m bispo um deus uma ekklesia -...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS LUDIMILA CALIMAN CAMPOS “UM BISPO, UM DEUS, UMA EKKLESIAA FORMAÇÃO DO EPISCOPADO MONÁRQUICO NO ALTO IMPÉRIO ROMANO VITÓRIA 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DAS RELAES

POLTICAS

LUDIMILA CALIMAN CAMPOS

UM BISPO, UM DEUS, UMA EKKLESIA

A FORMAO DO EPISCOPADO MONRQUICO NO ALTO IMPRIO ROMANO

VITRIA

2011

1

LUDIMILA CALIMAN CAMPOS

Orientador: Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva

UM BISPO, UM DEUS, UMA EKKLESIA:

A FORMAO DO EPISCOPADO MONRQUICO NO ALTO IMPRIO ROMANO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao

em Histria do Centro de Cincias Humanas e Naturais

da Universidade Federal do Esprito Santo, como pr-

requisito para a obteno do grau de Mestre em Histria,

na rea de concentrao em Histria Social das Relaes

Polticas sob orientao do Prof. Dr. Gilvan Ventura da

Silva.

VITRIA

2011

2

Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)

(Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

Campos, Ludimila Caliman, 1987-

C198b Um Bispo, um Deus, uma ekklesia: A formao do episcopado

monrquico no Alto Imprio Romano / Ludimila Caliman Campos.

2011.

203 f. .

Orientador: Gilvan Ventura da Silva.

Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do

Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.

1. Incio, Santo, Bispo da Antiquia, m. ca.110. 2. Eusbio, de

Cesaria, Bispo de Cesaria, ca.260-ca.340. 3. Irineu, Santo, Bispo de

Lyon. 4. Cristianismo. 5. Poder (Cincias sociais). 6. Roma. I. Silva,

Gilvan Ventura da, 1967-. II. Universidade Federal do Esprito Santo.

Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

CDU: 93/99

3

Ludimila Caliman Campos

Um Bispo, um Deus, uma ekklesia:

A formao do episcopado monrquico no Alto Imprio Romano

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria do Centro de Cincias

Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para a

obteno do grau de Mestre em Histria, na rea de concentrao em Histria Social das

Relaes Polticas.

Aprovada em ______ de ___________ de 2011.

Comisso Examinadora:

Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva

Universidade Federal do Esprito Santo

Orientador

Prof. Dr. Andr Leonardo Chevitarese

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Membro

Prof. Dr. Sergio Alberto Feldman

Universidade Federal do Esprito Santo

Membro

4

Ao Senhor Deus, que me concedeu sabedoria e que

cuidou de mim todos esses dias. Aos meus amados

pais Mrcio e Nia pelo apoio incondicional.

minha irm Maiara e ao meu cunhado Paulo Rodrigo

pelo carinho de sempre. Ao meu noivo Anderson

com quem compartilho os meus sonhos. Aos meus

avs Jovino, Polnia, Mintaha e Sebastio (In

Memorian) que, por meio de seus saudosos relatos

sobre o passado, ensinaram-me a amar o que fao.

5

Agradecimentos

impossvel expressar o quanto sou grata ao meu orientador Prof. Dr. Gilvan Ventura

da Silva por seu apoio, amizade, crdito e pacincia a mim tributados desde a graduao.

Obrigada por ter aberto uma porta, dentro da minha rea de interesse Histria do

Cristianismo para que eu pudesse dar meus primeiros passos ainda na Iniciao Cientfica.

Gostaria de agradecer Fundao de Amparo Pesquisa do Esprito Santo (FAPES)

pelos quase dois anos de auxlio financeiro, apoio este imprescindvel.

Ao Programa de Ps-graduao em Histria do Centro de Cincias Humanas e

Naturais (PPGHIS) da UFES, pelo apoio institucional, na pessoa da coordenadora Prof. Dra.

Adriana Pereira Campos, por sua amizade e ajuda constante, e na pessoa da secretria

administrativa Ivana Ferreira Lorenzoni, por ser, em toda oportunidade, gentil e atenciosa.

s diversas bibliotecas as quais visitei, em especial a Eckerd College Library (St.

Petersburg Florida), por ter sido o meu primeiro campo de pesquisa no mestrado;

Biblioteca Central (BC) da UFES pelas consultas frequentes; s Bibliotecas da Faculdade de

Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH) da USP, por ter sido um campo aberto para a

pesquisa; Biblioteca do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais (IFCS) da UFRJ, por ter

disponibilizado muitas obras para consulta.

Sou particularmente grata ao Prof. Dr. Srgio Alberto Feldman, por ter sido, antes de

tudo, um amigo sempre disposto a ajudar, desde a graduao; e, no mestrado, um importante

cooperador. Ainda pelo emprstimo de um precioso exemplar da Mishn, por sua leitura

minuciosa do Relatrio de Qualificao e apontamentos pertinentes.

Ao Prof. Dr. Michael Soubbotnik, por sua pacincia na leitura do Relatrio de

Qualificao e por suas contribuies sempre interessantes e desafiadoras.

Ao Prof. Jorge de Paula, pela constante disponibilidade em revisar o trabalho e por,

desde a minha adolescncia, ter-me instrudo na Lngua Portuguesa; amiga e irm Cntia

Angra por ter gentilmente feito a reviso final.

6

Agradeo ainda s maravilhosas amigas-irms que fiz ao longo da minha graduao

em Histria Kamylla, Geovana, Marcela, Helosa e Juliana das quais eu sinto muita falta;

Karulliny pela nossa amizade constantemente cultivada, por ter-me hospedado no Rio de

Janeiro e pela capacidade de deixar qualquer pessoa alegre; Hariadne e Carolline, que

caminharam comigo at a ps-graduao, amigas com quem viajei diversas vezes e

compartilhei meu gosto pela Antiguidade e pela Histria do Cristianismo.

Aos amigos da turma do Mestrado em Histria 2009, em especial Belchior, Fabiano,

Vitor e Jria, pela amizade, pelo companheirismo e pelos inmeros debates.

Aos meus pais, Mrcio e Nia, que me assistem de perto e oram constantemente por

mim, sempre confiantes na minha vitria; os quais amo, admiro e devo tudo o que sou.

minha irm Maiara e ao meu cunhado Paulo Rodrigo, meus familiares amados.

Ao meu amado noivo Anderson, que, com sua sabedoria, espiritualidade e alegria,

para mim um porto seguro.

Aos meus avs, Jovino, Polnia e Sebastio (In Memorian), por me inspirarem, e, em

especial, minha av Mintaha, que me hospedou em sua casa desde a graduao, tratando-me

no como neta, mas como filha; da qual herdei meu interesse por Histria.

Aos meus muitos tios e tias, primos e primas, pelos encontros espordicos, mas

sempre divertidos.

Aos meus pais na f, os pastores Wilson e Lizete, por serem, antes de tudo, meus

amigos.

Por fim, agradeo ao meu Deus Pai, Esprito Santo e Senhor Jesus, sem o qual nada

disso se faria: a razo de tudo.

7

Os cristos, de fato, no se distinguem dos outros

homens, nem por sua terra, nem por lngua ou

costumes. Com efeito, no moram em cidades

prprias, nem falam lngua estranha, nem tm algum

modo especial de viver. Sua doutrina no foi

inventada por eles, graas ao talento e especulao

de homens curiosos, nem professam, como outros,

algum ensinamento humano. Pelo contrrio, vivendo

em cidades gregas e brbaras, conforme a sorte de

cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar

quanto roupa, ao alimento e ao resto, testemunham

um modo de vida social admirvel e, sem dvida,

paradoxal.

Carta a Diogneto (5:1-4), sculo II d.C.

8

Resumo

O ano de 198 d.C. um marco histrico parcamente conhecido pela historiogrfica que se

dedica Histria do Cristianismo. Poucos atentam ter sido nesse ano que as relaes entre as

comunidades crists do Ocidente e do Oriente representadas pelas congregaes de Roma e

das Glias; e da sia Menor e da Sria-Palestina foram fortemente abaladas. Eusbio de

Cesareia, na obra Histria eclesistica, conta que Vitor, bispo de Roma nesse perodo, exigiu

que as comunidades crists se reunissem, por regio, a fim de estipular uma data nica para a

comemorao da Pscoa. Enquanto a maior parte das congregaes comps um decreto

eclesistico defendendo uma mesma opinio, a celebrao da Pscoa no domingo aps o

dcimo-quarto dia da lua, em apoio a Roma; as comunidades da sia Menor se manifestaram

contrariamente, no estando dispostas a deixar o costume judaico de festejar a Pscoa no

dcimo-quarto dia da lua do ms de Nis. Ao exprimir tal parecer, as comunidades da sia

Menor, sob a direo de Polcrates, foram excomungadas por Vitor. Tudo leva a crer ter sido

este o primeiro grande cisma de que se tem notcia na ekklesia. Como em toda grande

controvrsia, surgiram, em ambos os lados, expoentes figuras de liderana: lderes

carismticos ora reivindicando uma memria eclesistica original, ora exercendo seu poder

sob a justificativa de um carisma do cargo. Tal controvrsia, conhecida como questo

quartodecimana, estava inserida em um amplo contexto de disputas pelo poder entre os

bispos no sculo II, em mbito regional e supra-regional, como testemunharam as cartas de

Incio de Antioquia e a obra Contra as heresias de Ireneu de Lio. De modo contguo, uma

estruturao hierrquica dentro da ekklesia dita ortodoxa foi forjada em meio a um processo

de institucionalizao e de legitimao da mesma perante as ameaas judaizantes, cismticas e

herticas. Sob tal prisma, o objeto desta pesquisa compreender a formao do episcopado

monrquico nas comunidades crists do Ocidente e do Oriente mediante as dinmicas das

relaes de poder e a institucionalizao poltico-social da ekklesia ortodoxa no sculo II.

9

Abstract

The year of 198 AD is a historic landmark fairly known by the historiography, which

dedicates to the history of Christianity. Few pay attention to it was in that year the relations

between the Christians communities of Occident and Orient (represented by the congregations

of Rome and Gaul, and Asia Minor and Syria-Palestine) were strongly shaken. Eusebius of

Caesarea in the work Ecclesiastical History narrates that Victor, the bishop of Rome in this

period, demanded the Christian communities to gather by region, in order to estipulate a

single date for the Easter celebration. While the biggest part of the congregations composed

an ecclesiastical decree advocating a similar view for the Easter celebration on Sunday after

the fourteenth day of the moon to support Rome, the communities of Minor Asia manifested

contrary, being not prepared to leave the Jewish habit to celebrate Easter on the fourteenth

day of the moon of Nisan month. In expressing this opinion, the communities of Minor Asia,

under the rule of Polycrates, were excommunicated by Victor. Everything suggests that this

was the first great schism that is known in the ekklesia. As in any great controversy on both

sides appeared leading exponents figures: charismatic leaders asking for an original

ecclesiastical memory or exercising its power under the justification of a charisma of

occupation. This controversy, known as issue Quartodeciman, was inserted in a vast context

of struggles for the power between the bishops in the II century, on both regional and supra-

regional level, as witnessed the letters of Ignatius of Antioch and the work Against Heresies

by Irenaeus of Lyon. Contiguously, a hierarchical structure inside the ekklesia, said to be

orthodox, was forged during a process of institutionalization and legitimization of the same

before the Judaizing, Schismatic and Heretical threats. Under this prism, the object of this

research is to understand the formation of the monarchical episcopate in Christian

communities of Occident and Orient according to the dynamics of power relations and the

institutionalization of political and social orthodox ekklesia in the second century.

10

Sumrio

INTRODUO .............................................................................................................................. 12

CAPTULO PRIMEIRO

A apresentao das fontes e seus autores .................................................................................. 34

O discurso de um bispo oriental

O epistolrio de Incio de Antioquia .............................................................................................. 36

Um bispo asitico nas Glias

Ireneu de Lio e o Contra as heresias ............................................................................................ 47

Um testemunho tardio

Eusbio de Cesareia e a Histria eclesistica ................................................................................. 59

CAPTULO SEGUNDO

A gnese das relaes de poder nas comunidades crists (sculo I) ..................................... 72

A unidade na diversidade

A construo de cristianismos apostlicos ..................................................................................... 73

O cotidiano comunitrio cristo

A formao original da ekklesia .................................................................................................... 88

Entre dons e profecias

O exerccio do khrisma entre os primeiros cristos ..................................................................... 98

Como ministros de Cristo

Do desenvolvimento dos diakonai origem do epskopos ......................................................... 108

CAPTULO TERCEIRO

A apresentao das fontes e seus autores ................................................................................ 123

Um Bispo

A autoridade legitimada: o presidente da eucaristia na ekklesia catlica ................................. 123

Um Deus

O poder polarizado: o mestre da f apostlica na ekklesia ortodoxa ........................................ 144

A organizao de um centro des(centralizado): a voz romana e asitica para uma ekklesia

episcopal ................................................................................................................................... 162

CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................................... 182

11

REFERNCIAS ........................................................................................................................... 188

Documentao primria impressa ............................................................................................ 188

Bibliografia instrumental ............................................................................................................ 188

Obras de apoio .............................................................................................................................. 190

12

Introduo

I

A finalidade deste trabalho apresentar uma anlise acerca da formao do

episcopado monrquico nas comunidades crists do Imprio Romano. E, para tanto, ser

proposto um estudo de caso de dois contextos distintos, mas que, durante o sculo II d.C,

estavam intimamente relacionados pelos constantes conflitos que apresentavam: as

comunidades de Roma e das Glias, bem como as congregaes da Sria-Palestina e da sia

Menor.1 O recorte temporal foi escolhido devido a pesquisas documentais que levam a esse

perodo, haja vista que se percebe nele um aumento das disputas pela hegemonia do poder

entre as diversas comunidades autodenominadas crists. Desde as cartas do bispo Incio de

Antioquia, na transio do sculo I para o II, identifica-se um discurso claro pela consolidao

da autoridade dos bispos na ekklesia, principalmente nas comunidades da sia Menor e da

Sria-Palestina, seu reduto de poder.2 J na obra Contra as heresias, de Ireneu de Lio, no

final do sculo II, observa-se um tratado em prol da legitimao do poder dos bispos, dando

nfase ao poderio da ekklesia de Roma. No entanto, ser por meio de uma terceira fonte, a

obra Histria eclesistica, de Eusbio de Cesareia, escrita na transio do sculo III para o

IV, que sero apresentados alguns episdios ocorridos no desenrolar do sculo II. No que se

refere a tais episdios, sabe-se que eles compuseram o cotidiano das comunidades, repleto de

disputas pela supremacia entre os bispos, sendo que h, inclusive, relatos sobre a atuao dos

1 Todas as datas deste trabalho so d.C., salvo quando expresso em contrrio.

2 A melhor traduo para a palavra ekklesia na lngua portuguesa o termo congregao. A utilizao do

termo igreja, apesar de ser mais usual, est relacionada a uma instituio j estruturada politicamente, muito

mais identificada com sua formao no medievo e na contemporaneidade do que com o contexto apostlico e

ps-apostlico. De fato, a palavra ekklesia a nica que perfeitamente traduz o que eram as comunidades nos

primrdios da histria crist. Assim, ao menos que se esteja falando em termos de uma categorizao teolgica,

a palavra igreja carrega tantas conotaes histricas e modernas, que isso a faz ser evitada para se denotar a

coletividade das comunidades crists primitivas (TELLBE, 2009).

13

bispos Incio de Antioquia e Ireneu de Lio e a vida orgnica de suas respectivas

comunidades. Apesar das diversificadas fontes disponveis, no h muitas pesquisas

referentes aos conflitos de poder entre os ortodoxos ao longo do sculo II, e pouco se fala,

sob a perspectiva histrica, da formao do episcopado monrquico.

O perodo analisado, o Alto Imprio Romano, foi marcado pela consolidao do

Principado, bem como pelo enfraquecimento de grande parte das antigas instituies

republicanas. Naquele momento, Roma exercia com maior intensidade o que Guarinello

(2006) chama de imperialismo sobre suas provncias.

O sculo II, perodo em foco, ficou conhecido como Pax Romana, definido por alguns

autores como o Sculo de Ouro ou como o Imprio Humanstico (PETIT, 1989). No

mbito religioso, tal momento foi caracterizado pela diversidade de religies e religiosidades,

muitas delas vivenciadas fora dos cultos oficiais do mos maiorum, expresso das novas

necessidades surgidas gradativamente em Roma e em seus domnios (SANZI, 2006). 3

De

fato, foi um perodo de grande inquietao, marcado por um sentimento de insuficincia das

religies tradicionais (PETIT, 1989). Alm da consolidao do culto ao imperador e da

permanncia das antigas tradies religiosas, houve uma grande proliferao de religies

orientais, que coexistiram dentro do Imprio, entre elas o cristianismo.4 Este, crena nascida

na provncia da Judia, sobressaiu-se, em meio s outras religies, entre outros fatores, por

seu carter proselitista, o que determinou sua expanso por todos os cantos do Imprio. Deve-

se destacar que o contexto da Pax Romana favoreceu o alargamento das fronteiras das

religies estrangeiras de um modo geral. fato que o cristianismo foi favorecido pela

facilidade de contato entre as provncias romanas e difundiu-se em meio ao livre trnsito de

3 O mos maiorum (costume ancestral) um cdigo de normas e preceitos sociais orais originrios da Roma

Antiga. Tais regras deveriam ser observadas por todo o cidado romano apegado a tradio. 4 Opondo-se s celebraes religiosas ritualsticas empreendidas por Roma, os cultos orientais exerceram um

grande fascnio por todo o Imprio, porque, por meio de doutrinas bem elaboradas, estes forneciam respostas a

algumas inquietaes religiosas do homem romano. Os cultos de mistrio, em especial, assim como o prprio

cristianismo, representavam uma forma de religio muito mais voltada para a esfera do pessoal, cultivada pela

relao entre deuses e homens, diferentemente dos cultos tradicionais romanos.

14

pessoas pelo Imprio. Assim, as constantes e profcuas relaes entre as comunidades foram

fator determinante, tanto para o estabelecimento de redes de comunicao e inter-relao,

quanto para a perpetuao do prprio cristianismo. Alm disso, apesar da clara

heterogeneidade do Imprio, houve algumas tentativas de uniformizao poltica e cultural,

sendo que o cristianismo desempenhou, posteriormente, sua funo poltico-social na

integrao das massas (GUARINELLO, 2006).

A princpio, o Imprio Romano no se mostrou interessado nos cristos, at porque,

politicamente, alm da baixa capacidade de resistncia dessa religio ao poder de Roma, no

se tem notcia de qualquer ideologia de inspirao crist que tenha estimulado algum tipo

de ao subversiva contra o governo imperial (SILVA, 2006). Em sua carta comunidade de

Roma, o apstolo Paulo, por volta do ano 57, j revelava seu anseio de que os cristos no se

rebelassem contra as autoridades institudas. Veja-se o trecho a seguir:

Toda a alma esteja sujeita s potestades superiores; porque no h potestade

que no venha de Deus; e as potestades que h foram ordenadas por Deus.

Por isso quem resiste potestade resiste ordenao de Deus; e os que

resistem traro sobre si mesmos a condenao. Porque os magistrados no

so terror para as boas obras, mas para as ms. Queres tu, pois, no temer a

potestade? Faze o bem, e ters louvor dela. Porque ela ministro de Deus

para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois no traz debalde a espada;

porque ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal.

Portanto necessrio que lhe estejais sujeitos, no somente pelo castigo, mas

tambm pela conscincia. Por esta razo tambm pagais tributos, porque so

ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo. Portanto, dai a cada um

o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem

temor, temor; a quem honra, honra (Rm 13:1-7).

O governo de Roma considerava os seguidores de Cristo como pertencentes a uma das

muitas correntes religiosas judaicas palestinas (CHEVITARESE, 2006). Alis, Roma via o

cristianismo sem muita expresso poltica. Entretanto, essa despreocupao no garantiu a

15

aceitao do movimento. Ao longo do sculo II, o poder eclesistico foi grandemente

perseguido e muitos mrtires foram feitos. Inclusive Incio de Antioquia e Ireneu de Lio.

Contudo, apesar de haver um precedente legal na lei romana que podia ser usado contra os

cristos a acusao de superstitio illicita o governo demorou algum tempo para distinguir

os cristos dos judeus.5 At o governo de Nero (54-68), no se fazia qualquer separao entre

eles, por parte das autoridades. E, mesmo posteriormente, alguns equvocos eram cometidos a

esse respeito.6 Deve-se frisar ainda que a maior hostilidade nos primeiros sculos provinha,

em grande parte, no das autoridades romanas, mas da populao local.7

Duzentos anos aps o seu surgimento, comunidades eclesisticas, apesar das

represlias, conseguiram sobreviver e, paulatinamente, tornaram-se grupos em que a figura do

bispo ganharia cada vez mais espao nas relaes de poder. nesse contexto que se percebem

dois importantes plos em formao: Oriente e Ocidente. Eles foram ncleos de difuso do

que possvel chamar poder centralizador da ekklesia, exercido pelos bispos locais.

No incio do sculo II, Incio, bispo de Antioquia, escreveu sete cartas a vrias

comunidades localizadas, em maior parte, na sia Menor. Sob o contexto do cristianismo

srio-palestino, Incio conclamou todas para serem inteiramente submissas a seus bispos,

presbteros e diconos, respectivamente. Incio identificava o bispo no somente como um

oficial administrativo e litrgico, mas como um profeta. Alm disso, o bispo era o chefe

5 Ao contrrio do cristianismo, o judasmo era uma religio muito antiga. Ento, quando os romanos entraram

em contato com os judeus, apesar dos confrontos que havia entre eles no que concerne ao esprito de liberdade e

ao estilo judaico de existncia sob o domnio imperial, estes foram considerados uma religio licita pelos romanos

uma postura tpica do tolerante paganismo vigente no Imprio (FELDMAN, 2008). 6 Pode-se afirmar que a associao feita entre as duas religies, nos sculos I e II, se dava, pois, alm de o

cristianismo estar ainda formando sua prpria identidade, havia, de fato, uma corrente judaizante dentro da

ekklesia, que motivava a manuteno de laos entre eles. Em algumas regies, especialmente no primeiro sculo,

os cristos, de um modo geral, conservavam fortes vnculos com os judeus, chegando a utilizar at mesmo

espaos judaicos como as sinagogas. 7 O cristianismo era visto como uma religio extica pelos adeptos das outras religies do Imprio. Isso se deu

tanto por seu monotesmo inflexvel, quanto pelo fato de as reunies terem um carter secreto, o que fazia a

populao em geral conjeturar que ocorressem atos como canibalismo, relaes promscuas, prticas

necromnticas e a invocao do esprito de um criminoso supliciado (SILVA, 2006).

16

mximo de todos os rituais religiosos, com todo o poder na congregao, e, sem sua

aprovao, servio algum poderia ser feito ou outra ao desenvolvida.

Entre meados e final do sculo II, Ireneu de Lio se destacou como bispo das Glias e

escreveu a obra Contra as heresias. Ireneu buscou, sobretudo, revelar a verdade da f,

segundo a ortodoxia da doutrina crist, e compar-la com aquilo que era pregado nos

centros gnsticos.8 Assim, Contra as heresias se destacou por ser um tratado com os

propsitos de combater as heresias e de apregoar a identidade da ekklesia, adotando como

modelo a congregao de Roma. Ireneu compreendia o episcopado tanto como o centro da

unidade eclesistica, quanto como um depositrio da tradio e da autoridade apostlica. O

bispo era, sobretudo, um mestre que preservava a doutrina e que dava continuidade ao ensino

dos apstolos. Sendo assim, a unidade e a perpetuao dessa tradio s seriam asseguradas

mediante a proclamao fiel do Evangelho, o que o bispo fazia em cada ekklesia local.

No sculo I, v-se, por meio dos relatos presentes no Novo Testamento e em algumas

outras fontes, falar em epscopos, presbteros e diconos. Basicamente, aqueles que exerciam

a funo de bispo ou tivessem a dignidade de presbtero, nesse perodo, eram encarregados da

liturgia e dos assuntos de ordem espiritual. Diferentemente, os diconos eram incumbidos de

dar assistncia nas questes materiais da comunidade (SIMON, BENOIT, 1987).

Em

oposio viso de Johnson (2001), cuja tese aponta que, no comeo do sculo II, uma matriz

estrutural do clero j havia sido forjada, a construo do arcabouo episcopal foi mais

gradativa, e os testemunhos de Incio de Antioquia e de Ireneu de Lio contriburam

significativamente para que uma rgida hierarquizao reforasse o poder do bispo. Assim,

teve-se, em Incio e em Ireneu, pela primeira vez, uma evidncia clara, que no consta no

corpus documental neotestamentrio, de um trplice sacerdcio organizado, composto de

8 Sobre o termo ortodoxia, aplicado para caracterizar a ekklesia do segundo sculo, tratar-se- no captulo

segundo.

17

bispos, presbteros e diconos; e, ainda, uma sucesso apostlica para legitimar o poder

central advinda da autoridade episcopal.

Incio de Antioquia e Ireneu de Lio utilizaram terminologias prprias para se

referirem ao episcopado. O primeiro emprega a palavra bispo (episkopos); e o segundo

adota o termo bispo-presbtero (episkopos- presbyteros).9 Quanto a isso, digno de nota o

fato de que tal divergncia no apenas terminolgica, mas que implica uma distino entre

as funes e os cargos dos bispos, revelando uma hierarquizao eclesial no muito bem

definida, mas em progressiva formao. A discrepncia terminolgica somente uma pista

que suscita a ideia de que, realmente, no havia uma homogeneidade entre as comunidades.

De forma mais precisa, segundo La Piana (1925, p. 210), as comunidades crists importantes

do leste, tais como Antioquia, feso, Esmirna, e at mesmo Alexandria, parecem ter

alcanado mais cedo uma organizao interna mais coesa do que a comunidade de Roma.

Apesar das diferenas, possvel perceber que em todas as comunidades do sculo II o poder

episcopal era muito valorizado, fosse ele exercido por bispos ou por presbteros.

Por conta dessas indefinies, no que concerne s hierarquias dentro da ekklesia, os

conflitos eram constantes, pois no havia uma autoridade superior comum a todas as

comunidades e, muitas vezes, nem mesmo dentro delas. Logo, ser em tais divergncias que a

figura do bispo vai se destacar como um poder em formao. E, para se analisarem as disputas

pelo poder acrescentam-se a esta pesquisa a obra Histria eclesistica de Eusbio, bispo de

Cesareia, escrita entre os sculos III e IV. Tal fonte ajuda, especificamente, na compreenso

da dinmica do poder no cotidiano das comunidades do sculo II. Por meio desta, analisar-se-

, em particular, a controvrsia quartodecimana que envolveu as comunidades crists do

Oriente e do Ocidente numa intensa disputa entre os bispos, que se estendeu por todo o sculo

II.

9 A traduo armnia do Contra as heresias utiliza ora o termo presbtero ora o termo bispo; mas, segundo

Gilliard (1975), provvel que Ireneu se referisse sempre a figura do bispo ou, mesmo, que quisesse expressar a

palavra episcopal.

18

O litgio se inicia num desacordo sobre a data da comemorao da Pscoa, pois as

comunidades crists da sia Menor, de tradio joanina, celebravam-na no dcimo-quarto dia

da lua do ms de Nis, segundo o costume judaico. Em contrapartida, a maior parte dos

cristos, em especial as comunidades do Ocidente, festejavam-na no domingo aps o dcimo-

quarto dia da lua. A questo surgiu quando as comunidades da sia Menor e de Roma se

perceberam desunidas por datarem um evento to importante em dias diferentes.

Assim, na primeira metade do segundo sculo, o bispo Policarpo, que manteve muitos

contatos com Incio de Antioquia, foi a Roma a fim de entrar em comum acordo sobre o

assunto com o bispo Aniceto.10

Este no conseguiu convencer Policarpo a no observar aquilo

que sempre praticara com Joo e com outros apstolos que com ele conviveram; nem

Policarpo convenceu Aniceto, que aprendera o seu costume com os presbteros precedentes da

comunidade de Roma. Apesar de se separarem em paz, a questo renasceu em muitas

ocasies, envolvendo diversas congregaes como, por exemplo, as comunidades da Palestina

e da Alexandria, que entraram em concordncia sobre o assunto; a comunidade de Sardes, sob

liderana de Melito, seu bispo, que escreveu sobre a questo da Pscoa em Laodiceia, entre

outras.

Na segunda metade do sculo II, Policarpo j havia morrido e vrios snodos j

haviam sido feitos para discutir novamente o tema, sendo decidido que adotariam a tradio

das congregaes do Ocidente e no as da sia Menor, de origem judaica. Contudo, os bispos

asiticos, sob a liderana de Polcrates, no aceitaram a deciso mais uma vez e enviaram uma

carta ao bispo de Roma, o norte-africano Vitor, discutindo o assunto e argumentando que

havia sido na sia Menor que se repousou os grandes astros (Hist. Ecles. V, 24:2), entre

eles Filipe, com suas quatro filhas profetisas, e o apstolo Joo, e que, por isso, deveriam

10

Policarpo foi um famoso bispo de Esmirna, contemporneo de Incio de Antioquia, que viveu entre a segunda

metade do sculo I e a primeira metade do sculo II e morreu martirizado, j em idade avanada, no ano de 156.

Policarpo escreveu vrias cartas, mas a nica preservada foi a endereada aos Filipenses, escrita por volta do ano

110 (FRANGIOTTI, 1995a; OSBORN, 2001).

19

adotar a data da Pscoa segundo o costume asitico. Buscando obliterar as diferenas, Vitor

decretou a ruptura da ekklesia romana com as comunidades da sia Menor e suas vizinhas,

considerando-as heterodoxas. Alm do dia da Pscoa, havia outras disparidades em questo,

entre elas o modo de jejuar, o que tornou o problema ainda mais pujante. A deciso do bispo

Vitor no aprouve a todos os bispos, inclusive Ireneu, que, controversamente, no Contra as

heresias, por muitas vezes defendeu a comunidade de Roma. Os bispos da sia Menor e o

bispo Vitor, no entanto, mantiveram suas posies.

Na polmica quartodecimana, identifica-se o bispo de Roma investindo a si mesmo da

autoridade de um episcopado monrquico em franca ascenso. No mais a teoria do

episcopado monrquico estava sendo apregoada, como Incio de Antioquia e Ireneu de Lio

revelam em seus escritos, mas, na prxis religiosa, o episcopado monrquico estava lanando

suas bases, a partir de uma disputa de poder pelo monoplio do sagrado.

No sculo II, as comunidades crists estavam dispersas em vrias comunidades pelo

Imprio, sendo que todas pleiteavam representar a tradio original (PAGELS, 2006). As

comunidades da sia Menor e da Sria-Palestina (Oriente) conseguiram estruturar-se mais

rapidamente, se comparadas a Roma. Isso porque os bispos conseguiram centralizar o poder

desde cedo. Em Roma, percebe-se que isso se deu mais lentamente, ao passo que os

problemas com as heresias eram maiores, apesar de se observar uma imposio mais

intensa da autoridade do bispo de Roma sobre as demais comunidades. Partindo-se dessas

discusses, vem a ideia de que havia dois grandes cristianismos no sculo II: um que se

identificava como uma continuidade do judasmo, preservando a liturgia e os rituais

tradicionais judaicos (ROUWHORST, 1997); e outro que pregava a destruio do judasmo

(RENAN, 1929). Sendo assim, a primeira corrente almejava que cada bispo dominasse sua

prpria comunidade, enquanto a segunda ambicionava que Roma, sob a liderana de um nico

bispo, exercesse o domnio sobre todas as comunidades crists do Imprio Romano.

20

II

O objeto da pesquisa , portanto, a formao do episcopado monrquico nas

comunidades crists do Ocidente (Roma e Glias) e do Oriente (sia Menor e Sria-Palestina)

no sculo II a partir das cartas de Incio de Antioquia, da obra Contra as heresias de Ireneu

de Lio e do livro V da Histria eclesistica de Eusbio de Cesareia. Para tanto, focar-se- a

anlise dos conflitos intercomunitrios sob a gide do embate ortodoxia versus heresia,

bem como a crescente hierarquizao da ekklesia em conformidade com o aumento do poder

episcopal na legitimao de uma ekklesia dita apostlica e no desaparecimento gradativo dos

ministrios carismticos em favor da autoridade do bispo.

O principal objetivo analisar, por meio dos relatos de Incio de Antioquia, Ireneu de

Lio e Eusbio de Cesareia, a construo da autoridade do bispo, os mecanismos de

organizao/institucionalizao da ekklesia e as dinmicas do poder entre as comunidades

crists no sculo II, a fim de compreender como se formou o episcopado monrquico nos dois

grandes plos da ekklesia: as comunidades do Ocidente e do Oriente.

Entre os objetivos especficos, pontuam-se: 1) examinar de que modo Incio de

Antioquia e Ireneu de Lio desenvolveram a ideia de uma autoridade episcopal, bem como

compreender os respectivos contextos regionais, o alcance de seus discursos e os interesses

em questo; 2) comparar e correlacionar entre si s comunidades de Roma e Lio, assim como

s da sia Menor e Sria-Palestina, no que se refere ao processo de hierarquizao do poder e

transferncia do ministrio carismtico para a figura episcopal; 3) investigar a polmica

quartodecimana, observando os conflitos entre o bispo de Roma e as comunidades da sia

Menor; 4) refletir acerca da importncia da liderana do bispo na organizao de uma

instituio bem alicerada, centralizada e legitimada por uma doutrina universal, destacando o

papel das comunidades do Ocidente e do Oriente neste processo.

21

Com base nos objetivos citados, a hiptese que norteia o presente estudo a de que a

legitimao do poder episcopal expressa pela sucesso de bispos desde os tempos apostlicos,

como se v na obra Contra as heresias, de Ireneu de Lio, nas cartas de Incio de Antioquia e

no livro V da Histria eclesistica de Eusbio de Cesareia, foi forjada por meio

da concentrao do carisma no prelado episcopal. Tal concentrao, associada ao combate s

manifestaes herticas do paleocristianismo e revelada num momento de cisma entre o

cristianismo e o judasmo, foi um mecanismo fundamental na edificao da autoridade de

uma ekklesia que aspirava universalidade, institucionalizao e salvaguarda

da ortodoxia, na interpretao dos ensinamentos de Jesus.

III

A relevncia cientfica desta pesquisa est em sua proposta: a de desenvolver uma

abordagem que possibilite uma compreenso detalhada da construo de uma hierarquia

eclesistica na qual o bispo ocupava o topo. Ao ser verificada a bibliografia especializada,

possvel notar a ausncia de uma investigao estritamente histrica a esse respeito. Desde o

final da Idade Mdia, os clrigos catlicos tm pesquisado a origem do episcopado,

principalmente para legitimar o poder papal e, assim, ratificar a autoridade da Igreja Catlica

Romana. Todavia, ser com os telogos protestantes, a partir de Calvino, que se desenvolver,

de modo cada vez mais profcuo, uma pesquisa mais apurada acerca da formao do

episcopado. No sculo XIX, outros telogos provenientes das grandes universidades

protestantes inglesas e norte-americanas faro pesquisas ainda mais criteriosas a respeito do

tema. Contudo, ser apenas a partir da segunda metade do sculo XX que um nmero

significativo de historiadores se dedicar a investigao do paleocristianismo, deixando de ser

22

este um nicho somente dos telogos. Apesar da ampliao dos estudos sobre o cristianismo

em Histria, no se tem conhecimento de qualquer pesquisa relativa formao do poder

episcopal da maneira como se pretende nesta oportunidade: comparando-se e

correlacionando-se as comunidades do Ocidente e do Oriente, a fim de se entender a

complexidade da constituio da hierarquia episcopal ao longo do sculo II.

importante lembrar que esta discusso no se restringe a um passado remoto, mas

fruto de indagaes prprias da contemporaneidade. Ao se estudar qualquer perodo na

Histria se est, tambm, buscando responder questionamentos atuais, seja pela demonstrao

ou pela refutao dos paradigmas dominantes. Observa-se, assim, que o Imprio Romano e a

Nova Ordem Mundial tm visto antigas instituies se desagregarem e novas se sobressarem,

mesmo porque a atualidade est perpassada de problemas institucionais, crises de legitimao,

quebra de antigos modelos e institucionalizao de novos. Logo, antigas autoridades esto

sendo sobrepostas por outras que, numa disputa acirrada pelo poder, legitimam-se sob a

pregao da unificao, ou melhor, da globalizao. Assim sendo, esta pesquisa, sob uma

anlise histrico-comparativa, no est aqum do debate poltico-institucional presente neste

sculo. Muito alm de explicar uma remota irmandade crist por si s, busca-se apreender as

relaes de poder como um fato social, observando-se suas facetas no cotidiano comunitrio

e, ainda, se opondo tica do evolucionismo social; afinal, trata-se de uma sociedade do

passado altamente complexa e organizada como era a sociedade imperial romana, na qual as

comunidades crists estavam inseridas.

Portanto, a relevncia cientfica desta pesquisa mpar, visto que, em primeiro lugar,

ela ajuda a compreender como a Igreja, uma das maiores heranas culturais do Ocidente,

surgiu, estruturou-se e consolidou-se, lanando as bases de uma autoridade que se perpetua

at hoje nas figuras do papa, dos bispos e das demais autoridades eclesiais. Em segundo lugar,

calcada em um parmetro histrico-comparativo, pode-se pensar, fugindo-se das comparaes

23

simplistas e anacrnicas, o Imprio Romano, as comunidades crists do sculo II e as

questes postas na sociedade atual de uma maneira nica e aprofundada.

IV

A pesquisa ora descrita est em consonncia com a rea de concentrao denominada

Histria Social das Relaes Polticas, um ramo da Histria Poltica ancorado nos aportes

terico-metodolgicos das Cincias Sociais, da Cincia Poltica e nos parmetros Escola dos

Annales, mais especificamente a Nova Histria Cultural.11

Nesta perspectiva, as relaes e as manifestaes de poder so os macro-campos de

anlise. Na obra Microfsica do poder (2008), Michael Foucault afirma que uma sociedade

sem relaes de poder uma abstrao, pois a prpria estrutura social seria atravessada por

mltiplas relaes de poder as quais no esto somente condicionadas ao aparelho de Estado,

mas esto dissolvidas em todo o corpo social. Assim, as relaes de poder atingem a realidade

concreta dos indivduos, estando presentes nas prticas cotidianas (MACHADO, 1981). Logo,

analisar as relaes de poder nas comunidades crists buscar compreender, no convvio do

cotidiano, as manifestaes de poder e de dominao.

Pesquisar as relaes de poder e de autoridade dentro das comunidades crists

abordar um fenmeno complexo e dinmico, o qual est situado num campo especfico do

tecido social: a esfera religiosa. Portanto, faz-se necessrio lanar mo de conceitos analticos

prprios que dem conta de tal fluidez. Pierre Bourdieu, em seu livro A economia das trocas

simblicas (1999), define a religio como sendo um conjunto de prticas e de representaes

11

Considerando-a uma convergncia da Escola dos Annales, a terminologia Nova Histria Cultural, como

termo que denomina uma corrente historiogrfica, s comea a ser utilizado pelos historiadores culturais no final

da dcada de 80. A Nova Histria Cultural traz, em seu arcabouo, novos paradigmas (entre eles, a nfase na

histria das mentalidades, suposies e sentimentos), alm de estabelecer uma profunda preocupao com a

teoria (BURKE, 2005).

24

que se reveste do sagrado, sendo estruturada na medida em que seus elementos internos se

relacionam entre si, formando uma totalidade coerente capaz de construir uma experincia

(1999, p. 179). Enquanto sistema simblico de comunicao e de pensamento, a religio

ainda uma linguagem que se torna uma fora na sociedade, pois tem por meta ordenar o

mundo por meio da constituio de grupos. Seguindo a linha de debate sobre poder e religio,

enfocam-se a institucionalizao do poder e os conflitos por este poder na complexidade da

esfera religiosa. Desse modo, a pesquisa est pautada na perspectiva terica que mescla

conceitos de quatro autores: Norberto Bobbio, Max Weber, Pierre Bourdieu e Mary Douglas.

A fim de analisar as relaes de poder, centralizadas na afirmao da autoridade dos

episcopoi, apreende-se o conceito de liderana, em consonncia com a concepo de Noberto

Bobbio (2004). Segundo ele, o lder aquele que detm o poder dentro de um grupo, tendo

condies de influenciar nas decises de cunho estratgico, assegurando, portanto, um poder

ativo que encontra legitimao na medida em que corresponde s expectativas do todo. O

autor distingue trs tipos de liderana: o lder de rotina, que no cria nem seu papel, nem o

contexto em que chamado para liderar; o lder inovador, que reelabora, s vezes

radicalmente, todo um contexto e, em alguns casos, at mesmo o papel da instituio; e o lder

promotor, que se destaca por saber criar tanto o seu papel quanto o contexto no qual vai

desempenh-lo. Nessas trs categorias, o bispo das comunidades paleo-crists se destaca por

estar, ora desempenhando o papel de lder de rotina, ora exercendo a funo como lder

inovador, ou ainda sendo um lder promotor. Em Incio de Antioquia, o bispo se porta como

um lder promotor, ao estabelecer papeis sociais na dinmica do episcopado monrquico,

alm de vislumbrar uma instituio que ainda no havia sido definitivamente formada. Em

Eusbio de Cesareia, o bispo Vitor claramente um lder inovador, pois modifica a instituio

que lidera a partir da autoqualificao das suas prprias funes sociais. J em Ireneu de Lio,

o bispo tanto um lder inovador, que de modo indito busca na tradio sua legitimidade,

25

quanto um lder de rotina, que encontra, na mesma tradio, a permanncia de igual posio

na comunidade.

Atrelado ao conceito de liderana, utiliza-se o trabalho de Mary Douglas (1998) que

pretendeu, por meio das concepes de Emile Durkheim e Ludwik Fleck, entender de que

modo as instituies pensam. Adotando o conceito de solidariedade orgnica de Durkheim,

a autora afirma que a verdadeira solidariedade nos grupos ou instituies possvel apenas se

os indivduos partilharem de categorias do pensamento. Sendo assim, na ekklesia do sculo II,

estava-se formando uma instituio, pois os bispos, seus ascendentes lderes, estavam

buscando uma unidade doutrinria. Outra ideia-chave apresentada por Douglas o modelo

ancestral formulado por Ludwik Fleck, no qual as aes de um antepassado poderoso geram

legitimidade ao poder e forjam o processo social no presente. A partir desse conceito, pode-se

compreender o argumento de sucesso apostlica, to presente nos tratados de Ireneu e de

Eusbio, e consequentemente entender em que se fundamentou a autoridade episcopal.

importante frisar que, tanto para Fleck quanto para Durkheim, as instituies bem aliceradas

controlam e dirigem a memria, a fim de obterem uma maior lealdade entre seus pares.

Destarte, desde j evidente que, tanto em Ireneu quanto em Eusbio, assim como em menor

escala em Incio, ao fazerem uso da memria eclesistica, eles propuseram, alm de

estabelecer maiores laos dentro da comunidade e validar seu ideal de ekklesia universal, a

legitimao do poder do prprio guardio dessa memria: o bispo.

Utiliza-se, ainda, das tipologias das formas de poder de Max Weber, em especial o

poder carismtico.12

Para o autor, na dominao carismtica, o tipo que manda denominado

lder, e o que obedece o apstolo. A autoridade do lder se baseia nos dotes sobrenaturais

(carisma) que ele detm, visto que s se obedece ao lder enquanto seu carisma subsiste. Alm

disso, segundo Weber o senhor carismtico tem de se fazer acreditar como senhor pela

12

A construo de tipos ideais a base do pensamento weberiano, sendo que, para isso, ele busca estabelecer o

conceito tipo, que pretende encontrar regras gerais para os fenmenos sociais (HERMANN, 1997).

26

graa de Deus, por meio de milagres, xitos e prosperidade dos squitos e sditos (COHN,

1982, p. 137).13

Ele afirma que o lder carismtico no se ajusta ideia de rotina, por isso ele

considerado uma verdadeira ameaa ordem e aos costumes estabelecidos. Em

contrapartida, o poder carismtico tem, por necessidade bsica, a estabilizao que s existir

com a rotinizao do carisma, ou seja, o legado do lder para um apstolo. Max Weber

interpreta a histria antiga da Igreja como uma dialtica de desenvolvimento histrico. Ento,

a transformao do movimento proftico-histrico aparece como algo irreversvel, em que os

carismas originais, passageiros e temporrios, encontrados em Jesus Cristo e em seus

apstolos, tornam-nos pessoas extraordinrias e de importncia significativa. No entanto,

segundo ele, no podem se sustentar por muito tempo. Dessa maneira, os discpulos estaro

movidos por um saudosismo relacionado ao carisma, o que gera um sustentculo ao prprio

movimento. Sob tal enfoque, o carisma auxilia a legitimao do poder episcopal,

estabilizando as formas de dominao que, como j foi dito, estaro atuando nos processos de

cotidianizao e burocratizao. Enfim, o carisma, expresso nas trs fontes ora

investigadas, est associado imagem do bispo, um lder carismtico que garantiu a

perpetuao das entidades religiosas para alm da poca dos fundadores da ekklesia e que

permitiu a manuteno e a organizao dos ofcios religiosos.

As reflexes de Pierre Bourdieu, que se debruou sobre a questo da dominao na

maior parte de suas pesquisas, tambm so de fundamental importncia para essa anlise.

Nesta pesquisa, uma de suas contribuies est no conceito de nomeao ancorado em sua

proposta de analisar os mecanismos do capital simblico. Em sua obra clssica Razes

prticas (2003), a nomeao um ato misterioso, mas que pertence categoria dos atos ou

dos discursos oficiais, simbolicamente eficientes, quando realizados por uma autoridade, ou

por pessoas autorizadas, ditas oficiais de uma funo ou cargo atribudo pelo Estado. A

13

importante destacar que Weber v a religio no pelo o vis histrico, mas pelo social, mesmo porque, o

terico busca construir, metodologicamente, uma sociologia da religio. Weber tem a religio como uma forma,

entre outras, de os homens se organizarem socialmente (HERMANN, 1997).

27

nomeao legitimada no pelo ato em si, mas pelo cargo que o nomeado exerce consagrado

para tal. Diferentemente da aplicao dada a essa teoria por Bourdieu, o qual busca, a partir

dela, compreender a constituio do Estado burocrtico, a nomeao de cargos, para o

presente estudo, est pautada nas relaes de poder que envolvem as assembleias crists do

sculo II lideradas pelos bispos. Entre os bispos, verifica-se a constante nomeao/ordenao

de cargos, seja para o ofcio episcopal, presbiteral ou diaconal. Todavia, mais do que a

ordenao em si, o bispo est, a todo o momento, assinando, o que Bourdieu chama de

decreto de nomeao, validado pela prpria autoridade do agente. Ou seja, toda e qualquer

ao desenvolvida pela autoridade est validada pelo ttulo que ela porta e, assim, pelo

reconhecimento que ela adquire por meio dele. Desse modo, todo e qualquer ato de autoridade

poder ser considerado como um ato legtimo, pois o cargo que o agente ocupa, no caso o

bispo, atua como um banco de capital simblico no qual qualquer ao, por mais arbitrria

que seja, deve ser vista como legtima e autorizada.

Nos campos do poder, toda e qualquer ao do bispo ser legitimada, no somente

pelo carisma pessoal que ele exerce, mas tambm por um carisma depositado no cargo que ele

ocupa. Dessa maneira, alm do carisma pessoal, com a adaptao do carisma ao cotidiano,

surge o tipo particular denominado carisma do cargo, numa articulao entre Weber e

Bourdieu, pelo qual a crena na legitimidade no se d em relao pessoa, mas s

qualidades e eficcia dos seus atos, enquanto integrante ou funcionria de uma hierarquia,

havendo, neste caso, a transformao da dominao carismtica em dominao racional.

Entendendo que o cargo no est sujeito ao indivduo que o ocupa, a perpetuao do poder na

assembleia assegurada na medida em que o cargo no extinto. Logo, o cargo de bispo a

representao do agente autorizado a liderar e a exercer o poder sobre a assembleia de fieis,

sendo que a pessoa do bispo, por si s, no vlida sem o cargo por ele exercido.

28

Como estratgia de leitura, adotou-se uma metodologia ancorada na Anlise de

Contedo, associada s tcnicas de Anlise do Discurso e Anlise das Relaes. Segundo

Bardin (2004), a Anlise de Contedo basicamente um conjunto de tcnicas de anlise das

comunicaes, uma hermenutica controlada, baseada na deduo. Para a utilizao desse

mtodo, necessrio seguir os seguintes passos: 1) a pr-anlise; 2) a explorao do material;

3) o tratamento dos resultados obtidos, inferncia, interpretao e; 4) a sntese final (Bardin,

2004). Por meio desse mtodo, busca-se conectar o contexto exterior ao discurso da fonte,

fazendo-se, de tal modo, uma interligao entre a condio de produo e os processos de

produo.

No que se refere s tcnicas, adotam-se duas, a fim de contribuir ainda mais para

alcanar os diferentes objetivos colimados com o exame de cada fonte. Nessa perspectiva,

uma das tcnicas, a Anlise Categorial, ser aplicada s epstolas de Incio de Antioquia e

obra Contra as heresias, de Ireneu de Lio. Por meio dessa tcnica, cria-se um sistema de

categorias empricas pelo qual se faz uma classificao analgica e progressiva dos

elementos, sendo que o ttulo conceitual de cada categoria definido apenas ao final da

operao.

necessrio salientar que as mesmas categorias sero usadas para as duas fontes.

Estas foram criadas a partir do objetivo geral de anlise, respeitando as delimitaes

estabelecidas pelos objetivos especficos e pela hiptese. As categorias so indicadores que

levam aos elementos que definem e especificam as formas como os autores da documentao

representaram aquelas informaes. Assim, a busca est em apreender os elementos que

compem o discurso das fontes, de modo a poder interpret-los. Logo, a pesquisa nas fontes

est pautada na busca das informaes que comporiam a maneira pela qual Incio de

Antioquia e Ireneu de Lio compreendem a autoridade do bispo e a forma como eles

percebem a hierarquia eclesial dentro de seus respectivos contextos (na Sria-Palestina e nas

29

Glias) para, ento, analisar de que modo se formou o episcopado. Assim, depois da etapa de

seleo e de coleta de dados, estes foram agrupados nas categorias especficas dentro de um

complexo categorial. Veja-se, a seguir, o complexo temtico-categorial definido:

Nesse primeiro conjunto de categorias, que compe a primeira e a segunda parte do

Captulo 3, foram selecionados os dados, em mbito mais geral e contextual, relativos

ekklesia e sua hierarquizao. Na Categoria 1, esto alocados os dados das fontes,

identificando o que era a ekklesia tanto como instituio, quanto como organismo social

pertencente ao contexto imperial romano. A Categoria 2 constitui-se a partir das informaes

que tratam de observar como a ekklesia se estruturou e os argumentos utilizados para a sua

legitimao. A Categoria 3 contempla de que modo as fontes retratam as relaes

estabelecidas entre as comunidades, salientando como estas ocorriam, quais comunidades se

destacavam (se sobressaindo) e/ou eram subjugadas, a frequncia da comunicao e o porqu

dos vnculos. As Categorias 4 e 5 tratam, especificamente, da temtica da hierarquizao to

presente na documentao, isso porque Incio de Antioquia e Ireneu de Lio buscam realar

os diversos cargos eclesisticos em seus discursos. Destarte, esse primeiro complexo

Sobre a ekklesia e sua hierarquizao

Categoria Ttulo conceitual da categoria (descrio dos dados a

serem retidos)

1 O que a ekklesia

2 Como ela foi formada

3 Como as comunidades eclesiais se relacionam entre si

4 Quem compe a hierarquia na ekklesia

5 As dignidades de cada cargo

30

categorial abrange a ideia geral de ekklesia contemplada pelas fontes e auxilia a alcanar a

posio do bispo na ekklesia, que representa o segundo quadro de categorias, a saber:

No segundo conjunto de categorias, definido pelo nome Sobre a autoridade do bispo,

tambm utilizado na primeira e na segunda parte do Captulo 3, busca-se especificar a anlise

do objeto, ou seja, trata-se, de um modo geral, do cargo do bispo. As Categorias 6 e 7

abrangem a compreenso de quem era o bispo e de suas dignidades (atributos) segundo Incio

de Antioquia e tambm Ireneu de Lio. Na Categoria 8, apresenta-se de que maneira as fontes

descrevem as funes do bispo. J a Categoria 9 foi definida para identificar a relao de

autoridade constituda entre o bispo e os fieis. Por fim, a Categoria 10 demonstra os vnculos

entre os bispos e os outros hierarcas da ekklesia, ou seja, as relaes que eram estabelecidas

entre os bispos e os presbteros e os diconos. Desse modo, pode-se compreender quais eram

as funes sociais do bispo nas relaes de poder na congregao e, assim, estabelecer as

primeiras concluses acerca do alicerce do poder episcopal nas comunidades crists no sculo

II.

Sobre a autoridade do bispo

Categoria Ttulo conceitual da categoria (descrio dos dados a serem

retidos)

6 Quem era o bispo

7 Quais eram seus atributos

8 Quais eram as funes do bispo

9 A relao de autoridade estabelecida pelo bispo com os fieis

10 As relaes de poder entre os bispos e os outros hierarcas

31

Dada essa primeira tcnica, outro procedimento, a Anlise das Relaes, usado para

analisar o livro V da obra Histria eclesistica de Eusbio de Cesareia e as duas outras fontes

anteriores as cartas de Incio de Antioquia e a obra Contra as heresias, de Ireneu de Lio

de modo a entender, por meio de associaes e comparaes, como as comunidades de Roma

e da sia Menor, nas figuras de seus bispos, relacionavam-se e, assim, compreender a

formao do episcopado. A anlise relacional se d de duas formas: as relaes, ditas de

sociabilidade, estabelecidas entre as comunidades; e as relaes empricas, a fim de se

apreenderem as similitudes e as divergncias entre as comunidades. Assim, tem-se o seguinte

quadro sinptico a ttulo de exemplificao:

Quadro comparativo-relacional

Ekklesia de Roma

Tradio paulina

(gentlica)

Coeso interna

Heresia mais

proeminente: gnstica.

Bispo reivindicava poder

absoluto sobre as demais

comunidades.

A anlise comparativa acima empregada na ltima parte do Captulo 3, a fim de

servir de aporte para a compreenso do cotidiano das relaes entre as comunidades crists.

Por meio de associaes, tem-se acesso a informaes muito importantes que vo ao encontro

Ekklesia da sia Menor

Tradio joanina

(judaica)

Falta de coeso interna

Heresia mais proeminente:

judaizante.

Bispos governavam

comunidades locais.

RReellaaoo aammiissttoossaa

((iinncciioo ddoo ssccuulloo IIII))

RReellaaoo ccoonnfflliittuuoossaa

((ffiinnaall ddoo ssccuulloo IIII))

32

do objetivo final, que compreender a formao do episcopado monrquico por meio das

relaes intercomunitrias (Ocidente e Oriente).

V

A Dissertao constituda por trs captulos e as consideraes finais. O Captulo 1

dedicado a analisar trs fontes as sete cartas de Incio de Antioquia; o tratado Contra as

heresias, de Ireneu de Lio; e a obra A Histria eclesistica, de Eusbio de Cesareia sob a

tica histrica e literria, de modo a compreender a composio do corpus documental, as

suas influncias, a histria dos manuscritos, a circulao das obras e a audincia as quais

foram destinadas. Alm disso, no Captulo 1, discute-se brevemente a biografia de cada autor,

bem como os seus respectivos contextos histricos, geogrficos e temporais. Ademais, ao

final de cada exposio documental, traz-se um debate historiogrfico com as principais obras

dos autores. O Captulo 2 trata de contextualizar a discusso mediante a reflexo da gnese

das relaes de poder nas comunidades crists no sculo I. Primeiramente, analisa-se a

construo das trs principais vertentes do cristianismo do perodo apstolos. Em um segundo

momento, trata-se da formao da ekklesia como comunidade e seus rituais mais elementares.

Posteriormente, aborda-se o exerccio do khrisma na sua forma de dons do Parclito nas

assembleias que, por sua vez, sero responsveis pela legitimao do poder. O ltimo tpico

dedicado reflexo do desenvolvimento do diakonai, ou seja, o corpo ministerial da

ekklesia, e a origem da funo de epskopos. Por fim, o Captulo 3 ocupa-se de defender a

hiptese proposta por meio da anlise da formao do episcopado monrquico nas

comunidades ditas ortodoxas. Para tanto, este ltimo captulo foi dividido em trs partes: a

primeira possibilita entender a construo do episcopado monrquico por meio do

33

pensamento e da experincia de Incio de Antioquia; a segunda traz uma anlise das

qualificaes do poder episcopal sob a tica de Ireneu de Lio; a terceira parte apresenta, a

partir da controvrsia quartodecimana, um exame comparativo do papel das comunidades da

sia Menor e de Roma na universalizao e na institucionalizao da ekklesia sob a liderana

do bispo, assim como apontar os conflitos existentes entre elas que, por sua vez, vo favorecer

a ascenso do episcopado monrquico entre os ortodoxos no sculo II.

34

Captulo 1

A apresentao das fontes e seus autores

O fazer histria um ofcio que, como qualquer outro, depende de materiais

especficos para a sua execuo. E a investigao em Histria requer, primeiramente, fontes.

Estas, compostas por um emaranhado de vestgios, so o nico contato que o historiador tem

com o passado. Advindas da cultura religiosa, mais especificamente crist, a documentao

deste trabalho pode ser classificada, quanto sua forma, como documentos eclesisticos.

Elas possuem muitos aspectos em comum, especialmente o de terem sido escritas por bispos

cristos ortodoxos de origem oriental.

A opo pelas presentes fontes se justifica por sua relevncia no contexto histrico da

formao do episcopado monrquico. Entendendo-se que os documentos no se resumem a

uma montagem, mas que so fruto de determinadas funes e atividades desenvolvidas por

seus produtores, importante salientar que se deve buscar compreender, tambm, a posio

dos autores em seus respectivos contextos sociais, a fim de se facilitar a anlise discursiva

(LOPEZ, 1996).

As cartas de Incio de Antioquia, a primeira fonte, esto ambientadas na primeira

metade do sculo II. Elas possibilitam resgatar o perodo de transio entre a era apostlica e

a ps-apostlica. O testemunho de Incio importante na medida em que este o primeiro

autor da Histria da Igreja a formular um discurso em favor do poder supremo dos bispos e,

ainda, mostrar como estava organizada a ekklesia da sia Menor e da Sria-Palestina,

observando-se que a documentao composta por um conjunto de epstolas endereadas, em

sua maioria, s comunidades da sia Menor, mas apresentando um contexto prprio de

Antioquia.

35

A segunda fonte selecionada para este estudo Contra as heresias, de Ireneu de Lio.

Por meio dela, alcana-se o contexto eclesial da segunda metade do segundo sculo. O

testemunho de Ireneu permite identificar a permanncia do discurso em prol do poder

episcopal no ideal de sucesso apostlica, considerando-se que j havia se passado quase 200

anos desde o surgimento do cristianismo. Destarte, Contra as heresias vem a acrescentar

muito, pois, alm de estar inserida no final do sculo II, uma obra que auxilia na reflexo

sobre o contexto local das comunidades crists do Ocidente, em especial as Glias e Roma.

A Histria eclesistica (Livro V), de Eusbio de Cesareia, compe a terceira e ltima

fonte. A obra no foi escrita durante o sculo II, recorte temporal deste estudo, mas seu autor

teve contato, por meio de sua extensa biblioteca, com fontes singulares do perodo. Assim, os

relatos de Eusbio permitem estabelecer um elo entre a primeira e a segunda fonte. Ademais,

pode-se entender ainda melhor o sculo II em toda a sua completude, no que tange formao

do poder episcopal, mais especificamente, por meio de episdios relatados pelo autor, como a

questo quartodecimana. Desse modo, mediante a Histria eclesistica, entra-se em contato

com algumas outras informaes e com trechos documentais de diversos momentos do sculo

II, fundamentais para o propsito desta pesquisa.

Este captulo dedica-se a analisar as fontes coletadas quanto a: origem, autoria,

temporalidade, espacialidade, importncia e especificidade, empreendendo uma crtica sobre

cada uma delas. Alm disso, ao final, destina-se uma parte para a exposio do debate

historiogrfico acerca de cada autor analisado.

36

O discurso de um bispo oriental: o epistolrio de Incio de Antioquia

Integrante do heterogneo grupo denominado Padres Apostlicos, Incio, bispo de

Antioquia na Sria, escreveu um dos mais intrigantes documentos da Histria da Igreja.14

Durante as poucas semanas de percurso at o martrio, em Roma, Incio confeccionou, aos

moldes de um testamento, sete cartas que iriam mudar o percurso das ekklesiae de seu tempo

e influenciar toda uma reflexo teolgica posterior. O nome Incio uma derivao latina de

Ignenatus e significa homem nascido do fogo, apaixonado por Cristo e pela ekklesia.15

Eusbio, em sua obra Histria eclesistica, afirma que ele foi o segundo bispo de Antioquia;

porm, nos finais do sculo IV, Jernimo o descreve como o terceiro, tambm precedido pelo

apstolo Pedro. A trajetria de vida de Incio pouco conhecida. Ainda segundo Eusbio,

Incio teve contato com os apstolos, sendo o sucessor de Pedro no episcopado local (Hist.

14

O termo Padres Apostlicos parece ter sido usado pela primeira vez pelo patriarca de Antioquia, o

monofisista Severo no sculo VI. Entretanto, o emprego moderno do termo data do ano de 1672, quando o

pesquisador francs J. B. Cotelier publicou dois volumes intitulados SS. Patrum qui temporibus apostolicis

floruerunt...opera...vera et suppositicia (HOLMES, 1999). 15

Seu cognome era Theoforos, ou seja, carregador de Deus, o que remete lenda que o apresenta como sendo

a criancinha que Jesus carregou no colo descrita em Mc 9:33-37 (FRANGIOTTI, 1995c).

37

Ecles. III, 36: 2). Entretanto, o que se pode afirmar com maior segurana ele ter sido, por

um considervel espao de tempo, bispo da comunidade crist de Antioquia. 16

Sabe-se ainda que Incio foi martirizado em Roma por volta do ano 110, no final do

principado de Trajano. Ao ser levado a Roma a fim de ser julgado, provavelmente junto a

outros prisioneiros, Incio foi posto sob a custdia de dez guardas (cognominados de

leopardos na Cart. Rom. 5:1). Durante essa viagem, que se estendeu por toda a sia Menor, a

cada localidade onde parava, Incio escrevia cartas exortativas s comunidades vizinhas. A

sequncia das paradas e o envio das cartas de Incio podem ser ilustradas da seguinte

maneira:

Jornada de Incio

Antioquia Esmirna Trode Roma

Cartas feso Filadelfia

Magnsia Bispo Policarpo

Trales Esmirna

Roma

16

Localizada s margens do rio Orontes, Antioquia foi capital do Imprio Selucida na Sria por mais de 200

anos e depois se tornou uma grande metrpole sob o domnio de Roma. Por volta do ano 300 a.C., Seleuco

Nicator escolheu o vale frtil para construir a sua grande cidade em homenagem a seu pai, Antoco. Com uma

situao geogrfica semelhante de Alexandria, Antioquia tornou-se, por sua posio estratgica, um poderoso

centro comercial e um tentador alvo para Roma (BUNSON, 1994). Por ser uma cidade helenstica, Antioquia era

adornada com diversas esttuas e contava com vrios edifcios pblicos e um templo de Zeus (ZETTERHOLM,

2005). A populao de Antioquia era tipicamente cosmopolita. A comunidade judaica, por exemplo, j existia

desde a fundao da cidade. Aos judeus foram autorizados privilgios especiais pelos governantes selucidas.

Mesmo depois do domnio romano, o cosmopolitismo de Antioquia, com carter semita e oriental, permaneceu

dominante (BARNARD, 1963). Em 64 a.C., Pompeu, o Grande, tomou a cidade, que j estava debilitada por

causa do declnio do Imprio Selucida. A nova provncia da Sria foi criada, e Antioquia tornou-se sua capital.

A partir de ento, a localidade passou, gradativamente, a ser um importante centro estratgico poltico-

econmico de Roma no Oriente. Antioquia era incomparvel dentro do Imprio do Oriente no que tange

qualidade e quantidade de escolas, filsofos e escritores. Filosofias diversas prosperaram na cidade, e muitos

lderes l nasceram e se destacaram, incluindo Ulpiano, Papiniano, Antoco de Ascalon, Posidnio, Joo

Crisstomo, Libnio e Pronto Emesa. Religiosamente, Antioquia era, assim como toda a Sria, composta por

uma mistura de credos de antigos caldeus, gregos, romanos e semitas. Mas, em um perodo especfico, o

cristianismo exerceu um forte impacto sobre a cidade, possivelmente motivado pelas misses do apstolo Paulo.

Em 115, Antioquia foi praticamente destruda por um dos piores terremotos registrados no mundo antigo.

Originalmente, Antioquia foi erguida pelos selucidas para servir como uma grande cidade, e, por isso,

numerosos templos e palcios foram construdos, mas, com o tempo, a maioria deles acabou sendo suplantados

pelos edifcios gregos e pelas estruturas romanas (BUNSON, 1994).

38

Assim, Incio escreveu, enquanto permaneceu em Esmirna, as cartas para as

comunidades de feso, Magnsia, Trales, Roma; e, enquanto esteve em Trode, escreveu

cartas aos Filadelfienses e a Policarpo, bispo de Esmirna (LAKE, 1921). Para fazer todo esse

trajeto, os soldados romanos tomaram a rota do norte, sendo provvel que, quando esse curso

foi escolhido, mensageiros foram enviados s cidades das comunidades nas quais Incio iria

passar de modo a informar o itinerrio do bispo e despachar delegaes para encontr-lo em

Esmirna (HOLMES, 1999). H uma quase unanimidade entre os pesquisadores de que o

martrio de Incio realmente tenha ocorrido durante o reinado de Trajano, mais

especificamente no ano de 110. Eusbio data o acontecimento entre 107-108, todavia alguns

pesquisadores reportam-no segunda metade do reinado de Trajano, ou seja, entre 110-117.

Outros afirmam, numa tese questionvel, que o martrio se deu no reinado de Adriano entre

117-138. Aqui se aceita, contudo, seguindo a tese da maior parte dos pesquisadores, que o ano

de 110 tenha sido a data da sua morte.

A comunidade de Antioquia, quando Incio foi preso, ficou sem liderana e vulnervel.

Parece ainda que, por esse motivo, houve grande alarde, tanto que, quando o bispo chega

Trode, recebe notcias de que a paz na ekklesia de Antioquia j havia sido restaurada. Em tal

sentido, Paul Foster (2006a) vai alm ao afirmar que, luz do prprio contexto eclesial, a

comunidade de Antioquia j estava sofrendo uma agitao considervel antes mesmo da

deportao e da apreenso de Incio, como atestam trs cartas nas quais o bispo escreve sobre

o retorno da paz comunidade de Antioquia (Cart. Fil. 10:1; Cart. Esm. 11:2-3; Cart. Pol.

7:1-2; 8:1). provvel que o prprio Incio tenha sido o principal expoente no tal desacordo

que ocorreu na ekklesia. E mais: muitos autores afirmam que a contenda pode ter sido criada

pelo prprio Incio, numa tentativa de incutir um modelo mais rigidamente hierarquizado de

liderana em Antioquia, com o propsito de estancar o problema das heresias. Isso pde ser

observado pelos conselhos dados por Incio os quais, muitas vezes, repletos de repeties

39

acerca de uma mesma admoestao, d a impresso de que, ao menos indiretamente, ele esteja

se referindo sua prpria congregao. possvel que isso tenha criado divises internas na

comunidade, em especial entre os membros defensores da uma estrutura de liderana

carismtica mais tradicional. Foster argumenta que a prpria priso de Incio poderia ter sido

forjada por seus oponentes que no aceitavam sua tentativa de suprimir as estruturas

alternativas de liderana. interessante ressaltar a existncia de outra hiptese, defendida por

Schoedel (1985), que complementa a de Foster, afirmando que, pelo fato de a comunidade de

Antioquia ter estado perto de uma diviso, o martrio de Incio convinha para reafirmar o

valor do seu ministrio perante a sua prpria ekklesia. Na verdade, isso realmente provvel,

haja vista o argumento de Incio estar pautado, em grande parte, na defesa da unidade e da

submisso s autoridades.

Como se havia dito, o corpus inaciano composto por sete epstolas, a saber: as

epstolas aos efsios, aos magnsios, aos tralianos, aos filadelfianos e aos esmirniotas, aos

romanos e ao bispo Policarpo. A maioria dos pesquisadores defende que Incio escreveu as

cartas em torno do ano 110, coincidindo, obviamente, com o ano de seu martrio (FOSTER,

2006a).

As cartas de Incio so encontradas em trs formas bsicas, ou seja, em trs recenses

tradicionais: curta, mdia e grande. A curta preservada somente em siraco e abrange as

seguintes cartas: a Policarpo, aos efsios e aos romanos. A carta de recenso mdia, tambm

chamada eusebiana, est em grego e compreende apenas um manuscrito que, por sua vez, do

sculo VII. As outras so cpias destas. Vrias verses importantes da recenso mdia foram

produzidas, confeccionadas em latim, em siraco, em armnio, em rabe e em copta. J as de

recenso longa apresentam vrias verses das sete cartas oficiais e, ainda, um adicional de

mais seis epstolas. As cartas de recenso longa foram associadas s epstolas de recenso

mdia, escritas em latim, grego e armnio. quase uma unanimidade acadmica que as sete

40

cartas de recenso mdia atribudas a Incio de Antioquia so autnticas. Assim, o documento

grego ora adotado foi reconstrudo com base nos seguintes materiais textuais:

G = codex mediceo-laurentianus de recenso mdia (sc. XI)

L = verso latina da recenso mdia

P = papiro de Berlim cd.10581 (sc. V; contm Cart. Esm. 3:3;12:1)

g = manuscritos gregos de recenso longa

l = manuscritos latinos de recenso longa

S = resumo siraco de recenso curta

Sf = fragmentos da verso siraca de recenso mdia

A = verso armnia

C = verso copta

Arabic = verso rabe

G = codex parisiense-colbertinus (sc. XI)

H = codex hierosolymitanus S.Sabae (sc. X)

K = codex sinaiticus 519 (sc. X)

T = codex parisiense-colbertinus (sc. XI)

Sm, Am = verses siracas e armnias de vrias narrativas do martrio de Incio.

Em Histria eclesistica, Eusbio de Cesareia apresenta uma ordenao do corpus

documental seguindo a ordem das cidades s quais elas foram enviadas. Assim, adotando a

ordem em G, tem-se a seguinte sequncia a ser utilizada:

41

1. Esmirniotas

2. Policarpo

3. Efsios

4. Magnsios

5. Filadelfienses

6. Tralianos

7. Romanos

Durante a Idade Mdia, pelo menos treze novas cartas escritas em grego foram

atribudas a Incio e circulavam pelo que hoje a atual Europa, indicando uma possvel

autoria do bispo. Dentre elas, tm-se as seguintes atualmente:

1. Carta ao heri, dicono de Antioquia

2. Carta Maria de Nepolis

3. 1 Carta a So Joo, o apstolo

4. 2 Carta a So Joo, o apstolo

5. Carta aos Filipenses

6. Carta aos Tarsianos

7. Carta aos Antioquianos

8. Carta Maria de Cassobelae

9. Carta da Virgem Maria

10. Carta Virgem Maria

No h, entretanto, qualquer evidncia proveniente da Antiguidade que comprove a

veracidade desses documentos. Percebe-se, ainda, que a histria textual deles no pode ser

42

seguida. Assim, diante da crtica externa, os eruditos consideraram tais documentos como

falsificaes grosseiras produzidas seguramente na Idade Mdia.17

H vrias hipteses relativas preservao das cartas de Incio. A mais provvel a

de terem sido coletadas primeiramente por Policarpo, bispo de Esmirna, que emitiu cpias

delas comunidade de Filipos, pouco depois de Incio ter sado da cidade.

No que concerne categorizao dos escritos, pode-se inseri-los, como o prprio

nome sugere, na categoria de epstolas quanto ao gnero. A epstola, em grego epistol, em

latim epistula, um documento escrito e assinado, elaborado sob a forma de carta e

classificada, de acordo com Bardin (2006), como uma comunicao dual escrita. Dependendo

das circunstncias e do assunto, as cartas seguiam um modelo retrico comum, respeitando

regras precisas. Por esse motivo, grande parte das cartas na Antiguidade seguiu os termos

gerais do modelo clssico romano. No caso das epstolas de Incio, v-se que elas so de

carter impessoal e que acompanham, em linhas gerais, o estilo das cartas enviadas

comumente, apesar de apresentarem uma linguagem lrica muito original (RICHARDSON,

1953). Podem-se distinguir dois tipos bsicos de cartas: as pblicas e as privadas. Desde os

tempos apostlicos, a literatura crist utiliza constantemente cartas pblicas. No contexto do

mundo grego-romano, no era comum a circulao de textos entre indivduos, mas, o habitual

era que as trocas de correspondncias se fizessem entre instituies. No caso cristo, entre

congregaes, como se observa em Incio. A atividade de reproduo e distribuio de textos

entre os cristos do sculo I e II era intensa. Em uma carta de Incio endereada a Policarpo,

isso fica bem claro:

17

As falsificaes eram muito comuns no perodo medieval, sendo que Donatio Constantini e Os cantos

sibilinos esto entre as mais clebres. Segundo Besselaar (1974), um detalhe aparentemente insignificante pode

conduzir o pesquisador a descobrir anacronismos, contradies com outras fontes da poca, uso gramatical e

estilstico duvidosos e, at mesmo, o prprio material da fonte pode indicar sua autenticidade. Enfim, um

documento adulterado dificilmente escapa ao crivo dos pesquisadores, e com as cartas atribudas a Incio de

Antioquia no foi diferente.

43

Convm, Policarpo, convocar uma assembleia agradvel a Deus e escolher

algum que vos seja caro e tambm ativo, que poderia ser chamado de

correio de Deus. Encarrega-o de ir Sria, para celebrar vosso infatigvel

amor, para a glria de Deus. O cristo no tem poder sobre si mesmo, mas

est livre para servir a Deus. Essa a obra de Deus e tambm a vossa,

quando tiverdes realizado isso. Na graa, eu creio que estais prontos para

fazer uma boa ao diante de Deus. Conhecendo vosso infatigvel zelo pela

verdade, eu vos exortei com essas poucas palavras. No pude escrever a

todas as ekklesiae, por causa de minha partida precipitada de Trade para

Nepolis, conforme a vontade de Deus me ordenou. Tu escrevers a todas as

ekklesiae do Oriente, pois tens o pensamento de Deus, a fim de que elas

faam a mesma coisa. As que puderem, mandem mensageiros a p; as outras

mandem cartas por meio daqueles que tiveres enviado. Dessa forma, sereis

glorificados por uma obra eterna, como bem o mereceis (Cart. Pol. 7; 8,

grifo nosso).

Alm disso, analisando o percurso das cartas de Incio, percebe-se que a coleo foi

disseminada para vrios grupos de cristos em um perodo curto de tempo, assim como

passou com as correspondncias de Paulo (GAMBLE, 1995). Essas epstolas tinham por

finalidade manter um contato entre os lderes religiosos e as suas comunidades, ou, mesmo,

entre os bispos. As cartas eram lidas nas assembleias de modo a servirem, principalmente, de

exortao aos fieis. Quando se analisam os enunciados de agradecimentos, de cumprimentos e

de saudaes no comeo, no fim e na transio entre um assunto e outro ao longo das cartas,

percebe-se que Incio utiliza tanto o modelo de comunicao paulina quanto o modelo prprio

da cultura greco-romana. Mais do que isso, a densidade e a matizao do documento refletem

um corrente estilo de retrica conhecido como asianismo (HOLMES, 1999). 18

18

O asianismo uma tendncia de estilo retrica greco-romana, provavelmente originria entre os sculos IV-

III a.C. em Prgamo, sia Menor, baseada nos presupostos lingsticos dos anomalistas (integrantes de uma

escola de gramticos gregos). O estilo asianista era irregular, baseado em frases breves e desconexas, repletas de

figuras de linguagem e efeitos rtmicos e fonticos rebuscados. Tal corrente penetrou em Roma entre aqueles que

apreciavam o antitradicionalismo, sendo largamente citada por Ccero (CONTE, SOLODOW, FOWLER,

MOST, 1999).

http://gl.wikipedia.org/wiki/Anomalista

44

No que se refere s cartas propriamente, se por um lado Incio faz pouco uso do Antigo

Testamento, por outro ele est profundamente influenciado pela tradio apostlica. Isso se

percebe tanto em seu vocabulrio, quanto em seu pensamento. A herana crist em Incio tem

razes profundas no pensamento de Paulo. Nesse sentido, entre os documentos paulinos que

influenciaram os escritos de Incio destacam-se: a 1 carta de Paulo aos Corntios e a epstola

aos Efsios. J no que diz respeito aparente falta de interesse nas Escrituras judaicas

tradicionais, segundo Matthew W. Mitchell, em um artigo intitulado In the Footsteps of Paul:

Scriptural and Apostolic Authority in Ignatius of Antioch (2006), muitos estudiosos

simplesmente ignoram as questes relativas aos pontos de contato entre as Escrituras judaicas

e as correspondncias inacianas. Contudo, segundo o autor, a utilizao espordica do Antigo

Testamento derivaria de um desejo de subordin-lo s outras fontes de autoridade, em

especial aos escritos paulinos. As cartas de Incio, portanto, refletiriam que, desde cedo, os

escritos de Paulo j assumiam um carter de exemplar normativo no seio doutrinrio das

comunidades. Alm das fontes paulinas, bem provvel que o bispo tenha tido contato com o

Evangelho de Mateus, como J. Smit Sibinga deixa claro em seu artigo Ignatius and Matthew

(1966), e, talvez, mas menos provvel, com os Evangelhos de Lucas e de Marcos.

Apesar de Incio se inspirar na epistolografia apostlica, pode-se observar que ele

tambm utiliza modelos helensticos. Segundo Allen Brent, no texto Ignatius of Antioch and

the Imperial Cult (1998), por meio da anlise de alguns conceitos verificados nas

correspondncias de Incio, possvel identificar um forte paralelismo com as religies de

mistrio que adentraram o Imprio Romano. importante destacar que se tem alegado ainda

a existncia de certas afinidades entre os escritos de Incio e as doutrinas gnsticas, por conta,

principalmente, de terem sido descobertas neles algumas sutis evidncias de elementos

mitolgicos provenientes do gnosticismo. Entretanto, possvel afirmar que Incio no sofreu

influncias de nenhuma corrente gnstica especfica, mas de uma cultura influenciada pelas

45

tradies religiosas locais, fruto da prpria cidade de Antioquia, local de grande efervescncia

cultural (HOLMES, 1999; SCHOEDEL, 1985). 19

Dadas as circunstncias vividas por Incio durante a confeco das cartas, a anlise dos

documentos requer certo cuidado, considerando-se o seu valor peculiar, pois so cartas de um

prisioneiro a caminho do martrio evidentemente sensibilizado e, por essa razo, elas

apresentam um forte apelo emocional. O estilo das cartas truculento, refletindo as

circunstncias adversas vividas pelo autor (RICHARDSON, 1953). Desse modo, percebe-se

que as cartas de Incio foram escritas em meio a um extraordinrio momento de estresse e

forte emoo. Porm, apesar disso, no se nega que Incio possua um desejo sincero de

imitar o sofrimento de Cristo e de, assim, tornar-se um discpulo verdadeiro. Incio tinha

alguns motivos para escrever as cartas. Segundo Eusbio de Cesareia, o bispo de Antioquia

acautelava-as (as comunidades) contra as heresias que comeavam a pulular; incitava-as a

conservar firmemente a tradio dos apstolos que, por segurana, julgou necessrio fixar

ainda por escrito (Hist. Ecles. III, 36:4). Nesse sentido, os objetivos de Incio com suas

cartas eram: 1) alertar as comunidades a respeitar as autoridades institudas, ou seja, os bispos,

os presbteros e os diconos; 2) instruir os crentes em relao aos falsos ensinamentos dentro

das comunidades; 3) assegurar o futuro de sua prpria ekklesia em Antioquia por meio da

ajuda das outras comunidades a ela; 4) pedir para que os cristos de Roma no interviessem a

seu favor no julgamento.

19

Utilizando fontes de Nag Hammadi, Paulsen (1990) acredita que a doutrina de Deus em Incio reflexo de um

gnosticismo que acreditava na harmonia espiritual dos poderes numa divindade completa. Essa viso se mostra

diferente da doutrina neotestamentria da unidade de Deus, o que se revela como uma possibilidade de que o

bispo tenha certa familiaridade com a doutrina gnstica (SCHOEDEL, 1985). Henry Chadwick (1950)

acrescenta ainda que as cartas de Incio so permeadas por um individualismo anti-material, revelado pela

argumentao do silncio do Deus, de carter explicitamente gnstico. Entretanto, parece mais sbrio esclarecer

que o gnosticismo, no perodo de Incio, era um movimento que pode ser classificado como semi-mstico e,

como tal, possua doutrinas significativamente diversas daquelas encontradas nas cartas do bispo. Alm dos

diferentes dogmas, os ideais gnsticos afetavam diretamente os interesses religiosos mais concretos de Incio

(SCHOEDEL, 1985; PETTERSEN,1990).

46

As cartas de Incio de Antioquia so documentos de notvel importncia haja visto

que abordam, sob uma perspectiva inovadora, algumas temticas atpicas para um documento

cristo que data do sculo II. Muitas foram, e ainda so, as discusses histricas e teolgicas a

seu respeito. Deste modo, o estudo moderno de Incio pode ser dividido em trs