses, Gillette?... Se quisesses dar-me o teu coração em toda a sua plenitude, como eu quero dar-te o meu? A meia voz, numa expressão que a comoção sufocava, respondi:

— Oh! Gui!... Por que não me disseste isso antes?... Por que me deixaste sofrer na incerteza, acerca dos teus sentimentos, a mim, que apenas desejo uma coisa: amar e ser assim amada?

O seu braço enlaçou-me, aproximou-me dele, e a minha cabeça ficou descansando nos seus ombros.

— Perdoa-me, meu amor!... Repito-te, sou um orgulhoso. Estas palavras, que acabo de te dizer, pareciam-me bastante duras, porque eram um atestado da minha fraqueza de homem ante o teu poder de mulher. Obstinei-me por muito tempo, e quantas vezes as tive suspensas dos lábios!... Contudo era preciso dizê-las, e hoje pareceu-me tão fácil de fazer!

Que ternura ardente e profunda transparecia nos seus olhos!... Embriagava-me uma indizível felicidade e já não sabia ao certo se estava na vida real, ou se tudo aquilo era um sonho...

— Diz-me se tens confiança em mim, se já me não temes! — exclamou ele.

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— Oh! meu querido Gui, amo-te tanto!... tanto!Gui beijou-me as pálpebras, murmurando:— Leio nos teus olhos, nos teus lindos olhos negros!... Sim, amas-me,

Gillette!... Saberei tornar-te feliz, a mais feliz das mulheres...E exclamei com voz abafada :— Oh!... Como tinha razão o nosso velho amigo! Ninguém conhece a

tua alma!...

XX

A dor vive sempre ao lado da alegria... Na manhã seguinte, quando estava a acabar de me aprontar, entrou Gui. A sua fisionomia entristecida chamou-me logo a atenção.

— O criado da Sauvaie — disse-me ele — veio avisar-me de que o pobre Rouchenne está muito doente, respirando a custo. Vou até lá um instante.

— Oh! o nosso bom amigo!... Ontem estava na verdade muito fatigado!... Talvez tivesse feito algum esforço demasiado, para não deixar de me acompanhar ao altar? Quero ir contigo, Gui. Espera cinco minutos, enquanto vou pôr o chapéu.

Um quarto de hora depois estávamos na Sauvaie, donde acabava de sair o médico. A uma pergunta de Gui, respondeu:

— Chegou a sua hora. O coração vai deixá-lo.O ancião estava estendido na sua pequena cama de ferro. O sol

chegava até ele, aquecendo-lhe as brancas mãos, que se juntavam, ouvindo o abade falar-lhe a meia voz.

Ao ver-nos, os seus olhos calmos iluminaram-se, bem como a terna face enrugada, um tanto pálida. O sacerdote retirou-se, e nós inclinámo-nos para o enfermo.

— Aqui estamos, meu velho amigo! — disse Gui com doçura. — Viemos para o tratar, para o curar.

— Não..., não para me curarem..., mas morro satisfeito, porque os vejo casados...

A sua mão procurou a minha, e quando a teve entre as suas, voltou para mim o seu triste olhar velado.

— É a mais linda das esposas... Verá como ele é bom... É preciso amá-lo muito. Ninguém soube até agora amá-lo como ele queria.

— Soube-o o meu amigo! — exclamou Gui, comovido.Um sorriso animou-lhe os lábios pálidos; o olhar de novo se iluminou

por alguns segundos, fixando-se em meu marido. O ancião quis falar ainda, mas as palavras tornaram-se-lhe ininteligíveis. Calou-se. O padre aproximou-se, e todos três, orando, assistimos à sua agonia calma, silenciosa e cristã, como a própria vida que se extinguia.

Gui fechou-lhe os olhos e ambos depositámos na sua fronte o nosso último beijo. Depois, enquanto o meu marido e o criado tratavam de o vestir, fui colher todas as flores do seu jardim, para lhe adornar o leito mortuário. Oh! Como as amava tanto, como quis tanto às suas flores, o

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nosso querido amigo! Elas tinham sido uma das pequenas alegrias da sua vida solitária, da sua vida simples e digna de homem honrado, de homem valente, a quem toda a povoação prestou homenagem naquele dia e no seguinte, desfilando ante os seus restos mortais.

O senhor Rouchenne já não tinha parentes. O caixão foi conduzido por Gui e pelo prefeito de S. João. À tarde deixámos a Bottellerie para iniciarmos a nossa viagem de núpcias. O tabelião tinha-nos informado antes que o extinto legara a Gui, a Sauvaie, e a mim, os bordados da sua esposa. Era a sua última lembrança, a última prova de afecto dum amigo dedicado de meu marido e ao qual me liguei por uma estima profunda nestes poucos meses.

Por mais duma vez, no decorrer da nossa viagem, no meio da nossa felicidade, evocámos as suas feições amigas, os seus olhos ternos e reflexivos. E dizíamos:

— Como será triste não o encontrarmos mais, quando voltarmos!Por uma manhã de Fevereiro, um pouco mais de dois anos depois do

nosso casamento, acabava de escrever uma carta, numa sala da velha casa dos Trézonnes, em Paris, quando um criado veio informar-me que Catarina de Bardeaume estava perguntando por mim.

— Catarina! — exclamei eu. — Catarina em Paris!... Mande-a entrar, Anselmo.

Levantei-me para ir ao encontro da minha visitante, mas abafei um grito de espanto ao ver o seu rosto de amargura, quase irreconhecível.

— Que é isso, Catarina? Que te aconteceu? E Catarina, no meio de dois soluços, tendo entre as minhas as mãos

que lhe tinha agarrado, disse:-— É a Angelina!... Escreveu-me a dizer que está muito doente, no

hospital, e que talvez seja o seu fim!... Foi por isso que vim. O Bardeaume não pôde, por causa dos rins. “Vai, aconselhou-me ele, procura o senhor visconde e a senhora. Eles receber-te-ão certamente, e ajudar-te-ão, minha pobre amiga”.

— Oh! Com certeza!... Sente-se, pobre Catarina!... Mas não fique tão desconsolada. A Angelina há-de curar-se. Que tem ela?

— Diz que sofre do peito!... Ah! Se tivesse ficado em casa!... Mas não!... Isso parecia-lhe impraticável. Imagine que já não nos escrevia há muito! E pensarmos na vida que teria levado depois disso!...

Tinha sabido já alguma coisa a este respeito, acidentalmente, no ano anterior, mas tive o cuidado de nada dizer à pobre mãe; a sua infelicidade já era bastante grande, e eu só queria minorá-la, tanto quanto me fosse possível.

Depois de ter informado meu marido sobre o caso, acompanhei a Catarina ao hospital. Uma enfermeira, de andar apressado, indicou-nos a cama onde a Angelina agonizava, já nos últimos momentos. Mal tive tempo de procurar um sacerdote, enquanto a mãe, inclinada sobre a filha, gemia baixinho:

— Oh! minha querida!... Diz que nos tens amado sempre!... que queres voltar para a Meulière!

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A Angelina estava ainda na plena posse dos seus sentidos, mas falava com dificuldade, devido à terrível opressão que tinha no peito. Contudo pôde dizer ainda:

— Minha mãe!... Como eu lamento tudo!.,. Fui uma infeliz!...E logo depois:— Porque me deixou fazer o que eu entendia?Depois disso não falou mais. Os seus dedos apertavam o crucifixo que

lhe tinha posto entre as mãos, enquanto o seu olhar se fixava em mim, com uma expressão de sofrimento e desespero. Estava com certeza a lembrar-se da sua odiosa inveja, que talvez ainda não estivesse de todo extinta... Então inclinei-me, pousei as mãos sobre a sua pobre cabeça emagrecida e disse-lhe palavras de consolação, palavras que se repetem há tantos séculos, que apagam os rancores, os remorsos e os sofrimentos. A fisionomia gasta, onde já ninguém reconheceria aquela rosada Angelina da Meulière, foi-se aclarando pouco a pouco, o olhar tornou-se mais suave, e parecia dizer: "Tudo está acabado... Já não tenho mais ódio... Tudo se acabou..." Angelina morreu assim, arrependida, calma e perdoada, nos braços da sua mãe e daquela que tanto tinha detestado nos curtos dias da sua existência.

Levei para minha casa a pobre Catarina, que repetia: "A culpa foi nossa; nós é que a educámos mal" . Depois de a ter confiado aos cuidados da minha criada, que era sua sobrinha, fui ter com o meu pequeno Roberto, para lhe dar a sua refeição. Feito isso pus-me a trabalhar, enquanto o pequeno adormecia junto de mim. Gui, ao regressar da rua, pouco depois, ainda nos encontrou ali. Contei-lhe a minha visita ao hospital e disse-me, comovido:

— Pobres Bardeaume!... Que lição!... Desde há muito que pensava que os estouvamentos dessa pobre jovem a levariam para fora do seu bom caminho.

Sentara-se perto de mim, e enquanto falava, fazia rodar um dos anéis que ornavam os meus dedos. Pousando a cabeça nos seus ombros, disse:

— Fica sabendo, meu querido amigo, que sem esta pobre Angelina talvez nunca fosse tuaesposa — a tua feliz esposa!

Contei-lhe então a breve discussão que tivemos, quando saí da Sauvaie, depois dele me ter pedido em casamento.

— Se tivesse reflectido mais tempo, Gui, talvez não me tivesse decidido a aceitar, apesar domeu grande amor por ti, porque tinha receio!... E tantos outros tinham receio: os Bardeaume, a senhora Mossette!... Oh! meu querido Gui!...Parece-me que todos te supunham uma espécie de Barba-Azul!

Sorriu, com um lindo sorriso, que não lhe conhecia antes do nosso casamento, e que era tão sedutor na sua nobre fisionomia.

— E agora, Gillette?— Agora vejo que não sou infeliz, e que no fim de contas esse terrível

visconde de Trézonnes não é tão má pessoa como diziam...Com um gesto suave, as suas mãos acariciaram-me demoradamente os

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cabelos. Em volta de nós, na sala tépida e florida, o crepúsculo começava a descer. A chuva, em pequenas bátegas, ia fustigando os vidros. Gui olhou o meu vestido, observando:

— Na verdade, minha querida, gostas de te vestir sempre da cor do céu...

— Sim, o meu vestido é cinzento como este céu hibernal — cinzento como a vida!

— Às vezes também há um pouco de azul na vida, Gillette.Encostei o meu rosto ao seu e disse-lhe baixinho :— Sim, junto de ti...

FIM

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