lÚzia quitÉria - fibra de mulher · 2012-03-13 · lá fora, os pingos de água no dançar da...

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POEIRA VERMELHA WANDERLEY DA SILVA MARQUES (H) Estórias LUZIA QUITÉRIA FIBRA DE MULHER NO TEMPO DOS CANGACEIROS OS HOMENS DA SERRA DO QUATI ROMANCES DE ÉPOCA BIOGRAFIA Wanderley da Silva Marques, filho de Antônio Marques da Nóbrega e de Paula da Silva Marques, nasceu no dia 05 de abril do ano de 1967, na cidade de Cajazeiras, Estado da Paraíba. Concluiu o ginasial na cidade de Cachoeira dos Índios, terra berço de seus pais

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POEIRA VERMELHA WANDERLEY DA SILVA MARQUES

(H) Estórias

LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER NO TEMPO DOS CANGACEIROS

OS HOMENS DA SERRA DO QUATI ROMANCES DE ÉPOCA

BIOGRAFIA

Wanderley da Silva Marques, filho de Antônio Marques da Nóbrega e de Paula

da Silva Marques, nasceu no dia 05 de abril do ano de 1967, na cidade de Cajazeiras, Estado da Paraíba. Concluiu o ginasial na cidade de Cachoeira dos Índios, terra berço de seus pais

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pela Fundação Educacional Padre Ibiapina e o Cientifico na cidade de Cajazeiras na Escola Estadual de 1ª e 2º Graus Professor Crispim Coelho, parando de estudar para ingressar na Policia Militar do Estado da Paraíba no ano de 1987, aonde um ano depois vindo trabalhar na sua cidade começou a escrever o seu primeiro romance: Homens Secos, só publicado quatorze anos depois. Irrequieto, preguiçoso, não voltou mais as salas de aulas; escreveu, desenhou, locutou esportivamente, poetizou, ingressou na política tornando-se o primeiro militar eleito no solo berço de seu coração, Cachoeira dos Índios. Atualmente reside a Rua Monsenhor Constantino Vieira número 56, centro desta cidade ao lado da casa de seus pais. É casado com dona Lucileide Bezerra de Andrade e é pai de quatro filhos varões: Antônio Neto, Wanderley Filho, Geraldo Neto e William Wollace. No ano de dois mil e sete, após vinte anos longe das salas de aulas inscreveu-se em dois vestibulares paralelos obtendo êxito em ambos. O primeiro para o Curso de Bacharelado em Ciências Contábeis pela FAFIC na cidade de Cajazeiras e Bacharelado em Ciências Jurídicas, (Direito) pela UFCG; Sousa-PB, sendo que neste segundo ficou na lista de espera em virtude da pontuação deficitária ao seu chamamento direto.

No ano de dois mil e nove, depois de um ano em Contabilidade resolveu trocar o curso de Bacharel em Ciência Contáveis na Faculdade de Ciências e letras de Cajazeiras (FAFIC) para o Curso de Bacharel em Ciências Juridicas; neste mesmo centro de formação, aonde encontra-se a adquirir conhecimentos juridicos com previsão para formatura na primeira metade do ano de dois mil e treze. Sujeito sério e extremamente simples é uma figura impar preso no elo do tempo por uma paixão plantada em sua essência por seu genitor por quem ele tem verdadeira veneração. Tanto é assim, que seus personagens são figuras de uma época perdida no tempo, cujo código de existência e valores morais hoje são obsoletos e ultrapassados quando se refere à sociedade atual, mas não a Wanderley. Para ele a palavra ainda é o maior bem do homem e neste caso especificamente ele mantém a sua. Talvez por isto tenha se tornando o maior ícone da Câmara Municipal de nossa cidade e que apesar das perspectivas de crescimento hoje a política o deixa triste pela forma como ela se conduz. Costuma explicar quando indagado pelos amigos “o por que” de não fazer isto ou aquilo em proveito próprio numa frase que nitidamente esclarece tudo e daí o assunto se acaba “É da minha natureza”. Também é chargista, poeta, nesta linha, preocupado com a sociedade escreveu um livro cheio de rimas simples e diretas por onde caminha a gritar seus protestos contra o mundanismo de uma forma geral; alias este livro é inédito ele ainda não o publicou. Todavia tive o prazer de conhecê-lo. Porém como não estou autorizado a expressar minha opinião além da biografia do escritor. Finalizo agradecendo pela oportunidade a mim oferecida de falar um pouco de Wanderley Marques, paraibano, cachoeirado, escritor em seu segundo livro. E por lembrar isto! Você que não conhece, adquira Homens Secos e viaje no tempo pelas linhas descritas por este moço. Vale a pena. Ainda cheio de vontade e ciente de que muito poderia relatar sobre este escritor e, no entanto não seria capaz de descrevê-lo, paro por aqui para que os senhores leitores

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decifrem por si mesmo quem é este cidadão. Afinal seus personagens são também um pouco do que ele é em se tratando de Justiça, honra e lealdade.

Atenciosamente,

Wellingtom Bezerra

Cachoeira dos Índios - PB em 10 de janeiro de 2009.

(LIVRO 1) LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

CAPÍTULOS

I – A desgraça de Quitéria. II – A Laguna dos Batistas.

III – O pistoleiro. IV – Justiceira dos sertões.

V – Paixões de Luzia. VI – Duelo final.

(LIVRO 2)

NO TEMPO DOS CANGACEIROS

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CAPÍTULOS

I – Encontro com a morte. II – Dodô Cândido

III – Um certo Padre Mauro e a Vila de Balanços de Manoel Tentem. IV – Homens, sangue e morte. V – O beato e o cangaceiro.

VI – Um Praça disposto. VII – Serafim Guedes e Dona Santú.

VIII – Confronto final.

(LIVRO 3) OS HOMENS DA SERRA DO QUATI

CAPÍTULO

1º e único - Uma estória de muito sangue com muitas mortes.

Autor WANDERLEY DA SILVA MARQUES

Ilustrações – Wanderley da Silva Marques

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(LIVRO 1)

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CAPÍTULOS

I – A desgraça de Quitéria. II – A Laguna dos Batistas.

III – O pistoleiro. IV – Justiceira dos sertões.

V – Paixões de Luzia. VI – Duelo final.

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LUZIA QUITÉRIA - FIBRA DE MULHER

De: Wanderley da Silva Marques

Capítulo I

Havia um grilo oculto ali perto regendo sua melodia quizilenta: Hora curta, hora

demorada, naquele instante em que nuvens vinham cavalgando nas asas do zéfiro a se instalarem pelos céus do sertão. As estrelas rapidamente foram engolidas, ocultadas, como a serem cobertas por uma grande toalha negra em todas as direções. Nestas horas, elas eram apagadas velozmente. Contudo! O mestre estridor continuava sua serenata noite afora adentrando a madrugada. Um trovão explodiu ali próximo para outros o precederem nos caminhos da providência, alvissarando a caboclada sertaneja, sempre esperançosa de um inverno farto e vigoroso que este estava a chegar. A dança dos pingos de água começou tímida; no espaço de um vai-e-vem: engrossaram, quedando com força pelas terras do sertão surrado, fazendo aquietar ao maestro ortóptero. Que certamente agora se ocultara, protegendo-se do temporal. Algumas horas depois, alta madrugada, a chuva continuava a cair castigando o chão batido, fazendo a água correr abrindo sulcos na terra, revitalizando velhos córregos. Moldando e desenhando um novo cenário nas barreiras do velho rio não tão distante daquele lugar, que com o recebimento do aguaceiro descia caudaloso em gigantesca cheia a provocar um som macio, agradável de escutar. O repicar dos pingos de água nas telhas da pequena casa produziam um som forte, ininterrupto. As paredes da tapera sofriam do lado em que à chuva vinha, desmanchando-se o reboco a ser levado pela força da água, deixando as varas cruzadas na armação da tapera ficar a mostra. Logo, alguns buracos surgiram deixando transparecer o interior da rústica vivenda; aonde uma rapariga corria apressada com pedaços de estopa para enfiar nas brechas da parede, numa luta incessante, já que quando tapava um, logo outro surgia fazendo-a resmungar desesperada pela luta em vão. Na outra parte da casa em posição contrária a chuva, havia uma velha deitada sobre um velhíssimo colchão de palhas, fazendo enormes caretas de dores sentidas no estomago; já que com força apertava a barriga buscando amenizar seus suplícios. Só estas duas estavam em casa naquele momento, distante do vizinho mais próximo há umas dezessete léguas. O homem da casa, com o cedo da tarde havia selado um burro e partido para a vila de balanços há setenta quilômetros na direção sul, em busca de um transporte para a remoção de Celidônea, que pelas crises de dores quando estas começaram, não agüentou se quer ficar de pé, enquanto mais pegar uma garupa. As dores não diminuíam e como a chuva crescente a engrossar, propagava-se a

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dominar o corpo da agricultora fazendo-a entrar em convulsão sobre o surrado colchão. Num espasmo de agonia reuniu todas as suas forças restantes e conseguiu sentar-se a bordo do colchão. Lançando um olhar para a porta aonde uma lamparina fadada pendia apregoada ao caixilho, gritou pela moçoila. - Quitéria minha filha! A explosão de um trovão impediu a rapariga de ouvir a mãe chamar-lhe pelo nome. - Quitéria! A segunda chamada saiu fraca, acompanhada de uma careta de dor. Porém desta vez! Luzia Quitéria, mesmo com os sons dos pingos da água repicando nas telhas, ouviu sua mãe e assim correu de volta ao quarto onde sua genitora procurava ficar de pé. Chegou a tempo de ampará-la, evitando-a de quedar. “Onde estaria o pai?” – Pensou – “Teria chegado à vila? Ô meu Deus e este tempo!”. O grito da doente misturou-se ao som do trovão ribombado no espaço a repercutir na audição da menina. Esbugalhando os olhos, a mulher estremeceu nos braços da filha deixando seu corpo esmorecer a fugir sua vida. - Ou não! Agüenta mais um pouco mãe. O pai deve estar chegando! – Exclamou. A palidez expandiu-se rapidamente pela face da mulher e uma frieza repentina tomou conta do corpo da enferma arreliando Luzia Quitéria, que não sabia o que fazer abraçada a mãe ao pé da cama. O braço de Celidônea que ficara entrelaçado no pescoço da filha deslizou sem forças a ficar dependurado, inerte, fazendo aqui, Quitéria sentir que sua mãe estava irremediavelmente morta. Lá fora, os pingos de água no dançar da chuva foram definhando, definhando, até que cessaram de vez. As nuvens se espalharam deixando surgir às estrelas acompanhadas da lua caminhando para se ocultar. Somente ouvia-se agora o barulho suave das águas correndo, e, aquela velha conhecida serenata do maestro grilo, além de um vento aromatizado do clima vigente na região. Luzia Quitéria, porém nada ouvia. Abraçada a mãe fazia forças puxando-a de encontro ao seu peito num ato de dor e desespero, soluçando entre gemidos cortados a palavra “mãe”. Na vila, distante daquele cenário, Genuíno Paudalho buscava a casa de um velho conhecido, Joaquim Pajeú, o possuidor do único automóvel Ford, um caminhão de boleia dupla, de madeira, existente por aquelas brenhas. Mas, para sua infelicidade, o homem havia viajado a negócios. Consternado, se viu obrigado a retornar sozinho sem o socorro que viera buscar. O médico, última esperança, só era acessível na cidade grande, bem distante deles e da vila. Só restava-lhe agora esperar pela vontade de Deus, como de outras vezes. Já o dia amanhecido, passou no empório, comprou um litro de aguardente e regressou a todo galope, preocupado com a consorte, esperançoso de que esta fosse só mais uma crise como as de antes, superada por sua companheira. Antes de chegar ao rio, já perto de casa havia secado o litro entrando num estado de embriaguez muito alta. Com muito esforço, conseguiu vencer ao lamaçal e atravessou as águas que corriam a cada instante aumentando mais e mais o seu volume. O sol campeava a meia altura quando chegou a sua residência. Ali não avistou Luzia

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Quitéria, Celidônea, encontrou-a deitada na cama. Ébrio, não desconfiou de nada, achou que a mulher vencera mais uma crise e agora dormia se recompondo da noite em claro. Olhando para a mulher puxou um surrado lençol de um baú ao pé da cama e cobriu a esposa deixando-a sossegada. Dali foi até a cozinha lavar os pés que estavam enlameados. Lá, despiu-se da camisa com dificuldades, arregaçou as pernas da calça e sustentando uma terrina, foi até o pote, aonde com um litro encheu o recipiente. Voltando até a mesa, puxou uma cadeira, sentou-se à vontade e colocou o objeto no chão mergulhando os pés em seguida. Quitéria estava escorada em um pé de cajarana no terreiro da casa, olhando para o céu a meditar sobre o seu destino naquele momento. “Talvez tenha sido melhor assim. Mainha sofreu muito nesta vida, agora estava livre de tudo e de todos” - Pensou – Mais o que seria dela agora? Sem sua protetora na companhia do padrasto que tinha como pai, afinal ele a criara desde novinha. Preso a estes pensamentos não sentiu Genuíno se aproximar. - Luzia, já acordada! Por que não ta dormindo como sua mãe? Ela virou-se, olhando-o de frente, ao perceber seu estado etílico, nada respondeu. Assim, caminhou para entrar em casa sem querer puxar conversa, as lagrimas ainda afloravam em seu rosto jovial. Ao passar perto do homem, este a segurou pelo braço. - Escute aqui moleca! Ta mouca? Não me ouviu falar? - Solte-me painho, ta me machucando. Pediu esperando a razão fazer com que ele percebesse a desgraça que havia pairado naquela casa. Cansado da viagem, bêbado como nunca antes estivera na frente da moça, num ato impensado, Paudalho desceu a mão aberta sobre o rosto da menina Quitéria derrubando-a no terreno molhado com uma bofetada. - Isto é jeito de falar com seu pai, cabrocha – Justificou seu ato a si - Ao cair, Luzia que completara dezesseis anos e se punha mulher com seu corpo desenvolvido, belo e escultural, bateu a cabeça na raiz da árvore que estivera escorada, ficando desacordada. Ela tinha os cabelos longos pendendo até a linha da cintura, possuía olhos grandes, verdes, de elevada estatura, cintura de “pilão” as pernas grossas e bem torneadas, rosto belíssimo, lábios grossos carnudos arroxeados, dona de uma beleza impar pra aquelas bandas. Diziam que não existia mulher mais linda no sertão de Catingueira. Ao cair ficou de pernas entreabertas a mostrar sua intimidade, já que estava usando um vestido curto de chita, ganho quando completara treze anos, e com o desenvolvimento do seu corpo, havia ficado meio curto. A imagem daquele corpo no solo naquela posição, a cachaça ingerida e uma enxurrada de maus pensamentos foram o suficiente para Genuíno Paudalho perder a razão; atirando-se sobre a quedada rasgou-lhe as vestes. Violentando-a, saciou seus sádicos desejos. O sol estava a pino, queimando o rosto de Luzia quando ela recobrou os sentidos, primeiro sentiu uma forte dor de cabeça e compreendeu ser da queda sofrida. Foi levantar-se e sentiu que algo bem mais terrível tinha lhe ocorrido. Sentou-se juntado as pernas estendidas no solo para perceber o sangue misturado com lama e com o sêmen do homem a manchar-lhe as coxas. Chorou tristemente, toda desgraça da vida caíra sobre ela numa velocidade

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impressionante de tempo. “A perda da mãe e a violação sofrida pelo meio pai” Permaneceu sentada, sem vontade de levantar-se, segurando os farrapos da veste na altura dos seios, cobrindo-os com uma das mãos. Estava sozinha, não tinha ninguém, não tinha para onde ir e tão pouco poderia ficar naquele lugar. A justiça naquele sertão machista de majores e coronéis inexistia só lhe restando resignar-se ao seu destino cruel aceitando a pesada carga, ou... Reunindo todas as forças restantes ficou de pé e caminhou para entrar em casa, foi quando o mestre grilo liberou uma nova toada e da mata um pouco a frente outros sons iguais, eclodiram em estridores; até o som do gorjear de alguns pássaros chegaram distante aos ouvidos da rapariga. Adentrou no recinto e pôde ver sua mãe estendida ao longo da cama, na mesma posição que deixara na madrugada passada, todavia ela estava coberta. Celidônea jazia alheia às misérias que sucederam a sua tão amada filha. Pelas brechas das paredes o viu de longe, Genuíno estava num descampado cavando ininterruptamente o solo. Após violentar a enteada, dormiu sobre o corpo dela, mas acordando antes que a menina-moça entrou em casa e foi ver como estava Celidônea. As imagens da noite anterior estavam confusas em sua mente; foi quando percebeu a morte da mulher. Sem perder tempo, armou-se de uma pá e de um cavador e foi procurar o melhor lugar para sepultar sua ex-companheira. Cavava despreocupado, sorridente, sem se importar com o que fizera a enteada, os fatos existiram, ele não os premeditou, assim: enterraria Celidônea e passaria a fazer vida com Quitéria, afinal à moçoila não era sua filha legitima e ela seria obrigada a viver com ele, por bem ou por mal. Um ódio gigantesco invadiu a rapariga ao avistar Genuíno abrindo uma cova para sepultar sua mãe. Decidida subiu ao sótão por uma escada tosca de pau, de lá, desceu trazendo uma espingarda de socar de grosso cano, arma que Genuíno usava para caçar; sabia manejá-la, sua mãe a ensinara em dada ocasião para disparar em pequenos roedores que estavam atacando o galinheiro. Assim, depois de municiar a arma, foi ao quarto da mãe, porém o corpo de sua genitora não estava mais ali. Pelas frinchas viu Genuíno carregando-o nos braços para depositar na cova que antes preparara. “Pobre mamãe, que Deus a tenha” – Pensou confabulando consigo mesma. Demoradamente, Genuíno Paudalho trabalhou cobrindo o corpo da falecida. Terminando, cruzou a pá no ombro e segurando o cavador com a outra mão, retornou assoviando para casa; vinha despreocupado com certo ar de felicidade estampado no rosto. Ali, um cano de ferro foi escorado na madeira pelas frestas da parede. Com a arma escorada no ombro, a menina esperou Genuíno se aproximar um pouco mais. A bela imagem de Luzia Quitéria totalmente nua, vinha se formando na mente do camponês fazendo-o sorrir ditoso. O eco do disparo ressoou pela mata fazendo aos estridores cessarem suas melodias. O susto que Genuíno sentiu com o som do estampido do tiro, desapareceu com a dor surgida abaixo do ventre, no entre pernas. Seu pênis, testículos e partes das coxas, fora picotadas por uma carga de chumbo em fogo; igual ao susto, a compreensão e a dor, saiu o grito de agonia com o tombo que sofreu ao tentar caminhar para diante. - Maldita! Maldita cobra. O que você me fez quenga dos diabos?

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Gritava possesso, segurando com ambas as mãos o que sobrara dos seus órgãos genitais, totalmente estraçalhados pelo disparo da socadeira. Luzia Quitéria, calmamente, ainda trajando os restos do vestido acercou-se do homem, agora sentado, gemendo de dores. Veio seminua com os seios de fora sem se importar com mais nada. Carregava em posição de tiro a espingarda que alvejara Genuíno. Este ao percebê-la próxima, a fitou dentro dos olhos e sentiu chegar sua hora. - Rasteje verme. Você me tirou o que de mais precioso eu tinha. Agora irá pagar com sua maldita vida – Explicou apontando a arma para a cabeça do homem. Genuíno ergueu a mão como quem buscando tirar a mira de cima dele - Não o fiz por querer. Foi... Não teve tempo de explicar; ouviu um estampido e sentiu um impacto fortíssimo da varredura do chumbo com os projeteis entrando por sua cabeça, trespassando algumas esferas àquela mão que foi erguida. Com o impacto, foi arremessado de costas no terreno, estrebuchou um pouco e ficou imóvel, morto por sua vítima. Com muito esforço, Luzia o segurou por uma das pernas, distanciando-a uma da outra, rasgou-lhe a roupa, deixando-o nu. Na seqüência foi até em casa e logo retornou com uma faca amolada. Junto ao morto: ajoelhou-se; segurando o que sobrara do sexo dele, puxou para cima e com um único movimento castrou o defunto. Olhando lhe com desprezo para o rosto, atirou aquela massa disforme para longe, recomendando-o a belzebu. - É pra não mexer com as diabas, quando tu chegar ao inferno! Cachorro desgraçado. Após, arrastou o padrasto até o quarto em casa aonde com mais um pouco de esforço, deitou-o no colchão em que sua mãe morrera. Suada, grudenta, foi até o velho baú, juntou suas roupas numa mucuta, catou as parcas economias que tinha, para depois apossar-se de uma lamparina meada; de posse do objeto retornou ao quarto, despejando um terço do querosene nas palhas e sobre o corpo de Genuíno. Olhando pela última vez para aquele salafrário, deixou cair o candeeiro sobre este. Mal o objeto tocou as vestes embebidas do finado, a chama do pavio beijou o liquido espalhado sobre este, fazendo surgir uma chama amarelada a qual caminhou ligeiramente por onde havia querosene unindo-se com as roupas, palhas, carnes e madeira do móvel, consumando-se uma enorme fogueira. Sem nenhuma pressa, Luzia Quitéria deu de costas para cama e caminhou saindo dali. As chamas completaram sua vingança. Saiu sem olhar para trás, embaixo da cajarana despiu-se das sobras da veste ficando totalmente nua a luz do astro rei que moldava a distancia uma tela em sombra, de uma árvore e de um corpo escultural a receber os ares que campeavam pelo torrão. Banhou-se com as águas restantes do pote, usando uma cuia, a qual introduzia no interior do recipiente e retirava cheia do precioso líquido. Enquanto banhava-se, o fogo ardia agora pelo teto da vivenda. Tomado o banho, vestiu uma surrada calça comprida que fora um dia de seu legítimo pai, uma blusa de mangas compridas, a única que possuía, e calçando uma chinela de rabicho caminhou estrada afora, levando consigo na matula somente aquilo

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que julgou útil para sair dali, além da espingarda. As labaredas vorazmente fizeram seu trabalho, deixando escapar de si uma fumaça escura a subir para o céu daquele torrão. ... Luzia Quitéria caminhava estrada afora, algumas centenas de metros adiante, sentiu vontade de chorar, entrementes uma dureza enorme apossou-se de seu coração e esta apenas caminhou para diante. Não havia expressão em seu rosto vazio, só a estrada à frente e o gorjear de algumas aves era percebido por ela enquanto andava por aqueles caminhos, buscando resignar-se da sorte que lhe fora traçada. Ao cair da tarde, sentou-se a sombra de um juazeiro, algumas léguas longe de casa. Revirando a mucuta, retirou dali um pedaço de pão seco, uma pequena lata com farinha, pequenos pedaços de uma raspadura preta, e um “naco” de carne de bode salgada. Comeu apenas um pouco da farinha com raspadura, guardando o restante de volta na matula, passando a sentir uma sede medonha. Saciada da fome, escorou-se acomodando se ao tronco da árvore, deixando a espingarda ao alcance de suas mãos. Esticando os braços, espreguiçou-se, ciente de que teria de seguir em frente. Contudo, exausta pelos fatos e andança ocorridos, relaxou os nervos deixando vir sobre ela uma vontade de dormir um pouco. Erguendo a cabeça para cima, vislumbrou os fortes raios do sol trespassando as frestas das folhas na copa da árvore e ao longe na direção do sol poente, enormes sombras de cadeias montanhosas declinando sobre o campo. Seus olhos pesados começaram a fechar-se, quando um ruído fortíssimo invadiu-lhe os tímpanos, fazendo-a despertar e se por de pé de arma na mão. Não demorou muito para o som de uma voz rouca chegar aos seus ouvidos orquestrados pelo ranger de madeiras, cantando os seguintes versos. - “A vida do carreiro é a melhor vida que há. - Desconheço outro homem que assim viva iguar - E se o existe só pode ser jangadeiro - Que tombem tange no mar... - Ohhhhh. Gaaaadooo.” Embuçada por trás da árvore, Luzia Quitéria viu um caboclo tangendo calmamente um carro de bois, arrastado por uma pareia de touros. Em uma das mãos o caboclo sustentava uma preaca de couro cru, que vez por outra sibilava no ar para dar marcha ao veículo na velha estrada; o capiau vinha glosando versos da sua própria autoria. - “A moça que eu mais amava, - Com ôtro homem fugiu - me deixanu uma sardade - daquelas que arguém jamais viu. - Ohh gaaadoo,” - e mermo que eu esfole meu cavalo - Inda hei de corta o calo - deste vaqueiro tão vil. - Oh! gado.

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O condutor iria passar sem perceber a moça, caso ao ladear-se do juazeiro, Luzia não tivesse surgido a apontar-lhe a arma. O carroceiro estancou, parando sem entender o que significava aquela estranha aparição. Sem demonstrar nenhum medo, sorriu perguntando. - O que é que ai minha filha? O que cê quer? Perguntou sem a menor idéia do que ocorria, pois assaltantes nas estradas não eram raros, contudo assaltos a carreiros inexistiam, ainda mais o assaltante sendo mulher. - Não é bem o que vosmecê ta pensando não. Não estou atrás de lhe roubar nada. É que depois de certas coisas que me aconteceram perdi a confiança em todo homem – explicou. O caboclo sorriu, deixando aparecer sua dentadura falha - Eu não sei o que lhe ocorreu; mais vosmecê tem toda razão em desconfiar das pessoas: de gente ruim estas estradas andam cheias. Mais acredite! Não é o meu caso. Então se me diga em que posso servi-la? - Se o Senhor tiver e quiser me dar, só quero água. - Ora! Não seja por isso. Mais baixe a arma minha filha, pode até ser que você precise usá-la, mais não será em mim. Sou homem de paz e respeito – Respondeu desamarrando uma das duas cabaças que carregava a tiracolo na lateral do carro. - Tome é toda sua, tenho outra de reserva e já estou mesmo perto de casa – completou estendendo-a para Luzia. Esta por sua vez baixou a guarda. Recebendo o recipiente bebeu no gargalo; saciada agradeceu a generosidade do viandante. - Agradecida por sua bondade – explicitou estendendo a cabaça de volta ao tabaréu. - Não! Não. Fique com ela; já lhe disse que tenho outra e tou perto de casa. Já vosmecê não: está viajando e vai precisar de água pelo caminho – Ao concluir sibilou o chicote no ar fazendo os bois caminharem outra vez para despedir-se – Inter mais ver Sadona. - Luzia por sua vez atravessou a cabaça a tiracolo nos ombros, respondeu a despedida e caminhou em sentido contrário ao do carreiro, ouvindo-o distanciar-se ao som dos seguintes versos. - “Fui uma festa na Paraíba, pras bandas de Catingueira. - Dei uma brigada danada, mermo no meio da feira. - Lá furei Ciço de Cacilda e atirei em seu Pereira. - Mais veio um cabo de puliça e acabou ca brincadeira - Ohhhhhh gaaaaadooo.” - Neste dia dormi preso, cum lombo todo amassado - Foi uma sova de cacete que levei du delegado - Que estava todo prosa e muito bem acompanhado - De quatro sordado da puliça, todos eles bem armado - No que me restou fazer uma jura, a um padre que lá fosse - Pois jumento carregado de rapadura, até o rabo é doce. - Oh! Gado.

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LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

De Wanderley da Silva Marques

Capítulo II

A laguna dos Batistas recebera esse nome em homenagem ao pioneiro

desbravador daquele sertão. Pedro Batista, que estava agora na casa dos setenta anos de idade. Chegara à região no apogeu da sua juventude, carregado de vontade e muita disposição, acompanhado da esposa. Recém casado, trabalhara duro para construir o que tinha: uma grande fazenda, situada à casa principal as margens de uma grandiosa lagoa, única existente por muitas milhas dali arredor, com capacidade de resistir a estiagens prolongadas. Por isso era o motivo da inveja e cobiça de outros donos de terras, latifundiários, Coronéis, vizinhos ou distante dele. A mulher do Batista tinha a mesma idade que ele, porém aparentava ser mais jovem, apresentava um mesclar pequeno de branco pelos cabelos, ao passo que o homem não. Tinham um único filho, Pedro Junior, o mancebo não vivia com eles, estudava na capital do Estado e por cá só aparecia nas férias; era o motivo de orgulho do casal de pioneiros que sonhavam vê-lo formado. “Doutor” pra àquela gente simples. Bernardo Bento, um dos vizinhos de Pedro acompanhara nas fraudas a saga dos pais, de quando das suas chegadas naquelas pampas; não tinha mãe, esta morrera em seu parto, por isto fora criado por uma ama de leite. Seu genitor Horácio Bento estava acamado com sérios problemas de saúde e parecia que estes o haveriam de levá-lo a terra dos pés juntos, sem jamais ter conseguido realizar o seu maior sonho, a expansão das suas terras com as do vizinho e amigo Pedro, para com isso, aumentar sua manada bovina. Ao filho legara este desejo e parte do seu temperamento, rústico e violento, além das posses de seus bens, os quais definitivamente passariam as mãos de sua cria quando da sua partida. Com Pedro Batista, tinha um profundo e gigantesco laço de amizade que nem mesmo sua cobiça conseguia ultrapassar, guardava-lhe imenso respeito, uma vez que na juventude foram percussores de inúmeras aventuras as quais firmaram ainda mais aquela amizade. Honrava como qualquer outro homem daquela época uma palavra empenhada e era isto que mantinha a paz entre ele e Pedro. Certa manhã, sentindo que seu fim estava próximo, chamou ao filho para uma conversa. - Bernardo – Começou - Sei que meus dias estão contados, minha hora se avizinha. Por isso lhe peço em meu leito de morte que mantenha minha tradição. Se for possível. Sem brigas com o Pedro, aumente nossos domínios e dedique-se a criação de gado, animal que sempre foi minha paixão desde criança quando morava com o meu pai no Rio Grande do Sul. Prometa-me que vai fazer isto.

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- Prometo pai, e garanto-lhe que a Fazenda Barra “H” ainda será a maior deste estado nordestino. - Muito bem meu filho. Mas lembre-se! Conquistar e expandir são justos. Contudo, alerto-o para que seja ou faça em paz com Pedro Batista. Agora volte aos seus afazeres. Levantando dali, Bernardo Bento dirigiu-se para o campo, deixando seu velho a expiar para o teto, preso há um tempo distante aonde no auge de sua juventude, revivia algumas proezas típicas do desbravamento daquelas terras. Vendo-se no passado não pôde impedir de lágrimas saudosistas correrem pelos seus olhos – “Da vida somos apenas meros passageiros, e por curto espaço de tempo” – Concluiu em seu silêncio resignado com o destino que se aprochegava. Bernardo, entrementes, tinha suas próprias razões e maneira de pensar em como deveria agir com Pedro Batista quando seu pai partisse desta para a outra; no entanto guardava para si suas intenções, já que não desejava afrontar ao seu genitor. Dias mais tarde, um acesso de tosse atacou ao velho acamado que não suportando a crise, seguida de falta de ar, expirou batendo a caçoleta, deixando Bernardo um pouco triste, mergulhado em sua melancolia. Horácio Bento bateu a caçoleta próximo ao meio dia, numa sexta feira; seu filho achou por bem enterrá-lo na tarde do dia seguinte, mandando um de seus agregados convidar os vizinhos para o velório de seu genitor. Algumas horas depois e no decorrer das seguintes muitos destes começaram a chegar para prestar suas homenagens ao velho pioneiro, entre aquela gente também veio Pedro Batista, prestar seus sentimentos ao filho de seu amigo e quando conversava despreocupado com outro camarada daquele rincão, Bernardo acercou-se dele. - Meu velho partiu sem conseguir seu maior intento. Não acha que é mesmo lamentável seu Pedro? Pedro conhecia o profundo desejo do seu falecido amigo mais nunca tivera problemas com isto em razão de manter com Horácio, sincera e honesta amizade. O desejo de compra do outro esbarrou na sua não vontade de vender as terras, e não foi por isso que aquela amizade se rompera, ao contrário: ficou muito mais franca e aberta, sequer neste assunto tocaram outra vez. Por isso tratou da mesma forma aquele tema para o filho. - É lamentável mesmo filho. Mais creio que eu e seu pai já havíamos dado por encerrado este assunto. Respeite como ele respeitou a minha vontade. - Eu sei seu Pedro, e apesar de não ser a melhor hora eu lhe peço para voltar a pensar neste assunto. O terceiro homem que estava a escutar aquela prosa resolveu se afastar e Pedro olhando admirado pela forma ríspida com que o outro lhe alertara, avisou. - Bernardo, vou lhe dizer uma coisa agora mesmo! Nesse instante, e a muitos outros que estão por cá, sempre mantive amizade a vosso pai e prova disto é que eu estou aqui hoje, triste por ele ter partido, mais se vosmecê insistir neste enredo que há muito foi dado por encerrado: vou-me embora e nunca mais ponho os pés aqui, como tão pouco você bota os pés no que é meu, e até o seu gado que bebe nas minhas terras será proibido. Fui claro? -

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Explicou duramente, disfarçando para os outros seu contragosto na prosa com Bernardo que surpreendido concordou pelos menos temporariamente. - Ta certo seu Pedro. Ta certo. Concordou saindo a deixar o velho roceiro preso a seus pensamentos. Nestes velórios entre a gente simples da roça, nunca faltou um bom café quente, aguardente à vontade e bons contadores de lorotas, alguém que se dispusesse a mentir descaladamente contando feitos do finado e enaltecendo seus valores a mais do que ele tinha, além, é claro, de sempre se colocar como parceiro destas aventuras; afinal quem iria desmentir, se o outro parceiro estava morto, e só eles dois é quem participavam da aventura, ou ainda se existisse um terceiro, era tão mentiroso quanto este primeiro, ou então estava longe, distante de provar a veracidade ou não dos fatos. Em suma, estes velórios, às vezes viravam uma “festa” ali ainda existiam as mulheres chorosas e rezadeiras, sendo estas as encarregadas da parte religiosa quando não existia padre, como naquela ocasião; este setor era sério e compenetrado, exercia bem o papel que lhe era incumbido. Depois tinha os entes da família, alguns se uniam as rezadeiras, outros a turma do puxa fogo e assim caminhava o velório de quem quer que fosse nas terras do sertão Paraibano. Bernardo cheio de más intenções preferiu unir-se ao grupo dos chupa-rolhas o que levou a engolir ligeiramente mais de um litro de pinga brejeira, de fogo alto voltou a abordar Pedro Batista. Só por muito pouco, os dois não se travaram na “tapa” afastados um do outro por aqueles menos ébrios; todavia, Pedro Batista retirou-se dali indignado com atitude do mancebo, sem mais esperar pelo funeral. Surgindo dali uma intriga que veio rebentar pouco tempo adiante em um verdadeiro banho de sangue, comum àqueles sertões sem lei e sem alma. Ao amanhecer do novo dia, Pedro Batista demonstrava ares de preocupação, desconfiava que para manter suas posses, certamente teria que brigar, já que Bernardo Bento deixara claramente suas intenções na noite passada. Sabia que o mancebo era possuidor de uma ambição desmedida e que para conseguir algo faria qualquer coisa, e isso realmente o preocupava. Não dispunha de gente para bater-se com o vizinho, seus agregados eram poucos e quase todos, gente de idade, pacífica, o que lho deixava vulnerável as ações do outro. O sol estava se pondo naquele dia, nesta hora Pedro Batista entrou pela porta principal da casa, vindo do roçado; Rosa veio recebê-lo cheia de tristeza, imaginando na sua segurança e no futuro de seu filho. Estavam conversando em pé ao centro da sala quando surgiu ao longo da estrada da fazenda o vulto de uma mulher a caminhar pela via. Rosa foi quem a viu primeiro. - Pedro! Tem alguém chegando pela estrada e parece uma rapariga. O roceiro virou-se olhando na direção descrita pela consorte. - Mais ochente! Vou dizer neste instante. É uma cabrocha mesmo; de onde será que ela saiu? Será lá das terras da coisa ruim? Neste ponto a figura feminina de Luzia pôde ser completamente observada trajando se pobremente como homem, portando pendente a mão uma lazarina bate bucha de groso

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cano. O casal permaneceu em silêncio enquanto a estranha figura se avizinhava, chegando ao pé da porta. Ali, saudou os roceiros, que continuavam de pé, surpresos com a visão da moçoila. - Boa tarde – Saudou a recém chegada. - Boa tarde moça. Entre, sente-se, e assim podemos prosear melhor – Respostou Pedro. - Boa tarde minha filha – Respondeu também rosa ao cumprimento da forasteira com um largo e cativante sorriso, iniciando a falação. - Vosmecê. Qual é sua graça? Não é por acaso desta região? - Luzia, Luzia Quitéria de Morais, não sou destas bandas, venho há dias cavacando por estas brenhas do sertão, sem eira nem beira atrás de um lugar pra ficar e trabalhar um pouco, seja na lida do campo ou fazendo uso desta arma – Respondeu sincera a visitante. Com a resposta, Rosa olhou perplexa para o marido que por sua vez olhou para a moçoila muito jovem e decidida no verbo, depois para aquela arma, e como não podia se dar ao luxo de dizer não; abriu um largo sorriso à visitante. - Estou mesmo carecendo de gente sim, e de preferência que saiba usar uma arma, até mesmo, mais do que pra lida, estava pensando em contratar alguns homens para minha proteção; entrementes, vou lhe dizer neste instante. Não esperava que aparecesse por a cá uma mulher armada, muito menos tão nova. Luzia sorriu mediante a explicação do fazendeiro – Entendo e acho justo, apesar de ser mulher pode crer. Sei muito bem usar isto – ergueu a arma ao referir-se a esta. Pedro, então narrou à moça o motivo de suas preocupações, do risco que estava correndo para manter suas posses e até a sua vida por causa do vizinho que ainda não dera as caras, mas que logo faria. Afinal nada impedia da cria do finado Horácio Bento tentar contra ele. Rosa deixou os dois proseando a sós e foi até a cozinha de onde voltou algum tempo depois com uma boa refeição para a visitante; neste ínterim, Pedro acertara com Luzia sua permanência na fazenda, e como era mulher, arranchar-se-ia na casa principal em companhia dele e da esposa. Está sorriu satisfeita com a boa nova e já desfechou toda sua boa vontade a visitante e nova agregada. - Após você forrar a barriga vou lhe mostrar seu quarto; arrumar umas roupas para você, uma pequena maleta pra substituir essa matula, e aí, conversarmos um pouco sobre sua vida se vosmecê não se importar. Diante daquele rosto meigo de Rosa e de suas expressões de generosidade, além da aparente expressão facial de contentação com sua estada ali, Luzia disse “Sim”. Pedro após a moça sair da mesa com Rosa, ficou sentado a sorrir, matutando entre preocupado e satisfeito. - “Até que não duvido nada da coragem desta menina! Inda mesmo porque eu já ouvi a estória daquela cabocla chamada de *Sinhá Ana por várias vezes da boca da peaozada, dando conta da sua bravura; mais vou dizer neste instante! Preocupa-me sua preservação

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física; no que seria responsável por isto. Por outro lado pode lá ter sido Deus quem a botou aqui. Afinal ele escreve certo por linhas tortas”. Ainda permaneceu um bom tempo na sala confabulando consigo mesmo, só saindo dos seus pensamentos com a chegada de Rosa. - E então mulher! Me diga neste instante. O que achou daquela cabrita? - É uma boa moça. Tão nova, já foi submetida às crueldades desta vida. Mais Pedro! Não se engane. Conheço uma pessoa de fibra quando vejo uma, e ela tem mais do que muitos machos que nós conhecemos; vi isso assim que olhei pra ela, e pelo pouco que me falou de sua vida, completei minha convicção. -Tanto melhor. Não gostaria de ver esta moça sofrer alguma coisa por mim. Amanhã converso melhor com ela. - É claro Pedro. É claro. Continuaram proseando até um pouco mais tarde. Luzia já ficara no quarto separado por Rosa. Com o enfado das andanças, logo dormiu. Rosa, algum tempo depois fez o mesmo, recolheu aos seus aposentos. Pedro sentou-se a sua preguiçosa, acendeu o pito e fitou durante bom tempo à luz do lampião preso a um arame vindo do teto no centro da sala, enquanto um finíssimo véu de fumaça se projetava da boca de seu cachimbo a dançar suave, levando-o a um estado de transe que logo lhe trouxe o sono, e este se recolheu ao seu leito. O galo cantou na madrugada, alvissarando o prenúncio do novo dia. Luzia dormira bem àquela noite. O enfada da caminhada sumira completamente. Inclusive sonhara com a mãe lhe dizendo estar em boa companhia e que fizesse o possível para ajudá-los. Despertada, pôs se de pé, espreguiçando o corpo sentiu os ossos estalarem se acomodando numa deliciosa sensação de bem estar. Estava neste transe, se espreguiçando, quando ouviu o som de vozes discutindo, vindas da frente da casa. Não pensou duas vezes, agarrou sua arma e caminhou apressada para o local do bate boca. Pedro Batista estava com as mãos trêmulas, apoiadas no parapeito da alpendrada de sua casa. Ao seu lado Rosa tremia assustada, temendo pelo que pudesse acontecer; em frente a estes no pátio, um moço bem trajado acompanhado de um sujeito bem armado discutia com os donos da terra sem descerem de seus cavalos. - Este é o último aviso Pedro. Amanhã quero uma resposta definitiva se vende ou não, ou melhor, se vende ou se você sai daqui. Fui claro? - Mais o que deu em você rapaz? Não respeita a amizade que havia entre eu seu pai? - Meu pai morreu Pedro. E eu penso diferente dele. Se vosmecê insistir em ficar vai ter sérios problemas e este é o último aviso – ameaçou com um sorriso nos lábios. Luzia surgiu à porta neste instante a explicitar em alto e bom tom. - Pode ser que o que você tenha imaginado para eles possa também lhe ocorrer. Fanfarrão! Você não acha isto? – quando vira a arrogância daquele homem, falando naquele tom a Pedro e Rosa, Luzia adquirira por ele profundo desprezo. Por isso já surgiu perguntando

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para a surpresa de Bernardo Bento e de seu comparsa, estando ambos sobre a mira de sua arma. Passado o primeiro impacto da surpresa Bernardo Bento voltou a soltar o verbo demonstrando suas intenções. - Ora, ora! Então se o amigo agora dispõe de ajuda – fez uma curta pausa – e é esta toda a que tem? – apontou a mão para a moça – acredite Pedro. Esta frangota não vai te dar a segurança que precisa – completou soltando uma espalhafatosa gargalhada. O mesmo fez seu jagunço movendo as mãos para sua arma na linha de cintura a liberar a seguinte frase. - Além do mais, tudo que essa cabrita precisa é de um cabra fuçando em cima dela. Foi seu último e vital erro, ao movimento das mãos e a pilhéria pesada, ouviu-se uma detonação e a cabeça do jagunço explodindo, estourando em muitos pedaços numa massa disforme por sobre os ombros. Quando caiu, já quedou morto para surpresa e estupefação de todos os presentes. Bernardo Bento engoliu um seco e sua face transformou-se por completo empalidecendo velozmente passando a tremer de medo. Depois ficou a observar, pasmado para o rosto da moça e de soslaio ao corpo de seu facínora. Passando o primeiro instante fez menção de puxar as rédeas do cavalo e sair dali. Luzia não o deixou. Pedro e Rosa, também atônitos apenas acompanharam o desenrolar no mais completo silêncio. - Não. Não saia agora! Desça de seu cavalo e leve esta porcaria aí com você - Bernardo obedeceu, sentindo a merda descer pelas pernas da calça, tamanho era o medo que estava sentindo. Com toda pressa do mundo, atravessou o corpo do peão na sela de sua montaria, sentando ele na garupa. Após, olhou pra moça como quem a pedir permissão. A qual de fato veio. - Vá e não volte outra vez aqui. Se quer, ameace novamente este homem. Poderá não ter tanta sorte como desta vez – Mal luzia completou a frase o homem sumiu em disparada açoitando o animal em galope, ia que nem bala o pegava. Pedro Batista e Rosa, estáticos, voltaram a si quando o homem partiu. Já o cavalo do morto, desde a sua queda havia saído em desenfreado galope. - Menina – começou Pedro – vosmecê é mais corajosa do que eu pensei. Se você não atirasse aquele salafrário ali, ele ia puxar mesmo sua arma e sabe lá Deus quais suas intenções. Foi mesmo sorte sua aparição por cá. Rosa Batista ainda trêmula foi levada por Luzia para o interior do rancho, enquanto Pedro e alguns agregados que acabavam de chegar, conversavam sobre os fatos que ali ocorreram. No interior da vivenda, Luzia Quitéria explicava a dona da fazenda porque havia se tornado aquela pessoa cheia de fibra. - Quando eu disse que queria trabalhar não estava brincando Dona Rosa, muito menos quando disse que sabia usar uma arma. Tudo o que eu tinha me foi tirado da noite pro dia, e foi esta arma que resgatou minha honra. Por isso sei o que é injustiças, sofrimentos, e ninguém, mais ninguém mesmo, irá expulsa-los daqui se vocês não quiserem partir. Só o farão

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por sobre mim. Dou lhe minha palavra – Rosa como os nervos mais calmos, abraçou a Luzia como se esta fosse sua filha a agradecer com uma única palavra. - Obrigada. Horas mais tarde, Pedro Batista voltou para casa e foi para o seu escritório, estava velho, abatido, certamente teria cedido às exigências do vizinho; entrementes aquela cabrocha surgida do nada lhe implantou novos ânimos, e lhe dera a maior lição que poderia receber aquela altura da vida. Agora nada o faria entregar a fazenda sem antes uma boa peleja. Decidido, municiou seu rifle e mandou uma agregada chamar Luzia Quitéria para uma conversa. Momentos depois ela surgiu, trajando o presente que ganhara de Rosa Batista, uma camisa de mangas longas e uma calça cumprida, roupas que pertenciam ao filho do casal e que caíra sobre medida em seu corpo. Calçava também, uma bota de canos longos, esta havia sido um presente do filho para o pai, mas jamais Pedro as tinha usado antes e vendo as indumentárias na moça por doação de sua mulher abriu um largo sorriso ciente de que estas caíram bem na rapariga. - Sente-se ao meu lado - A moça obedeceu sorridente. - Sabe filha! Estas vestes lhe caíram bem. Mais está lhe faltando algo que vou presenteá-la neste instante. Luzia que nunca experimentara uma roupa tão boa, muito menos uma bota como aquela, ficou felicíssima a esperar o que mais ainda viria. Chegou a indagar. - E o que seria seu Pedro? O fazendeiro não respondeu, fez apenas um gesto e puxou arrastando debaixo da cadeira que estava sentado, um rifle cruzeta e uma lindíssima cartucheira curtida por soleiros da capital, repleta de munição, os quais objetos, entregou à rapariga. - São seus; a arma e a cartucheira foi um presente do meu filho Pedro Junior quando da sua ultima visita. Como vê esta cartucheira foi trabalhada a mão, é um belo adorno que vai combinar com vosmecê. Realmente a indumentária era de uma beleza impar e Luzia ficou radiante pelo presente que o fazendeiro lhe fez. Sua espingarda era uma boa arma, porém estava ultrapassada, necessitava de algo mais moderno e este era aquele rifle. - Oh seu Pedro! Não sei como agradecer. - Não tem por que Luzia; se há alguém que tem que lhe agradecer por aqui esse alguém sou eu. E acredite doravante vosmecê não será tratada pelos demais agregados como nossa empregada, eles a tratarão como minha filha. Assim também faremos eu e Rosa. Agora vá lá fora, pois o Geremias tem um presente para você. Mandei-o encilhar nosso melhor cavalo. Será o presente do meu filho para você. Como ele não está aqui o faço em seu nome. - Seu Pedro, não precisa tanto – Pedro a interrompeu. - Nada é o suficiente para que possamos mostra-lhe nossa gratidão, e não se fala mais nisto! Acabei de dizer neste instante – Neste ponto Pedro fez menção de levantar-se, Luzia o impediu. - Espere só mais um momento. - Pois não filha, fale.

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- Pedro, mim diga cá uma coisa! Não acha que o vosso filho deve saber dos fatos que estão acontecendo aqui na fazenda? - Acho sim, só que já se aproxima o dia de sua chegada e como se gastaria mais de uma semana para mandar uma mensagem até ele. Achei melhor esperar mais um pouco. Só não contava que o miserável do Bernardo fosse agir antes da chegada do meu filho, o que foi um engano. Todavia pra minha sorte, vosmecê apareceu e já me sinto com condições de peitar aquele borra botas. - É assim que se fala; mais se ao término desta semana vosso filho não chegar, penso eu que seria melhor enviar um mensageiro até ele. Assim evitaria dele chegar por a cá desconhecedor desta querela. Despreparado. Não concorda? - Vou dizer neste instante. Concordo sim. Se ele não chegar até sábado, envio alguém para ir ter com ele, afinal hoje ainda é terça feira. - Ótimo. Agora vou ver o Geremias, tenho que conversar com ele. Sempre quis ter um animal e como a oportunidade apareceu lhe agradeço por demais. - Já lho disse que não tem por que agradecer. Aqui vosmecê manda; é para mim a filha que não tive. Completou a frase saindo para cuidar de alguns afazeres e Luzia dirigiu-se ao local aonde Geremias se encontrava, estando com um cavalo encilhado. Na verdade a moça não entendia quase nada de montaria. Entretanto, a aparente imponência do animal demonstrava ser ele, um excepcional cavalo, e de fato, o vaqueiro escolhera para a moça o mais dócil e melhor animal da fazenda. A notícia do incidente envolvendo Bernardo Bento e seu jagunço nas terras de Pedro Batista se propagou como o vento, o nome Luzia Quitéria viajou na imaginação fértil dos ingênuos sertanejos como mulher de fibra e coragem, exímia pistoleira. Bernardo Bento, depois da ação praticada pela moça foi um dos principais nomes a propagar a pecha de pistoleira àquela moçoila. Certa madrugada, dias depois do seu encontro com a forasteira, decidiu regressar as terras de Pedro Batista na calada da hora, cavalgou para o seu propósito em número de três. Do trio, Bernardo cavalgava ao centro, de certo é que quando o relógio sertanejo cacarejou pela primeira vez, já estavam divisando a casa grande da fazenda, por trás dessa é que ficava a dos agregados; acaso isto facilitou para estes chegarem ali sem o menor problema. Quando próximos da vivenda desceram de seus alazões e se acercaram da construção. Rosa Batista era dada ao hábito de levantar-se na madrugada para beber água e naquele precioso momento caminhava pelo comprido corredor do casarão segurando uma lamparina a luzir fatídica indo até à cozinha. A pequena luminosidade da chama despertou a atenção dos homens do lado de fora; um destes observou pelas frestas de uma das janelas laterais e viu pelas costas a fazendeira caminhando em sentido contrário ao seu. O nervosismo do momento o fez acreditar que aquela sombra fosse de Luzia Quitéria e sem raciocinar com perfeição encostou o cano de sua arma pela brecha inferior da janela, quando teve certeza de não errar: acionou o gatilho de seu rifle. Igual a detonação e ao grito de Rosa, saiu o de triunfo do jagunço.

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- Acertei patrão. Acertei àquela desgraçada. Agora o velho Pedro irá ceder. Ao som do disparo da arma de fogo, Luzia Quitéria pulou da sua cama; agarrando sua arma correu pelo corredor até a sala agachando-se ao pé da porta. Pedro que também acordará com o tiro buscou sua arma e correu para fora de seu quarto, chegando à sala já encontrou Luzia. No breve espaço de silêncio instalado perceberam o tropel de cavalos. Naquele momento algo causou ao fazendeiro uma horrível sensação “o silêncio de Rosa”, mas até aqui não atentou para a dura realidade que estava se apresentando a ele. Lá fora, a voz de Bernardo se fez ouvir. - Pedro Batista – gritou - sua defensora está morta, eu ia incendiar a casa mais mudei de opinião; sem ela vosmecê está só. Assim sendo vou lhe dar até amanhã ao meio dia pra arrumar suas coisas e sumir daqui. E atente bem! É seu último aviso. Um instante depois o tropel de cavalos se ouvia cortando a madrugada, Bernardo sorria feliz e não menos pomposo estava o pistoleiro que atirara em Rosa. Pedro, instantaneamente não decifrou aquele mal entendido. Os agregados da fazenda neste ínterim deixaram suas casas e vieram ao casarão principal. Luzia Quitéria despertou primeiro que o homem para aquela querela. - Rosa! Meu Deus! Rosa – O fazendeiro imediatamente compreendeu a preocupação de Luzia e saiu a gritar procurando-a por dentro de casa. - Mulher! Onde você está? Mim diga neste instante – Luzia por sua vez abriu a porta da frente da casa, já chegando ali alguns agregados da fazenda manipulando lampiões, Geremias estava à frente destes; imediatamente ela retornou ao interior do recinto em busca de Rosa Batista. Na cozinha encontrou Pedro Batista, agachado a chorar abraçado a sua esposa. - Meu Deus Rosa! O que é que aqueles malditos fizeram conosco – lamentava em prantos o pioneiro da laguna. Luzia acercou-se dele com os olhos cheios de lágrimas constatando desolada que Rosa Batista estava morta, assassinada com um tiro nas costas; confundida casualmente com ela. - E agora minha filha? Sem Rosa isto aqui não vale nada. Meu inimigo venceu. Os empregados da fazenda vieram em auxílio ao patrão e dali levaram o corpo da mulher para sua cama, alguns tentavam em vão consolar Pedro, que perdido em suas ilusões parecia estar distante em estado de choque. Luzia Quitéria olhava para aquele homem com profundo respeito, tanto ele como Rosa lhe deram novo ânimo para a vida, e ver um deles morto era algo inadmissível, ainda mais naquelas circunstâncias. “Antes tivesse sido com ela” meditou. Ao pé da cama olhava com uma ponta de tristeza deixando fluir em suas veias um ódio imenso por Bernardo Bento e sua corja, jurando no íntimo que aquela perda seria cobrada. O sol despertara no horizonte trazendo um novo dia; na laguna dos batistas, as mulheres dos agricultores, movimentavam-se pela casa grande cuidando dos afazeres para o funeral de Rosa A companheira de Geremias de nome Alvara Graça, foi quem de tanto insistir, acabou por fazer Pedro ingerir um merzinho preparado por ela, o qual fez o agricultor cair em

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sono, por força do efeito das ervas usadas. Enquanto os demais agregados continuavam nos preparativos, apenas Luzia Quitéria, parecia alheia aquilo tudo, escorada numa das paredes da sala da casa, lançava seu olhar porta afora a perscrutar o horizonte em busca da cura pra aquele mal. Geremias foi quem se acercou dela - E você Luzia, porque não toma do chá de Alvara minha filha? Por que Geremias vou precisar estar bem acordada quando for pegar aqueles safados. - Mais como vai ser isso dona menina? Vosmecê sozinha fica difícil. Deixe estar que desta feita nós também vamos entrar nesta peleja? - Muito bem Geremias. Como eles estão achando que eu morri então se vamos nos valer desta situação. Mais tarde lá pro meio dia eles virão aqui; só que vamos esperar por eles, prontos pra lhe dar aquilo que eles merecem; vamos ajeitar a casa de modo a dar a impressão que tudo está normal, que vocês fugiram e a casa está deserta e que eles vão conseguir o que querem, depois é só agarrar aquela raposa pelo rabo. - De fato. Sua menina tem razão. Desta feita nós vamos ajudar. Vamos preparar a casa a dar a impressão que ela foi abandonada, deixando todas as portas e janelas escancaradas, para que eles pensem que seu Pedro partiu mais nós conforme vosmecê falou dona Luzia, aí, eu e a maioria dos homens vamos nos esconder por trás de cada abertura ou brecha que se possa ter pra fazer fogo naquele maldito. - Muito bom Geremias. Então se apresse o que tem de ser feito que já não tarda pra gente fazer aquele homem pagar por esta maldade. O corpo de Rosa, dali já foi levado para a casa de Geremias. Pedro, este dormia profundamente sobre os efeitos das ervas de Alvara Graça, enquanto a peãozada, em número de cinco, todos de idade avançada, sem condições para uma luta campal, mais talhados para emboscadas, buscavam suas posições pelo casarão. Luzia velava Pedro esperando este se acordar antes da chegada de Bernardo a fim de colocá-lo a par de suas estratégias de luta. O que de fato não demorou a acontecer, perto das onze horas Pedro se pôs de pé e já acordou perguntando para sua companheira. - Pronta pra brigar Luzia? – esta abriu um largo sorriso e explicitou ao seu benfeitor o que estava por advir, causando a explicação em Pedro uma gigantesca esperança de vingar-se da cria de Horácio Bento. ... A hora restante foi passando demorada, pois cada minuto era contado pelos homens na espreita e exatamente ao pingo do meio dia um grupo de sete homens surgiu na distância cavalgando em direção a casa de Pedro Batista, vinham cautelosos, em galope curto a espiarem por todos os lados. Todavia, à medida que se aproximavam da casa suas precauções diminuíam a ponto de chegarem ao frontispício da casa principal totalmente relaxados em suas guardas. Bernardo Bento, já se sentia senhor daquelas terras, foi o primeiro a descer de seu animal sendo seguido por dois de seus sectários que apearam junto dele. Um ao lado do mancebo alertou.

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- Não lho disse Patrão que sem a pistoleira Pedro ia dar com os bodes na água – aquele completou a frase soltando uma desdenhosa gargalhada. A frase soou enchendo o ego do jovem latifundiário, já aqui, todos os demais ainda nas celas de seus cavalos se arrumavam para descer de seus animais. - É! Parece que ele saiu apressado, deixou até a casa aberta – concordou Bernardo a gargalhar também com ares de deboche. Dentro da casa, ao sinal de Luzia, os agricultores soergueram-se de suas posições a disparar no grupo de recém chegados, no exato momento que o descendente de Horácio terminara sua frase. O chumbo dos projeteis de sete rifles varreram o pequeno espaço de distância a vir encontrar-se com os corpos daqueles no terreiro da casa. Bernardo Bento com aquele posicionado ao seu lado levou sorte da primeira varredura de balas sendo atingidos de raspões, outros quatro, tombaram ali mesmo sem a menor chance de defesa, varados pelos tiros dos vingadores de Rosa. Que acionavam alimentando e disparando suas armas naqueles de fora, Bernardo, sentiu um impacto no ombro e foi atirado de lado, ficando quase na esquina da casa, o que lhe proporcionou arrastar-se distanciando dos balaços a levantar pó no chão bem perto dele. O capanga que estivera ao seu lado conseguiu atingir o frontispício da casa e sacando de um revólver, já que seu rifle ficara na sela do animal, limitou-se a efetuar três disparos na direção da porta principal da casa, ali estavam Pedro e Luzia que não chegaram a ser atingidos. O outro jagunço remanescente da primeira carga de tiros caiu ao solo junto com seu cavalo, morto por uma bala na cabeça. Fazendo do animal seu escudo, abriu fogo nas três janelas frontais da casa grande. Não acertou em ninguém, mas conteve temporariamente a fúria dos tiros em sua direção. Nas laterais do casarão, havia muitas janelas, porém só uma de cada lado estava guarnecida por um agricultor em seu interior, isto facilitou com que Bernardo Bento, conseguisse se embuçar, e dali fugir por dentro do cerrado em desabalada carreira. Aquele escorado no parapeito tentou escorregar buscando atingir uma das laterais da casa para adentrar também no mato. Luzia deixando sua posição veio para a janela do lado esquerdo aonde se encontrava Geremias, foi o lado que o meliante surgiu de revólver na mão tentando buscar o mato. Dois disparos acertaram seu corpo quando ele partia convicto de sair dali; os projeteis o fizeram parar instantaneamente, como se este tivesse barruado em algo invisível; rodopiando sobre os calcanhares, estendeu-se levantando poeira no solo. No frontispício da casa, quatro armas disparavam naquele por trás do cavalo, e acaso uma das balas acertou na mão do peão fazendo-o largar seu rifle e gritar amedrontado. Com o impacto do projétil, o homem moveu o braço para trás fazendo-o erguer-se só por uma fração de segundos além dos contornos de seu animal morto. Ali um projétil acertou-lhe no antebraço quebrando-o. Tomado de pânico, este segurou o braço, virou-se de costas e fez impulso para correr dali. Homem algum Jamais pôde correr mais que uma bala; imagine escapar de quatro! Mal este tombou ao solo, os defensores da laguna sem nenhuma baixa deixaram suas posições. Luzia saltou apressada e correr até a parte traseira da casa, de lá veio montada em

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seu cavalo pronta para ir buscar Bernardo Bento, vivo ou morto. Passando na frente do casarão estancou seu cavalo diante de seu patrão. - Pedro! Vá cuidar do funeral de Rosa, que eu me encarrego de pegar aquele bastardo – avisou para sair em desenfreado galope. O Batista ficou a observá-la com seus empregados. - Que mulher! Daria uma boa esposa para Pedro Junior – comentou admirado a assisti-la sumir na corrida. Bernardo Bento cobrira toda extensão da laguna dos Batistas até sua residência a pé, vinha assanhado, sem chapéu, assustado a olhar para trás, dava a impressão de estar sendo seguido pelo sobrenatural. Só sentiu-se mais aliviado ao adentrar seus domínios, conseguindo chegar a sua casa perto do sol se por. Ali amaldiçoou a hora em que resolvera peitar Pedro Batista, passando por cima dos ensinamentos de seu pai. Preso a estas idéias adentrou sua casa louco por um bom copo de água e um bom banho. Com Pedro resolveria outro dia, tinha dinheiro e contratar gente para tal fim seria facílimo – pensou. Mal fechou a porta atrás de si, sentiu um calafrio infernal invadir o seu corpo ao reconhecer aquela voz atrás de si, que dizia. - Levante as mãos Bernardo, não tente nada ou morre aqui. Aquela voz para ele era endiabrada, inconfundível – Você! - Eu mesma. Cheguei aqui já faz um bom tempo. Vim só buscá-lo. - Será possível! Mais como? Vá se danar sua megera... Você não Mor... O coice de um fuzil o derrubou deixando-o meio grogue sem completar a frase. Então Luzia aproveitou para amarrar-lhe as mãos e quando este pôde caminhar o escoltou até uma segunda montaria, adquirida de quando ao chegar naquele lugar. Depois foi só cavalgar de volta a laguna dos Batistas trazendo Bernardo Bento preso para ser entregue nas mãos de Pedro Batista. Já era noite fechada quando aportou na fazenda com seu prisioneiro. Ao atingir o pátio, palco da emboscada, estancou na traseira do cavaleiro para empurrar com o solado da bota o corpo do aprisionado. Mediante esta ação sofrida o homem arriou, estatelando-se no solo em uma desagradável queda passando a gemer de dores e soltar impropérios contra sua captora. Neste instante Pedro Batista, Geremias e dois outros agregados da fazenda vieram ao encontro de Luzia. - Este Homem é o responsável direto pela morte de Rosa – explicou aos seus segurando Bernardo pelo braço como a decretar uma sentença sobre aquele indivíduo. – Geremias traga-me uma cadeira até aqui - ordenou ao seu homem de confiança para logo ser atendido. Nesta cadeira, Bernardo foi inquirido sentado no terreiro do casarão. - Não Me mate Pedro! Pelo amor de Deus não me mate: em nome da amizade que você tinha a meu pai – implorou por sua vida Bernardo Bento ao sentir o peso dos olhos do Batista sobre ele. - Luzia, Geremias, Evilásio, Quinco! Vão para dentro. Rezem para Rosa esta noite que amanhã a enterraremos. Por enquanto converso só eu com este moço – foi à resposta de Pedro enquanto Bernardo continuava a clamar por sua vida.

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Imediatamente aquelas pessoas obedeceram ao Batista, deixando-o sozinho com o amarrado. Luzia compreendera que só a Pedro cabia o perdão ou morte para Bernardo, por isso foi a primeira a si conduzir para dentro da casa seguido pelos demais. A sós, Pedro o olhou de frente fixo nos olhos - Eu lhe Pedi. Vou dizer neste instante!. Pedi. Até roguei para que você mim deixasse em paz. Mas não! Nada adiantou. Você tinha que deixar a ganância por minhas terras falar mais alto e até matar minha Rosa. - Eu não sabia. Pensei que quem tivesse sido morta fosse aquela cobra que está aqui com você. Não Rosa – tentou se desculpar. - É! Mais agora é tarde. Tanto que eu pedi a você. Sentindo sua miséria Bernardo baixou a cabeça e começou a chorar, implorando – Não me mate Pedro! Não me mate – Pedro continuou. - Eu pedi a você para nos deixar em paz; pedi em nome do seu pai e você não me ouviu. Nada adiantou: perdi minha mulher e se não é esta moça até eu você já teria matado. Porque não nos deixou em paz quando pôde? Bernardo Bento ergueu os olhos aterrorizados ao ver Pedro Batista, sacar um canivete da cintura e caminhar para junto dele a falar baixinho – “tanto que eu lhe pedi”. - Não! Pelo amor de Deus – ainda gritou o amarrado. Junto deste, Pedro o segurou pelos cabelos erguendo sua cabeça, e, num movimento lateral de lado a lado passou com força o gume de sua navalha no pescoço do mancebo talhando-lhe a veia jugular em profundo golpe, explicando. - Vou dizer neste instante! Agora é tarde, muito tarde, para se voltar atrás. Bernardo Bento emitiu um urro animal, porém nenhum som humano saiu de sua boca. Entrou em convulsão seguida de espasmos que fizeram a cadeira virar ficando a se sacudir no terreiro por alguns instantes, igual a uma ave abatida, enquanto a vida fiava de suas entranhas e seu sangue mesclava a terra que um dia ambicionou ser sua. Pedro alheio à cena o acompanhava enquanto mais e mais os movimentos no corpo do homem sumiam em sinal que a morte chegara para Bernardo Bento. Agora, lágrimas caiam pelos olhos do pioneiro, naquele momento: por ele, por Rosa, por Horácio... - “Sinto muito amigo Horácio; não podia perdoar seu filho, ele certamente me mataria na primeira oportunidade” – pensou, olhando para o céu. - “Perdoe-me Rosa, por esta ação; mais ela tinha que ser feita” – raciocinou para adentrar em sua casa, deixando no pátio o corpo de Bernardo Bento, morto, inquirido numa cadeira caído no solo. ... Cinco dias depois. Uma charrete puxada por um belo animal chegava à Laguna estacionando na frente da casa grande. Dela, desceu um moço taludo, cheio de vida, cuja semelhança lembrava Rosa Batista. Foi o que percebeu Luzia Quitéria com a chegada de Pedro Junior. A noticia dos últimos acontecimentos encheram de tristeza e revolta o coração do rapaz que decidido resolveu não mais voltar a capital, no que Pedro a princípio não quis, mais acabou aceitando. Luzia Quitéria, simpatizando com o moço e vendo o interesse de

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Pedro em uni-los resolveu dar um tempo deixando a fazenda para decidir se era isto mesmo que queria ou não à sua vida. Afinal a única experiência que tivera com um homem a atormentava demasiadamente; precisaria de mais tempo para vencer aquele obstáculo, e assim: a contragosto do próprio Pedro Junior, que também passou a demonstrar afeto por ela, partiu, quando já seu nome ganhava fama como mulher de fibra.

LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

De Wanderley da Silva Marques

Capítulo III

O nome virou lenda. Sua história, esta, continuou a propagar-se pelos rincões. Sua

saga era o néctar que os pobres tomavam na esperança de dias melhores; os tempestuosos Coronéis balançavam suas cabeças em desaprovação a certas atitudes da mulher de fibra. Ora seus causos eram narrados a não fugir da realidade. Noutros momentos, o exacerbo

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dominava a mente do loroteiro que a ficticiava em proporções gigantescas; de fato o que ninguém desejava, era por se no caminho daquela intrépida mulher. Galopando silenciosa na sela de seu bagual, a rapariga seguia procurando não pensar nos Batistas – “Cada coisa há seu tempo” - Os trajes de homem que passara a usar, lhe caia bem, adornando a beleza de seu corpo fenomenal. Portava um chapéu preto de abas largas a fazer sombra em sua face, preso por baixo do pescoço num barbicacho da mesma cor. Sobre os ombros, pendia a adornar a camisa um lenço vermelho, objeto usado para cobrir o rosto quando enfrentava a poeira das estradas. A camisa era de mangas compridas de cor azul. A calça preta destacava suas formas intimas; tendo os pés calçados nas famosas botas cano longo cor de vinho; indumentárias que destacavam àquela mulher de qualquer outra pessoa que você conhecesse. Usava preso na cintura por um cinturão na parte da frente, um revolver Smith. Cortando o dorso de seu corpo uma cartucheira carregada de balas do rifle cruzeta, que geralmente estava pendente em sua mão, do lado esquerdo da sua linha de cintura pendia uma adaga belíssima com uma jóia encravada no cabo, presente de Pedro Junior. Sua imagem e destreza não eram menos atenciosas que o seu nome fluente no linguajar popular, tudo, graças ao aspecto de sua nova figura. Passou–se a manhã, entrou à tarde que também sumiu; o sol declinou em seu crepúsculo e veio à noite, Luzia, cansada, estancou seu animal abaixo de uma figueira entre outras árvores a se estenderem pela pradaria, ao ouvir atenta os sons dos pequenos animais em seu habitat natural. Ali apeou sua montaria, retirou os apetrechos do cavalo para dentro de pouco dormir ressonando, mergulhada na terra dos sonhos. Correu a primeira semana da sua saída da laguna dos Batistas, até ali nada de anormal lhe despertara a atenção, seguia sua caminhada sem destino, “uma vez que não decidira o que fazer de sua vida” Cruzou um povoado na tarde do dia seguinte, terra que não tivera estado antes e seguiu galope sem vontade de reter-se por cá. Passando adiante dois quilômetros aproximadamente, divisou um corpo de um homem caído de bruços, na beira do caminho, há alguns metros de sua dianteira. Esporeando o baio acercou-se do desconhecido, que deixava aparecer na altura das costas uma enorme mancha de sangue a embeber-lhe as vestes. Saltando ao terreno, conseguiu desvirar o ferido, constatando que ainda vivia, “embora que por pouco tempo”, pois também na parte da frente, no tórax daquele estranho havia sangue e perfurações, certamente de balas. O estado do forasteiro era o pior possível e mesmo nas ânsias da morte, procurou dizer algo, no que conseguiu apenas balbuciar e segurar com força a mão de Luzia Quitéria, buscando em um esforço sobre comum, levar a mão da mulher até seu bolso; sendo compreendido pela bandoleira, ela sacou dali, um pequeno pedaço de papel, no exato instante em que o moribundo exalava seu último suspiro. No papel, escrito a mão continha o nome de uma pessoa, o que fez Luzia guardar com cuidado aquela escrita. Lamentando não poder enterrar o falecido, voltou a galgar a sela de seu cavalo retornando imediatamente para o arraial deixado atrás de si. No povoado, despertou a curiosidade dos passantes que a observavam estupefatos; não deixou de perceber alguém exclamar “Será a pistoleira?” sem importar-se com os

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comentários, dirigiu sua montaria a uma pousada no início da pequena ruela de sete, oito casas, aonde no frontispício da fachada do ambiente destacava-se em letras grandes o nome “A Quitanda”. O ponto era um mesclar de dormitório com empório, foi o que percebeu a rapariga assim que adentrou no local. - Boas tardes senhor - saudou com cortesia o comerciante que estava de cabeça baixa a traquinar em alguns objetos sobre um balcão de madeiras. Este ergueu a cabeça para responder ao cumprimento, e sobressaltou-se a assistir aquela mulher em seu recinto. - Boa! Boa tarde, moça – respondeu com a voz tremula. Luzia foi direto ao assunto, não dando tempo ao comerciário de fazer-lhe qualquer pergunta – Arranje-me um quarto para dormir, e se possível, durante os dias que ficar por cá, gostaria de cear por aqui. Pode ser? O proprietário do recinto, um homem, baixo, gordíssimo, de rosto comprido, abochechado, meio moreno, sobrancelhas largas, nariz arredondado, lábios grossos, calvo, óculos arredondados sobre o massento nariz, olhos azuis, a puxar de uma perna; abriu um largo sorriso, deixando a mostrar uma perfeita dentadura. - Assim será minha filha. Minha mulher Joana, irá preparar todos os dias a sua refeição – respostou entregando a forasteira uma chave a indicar-lhe o quarto. O ambiente compunha-se de um só cômodo, separado pelo balcão. A direita de onde estava o gordo, havia uma passagem que dava acesso ao segundo cômodo do empório e ali ficavam os quartos. Sempre sorridente, o homem que se chamava Vicente Pezinho, abriu uma meia porta no móvel deixando a moça entrar para conhecer seu local de repouso. Não havia outros hospedes naqueles dias e o fato de que para chegar ao quarto alguém teria que passar pelo vendeiro causou em Luzia Quitéria uma impressão de segurança para quem se hospedasse na Quitanda. “Ainda” - pensou “Poderia ser aquela forma, apenas uma maneira de fazer com que nenhum hospede aplicasse um calote ao partir da hospedaria” Sorrindo, caminhou até o seu quarto o de número sete e antes de desaparecer pela minúscula porta traseira, avisou ao vendedor. - Mande alguém desencilhar e dar um bom banho no meu cavalo, além de uma farta refeição. - Assim será feito – respondeu subserviente Vicente Pezinho, a recolher algumas moedas entregues pela hospede. Quando está adentrou ficou a sorrir ditoso confabulando com sua banha. - “Será que é A pistoleira? Se for! Logo minha casa vai ganhar notoriedade. Isso é muito bom para o meu negócio que esta carecendo” – confabulou em mente a abrir um gigantesco sorriso indo cumprir com a ordem de sua inquilina. ... Mais tarde, hora da ceia, Luzia voltou de seu quarto e dirigiu-se a um cômodo indicado pelo gordo, destinado a refeições; ali chamou a sua atenção uma senhora negra, de sorriso aberto e expressões cativantes, com esta travou ligeira prosa e quando se sentiu à vontade, adentrou no assunto que lhe trouxera aquele lugar. Do corpo encontrado nada disse,

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mais ficou sabendo por Joana, que este já havia sido encontrado e que alguns homens da vila já haviam se encarregado de sepultar o desconhecido, uma vez que não era daquela região. - Joana, por obsequio. Você pode me dizer como faço para achar uma pessoa que saiba ler e que guarde segredo do que vou lhe mostrar. - Aqui no arraial a única pessoa que sabe ler é Vicente, e sendo vosmecê que quer seu silêncio, tenho certeza minha filha que ele não dirá nada a ninguém. - Então se chame ele a cá Joana, e pode vir também; pode ser que juntos possamos entender um quebra cabeças que está mim incomodando. A preta saiu a chamar seu marido que logo retornou com um sorriso maior do que o de costume. Nas casa as pessoas que viram Luzia chegar já estavam abater com a língua nos dentes criando situações para aquela morte e o repentino aparecimento da pistoleira. - O que vosmecê quer de mim Dona menina? Perguntou subserviente. - Pode me chamar só de Luzia seu Vicente; afinal tenho idade de ser sua filha e os boatos que esta gente espalha a meu respeito, nem tudo é verdade. - Sim, certamente; Dona, digo: Luzia. - Veja este papel que achei no bolso daquele homem encontrado morto pelo povo da vila. O fato é que antes de mais alguém quando passei hoje à tarde por aqui, esbarrei casualmente com ele, já ferido e moribundo, quis socorrê-lo! Porém como ele estava muito fraco e ferido não foi possível, contudo ele me entregou este papel com esta escrita. Como eu não sei ler e curiosa pra descobrir do que se trata, além do fato que detesto injustiças, decidi retornar e investigar o caso – Explicou para surpresa do casal, tendo Vicente pegado o papel a observar o que estava escrito nele. Olhando demoradamente, foi juntando letra por letra o que ali continha para expressar sem nada entender. - E então seu Vicente – perguntou Luzia. - Só há um nome aqui. - Mais de quem homem de Deus? – desta feita foi Joana quem falou. - É de Luiz Domingo – respondeu finalmente. - Mais quem é Luiz Domingo? Fale-me dele seu Vicente – pediu Luzia a esperar a narrativa do vendeiro. Pigarreando, como quem a buscar saliva, o velho acomodou-se em uma cadeira a assistir Luzia jantando, após sentir-se a vontade abriu o verbo... - Luiz Domingos é um pequeno agricultor que mora há uns quatro quilômetros do arraial, na direção sul; sua fazenda chama-se jatobá, e é vizinho de um outro fazendeiro nas mesmas proporções que ele, que certo dia aqui na minha quitanda, de quando bebericavam juntos desentenderam-se e saíram às tapas por causa de umas reses que haviam atravessado as cercas que separavam as fazendas. Sendo as reses do outro homem, o senhor Aparecido Mocó, o vizinho. Luiz quando conversava com ele pediu para o outro ter mais cuidado com seus animais e as cercas a fim de evitar prejuízos no seu plantio de milho. Mocó, meio alto, soltou uma pilhéria que Luiz não aceitou e daí começou a querela. Soube depois do próprio Domingo que as reses de Aparecido continuavam a passar da fazenda dele para a sua, e que

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já havia ele mesmo rebanhado algumas indo deixar de voltar nas terras do vizinho, solicitando inclusive a Aparecido que ordenasse a seus empregados para ter mais cuidado com as cercas que separavam suas terras; no que foi mal recebido pelo outro e teve que ouvir uma série de impropérios, sendo inclusive tocado pra fora das terras do seu ex-amigo. Contudo, avisou a Aparecido que doravante qualquer rês daquela propriedade que lhe causasse prejuízo ou seria ressarcido ou as abateria a tiros, tantas quanto entrassem em seus domínios. Afinal, não era homem de brigas, mas também não era de levar desaforo pra casa; ainda mais daquela maneira. Neste instante Luzia ergueu a cabeça afastando o prato de comida de perto de si - E isto aconteceu seu Vicente? - indagou. - Sim. Alguns dias depois, quatro reses adentraram nas terras de Domingos, inclusive no milharal, o homem mais uma vez rebanhou o gado e mandou um agregado seu levar os animais de volta as terras do Mocó. E quando este regressou de lá, voltou pedindo ao patrão para eles mesmos arrumarem a cerca a fim de evitar brigas, pois só não apanhara do capataz de Aparecido, por que não deu o menor pio ao devolver o gado – neste ponto Vicente fez uma pausa para prosseguir. Luzia o observou atenta presa à estória – de acordo, Domingo e seus homens levantaram a cerca. Passando uma semana sem ter problemas com o gado do vizinho. Mais só uma semana. No oitavo dia, seis reses apareceram no milharal de Domingos e aí este não contou conversa: abateu todas, a tiros de arma de fogo. - Mais se a cerca estava de pé. Como estas reses surgiram? - perguntou Luzia Quitéria. - Já lhe conto – disse o velho erguendo a mão a criar um clima de espera - resumindo, as cercas estão sendo derrubadas possivelmente por gente de Aparecido, segundo me disse Luiz. Com qual o intento nem ele mesmo sabe. Afinal se alguém não tivesse derrubando as cercas de que outro jeito elas apareciam nas terras da Jatobá? Domingo até acha que Aparecido está mandando derrubar as cercas com o pretexto de começar uma briga. - Que coisa estranha! – exclamou Luzia – estes dois homens a ponto de se matarem por uma coisa fácil de resolver e eles não se entendem. É verdade minha filha. Mais não é pela parte de Luiz Domingo, pois eu o conheço e ele é homem de paz. - E Aparecido seu Vicente? – quis saber Luzia. - Também é homem de paz. Mim é estranho esta atitude dele - finalizou o gordo comerciante. Erguendo os olhos para o teto da casa, Luzia Quitéria franziu o cenho a buscar respostas para aquele enigma - E agora com este corpo e este papel é que as coisas complicam. Mais quer saber de uma coisa! – Vicente e Joana entreolharam-se para depois olhar para a hospede – Vou tomar pé nesta estória e saber o que está acontecendo. Só peço a vocês pra ficarem de bico calado – concluiu. - Por mim tudo bem – respostou Vicente Pezinho

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Joana apenas fez um gesto com a mão, como quem a cingir os lábios num sinal de que era um tumulo e isto foi o suficiente à forasteira. ... Na propriedade de Aparecido, naquela hora, um dos seus agregados vindos do arraial chegou contando a noticia de que haviam encontrado um corpo assassinado a tiros na estrada que levava aquelas terras, e que este corpo estava para de ser enterrado, não sabendo dizer o dia e a hora, só que seria no campo Santo do arraial; ainda confirmou de uns boatos que Luzia Quitéria “a pistoleira”, estava hospedada na vila. O velho fazendeiro bufou de raiva com aquela notícia e imediatamente mandou chamar seu capataz para uma conversa. O mesmo que trouxe a notícia foi quem foi chamar o encarregado da fazenda. Meia hora depois, um homem, alto, pele parda, cabelos amarelados, rosto curtido ao sol, olhos pretos, cabeça chata, trajando-se a vaqueiro, caminhou cortando os metros de distância que separavam sua vivenda para a de Aparecido Mocó. Já chegou falando. - Pronto seu Aparecido! Cá estou eu e já estou sabendo dos últimos ocorridos, por relato de Tiquinho. Sentado numa grande cadeira, na sala principal da casa grande, o fazendeiro mandou seu capataz tomar chegada – Mais se já sabe do que está acontecendo o que pretende fazer? - Dar um jeito em tudo. Não se preocupe seu Aparecido. Ta tudo sobre controle. - Controle! Mais que controle? Já imaginou se este homem que acharam morto for o cabra que você mandou chamar aqui. Isto indica que Domingo também contratou alguém para me matar e certamente só pode ser esta tal de Luzia Quitéria. O Capataz sorriu ao ouvir o nome da pistoleira - Se aperreie não seu Aparecido. Ainda não nasceu à mulher que vai meter medo em Dão do Espinheiro e pode até ser que a coisa não seja como o senhor estar pensando. - É! Pode ser? Mais então se descubra sobre isto. ... Uma figura belíssima cavalgava naquela manhã rumo à fazenda jatobá. Confabulava lá com seus botões a pensar em Luiz Domingo. Adquirira um enorme respeito pela atitude do fazendeiro quando este se sentiu acuado; Domingos aparentava ter sido forjado da mesma matéria que ela fora talhada. Além do que: odiava injustiças e a tirania era para ela algo insuportável. Cavalgava tão absorta em seus pensamentos que não deu conta de ter chegado ao seu destino; só despertando para o fato ao perceber uma criança seminua, suja de terra, barrigudo, a olhar para ela com cara de espanto defronte a um casarão antigo a estender-se diante de seus olhos, cercado por algumas árvores típicas da região. Parou seu bagual junto a uma destas e desceu, apeando-o ao tronco da mesma. Neste entretempo o moleque saiu correndo e a visitante galgou os cinco degraus que davam acesso à porta principal do casarão. Ali bateu palmas, entoando o prefixo de chegada. - Salve. Oh de casa! - Oh de fora, já vai – respostou uma voz feminina, arrastada.

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Meio minuto depois, surgiu a porta uma senhora de aparentemente sessenta anos de idade, fisionomia marcada pela vida dura do campo, pele enrugada, morena, cabelos desgrenhados, um pouco alvo, dentadura falha, sorriso largo, roupas típicas a segurar uma galinha abatida nas mãos. - Pois não minha filha! Entre. Do que deseja tratar? – perguntou convidando a estranha, a dona das terras, esposa de Domingos, abrindo a porta para a visitante. Luzia olhou lhe defronte e falou mansamente. - Dona? ... – perguntou a esperar. - Mil perdões! .Neta Moreno e a sua graça é? – falou esta outra. - Luzia Quitéria. Ao ouvir aquele nome a agricultora alterou a sua fisionomia demonstrando medo. Luzia adiantou. - Não se apoquente Dona Neta. Venho em paz e só quero cavacar com seu marido; quem sabe até prestar um favor, ajudando-lhe – com esta explicação à sertaneja recobrou sua cor. Afinal ela também já ouvira muitas vezes falar em Luzia Quitéria “a pistoleira”. - Coitado do Luiz! Vem se desentendo com o vizinho e estou vendo a hora algo mais sério acontecer a nós – confidenciou está à sua visita. Percebendo o receio da outra, Luzia tratou da acalmá-la. - Tenha paciência que tudo se resolverá da melhor maneira possível. Depois de conversar com seu marido vou fazer o mesmo com seu vizinho, e se ele não quiser a paz, não vai ter que enfrentar apenas ao seu esposo, terá que me enfrentar também. - Oh dona Luzia! Que notícia boa. É tudo que eu quero paz entre estes homens. A cavaqueira prosseguiu por mais alguns minutos. Foi o tempo que Luiz Domingos surgiu a porta de sua casa, tendo observado ao passar no terreiro o animal apeado em seus domínios. Antes de dizer qualquer coisa, sua consorte já foi explicando. - Luiz, esta moça é Luzia Quitéria. Ela esta aqui para prosear com vosmecê. O fazendeiro olhou admirado e surpreso para sua visitante, abrindo um largo sorriso sentou-se à frente da moça. - Mais se a senhorinha é muito mais moça do que eu imaginava! – exclamou admirado para prosseguir – Mais se vosmecê tem algo a me dizer, fique a vontade. Pode desembuchar. Neta solicitou licença a ambos e retornou a cozinha prometendo passar um café, deixando com isto seu esposo bem mais à vontade. Também tinha que terminar de prepara aquela galinha. - Bem seu Luiz! Vosmecê não mim conhecia até hoje, e pode estar até achando estranha minha aparição por cá, mais o fato é que... Ao ouvir o relato, Luiz Domingos levantou-se de sua cadeira; tirou o chapéu da cabeça, coçou-a. Preocupado andou de um lado para outro e por fim falou - Moça. Sou-lhe muito grato por sua ajuda. E não saberia como pagá-la se vosmecê conseguisse por um ponto final nesta estória sem derramamento de sangue.

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- É o que eu pretendo Luiz; é o que pretendo. Continuaram conversando até chegar a um acordo para por um ponto final naquela querela. Como o sol atravessou o meio de seu caminho, Luzia almoçou em companhia dos dois roceiros; e saciada, ganhou a estrada, desta vez rumo à fazenda de Aparecido Mocó. Na sela de seu animal, voltou a pensar nas voltas que a vida estava lhe proporcionando. Fizera justiça a sua honra, a Pedro Batista e estava agora para contornar uma briga de vizinhos, simplesmente pelo fato de condoer-se da penúria dos outros. À tardinha, aportou em seu propósito. A fazenda ali era mais movimentada, havia grande número de agregados e a lida diária parecia ser com gado, visto o grande curral perto da casa grande. Ao cavalgar para atingir este ponto, alguns vaqueiros, estacaram suas labutas e passaram a acompanhar a chegada daquela estranha figura. Alguém alertou para outro e Luzia ouviu bem o que dissera aquele homem. - “É ela, a pistoleira” – Não se importou com o comentário e prosseguiu em frente. Na casa grande, toda alpendrada, estendia-se depois do telheiro, uma larga calçada, e nela se encontrava um homem de meia idade fazendo-se acompanhar de dois outros fortemente armados. Todos passaram a acompanhar com a atenção os movimentos da visitante. Quando esta se ladeou dos mesmos, um deles, o dono das terras, Aparecido Mocó, antecipou-se aos seus agregados. - Salve – cumprimentou para convidar – vamos descer dona menina. Fique a vontade. Sua graça? - compreendendo que aquele homem gostaria de ter certeza de que ela era quem era, respondeu. - Luzia Quitéria, as suas ordens – O homem pareceu gostar da resposta de sua visita. Por sua vez, Luzia parou seu animal saltando para o pátio; o terceiro homem dos três ali parados veio até ela, segurou os arreios do animal e saiu para amarrá-lo. Na seqüência, Aparecido convidou-a a entrar em sua casa. Acomodados, Aparecido demonstrou a peculiar gentileza dos nordestinos. - Dão, vá até a cozinha e avise pra Anelita passar um café bem quente e depois trazer aqui com uns *manzapes. E a propósito, não retorne até eu chamar, quero conversar com a moça sozinho. -Tem certeza patrão – contestou o capataz da fazenda. Luzia mediu aquele de alto a baixo enquanto Aparecido respondia. - Absoluta homem – mal o fazendeiro terminou a frase o vaqueiro saiu deixando claro seu contra gosto na ordem do patrão. Acaso esta ação veio favorecer aos planos de luzia Quitéria; por uma estranha razão não simpatizará com o capataz de nome Dão. - E então! O que a trás em minhas terras Luzia Quitéria? - Na verdade – começou – o que me fez vir aqui, foi o desejo de ver algo que eu acredito muito e defendo acontecer sempre nas minhas andanças entre dois homens – neste ponto o fazendeiro a olhou atentamente e Luzia prosseguiu – Justiça; Justiça sim. Deve haver uma forma de você e seu vizinho se entenderem dentro dela, sem que haja derramamento de sangue.

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Ao ouvir a nova o fazendeiro levantou-se; coçou a barba e expressou com insigne firmeza. - Por esta eu não esperava. Mais olhe moça! Tudo pode ser ajeitado desde que Domingos me pague as reses que abateu e conserte as cercas de sua alçada. Afinal: segundo relato de meu capataz às cercas que estavam caídas era da responsabilidade dele, não minha. Assim, ao invés dele consertá-las ele queria era que eu fizesse o que é da obrigação dele. Ao ouvir esta explicação Luzia entendeu surgir um modo de concertar aquele enredo e estranhou que uma picuinha tão pequena pudesse ter chegado aquele ponto. Por isso indagou curiosa. - Seu Aparecido. O senhor constatou mesmo que as cercas eram de responsabilidade do Domingo? – O homem parou reflexivo. - Pra lhe dizer a verdade não fui averiguar. Fiei-me por meu capataz. Mas não eram da responsabilidade dele? - Domingo me garantiu que não. Com esta afirmação, Aparecido parou a mergulhar em pensamentos, confabulando consigo mesmo. - “De fato, eu não atentei para isso, apenas me fiei nas palavras de Dão. Mais será que elas eram de minha alçada? Não! Não pode ser. E se forem?... Então, Dão mentiu. Mais para que? O que será que ele ganharia com isso? E o cabra que ele arrumou pra tocaiar o Domingos está morto. Agora surge essa pistoleira. Se ela fosse contratada do Domingos, não estava aqui... Diabos o que está havendo? Não estou entendo mais nada. Tudo é um quebra cabeças. O remédio mesmo é confiar nesta mulher, desconfiando. Saber quem matou o homem que mandei buscar. Ver se Domingos está disposto a reparar meu prejuízo. Averiguar as cercas... Enfim, botar tudo em pratos limpos. E saber qual é o jogo de Dão” Concluiu com a cachola fervendo pelo rumo que aquela estória tomara. Também por que sabia que como ele o Domingo não era homem de dizer mentiras. - Menina – iniciou após a pausa – Diga pro Luiz Domingo ir ao vilarejo sábado à tarde, lá conversaremos na quitanda de Vicente Pezinho e quem sabe poderemos botar um ponto final nessa peleja antes que seja tarde demais. Satisfeita pelo rumo que dera aquela querela Luzia sorriu vitoriosa. Contudo, Aparecido Mocó lhe fez uma solicitação pessoal. - Olhe Moça! Depois do que vosmecê me disse sendo chamado à razão para certos fatos, percebo algo podre nessa estória. Por isso guarde segredo para terceiros desta prosa que vou averiguar umas dúvidas e se tudo correr bem pode ser que um derramamento de sangue seja evitado. - Tem minha palavra – prometeu Luzia. Neste momento, Dão do Espinheiro que havia retornado da cozinha, adentrou no recinto criando um pretexto para ficar e ouvir a prosa. - Patrão – já chegou falando – Jacinto Alagoano e Dadá Bidois retornaram agora mesmo e mim trouxeram informações de que após inspecionarem nossas cercas constataram que estão todas firmes e de pé e que aquelas por onde o gado passou para as terras do vizinho foram consertadas. Que está tudo em ordem.

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Pela primeira vez há muito tempo, Aparecido Mocó fitou bem o seu capataz antes de responder e por uma estranha razão o homem baixou os olhos, “como gato desconfiado depois de uma traquinagem” fazendo com isso uma estranha desconfiança brotar em seu intimo. Mais nada disse. - Muito bem Dão! Sente-se, preciso conversar com você sobre alguns outros serviços da fazenda, já que terminei com nossa visita – expressou a constatar a cara de desolamento de seu agregado - Luzia Quitéria está convidada para jantar conosco – afirmou olhando ainda a estudar a face do homem que se esforçara em convencê-lo a eliminar o vizinho Domingo. Luzia continuava sentada à sala a encarar firmemente o homem chamado Dão do Espinheiro, este lhe causava arrepios. - Obrigado pelo convite mais não posso aceitar – explicou contradizendo o convite do fazendeiro - Mais por que Dona Luzia? Faço gosto em que ceie comigo – afirmou Mocó desta feita a voltar à vista para a visita. - Sei disto seu Aparecido. Mais realmente tenho que regressar agora mesmo - explicou a pistoleira, levantando-se de sua cadeira e dirigindo-se a saída da casa. Ao fazendeiro só restou segui-la até a porta. Cumprimentando-a se despedir. - Já que tem mesmo de ir. Até mais ver Dona Luzia. - Até mais ver. Dão por sua vez, permaneceu sentado a observar a partida da rapariga, a qual se fazia freqüentes menções naquelas brenhas, com sua partida, sorriu ditoso a explicar ao seu patrão. - Então se esta é a cabocla que atemoriza este povo. Pois olhe seu Aparecido! Pra mim ela é só mais uma qualquer – Nas palavras de seu agregado o fazendeiro compreendeu o quanto Espinheiro era dado a uma confusão; não havia percebido este detalhe anteriormente. Contudo, uma coisa era certa, não agiria com violência no caso com o Domingo até ter certeza absoluta de que a razão estava consigo. Lembrava-bem, que ao ser reclamado do causo das suas reses invadindo as terras de Luiz, antes mesmo dele procurá-lo, Dão preparou o terreno a fazer com que ele não desse crédito ao seu vizinho e nem ouvisse suas explanações. Só agora percebia este erro lamentável; entrementes procurou ganhar tempo para não levantar dúvidas incertas de Dão e ao mesmo tempo saber o que de verídico havia naquilo tudo. - Dão, já descobriu algo a respeito de quem matou aquele cabra encontrado morto? – Perguntou a sentar-se de frente com seu peão a estudar a resposta do outro. - Patrão, pra dizer a verdade ainda não; mais tenho certeza absoluta que foi alguém a mando do Domingo – Aparecido o fitou curioso. - Você tem certeza mesmo Dão? - Mais é claro patrão! Então quem haveria de ser? Até aposto minhas botas como foi essa tal de Luzia Quitéria. Aparecido Mocó contraiu a respiração baixando a cabeça para prosseguir.

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- Só uma coisa mim intriga nisto tudo – Ao ouvir esta frase Dão sobressaltou-se a temer por alguma coisa; o que percebeu Aparecido – Se foi ela. Como Luiz Domingos iria saber que tinha alguém vindo para pegá-lo? Compreendendo que não tinha como responder aquela pergunta, Dão do Espinheiro desconversou, fazendo levantar por parte de seu patrão, mais suspeitas contra ele. - Lá vou saber chefe. Deve desta tal de Luzia Quitéria também ser conhecida do cabra. Depois de saber que ele estava vindo a cá despachar o homem que lhe contratara eliminou ele ligeirinho, ligeirinho. Agora deve ter vindo aqui com intenção de conhecer o terreno pra depois lhe matar também e certamente a mando do seu vizinho. Afinal este povo que vive da quebra de milho trabalha pra quem lhe der mais. Ou aquela cabocla não lhe pediu dinheiro? Se não pode apostar que vai. O finado trabalhava deste jeito, procurando sempre ganhar mais. Vendo a resposta se avolumar sem conclusão óbvia Aparecido interrompeu o peão. - Tudo bem, tudo bem Dão. Mais antes dos ocorridos vosmecê me assegurou que aquele cabra era de confiança. Depois aparece morto. Surge essa Luzia Quitéria. Agora depois dos desacertos meus com o Domingos as cercas pararam de cair. Será – Perguntou o velho armando uma cilada pra descobrir o fio da meada naquela estória – que Domingo criou toda esta celeuma pra me matar e depois apossar-se dos meus bens? A esta indagação Dão do Espinheiro sorriu cheio de si. - Mais é claro seu Aparecido. Só pode ser. Que outro motivo haveria? Mais se preocupe não que eu mesmo vou dar fim a ele e aquela rapariga, logo, logo. Percebendo a apreensão no seu agregado, Aparecido procurou dar fim àquela prosa. - Tudo bem Dão. Só que deixe esta sua ação pra semana que vem; afinal pode haver também um outro pistoleiro rodando por aí, a mando dele, e a gente precisa saber disso. Concorda? - Concordo sim chefe. O senhor tem toda razão. Mais o que era mesmo que esta mulher queria do senhor. Quis descobrir o motivo da visita de Luzia o astucioso capataz. - Veio só me fazer uma proposta de trabalho. - Não lhe disse patrão que esta gente trabalha por quem lhe pagar mais. - É verdade. Você disse. Agora volte aos seus trabalhos que preciso averiguar umas contas. Encerrou a conversa ordenando para ser obedecido Aparecido Mocó. Com a saída da sala de Dão do Espinheiro, o fazendeiro ficou a matutar seriamente preocupado. Nascia em si a suspeita de que a intriga sua com Domingo fora armada. Não tinha herdeiros, era viúvo; a descendência de Domingo não era capaz de empreender a lida da roça. Também não existiam parentes daquele outro naquela região. Se ambos morressem suas terras ficariam a mercê de qualquer um...

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Batendo com os dedos da mão direita nos botões de seu jaleco, o homem continuou ali o resto da tarde a meditar sobre este causo. Quando caiu à noite, uma velha empregada da fazenda veio chamá-lo pra cear, o que ele dispensou e logo se recolheu a seus aposentos, a fim de trocar de roupas e tomar um bom banho. Talvez não pudesse esperar para sábado a prosa que necessitava ter com Luiz – “definiu temeroso por si mesmo” Dão do Espinheiro também se recolheu a sua vivenda e lá passou a meditar sobre os últimos fatos acontecidos na fazenda. “Será que o patrão desconfiou de alguma coisa? Não! Não teria como. Será que a paz seria restabelecida. Não! Não deixaria isto ocorrer. Maldito Zé Simplício! Se tivesse feito seu trabalho a estas horas ele já estaria nadando em dinheiro e bem longe dali. Mais não! Aquele bosta tinha que querer saber do seu interesse naquilo tudo. Tinha que querer mais do que o prometido, se não abriria o bico” Pensando em como tudo aconteceu, deitado em uma rede o Capataz recordou os fatos que o levaram ao encontro com o pistoleiro que ele baleara. “Zé, vinha cavalgando em um cavalo branco com uma enorme mecha preta na cara, foi isso o que logo percebeu diante da aproximação do bandoleiro. O esperava a sombra de uma grandiosa e secular baraúna, as margens da rodagem. Quando o homem chegou perto dele, desceu de sua montaria e abriu um largo sorriso”. - Bons ventos o tragam Zé Simplício. - Para nós dois Dão do Espinheiro, para nós dois – explicou o recém chegado desmontando de seu animal – E então! Qual é a parada que você está metido homem? Ele sorriu contente a apertar a mão do seu velho e conhecido matador de aluguel – A parada é quinze contos de réis. É o suficiente pra você? – respondeu com um largo sorriso. “Simplício, José Simplício de Oliveira, era um matador periculoso e cruel; entretanto, maior que sua vontade de matar era sua ganância por dinheiro. Logo ao ser chamado para derrubar alguém por quinze contos de réis, por seu não tão menos ganancioso amigo, sentiu que a tramóia era bem maior do que a simples morte de um agricultor e quis logo saber do se tratava”. - Ta pouco Dão. E acho bom tu dividir toda dinheirada que te foi oferecida meio a meio. Seja lá quanto for. E não adianta me enganar. Você sabe que quem tentou fazer isso comigo acabou espetado no gume do meu punhal. Não sabe? E sabe também que pela proposta de quinze contos, a coisa deve ser bem maior do que o que vosmecê me falou. O outro meneou a cabeça a sorrir, buscando acertar-se com o companheiro que mandara buscar. - É! Não se pode mentir pra você. Sei muito bem disso. Mais se lembre! Quando mandei te chamar, expliquei bem: quinze contos de réis. Até porque eu mesmo poderia ter feito o serviço. Zé Simplício sorriu a mostrar sua amarela dentadura, deixando escapar um brilho espectral de seus olhos. - Verdade. Tu disse mesmo. Mais são poucas às vezes que se pagam tão bem por um trabalho deste. E se tu não quis melar as mãos de sangue é porque a água ta acima da

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canela. Assim, deixe de frescura, não quero nem saber. Meio a meio é o meu acordo. Ou tu sabe que fico por aqui e quando a coisa começar eu abro o bico e vosmecê não vai sair tão limpo quanto quer ser – ameaçou voltando à sela de seu animal para prosseguir – E vamos tocar pra fazenda que cê trabalha, lá conversaremos nosso acerto. - Então se vamos – concordou Dão, caminhando para seu baio. “Sabia que Simplício era uma parada dura. Ele mesmo o temia, assim concordou aparentemente, fazendo o pistoleiro relaxar em sua guarda”. - É. Você é mesmo esperto Zé! Tem muito mais dinheiro em jogo; na fazenda agente chega a um acordo. Confiante em se fazer impor por ser quem era. Zé sorriu a esporear seu cavalo. Dão ao galgar a sela do seu fez o mesmo, a racionar ligeiramente. “Diabos! E agora esta? A coisa virou a esquerda. Só vejo um jeito pra mim livrar deste empecilho; depois penso em Domingo” Raciocinou emparelhando sua montaria ao de seu comparsa. Simplício, confiante em si, e que fizera seu camarada concordar com ele, esporeou seu animal primeiro. Bom cavalo, já saiu na frente da montaria de Dão; que só um pouco a retaguarda do outro, sacou seu revólver e disparou três vezes no costado de Zé Simplício. O Chumbo cortou as carnes do pistoleiro no meio do lombo. Com as duas primeiras picadas este apenas encolheu-se na sela de seu cavalo levando num ato de defesa a mão a sua arma. Contudo já era demasiadamente tarde, o terceiro projétil acertou-lhe a medula fazendo-o entrar em colapso. Sem força para movimentar-se, caiu emborcando para frente, seguindo a diante em galope seu cavalo, deixando-o quedado no terreno de cara pra cima. Chegando perto dele de revólver na mão, Espinheiro o fitou nos olhos a expressar, apontando-lhe a arma. - Sinto muito companheiro. Não queria que fosse assim – Zé Simplício paralisado pela ação das balas, sentindo a morte chegar apenas grunhiu num ato de raiva contra seu ex-companheiro. - Serpen...te dos Dia...bos... Tu... Vai... Não pôde concluir sua fala. Três novas detonações encheram o ambiente a fazer sair uma ligeira fumaça do cano da arma de Dão do Espinheiro; quando esta cessou Zé Simplício estava entrando no reino da morte. Viera ali para matar, porém acabou sucumbindo. Depois, seu assassino ligeiramente sumiu daquele lugar num galope acelerado, ciente de não ter sido visto por ninguém. Como de fato aconteceu. Passando a mão no rosto suado, ao lembrar da cena, balançou a cabeça procurando dormir e já pensando no dinheiro rapidamente lhe veio o sono. A Lua vagueava pelo céu; cheia, esplendida, a lançar sua luz rósea sobre a campina, a fazer por sua claridade avistar a alguém a distancia dentro da noite. O cavaleiro galopava preocupado a prender sua capa contra o corpo a proteger-se do frio crescente e do vento gélido a bater em sua face, passando naquele momento, alguns minutos da meia noite. O homem vinha atento a observar todos os possíveis pontos de uma tocaia. Saíra de casa as escondidas, nenhum dos seus agregados o vira escapulir para aquela jornada. Sozinho, sorriu

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amenizando sua tensão a avistar o destino de sua empreitada, a fazenda Jatobá. Ao atingir a área habitada da propriedade dirigiu seu cavalo à frente da casa grande e o fez de modo à que todos percebessem estar chegando ali. Estancando seu alazão defronte ao casarão, um cão latiu no telheiro a rosnar anunciando a sua chegada. Estático, buscou segurar sua montaria pelos arreios, assustada com o gozo no telheiro. Dali partiu uma voz imperiosa. - Quieto Jupi – o cachorro parou de grunhir baixando a cabeça em obediência ao seu dono que de onde estava perguntou. - Quem vem lá e o que quer a estas horas? - Sou eu Domingo, o Aparecido. - Aparecido! Surpreendeu-se o outro. - Mais não era pra sábado nossa prosa? - Era sim. Mais podia ser que nós não tivéssemos este tempo. - Nós! - Sim. Nós! Mais me deixe entrar homem, estou só e desarmado. Domingo estava escorado a observar pelas frestas da janela na sala central ao terreiro, ali com ele estava também Luzia Quitéria que resolvera pernoitar na fazenda. Esta ao ouvir o visitante, sinalizou que sim para o dono da casa que estava naquele instante a olhar para ela como quem a pedir um conselho. - Tudo bem Aparecido. Se aprochegue mais venha com cuidado. - E o cachorro! Será que ele não vai me morder? - Não, é claro que não. Jupi sai – com este novo comando o cão correu a desaparecer do telheiro e Aparecido caminhou resoluto até atingir a porta já aberta para lhe dar passagem. Ao entrar no casarão deu de cara com Luzia Quitéria sentada a observa-lhe com um leve sorriso nos lábios. Domingo estava as suas costas segurando firme seu rifle. Sendo Luzia quem o convidou a sentar-se. - Sente seu Aparecido. É uma surpresa vê-lo a estas horas. Deve de ter acontecido algo muito sério para vosmecê ter vindo aqui bem antes do trato. - Aconteceu sim minha filha. Já vou lhes contar. Domingo sempre desconfiado caminhou para sentar no outro banco defronte ao seu vizinho, todavia segurando sua inseparável arma, acomodando-se a abriu seus ouvidos ansioso a meditar no que iria ouvir. Antes de sofrer qualquer indagação Aparecido Mocó já foi desfiando seu rosário. - Bem! Antes de vocês perguntarem qualquer coisa, apenas me ouçam com atenção – pediu a já soltou o verbo, - Bem! Depois da visita desta moça a minha casa e das indagações que ela mim fez, passei a meditar comigo mesmo e então concluí que me fiei demais pelo meu capataz; que as coisas talvez não fossem como ele disse. Depois de muito pensar, cheguei a seguinte conclusão...

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Luiz Domingos e Luzia Quitéria permaneceram em silencio ouvindo o relato de Aparecido. Ao término deste, o próprio Domingo surpreendeu-se com o que lhe foi exposto; mais calmo, levantou-se a pendurar sua arma na parede. Caminhando para junto do outro, estendeu-lhe a mão a empenhar sua palavra. - Realmente as cercas quedadas e causa do início da nossa intriga não eram minhas; também foram derrubadas de propósito. Sempre que elas caiam eu as concertava pra proteger minhas lavouras. Investigando elas deu pra perceber que os arames em certos pontos foram cortados a alicate. Só não consegui descobrir quem fez aquilo, apesar de ter pastorado muito. Tão pouco acreditei que fosse obra sua apenas para ver seu rebanho destruindo minha lavoura. Por isso que fui procurá-lo aonde acabei sendo expulso de suas terras por seu capataz que junto a você não me deixaram explicar nada. Aparecido o interrompeu. - Aí já foi um erro meu por haver dado crédito ao que antes me dissera e garantira Dão do Espinheiro. Domingo prosseguiu voltando a sentar-se desta feita ao lado do visitante. - São águas passadas. Mais por outro lado: se eu e você morrermos ou mesmo um a mando do outro, fica uma brecha para alguém matar aquele que ficar vivo e por a culpa em vingança da família. Ficando assim as nossas terras a disposição de quem estiver interessado em nossa ruína. O interessante nisto tudo é que nem eu nem você tínhamos como perceber isso, se não fosse Luiza. Aí possivelmente nestas horas eu já estaria morto, depois seria vosmecê. Luzia Quitéria ficando de pé tomou a palavra. - Mesmo assim ainda temos a misteriosa morte do homem que estava com seu nome escrito num papel guardado em seu bolso, Domingo. Neste ponto, Aparecido olhou para a mulher a indagar-lhe. - Mais não foi você quem despachou o finado achado na rodagem? Com a pergunta, Domingos também a olhou curioso interessado na resposta da pistoleira. - Não. Decididamente não atirei naquele homem. Já o encontrei baleado, ainda vivia mais estava nas últimas; foi uma casualidade do destino ou mesmo a mão de mainha que me empurrou a cá para que eu restaurasse a paz entre os senhores. No mais, Vicente Pezinho me auxiliou traçando o perfil de vocês dois, e como venho por aí a enlinhavar o sovaco do mundo pregando paz quando posso e dando tiros quando cabe, mais sempre buscando e fazendo justiça resolvi entrar neste causo. E pra minha felicidade parece que consegui. Só resta agora termos a certeza de quem é o real autor desta armação, o homem que quer ver vocês comendo capim pela raiz. - Mais quem sereia este exatamente? - Perguntou Luiz Domingo. Aparecido Mocó desta feita foi quem voltou a falar. - Aquele homem baleado veio aqui por minha determinação a fim de eliminá-lo Domingo. Isto tudo depois deu ter acreditado que vosmecê ia me matar caso eu não me

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adiantasse ao amigo. Contudo a pessoa que trouxe aquele cabra aqui foi o mesmo que me convenceu de que vossamecê foi quem começou esta peleja: o meu capataz Dão do Espinheiro, de quem comecei a desconfiar depois da visita de Luzia Quitéria. Domingo insistiu curioso. - Será mesmo ele Aparecido? Aquele cabra tem quengo para isto? Pois se for ele quem nos quer pelas costas ainda nos resta sabermos quem matou aquele pistoleiro e o porquê sem antes ele realizar o trabalho que aqui veio fazer? Já que Dão foi quem o trouxe, não bate bem o fato dele mesmo matar seu jagunço. Não acha? Depois de refletir um instante, Aparecido respondeu. - Acho assim. Porém como não desconfio de ninguém por trás de Espinheiro, quero crer que foi ele mesmo. Algo deve ter dado errado no encontro. Entrementes, só nos resta agora descobrirmos a verdade, as causas e quem matou o desconhecido antes do tempo. Pois estava combinado que o próprio Dão iria receber o cabra na sua chegada aqui no dia que balearam ele. Ao término da explicação, Domingos meneou a cabeça negativamente. - Mais se foi ele. Então a coisa não faz sentido – explicou. ... Luzia Quitéria sorriu voltando a tomar a palavra. - Isto no momento é o de menos. O importante agora é decidirmos como vamos agir para descobrirmos o que tem por trás desta história – curta pausa que a própria quebrou - e eu acho que já sei como. Os dois fazendeiros a olharam com ar de curiosidade e falaram a mesma frase no mesmo espaço de tempo. - Então se diga Luzia. - Vocês devem continuar agindo como se nada tivesse acontecido e dando a entender que continuam brigados. Aí ... Quando Luzia expôs seu plano, ambos concordaram imediatamente. Compreendendo os fazendeiros pela explanação de Quitéria que ela estava certa, de maneira tal, que de imediato passariam a agir como dantes a fim de descobrirem se Dão agia por conta própria ou estava sendo usado como testa de ferro de outra pessoa. Coesos, novamente Aparecido e Domingo apertaram as mãos selando aquele pacto. - Desculpe-me por esta situação Domingo. - Me desculpe por suas reses. Aos pedidos de desculpas, aceito, encerraram a reunião. A esposa de Domingos preocupada com aquela situação, estando todo tempo em seu quarto de ouvidos ligados na conversa lá fora, ouvindo estas boas novas, ajoelhou-se a rezar um terço para mãe rainha, agradecendo a graça alcançada. Aparecido Mocó ainda aumentou.

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- Doravante Dão do Espinheiro irá aprender que as coisas não são bem como ele pensa. O homem já tem sete anos que lida comigo. Por que que só agora ta dando o ar de sua graça? – concluiu indagando. Domingos arriscou um palpite. - Acho que foi por causa de só ter tido esta vontade agora, recentemente. Por modo de que da primeira vez que o gado passou pra cá, fui procurá-lo e não o encontrei. Mais ele! Aquele safado foi quem me expulsou de suas terras me dizendo que era ordens suas. Depois, foi só bolar um plano e pronto. Luzia Quitéria também voltou a falar. - Enquanto vocês falavam me bateu outra idéia na cabeça. Se o senhor aceitar seu Aparecido, poderemos resolver este enigma o mais rápido possível. - E como seria? – perguntou este. - O senhor volta pra fazenda e amanhã cedinho envia Dão sozinho até o vilarejo; diz que tem uma encomenda pra ele ir pegar na quitanda do Vicente Pezinho. O resto os senhores deixam comigo. ... Concisos, desta feita encerraram de fato aquele encontro, tendo Aparecido e Domingos solicitado mais uma vez desculpas um ao outro, prometendo estreitarem ainda mais suas amizades, e, conforme planejado, Aparecido retornou para casa uma e meia da matina, refazendo o percurso de volta um pouco mais rápido, já que retornara em galope fechado. ... Com o cantar do galo, Dão do espinheiro saltou de sua rede sorridente a traçar em mente uma maneira de eliminar Luiz Domingos e sua protetora; depois, quando surgisse a suspeita sobre Aparecido seria a vez dele. Conseqüentemente as terras das duas propriedades ficariam a sua disposição, já que estava à frente dos serviços e iria cuidar destes por menores. Trocado de roupas caminhou após desjejuar até o estábulo aonde encilhou seu cavalo para vistoriar a fazenda. Estava ocupado a arriar o seu animal quando Aparecido surgiu para incumbi-lo de ir ao arraial buscar uma encomenda que chegara de um parente distante. O homem estranhou um pouco, mais se comprometeu em ir imediatamente. Logo, pouco depois galopava com destino ao arraial. Vinha despreocupado a sorrir do plano genial que traçara para poder por as mãos nas terras de duas das melhores propriedades do rincão. Preso aos seus planos, aproximou-se em corrida do local em que quedara Zé Simplício, ali bendizeu-se a confabular consigo mesmo. - “Se você tivesse colaborado Zé! A estas horas possivelmente já teria resolvido metade do meu problema”. - Mal concluiu este pensamento, percebeu que algo de errado acontecera ao sentir-se projetado por sua montaria voando por sobre a cabeça do cavalo a cair totalmente zonzo, alguns metros adiante no terreno. Luzia Quitéria que estava na tocaia, amarrara uma corda atravessando a estrada, deixando-a ligeiramente coberta de pó. Quando da aproximação do vaqueiro, puxou-a firme, fazendo o animal tropeçar e cair, projetando seu cavaleiro para diante.

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- Maldição – ainda gritou ao ser lançado no ar. Como ficou meio grogue do tombo não compreendeu o que havia causado sua queda. O Cavalo ao cair levantou-se ligeiramente e saiu assustado em desabalada carreira. Espinheiro voltou a recobrar totalmente os sentidos ao sentir um cano longo direcionado para ele. - Você! Bem que desconfiei maldita. - Cale a boca – ordenou Luzia – o causo é o seguinte: você vai me dizer bem direitinho o que está havendo entre Mocó e Domingos e quem é que está por trás de você. Afinal a intenção nesta peleja é simplesmente a posse das terras dos dois. A coisa mais velha deste sertão. - Mais eu não estou entendo o que... Tentou ainda enrolar o meliante. Não pôde continuar falando, luziu acionou a lavanca do rifle levando a bala para a agulha, o que fez o homem engolir um seco. - Tudo bem! Tudo bem! Não dispare. Eu falo o que você quer saber. Desde que prometa não me matar. - Está certo. Dou minha palavra. Afinal você não vai me surpreender em nada. Contudo, após abrir o jogo, suma daqui. Porque quem vai querer caçá-lo é Aparecido Mocó e Luiz Domingos; estes vão querer fazer forro de tamborete com sua pele. - Vendo que seus planos naufragaram e temendo por sua vida o vigarista esclareceu tudo, Tim-Tim, por Tim-Tim. Contou até por que ele mesmo fora obrigado a eliminar o pistoleiro chamado Simplício, causa da derrocada de suas idéias. Ao concluir Luzia o alertou. - Só não lhe mato agora cabra é porque empenhei minha palavra. Mais vamos; fique de pé e suma daqui agora mesmo. Você me enoja escória da vida. Saiba que vou pessoalmente alertar a Aparecido e dizer dos seus planos. Aposto até que ele vai mandar alguém para pegá-lo quando souber que você também desejava matá-lo, cabra ruim! Agora suma que você já esta perdendo tempo. Luzia concluiu a frase se afastando um pouco deste. Dão por sua vez, já de pé, assustado, olhou para os lados e indagou meio atarantado. - Mais eu vou ter que sair daqui de pé? - Não – debochou a pistoleira – Vou arrumar uma condução pra você já, já! Fique por aí esperando que ela já chega – Concluiu sorrindo. Acaso as armas do marginal ficaram na montaria que havia fugido dali; como não trouxera mais nada, ao olhar para luzia de pé a apontar lhe o rifle, iniciou uma desabalada carreira embrenhando-se na caatinga. Carreira que aumentou quando Luzia disparou duas vezes próximo de seu corpo. Num instante Dão do Espinheiro desapareceu sumindo na vegetação a fugir temendo por sua vida. No íntimo jurava um dia se vingar daquela mulher, porém agora sua cachola martelava que à hora era mesmo de desaparecer. Satisfeita, Luzia Quitéria vendo-o embuçar-se no mato pegou sua montaria e seguiu com destino as terras de Aparecido Mocó. ...

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Dias depois, após patrocinar e ser devidamente gratificada mesmo a contra gosto, a paz entre os dois fazendeiros, Luzia Quitéria partiu do arraial. Queria conhecer mais gente, mais coisas e pensar ainda um pouco mais na proposta de Pedro Junior. Com este novo capitulo em sua saga aumentou sua fama ganhando a pecha de “Pistoleira sem macula”.

LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

De Wanderley da Silva Marques

Capítulo IV

Luzia Quitéria, a pistoleira sem macula, cavalgava pelos sertões a pregoar a lei ao

seu modo e sua maneira. Hora com benevolência, hora a força da bala, seu nome vagava nas bocas dos andarilhos, errantes, ciganos, enfim toda sorte de gente que viandava nas terras do sertão surrado. Pensava na proposta de Pedro Junior, mas decididamente ainda não aprendera a confiar em homens. A sua violação era uma marca dolorosa que não aprendera a suportar e enquanto não vencesse esta barreira, homem, era apenas alguém distante.

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Cavalgava certa vez por uma estrada qualquer que a levava não sabia ela para onde, apenas se mantinha naquele caminho e prosseguia por ele; qualquer lugar era bom para se ir, quando não existia desejo por lugar fixo. A estrada era longa, deserta, não encontrara por quase uma centena de quilômetros, viva alma. Mesmo assim se manteve naquela direção. Parara próximo ao por do sol embaixo de uma oiticica gigante. Descendo do animal para saciar sua sede, ali permaneceu alguns minutos a divisar logo adiante a divisão das estradas em “v”. Ficou um pouco na dúvida por qual devia seguir, quando de repente ouviu vindo no vento, os sons de vozes, lamentações, ladainhas, gritos e gemidos numa mistura incompreensível. Voltando a sela do animal ficou a esperar para ver do que se tratava. Logo divisou uma enorme multidão composta de homens, mulheres e meninos de todas as idades em procissão a obedecer a seguinte ordem: à frente da turma quatro homens de trajes pobres transportavam o andor no qual vinha à imagem do menino Jesus. Estes homens apresentavam a singularidade nas calças que eram brancas do tecido de algodão e estavam de pés descalços; vinham muito suados pelo esforço na condução da armação. Seus ombros até já sangravam a mesclar de vermelho a camisa de alguns que era de uma chita cinza. Mais atrás em segundo plano um outro homem carregava uma grande cruz de madeira, pela forma e estado devia o objeto pesar enormemente. Ao seu lado, um segundo trajando roupas da ordem franciscana, cabelos grandes e longos a quedarem pelos ombros. A barba pendia quase a atingir a linha de cintura; era alto e magro seus olhos fundos denotavam um brilho misterioso, como quem a enxergar o sobrenatural. Este era quem comandava a turba e iniciava os atos a serem respostados pelos seguidores do cortejo, e só depois destes dois é que vinham o restante da massa, na grande maioria portando terços, santinhos, cordões com instrumentos de metal nos extremos usados para se martirizarem. Luzia ficou atenta, acesa a marcha, vendo-os caminharem de cabeças erguidas inebriados no ato de fé. Ladearam-na, ultrapassaram e seguiram em seu caminho, sem dar a menor importância àquela estranha mulher a cavalo, armada, debaixo da árvore. Assim como surgiram, desapareceram ao longo da estrada, deixando Luzia Quitéria cismada, curiosa em saber a que se devia tal ato. Era a primeira vez que vira um cortejo como aquele; movida pela curiosidade, interessou-se em conhecer melhor o que levava aquela procissão. Resoluta esporeou seu animal no caminho por onde aqueles tinham ido. Mantendo certa distância dos rezadores. Algum tempo depois adentrou em uma pequena cidade cuja aparência era totalmente similar a algumas outras por onde andara; contudo o número de gente a transitar era enorme e tanta não tinha visto ainda em um só lugar. Fazendo o animal cavalgar a passo lento conduziu-o até um grupo de pessoas hospedadas em um gigantesco galpão no centro da rua principal. No galpão divisou: ciganos, retirantes, religiosos, agricultores, vaqueiros e outros grupos diferentes. Percebeu as singularidades dos grupos pelo fato de não se enturmarem totalmente. Ao lado do galpão enormes juazeiros se espalhavam a oferecer boa sombra e lugar para amarrar os animais, sendo ali que Luzia apeou o seu cavalo. Estava cabisbaixa, ocupada a cuidar de seu animal que não percebeu a aproximação de um mancebo a se achegar por sua retaguarda. Este as costas da rapariga colocou sua mão sobre

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o ombro da andarilha. Está virou-se automaticamente a perceber entre o susto e a surpresa quem estava ali. - Pedro Junior! Meu Deus que surpresa – Exclamou. - Eu mesmo Luzia. E você como está? - Perguntou ansioso em rever a mulher por quem se apaixonara. - Eu estou bem Pedro. Apenas surpreso em vê-lo nesta cidade. - É. Todos os anos meu pai e minha mãe vinham a Bom Jesus nesta época de pregações. Este ano por força do destino tiver que vir só. O Pai perdeu o gosto por estas andanças. A causa vosmecê sabe bem. ... Fizeram um curto silêncio ao lembrarem da mãe de Pedro, silêncio que logo foi quebrado por este mesmo. - Mais e você Luzia! Já decidiu alguma coisa do que lhe propus? Ela o olhou avermelhada – Venho pensando um bocado, mais não estou pronta ainda. Preciso de mais tempo. - O jovem sorriu. - Tem todo Luzia. Tem todo. Mais o que trouxe a cá a Bom Jesus? Foi o que trouxe todo mundo? – Agora foi à vez de Luzia sorrir. - Não, não. Na verdade apareci aqui por acaso. Ao cruzar com a procissão resolvi segui-la e cá estou eu. Nem sabia o nome da cidade e muito menos as causas das rezas. Você até que poderia me explicar. - É claro Luzia! É claro. Vou lhe contar com prazer – o rapaz fez uma curta pausa, respirou fundo e soltou à narrativa - Todo o motivo desta romaria aqui surgiu há alguns anos. Num sítio daqui dos arredores morava uma meninota chamada Mônica, numa casa muito pobre. Família de quatro pessoas, pai, mãe e duas filhas, viviam da roça, da labuta diária. Eram muito religiosos e tinha em casa na mesa da sala a imagem do Bom Jesus, aonde toda santa noite rezavam um terço; assim viviam e viveram felizes por muitos anos. Depois de algum tempo as meninas se fizeram moças e Mônica a mais velha sem nenhuma explicação aparente passou a desligar-se do mundo, vivendo reservada, sem falar com mais ninguém: irmã, mãe ou pai; a única coisa que continuou a fazer e mais ainda, foi rezar. A mãe preocupada, bem como a irmã, fazia de tudo para ajudá-la, puxavam conversa, mais esta se esquivava do vozeio, alheia, calada. Nove meses depois dela ter entrado nesta vida de resignação, saiu de casa pela manhã, só voltando à noite, pálida, tremula nervosa, com um ar de louca. A família a recolheu e esta com os olhos grandes a brilhar intensamente com uma chispa de ódio, olhava ao pai, que sem aparente explicação, baixou a cabeça e saiu de casa. Mônica ficando sós com a mãe e a irmã resolveu falar tudo o que vinha passando. Contou à mãe que fora violentada pelo pai e que este a obrigava a fazer vida com ele. Caso contrário: e se ela falasse mataria as três. Contou que naquela manhã saíra ao mato pois já fazia mais de nove meses que tudo ocorrera e que estivera grávida. Para disfarçar amarrara a barriga com cordas e um prato, prendendo o abdome, por isto ninguém notara nada. Contou ainda que

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saíra cedo para ir ao mato ter a criança, que esta após nascer devido o aperto no bucho acabara morrendo. Que ela a enterrara lá mesmo e que já não suportando mais esta situação resolveu falar. Pediu a mãe e a irmã para irem embora, pois seu pai estava endemoniado e todas corriam risco de vida. É óbvio! A mãe e a irmã não quiseram partir sem ela ir junto, pois temiam por sua vida. Contudo a mulher por ser muito devota pediu à filha que lhe indicasse o local onde o neném fora enterrado para elas irem lá buscar e dar um enterro no campo santo da cidade e que depois viriam falar com as autoridades locais para conseguir resolver este caso se é que tinha solução – neste ponto Pedro fez nova pausa e Luzia pediu para que ele terminasse no que foi prontamente atendida – A velha e as filhas saíram pra o mato e retornaram algum tempo depois antes do marido chegar; a propósito aquele se chamava Valdemar Piçarra. Estas chegando antes do homem, já foram arrumando as matulas pra fugirem de casa. Só que não deu tempo, o miserável retornou. Ao ver o corpo do bebê e olhar para as três notou que fora descoberto. Daí não contou conversa arrastou uma faca e encurralou as três. Mônica tomou a frente da mãe e da irmã e atracou-se com o pai, evitando dele as matar como prometera. Imediatamente a caçula correu arrastando sua mãe que não queria sair dali. Na sua ira o homem esfaqueou uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes a filha e esta não o largou, só pedia a mãe para sair dali. No desespero vendo que não tinha mais remédio a mulher correu junto com a caçula. Mônica ainda o deteve por mais algum tempo quando se soltou dele caiu ao chão morta. A mão e a filha ainda estavam perto da casa e Valdemar achou que ia pegá-las. Porém algo fenomenal aconteceu – desta feita Pedro fez mais uma parada e Luzia o olhou a intimá-lo para continuar; depois de pigarrear este concluiu. - A criança chorou. Mediante esta explanação Luzia se arrepiou a olhá-lo estupefata. - Mais como Pedro? - Isto eu não sei. A estória do povo diz que ela chorou, pois a velha e a irmã ainda perto da casa ouviram um choro de bebê. Contudo não podiam voltar mais ali e o remédio foi correr até a cidade. O Homem não as perseguiu, saiu a correr mais pela porta dos fundos. Na madrugada quando na cidade se juntaram o prefeito, Chico Claudino o manda chuva deste lado, o Delegado nomeado Espedito Flor, além de uns trinta homens armados voltando à fazenda para procurar pelo cabra, durante o resto da madrugada e parte da manhã, não acharam mais o corpo do bebê. Acharam sim, mais a Valdemar enforcado na mata em cima de uma árvore. Todavia do neném, nem notícia. Nunca foi achado seu corpo. Há quem diga que o elemento enterrou-o antes de se matar ou deu fim de qualquer outra maneira. O Fato é que anos depois, passou a aparecer na estrada uma moça toda de branco com uma criança no colo a cantar e rezar ladainhas, pedindo perdão para os pecadores deste mundo. Houve gente ainda que dissesse no decorrer dos anos que uma moça andava a rezar naquela região e havia curado doença de muita gente. Daí nasceu a estória desta procissão e este povo vem todo ano a prestar sua fé a Mônica, a mártir; sendo que sua simples casa foi transformada em capela, de onde vai daqui da cidade aquele cortejo, lá faz suas obrigações e depois retorna. Essa festa é chamada: Festa do Divino.

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Luzia Quitéria estava boquiaberta com aquilo que ouvira, no fundo lembrou do que lhe ocorrera, daí sentiu uma imensa compaixão por Mônica, pois afinal com ela fora o padrasto e não seu legítimo pai. - É Pedro! Que estória. E que destino! Pobre menina. Pedro solidarizou-se a ela nas palavras e insistiu. - Por isso te peço que penses na minha proposta. A vida às vezes arma ciladas para qualquer um. E eu só quero o teu bem. Ela sorriu para saírem dali até o galpão; aonde a bandoleira de mucuta na mão foi escolher um melhor lugar para armar sua rede. Na manhã seguinte acompanharia toda procissão e se interaria mais ainda do que soubera de Pedro, não por acaso a rede dela ficou próxima do fazendeiro e assim puderam confabular ainda mais. ... Os costumes locais da época permitiam andar armado. Mesmo numa festa religiosa, muitos vaqueiros portavam seus rifles nas selas de suas montarias. Entretanto o respeito religioso era superior à própria lei e ninguém quase ninguém, com raras exceções, conturbavam um ato destes. Por isto Luzia Quitéria estava despercebida naquele torrão, pois até ali, seu nome era também uma lenda. ... No dia seguinte, mal o sol lançou seus primeiros raios sobre a terra, já no galpão e nas ruas o movimento de gente era enorme. O cheiro de café quente invadia os ares, como também o da carne de carneiro, degrelhando na brasa. Assim às sete horas em ponto todos estavam prontos para acompanhar à quarta jornada de um total de sete, “a festa era de semana” com percurso de ida e vinda à casa de Mônica. Nesta nova romaria, seguiu Luzia Quitéria e Pedro Batista na traseira dos quase quinhentos penitentes que seguiam a sua frente. Conversavam sorridentes, atentos as manifestações religiosas. Pedro não as seguia a risca, talvez pela influência dos anos de estudo na cidade grande. Luzia pela sua vida de tiros e mortes, contudo, rezava ao seu modo, como uns poucos a sua dianteira. Ao longe, bem adiante uma voz iniciou uma ladainha e logo o coro estava formado. (No dia treze de maio na cova da iria Do céu aparece a Virgem Maria. Ave, ave, ave, Maria. Ave, ave, ave, Maria) ... A multidão avançava e com ela subia a poeira do caminho a avermelhar as roupas e os cabelos dos que ali estavam, mas isto não era empecilho praquela gente cheia de fé. Andaram por quase quatro horas, a passo lento, para atingirem a casinhola simples no beiço da rodagem. Certamente nem sempre fora daquele jeito; sua frente estava bem adornada e uma grande cruz de madeira estava emperrada na frente da mesma. A porta entreaberta dava passagem à gigantesca coluna de uma só pessoa que uma atrás da outra, entrava pela frente e saia por uma porta lateral; ali os mais crentes, pagadores de promessas deixavam ao passar

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pedaços de madeiras esculpidos em pé, braços, cabeça, corpo todo, santinhos, flores, agradecendo ou solicitando uma graça. Para toda essa multidão completar seu itinerário já havia varado à tarde, existido mais de uma celebração de missa. Luzia e Pedro ao entrarem na casinhola, depararam com um enorme balcão aonde uma mulher empilhava cuidadosamente os apetrechos. Na sala ainda havia uma pequena imagem do menino Jesus sobre uma surrada mesa e um oratório com algumas imagens. Ao contemplarem o local, ajoelharam-se diante das imagens, bendizeram-se e se levantaram cumprindo o ritual de saída. Já aí quase o sol se pondo. No retorno, talvez por causa do cansaço e da fome, ao invés de quatro, a procissão levou cinco horas retornando ao Bom Jesus perto das nove horas da noite. Cansada e enfadada, Quitéria ao atingir o galpão foi direto a sua rede dormindo logo em seguida. Pedro ao contrario foi cuidar de dar água ao seu e ao cavalo de Luzia. Depois, assou ainda carne de carneiro que com farinha levou até a sua amada. Como esta estava dormindo alto, apenas sorriu, comeu um pouco e caiu no sono. Já muitos outros viajantes, dormiam também. Só um pequeno número ainda se mantinha acordado a preparar algo no fogo; lá longe um cigano achava forças para surrar as cordas de seu violão a cantar uma música antiqüíssima, embalando a noite, o sono e os sonhos daquela gente. Na manha seguinte Luzia Quitéria explicou a Pedro que não iria esperar o final da festa. Iria partir mais cedo, ainda naquele dia. O que deixou o mancebo triste. Contudo ao ouvir da boca de Luzia que logo, logo, ela surgiria na Laguna sorriu esperançoso. De fato, depois das dez horas da manhã a moçoila abandonou cidade cavalgando no dorso de seu cavalo, ainda sem destino, mais a sorrir consigo. Seu encontro ali com aquele moço a fizera olhá-lo com olhos de carinho, assim, acreditava logo saber o que fazer da sua desgarrada vida. Cavalgava despercebida da realidade por aquela comprida estrada quando avistou adiante a beira do caminho sentado sob uma formação setial, uma mulher morena de cabelos longos, roupas pobres a amamentar uma criança; achando ser mais uma romeira açulou seu bagual para perto da moça. Como o sol estava a queimar o chão, passou a mão no rosto para afastar o suor. A baixá-la ergueu a vista na direção das rochas, contudo não havia mais ninguém naquele local. Assombrada, olhou para diante e não viu nada, faltando ainda uns trinta a quarenta metros até as pedras. Incrédula com ela mesma, açoitou o cavalo que saltou a galope. No entanto, antes de atingir a pedra, atrás de si ouviu o choro de uma criança. Sentindo o cabelo eriçar, estancou o baio e olhou para trás; longe, bem longe dela, na estrada em reta, viu aquela mesma mulher que momentos antes estava a sua frente caminhando em sentido contrário ao seu a cantar um bendito. - “No dia treze de maio na cova da ...” Sobressaltada, bendizeu-se mais uma vez e obrigou seu cavalo seguir em frente, recomendando em pensamento aquela pessoa. - “Que Deus a guarde” Açoitando sua montaria partiu velozmente para outras localidades. O encontro com o sobrenatural poderia trazer-lhe algo, mais que fosse adiante porque agora sentia era medo. O cavalo já dava sinais de cansaço e diminuiu o passo duas horas depois, tendo cobrido uma

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longa distância de Bom Jesus. Pedro por lá ficara até a ultima romaria, fazendo sua peregrinação a pedir para que Luzia Quitéria retornasse a laguna para ele. Passaram-se os dias. Estava Luzia Quitéria a cavalgar no meio da caatinga, trajando roupas de vaqueiro a portar por sobre os ombros um gibão de couro curtido. O chapéu de abas largas fora trocado por um de couro com uma estrela no centro; nas extremidades pendiam dois barbicachos que culminavam em um laço abaixo, no pescoço. A calça também era de couro, aberta e presa nos lados por uma finíssima tira em couro cru. As botas cano longo era coberta por esta segunda vestimenta; seus cabelos já os usava amarrados há algum tempo. Na sela portava sua arma de cano longo, um alforje e outras armas menores. De repente percebeu um tropel de cavalos vindo em sua direção por entre a vegetação, estando ela a atingir um descampado, ali parou o alazão a esperar para divisar o que se avizinhava. Esgueirando-se na sela a ficar nas pontas dos pés, no estribo, viu ao longe, avizinhando-se, três homens a cavalos num galope alucinante. De fato pouco tempo depois os três deram de frente com àquela mulher no dorso de sua montaria. Eram três militares rasos, que pelos trajes e poeira no corpo deviam vir cavalgando há algum tempo. Do trio o que cavalgava no centro e ostentava três galões nos ombros adiantou-se dos demais a cumprimentá-la. - Boa tarde Sá Menina. - Boa tarde seu praça. Em que posso ajudar a vosmecê? O homem sorriu antes de responder. - Meu nome é Teixeira. Sou o Sargento Teixeira comandante do destacamento de Baixa Grande; estes comigo são os soldados Bentevi – referiu-se ao da esquerda - e este outro e Antônio Careca. Gostaria de saber da moça se não cruzou com alguns homens cavalgando nesta direção. - Pra lhe dizer a verdade: não. Não cruzei com ninguém vindo por cá. Diante da resposta da rapariga, os milites confabularam rapidamente entre si, para Teixeira definir. - Veja moça! São quatro os elementos que buscamos. Promoveram uma chacina contra um casal de velhos para roubá-los. Se os vir tenha cuidado. São perigosos. - Agradecida pelo aviso. Se eu os vir pode ter certeza que eu mesma mato eles – afirmou a pistoleira. O Sargento conhecia de renome Luzia Quitéria. Talvez por isto não tivesse lhe perguntado a graça. Assim sorriu a concordar. - Vai fazer um favor à humanidade acabar com aqueles elementos. Ao concluir a frase o milite esporeou sua montaria tomando novo rumo com seus comandados. Luzia por sua vez cavalgou na direção do horizonte, adentrando numa mata fechada a matutar no que lhe informou o Sargento; até ali já se passara algumas horas e estava neste instante a cavalgar por um local quase sem trilha; por ali predominava árvores densas em troncos e copas. Conduzia o cavalo lentamente a observar os mínimos detalhes;

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então, ao acaso da sorte, percebeu por entre a vegetação rasteira, sinais de que alguém passara por aquele local há bem pouco tempo, pois além dos sulcos profundos, a relva viçosa deixava seu sumo à mostra em algumas plantas. Com mais atenção percebeu que foram quatro os que transitaram por ali. Imediatamente os instintos de Luzia Quitéria aguçaram-se a captar todos os movimentos pela mata. “Só pode ser os meliantes que o Sargento Teixeira procura” – matutou a desmontar do cavalo e seguir a pista com cuidados redobrados - “Será que devo voltar à estrada? Ou é melhor me afastar deste problema, esquecendo tudo?” – estava a meditar neste dilema, já de volta a sela quando divisou perdida na vegetação uma grandiosa e certamente secular “aroeira” sob sua copa havia espaço suficiente para se abrigar muitas pessoas, “percebeu” e ali estancou sua montaria passando a estudar o terreno há onde estava. O local oferecia posição privilegiada por se tratar de um relevo já desembocando numa depressão para dar numa grande planície aonde a vegetação compunha-se de árvores maiores e mais robustas que a primeira parte da floresta. Contudo, em determinado ponto por entre a vegetação verdejante, detectou o telhado de uma casa no meio da floresta e com atenção redobrada cavalgou buscando atingir uma melhor área de visão. Alguns minutos depois estava a cerca de cinqüenta metros da construção avistada. Esta, apesar de pequena era praticamente inexpugnável. Suas paredes foram construídas em pedra maciça, existindo, contudo, saliências por onde se dava para um bom atirador manter distante qualquer indesejável. Sacando da sela o rifle, saltou ao solo para atirar-se no terreno em ligeira acrobacia. Uma vez que dois disparos soaram na habitação, vindos em sua direção; chegando um dos projeteis a queimar a manga do gibão e da camisa por baixo a incidir num superficial ferimento. Por pura sorte não fora baleada. Velozmente embuçou-se por trás de um tronco da árvore mais próxima passando a estudar a situação de momento. Da casa, os facínoras tiveram certeza de ter acertado no alvo e debatendo isto em voz alta, pela curta distância que Luzia estava deles escutou claramente o teor da conversa. - Não tenha dúvidas seu Pereira eu acertei o tiro. Nhó cê não percebeu quando ele caiu? O interpelado permaneceu em silêncio para o outro ali prosseguir. - Também acho que tu acertou Francelino. Mais até termos certeza é bom agente ter cuidado. Um quarto elemento entrou na prosa. - Talvez tu tenha acertado mesmo. Talvez não. É bom se acautelar. A voz deste último soou conhecida para Luzia Quitéria, no que fez ela aguçar ainda mais suas ouças, buscando na mente saber de quem era. Naquelas alturas o trio de milicianos, após cavalgar perdido na estrada, sem descobrir a mínima pista do bando, resolveu dar meia volta e cavalgavam na mata, buscado o menor indício que desce no paradeiro dos fugitivos, no que não obtiveram êxito. Entrementes o som dos disparos a longa distância chegou até eles, sendo isto o suficiente para buscarem esta nova direção. Na casa, um dos elementos saiu porta afora empunhando uma arma de

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fogo. Assim que este saiu Luzia o reconheceu. Dão do Espinheiro, o quarto que falara. Neste momento Quitéria arrependeu-se de tê-lo deixado vivo. Espinheiro esgueirou-se por entre as árvores até ocultar-se por trás de um cajueiro. Da habitação partiu a voz daquele chamado Pereira. - Espere Dão! Francelino vai com você, enquanto mantemos a guarda. Logo um segundo homem saiu da casa buscando vir até Dão. Pela convicção no seu disparo andou calmamente sem ocultar-se. Foi um erro grave. Luzia Quitéria bem posicionada apontou seu rifle para o meliante ajeitando-se para disparar. Naquelas alturas o trio de milicianos descobrira as pistas pela mata e cavalgavam acelerados seguindo estas. Avistaram a casa na mata no exato momento em que ouviram uma detonação. A bala alcançara Francelino no meio da testa, impulsionando-o para trás; o homem foi projetado igual a um mamolengo estatelando-se no terreno, ficando morto, emborcado com a cara no solo. Dão, ao tiro, rapidamente ocultou-se buscando divisar o local da indesejável visita. Luzia bem escondida, após balear aquele chamado Francelino, moveu-se na direção do seu conhecido meliante. Atarantado, Dão do Espinheiro estava agachado por trás de um tronco, assustado a imaginar quem seria aquele que os atacava. Quando decidiu sair dali, sentiu que havia alguém atrás de si, moveu-se no intento de disparar sua arma, girando sobre si. Não completou totalmente o movimento para ficar em posição de alvejar seu antagônico, pois este o antecipara, disparando a queimar roupa um tiro nas suas panças. O homem largou de sua arma ficando de pé escorado no tronco, de olhos arregalados a segurar sua barriga, com expressão de assombro, antes de quedar divisou há pouco mais de dez metros seu matador. Ainda balbuciou para beijar o terreno. - Você! ... Caiu pesadamente a contorcer-se em espasmos de agonia sendo velado por Luzia Quitéria. Da casa soou a voz daquele outro chamado Pereira. - Quem é lá? Se não são os macacos por que atirou em meus homens? Já em nova posição a poucos passos da casa, Luzia Quitéria não respondeu, mas uma voz que escutara momentos antes soou na mata. - Que diferença faz seu Pereira! Os macacos ou outro lá quem seja. São todas balas de chumbo, prontas para adentrarem em vosmecês. Sargento Teixeira, juntamente com seus dois homens, em posições diferentes, embuçados, aproximavam-se da casa, já tendo estes avistados a pistoleira e sinalizado para que esta ficasse em silêncio. Antônio Careca, em posição mais avançada saiu em cima da bandoleira ficando ambos lado a lado na lateral direita da vivenda. - Moça – falou em voz baixa – Cruzei com um daqueles cabras caído lá atrás. Agora tenho certeza de que sua fama não precede a sua coragem. A pistoleira apenas sorriu a olhar para a direção onde estavam os dois meliantes. Na casa Pereira avisou a milícia.

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- Talvez Sargento! Talvez faça diferença se o chumbo que mandarmos chegue a entrar nos couros de vocês. Quer ver é encostar pra mais perto um pouco. Como vêem a casa é sólida e agüenta um bocado. O quarto meliante até ali calado olhou para Pereira e expressou apreensivo. - Pode ser boa pra agüentar tiros. Mais se eles tocarem fogo homem? Pereira o fitou com cara de mau ar. - Tu és mesmo um frouxo cagão Quintino. O que quer fazer? Se entregar? - Talvez não seja uma má idéia. O olhar de Pereira fulminou aquele cabra e este se arrependeu do que disse. - Volte a sua posição e mantenha guarda. Não vou me entregar a ninguém. Só saio daqui morto – o outro obedeceu passivo. A posição dos milicianos e de Quitéria era tão próxima da casa que dava para ouvir bem o que conversaram. Um curto silêncio se instalou fora e dentro da vivenda; isto se deu em função dos que estavam fora em número de quatro decidirem abordar cada um, um lada da casa, e nestas posições buscaram chegar até ela para capturarem os que estavam escondidos no interior desta. Antônio veio sair nos fundos, Teixeira na parte frontal, Bentevi, no lado oposto ao de Luzia. Esta por sua vez permaneceu ali mirando cuidadosamente para uma boca de fogo, buscando divisar algum movimento quer fosse. De fato pra sua sorte, aquele de nome Quintino acercou-se dela e posicionou sua arma pronto para usar. Luzia acionou espetacularmente o percussor de seu rifle, igual aquele fantástico tiro foi à expressão de incredulidade do meliante ao sentir o impacto de sua arma saindo de suas mãos e caindo dentro da casa com o cano estourado. Luzia Quitéria a pistoleira dispara dentro do cano da arma contrária num disparo fenomenal. Acaso, seu Pereira estava perto de Quintino e ao por os olhos na arma quedada assustou-se da precisão dos que estavam lá fora. Antônio achegando a porta posicionou-se acocorado ao lado dela. Bentevi já junto da parede costeira a posição inicial manuseou a alavanca de seu fuzil, fazendo pelo breve silêncio instalado, os marginais perceberem que a casa estava cercada. Teixeira na frente meteu o coice do fuzil na parte superior da porta e passou do lado direito para o esquerdo do caixilho, fazendo pela força do golpe e por ser a porta muito velha, cair para dentro da casa. A esta ação, os dois sobreviventes do bando, principalmente Pereira, compreenderem que não havia escapatória. Assim o líder marginal resolveu negociar, gritando a plenos pulmões. - Esperem! Esperem! Nós vamos sair – avisou aos de fora. Imediato a esta informação o Sargento Teixeira alertou. - Tudo bem. Mais terão que vir pra cá e ficarem aonde possamos cobri-los. Sob esta expectativa, Bentevi então buscou uma nova posição que desse para botar mira no lugar em que devia sair os dois remanescentes. Luzia Quitéria fez o mesmo, permanecendo as embuças. Careca, apenas deslizou para a lateral em que estava Luzia e sinalizou para esta com o polegar a murmurar bem baixo que a batalha havia chegado ao fim. - Sargento – gritou Pereira – só tem um porém! Quero sua garantia que não vai atirar em mim ou em Quintino. Que vai garantir nossas vidas.

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-Tem minha garantia. Agora saiam com as mãos bem para cima – assegurou ordenando o militar graduado a empenhar sua palavra. - Já estamos saindo. Dois minutos depois, sobre a mira dos militares, apareceu Quintino, tremulo assustado a olhar para todos os lados, constatando a vista dos vários canos de armas direcionados para ele. No momento seguinte também saiu o Pereira com as mãos para cima e olhar fixo no representante da lei. - Pronto Sargento. Aqui nos tem – explicou – nós nos rendemos. Um de vocês tem uma pontaria maldita e certamente eu e este aqui não faríamos frente. Saindo em aberto, Bentevi, Antônio Careca e o Sargento Teixeira ficaram bem perto dos dois marginais rendidos. Os meliante ouviram então a explicação daquele mais próximo de Luzia Quitéria, que permanecia embuçada, no caso Antônio Careca. - Não foi de nenhum de nós qualquer tiro contra vocês. Mas sim: de uma determinada mulher. Luzia! – chamou – pode se achegar. Ao pedido, aquela surgiu por entre a vegetação com sua inconfundível vestimenta e arma na mão. Antônio então completou. - Eis Luzia Quitéria. Foram seus tiros que fizeram quedar seus comparsas. Pereira a olhou boquiaberto. - Vosmecê é então Luzia Quitéria? Dão do Espinheiro me falou de sua pessoa. Por ele agente tinha ido atrás de você. Não sei o que você lhe fez. Mais agora compreendo o medo que ele tinha só em ouvir seu nome. - Eu – começou Luzia sem dar importância ao que o marginal falara – ouvi bem a promessa do Sargento de que seus homens não atirariam em vocês. Mais eu não prometi isso - Completou a frase movimentando seu rifle com assombrosa destreza; em fração de segundos a arma já estava em riste apontada para aquele marginal. Tão rápida foi sua ação que o Sargento Teixeira não teve tempo de tentar impedir o movimento da pistoleira. Quintino e Pereira, atarantados apenas gritaram. - Você prometeu Sargento! Não deixe ela nos matar. - Realmente o Sargento prometeu que os homens dele não atirariam em vocês. Não prometeu ele, que eu não faria isto. Explicou Luzia Quitéria a sorrir pela cara de assombro dos facínoras. Foi aí que o milite expressou. - É verdade Luzia! Por favor não quebre minha palavra. Ela olhou para o jovem militar e sorriu baixando a arma. - Certamente Sargento, certamente – completou virando-se de costas a caminhar para sumir na vegetação em busca de sua montaria. Deixando os militares a respirarem aliviados. Antônio Careca soltando uma soberba gargalhada quebrou o clima de tensão a observar a poça de mijo que se formou nos pés daqueles, agora, não tão temíveis matadores.

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Quitéria plantara mais uma semente no seu tão avantajado conto, fazendo ainda mais sua fama propagar-se pelos sertões. - É verdade Sargento. Vosmecê prometeu apenas por nós, não por ela – relembrou o praça calvo.

LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

De Wanderley da Silva Marques

Capitulo V

Após aprisionar os dois meliantes amarrando suas mãos para trás com cordas

grossas e bem firmes, estando estes em selas de seus animais, o trio de milites ganhou suas montarias a botaram-se na condução dos marginais. Mal vencidos vinte metros, o Sargento adiante dos bandidos com as praças fechando a retaguarda fez uma parada a erguer o braço. - O que foi Sargento Teixeira? – perguntou um dos soldados.

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- Será que é possível os senhores conduzirem estes cabras sem minha pessoa? – respondeu perguntando Os milicianos sem graduação riram e Antônio falou. - É claro Sargento! Vá rápido pode não ter a sorte de encontrar a pistoleira. Ao falar, olhou para seu par a piscar o olho no que este segundo complementou. - Corra homem! Ou seu coração vai sentir o peso de uma saudade. Se deseja a mulher: vá. Diga a ela. O Sargento apenas sorriu, seus homens haviam compreendido que ele estava muito impressionado com a moça. Afinal não só eram as qualidades de briga, Luzia era um fenômeno de mulher. Ganhando a mata fez seu bagual cavalgar alucinado na direção que a cachopa sumira. Quase uma hora depois, em desdobrado esforço a localizou cavalgando por uma trilha. Esta parou ao notar a aproximação do homem e já foi buscando sua arma. Ao virar-se de frente sorriu ao reconhecer o militar que vinha a gritar em plenos pulmões por seu nome. Quando os cavalos emparelharam, a moça já havia guardado a arma e o Sargento frente a ela sorria numa alegria transparente com certo ar de bobo. A moça franziu o cenho meio preocupada mas o milite acalmou-a a explicar. - Dona Luzia, sei que vossa pessoa não me conhece. Muito menos eu a você. Contudo desde que a vi algo disparou em meu coração e ele bate como quem vai explodir quando estou a olhar para vosmecê. Bem como: da mesma forma quando nos deixou estas batidas passaram a ser uma agonia danada que me sufocava e tomava o ar como que algo estivesse a me corroer internamente, me causando um desespero arreliado e uma sensação de querer gritar, correr em busca de sua pessoa. Esta mistura de sentimentos é tão forte que só assim de olhar para sua pessoa eu já me sinto feliz como que a senhora fosse tudo ao mesmo tempo, tudo que eu preciso para viver, para existir. Então se o remédio foi partir ao teu encontro para te dizer da maneira mais simples e direta possível... Nesta pequena pausa a pistoleira ficou rubra e o sargento buscando coragem soltou de uma vez - Que eu quero me casar com você. E a pergunta é. Vosmecê aceita? Luzia não esperava aquela atitude por parte do homem. Contudo ao ver a expressão de prazer e alegria com que este falava dela, algo tocou em seu coração e descendo do cavalo ficou no solo frente ao milite, a fita-lo, aturdida com o que acabara de escutar. Teixera copiando seus movimentos saltou no terreno. Olhando ele nos olhos a justiceira não soube responder nada. Havia ainda em seu corpo um receio gigantesco por homens; mas diante da declaração do militar, bem pouco mais velho que ela, deixou-se abraçar por este e em breve se beijavam ardentemente no meio da mata. Ao contato do corpo do homem, novas sensações varreram a alma de Quitéria, e palmo a palmo o medo do sexo oposto foi se acabando. Logo as mãos ávidas do milite exploravam suas formas numa volúpia incontrolável e prazerosa que ela também respondia e explorava da mesma forma. Roupas foram arrancadas em meio às chamas do desejo. Atracados como se fossem um só, rolaram por sobre a relva a ter seus corpos entrelaçados pelos membros do amor numa cavalgada de

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vais e vens que repetiram duas, três vezes a cópula. Quando foram vencidos pelo cansaço e o esgotamento do desejo, ficaram lado a lado a contemplar as estrelas que surgiam prenunciando a noite. A respiração dos amantes foi voltando ao normal gradativamente e aqui o Sargento voltou a perguntar, movimentando-se em posição a ficar olhando para mulher dos seus sonhos. - Quer casar comigo? Luzia virou-se para este e sorrindo ao conhecer o verdadeiro prazer, respostou. - Até que gostaria Sargento. Mas há muitas coisas que nos distanciam. Vosmecê me ensinou o que é amar de verdade. Coisa que me parecia impossível. Entretanto não sei se estou pronta para me unir a um homem... O Sargento a interrompeu. - Mas eu lhe amo! Esta sorriu. - Isto é muito bom Teixeira. Só não sinto que seja hora deu me casar. Devo aprender um pouco mais. Tudo isto é muito novo para mim. Agora, quando não tiver dúvida nenhuma de que é isto que eu quero, eu lhe procuro. O Sargento sorriu meio a contragosto. No entanto aceitou a explicação da mulher. Nada sabia dela, excerto que a amava e se ela não tinha certeza disto não lhe restavam alternativas a não ser concordar. - Tudo bem Luzia. Contudo, prometa-me algo que quero saber. - O que seria?– perguntou ela. - Que quando entender que é hora de se aquietar e de procurar um homem para casar. Irá me procurar e aí me dirá se eu sirvo para você. Olhando-o nos olhos enquanto ele falava, a mulher sorriu e já totalmente desinibida, prometeu. - Dou-lhe minha palavra. Novos beijos e novas carícias os levaram a se entregarem a mais uma viagem pelo mundo do deus Vênus. Ao nascer do sol os dois amantes tomaram cada qual o seu caminho. Carregando em seus íntimos os desejos de que ainda se encontrariam. ... Inexplicavelmente sem entender como o miliciano conseguira fazê-la perder o temor por homens e ainda mais entregar-se com desejo, cavalgava a pistoleira na manhã seguinte a pensar nos fatos da noite passada; ao passo que noutra direção galopava o Sargento Cleides Teixeira, também a matutar consigo mesmo imaginando um futuro próximo em que poderia ter a pistoleira só para si, como sua companheira. O sorriso nos lábios e o rosto de alegria demonstravam que por sua cachola os pensamentos eram os mais positivos possíveis. No meio do dia desta nova jornada do astro rei, acompanhou seus comandados e juntou-se a estes na condução dos prisioneiros. As praças pelo ar que o outro chegou entenderam que algo de bom devia ter acontecido ao seu superior e a prova disto era só olhar na cara do

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graduado. Entrementes se mantiveram em silêncio até que o próprio Sargento resolvesse querelar com eles. Zé Pereira e Quintino, aprisionados não davam a menor importância a felicidade do outro, pensavam no que lhes esperavam quando chegassem à cidade aonde deveriam responder por latrocínio. As certezas que tinham eram de que suas vidas valiam bem pouco já que cultivaram inimizades poderosas na cidade que agora se dirigiam. ... Depois de andar por aqui e por acolá, vagando na direção que o nariz lhe mandava; Luzia Quitéria aportou no Distrito de Fátima, alto sertão de solo paraibano. No lugarejo encontrou na rua principal uma pensão-pousada e nela resolveu se registrar por uns dias a fim de descansar o espinhaço das noites pelas campinas, também para voltar ao convívio social. Sua mente nestes dias brigava a pensar no milite e noutros momentos em Pedro Junior; o filho de Pedro Batista que cheio de modos gentis procurou cativá-la. Portanto dois homens inteiramente contrários na forma de pensar. Um dado no trato da força e das armas, Sargento Teixeira, o outro na arte das letras. Entre estes dois seu coração levava lhe a pensar no que optar. Assim! Chegou a Fátima e fez parada para se situar melhor. Na pensão, pela tardinha reunia se os hospedes para prosearem enquanto aguardavam a hora da ceia; e sob a alta calçada do estabelecimento reuniam-se os mais diferentes tipos que por ali frequentemente passavam, já que a estrada entre estados cruzava aquele trecho, tornando-o passagem obrigatória. Naquela hora, percebeu Luzia dois caixeiros viajantes, um vaqueiro de idade avançada, um senhor de modos gentis trajando um elegante terno, uma senhora acompanhada de uma moçoila novinha, na flor da idade, um cavaleiro de aproximadamente vinte e cinco anos, bigode fino, vasta cabeleira loura, olhos azuis, trajando-se socialmente, de elevada estatura, pele branca e fala mansa. Este logo lhe chamou a atenção por portar no pescoço um lenço vermelho, estranho as vestes e também por fazer disparar no seu ser um alarme no sexto sentido. O individuo lhe causava arrepios, apesar de ter uma aparência bastante atrativa. Subitamente irrompeu pela ruela um barulho ensurdecedor que fez todos os hospedes ficarem de pé para buscar o ponto de onde vinha tanto alarde. E no início da rua destacou-se uma centena de meninos a gritar eufóricos em volta de uns caras pintadas a andar em umas enormes pernas de paus a propagandear o espetáculo circense que iria estrear naquela noite. O mestre dos risos, palhaço Supipa prendia com eximia precisão a molecada em volta dele a grosar os seguintes chavões: - Hoje tem espetáculo? A molecada em coro respondia. - Tem sim senhor. - E o que é que o palhaço é? - Ladrão de mulher. Por aí seguia as novas grosas, cantadas. - E o que é que o palhaço tem? O coro volteava. - Carrapato no xedem.

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... O circo era um mundo mágico e de fantasias, em uma época em que a dureza do código de vida exigia um coração valente, estes artistas perambulantes eram verdadeiros mitos, amados, respeitados e gozadores de elevada estima. Dentre estas companhias a do Coronel Zé Pelado, tornou-se uma lenda viva, talvez a maior de todas a percorrer todos os estados do Nordeste. A Noite as pessoas ansiosas, saiam às ruas dirigindo-se para onde estava instalada a trupe circense. O fenomenal Circo Pavilhão Bandeirante compunha-se de uma tenda circular enorme, sendo esta, a principal, arrodeada por uma cerca de arame; entre esta tenda e as cercas ficavam as tendas menores, as residências dos artistas. Na tenda mestre, arrodeando a seguir seu desenho destacava-se quatro poleiros de madeiras com nove lances de degraus de tabuas de madeira e que cabiam em torno de quinhentas pessoas, após os poleiros, uma armação também circular, só que de grades de madeira a altura de um metro, separava o picadeiro da grande massa, existindo ainda neste espaço, uma centena de cadeiras mais confortáveis, aonde geralmente se dirigiam os senhores de mais posses e as autoridades do lugar. Entrementes, dali ou do poleiro, o Pavilhão era uma garantia de satisfação. No picadeiro, ou palco, um estrado quadrangular junto à empanada frontal aos poleiros, soerguia só um pouco adiante os dois mastros principais, local em que ficava dependurado o trapézio, ponto culminante das apresentações por apresentar mais riscos. Às sete horas desta noite, o circo já estava lotado e entre os assistentes estava sentada na parte central, justamente nas cadeiras de honra, a intrépida Luzia Quitéria que até ali não dera ao conhecimento de ninguém sua verdadeira identidade. As sete e trinta o Coronel Zé Pelado, mestre de cerimônias iniciou a abertura dos trabalhos, agradecendo a estadia e a recepção calorosa por parte da gente daquele rincão. Após esta fala por meio de um suspense que só aquele homem era capaz de criar, anunciou a primeira atração para o aplauso e o delírio do público presente. Quitéria, abismada estava fascinada com o que estava vendo: mágicos, atiradores de faca, trapezistas, malabaristas, equilibristas, cantores, dançarinas, e, palhaços, o xodó do povão. A mulher parecia mergulhada em um mundo de fantasias muito além da realidade, o mágico a magnetizara com suas performances de natureza misteriosa e inexplicável aos olhos daquela gente; o equilibrista a fez prender o fôlego; o atirador de facas causou espantos, e assim, a cada atração que se seguiu a menina mulher se deixou levar nas asas da fantasias que o Pavilhão Bandeirante tão bem sabia cultivar. Ainda mais em alguém que nunca antes assistira a um espetáculo. Supipa fechou a apresentação naquela noite e em meio as suas graças seus olhos encontraram os da morena Luzia e deles não quis mais sair, num transe enigmático que levou o homem a descobrir que aquela desconhecida estava arrebatando seu coração. Também Luzia, pela inocência do artista se deixou encantar pela pureza do palhaço e no meio de tanta gente só estes dois se encontraram pelos caminhos da alma: os olhos. Estava agora a pistoleira a experimentar novas sensações, similares a que lhe fez passar o Sargento Teixeira. Alheio aos dois jovens o espetáculo chegou ao topo do apogeu; fazendo se encerrar

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a apresentação daquela noite, anunciando o mestre de cerimônias, a nova apresentação para a noite seguinte. ... O sol estava a pino, muito alto, caminhando para perto do meio dia quando Luzia Quitéria despertou na manhã seguinte depois de uma noite de sonhos fantásticos que a levaram por lugares inimagináveis que só a mente do ser humano é capaz de conceber. Após sair do quarto e vir cá fora até o porta bacia: lavou o rosto, enxugou-o com a toalha ali pendurada para este fim, e, dirigiu-se a uma mesa vazia, àquela hora a fim de almoçar. Visto que à hora já convidava. Dali a pouco outros hospedes também se juntaram à moça e esperaram que o comerciante os servisse; coisa que não demorou visto que a companheira do citado os atendeu com a máxima presteza. Aos poucos os hospedes foram trocando palavras e logo um bate dente acirrado se travava entre os presentes, excerto com Luzia Quitéria, esta se mantinha alheia absorta em pensamentos que a levavam de volta ao circo. Assim ou agora! Três homens conseguiam atingi-la no coração cada qual a sua maneira. Estava Luzia a olhar para o prato quente de rubacão com toucinho frito e ovos passados que trouxe a cozinheira, quando o galego vendo-a perdida em devaneios buscou sentar-se na mesma mesa que ela, “a hospede cujo nome ele não sabia”, mas que iria descobrir agora. Aquela moça de uma beleza irradiante lhe provocava desejos os quais tencionava realizar. Chegou à mesa e foi logo sentando sem pedir licença já que também era hospede da pensão. Acomodado, falou em tom rosado, buscando cavaquear com a morena. - Belo espetáculo o de ontem de noite não dona menina? O galante acertou em cheio no início do dialogo, visto que ao perguntar pelo circo, Quitéria ergueu os olhos a fita-lo voltando à realidade. - De fato. Foi muito bom. Respondeu a fixar seus olhos nos do mancebo e assim bem de perto pôde ter certeza de que aquele homem não era flor que se cheirasse. Depôs de fita-lo e sentir o desagrado da presença do mesmo, baixou a vista a puxar o prato de comida para junto de si. Então o interlocutor voltou a indagá-la. - A moça parece que não quer conversar ou é impressão minha? Novamente Luzia ergueu os olhos e desta vez fechou a cara mostrando o seu descontentamento com o outro. - Tem razão. Não estou muito boa hoje – explicou secamente. O galego ia insistir num diálogo, contudo resolveu calar-se. Já estava ao seu alcance o almoço e aproveitando a deixa, passou a ingerir o alimento sem tirar os olhos da morena que de rosto baixo, fazia questão de não fitar o companheiro de mesa. Subitamente a porta de entrada da pensão se abriu a provocar um som rangente pelas dobradiças secas, e por ela adentrou um homem de estatura mediana, aparentando uns quarenta anos, fazendo-se acompanhar de dois jagunços fortemente armados e com roupas totalmente empoeiradas, num sinal claro de que estavam nas estradas até ali. Os olhos do trio varreram todas as mesas e ao depararem com o cavalheiro na mesa de uma bela mulher a comer calmamente, buscaram se avizinhar já com

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revolveres na mão. Os hospedes ao notarem a cena saíram das mesas a abandonarem os pratos. O proprietário do empório mediante a invasão do trio armado ficou a estudar o que eles iriam fazer. Com os movimentos dos demais ali presentes o galego voltou sua cara para ver quem entrara e ao deparar com aquele trio, sua face endureceu num sinal de preocupação, antes de fazer qualquer movimento, uma voz soou a ordenar saindo daquele que parecia dirigir o trio. - Fique quieto Cinézio. Não tente nada ou então vai comer capim pela raiz – alertou já de armas apontadas para o acompanhante de Luzia Quitéria; esta quieta diante da cena, continuava a comer como se nada tivesse acontecendo. - Ora! Ora! Ora! Vocês nunca desistem não é Enéas? Não chega às mortes dos seus últimos ajudantes? O indagado sorriu melancólico. - Chegaria Cinézio. Chegaria. Principalmente se você já estivesse morto. Ao ouvir esta afirmação, o galego denominado de Cinézio moveu-se lentamente a ficar de pé, de frente aos recém chegados e de costas a Luzia Quitéria. Conversava com uma confiança exagerada para quem se encontrava diante de três armas apontadas para ele. - E o que vai fazer então Enéas? Vai me matar? Asseguro que meus irmãos não vão ficar muito contentes com você. Cê tem família, mulher, filhos. O homem que estava sendo alertado pareceu sentir a ameaça, pois sua arma oscilou quando deixou seu braço pender na dúvida. No entanto seus camaradas mantiveram a mira e um deles, meio alto de barba grande e dentadura falha, tomou mão da situação. - Cinézio! Se preocupe com isso não. Depois de levarmos você, também vamos pegar teus dois irmãos. A esta frase aquele chamado Enéas voltou a sentir firmeza. - É verdade. Seus irmãos são tão culpados quanto você nas mortes do velho casal de ancião nas terras de Benevides Gadelha, lá no Pernambuco. Luzia terminando de almoçar, espreguiçou-se lentamente e ficando de pé, notou que o trio voltara os olhos para ela, e como algo despertara nela desde que vira o companheiro de mesa. Pediu com muita calma que explicassem o que estava havendo. Pois se o moço fosse culpado por algum crime ela também se uniria ao trio para caçar os irmãos do distinto Cinézio, desde que fosse aquela uma causa justa. Enéas, intrigado pela atitude daquela mulher cuja beleza se fazia notar exageradamente, cingiu o cenho a perguntar-lhe. - Mais quem a senhora pensa que é? Qual sua graça? Esta respondeu com naturalidade e insigne firmeza - Sou ninguém não. Mais me chamo Luzia, Luzia Quitéria, uma criada. Ao pronunciar o nome uma expressão de surpresa percorreu o ambiente, pois também por ali o nome da cabocla era conhecido. Cinézio, descobrindo que aquela figura era a lendária pistoleira, sorriu a dar as costas aos seus captores e olhar para a pequena, dizendo. - Não é da sua conta este assunto. Mesmo sendo que é, fique fora ou poderá se arrepender depois.

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Olhando o de frente, mais aliviada por saber que tinha razão quanto ao pressentimento com aquele estranho, apenas voltou a indagar o senhor chamado Enéas. - O que este moço fez seu Enéas, para estar sendo caçado por vosmecês? Cinézio engoliu um seco e Enéas não se fez de rogado, pois todos ali sabendo quem era aquele homem, certamente poderia contar com mais ajuda se assim o causo exigisse. - Este moço é um assassino frio, covarde e calculista. Trabalhava em terras do senhor Benevides Gadelha, um major de patente lá de Bezerros, Pernambuco e certa noite ele e seus irmãos trucidaram um casal de caxeiros viajantes para roubar as jóias que estes transportavam, justamente após descobrirem que aqueles viandantes portavam uma alta soma de valores em peças de metal precioso. Para o azar dos assaltantes um morador do Major presenciou ao acaso o crime destes homens. Tadavia este aí mais seus irmãos para não deixar provas nem testemunhas. Mataram também o agregado que passava por ali em companhia de um filho menor. E lhe asseguro dona! Foram extremamente violentos para com estes dois últimos. Sendo no entanto aquele colono compadre do Major que era padrinho do rapazote e gozadores da boa fé deste; o homem mandou investigar o causo por toda região. Como os irmãos deste cabra aí, moradores da região eram pobres e subitamente apareceram gastando demais, não foi difícil chegar ao fio da meada que causou a fuga dos ditos assassinos. Os quais vem sendo perseguidos por mim por quatro estados desta região a mando do Major Benevides que quer eles capturados vivos ou mortos como medida de justiça aos trucidados – neste ponto o homem fez uma pequena pausa e continuou – Ainda tem mais! Já descobri que eles andaram matando e roubando por aí afora neste mundão de Deus. Resumindo o rosário de miserais destes tais, por último no vizinho Ceará mataram um casal de velhos fazendeiros a fim de se apossarem das suas economias. Como se não bastasse as maldades deste bando contra os dois velhos, ainda espancaram brutalmente um aleijado que vivia sob a guarda daquele pobre casal, o moço era paraplégico, surdo e mudo, não havia como delatar este elemento com seus irmãos. Espancar m aquela criatura por que na verdade eles são gente ruim, da pior espécie. Porém como a justiça tarda mais não falha, alguém descobriu os corpos dos velhos ao passar em sua residência e preso na mão do deficiente um lenço vermelho igual ao que este daí esta usando agora. O que tornou possível posteriormente se descobrir quem tinha feito aquilo, já que tanto este aí como seus irmãos gostam deste adorno desta cor. Ainda mais por um destes aí dirigir um cartório de escrituras publicas naquele rincão – nova pausa, um curto pigarro e a conclusão da narrativa – Como existem vinte contos de réis pela prisão destes elementos de qualquer forma que seja ofertado pelo Major Benevides, mais sete contos ofertado pela justiça do vizinho estado pelas mortes dos fazendeiros e do deficiente, cá estamos nós em busca de livrarmos o mundo destes meliantes. Neste ponto Cinézio sorriu a desafiar. - Vinte e sete contos que você vai gastar no inferno. Pois é para lá que tu vai quando meus irmãos vierem atrás de você, como no nosso último encontro aonde alguns dos

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teus seguidores bateram com a caçoleta – falou voltando a olhar para os caçadores de recompensa. Luzia Quitéria, sorrindo avisou. - Caso vosmecê não consiga prender os demais e precisar de uma ajuda. Estou pronta para ajudá-lo, visto que vou ficar mais alguns dias por cá. E sendo este sujeito o lixo que é! Bom mesmo era o senhor meter uma bala na cabeça dele e acabar logo com isso. Cinézio voltou a olhar para a mulher, desta feita com um ar de preocupação; sua coragem pelo ensejo daquela fala a seus caçadores caíra completamente, e ao saber que aquela mulher era a temida Luzia Quitéria, resolveu silenciar para não complicar mais ainda sua situação. Erguendo as mãos para o alto, logo foi dominado, desarmado e amarrado para depois ser conduzido a um cavalo guardado por um quarto homem que os esperava lá fora. Enéas da Cunha Rolim Neto, o caçador de recompensas, era um sujeito perspicaz, audacioso, vivia daquela forma desde que completara a maior idade quando caçara o primeiro quadrilheiro que ouvira falar. A recompensa pela cabeça do homem o levara a vida que assumira e dedicava-se com eximia presteza a arte de caçar bandoleiros. Geralmente contratava algum jagunço para servi-lo e a troco de bom pagamento não era difícil ter boa gente a sua disposição. Nesta empreitada contra o trio de manos meliantes já perdera sete homens, mas a contento da sorte, agora conseguira capturar o mais perigoso deles e com isto tinha certeza de ter dado o passo certo para acabar com aqueles três miseráveis. Enéas era natural da Catingueira, Paraíba, filho de Totonho Moreira. O homem atuava como se fosse um delegado especial e de fato já fizera muitos serviços para o governo. Vendo os hospedes esta figura sair com Cinézio inquirido em cordas, comentaram contentes que o sertão estava melhorando e aos poucos o braço da lei de uma forma ou de outra ia alcançar a todos. Dispensando o apoio de Luzia em relação aqueles matadores e solícito, convidando-a, a deixar as portas abertas para se juntar a eles quando aquela quisesse; os caçadores fizeram uma nuvem de poeira a subir pela estrada quando sumiram em um galope sob os olhares dos curiosos que agora voltavam às vistas para a moça identificada como Luzia Quitéria. Assim, correu rapidamente o zunzum pela vila dos fatos acontecidos na pensão e os boatos de que a famosa Luzia Quitéria estava no lugarejo não demorou em atingir ao circo que com o correr das horas e a chegada da noite, abriu suas portas para mais uma apresentação. ... Ao término do espetáculo o coronel Zé Pelado foi em pessoa ao local em que estava sentada Luzia Quitéria e convidou-a para conhecer o circo mais profundamente. Tendo a moça aceitado o convite o homem a conduziu barraca por barraca. Proseando animadamente a apresentá-la a gente da trupe que curiosamente os seguia formando um aglomerado. Na barraca de Supipa, quando este cumprimentou a mulher apertando-lhe a mão, seus olhos se cruzaram a trocar palavras que só estes entenderam; falaram pela linha do coração. Zé Pelado, também conhecido pela alcunha de Tampinha, captou no ar o clima que nascia entre o palhaço e a pistoleira e não perdeu tempo em convidar a menina para se juntar ao seu povo; no que Luzia relutou mas foi convencida pelo homem que a coisa seria simples e

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logo Luzia seria também uma grande nome no mundo artístico pelas apresentações que iria fazer em disparos com armas de fogo. Tendo Luzia aceitado a tarefa, o Coronel Zé pelado passou a preparar o número que a cabocla iria apresentar, e após ter estudado e decidido como seria: na tarde seguinte o palhaço propaganda saiu às ruas a anunciar também a estréia da pistoleira. Estas alviças agradaram em especial ao comediante Supipa que sentiu aí a possibilidade de conquistar a morena Luzia, com quem seus olhos cruzaram em flertes de paixão. À noite, o povo respondeu aos anúncios; tanta gente veio ao circo que o número de assistentes dobrou. A expectativa da exibição da mulher era o ponto alto da apresentação e para o Pavilhão parece que naquela noite a população de Fátima convergiu inteira. Passaram-se os artistas em suas várias apresentações arrancando aplausos do público e quando do último ato, os lampiões do circo foram apagados a deixar apenas um archote central que dava boa luminosidade ao Mestre de cerimônias que cheio de maestria anunciou a apresentação final; Luzia Quitéria: a melhor atiradora do Brasil. Os aplausos triplicaram, gritos, assovios, palmas, um alarido ensurdecedor encheu o ambiente por uns sete minutos e aos poucos foi perdendo força à medida que os lampiões voltavam a serem acesos, e nestas alturas já estava Luzia ao centro do palco trajada de vaqueiro em uma roupa típica de aboiador em plena caatinga. Sustentava na mão um rifle a ter cruzado em seu corpo uma cartucheira repleta de balas. Quando se impetrou o silêncio totalmente, Zé Pelado anunciou aos gritos em plenos pulmões: - Senhoras e Senhores; neste exato instante o Pavilhão Bandeirante tem a honra de exibir a primeira e única! A mulher de fibra, a defensora dos pobres. A juíza de ferro, a mais bonita e valente mulher que o sertão produziu: Luzia Quitéria – Neste momento, o público estava apreensivo, contudo manteve se calado como quem buscando apreciar cada momento e o Coronel Pelado, também de vulgo Tampinha, prosseguiu – Em exibição de disparos... – neste ponto de pausa alguns assistentes do circo correram ao palco a armar os cenários de exibição da “pistoleira”. “Seis litros foram colocados amarrados em linha, na vertical, deitados” presos por fios ao longo dos corpos de maneira a ficar a boca em direção a justiceira, numa espécie de trave na mesma altura de um estrado em que se encontrava aquela. Quando a mulher sinalizou que estava pronta, rufou um tambor brevemente, e ao seu silêncio a atiradora moveu numa velocidade impressionante a alavanca de sua arma, soando seguidamente seis disparos consecutivos. O som dos tiros e o espalhar dos fundos dos litros seguia-se quase em igual espaço de tempo. Quando esta parou, desceu do estrado. O povo que acompanhava o movimento lhe fitava com assombro. Os seis projeteis numa distancia de mais ou menos quinze metros vieram a entrar pelos gargalos dos litros a espatifar-lhes os fundos, em todos os seis o feito foi igual. Terminado, os assistentes recolheram os litros para exibir a platéia o resultado da ação. Aí uma salva de palmas ovacionou a mulher acompanhada de gritos de “hurra”. Quando se restabeleceu o silêncio Tampinha anunciou a nova modalidade de disparos. Assim, Luzia disparou seis vezes em seis pratos que foram atirados para cima. Varou todos ao centro. Após em seis moedas: acertou em todas. Depois ainda, arrancou um

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cigarro da boca de um assistente numa distancia de vinte metros com um tiro de eximia precisão. A esta última encenação Tampinha anunciou o fim da apresentação e para prever o espetáculo da noite seguinte esperou mais de dez minutos o povão restabelecer o silêncio, tão grande foi à algazarra após cortar o cigarro da boca do homem. Nas noites seguintes novas provas foram apresentadas à atiradora e a cada uma ela sobressaiu-se com total aprovação; até um desafio de competição foi lançado mas ninguém ousou competir com a mulher; Luzia Quitéria era realmente impar no manuseio de armas de fogo. Dez dias depois de seguidas apresentações recheadas de sucesso o Pavilhão Bandeirante ganhou as estradas e a caravana circense em dois paus de arara rumaram a convite do governador do Maranhão para a capital daquele Estado, haja vista ser o mês do aniversário da cidade. Nestes tempos, o espetáculo ambulante, o rádio a válvula, eram as vedetes do “show bisnes” e o Pavilhão Bandeirante era um mito nos estados da grandiosa região nordeste, daí a sua convocação pela grande autoridade estadual. Viajava os dois veículos pelas estradas de chão batido a uma velocidade medíocre, conseqüência do mal estado daquelas vias, melhor aos cascos de animais do que a pneumáticos. Neste avanço enfadonho a caravana esbarrou noutro dia destes por aí num lugarejo encravado as costas de uma volumosa serra; por sinal o nome do povoado era Pé de Serra. Numa parada comercial as margens da estrada, embaixo da frondosa sombra de um secular juazeiro, ali ladeado por uma árvore de outra família, uma também enorme e velhíssima pitombeira; local em que algumas mulheres foram para tomar uma fresca a espalharem-se na proteção dos magníficos ramos que se projetavam em todos os ângulos a cobrir a luz do sol, naquela hora, torrando; para o ponto comercial muitos homens da caravana se dirigiram. Alguns logo voltavam a trazer objetos de provisões, outros permaneciam no interior da casa a beber uma aguardente ou bater com a língua nos dentes matando a hora. Numa mesa próxima ao balcão, sentavam-se: Jaime, o equilibrista Homem Elétrico, Mauro Márcio, mágico, José Wilson, atirador de facas e Supipa. No balcão bebiam uma dose: Eulávio, ajudante de serviços. No recinto ainda havia algumas pessoas do lugarejo além do comerciante. Foi quando surgiu por ali, vindo da rua, por uma porta transversal aquela que os andarilhos estavam fazendo uso para entrar no estabelecimento, um caboclo achaparrado, de uma massa muscular bem desenvolvida; estatura mediana, cabelos encaracolados. Lábios enormes; narigão achatado. Olhos negros com uma sobrancelha a encontrar-se a outra, fechando se o encontro dos pelos que eram enormes, sobre o nariz. Trajava uma camisa de chita cheia de flores, avermelhada, uma calca de tecido de algodão meio marrom, e calçava uma sandália de rabicho. Cambaleava num sinal de elevado estado etílico. Chegou e os que o conheciam calaram suas matracas, com exceção dos artistas de circo que continuavam a prosear entre si. Este último olhou a todos após estar escorado no balcão com as mãos abertas em ângulos contrários e ter o corpo na linha de cintura ligeiramente debruçado sobre o estrado de tijolos. Lançando um olhar aos presentes passeou com os olhos por todo o ambiente, com uma cara de fazer medo não só pela feiúra que lhe era peculiar mas também pela torcida dos beiços que redundou numa careta horripilante. Neste momento, Supipa estava de costas aos companheiros de mesa e até

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ali não havia notado a presença do indigesto. Foi quando soltou uma piada entre eles mesmos a arrancar uma explosão de gargalhadas de seus camaradas. Igual ao escancara bocas o elemento voltou à cabeça naquela direção. Automaticamente com ar de poucos amigos, ao passo que Supipa, foi levantando-se para vir ao balcão pedir uma dose de pinga, já que bebiam por bicadas. Ao notar o avanço do outro o feio ficou quieto. Impressionado com a cara de feiúra deste chupa rolhas, Supipa parou até de rir, apenas caminhou para o balcão ficando próximo daquela impressionante figura. Foi tudo muito rápido, o moço em dois passos juntou-se ao palhaço e quando Supipa girou o corpo para olhar ao dito, apenas sentiu uma dor lacerante na barriga e num impulso de defesa empurrou com todas as forças o corpo do brutamontes, sem se quer gritar. Ao desandar o feioso já aproveitou a sair correndo por onde entrou a sumir pela ruela, ganhando o mato. Supipa cambaleou e ao olhar para as mãos contemplou o sangue vertente de um profundo golpe na barriga, depois rodopiou perplexo a ficar de frente aos companheiros que não haviam notado o lance pois continuavam proseando entre si, e tombou caminhando para cair sobre a mesa entre os companheiros. Jaime assustado desemborcou o camarada a pensar que fosse uma brincadeira, mas o sangue fluente e as tripas a escapar pelo talho o fizeram gritar alucinado. Zé Wilson correu em busca do proprietário a perguntar-lhe o que havia ocorrido; Márcio saiu de encontro a Tampinha para chamá-lo, encontrou a bater com força duas pedras entre si, num tabaqueiro de chifre de boi, que trazia a cintura, No exato instante em que uma fagulha ardia à lã do algodão depositada no cano do chifre. Já chegou ali arreliado a contar o ocorrido, ainda sem saber o que houvera ao certo. Daí o corre-corre foi geral; gritos, lamentações, choros. Supipa foi trazido para fora e deitado numa tipóia passada a sombra da baraúna; Luzia aperreada correu a se ajoelhar junto do palhaço a olhá-lo com ternura e a alisar os seus cabelos. Este a fita-la de frente: já que entre ambos nascia uma forte amizade, regada a flertes de amores, tentou falar, ao tempo que Dona Mereciana, a sogra do Coronel Zé Pelado, buscava conter a hemorragia e cuidar da ferida ganhando contornos horríveis já que por ela às vísceras do palhaço saiam; com cuidado e precisão, a anciã pressionava estes órgãos tentando introduzi-los na barriga, numa luta desigual já que não lograva êxito. Supipa sentindo a desgraça se avizinhar, sem compreender o porquê e a olhar para a mulher amada, sorriu deixando uma lágrima cair pelos olhos a explicar a pistoleira; que também tinha os olhos marejando. - Luzia! Esta não é à hora mais adequada. Não havia te dito com palavras os meus sentimentos. Como sei que vou morrer, quero que saiba que eu... Não chegou a concluir a frase, um espasmo pelo corpo, conseqüência do estado exangue o fez revirar os olhos morrendo, estando suas mãos entrelaçadas com as da moça, que chorando concluiu. - Eu também Supipa! Eu também – foi só o que disse, dali se levantou a se desencilhar das mãos do comediante. As mulheres, crianças, os homens eram uma tristeza só. Zé Wilson acompanhado do comerciante e mais dois outros homens chegaram neste momento a relatar ao Coronel Zé Pelado o que houvera ali dentro. Nem mesmo estes sabiam explicar ao certo; mas um dos habituais fregueses da casa, um senhor chamado Henrique Belém; um

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velho negro, professor de português, que assistira a tudo informou a todos o que ele notara e que de certo fora a causa do ocorrido. Já sabendo a gente do circo quem era o matador de Supipa. Informou o mentor da língua oral ali expressa que tendo o crioulo chamado Inácio Cruz, “o bicho” adentrado no recinto no exato instante em que os homens do circo tagarelavam entre si algo engraçado, certamente o feio achara que fora dito com ele, por sua conseqüente feiúra e daí metera o aço no infeliz Supipa que morreu inocentemente. Zé Pelado e um grupo de homens se prontificaram a dar caçar ao assassino do palhaço a quem o proprietário do espetáculo ambulante tinha como filho. Entretanto a obrigação do compromisso com o governador e a obrigatoriedade de que o show nunca deve parar, empurraram a trupe no caminho do compromisso. Todavia, Luzia Quitéria se desmembrou deles, após acerto com Tampinha ficou ela encarregada de ter que pegar o cabra matador de Supipa. Quando eles partiram, ainda ficou de pé no meio da estrada com o animal pronto assistindo os paus de araras se afastarem levando o corpo do comediante em meio ao silêncio funesto que se instalou entre os membros daquela grandiosa família. Tampinha no lado da porta da boléia do caminhão, ainda perto, colocou o braço para fora da janela do automóvel a acenar para a pistoleira. Resmungando entre dentes o desejo de seu intimo. “Mate aquele covarde por nós Luzia. Um tampo destes não vale pra coisa nenhuma! Só merece é comer capim pela raiz”. ... Ao raiar do dia, quando as cigarras emplacavam suas sibilantes zoadas, incomodas, Luzia Quitéria pôde ser vista a cavalgar no dorso de sua montaria em direção ao lugar chamado Fogo Morto, uma comunidade negra um pouco distante do vilarejo aonde sucumbira Supipa; aquele lugar era onde morava Inácio Cruz, “o feio” em meio aos parentes e em especial sob os cuidados de um tio chamado Fausto cruz, um homem de uma coragem e valentia que impunha medo a qualquer um. Este Fausto em luta de lâminas já vencera mais de vinte homens e só uma única vez fora ferido em um desafio aonde amarraram as pontas da camisa; vencera o antagônico matando-o, porém ficara muito ferido, visto que o adverso era também cabra bom de peleja. Obrigando o cavalo a trotar por uma ruinha estreita de pouco uso, depois de cinco horas naquela direção, avistou a comunidade bem adiante numa elevação, aonde existiam muitas casas daqueles descendentes de quilombo. Para a primeira destas, em razão de existir três meninos brincando no terreiro, dirigiu sua montaria, parando-a perto dos pirralhos que pararam de brincar para admirarem a recém chegada; uma mulher trajada de vaqueiro. Descendo do animal Luzia se aproximou dos meninos já a perguntar. - Meninos aonde é a casa do meu amigo Inácio Cruz? Como até ali nenhum adulto aparecera; percebendo a presença da visitante e pela maneira como a mulher falou o mais moço já foi logo dizendo. - Mora naquela casa ali senhora – apontou para o local e depois concluiu – Mais não ta aí não! Ta lá nos tanques com um primo dele. Um segundo pirralho reforçou e ainda aumentou.

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- É verdade; isto é lá numa serra nove léguas daqui. É só seguir por este caminho que vosmecê veio e quando chegar adiante lá numa aroeira velha aonde tem uma casa caída, é só a moça entrar por ela e vai dar numa estradinha atrás da casa; daí é só se manter que tu chega aonde tá o Inácio. Ao descobrir o lugar em que estava escondido o homem que viera dar caça, Luzia já procurou mudar o assunto; neste momento uma negra de meia idade gorda como um silo, de baixa estatura cujos movimentos expressavam uma lentidão obrigatória pelo tamanho do corpo, saiu da rústica tapera em que os meninos brincavam e ao notar que tinha alguém ali com os pirralhos já veio a ordenar. - Entra meninada! Todos para dentro. Mal terminou a frase os pirralhos correram porta adentro e esta ficou de pé a fitar a recém chegada que sorrindo buscou mostrar ter vindo em paz. Todavia a negra desconfiada com um olhar matreiro encarou a visitante a indagar-lhe em alto e bom tom. - O que a moça quer nestas bandas? Posso saber? Já com o intento realizado. Decidiu não perguntar pelo assassino de Supipa, mas por seu protetor. - Nada de mais dona? - Jocosa – respondeu à negra. - Nada de mais Dona Jocosa. É que gostaria de ter uma prosa com um senhor chamado Fausto Cruz. E gostaria de saber aonde posso ter com ele? Ao saber das intenções da visitante a negra abriu um sorriso largo. Fausto era uma espécie de chefe ali na comunidade e para aquela moça vir atrás dele o assunto devia ser também de interesse do homem; foi por este lado que pensou a gorda. Indicada da residência do homem Luzia agradeceu aquela chamada Jocosa e fez o animal caminhar com ela puxando-o pelos arreios em direção à cabana do protetor do assassino de Supipa. Com o tinha conhecimento que deste homem poderia vir as maiores dificuldades na sua empreitada, foi antes ter com este, para melhor conhece-lo. Chegando ao pé da porta, entreaberta a metade da parte superior: bateu palmas a chamar. - Oh de casa! - Só um instante já vai, oh de fora. Um minuto depois surgiu a porta convidando Luzia para entrar e sentar um homem de pele escura como ébano, alto, voz rouca, olhos negros e pequenos, a expressar uma vivacidade aguda, lábios grossos, cabelos crespos, rosto comprido com uma fina penugem abaixo do nariz; a amarrar um cordão na linha de cintura da calça que vestia como se este fosse um sinto. Estava sem camisa com o dorso amostra. O cordão era comum entre aquela gente descendente de escravos. Portava nos pés uma sandália “currulepo” e tinha pendente preso ao pé do cordão na cintura, um enorme facão. Naquele momento baforava um pito enorme a fazer sair dos seus lábios, após chupar o canudo, uma lufada de fumaça do tabaco picado. Depois de tomar assento a visitante ficou de frente ao homem que curioso também a estudava como quem querendo adivinhar o que aquela cabrita viera buscar ali.

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- Pois não sadona! O que a senhorinha quer deste preto velho? Luzia o fitou nos olhos estando o homem a mirá-la em estudo do seu ser. - Bem – começou – Não é um fato agradável, mas a obrigação me empurrou até aqui. E como não podia ser diferente sou obrigada a ter com o senhor um assunto um tanto quanto pesado. - Então se fale. Não tem a moça razão para rodeios – cortou secamente aquele chamado Fausto. - Falarei sim. Estou aqui em vossa casa para ter com um parente vosso que goza de sua confiança. O dito sem nenhuma razão aparente no dia de ontem matou a uma pessoa indefesa por pura maldade e como era uma pessoa minha! Preciso ver o “feio” para tirar a limpo esta história. Fausto Cruz olhou impressionado para a visitante. - Não me tome por ignorante. Mais Vosmecê tem muita coragem ou é uma doida varrida. Vir a minha casa dizer que quer pegar um sobrinho meu. Na minha frente – neste ponto o homem fez uma cara de surpresa. Luzia o interrompeu. - Talvez vosmecê tenha razão. Mais não é por atrevimento que estou aqui! É que me falaram que o senhor é um homem justo e neste causo acho que deveria ter primeiro com o senhor. Já que esta situação é de morte e eu não sou dada a atirar em ninguém pelas costas como muita gente ruim por aí. Ao ser cobrado pela exatidão, Fausto Cruz que realmente era assim. Sorriu a amenizar aquele encontro. - Mais qual é a graça de vosmecê? - Luzia Quitéria. O nome não causou nenhuma mudança no semblante do homem. - Já ouvi falar da senhora. Creio que o Melado desta feita vai precisar mesmo de ajuda. Mais como a moça gosta do certo, pode ser que agente chegue a um comum. Entendo sua parte e lhe peço para entender a minha, pois eu ou meu filho não vamos deixar a menina matar meu sobrinho. Avisou de modo mais natural possível, como se aquele dialogo fosse algo banal. Desta feita foi Luzia quem tratou de sorrir, mostrando também está totalmente senhora de suas ações. - Entendo sim. Porém lhe devo confessar que estou pronta para dar ao seu sobrinho o mesmo tratamento que deu a Supipa – neste ponto fez uma ligeira pausa a fitar o homem nos olhos, ainda pitando o cachimbo – E também a qualquer um que se ponha entre eu e ele. Concluiu a frase fechando-a numa ameaça que poucos homens teriam coragem de fazer a Fausto Cruz. Homem bom de briga nas mãos e nos pés, pela capoeira e também na faca e tiro. Este já havia botado muitos adversos para debaixo da terra por muito menos que a petulância de Luzia. Assim endurecendo a expressão buscou encerrar a prosa.

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- A moça de uma coisa eu já tenho certeza! Tem coragem. Pelo que vejo vamos cruzar as armas. Só que não vai ser agora Dona Luzia. O melado não estar a cá nem tão pouco me contou como foi este causo; entretanto! Como não há de ser agora que nós vamos brigar me deixe lhe oferecer um café. Seria uma honra para mim, acolher a sua pessoa um símbolo desta gente sofrida, assim como somos nós de cor. Luzia sorriu cortez para responder a Fausto vendo a sinceridade com que ele desembuchava as palavras. - Agradecida por sua gentileza seu Fausto. Só não posso aceitar; por que adiante como disse o senhor possa ser que cruzemos as armas e seria desagradável relembrarmos que sentamos a mesma mesa. Com sua licença me deixe ir. O homem sorriu a exibir sua perfeita dentadura. - Tem toda Dona Luzia. Tem toda – concordou o anfitrião a lançar seus olhos no véu de fumaça que fez soltar de sua boca. Enquanto a cachopa deixava o recinto a ganhar a sela de seu animal ficou a pensar consigo mesmo. “Desta vez aquele moleque arrumou uma confusão séria. Esta moça é uma parada”. Com as informações colhidas com os meninos, Luzia fez seu animal cavalgar em sentido contrário ao desejado, como dar a entender que estava indo embora. Isto percebeu Fausto Cruz que ficou a sorrir murmurando entre dentes. - Pelo menos a senhora vai demorar a achar o melado. Possa ser que desista desta loucura ou serei obrigado a matá-la. Depois de distanciar uns dois quilômetros do antigo quilombo, a cavaleira fez seu animal adentrar na vegetação e com muita cautela buscou contornar a vila e seguir as indicações anteriores que iriam levá-la ao tal “feio”. Neste momento suas observações em pensamento era como seriam os tanques, já que não fora possível descobrir com ninguém como seria este lugar; tinha por certeza pelo que disse um daqueles meninos é que em se mantendo na ruinha chegaria lá. Já com a distancia calculada na cachola seguiu atenta no caminho. Enquanto ela cavalgava em passo morto a vencer a vegetação viçosa daquela estação; do quilombo, após sua partida, Fausto Cruz se armara e montado em um jumento troteiro, partiu na direção dos tanques para ter com seu sobrinho e filho. Luzia o deixara preocupado, porem como um dia prometera a seu irmão zelar pelo sobrinho, cumpriria com isto a risca não permitindo que alguém o matasse justa ou injustamente; mesmo tendo ele assassinado um homem de forma covarde. “Sobre isto iria querer saber mais do sobrinho” Matutou. No dorso do jegue os pés de Fausto só não tocavam o solo porque este dobrava as pernas evitando tal situação; apesar do seu tamanho sobre o bruto, o animal não parecia importar-se, pois que o carregava como se não tivesse nada sobre si, vista a velocidade do tropel. O sol caminhou no firmamento e as horas correram com ele; quando o astro rei começou a declinar para sair de cena, Quitéria avistou o que seria os tanques. Uma formação rochosa meio plana com gigantescas pedras a espalharem-se por seu dorso e com inúmeras piscinas naturais de várias formas e tamanhos que por conseqüência da estação estavam cheios. Uma vez por outra, cavalgando naquele ângulo em função de seus movimentos e da

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posição física das poças disparos de raios luminosos vinham lhe ferir os olhos, como se fossem lançados por alguém com um espelho partindo estes quando os raios solares incidiam nas superfícies das piscinas. Àquela hora com o sol cavalgando para desaparecer achou por bem Luzia Quitéria, esperar escurecer totalmente, no que lhe facilitaria o acesso sem maiores surpresas. Não desconfiava a menina que o Fausto já ali estava e sentado com seus protegidos conversavam sentados ao pé de uma piscina sobre o encontro com ela. Só não se arreliou o feio, porque sabia muito bem se defender e também contava com ajuda de seus familiares, se Luzia ali surgisse certamente levaria a pior, “pensou”. Quando caiu a noite e a escuridão varreu todo e qualquer tipo de claridade solar com exceção das de projeção lunar, naquela noite muito fraca e também por culpa da vegetação ali crescente, escorregou Luzia Quitéria com cuidados em direção as rochas de arma na mão pronta para usá-la. Com facilidade atingiu aos rochedos e entre o estridor de sons projetados pelos insetos típicos daquela vegetação, sendo que em intervalos iguais o som do miar de um gato chegava aos seus ouvidos com certeza de um maracajá de pele brilhosa: um belo felino daquela região. Avançou deslizando entre as moitas e por outras formações que lhe oferecesse abrigo. Dirigia-se para um claro em posição íngreme de descida há uns trinta metros à frente, ali já plano. Com o máximo de cautela para não ser descoberta veio a perder o equilíbrio ouvindo as vozes dos homens a conversarem sossegados ao redor de uma fogueira bem perto de um piscinão logo adiante. Acaso, no desequilíbrio fez uma pequena pedra rolar, causa que despertou a atenção do trio que batendo das armas lançaram seus olhos na escuridão para divisar o que se avizinhava. Luzia, imediato ao deslize, permaneceu estática no solo, deitada a acompanhar o relevo e tão quieta ficou que os olhos dos negros vieram varrendo aquele ângulo e não desconfiaram de nada. Pois após o primeiro instante de atenção de armas em mãos, Fausto Cruz com a expressão de extrema confiança, avisou. - Pode ter sido aquele gato, o danado estava a miar feito doido ou então outro bicho qualquer. Não deve ser nada. Afinal aquela menina não seria louca de vir peitar a nós três exatamente aqui. Ainda por cima sem saber do teu paradeiro. Triplicando sua atenção a mulher deslizou sorrateira igual a uma serpente para junto do trio de homens sentados em volta do fogo a assar sobre a brasa alguma carne de animal já que o cheiro podia agora invadir suas narinas fazendo a achar que a carne devia estar ótima. A figura ébano de Fausto Cruz ganhava contornos ao ser alcançado pela luz das chamas. Também pode observar Luzia os traços da fisionomia do filho deste homem, bem parecido com os do pai, além da face daquele chamado melado, que sentado tinha seu dorso até maior que o do tio. Contudo a sua face era grosseira e feia, o narigão enorme e achatado espalhava-se em sua cara a dominar a geografia de seu rosto, os olhos enormes recebiam acima uma sobrancelha descomunal, emendada sobre o narigão. Tão próximo estava Luzia que podia perceber outros pormenores dos rostos do trio. Quando o negro Melado falou algo, observou Luzia, sua dentadura falha e enegrecida, oposta aos dos outros dois que as tinham firmes e

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bem conservadas. A face de Melado era grosseira e em sua pele se formavam pequenos sulcos a espalharem-se pelas bochechas. Este falava agora para os outros dois. - É como lhe disse Tio, riram de mim e só pode ter sido aquele homem quem fez a gozação. Daí eu o matei. - Pode ter sido mesmo assim. Mas veja lá se você não se enganou. Porem! O que ta feito, ta feito e de qualquer modo não o deixaremos só. Luzia Quitéria estava agora há uns dez metros do trio que parando de conversar, saboreavam algo passado em espetos. Decididamente num lampejo de coragem e raiva ajeitou-se e saltou para diante de rifle na mão a ficar no raio de claridade da fogueira e ordenando em tom que não admitia replica. - Quietos todos ou morrem aqui mesmo! Do trio, os dois mais jovens soltaram os espetos, excerto Fausto, quiseram ainda ir pegar suas armas, porem ao perceberam que já o cano do rifle da recém chegada estava pronto para cuspir fogo se aquietaram. Calmamente Fausto Cruz olhou para os seus e acenou com a cabeça ordenando para ser obedecido, depois falou. - Vosmecê é um espanto de coragem. Pena estar do lado oposto. - Também acho seu Fausto. Só que não vim para brincadeiras. A propósito! Asseguro lhe que ouvi a conversa de vocês e garanto que seu sobrinho matou Supipa equivocadamente. Aqueles homens não estavam rindo da feiúra deste daí, mas de uma piada entre eles mesmos. Porem teu sobrinho tomou para si e matou um inocente. Por isso eu vou levá-lo a justiça ou então morro tentando – os três a observavam firmemente e ela concluiu – entrementes, antes de morrer mato alguns de vocês. Melado engoliu um seco porem foi Fausto quem continuou. - Eu não tenho dúvidas. Neste momento você é dona da vantagem. Vai levar meu sobrinho. Mas lembre-se: ainda é noite e o caminho é longo, além de que mesmo na Vila ainda vou tomá-lo de você. Disse isto e se calou voltando a comer o pedaço de carne como se nada tivesse acontecendo, copiou-lhe seu filho. Luzia, então ordenou ao negro procurado ficar de pé e afastar dos demais que permaneciam sentados. Depois que este se afastou, de arma engatilhada determinou que ele deitasse de bruço ao longo das pedras. Em seguida ela veio até a fogueira e recolheu as armas do trio arremessando-as para diante dentro da noite no meio de algumas moitas. Fausto Cruz sorriu compreendendo as intenções da mulher. Depois esta mandou Melado se levantar e colocando o cano de sua arma nas costas do mancebo forçou-o para diante pronunciando algumas palavras. Com isto ambos caminharam e sumiram dentro da escuridão fora do alcance da fogueira. O filho de Fausto imediato ao sumiço da moçoila e do primo saltou de pé a gritar. - Vamos pai! Procurar nossas armas e irmos atrás daquela maldita. Fausto o olhou pacientemente esperando este se acalmar, depois falou. - Vamos sim meu filho. Mas para que a pressa. Vamos levar algum tempo para achar as armas e quando o fizermos ela já estará coberta pelo negrume da noite.

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- E daí? - quis saber o rapaz. O Velho sorriu para responder. - Não estamos lidando com uma pessoa comum meu filho. Se nos apressarmos podemos não achá-la e isto nos cansará, sem falar no risco dela matar o Melado imediatamente. Assim deixe-a ir um pouco adiante. Afinal para onde ela poderá ir levando a reboque a besta do teu primo, se não para a Vila. Lá nós o tomamos dela. Tenha calma e vamos dormir que amanha será um dia longo. Compreendendo que seu pai tinha razão já que estavam posicionados no meio de uma região grandiosa e deserta separada de uma cidade por muitos dias de cavalo, o moço se aquietou tomando posição para repousar. ... Com os primeiros raios solares se insinuando a mudar a tonalidade do firmamento, Luzia Quitéria aportou no vilarejo e mediante sua chegada com o preso os poucos moradores que estavam de pé a cuidarem de suas obrigações matinais passaram a se santigar afastando-se do caminho da pistoleira que a cavalo empurrava a sua frente o negro Melado sob a mira de seu rifle. No entanto, enquanto muitos se afastavam da dupla um homem baixinho de traços rudes e fala mansa se aproximou dos dois e aconselhou Luzia a sumir dali, pois os parentes daquele moço viriam atrás dela logo, logo. Olhando para este a moça sorriu a agradecer a preocupação do campônio e respondeu convicta. - Eu sei disso meu senhor. Obrigado. O Homem se afastou e Luzia conduziu Melado na direção da venda à beira da estrada aonde este tinha matado Supipa. O quitandeiro acabara de abrir o empório e ao notar a moça adentrando com aquele chamado Melado parou estático, incrédulo ao que assistia, depois retornando a si saltou para fora e sumiu numa carreira medonha deixando a venda abandonada e Luzia com o prisioneiro, incrédula pelo que estava vendo. Assistindo-o se cobrir na carreira, Luzia cingiu o cenho e meio vexada pela covardia do comerciante lançou os olhos para a rua aonde viu que as portas da pequena igreja central estavam abertas, decidida fez o aprisionado caminhar para lá. Um senhor de meia idade estava de costas a olhar para uma enorme cruz de madeira em uma posição elevada depois do altar, porem ao notar a chegada de alguém se virou sorridente com uma face de alegria, contudo esta expressão transfigurou quando notou que sua igreja estava sendo visitada por uma mulher armada conduzindo o terror daquela região. - O que significa isto? Trazer um preso e você vir armada à casa de Deus! Não acha que é demais para um cristão dona moça? Demonstrou sua insatisfação o distinto que era na verdade o Padre daquela paróquia.

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Luzia compreendeu a indignação do religioso, porém conhecendo um pouco os protetores do feio sabia que tinha de se guardar e garantir a custódia de Melado antes que este conseguisse escapar de suas mãos, e naquela circunstancias após a fuga do proprietário do empório parecia que a igreja era o melhor lugar para tomar chegada, por isto tratou de encurtar a conversa. - O Senhor tem quase razão pela metade. - Quase! Pela metade! – exclamou o Padre que se chamava Levi Olimpio. Melado exausto da caminhada foi pela mulher mandado sentar em um banco a assistir a cena, estando aquele extremamente esfolado da caminhada pela noite inteira. - Sim. Pela metade! Porque a cá é que é o local certo de se conversar com Deus quando se estar para morrer. Por isto vim lhe pedir para dar extrema unção a este aí, a mim e a mais dois que já chegam por cá. Pois certamente vai morrer gente hoje aqui nesta vila. O Padre se benzeu vendo a firmeza da cabocla e soltando alguns impropérios saiu vituperando como louco com as mãos na cabeça deixando a sua igreja nas mãos da celebre Luzia Quitéria “a pistoleira” - Mulher danada. Se fosse eu mais novo ia buscar meu rifle e mostrava que na minha Igreja ninguém brinca. Contudo a danada tem razão o melhor mesmo sou eu me aprontar para encomendar aqueles que vão comer capim pela raiz. Pois mesmo sendo todos quem são. São cristãos. Ciente de que o religioso saíra dali em busca de alguém que a pudesse fazer abandonar a igreja, a moça sorriu despreocupada e olhando para seu prisioneiro caminhou alguns passos estudando o ambiente a fim de se familiarizar com o local. A exceção da porta frontal, que era bem larga todas as demais bem como as janelas estavam travadas e dali a mulher podia divisar com perfeição a ruinha adiante aonde deveria surgir Fausto e seu Filho. Percebeu Luzia, que havia uma escada enorme que dava para o primeiro andar da torre aonde pendia um sino do qual caia uma corda até perto do piso da igreja, ficando esta ao alcance da beata ou beato que batia o instrumento quando era carecido. Imediatamente Quitéria conduziu melado até aquele lugar e retirando a corda que estava enrolada em um torno amarrou com firmeza as mãos do homem para traz, obrigando-o a ficar de pé escorado na parede. Depois subiu as escadas até o andar superior e alegremente constatou que fora premiada pela sorte, pois dali por quatro pequenas aberturas arredondadas pouco menores que uma janela, sendo que dá frontal pendia o sino; objeto que teve a precaução de amarrar na sua bigorna um enorme pano para evitar o seu toque num momento futuro, pôde cobrir com precisão toda vila e suas chegadas em qualquer direção. Calmamente ajeitou-se da melhor maneira possível e esperou as horas passarem e seus adversos surgirem para resgatar Melado, se reclamando logo abaixo, amarrado de pé com as virilhas “assadas” todo estropiado pelo comprimento da longa jornada forçada. Reclamações estas que Luzia ignorou atenta aos movimentos na rua. Ali as pessoas já não saiam de casa, a exceção de um ou outro curioso não se via quase ninguém naquele momento. No final da ruinha a esquerda composta de nove casas, observou Quitéria um fato interessante. Um homem armava calmamente na sua

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calçada uma cadeira preguiçosa e pacientemente traçando na faca uma manoca assistia como telespectador os fatos que logo deveriam ocorrer. Olhando com precisão para o distinto logo reconheceu o pequeno campônio que a alertara sobre a família do Melado. Sorria pensando algo em torno deste quando percebeu surgirem pela rua principal dois homens montados no dorso de burros cavalgando na direção da igreja; os reconheceu de imediato. Fausto Cruz e sua cria. Há uns cem metros da igreja os homens largaram sua montaria e dirigiram-se diretamente para aquele que fumava calmamente sentado em sua preguiçosa. Após ligeira conversação tomaram o rumo de onde estava Luzia Quitéria. Foi aí que a mulher avisou para este. - Se alegre Melado teu tio já esta ai com teu primo. Devem ter vindo para te levar. A voz da mulher chegou fraca aos ouvidos do prisioneiro, contudo este sorriu se enchendo de expectativas. “Eu sabia que o Tio não ia me largar na mão” - pensou sorrindo a sentir a expectativa de se livrar daquela ferrenha adversária. - É melhor você me soltar moça, o quanto ainda pode – avisou gritando a plenos pulmões de modo que até os da rua ouviram sua voz e mais se acautelaram se avizinhando da igreja. - Muitos outros homens já me deram este alerta antes de você Melado – pequena pausa – e sabe de uma coisa? Todos estão mortos. Ao ouvir a nova o homem engoliu em seco a saliva que desceu parecendo cortar a garganta. Na rua, Fausto Cruz e seu filho alcançaram uma distancia pequena da igreja, ficando o velho escorado por trás do tronco de uma enorme arvore de catingueira e seu filho um pouco mais atrás embuçado depois de uma carroça estacionada na porta de seu proprietário. Melado estava de pé, impaciente, com isto procurou também desviar a atenção da pistoleira. - Desista logo mulher. Não vale a pena morrer em vão em nome da lembrança daquele outro que não volta mais. Um longo silencio se instalou no ambiente após esta fala e poucos minutos depois Luzia Quitéria apareceu pela abertura que dava para a parte térrea. O Homem lhe viu surgir sentindo um pavor medonho se apoderar de si. - Sabe moço – começou Luzia – Você só continua vivo porque pode ser que eu precise de um escudo para sair daqui; no entanto fale mais uma besteira e verá se consegue ficar de pé depois que eu quebrar seu joelho com uma bala de rifle. A ameaça real fez o desordeiro calar-se de imediato arrependido do que dissera. Da rua, Luzia escutou um vozeio de palavras entre pessoas e rapidamente voltou à posição que dava para ver seus antagônicos; logo percebeu o Padre discutindo com Fausto,

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quase implorando para este não iniciar uma peleja atacando a mulher que estava dentro da casa. Calmamente passou a escutar as vozes que lhe chegavam trazida pelos ventos. - Não deve invadir a casa de Deus, Fausto. É um absurdo além de um sacrilégio o que vosmecê quer fazer. Fausto contestava. - Tem razão Padre. Mais a gente invade agora e se arrepende depois. Não arredo o pé daqui enquanto aquela mulher estiver com o Melado. Peça a ela para deixar a igreja, - Você ta louco? Acha que ela vai fazer isto? – replicou Padre para a resposta de Fausto. -E eu lá vou também Padre? E saia do meio antes que a bala comece a zinir! Afinal só saio daqui com o Melado, sem ele nada feito. O Padre que havia saído a procurar de pessoas para fazer Luzia deixar a igreja e que estava voltando como saiu, encontrava agora a situação piorada, com aqueles dois homens prontos para invadirem a casa santa. Assim depois de muito pelejar verbalmente e sem nada conseguir resolveu atentar pelo outro lado e veio até a igreja no que foi barrado por Luzia quando chegava à porta. - Diga daí mesmo o que quer Padre! Já que ouvi sua preocupação. Parando poucos metros antes da igreja o homem bufou de raiva. - Era só o que me faltava. Agora também não posso entrar na minha igreja mulher? - Até que pode Padre! Mais deixe para depois. O senhor não está vendo que aqui só há acordos se um lado desistir e que nenhum dos dois fará isto. Uma beata de pouca idade vendo de sua casa o Padre Levi discutindo com aquela que estava na torre saiu de sua residência e tomando o pregador pelo braço, pois um ponto final aquele impasse. - Venha cá Padre Levi! O senhor não estar a ver que estes doidos só vão parar quando morrer alguém. Venha pra minha casa que quando tudo acabar agente enterra quem for defunto. O Padre não mais insistiu e vencido pelos argumentos da beata a acompanhou deixando a rua livre para a querela. - Que assim seja minha filha – Olhando para Fausto e depois para a torre onde estava à pistoleira soltou a ultima frase que lhe veio à cabeça – Que morram vocês todos, seus doidos descrentes. A sós, os lados voltaram a se concentrar nas suas obrigações e foi Fausto Cruz quem iniciou o bate boca direto. - E então Dona Luzia! Encontramos-nos de novo. Vai libertar meu sobrinho e aí podemos dar isto por acabado ou não? - Assim como vosmecê! Também empenhei minha palavra em castigar o assassino de Supipa, e como o senhor eu não quebro a palavra.

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Embuçado, o velho sorriu consciente da posição da mulher na torre da igreja, aí compreendeu que esta levava vantagem de angulo; qualquer movimento em falso seu ou de seu filho poderia receber uma carga de chumbo. As horas estavam correndo naquele dia, agora o relógio já o havia dividido em mais da metade e naquele passo, logo, logo chegaria à noite, aonde o velho guardava a expectativa de invadir a igreja. Assim alertou em ultima tentativa. - Luzia Quitéria. Não vamos sair de onde estamos, pois corremos o risco de ser atingido por você. Contudo! Vosmecê também não pode sair daí e nem levar o Melado. Com isso lhe suplico que me entregue este rapaz e a deixo ir em paz sem rancor. Do contrário quando cair à noite o tomaremos do jeito que for. Luzia compreendeu que o homem estava falando sério e que no escuro da noite as coisas se complicariam um pouco mais. Entretanto sabia bem que a nuance negra da escuridão servia para ambos os lados. Assim retrucou. - Compreendo seu Fausto. Porém a escuridão será usada também por mim, e lhe asseguro não haver rancor da minha parte. Vá embora com seu filho que lhe prometo levar este moço para julgamento das autoridades na cidade mais próxima. É só o que posso lhe garantir. Fausto Cruz sorriu novamente. Aquela moça tinha fibra e lhe causava grande admiração. Não desejava bater-se com ela, mas estava preso a um juramento e teria que cumprir da forma que fosse. - Muito bem. Então vamos apelar para a noite e se estivermos vivos na manha seguinte! Aí será um novo dia... Após esta frase ninguém mais falou naquela tarde. Quitéria assistia os adversos de arma na mão com cuidado para não se expor; o mesmo fazia aqueles dois um pouco a sua frente e alheio a tudo os ponteiros dos relógios corriam em cima das marcas de segundo, agora cada um parecendo uma eternidade. ... O Silencio sobreveio naquela vila e o vento percorreu os rincões fazendo soar uma melodia quase inaudível aos ouvidos humanos, porém não aos de Quitéria e de Fausto, se estudando intimamente. A rua estava deserta e o menor pior de algum pássaro era escutado naquele instante; uma vez por outro o soar triste de algum chocalho no pescoço de algum animal embalava as horas de espera em pleno sol nordestino. A cigarra melodramática descarregava seu choro pelas árvores da restinga de mata a também vir encher o espaço da vila. O tuco-tuco do serra pau levava a moçoila aos tempos da companhia de sua mãe. Antes de tudo aquilo. Já Fausto se lembrava da era que seu pai era escravo... Porém alheio aquilo tudo, o tempo rasgava o existir transformando o presente em passado, entrementes, rasgava demasiado lento. Uma cabra berrou ao longe e seu familiar “mééééé” por razões alheias trouxe os contendores de volta as atenções para aquele momento. Agora o sol declinava caindo por trás das serras perdendo a força do seu ardor e deixando a sua namorada lua vir

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para onde ele estava. Pouco tempo depois sobreveio a noite escura e fechada com uma luz opaca e de pouco brilho. Uma noite comum para a morte. Com a noite Melado tomou coragem e gritou para os seus lá na rua. - Tio! Primo! Estou a cá amarado por esta maldita. Só teve tempo de completar a frase, Luzia que aproveitando o escuro reinante descera as escadas e viera com cuidado até onde este estava, desferiu lhe uma tremenda coronhada na cabeça que o fez perder os sentidos. - Melado onde está escondida a moça – gritou seu primo para não obter resposta. - Será que ela o matou pai? Perguntou o mancebo preocupado para seu pai lhe respostar. - Não filho. Claro que não. Não se arrelie ainda. Ela só deu um jeito para evitar dele atrapalhá-la. Só isso. Movimentando-se com cautela os dois homens avançaram em direção a entrada da igreja. Luzia por sua vez movimentou-se até o confessionário e nele sentou-se a observar com atenção algum movimento através das frestas da enorme cadeira a qual o padre usava para ouvir seus fieis. Antes desta ação ela mesma fechara a porta frontal da igreja e se trancara em seu interior amarrando sentado em uma cadeira todo inquirido o desmaiado Melado. Só depois disto é que fora para onde se achava agora. Na rua Fausto Cruz e seu filho atingiram a igreja e comprovaram já esperado que as portas estavam batidas, arrodearam para a lateral esquerda aonde foram direto para uma enorme janela a qual sob força de alguns disparos se escancarou ficando aberta. Percebeu Luzia que os homens conheciam bem aquele lugar já que atiraram apenas nos ferrolhos que fechavam a janela, espatifando-os, após alguns disparos. Atenta esperou alguém botar o corpo por ali para despachá-lo, coisa que não aconteceu. Meia hora depois uma lamparina voou por esta abertura e veio rebentar de encontro aos bancos da igreja que eram de madeira espalhando o querosene com seu pavio se consumindo em cima do banco; ocorrendo aí o risco de um incêndio. Compreendera Luzia as intenções de seus adversos, fazendo mira disparou sua arma e o pavio em chama sumiu de cima da cadeira levado pelo impacto do chumbo cessando-se aquela chama e fazendo voltar a imperar a escuridão. Daí a pouco novo objeto adentrou voando pela janela e veio se espalhar no mesmo local, desta feita era um recipiente de vidro com um pavio embebido em álcool e este surtiu o efeito esperado; mal tocou os bancos quebrou-se deixando a chamar consumir por onde o liquido espalhara. Agora uma claridade intensa iluminava a igreja. Melado já recobrado os sentidos podia ser visto bem perto das chamas e amedrontado começou a gritar pelo tio. O estalo de uma fechadura se fez ouvir e a outra porta da igreja se escancarou fornecendo um bom ângulo de visão a quem estava na rua. Por esta abertura um festim de chumbo adentrou na igreja sem precisão apenas no sentido de amedrontar a mulher que ali estava escondida. Fausto podia vem bem de onde estava a imagem de Melado se debatendo para se soltar da cadeira. Notou algo estranho e só depois percebeu o que ocorrera. Quando Melado estava forçando as cordas para se libertar

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ouviu um disparo e a cadeira quedar com o homem amarrado, onde no chão ficou quieto, mas gritando a plenos pulmões. - Me mate logo maldita vagabunda. Mate também a ela tio Fausto. Compreendeu o homem que Luzia dispara em uma das pernas da cadeira fazendo com isso esta se quebrar e cair pelo solo, levando Melado a se desesperar mais ainda. Certamente porque também se machucara no tombo. De onde estava não deu para perceber a posição da adversa, contudo compreendeu que seu sobrinho estava perdido; dificilmente ela o deixaria sair vivo e que por esta razão aquilo ia terminar em um banho de sangue. - Vamos entrar agora Luzia Quitéria - avisou Fausto escorado ao pé da porta da igreja. Seu filho conforme determinado estava ao lado da janela, também pronto para adentrar no recinto. Foi quando Luzia alertou. - Se vocês entrarem aqui o primeiro disparo meu será em Melado e o segundo será em seu filho Fausto, pois já sei sua posição e lhe asseguro que serei precisa. O homem compreendeu o perigo que ia se expor. Por ele isto não representava nada, mas à vida de seu filho era demasiada valiosa para trocar por Melado, Luzia ou até pela dele mesmo. - Tudo bem Luzia. Não faça nada meu filho – avisou para continuar – ela é tão boa atiradora quanto eu ou você. Talvez até melhor. Assim fique quieto e recue para trás. O moço obedeceu de imediato. As ordens de Fausto Cruz jamais foram contestadas por sua cria, era um homem de palavra e decidido no que se comprometia. - Muito bem seu Fausto! O Senhor ia ficar sem seu filho. O Homem cingiu a testa para responder. - Eu já sei disto. Mas a senhora ia ficar sem sua vida. - Também sei disto – respondeu Luzia para acrescentar – e o que propõe? O Homem já localizara a posição de Luzia e sabia bem que esta deveria estar no confessionário que por sua vez era muito espesso e nenhuma bala o atravessaria com exatidão. Com isso decidiu resolver aquele problema por outra rota, e mesmo por que a contenda poderia lhe custar muito alta. Logo sugeriu. - Você me entrega Melado e amanha à tardinha eu o trago a cavalo armado como lhe convier e você também em seu cavalo armada se enfrentaram na rua principal só vocês dois e ai tiraram a limpo esta história. Luzia o ouviu atento. - Só eu e ele num desafio de tiros, um contra o outro? - Tem minha palavra. Só assim não poderei intervir e nem estarei quebrando a promessa que fiz ao meu irmão. - Esta feito. Pode levá-lo – afirmou Luzia saindo de onde estava a segurar seu rifle. Fausto adentrou na igreja e foi soltar seu sobrinho que confiante tinha certeza de levar a melhor no dia seguinte, afinal também era bom de briga. Logo alguns moradores chegaram mais o Padre e foram apagar o fogo. Luzia saiu da igreja e foi procurar repousar na campina

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para recuperar suas energias. Fausto junto a seu filho mais o sobrinho sumiram em seus burros na promessa de retornar no dia seguinte. Somente o Padre ficou por ali a desfilar uma enxurrada de adjetivos aos invasores da sua igreja.

LUZIA QUITÉRIA – FIBRA DE MULHER

De Wanderley da Silva Marques

Capitulo VI

Antes do meio dia, Luzia Quitéria já estava montada em seu animal no centro da

rua a esperar por seu adverso, segurava com firmeza seu inseparável rifle. Tinha certeza de que o seu contrário era perigoso, mas era a única forma de resolver definitivamente aquela

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situação; afinal Fausto Cruz era um homem de palavra e para evitar uma contenda com este o duelo era o melhor caminho. As casas estavam fechadas como dantes, desta feita, porém, alguns curiosos se posicionavam em alguns locais para assistirem aquele inusitado desafio. Aquele senhor que ficara sentado na calçada na tarde anterior, novamente voltou a armar sua cadeira e sentou-se em posição privilegiada para assistir o duelo de morte e outra vez traçando o fumo para enrolar na paia, aonde depois acendeu seu cigarro a baforá-lo sorrindo na espera dos fatos que estavam por advir. Ao pingo do meio dia quando o sol arde com mais intensidade os três homens surgiram no outro extremo da rua. Vinham montados em cavalos possantes e quando avistaram a mulher no outro lado estancaram suas montarias. Fausto conversou algo com os dois rapazes e adiantou seu animal para junto da pistoleira, estancando-o há menos de cinco metros desta. - Vou retirar o meu filho de perto de seu primo e juntos vamos assistir de pé o desafio de vocês. Ele começa quando um dos dois partir cavalgando de encontro ao outro usando da arma de fogo que lhe convier. Concorda? Luzia assentiu que sim e de onde estava Fausto fez um sinal para seu filho que veio para junto dele, dali dirigiram suas montarias para uma posição distante dos dois desafiantes que ficaram por alguns instantes se fitando numa distancia de cinqüenta metros. Inopinadamente Melado cutucou as esporas e seu animal partiu de encontro a Luzia que em movimento similar fez seu animal partir de encontro ao cavaleiro. Melado portava uma espingarda de cartucho de cano grosso e cerrado, cujo disparo varria mais de metro quadrado, contudo a arma só era precisa a mais ou menos vinte metros, fora disto não havia precisão no disparo. Por isto este tinha que se avizinhar o máximo para eliminar a oponente. Luzia ciente deste detalhe ao avistar a arma do seu adverso, não se fez de rogada também esporeou seu animal partindo para o encontro com seu antagônico, quando percebeu “o feio” movimentar a espingarda para linha de tiro, executou a mesma manobra, porém com tanta eficiência e velocidade que se quer a arma do mancebo chegou a ficar em riste, aí ecoou pela rua um estampido seco de uma única detonação levando os assistentes a dúvida do autor. Todavia foi só por um instante. Melado não cavalgara a metade da distancia quando sentiu algo adentrar por sua testa. Foi sua última impressão de sentir. Teve a cabeça empurrada para trás, mas não caiu do cavalo. Também não disparou a espingarda. Passaram cavalgando um pelo outro. Quando Quitéria atingiu o ponto que ele estava parou seu cavalo para olhar para trás. Foi aí que notou quando o homem sem forças caiu lentamente da cela de sua montaria arriando no meio da rua. Imediatamente Fausto correu para o sobrinho comprovando desgostoso que este morrera pelo disparo da pistoleira. Seu filho falou algo para si, mas foi de imediato repreendido e permaneceu parado a fitar seu primo. Luzia ainda permaneceu alguns segundos a olhar para aquele homem de honra e depois meteu as esporas em seu cavalo ganhando a estrada adiante. Supipa estava vingado.

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Os olhos de Fausto Cruz se enchiam de lágrimas a fitar seu sobrinho morto. Entretanto, naquelas circunstancias empenhara sua palavra e ela era o suficiente para deixar a pistoleira em paz. - É uma pena sobrinho. Mas ela lhe deu a oportunidade que você não deu ao amigo dela quando vosmecê o matou. Recolhendo o corpo de melado o atravessaram na sela de sua montaria e cavalgaram em retorno no mais completo silencio. Luzia Quitéria a pistoleira dos pobres sumiu da vila para ganhar o mundo e com ela cavalgou a fama de seu nome que a tornavam bajulada aonde chegasse. Agora mais ainda depois daquele estupendo duelo ao meio dia. Os traços da menina acabrunhada do mato sumiram por completo, as formas de mulher bela e desejada ganharam contornos definitivos e muitos foram os que se apaixonaram pela mulher. No entanto esta se mantinha distante destes galanteadores; seus pensamentos viajavam nestas horas para um mancebo chamado Pedro Junior, outrora para um Sargento de Polícia e por último pensava em Fausto Cruz, que apesar de bem mais velho que ela lhe provocara certos pensamentos. ... Uma noite perdida cavalgava a passo lento pelas pradarias das terras paraibanas na região das terras sousense, presa a relembrar fatos passados quando um menino surgiu correndo de dentro do mato assustado a olhar para trás. Quando este notou a figura montada parou assustado e já ia ganhar nova direção quando esta lançou sua voz. - Espere não corra menino. Reconhecendo no timbre da voz ser a dona uma mulher, aquele parou mais tranqüilo voltando a olhar para a cavaleira que continuava parada. - Não tenha medo de mim meu filho. Se quiser posso até ajudá-lo. Mais calmo o pequeno caminhou para perto da desconhecida. - A senhora não é desta região! Né não? - Verdade meu filho. Mais porque estar a correr? O pirralho que deveria ter uns dez anos respirou a contrair oxigênio para depois responder. - Dos homens do Coronel Avelino Arruda. A Mulher fechou a cara e continuou. - Mais eles perseguem crianças! Por quê? - Porque mataram meu pai e como os reconheci vão querer me matar também dona. A compaixão dos problemas alheios e a razão de tomar para si as adversidades de outrem, principalmente dos mais fracos já explodira em seu intimo. - Se aperreie não. Se estiverem atrás de você enfrentaram a mim também. Chegue cá – assegurou estendendo a mão a oferecer a garupa ao pequeno. Amedrontado e ciente de não contar com apoio de ninguém, já cansado, rapidamente o menino saltou na garupa do

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cavalo sem pensar duas vezes. Mesmo assim, confuso, ainda soltou o pensamento que lhe perturbava. - Mas a senhora é só uma mulher dona. Luzia completou. - E o que poderia uma mulher fazer contra um punhado de homens não é meu filho? – Luzia riu e antes dele dizer qualquer coisa, completou. - Que tal matar a qualquer um que queira botar as mãos em você? Com a firmeza das palavras o menino abraçou a linha de cintura da desconhecida e esta fez o cavalo voar numa carreira dentro da relva até alcançar a mata fechada aonde parou; após descer do animal deixou-o livre e segurando a mão do pequeno, sentou-se no solo a pedir para ele contar sua história. O pirralho foi rápido. - Meu pai trabalhava de meeiro para o Coronel há muitos anos; como estava se sentindo prejudicado disse à mãe que ia arribar dali. O Coronel veio lá em casa e ordenou ao pai que era para ele não ir embora sem antes acertar suas contas. O pai ignorou e tentou fugir de lá pela noite. Aconteceu que três homens surgiram do nada atiraram em painho. Seguraram mãe pelos braços e eu saí feito doido a correr pela mata até dar com a senhora. Estava o pequeno deitado no solo com a cabeça nas pernas da desconhecida que atenta ao que ele dizia acariciava-lhe os cabelos. - Malditos proprietários de terras! Exploradores de colonos. Se preocupe não meu filho, vou resgatar sua mãe e ninguém tocará em você. Agora durma em paz. Conselho desnecessário, pois já o menino dormia vencido pelo enfado da fuga. Luzia velava o seu sono a relembrar que algo parecido com aquilo a tornara na pessoa que era agora. Deitou-se ao lado do pequeno e como já acostumada a dormir pelas pradarias, logo dormia também. Despertou horas mais tarde pelo trote de cavalos passando adiante. Cautelosa como sempre já se pos de vigia a divisar no mato rasteiro três cavaleiros trotando lento a vasculhar a vegetação. Tapando a boca do menino o acordou e sussurrou baixinho a indagar se eram aqueles. Apesar de ser noite a luz da lua clareava com muita intensidade naquela oportunidade. O pequeno medindo bem a estes assentiu que sim que eram eles. Então Luzia o acalmou e caminhou agachada até o tronco de uma densa árvore próxima deles, a qual não deu para descobrir a espécie. Ocultando o pirralho em seus troncos o fez subir para adiante, e, assoviando a imitar o canto de um cancão, fez seu cavalo vir até ela. Calmamente, percebeu que os homens há uns quarenta metros a sua frente notaram alguma presença na vegetação aonde ela estava. Observou que eles pararam estáticos segurando com decisão suas armas. Foi aí que um destes adiantou-se e indagou em alta voz. - Quem é lá aí adiante? Quitéria respostou. - Uma viajante que estava repousando. E os senhores quem são e o que querem? Aquele continuou a falar.

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- Com vosmecê talvez nada. Mais se tiver visto um menino poderia nos informar... Luzia o cortou antes de terminar. - Não vi viva alma por estes lados. O Assustado pirralho que ouvia a tudo respirou mais aliviado ao ouvir sua protetora mentindo. A principio temera que esta o entregasse pelo número de homens a sua procura. - Tem certeza cigana? – achou este interlocutor que falava com uma destas andarilhas. Luzia fez seu animal sair da sombra enegrecida da árvore ficando a vista dos três, também estando ela a segurar sua arma. - Absoluta. Mais o que fazem três homens atrás de uma criança? Aquele que estava adiantado destacando a figura da mulher vestida como homem, cuja definição só sabia pela voz, irritou-se. - Não é da sua conta estranha. Não acha petulância sua querer saber de coisas alheias? Luzia já trazia o rifle engatilhado, ao passo que os homens não. Fato que lhe assegurava boa vantagem, e como já estava irritada com aqueles facínoras, replicou a altura. - Talvez seja mesmo muita petulância. E talvez seja por ela que já matei muitos cabras iguais a você noutras ocasiões. A frase soou como uma chicotada e um aviso aos três cavaleiros que pela firmeza do tom de voz daquela desconhecida refrearam suas intenções. O mais adiantado e por ser o primeiro na linha de tiro, também por achar, bem como seus camaradas, que aquela estranha podia ter companhia resolveu se retratar. - Não é isso dona. Só estamos cumprindo ordens. Mais quem seria vosmecê? Qual é sua graça? - Luzia Quitéria, uma criada – respondeu a viandante. A pronuncia do nome surtiu efeito instantâneo e já aqueles conhecendo a fama da pistoleira trataram em imediato de sair dali. Aquele que cavaqueava foi quem primeiro bateu em retirada. - Ah, tudo bem! Se vosmecê não o viu é porque não veio por este lado. Afirmou completando a frase a fazer sua montaria galopar para outra direção com muita velocidade. O mesmo fez seus acompanhantes. Luzia por sua vez esperou o menino descer e após fazê-lo subir a sua garupa trotou na direção da casa do pirralho prometendo que iria ajudar a ele e sua mãe. Como este já ouvira falar muito no nome de Luzia Quitéria a pistoleira dos pobres sorriu com certeza de que a justiça seria feita dentro em breve. Luzia Quitéria rapidamente obedecendo às indicações da criança fez seu animal avançar sem obstáculos por uma estradinha limpa. Na certa caminho de gado, até uma sombra densa que se fazia adiante por duas enormes árvores. O menino que disse se chamar Itamar avisou que eram pés de cajaranas e que ali era a casa deles. Seu pai fora baleado no terreiro e sua mãe levada pelos jagunços. Assim que Quitéria atingiu a casa, notou que em comum com quase todas as outras pendia uma alpendrada na parte frontal. Ali, estancou o

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baio, desceu do animal, ajudou Itamar a descer e segurando-lhe na mão avançaram para atingir a casa. Sustentava na mão livre seu rifle papo amarelo. Instante depois entrava na sala de chegada aonde depois de fazer o tabaqueiro arder, achou a lamparina presa na parede e transferiu a labareda fazendo fogo no seu pavio, ação que clareou o ambiente. O Menino a partir daí soltou-se da mão de sua protetora e de posse do tabaqueiro de Luzia rapidamente iluminou os demais recintos. A casa estava revirada e quando o piralho foi ao quarto de seus pais de lá veio a encher todo o ambiente um grito de horror emitido por este. Quitéria logo chegou onde ele estava e abraçando-o, procurou esconder sua cabeça de encontro ao seu corpo. Itamar visualizara o corpo inerte de sua mãe, nua sobre a cama. Acalmando-o, prometendo fazer os culpados pagarem Luzia Quitéria ordenou ao pequeno que a esperasse na sala. Logo que a criança saiu, ela foi examinar o corpo da agricultora, comprovando que a mãe de seu protegido fora estrangulada, certamente após ter sido violentada já que havia sinais do abuso. Momentos depois, na sala, sem palavras para consolar a pirralho e com o coração cheio de ódio pelos autores daquela barbaridade. Apenas fitou o menino que com a cara endurecida e a alma pedrada, no mais completo silêncio levantou-se da cadeira que sentava e caminhou para um enorme baú naquele cômodo ao pé da parede frontal a porta de entrada. dali a criança sacou uma arma. - Dona Luzia – disse com os olhos marejados de lágrimas – Com meu pai e minha mãe mortos, para mim tanto faz viver ou morrer. Mais de uma coisa eu lhe garanto! Mato aquele Coronel maldito nem que seja a última coisa que faço nesta vida. Completou a frase a correr saltando por uma janela que estava entreaberta a sumir na escuridão da noite. Surpresa, Luzia Quitéria compreendeu que aquela criança acabara de se transformar em um homem apesar da pouca idade. Assim correu a sair da casa gritando para ele a esperar, pois iria ajudá-lo a pegar o Coronel e seus jagunços. Entretanto, Itamar já não a ouvia, estando a correr dentro do mato. Arreliada a temer pelo garoto, voltou à sela de seu animal e o fez cavalgar desta feita por uma larga estrada carroçal; para sua sorte há menos de meio quilômetro divisou uma outra casa e para lá obrigou seu animal a cavalgar. Só após muito insistir e pelo moradores reconhecerem que o desconhecido a sua porta batendo era na verdade uma mulher, abriram-na. Surpreendidos em ver aquela pessoa trajada como homem fortemente armada, até se arrependeram de ter aberto a porta, mas como não havia outro jeito prestaram as informações que a estranha queria. No que esta após colher os dados perguntados agradeceu a todos e saiu ligeira a voltar para seu animal. Intrigado com aquela forasteira o colono ainda perguntou. - A quem devo a graça desta visita? - A luzia Quitéria uma criada. Obrigado – agradeceu a fazer seu animal voar na direção indicada pelo agricultor até a casa principal da fazenda do Coronel latifundiário daquelas bandas.

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Os campônios não voltaram a fechar a porta, visto que o sol já quebrava a barra naquele momento, antes passaram a debater preocupados a certeza de que algo iria acontecer, pois já sabiam da fama da justiceira. ... Avelino Arruda estava lavando o rosto na janela de sua casa naquela manha em que o sol aparecera fazendo arder seus raios sobre a terra. A casa era enorme e toda alpendrada. Depois do alpendre corria um imenso jardim de flores e plantas pequenas, plantadas pela senhora sua esposa Dona Margarida, ali residia o xodó de sua consorte. O Homem olhava para a estrada adiante a expressar certa ansiedade. Expressão esta que desapareceu a deixar surgir um misto de pânico e medo. Após ouvir o estampido de um disparo. Ele que tinha um metro e noventa de altura, pesava cento e quarenta quilos desandou a sentir uma queimação no tórax. Primeiro baixou a cabeça a olhar para o ponto da ardência e ali constatou o pequeno orifício. Ergueu a cabeça para olhar ao local de onde havia surgido o disparo e aí divisou boquiaberto, um menino entre as plantas do jardim a segurar um rifle com firmeza. Quis dizer algo, mas já era demasiado tarde. Ouviu distante um novo disparo e desandou para trás, sentindo uma bala rasgar seu pescoço. Levou aterrorizado a mão ao local acertado e esta se encheu de sangue. Como portava na cintura um revolver, ainda buscou sacá-lo. Porem tendo desandado quedou de costas e de quando caído tentou sentar já segurando o cabo de sua arma. No entanto uma terceira detonação encheu a sala entrando pela testa do Coronel que de olhos esbugalhados pendeu para trás morto pelo filho de suas vitimas, agora ao pé da janela. Duas velhas que trabalhavam na casa a ouvirem os disparos correram feito loucas a se esconderem gritando por todos os santos. Dona Margarida correndo até a cozinha divisou o marido caído e ajoelhando-se junto dele começou a chorar abraçada ao falecido. No terreiro da casa, Itamar caminhava aturdido sem rumo, emitindo palavras sem nexo, logo estava no pátio da fazenda que sem a proteção dos três jagunços e só com a presença dos trabalhadores roçais não encontrou quem lhe barrasse o caminho. Acaso, surgiu Luzia Quitéria cavalgando apressada de arma na mão. Porém aquela ao perceber o alvoroço, compreendeu que Itamar realizara seu intento e para sua sorte estava ileso. Sem perda de tempo fez seu animal estancar na frente da criança que a olhando nos olhos, assentiu com a cabeça e deixou as lágrimas caírem pelo seu rosto. Sem dizer uma palavra Luzia saltou da sela de seu animal, abraçou o menino e voltou a ganhar a sela do bagual, a qual dividiu com Itamar. Como Os três jagunços não haviam surgido ainda da caça ao pequeno e como ninguém apareceu para barrar-lhes o caminho fez seu cavalo trotar magnificamente desaparecendo daquelas terras. Nesta hora seus pensamentos viajavam para a laguna dos Batistas, no mesmo espaço de tempo pensava em um certo Sargento de polícia; ainda conseguia ouvir risos e gargalhadas provocadas por um certo palhaço, mais tudo isto estava apenas em sua cabeça, pois agora viajava com o pequeno Itamar, mais uma vitima do coronelismo desenfreado, que se rebelara contra sua sorte e que como ela: escrevera nas linhas da vida e nas terras do nordeste sua própria saga.

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... Os anos passaram-se, a lendária Luzia Quitéria desapareceu misteriosamente assim como surgira. Muitos foram os boatos criados a respeito dela: uns diziam que se casou com Pedro Junior e foram embora para terras do estado de São Paulo. Outros que fora com o Sargento. Uns ainda diziam que ela morreu. Havia também os que diziam que ela continuava a pregar a justiça surgindo quando menos se esperava. Porem de tudo isto, o único andarilho que cavalgava agora com uma expressão enrijecidas pela vida, rosto jovial, portando um rifle papo amarelo e grande quantidade de balas em seus alforjes, nada dizia. Era conhecido por Itamar de Luzia. Odiava a injustiça e estava sempre metido numa contenda a defender os fracos e pobres.

FIM

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(LIVRO 2)

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CAPÍTULOS

I – Encontro com a morte. II – Dodô Cândido

III – Um certo Padre Mauro e a Vila de Balanços de Manoel Tentem. IV – Homens, sangue e morte. V – O beato e o cangaceiro.

VI – Um Praça disposto. VII – Serafim Guedes e Dona Santú.

VIII – Confronto final.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

Capítulo 1

- Segura a mira Azulão. Se estes macacos nos descobrirem estamos mortos –

Explicou o homem fazendo uma pequena pausa – Mas e aí! Vamos levar muitos deles com a gente. Ta certo homem? – Completou o cangaceiro para seu comparsa, estando ambos agachados por trás de uma moita de xiquexique no meio da caatinga. Alguns metros adiante dos dois passava uma dúzia de milicos fortemente armados em fila indiana, atentos à vegetação crescente na busca dos odiados foras da lei que infestavam a região. Quando as praças se distanciaram os dois meliantes se levantaram e caminharam a passos largos em sentido contrário a cobra miliciana. - Malditos macacos do Governo! Não nos dão nenhum sossego. Ai quem dera pudesse agora beber o sangue daqueles cabras – Desabafou o denominado Azulão em minuto a minuto olhando para trás, para ver se não estavam sendo seguidos. O seu companheiro um pouco a frente estancou repentinamente a aguçar os sentidos em busca de algo oriundo da mata. - O que foi Sabiá? Perguntou já pronto o segundo pandengueiro ladeando-se do da dianteira para se agacharem. - Não sei ainda ao certo. Mas tenho a impressão que estamos sendo observados – Explicou de arma em riste estudando a vegetação ao seu redor. Passado alguns instantes sem que sua vista apurada detectasse alguma anormalia no mato resolveram seguir adiante. - Deve de ter sido só um pressentimento meu. Não tem nada por aí. Vamos embora Azulão – Convidou convicto do que dizia aquele que parecia comandar a dupla. Quando se puseram de pé mais relaxados ressoou momentaneamente por ali um grito e uma saraivada de disparos. As inúmeras detonações soaram quase em igualdade de tempo partindo de encontro aos dois homens que nada puderam fazer colhidos pelo fator surpresa. Alcançados por uma série de projeteis a rasgar-lhes as carnes dos corpos em vários pontos, fazendo os sacudirem-se iguais a mamolengo; já nem cessara os sons dos disparos os dois marginais quedaram mortos no terreno. Soando em seguida inúmeros gritos de prazer pela vegetação rasteira nos mais diversos pontos. Saindo das posições de tocaia vários militares guiados por um batedor civil, vieram constatar o resultado da incursão. - Não lhe disse Sargento que havia dois deles por aí homem de Deus!

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Quem expressou foi o guia dos militares. Um moreno baixinho de olhos vivos e ligeiros a sorrir estando de cócoras ao lado dos corpos de Azulão e Sabiá. - Você falou mesmo Chico Cindino – Concordou o militar - Mas lembre-se: eram nove os que fugiram do encontro com nossas tropas lá no Caldeirão das Mortes. Assim sendo, vamos colher as provas das mortes destes porcarias e seguir adiante para diminuir o trabalho das outras patrulhas – explicou com um ar prazeroso o miliciano cheio de felicidade a olhar para os dois bandidos esticados no chão. - Sim Senhor – Expressou a confirmar o batedor sacando uma lamina da cintura a arrancar as orelhas dos mortos para depois guardá-las num pequeno saco de plástico com sal, dentro de um embornal amarrado na linha de cintura. As armas e alguns objetos pessoais dos meliantes também lhe foram confiscadas pelos soldados em meio a uma algazarra medonha. Momentos depois seguiam adiante em busca de novas pistas que levassem aos remanescentes fugitivos. Caminhavam agora muito mais entusiasmados. Motivados pelo prazer da matança. ... A antiga estrada que vinha do município das Cajazeiras na Paraíba, passando por Catingueira, dava no Bomburral e chegava ao Balanço, terra de Mané Tentem. Depois dali já começava o Ceará, pouco mais de cem metros para diante. O percurso desta estrada dois quilômetros depois da Catingueira, cruzava um rio profundo que na época de inverno não dava passagem a ninguém. Nas suas laterais cresciam muitos marizais e outras árvores nativas daquela geografia enterradas nas saliências do terreno, cavada por águas correntes, com certeza no nascimento do rio em tempos perdidos, formando com isso no exato local de travessia, enfiado no solo, um buraco só possível de ser vencido seco ou com água baixa. Criando assim uma armadilha natural a quem fosse pego cruzando o rio por tocaieiros posicionados nas elevações ou nas copas das árvores abundantes e grandiosas. Fora assim que vinte cangaceiros foram emboscados por um número menor de militares; tombando onze jagunços naquele lugar. Agora três patrulhas acrescidas de voluntários vindos do vilarejo davam caça aos que escapuliram dali no meio do fogo cerrado. Em direção ao poente de onde tombaram Azulão e Sabiá, sete homens discutiam entre si as medidas a serem tomadas imediatamente, caso contrário nenhum deles sairiam vivo para contar a estória daquela jornada. Eram os sobreviventes da tocaia do Caldeirão das Mortes que de onde estavam escutaram na distancia o ressoar dos disparos. Um de cabelos brancos, por ser o mais experiente do bando e o mais valente, conforme o código que serviam, tomou a fala. - Vocês escutaram. Tirem os chapéus da cabeça e rezemos por Azulão e Sabiá. Foi imediatamente obedecido. Sem contestação oraram de joelhos o Pai Nosso e uma Ave Maria bendizendo-se ao término e a encomendar as almas dos seus companheiros quedados no Caldeirão das Mortes bem como as dos dois últimos. - Vejam – Continuou – O Capitão nos enviou para arrasarmos o Balanço e matarmos sangrado o tal de Mané Tentem que anda a desafiar de sua autoridade. No entanto,

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tivemos o azar de cairmos numa armadilha dos macacos que certamente tiveram ajuda de algum espião; e acaso isto custou à vida de nossos irmãos podendo ainda render as nossas para aqueles miseráveis. Assim! Devemos traçar planos para escapulir da morte e levarmos as informações pro Capitão Virgolino. Os homens ouviram cabisbaixos a pensar numa maneira de sobressaírem da cilada que estavam sendo vitimas; já que enfrentar os seus caçadores era morte certa. Um elemento baixinho, magro de pele escura, sem posição elevada na hierarquia do bando até aquele momento pediu a palavra e foi de imediato escutado pelo grisalho. - Seu Fortunato! Como as coisas estão indo de mal a pior. Eu quero crer que seria melhor nos separamos isoladamente. Aquele denominado Fortunato o olhou pedindo explicação. - Somos sete. Cada um partindo em uma direção contrária. Certamente alguns de nós passará pelo cerco das volantes. Assim, aquele que tiver mais sorte vai viver para poder contar o causo. Aí poderá se juntar ao Capitão e depois é só retornar pra se vingar dos que ficarem para trás. O Plano era de risco, compreendeu Fortunato; porém de simples compreensão. Buscando sete posições opostas certamente encontrariam alguma brecha no cerco pela dimensão do terreno. Desta forma quem tivesse sorte escapuliria da morte. Colocado em votação ninguém sugeriu outra opinião e estando todos em acordo se separaram tomando cada qual o rumo que melhor acharam. Aquele foi um dia longo para o povo do vilarejo das Catingueiras. Com diferenças de horas foi possível ouvir na distancia os sons das detonações ecoando pela mata, e, quando o dia terminou: mais cinco cangaceiros juntaram-se a Sabiá e Azulão a lhes fazer companhia nas planícies celestes. O sol rompeu brabo, ardendo, trazendo a manha, pegando o homem com as roupas rasgadas, suadas, grudentas, cambaleante. Estropiado da caminhada incessante por todo o dia e noite anterior. Já não trazia armas de fogo, estas ficaram perdidas pelo caminho; de sorte, conduzia a cinta sua arma branca pendente na linha de cintura. As sandálias de rabicho suavam nos pés a dificultar-lhe os passos. Também o chapelão garboso ficara no mato, perdido, somente uns pingos de suor abundante corriam em sua cabeça para a face e depois para o pescoço a emporcalhar-lhe mais ainda; já que iam embeber suas vestes em farrapos. Mesmo assim, contra as intempéries do destino o elemento sorria com um ar majestoso. Havia escapado da morte na catingueira de Dodô Candido; seu pensamento era agora encontrar-se com aqueles que lograssem êxito no ponto marcado e dali partirem para o encontro com o grosso do bando. Acaso, o ponto de encontro era na Várzea do Tiú, treze léguas do ponto de separação, as margens de um córrego já no Estado do Ceará, nas terras do município de Ipaumirim. Quando aquele chegou à várzea deparou-se com Benedito a sorrir sentado sobre uma pedra a banhar-se calmamente nas águas correntes do riacho.

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- Já chegou mais alguém Benedito? – Perguntou adentrando nas águas revitalizantes a fim de recuperar-se da exaustão o último sobrevivente do grupo de vinte jagunços. - Infelizmente não compadre Barnabé – Respondeu a chamar-lhe pelo nome o franzino cangaceiro que fora autor do plano de escapatória – Até acho que fomos os únicos. Contudo vamos esperar e recuperar nossas forças para depois partirmos em busca do Capitão. - Pra mim ta bom – Concordou já mergulhando no riacho o cangaceiro denominado Barnabé. As horas passaram e quando sobreveio à tarde; estando cientes que não havia mais alguém para chegar, os dois meliantes partiram para se encontrar com o Chefe Cangaceiro, estando este ocultado numa serra há cinco léguas dali. Na Catingueira, o Vilarejo vivia agora um clima de dúvidas a respeito do que ia ocorrer quando o Célere Lampião desce pela falta de seus homens e descesse para acertar sua vingança. Parte da população achava que seria ótimo; assim poderiam dar fim a este com o todo o bando. Outros achavam que seriam mortos das mais variadas e cruéis formas; principalmente sangrados como ovelhas para servir de exemplo a quem se metesse contra o bando. Nestas horas surgiu a figura do Padre Mauro Carli a rebanhar todos para sua igreja a fim de resolverem aquela situação conflitante que estava reinando na pequena Catingueira. O fato é que os cangaceiros foram pegos pela volante e ninguém do lugar tinha nada com isso. Mesmo assim, alguns mais crédulos, sabedores que eram de que Lampião não tolerava confrontos, passaram a possuir um enorme medo de represálias e defendiam uma vigilância ativa. Já que acreditavam nesta hipótese aonde os meliantes descarregariam sua raiva em quem primeiro encontrasse e neste causo, especificamente, no povo da Catingueira. Seriam eles quem deveria dançar nas pontas de suas lâminas. A Igreja de Nossa Senhora da Conceição estava situada no centro das três únicas ruas existentes no lugar e para lá convergia todo homem, mulher ou menino que temia o confronto com as hostes. Também para o mesmo local iam os que queriam acertar contas com os foras da lei. Logo encheram o santuário e o Padre Mauro iniciou a falação mediante o silencio que se fez. - Meus filhos! Vivemos uma era difícil, em que os homens escrevem suas histórias sobre o manto da força. Alguns fazendo justiça. Outros confrontando a lei e a ordem, como é o causo desta praga de nome Lampião. Cabra ruim que estaria mais bem estando morto do que a propagar o mal pelos sertões – neste ponto o padre fez uma pausa, pigarreou para prosseguir - também tem a policia que eu particularmente não sei para que serve, além de matar e matar. É tanta gente ruim na farda que a tirar uns poucos respeitadores, são iguais ou piores que os meliantes. Já que atuam em nome do Governo. Então pelo povo! Só Deus, depois o próprio povo. Agora fez se um burburinho danado dentro da igreja com todos conversando entre si a concordarem ou discordarem do padre e a emitirem suas opiniões uns aos outros. Zoeira que só aumentou para daí a pouco ninguém mais conseguir coordenar a reunião. A coisa

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descambou para tal ponto que o sacristão Antonio Alves teve que sacar uma pistola e efetuar um disparo para o alto em pleno centro da casa santa. Na seqüência passou a se bendizer repetidas vezes e a pedir perdão pelo sacrilégio. Contudo o silencio foi restabelecido e antes que algum fiel tagarela abrisse o bico o Padre tomou as rédeas da coisa. - Abençoado seja António Alves. Tu e tua santa arma. Até que por fim esta papagaiada se calou – Referenciou a apontar com o dedo para seu rebanho e com um ar de poucos amigos. Por último ameaçou quem saísse das estribeiras. - O que abrir o bico desordenadamente o expulso da minha igreja e não permito que venha a missa por um mês. Estão entendendo que a coisa é sério bando de pinica pau? Um silêncio mórbido imperou no ambiente e o padre prosseguiu. - Quando eu terminar de falar vocês terão algum tempo para dialogar e quem tiver algum plano que apresente. Mais por enquanto é melhor haver coordenação em tudo que vamos fazer; do contrario meus filhos, vamos encomendar nossas mortalhas já que o adversário é o próprio coisa ruim. O Padre soltou uma falação por uns dez minutos. Depois abriu espaço para os outros e dentre os cidadãos da localidade Dodô Cândido por conhecer táticas militares e dado no uso de armas de fogo foi por unanimidade escolhido pela população para apresentar um plano de defesa para a Vila. Como a promessa do Padre Mauro de excomungar a quem atrapalhasse novamente a reunião estava de pé; ninguém questionou uma ou outra dúvida ao homem chamado Dodô. Foi o próprio Padre que em um ou noutro ponto questionou uma ou outra posição. Ao término da reunião todos voltaram para seus lares cientes de seus papeis naquela guerra santa, implantada estas idéias pelo Padre italiano erradicado há mais de uma década naquele torrão. A primeira medida providenciada pelos catingueirenses foi à instalação de uma vigília na torre da igreja que possuía cerca de vinte metros de altura; com isto cobrindo com facilidade grande área além das ruelas do lugarejo. Na torre, o grupo destacado para vigília já buscou suas posições em fase de revezamento e no caso os homens escolhidos para este papel foram: Euclides Bezerra, Euclides Pajeú, Joaquim Pajeú e Antônio Pajeú, irmãos de mesmo sobrenome; Henrique Belém professor das letras para aquela gente, Valdivino Tavares e Preto Guedes. Começando estes no desempenho desta função já naquela noite e dia seguinte até suas substituição por uma nova equipe. Na casa paroquial de propriedade de Liberalino Marques da Nóbrega e de sua segunda esposa, Luzia Quitéria “a beata” que era quem zelava pelos Padres, conversavam preocupados com um futuro ataque dos cangaceiros as seguintes pessoas: Padre Mauro, o próprio Belo Nóbrega e Abel Moreira um homenzarrão de elevada estatura, proprietário da fazenda Cipó naquela região. Iniciada a falação pelo pároco. - Seu Belo – Assim era conhecido Liberalino – Escrevi uma carta para o Comandante do quartel de Sousa. Embora ache que eles não viram nos ajudar nessa nossa desconfiança de retaliação dos cangaceiros, creio que não custa nada enviá-la para o Tenente

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daquela caserna. Antônio Alves é quem vai levá-la hoje à tardinha enquanto cá ficamos nós no aguardo de alguma ajuda caso aporte aqui Lampião e seus homens. Liberalino que também era um homem de estatura fenomenal, pai de mais de vinte filhos, na soma dos dois casamentos, sendo este segundo com a beata Luzia Quitéria que acabara de adentrar a sala, respondeu. - Fez bem padre. Fez bem. É muito justa sua preocupação. Embora talvez não possamos contar com a polícia. Creio que o Senhor faz bem no envio desta carta. Mesmo a policia não sendo a caixa da correção pelo menos são inimigos naturais dos cangaceiros e aparecendo o próprio rei deles por aqui, é possível que as volantes também surjam. Padre Mauro sorriu a respirar profundo ouvindo esta hipótese. - Tomara homem de Deus. Tomara que vosmecê esteja certo. Quando os homens fizeram silêncio Luzia interviu. - Dodô está aí fora Padre Mauro, e quer conversar com o senhor – Informou voltando nos calcanhares ao sinal de afirmação do religioso. Dodô Candido era casado com a filha mais velha de Liberalino, filha do primeiro casamento. Chamava-se sua consorte, Viterbina, apelidada de Chiquinha. Assim o Padre e Belo puseram-se de pé e foram até a sala ter com o responsável pela segurança do vilarejo; crentes de que aquele homem era o mais indicado para esta tarefa, haja vista sua fama de valentia por todos os rincões adjacentes. Nesta época, em que os Coronéis latifundiários ditavam as leis, os próprios temiam a Dodô, que era ainda sobrinho de um Capitão do exercito brasileiro o “Capitão Cajazeiras” que fora o seu mentor das táticas de guerrilhas das quais o homem era um mestre. Naquele torrão, Dodô era chamado para decisão de todo tipo de querela, funcionava como Juiz, Delegado e se preciso como pistoleiro. A firmeza e ousadia de suas ações o tornaram temido e respeitado por bandoleiros e outros tipos que agiam isoladamente; seus vizinhos eram quem mais o chamavam sempre que havia um desencontro de idéias em torno de qualquer assunto, e este sempre resolvia a dúvida da melhor maneira possível. Assim, não havia quem não respeitasse aquele homem de estatura mediana do clã dos Cândidos. Nesta visita ao Padre o citado veio na companhia de um comerciante local conhecido por Laudislau, proprietário de um empório de estivas e cereais, local onde este passava os dias preso em sua labuta. Gozava Laudislau de influente conceito da população daquela vila. Ao chegarem à Casa paroquial e serem recebidos pela autoridade eclesiástica nem chegaram a entrar, pois Dodô avisou ao pároco do que se tratava ali mesmo, ao pé da porta. - Viemos aqui Padre para informá-lo que o mestre do balanço está no empório de Lau e gostaria de prosear com vossa pessoa. Com a noticia da presença de Mané Tentem do Balanço nas Catingueiras, o padre se animou. - Mas porque vocês não o trouxeram para cá meus filhos? Lauzinho foi que respostou sorrindo.

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- Bem que tentamos, mas como ele é chegado numa brejeira. Preferiu ficar no empório a bebericar enquanto mantinha prosa com Cícero Faustino e José Giló. O Padre já conhecia bem a índole de Mané e o seu valor numa causa de luta. Assim não relutou em ir até o empório de Laudislau. Logo atravessaram a rua principal e chegaram ao empório do botequineiro. Ao entrar no recinto os homens ficaram de pé a cumprimentar o Padre Mauro que saudou a todos num rosado “Bom dia” Padre Mauro então olhou para o visitante e abriu um largo sorriso. - Vaso ruim não se quebra fácil não é mesmo Manoel Tentem? O outro sorriu pelas palavras do religioso. - É verdade Padre. Se assim não fosse como o senhor poderia estar de pé – respondeu em tom de chacota. Todos riram da esperteza do caboclo, principalmente o Padre que já conhecia o senso de humor de sua visita. - Escute cá Tentem. Você não veio a cá para trocarmos elogios. Certo? Nestas alturas já haviam todos sentados em cadeiras colocadas pelo comerciante. - É verdade Padre Mauro. Só vim mesmo por causa do ocorrido no Caldeirão das Mortes. - Como vosmecê soube disto? – indagou Padre Mauro já que determinara as suas santas ovelhas que não saíssem a comentar os fatos acontecidos aos cangaceiros na travessia do rio. - Se preocupe não homem – Respondeu o outro vendo a cara de preocupação do religioso – Foi pela milícia; eles passaram pelo Balanço e me deram causa do ocorrido. A estas alturas todos os jornais e folhetins da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte devem estar anunciando a escaramuça. Mediante estas noticias o Padre cingiu o couro da testa elevando seu estado de preocupação; findou por soltar um impropério. - Malditos miseráveis macacos. Agora é que ficou ruim. Já não duvido que Lampião não queira aparecer por aqui pra ensinar ao povoado uma lição de sangue, como exemplo para este sertão. Por que tinha esta polícia que ser tão linguaruda – fez uma pausa – Jornais! Era só o que me faltava – concluiu. Abel Moreira firmando o rosto em direção ao Padre, resolveu falar. - É talvez o senhor tenha mesmo razão. Mas o que ta feito, ta feito e não da para mudar. O negócio e esperarmos, e como Manoel está aqui para nos ajudar. Vamos ouvir o que ele tem a dizer. - Então se fale homem de Deus. O que ta esperando? – Pediu o Padre a encarar Manoel Tentem. “Mane” na forma de falar daquela gente. - Padre Mauro! Eu também penso como o senhor. Mais dias menos dias aquele elemento aparece por aqui para descontar na gente o que a policia fez aos seus homens. Mais devemos lembrar-nos que eles já estavam mesmo a caminho do Balanço para ter comigo – Olhando para o chão como quem a procurar algo, Tentem engoliu um seco e continuou – É

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pena, pois quem gostaria de ter dado fim aqueles cabras era eu mesmo. No entanto, Padre - Continuou – Pode ser que por alguma sorte divina eles esqueçam vocês. Já que o Balanço é o alvo principal daquele bandido. - Tem razão Manoel – Afirmou Abel, atento ao diálogo – Mas àqueles elementos nestas circunstancias não vão tolerar as baixas e precisaram de alguém para servir de exemplo. Assim! Já que o Balanço é praticamente intransponível; só lhes resta Catingueira. Área do Caldeirão das Mortes aonde a polícia dizimou uma facção de cangaceiros. Todos concordaram com Abel e o Padre insistiu. - Quero saber como vosmecê pode nos ajudar Manoel. - Certamente Padre Mauro. Certamente. Eu penso que a melhor maneira deu ajudar a vocês é a manutenção de um correio por mensageiro. Fica desde já alguém incumbido ao menor sinal de Cangaceiros, de se enterrar nestas matas e correr até o Balanço. Daí eu desço com os homens que puder contar, é só o que eu posso oferecer. Concordam? Um pequeno sorriso se abriu no largo rosto do Padre italiano. - Para quem antes só contava com o povo daqui. Pra mim ta ótimo – Concordou a acrescentar o pároco – Isto merece uma comemoração, Lauzinho! Me traga aí um litro da melhor aguardente que você tem. ... Com este novo rumo, se Lampião aparecesse nos caminhos das Catingueiras ou Balanços a coisa não seria tão fácil para o rei dos cangaceiros. Convictos desta certeza e pela aliança firmada entre os dois povoados por suas maiores autoridades. Aqueles homens presentes na bodega de Lauzinho empurraram a cara no litro de aguardente pedida pelo Padre. Logo outro litro apareceu timidamente, e mais dois após este segundo surgiram na roda de conversas levando os presentes a um fogo altíssimo. Apenas o Padre não se embriagou completamente, mas retirou-se do local com as idéias meias tortas pelo efeito da cana, enquanto seus camaradas continuaram a beber até perderem os sentidos. O Acordo entre Manoel Tentem e o povo das catingueiras deu uma alma nova à gente simples daquele pedaço. A vigília na torre continuou com alternação dos grupos de vigilantes num sistema de rodízio que já duravam nove dias. Até as mulheres se empolgaram e três destas senhoras se armaram junto aos homens vindo participar da vigilância. Foram elas: Nena Belém, uma morena de estatura mediana, fala alta, de rosto afilado e olhos castanhos claros; decidida nas suas ações para ela não havia tempo ruim. Dona Geralda do Angical, uma mulher de pele morena curtida ao sol, baixa de olhos grandes, espevitada e cheia de vida, sempre pronta para uma boa peleja, fosse contra quem fosse. Era dado a uma tagarelice e na roda que estivesse só se ouvia sua voz Edmunda do Tambor, meio mouca, espavorida no modo de falar e decidida nas suas ações, gostava e comprava de qualquer um uma boa peleja na defesa dos outros. Os dias foram transitando desde a instalação da vigília e até ali já passado um mês sem nenhum sinal do bando, parte da população começou a acreditar que Lampião não iria aparecer.

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Grande era a alegria de Benedito e Barnabé quando atingiram a serra dos mocós, local em que estava acampado Lampião e seu bando. Vieram se esgueirando até ficarem ao alcance dos vigilantes que ao identificarem os homens, lhes deixaram prosseguir. Passando agora a caminharem por uma ruinha de pedras, atravessando alguns obstáculos naturais entre moitas, pedras e árvores de pequenos portes a espalharam-se pela imensidão da serra a brotar suas raízes pelas lascas e frinchas dos rochedos. Aquela era a única trilha que existia para se tomar chegada a uma saliência mais plana no cume da serra, protegida por um paredão de pedras pontiagudas e inescaláveis, de modo a formar uma cacimba gigantesca. O som de uma sanfona chegou aos ouvidos dos dois homens que logo se igualaram a um terceiro que seguia pela mesma via. Este era desconhecido dos dois, mas com certeza cabra do Capitão, “se não, não teria atravessado a vigília dos homens na espreita da aba do pé da serra”. Quando estes se aproximaram do outro, saudaram-se amistosamente. - Salve! - Salve. - Tudo em paz com vocês meus irmãos? - Perguntou o distinto. - Nem tudo meu irmão. Nem tudo – Respondeu Benedito, para Barnabé confirmar com a cabeça, aonde a partir dali já caminharam para diante trocando informações. - E o que houve pra coisa ta tão ruim camarada? – Perguntou o desconhecido que já foi se apresentando – Minha graça é Antônio Kaiana. Apresentou-se a esperar os outros fazerem o mesmo e contar-lhe o que estava ruim. - Kaiana hem! – Exclamou Benedito antes de qualquer coisa – Já ouvi falar de você. Meu nome é Benedito e este é – Esperou Barnabé se apresentar coisa que o mestiço fez de imediato a sorrir amargo. - Barnabé das Baraúnas. Apresentados Benedito prosseguiu. - Estamos vindo de uma missão da qual só eu e o compadre aqui saímos vivos. Lá pra bandas das Catingueiras, é isto que está ruim. E você! De onde vem Kaiana? Este não teceu comentários sobre o infortúnio de seus camaradas e também foi autentico na resposta do interlocutor. - Estou vindo da região de Cajazeiras. Fui ver da possibilidade de um ataque àquela cidade. Mas isto parece impossível. Eles contam com boa defesa e estão bem preparados. É como disse o Padrinho Cícero. “Lá também é terra de Padre” Os dois cangaceiros entenderam perfeitamente a frase e não falaram mais sobre a terra do Padre Rolim. Barnabé foi quem exclamou a praguejar de seu infortúnio. - Diacho de má sorte! De vinte homens. Só eu e o compadre aqui conseguimos manter o couro. O resto deu com a cara na terra e que por estas horas já tão é só os ossos. Kaiana ouviu sisudo e Benedito concluiu. - O capitão não vai gostar nada, nada quando souber desta história. ...

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Logo chegaram ao acampamento do famigerado Virgolino, aonde inúmeras barracas rústicas se espalhavam em circulo havendo quatro a cinco homens para cada. Em frente a estas tendas haviam muitos fuzis alinhados em pé, escorados um nos outros a formar pequenas touceiras aqui ou acolá. Contudo, próximos de serem alcançados a qualquer momento. Percebeu Benedito estar presentes naquele local quase todo grosso do bando, uns quarenta homens. Quase todos olhavam atentos para os recém chegados quando estes avançavam em direção a barraca do Capitão Virgolino Ferreira, vulgo Lampião. Entretanto, antes de atingirem a tenda principal um negro de nariz achatado, cabelos grandes empinchiados, espaduado, lábios grossos, barrou-lhes o caminho parando frente aos três que de imediato estancaram os passos há dois metros da barraca do chefe cangaceiro. Benedito medindo a figura do seu superior dentro das hostes e sem demonstrar nenhum medo, falou bem alto para que todos o pudessem escutar. - Saia do caminho Corisco. Temos que nos reportar ao Capitão. Ou vosmecê não sabe que saímos em missão? O denominado Corisco fechou a cara pela petulância daquela pequena figura a parecer desafiar sua autoridade. - Vosmecê tem mesmo coragem homem. Falar comigo assim! Dobre a língua na frente dos outros e mostre mais respeito comigo cabra. Do contrário lhe arranco as tripas pra fazer uma corda e ainda arranco teus olhos com minhas mãos cabra atrevido. - Duvido não homem – Respondeu Benedito – Que era realmente de pouca estatura, não de coragem – Só tenha cuidado pra não ser vósmece que coma a lamina da minha faca no momento que resolver me bater. Corisco sorriu da resposta do camarada a descontrair sua face. Era habito seu testar seus homens. - Pode passar Benedito. O Capitão já ta lhe esperando com seu companheiro. Agora e tu Kaiana? - Deixa pra furar meus olhos outro dia homem. O Capitão ta a precisar de uma boa arma e se tu me fizeres isto é um a menos. Respondeu Antônio Kaiana dentro de uma frieza enorme que todos ali compreenderam que aquele mulato não temia o seu superior; apenas obedecia a disciplina do bando. Corisco compreendeu a mensagem e num tom mais ríspido se afastou a permitir a passagem do cangaceiro Antônio Kaiana. Quando os recém chegados saíram da barraca após prestarem ligeiro relato ao rei dos cangaceiros. Tendo este escutado passivamente as noticias dos ocorridos aos seus comandados. Lampião chamou a sua ordenança Corisco a ordena lhe que reunisse o bando imediatamente, pois precisava falar a todos. Minutos depois tendo Corisco cumprido a ordem e a horda estando toda pronta veio Virgolino Ferreira ter com seus homens. - Homens – Não fez referencias as mulheres haja vista entre as poucas que estavam ali, apenas duas serem guerreiras: Maria Bonita a sua cara metade e Rosa do Olho

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dagua, mulher de um cangaceiro conhecido por Pilão deitado. Sendo as demais moças que vieram alegrar o acampamento a mando de algum coiteiro – Segundo relato de Benedito e Barnabé, os nossos irmãos que foram enviados aos Balanços estão todos mortos, tocaiados que foram no caldeirão das mortes pelos macacos fardados, e da forma como ocorreu não podemos culpar a estes homens em nada. Pelo contrário, merecem nossos respeito e nada de chacota com eles. Estamos entendidos? – Um sussurro de sim se espalhou ligeiramente pelo ar - Quanto a Kaiana ele apenas me confirmou o que meu Santo Padrinho já havia me encomendado: em Cajazeiras homem sobre minhas ordens não mete a mão. Lá também é terra de padre. Já quanto ao desvairado do Mané Tentem na primeira oportunidade agente arrasa balanços, saqueia mata e queima o que ficar de pé pra exemplar essa gente. Em relação ao povoado de Catingueira conheço muito bem e sei que é de gente pobre de pouco dinheiro não vale uma incursão contra eles. Porém se descobrirmos que participaram auxiliando a milícia no caldeirão das mortes contra nossa gente. Também eles sentirão por que me chamo Lampião – o bando com estas frases se agiotou a emitir gritos de euforia. Quando Corisco conseguiu restabelecer o silencio Virgolino concluiu – Outro dia qualquer agente passar por lá, já que amanha vamos descer pro Pernambuco. E para que as mortes de nossos irmãos não seja motivo de festa pra muita gente quem entrar no nosso caminho tem noventa e nove por cento de chance de ir falar com Deus bem mais cedo – Terminou enfatizando – E lembrem-se: amigo é amigo. Inimigo é defunto. Mau lampião terminou o falatório seus cabras explodiram em manifestação de euforia a pular e dançar com as quengas ali presentes aos acordes de Zé Fumaça, um cabra oriundo de queimadas. Logo uma aguardente passou a ser distribuída por um coiteiro junto com munição e outros apetrechos comuns aos cabras. Lampião por sua vez segurou a mão de Maria Bonita e após cochichar qualquer coisa ao seu ouvido, a mulher soltou uma soberba e espalhafatosa gargalhada a acenar com a cabeça positivamente, saltando nos braços do cangaceiro rei se meteram de volta para o interior da barraca, enquanto cá fora da cabana o xaxado rolava a solta entrando pela noite até alcançar a madrugada de lua cheia. Lá no interior da barraca, rolavam na rede os corpos nus de dois amantes apaixonados a escreverem sua história de amor e violência nos sovacos dos sertões. O sol perdia totalmente a tonalidade no dia seguinte a clarear aquela enorme fila de homens a caminharem na caatinga, carregando seus apetrechos, próximo do astro rei se por, obedecendo a seguinte ordem: Primeiro Lampião, seguido de Maria Bonita, Corisco, Benedito, Pilão Deitado, Rosa do Olho Dágua, Cancão de fogo, Cansanssão, Cangaçu... E muitos outros num total de quarenta e sete corpos ziguezagueando pelo caminho a passo lento, a abrir uma trilha na caatinga acinzentada do verde a muchar pela estação das secas. Estavam em marcha desde a manha daquele dia. Seguiram da Serra do Mocó arrodeando pelas cidades em seu percurso buscando passar ao largo destas na direção do Brejo Santo, para depois dali alcançarem o Estado do Pernambuco. Com o dilúculo da luz solar avistaram uma fazenda e com os devidos cuidados se acercaram da casa grande, encontrando-a totalmente abandonada. O que fez Lampião resmungar.

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- Se fugiram é porque não era gente nossa. Cambada de frouxos! Três cabras escolhidos por Corisco varreram a casa revirando todo e qualquer lugar aonde pudessem encontrar alguém escondido, de fato quando regressaram a sala da casa grande onde seu líder estava sentado em uma suntuosa cadeira, retornaram cobertos de pelos de palha de milho, num sinal de que reviraram também o sótão do armazém e do meio do paiol trouxeram consigo um prisioneiro incomum ao bando. O homem de pele clara, rosto rosado, barba feita, olhos azuis, lábios finos, fala em um tom agudo, bem alinhado no terno, era aleijado da cintura para baixo e ainda apresentava uma enorme deficiência nos movimentos das mãos, cujos dedos estavam retesados. Olhando o atentamente Lampião ordenou que o acomodassem ao seu lado; raciocinava o porquê dele não ter sido levado na fuga dos moradores da fazenda. Encarando o com firmeza num misto de olhar que expressava frieza e bondade, estando a alisar o cabo de sua pistola alemã o inquiriu. - E então aleijado – Começou – O resto da tua família te abandonou a própria sorte? Que gente covarde! Deixar-te sozinho neste estado para ter com a gente a “justiça” do sertão. O deficiente o olhou altivo e soltou um sorriso sarcástico antes de responder. - Família! Não. Só tenho um filho por nome Vicente; mas o menino está estudando na capital do Estado. Ademais os que fugiram eram só agregados que possivelmente não voltam mais. Foi arrumação deles mesmos contra a minha vontade de me enfiarem no paiol. Por mim estaria a cá lhe esperando sentado desde que soube da sua aproximação ou vosmecê por acaso acha que tenho medo do Senhor? Virgolino Ferreira e alguns homens que estavam ali na sala soltaram em coro uma soberba e espalhafatosa concertina de gargalhadas. - É! Estou vendo que o Senhor é mesmo homem de coragem. Está escrito nos seus olhos. Porém às vezes nem sempre coragem é suficiente para um homem. O aleijado não retirava os olhos da figura imponente do rei dos cangaceiros, como se a estudar a imagem do intrépido fora da lei. Foi quando Lampião abriu um sorriso sereno a perguntar em voz mais branda a graça deste. - Mais me diga cá homem. Qual é mesmo a sua graça? - Justino Feitosa – Respondeu o indagado. - Justino Feitosa – Repetiu Lampião – Pois muito bem homem! Agora me informe a causa do senhor não nos temer? Justino Feitosa sorriu amargo. - A minha deficiência Capitão. O meu aleijo é a causa pela qual não lhe temo. Se fosse sadio. Aí eu teria razão de correr da morte. Neste estado ela anda comigo diuturnamente. Assim: se fosse sadio eu me submetia a sua amizade por medo ou por respeito, ou mesmo ainda pelos dois, pois em sendo sadio e podendo contratar jagunços para não lhe permitir entrar aqui, ainda assim seria por medo não por coragem. Contudo! No meu estado não há medos nem coragem, só há o fato de que estou inútil daí as minhas portas estão abertas a todo e qualquer um passante. Bom ou ruim, certo ou errado, cangaceiro ou polícia – neste ponto o homem fitou bem ao cangaceiro, mas Lampião não alterou a fisionomia

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e este encerrou – Concluindo: já sou mesmo um defunto vivo; só falta o bom Deus oficializar minha partida. Causa que me faz ser da forma que lho disse. Um dos cangaceiros atentos ao falar do Feitosa assim que ele expressou da oficialização de sua morte por Deus, o homem completou. - Ou por nós. Esta ameaça fez Lampião lhe lançar um olhar injetado de raiva que o fez fechar a matraca arrependido da chacota soltada ao acaso das palavras de Justino. - Saia da sala seu Pereira. Vá se juntar aos homens lá fora e aprenda a ter respeito com as desgraças alheias. Acaso gostaria que arrancasse seu saco e desse pros cachorros? A ordem de Virgolino o cabra desandou a tremer e metendo o rabo entre as pernas saiu cabisbaixo do recinto. Lampião prosseguiu. - Gostei do amigo. Desculpe o meu cabra Justino. Às vezes tem sempre um que gosta de meter a colher aonde não cabe – Justino Feitosa acenou com a cabeça que sim – O amigo me disse um monte de verdades que muitos coiteiros desejariam fazê-lo; mas o medo os faz borrar nas botas. Nestes sertões tem muito cabra só esperando o momento de me atraiçoar. Também têm outros que morreriam por mim. Cabras bons que bebem água chupam pedra. No entanto sempre que posso retribuo da mesma maneira. Aos fieis minha sincera amizade, aos ratos traiçoeiros a ponta do meu punhal e um tratamento exemplar que ninguém esquece jamais. A conversa na casa foi interrompida pelo retorno daquele denominado Pereira a alertar em voz alta. - Capitão! Dois dos nossos batedores estão voltando ai com prisioneiros. Ao escutar as noticias Lampião recolocou seu chapelão na cabeça, se pos de pé ajeitou sua vestimenta e veio para a alpendrada tendo ordenado que trouxessem Justino na cadeira que estava acomodado. Cá fora dois homens lhe foram apresentados com os punhos amarrados para trás. Trajavam apenas calças de algodão, sandálias de rabicho, estando na posição de joelhos com seus tórax a deixar fluir grande quantidade de suor; cercados que estavam por mais de uma dúzia de cangaceiros a soltar lhes uma enxurrada de impropérios. Olhando para Justino Feitosa com a aparência mais fechada indagou. - E então Justino! Conhece estes cabras? É por acaso gente sua? Ou mesmo aqui da região? Puxados pelos cabelos suas cabeças foram erguidas de forma que seus rostos ficaram a mercê do fazendeiro que pôde constatar em um dos dois um ódio enorme injetado pelos olhos, parecia que só seu corpo estava ali, sua mente não. O outro por sua vez era uma caixa de medos, tal o estado enervado que demonstrava no meio da caterva. Após estudar suas feições e buscar entender o que se passava em suas mentes Justino Feitosa respondeu com segurança. - Não é gente minha. Nem eu os conheço. Então Lampião sorriu ditoso a chamar por Corisco.

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- Eu já sabia disto. Estes bostas são rastreadores da milícia – Desabafou Virgolino com a voz a ganhar nova tonalidade – Neste causo; Corisco interrogue-os. Aquele prisioneiro em estado de maior enervamento ao ouvir a ordem entrou em pânico, atirando-se aos pés do terror dos sertões. - Não capitão! Pelo amor de Deus. Por meu Padrinho Cícero do Juazeiro não nos mate. A frase com o nome do Padre tocou o coração de ferro de Virgolino, que readquirindo uma nova brandura na fala, ordenou. - Destar Corisco. Amarre este suplicante numa cadeira – Após ordenar passou a vista pelo terreiro da casa grande a detectar um pé de juá - Quanto a este outro mais quieto, pendure-o de mocotó pra cima que já, já vou ter com ele. Às cinco e meia da tarde daquele dia o corpo do prisioneiro foi arrastado por alguns pares de mãos e logo ficou dependurado há menos de um metro do chão, e quase três dos olhos de Justino Feitosa recolocado há pouca distancia do cativo, bem como foi o segundo aprisionado já amarrado na cadeira para ali levado. Este chorava como criança a rezar invocando o nome de uma centena de santos. Já o outro dependurado, permanecia em um silêncio surpreendedor já que os próprios cangaceiros até àquela hora não vira ainda quem não entrasse em pânico a ser colocado na posição de sangria, haja vista que nenhum amarrado naquela angulo fora poupado. Havia um misto de decepção por parte dos meliantes que gostavam de apreciar o sofrimento alheio, principalmente daqueles que consideravam inimigos. O peso do corpo do prisioneiro fazia as cordas ferirem suas canelas a causar-lhe uma grande dor, contudo o mesmo mantinha-se em silêncio, como a desafiar seus algozes. Os seus braços estavam amarrados na linha de cintura o que impedia de fazer qualquer movimento no sentido de aliviar seu suplicio. Acercando-se deste, intrigado pela imparcialidade ao martírio das cordas e da ameaça da morte se avizinhando, Lampião procurou impor algum temor ao desafortunado prisioneiro. - E então Cabra! Vai nos dizer pra quem você trabalha? O homem nada disse, permaneceu impassível. - Ele tem mesmo coragem ou é um doido varrido – Explicou Lampião junto deste a olhar para seus homens que sorriram mais por temor ao seu líder do que da situação do preso. Corisco impressionado pela audácia do estranhou enfatizou. - Tem mesmo capitão. O cabra é mesmo macho. A esta afirmação instalou-se um silêncio surpreendente naquele local, silêncio que Lampião quebrou. - É mesmo. Vamos ver se ele continua assim – Mal completou a frase um de seus subalternos lhe passou uma cuia de bom tamanho e sacando um punhal de onze polegadas, colocou o recipiente no solo embaixo da linha da cabeça do amarrado na posição que julgou correta. Depois segurando os cabelos deste arrastou lhe a cabeça de modo a ficar numa posição que o homem teve de olhar para seu agressor cujo braço estava retesado a segurar a

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lamina que ameaçava sua vida. Sorrindo a buscar meter medo encostou a ponta da lamina no pescoço do infeliz desafortunado e perguntou ameaçador. - Vai me dizer quem é tu cabra e o que estavam fazendo por aí? Ou vai querer morrer sangrado que nem um porco filho de uma puta seu cachorro? Revirando os olhos para um ângulo que pudesse ver melhor seu carrasco, o prisioneiro respondeu rispidamente. - Termine com isso cangaceiro safado. O Pedido agressivo fez Lampião desconcertar e perder o sorriso de maldade; até seus cabras perderam o interesse pela cena, só assistiam porque esta era inédita e queriam ver com seus olhos o desfecho final pois jamais em momento algum, testemunharam tanta coragem. Erguendo os olhos para Corisco Lampião abriu um largo sorriso. - Vosmecê ouviu o que eu ouvi Corisco? Este acenou que sim e com a cabeça a voz sumira na garganta. - Até hoje, nunca pendurei um cabra pra não matá-lo tão pouco havia encontrado um que não chorasse igual a menino nesta hora. Porém este aqui me surpreende e como é mesmo macho! Pra tudo tem a primeira vez. Soltem-no e o deixem ir. Ordenou a recolocar a lamina na bainha enquanto seus homens se apresavam em cumprir o determinado. O prisioneiro escutava calado, alheio a sua sorte, nesta hora sua vista só buscava o outro amarrado na cadeira a quem seus olhos queriam alcançar e proteger. Liberto, de frente a lampião o homem o fitou nos olhos. Encarando-o com altivez aí o cangaceiro perguntou. - O que você quer? Não acha que está abusando da sorte? - Antes deste responder Lampião ordenou a corisco - Amarra este chorão no lugar deste valente. Ao ouvir a ordem o homem caiu de joelhos aos pés de Lampião que ficou sem entender. - Ta doido cabra! O que você ainda quer? – Indagou surpreso e antecipando-se a resposta deste, Corisco desceu a sola do fuzil na cabeça do prisioneiro fazendo o desacordar. Olhando para sua ordenança Lampião censurou-o com os olhos, mas nada falou e como o outro já estava na posição adequada, pendurado a berrar implorando por clemência. se acercou deste e sacando o punhal arrastou-lhe a cabeça de lado puxando pelos cabelos. Imparcial aos gritos de horror com bastante calma e frieza introduziu lentamente a lâmina nas carnes do pescoço do prisioneiro que berrava em espasmos de dor e agonia a emitir sons ininteligíveis, após certa altura num movimento brusco trouxe o punhal para fora, após inverter o ângulo fazendo rasgar um talho do interior para o exterior a abrir uma enorme fenda na jugular do desconhecido; com a lamina expirou o sangue pela ferida aberta entrando o corpo do rastreador em convulsão nas ânsias da morte. Lampião limpou a lamina de sua arma, guardou-a de volta no lugar de origem, agachou-se, segurou a cuia e a trouxe para junto da ferida aonde fluía o sangue vermelho do moribundo. Após coletar um pouco, levou o recipiente a boca e tomou um gole do sangue de sua vitima já quase sem movimentos, no que jogou a

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cuia no chão a arrancar um misto de medo e terror de Justino Feitosa que nada disse, além de emitir uma careta. Depois disto o homem falou para que todos o ouvissem. - O cangaço é pra quem é homem. O sangue deste cabra é pra lavar as desgraças que o Governo vive a nos aprontar e pra servir de lição a quem quiser me atraiçoar. Um silêncio imperou naquele momento. Geralmente estas ações de sangria era uma festa. Entretanto o primeiro prisioneiro a fizera perder o brilho e ninguém deu o menor pio apesar de concordarem com seu chefe que um cabra frouxo e covarde daquele era melhor estar morto do que vivo. Voltando do estado de inconsciência o rastreador logo divisou a desgraça ocorrida a seu camarada e ficando de pé a chamar a atenção de todos ali presentes, caminhou para junto do ferido a alisar a cabeça no local da coronhada; parando junto do morto, seus olhos buscaram a figura de Lampião que voltara a sentar-se na cadeira ao lado de Justino Feitosa. - O que foi Cabra? O que cê ainda quer? Perguntou Lampião ao sentir se fuzilado pelos olhos do homem que decidira poupar. - Você vai me deixar mesmo ir? Perguntou parando a menos de um metro do chefe cangaceiro que ficou de pé para responder. - Palavra só tenho uma. Pode ir. Mais se tem algo a mim dizer fale. Pois medo é coisa que você não conhece. O outro o olhou dentro dos olhos cheios de ira. - Engano seu – Apontou para o morto – Eu tinha muito medo daquilo acontecer com ele, como aconteceu. Agora não tenho mais medo não. Vou até ter mais uma razão pra lhe caçar e matá-lo na primeira oportunidade. A esta frase vários cabras buscaram se achegar ao rastreador, porém foram contidos por Lampião que erguera a mão mandando os parar. - Parem. Deixem ele falar. - O homem que você sangrou era meu irmão caçula. Até aceitaria morrer no lugar dele; mas isto não é possível. Assim só posso viver para me vingar. Não concorda? Lampião sorriu antes de responder. - Concordo sim. No seu lugar pensaria da mesma forma. Mas vocês são rastreadores não são? - Sim – Respondeu firmemente o sobrevivente. - Então não me arrependo de ter matado ele. Arrependo-me sim de ter prometido poupá-lo. Pois é um inimigo que eu não queria ter. Mais como dei minha palavra. Vou cumpri-la. No entanto se quiser mesmo me matar vai ter que sair por aí me caçando. Ou então... (ligeira pausa) ou então agente pode resolver agora mesmo. O que você acha? - Resolver agora mesmo – Respondeu com insigne firmeza o desconhecido para total surpresa dos cangaceiros. Sorrindo Lampião se afastou da cadeira a explicar em voz alta.

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- Ouça bem homens. Prometi poupar este cabra. Como vocês sabem que cumpro com o que digo e como ele deseja me matar para vingar seu irmão chorão – Aqui os cangaceiros sorriram já refeitos a esperarem ansiosos os desfechos desta nova situação – Logo vou dar lhe o direito de me enfrentar num duelo de lâminas – Explicou e aumentou a ordenar – Se ele me vencer deixem o ir. Não toquem nele. Se eu o vencer... E é claro vou vencer, se preocupem não, minha lâmina é quem toca nele. Aos gritos de euforia rapidamente um circulo foi formado ficando ao centro o rastreador de punhal na mão, arma que Lampião ordenara alguém lhe dar e o próprio rei dos cangaceiros, prontos para um duelo de morte. Contudo antes do começo da luta, Lampião indagou. - Pelo menos vai nos dizer seu nome não? Já que não gostaria de matar alguém sem conhecimento de sua graça. Ainda menos um cabra disposto como você. - Posso sim – Respondeu este calmamente – Vosmecê tem razão: não é justo se matar alguém sem saber o nome. Como já sei o seu. Saiba que o homem que vai lhe matar se chama Francisco. - Francisco! Mas de que? – insistiu o outro. - Francisco já é muito para um finado saber cangaceiro. Lampião sorriu, bem como alguns de seus homens animados que estavam pelo inicio da contenda. Por sua vez, Justino Feitosa preso à cadeira que estava sentado estava passado de admiração pela coragem do caboclo que dispunha a bater se com Virgolino Ferreira. - Muito bom “Chico”. Daqui a pouco você vai se chamar Chico defunto. Posicionados de frente a circularem em um movimento giratório dentro da bolha humana passaram a estudar o melhor momento de iniciar a peleja mortal foi quando Benedito intrometeu-se. - Capitão! - O que é cabra. Isto lê é hora de vosmecê me atrapalhar? - É que são seis horas. O Senhor vai pelejar contra este cabra exatamente nesta hora? A hora do anjo. Realmente os meliantes eram praticantes dos mais bizarros atos de selvageria e violência. Às vezes praticavam a justiça de modo que fosse para favorecer um aliado ou alguém do povo que merecesse sua compreensão ao tempo que viajavam de um lado a outro em extremos, pois por mais cruéis que fossem também eram religiosos e os atos de fé e penitencia praticavam diuturnamente a ponto de se sacrificarem na defesa de sua sé. Assim Virgolino Ferreira interrompeu o embate e ordenou que acomodassem o desafeto em um quarto do casarão e que se pusessem vigília a porta do seu aposento, pois na manhã seguinte passariam a limpo o duelo. Situação que desagradou a Francisco. Todavia ele teve que tolerar. - Capitão quanto ao homem sangrado o que vamos fazer? – perguntou outro cangaceiro. Olhando para o finado balançou a cabeça pensativo para depois responder.

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- Deixa ele a ir. Vai dar mais animo ao meu desafiante. Por outro lado ele não vai mesmo mais a lugar nenhum. Os que estavam ali perto gargalharam pela resposta de seu chefe foi o exato instante em que um dos vigilantes mais avançados chegou a correr esbaforido já os lampejos da noite a alcançá-los. - Capitão! Corisco, ta vindo uma patrulha por aí. - E eles já estão perto compadre Chico Pato? – perguntou Corisco. - Ainda levam uma meia hora para chegar aqui - Respondeu convicto o jagunço. - E quantos são – Perguntou Lampião. - Mais ou menos onze. - Bem! Então lá se vai a reza pra outra hora, por que agora a festa vai ficar boa. Corisco mande amarrar bem amarrado aquele batedor o homem pode na hora da briga se juntar aos macacos e eu não quero que nada lhe ocorra antes de amanhã – Imediatamente a ordenança saiu a cumprir o ordenado – Quanto a vocês – Referiu-se aos demais – Escondam o corpo deste chorão aí e em três minutos quero todo mundo ocultado; escondido de tal maneira que quando aqueles cabras chegarem pensem que não há ninguém a cá. Depois... Bom! Depois agente mata todos eles. De fato rapidamente as ordens foram acatadas, Justino foi guardado em sua casa, o morto desapareceu, Francisco foi inquirido a cordas e ligeiramente na fazenda de Justino Feitosa pairou um silêncio absoluto dando a entender que esta estava abandonada. Suas portas e janelas ficaram escancaradas alguns troços e utensílios foram atirados no terreiro para mais causar esta impressão. Dali a pouco a cangaceirada se embuçou completamente, uns por trás do parapeito da alpendrada do casarão, outros por trás de troncos de árvores e cercas de varas enfim aonde mais lhes foi conveniente. Meia hora depois a volante de oito homens mais três prisioneiros surgiram na fronte da fazenda. Vinham a observar o terreno, preocupados que estavam de uma possível emboscada; procuravam minuciosamente algum sinal que fosse do inimigo, eram comandados por um Tenente de cara larga e foi este quem ordenou alto ao grupo estando há uns vinte metros de atingirem a casa grande. - Cabo Teles – Chamou. - Sim Senhor Tenente – Respondeu o subalterno. - Você tem certeza que este lugar é seguro e que aqui é a fazenda de Justino Feitosa? - Que é seguro lá não posso garantir, pois como o Senhor mesmo está a ver parece que passou alguém por a cá e fez uma estripulia danada; mas que é as terras de Justino Feitosa, lá posso lhe garantir, é a cá mesmo. - Mas não deveria haver gente por a cá Cabo? - Deveria sim. Já estou a ficar preocupado, mas é com Justino o homem é aleijado. O que será que houve aqui?

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- Boa coisa não foi. Talvez os cangaceiros tenham passado por aqui e matado a todos, ou então: fugiram as pressas para a mata como é comum a esta gente. Bem, destaque dois soldados para inspecionar a casa. De onde estava Justino Feitosa viu a polícia de longe, mas nada podia fazer estava com um cabra ao seu lado vigiando o atentamente, além de estar preso a sua condição física. Um dos militares rasos o Soldado Pedro Cesário que também conhecia bem aquelas paragens se apresentou para a incursão. - Eu averiguo a casa Tenente. Conheço a bem e por ser esta região bem habitada quase nunca Lampião bota os pés por a cá. Um outro o acompanhou e confiantes que estavam seguros avançaram para alcançar a casa grande. Lampião pacientemente mantinha se sereno aguardando o momento de sinalizar a seus homens o momento de atacar. Corisco em uma outra posição com muitos comandados observava seu chefe a aguardar o momento oportuno; cobriram os dos militares rasos com suas miras e ficaram só na espera. Apreensivo o Tenente acompanhou com os olhos seus homens até estes atingirem pouco mais de um metro do telheiro. A partir daí a área de entrada da fazenda de Justino Feitosa virou um campo de guerra que eclodiu com a ordem do cangaceiro cego, sinalizando para atacar. Os dois soldados não tiveram sequer como disparar suas armas, colhidos que foram pela descarga de várias armas contra seus corpos, algumas de tão perto que foram impulsionados para trás voando pela força dos balázios, quando tocaram o solo já estavam mortos com várias perfurações ao longo do corpo. Ao perceber a encrenca o Tenente gritou assustado a soltar muitos nomes obscenos, contra os cangaceiros e aos próprios subalternos. A saraivada de tiros que veio ao seu encontro junto aos demais militares lhes mostrou que tinham caído em desgraça. O cabo Teles ciente pelos disparos do número enorme de cangaceiro puxou sua adaga a gritar a plenos pulmões de modo a se fazer ouvir por todos ali presentes. - É só eu e você Lampião! Cangaceiro fuleiro. Se for macho venha a mim. As balas iam beijando corpos e levando os a morte; nesta situação os projeteis eram disparados visando o Tenente e os seus ladeados já abandonadas as armas entrando em fuga numa carreira espantosa. Lampião ouvira o grito do cabo e saltando para o terreiro de arma empunhada encurtou a distancia do outro naquele final de tarde inicio da noite dos desafios dos homens de coragem. - Vá Corisco e me traga a cabeça daqueles cagões que da deste cabra cuido eu – Ordenou Lampião avançando em linha para encontrar-se com o Cabo Teles. Imediatamente Corisco partiu levando uma dezena de cangaceiros consigo para dar caça aos fujões que escapuliram dali. Os que ficaram trouxeram os três prisioneiros vindos com os militares; outros foram buscar Francisco e Justino, já Lampião e Teles se encontraram fazendo suas lâminas buscar os corpos um do outro numa dança de corpos que exigia agilidade destreza e força.

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- Eita macaco macho! Vou lhe dar uma morte rápida sujeito. Explicava Lampião no instante em que retornavam a posição de estudo dos movimentos para uma nova investida. - Já eu vou arrancar este teu outro olho bom, cego filho da gota serena. As lâminas tilintavam ao encontro produzindo naquele inicio de noite a percussão de um som costumas na resolução de diferenças entre valentes. Teles manejando sua arma em zigue e zague golpeava o cangaceiro que caminhava para trás fazendo sua defesa a cada lance na ação de recuo. Quando o aço se chocava em algum lugar no nordeste os espetáculos de gladiadores romanos poderiam ser lembrados, tal era a destreza força e velocidade que os contendores imprimiam na disputa. Lampião sorria desafiando o militar, enquanto este descarregava uma carrada de impropérios ao Senhor das Caatingas. - Eita velho Cabo, hoje tu encontrastes a morte. O outro replicava - Teus dias de assombração acabam já cabra safado e besta. A ponta da minha biguana, já, já encontra tuas tripas. Neste ponto Lampião passou da defesa ao ataque numa investida formidável contra o oposto, fazendo o milite sentir o peso de seu valor, obrigando Teles a recuar. No instante seguinte os movimentos se alternavam numa dança de golpes e movimentos de pura agilidade que demonstrava claramente ser aqueles leões, dois imbatíveis. Lampião observou que o miliciano lutava mordendo a língua, e este, notou que o rei buscava ficar em posição quase lateral, na linha de seu olho bom, certamente para ter maior campo de visão no equilíbrio do olho que lhe faltava. - Não vá arrancar a língua de uma mordida macaco fedorento. Ou não vai poder gritar nem um ai quando tua pança engolir meu punhal. Os assistentes assulavam a gritos aquela disputa com um gigantesco entusiasmo. Até ali, adverso nenhum conseguira resistir mais de três minutos a uma contenda com Lampião, o homem era mestre nesta disputa, entretanto o Cabo estava demonstrando ser também e a peleja avançava no tempo para maior satisfação da platéia, toda ela a exceção de Francisco ao lado do chefe cangaceiro. Este prisioneiro, mesmo contra a ordem natural dos fatos, gritava possesso a favor do cabo torcendo para ele despachar Lampião. Cabo Teles reconhecia no adverso um antagônico extraordinário. Bem como sabia ser um homem morto pelos demais se lograsse êxito naquela disputa; assim estava dando o máximo de si para empacotar o célere Lampião. Em dado momento meia hora depois de combate o militar soltou uma soberba gargalhada estando ambos frente a frente, meio abaixados a se estudarem, podendo sentir o “bafo” um do outro pela respiração ofegante do cansaço naquela luta de iguais. - Está rindo da morte milico? - Não! De jeito nenhum cabra. Sei que sou um homem morto, foi só um relance de minha estupidez ao recordar que o desgraçado do Tenente fugiu e largou a obrigação de matá-lo na minha mão. Agora eu posso lhe matar e aquele bosta é quem vai ganhar o mérito.

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Falavam e circulavam-se. - Mas isso, é se ele escapar. Garanto-lhe que ele não irá longe. Por outro lado hoje tive um dia ruim; você é o segundo a aparecer para rir da morte, sendo que resolvi dar uma nova oportunidade ao primeiro e assim estou ciente de que vou lhe dar também. Afinal nem tu me fura nem eu a você. Mas isto ainda é cedo vamos tentar um pouco mais quem sabe eu não tenho melhor sorte já que reconheço a sua capacidade nesta briga. Teles sorriu. - Eu também não tinha encontrado ninguém tão bom quanto vosmecê até hoje. Se não tivéssemos de lado contrário tiraria meu chapéu para você. A luta estava nestas alturas ganhando outro aspecto o de reconhecimento dos enfrentantes das virtudes opostas o que fazia uma diminuição dos ataques, sabidos que estavam da dificuldade de um tocar o outro. Juvêncio Feitosa assistia agora o embate boquiaberto e por sua cabeça passava uma pergunta. “Será que o rastreador brigaria daquele jeito?” Um cangaceiro que estava na guarda de Francisco, cujo apelido no bando era Azeitona, olhava para este a informá-lo, - Grite pouco homem. Teu irmão não volta mais e pode ter certeza que amanha tu se junta a ele. Adquirindo uma aspecto taciturno “certamente pensando no irmão”. O aprisionado calou-se. Até aquele preciso instante os golpes de vai e vem, piruetas, malabarismo corporal no esquivo do gume só haviam provocado cansaço já que a pele dos lutadores continuava ilesa a não ser pela grande quantidade de suor que esta fazia fluir. Um cangaceiro por nome de Ciliro percebendo o retorno de Corisco, alertou pra o Capitão. - Capitão! Corisco está voltando e trás prisioneiros. Lampião olhou de soslaio atento no rival, afinal sua maior deficiência era a visão e erguendo uma das mãos para o alto como quem a ordenar uma pausa na querela “coisa que Teles entendeu” afastou se para trás a olhar para os que estavam chegando. O cabo também curioso embainhou sua arma e virou-se na direção de Corisco que vinha aos gritos com os aprisionados, vez por outra alguém metia o pé no traseiro dos milites presos. Neste momento a voz de Lampião soou em alto e bom tom. - Eita homens! Hoje com exceção daquele chorão só nos apareceram homens de fibra. Sim! Com exceção destes macacos que fugiram a largar seu valoroso companheiro aqui – Os cangaceiros gargalharam eufóricos e este se voltando para Teles expressou – Se vosmecê mim der sua palavra que não vai tentar atacar a mim ou a nenhum de meus homens enquanto não decidir como vamos terminar nossa diferença, lhe deixo solto e também ninguém lhe tira as armas. Concorda? O Cabo ficou impressionado pela atitude do oposto. Como a palavra de um homem mesmo que fosse à de um bandoleiro devia ser considerada já que a maioria absoluta a honrava até com a vida o Cabo respostou.

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- Concordo e lhe dou minha palavra. Concordou sentando se no terreno a descansar o corpo dos movimentos que fizera, mas atento ao acontecidos e de olhos no Tenente e em um soldado que retornavam presos. Com efeito, os demais estavam mortos ou continuavam correndo; cousa que já não lhe interessava saber. Sentia-se se traído e um enorme rancor estava fluindo em suas entranhas pelos companheiros que lho abandonaram. Corisco aproximando-se de seu chefe lhe confidenciou algo em voz baixa e tanto o Tenente como o soldado foram empurrados ao centro onde estava sentado teles. A expressão de terror estava estampada na cara dos fugitivos. O cabo erguendo a vista encarou seu superior que também lhe lançou um olhar a querer mostrar autoridade, possivelmente buscando forças para continuar vivo. Ação ilógica a quem tivesse com o raciocínio calmo, não em estado de medo e enervamento como estava a praça e o oficial. - Ta aí teu Comandante Cabo. O homem correu igual a uma galinha fugindo de uma raposa para te deixar morrer. São estes homens que comandam valentes como você? O Cabo compreendeu o jogo e desviando a vista para Lampião, manteve-se se sereno. Já o Tenente aproveitando a deixa pôs se de pé e titubeando na fala acreditou ter encontrado algo para se segurar. - Cabo frouxo, mole, por que não matou este elemento quando pode – o Tenente presenciara o final da contenda, ou o que julgou ser. Se pondo de pé Teles caminhou para ficar defronte ao seu superior, percebeu que o homem tremia igual uma vara verde açoitada pelos ventos. - O que foi seu molenga? Vai se insubordinar – Resmungou direcionando sua atenção apenas para o Cabo, com isso conseguia mesmo que mentalmente fugir da realidade assustadora de ser prisioneiro de Lampião. - Tenente, eu preferia ter tombado brigando em defesa da farda e da minha honra; imagine o que dirão de você futuramente quando narrarem este fato. Correr para deixar os camaradas morrer em batalha. - O que você quer dizer com isso Cabo? Ta maluco seu merda? - Não quis dizer nada – Explicou o Cabo para surpresa de todos puxando a faca da cintura e num movimento de precisão e velocidade impressionante abraçou-se ao seu comandante fazendo neste movimento seus corpos se encontrarem e desaparecer sua arma dentro das carnes do oficial que emitindo um grito lacerante caiu de costas e ficou a estrebuchar igual a uma galinha com o pescoço partido. No terreno o homem rodopiava em espasmos frenéticos a segurar a pança entreaberta pela lâmina de seu ex-subalterno; mas logo parou mortinho da silva. Calmamente, Teles limpou a lamina num lenço arrastado do bolso e guardou-a na cintura com um sorriso pragmático. - Vosmecê tinha razão Lampião. Este cabra não fazia jus a volante era um covarde fraco e que só desonrava a farda. Está mais bem estando morto. E a honra da polícia ta lavada.

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O Soldado aprisionado não tirava os olhos do Tenente e do Cabo num movimento constante de surpresa e terror que findaram por levar a um estado de desespero. - Depois ainda tem mais – continuou Teles. - Então se fale homem – Ordenou o chefe cangaceiro. - Não posso mais retornar à milícia e como não terminamos nosso acerto. Se vosmecê quiser engrosso as fileiras do bando agora mesmo. Lampião e Corisco gargalharam satisfeitos a coleta daquele homem era um ganho valioso para o bando marginal. Logo Virgolino não pensou duas vezes. - Doravante vosmecê será chamado de Caserna e junto com Corisco ocupará o segundo lugar no bando. Os gritos de alegria foram enormes e todos concordaram com a aquisição. É claro que alguém poderia contestar a indicação, porém o fato do Cabo ter assassinado o Tenente o tornava um bandido e procurado da milícia, assim só lhe restava à vida cangaceira. Todavia como boa ação solicitou ao seu novo Comandante a libertação do Soldado já que este levaria as noticias ali ocorridas aos seus superiores e ele Teles tornar-se-ia inimigo das forças públicas a partir daquela informação. Coisa que Lampião concordou e imediatamente o praça raso foi posto em liberdade saindo a agradecer a ação do Cabo. Embora sem compreender o porquê daquilo tudo, algo ficou a martelar em sua cachola. Entretanto, como o medo era grande achou por bem se mandar dali e pensar depois. Por sua vez Cabo Teles sorria feliz, “das três vidas aprisionadas ele estava vivo, o soldado retornando para a caserna e sua família. O Tenente, bom! Alguém tinha que ser sacrificado naquela situação e melhor que fosse o fujão. Depois: bem! Depois é depois. Afinal poderia ter sido pior e estar morto todos os três”. Seu sacrifício o salvara e poupara o Soldado embora lhe tornasse renegado, agora era abraçar a causa e seguir adiante. Após este ultimo fato um cangaceiro por nome de mamão puxou o fole a saiu pulando a cantar mulher rendeira no que logo transformou o pátio da fazenda de Justino Feitosa um sorongó animado. Lampião acompanhado de Corisco foi conversar com caserna, alguns cangaceiros passaram a arrumar os apetrechos da horda e pela madrugada fiaram na caatinga deixando Francisco amarrado aos cuidados de Justino Feitosa com a promessa que Lampião lhe fez de noutra oportunidade tirarem a limpo o desafio das lâminas, agora precisava fugir; fosse ele chorar seu irmão e alimentar seu ódio para um encontro futuro. Francisco nada disse a isto tudo, permaneceu impassível, calado a olhar com um olhar distante o assassino de seu irmão e assim todos os cangaceiros entenderam ser aquele homem uma cobra venenosa digna de cuidado. Deixaram ainda três contos de reis para Justino Feitosa pelas estripulias que praticaram e depois disto desapareceram pela mata sumindo com os lampejos dos primeiros raios solares.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

Capítulo 2

Quando Lampião arribou das terras de Justino Feitosa seu destino caminhou para

o Estado do Pernambuco cruzando da Paraíba por uma estreita faixa até atingir o Ceará e depois o Estado pernambucano. Dias depois adentrou em um povoado por nome de Açucena caminhando pelo lugar; sua primeira providencia foi tomar a delegacia de polícia coisa que aconteceu sem briga por razão dos quatro militares que trabalhavam ali ter escapulido pelo lado oposto da chegada do bando. Entrementes na pressa abandonaram suas armas e apetrechos, objetos que o bando se apoderou após se instalar na delegacia; depois fizeram uma varredura pela cidadela na coleta de dinheiro em contos de réis ou outros bens quer fossem. Na única cela da delegacia encontraram um detento embriagado a dormir em estado profundo no que acordaram a base de um banho com água fria e o fizeram sair dali, lhe

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concedendo a liberdade. O homem atarantado sumiu a correr pelo meio da rua numa carreira endiabrada. Tempos depois a história deste preso virou motivo de riso, descobriu-se que o homem era um soldado que gostava de bebericar e sempre que estava de porre seus camaradas o trancafiavam para evitar problemas em sua casa junto à família. De sorte que fora preso a paisana e acordado confundido com um civil ganhou a liberdade e direito de continuar vivo, pois se os cangaceiros tivessem se quer sonhado que era aquele sujeito um homem do governo, a situação teria sido pior. Assim o causo virou motivo de risos e anedotas posteriormente. Na coleta dos bens os cangaceiros se dividiram em grupos, ficando na delegacia Lampião, Corisco, Caserna, Barnabé e mais dois outros mestiços de boa peleja. Com o retorno do grupo contaram o apurado que mal passou de quatro contos de réis no que provocou a seguinte frase do rei dos cangaceiros. - O povo daqui não trabalha não? Sim! Porque a nós o Governo não deixa. Sem resistência e sem encontrar maiores valores o Capitão e seus homens abandonaram Açucena e voltaram a se meter pelas veredas das caatingas. ... Lá em Catingueira, como os cangaceiros não apareciam os homens foram voltando à vida normal e as noticias de mortes em outras regiões causadas pelo bando mostravam que Lampião não estava a vir para aqueles lados. Isto levou os catingueirenses ao retorno integral de suas modestas atividades. Ocorreu, no entanto que na localidade de Boa Fé um fazendeiro por nome de Genuíno Bacurau e um vizinho de terras que atendia pela graça de Moacir Ribeiro se desentenderam na demarcação dos limites de suas terras, separadas na região do desentendimento por um enorme açude. Como já haviam batido boca duas vezes e as coisas começavam a correr para um banho de sangue, alguém resolveu procurar o Padre Mauro Carli “o italiano” vigário daquele torrão; o homem arregimentou Dodô Cândido que seguido de Abel Moreira, Joaquim Pajeú e Oclídes Pajeú rumaram a cavalo numa manha de domingo para averiguarem o local do desentendimento e decidirem quem tinha razão. Como apesar de todo esforço e diplomacia do grupo não atingiu um acordo, na presença dos moradores locais das duas propriedades. Dodô já irritado com os dois fazendeiros elevou a voz e resolveu a querela definitivamente da seguinte forma. Disse ele: - O açude tem aproximadamente três ou quatro metros de fundura com mais ou menos quinhentos metros de extensão. Como para se chegar ao meio dele só se vai a nado ou de canoa, decido eu o seguinte! Mesmo ao centro eu passo agora uma cerca imaginária, metade de lá para cá é do Bacurau e a outra é sua. Se ocorrer do açude secar venho eu e passo uma cerca ao meio. Se não! Fica a cerca imaginaria e aí de quem de vocês desrespeitarem este acordo. Quem assim o proceder compra briga comigo e meu revolver. Agora não se fala mais nisto. Todos ali presentes ficaram boquiabertos com a especificação da resolução do problema. Bacurau ainda ousou contestar, mas Dodô o mandou se calar e perguntou se queria

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resolver no tiro. Como ninguém naquela região tinha peito para enfrentá-lo deste dia em diante nunca mais os vizinhos entraram em atrito, valeu a cerca imaginária e tão pouco até os dias atuais o açude secou. Dodô resolveu a seu modo um problema simples que poderia ter culminado com mortes. Na vila de Catingueira o povo seguia sua rotina costumeira dentro da maior normalidade possível com o relógio do tempo a correr solto; já se passando um ano desde aquele dia do Caldeirão das mortes. Em uma tarde do mês de agosto um cavaleiro estancou seu animal a porta da mercearia de Laudislau que naquele momento proseava com Totonho Moreira comerciante para as bandas das Marimbas. O desconhecido após apear a montaria adentrou no estabelecimento comercial e foi de pronto atendido pelo vendeiro. - Boas tardes moço – Saudou Laudislau. - Boa tarde senhor. Respostou o desconhecido tomando assento em um dos dois grandes caçuás de couro que Laudislau usava para estocar a rapadura; servindo este também como assento pelos freqüentadores do empório. Como estava a fazer agora o viandante. - Senhor bodegueiro eu tou carecendo de comprar algumas garrafas de pinga. Mas só das boas! E alguns mantimentos. O senhor tem? - Pode estar certo que sim e a cana é da melhor qualidade – Respondeu Lauzinho o “laudislau” dirigindo se ao segundo caçuar. Totonho Moreira cubando o recém chegado aproximou-se do distinto. - Muita poeira por estas estradas não é moço? - Né sim – Respostou secamente. Totonho insistiu visto o desejo de encurtamento de dialogo do outro. - Sem querer incomodar o amigo... O estranho o encarou insatisfeito. - Já esta incomodando. Foi o suficiente para Totonho Moreira se calar e não puxar prosa; no entanto ficou atento ao desconhecido. Laudislau então perguntou sobre o pedido que ele queria e foi informado de um total de dez litros de pinga quatro quilos de sal e doze quilos de farinha além de dez rapaduras. Aprontado o pacote fez entrega ao estranho no que recebeu o pagamento em contos de réis. Tendo pago o homem levantou-se e sem maiores delongas saiu do recinto desaparecendo na estrada a galope em seu cavalo. Aos dois que ficaram restou-lhes enredar um tema sobre o que seria aquele distinto. Na dúvida ganhou o moço à pecha de cangaceiro e assim duas horas depois estava Catingueira na perspectiva de uma visita do bando meliante; ataque que não veio naquele dia, mas que colocou também em alerta o povo de Balanços haja vista Padre Mauro ter destacado um emissário alvíssarar Manoel Tentem. De fato perto da Várzea da Baixa Grande uma localidade adjacente, um grupo de dezesseis cangaceiros fez parada e estavam a esperar o homem que saíra para comprar bebidas. Aquele quando chegou foi festivamente recebido pelo próprio líder daquela facção.

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- e então Zé Pedro! Esta Catingueira é digna de um saque? - Pode até ser Silvino. Mas não creio que valha a pena. - Explique–se melhor homem – Pediu o chefe do bando meliante chamado Antônio Silvino. - O único comércio que tem por lá e um empório pobre; tem bom número de casas, mas também homens suficientes para enfrentar a gente. Além do que fica perto de Balanços e podem contar com apoio deles. O fora da lei coçou a cabeça para decidir. - É. Talvez não valha a pena. Já que estamos em pequeno número desde o ultimo encontro com a força volante; então vamos passar de largo evitando aquele lugar e depois seguirmos no rastro do nosso Capitão. Antônio Silvino era outro elemento perigoso daqueles meados. Cangaceiro cruel ocupava lugar de destaque no bando de Lampião e estava em uma jornada com muitos homens ao seu comando para realizar certamente uma vingança pessoal na região de Cajazeiras. Novamente Catingueira era evitada pelos malfeitores do cangaço. Porém o bando em deslocamento encontrou depois da Várzea andando a pé pela estrada dois homens a caminharem apressados na direção do vilarejo. Eram pai e filho que para Catingueira se deslocavam a fim de tratar de assuntos pessoais. Quando estes dois viandantes deram por si, do grupo que estavam vindo ao seu encontro já era demasiado tarde para fugir. Sendo os dois: o pai, Francisco Divino, vulgo Chico Divino e seu filho Jacó do Nascimento Divino. Os marginais a cavalo logo se avizinharam dos dois a cercá-los apontando suas armas. Encarando-os com curiosidade Silvino desceu do cavalo a ordenar. - Alto lá! Se não quiserem passar desta pra outra já, já. Calmamente Chico Divino orientou seu filho a obedecer e passou a dialogar calmamente com o chefe daqueles homens. - Pois não senhores o que querem de nós. Silvino sorriu ao ser chamado de Senhor e respondeu secamente. - Só o dinheiro que vocês devem ter. Se não aqui, em casa. Depois agente ver se vocês não têm mais nada que nos interesse – Afirmou rindo com maldade procurando meter medo nas suas vitimas. Jacó muito moço estava pálido e tremulo seu pai ao contrário se mantinha firme buscando conduzir uma maneira de sobressair dali. - Dinheiro. - Sim; dinheiro – Reafirmou o larapio – E não adiante dizer que não tem, se não levo lhes a vida. Mediante a firmeza do cangaceiro Chico Divino não pode se esquivar. - Tenho um pouco sim – Enfiou a mão no bolso e sacou cinco contos de réis, o qual entregou ao marginal explicando – Era o dinheiro do pagamento do empréstimo que tenho com o Major Vicente Leite da Boa Fé. Agora fica para o ano que vem. Isto é, se ele aceitar. Se não! Só posso lhe entregar minhas terras.

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Silvino escutou calado e apoderando-se das cédulas riu misteriosamente. - Sabe quem sou cabra? - Não senhor. Sei não – Respondeu Chico, permanecendo Jacó em silêncio. - Antônio Silvino, Tenente do Capitão Virgolino – Explicou sorrindo com crueldade. Chico já ouvira falar muito da índole assassina daquele desalmado, mas nada falou e o meliante continuou sua inquirição. - E o teu nome cabra! como é? - Chico Divino, este é meu filho Jacó. - Pois bem - Disse o facínora – Eu pensava atacar Catingueira. Desisti; já ia mesmo embora e encontro vocês, assim não saio de mãos vazias, isto acaso vai lhes ajudar. Pois se estivesse indo para aquela Vila os primeiros que eu ia sangrar e deixar pendurado nestas cercas eram vocês dois. Contudo vou deixá-los vivos para avisarem a todo mundo que Silvino tem bom coração. Depois avise lá para este Major que a próxima visita minha aqui é na casa dele. Concluiu a galgar a cela de seu animal o que fez alguns comparsas que também tinham saltado da cela e logo todo o bando desaparecia em desabalado galope estrada afora. Chico respirou aliviado por sair com vida. Jacó pediu licença ao pai e saltou para trás das cercas, havia cagado nas calças. Manoel Tentem estava em sua casa a conversar despreocupado com um agregado quando o emissário das Catingueiras chegou. “Recebido às notícias armou sua cabroeira, quase quarenta” deixou a metade posicionada na defesa de seu vilarejo e a outra botou na tocaia estrada abaixo quase um quilometro do povoado ficando um homem a cavalo a fazer funcionar comunicação com catingueira. Balanço estava situado geograficamente numa elevação de maneira tal que quem passasse na estrada lá abaixo ficava exposto aos do vilarejo; pelo outro lado da vila passava o rio a banhar as costas do lugar. Noutra posição uma gigantesca formação de seixos soltos tão elevada que para vencê-la era preciso andar agachado de quatro, além de duas serrotas pequenas, nuas, desprovidas de vegetação. Assim o Balanço era um forte a quem desejasse alcançá-lo contra o gosto de seus habitantes. Tudo isto somado a grande quantidade de homens que dispunha Tentem para sua defesa tornava Balanços inexpugnável, assim seu ardoroso defensor vivia disposto a mantê-la intocável pelo cangaço ou outro tipo de meliante qualquer que fosse. Antônio Silvino conhecia estas qualidades do lugar, logo, bem antes de alcançar pela vista o lugarejo, deixou a estrada e se enfiou no mato com seus homens. Pretendia tomar chegada após vigília constante e no momento oportuno com seus poucos homens derrubaria o Balanços tomando-o pela ação da surpresa. Tática ainda não empregada por ninguém em avanço aquelas terras. “Possivelmente tivesse logrado êxito se a comunidade local já não tivesse de sobreaviso pela desconfiança nascida em Totonho”. Quando os cangaceiros liderados por Silvino para as suas faltas de sorte abandonaram a estrada o fizeram próximos dos homens de Manoel Tentem que abriram fogo contra estes fazendo aqueles sentirem o

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dissabor da surpresa. Após a primeira carga de balas os cangaceiros já responderam aos disparos, não, sem, contudo assistirem um elemento dos seus tombar com uma das pernas atravessadas por um tiro de fuzil. O homem gritava alucinado com a dor causada pelo ferimento na “batata” na perna. Ainda, dois outros que por circunstâncias de ocasião vinham montados em um mesmo cavalo beijaram o solo já caindo sem vidas, atravessados que foram pelo mesmo projétil na caixa toráxica. Silvino reconhecendo o fiasco da sua intentona ordenou a fuga imediata daquela região. Quando Tentem chegou junto dos homens quedados comprovou prazeroso o estado de óbito dos dois cavaleiros. Depois seguindo a pista de sangue encontrou o terceiro facínora embuçado atrás de uma moita se esvaindo em sangue e a tremer num delírio profundo pelo seu elevado estado de fraqueza. A bala que o alcançara rompera a artéria coronária e em menos de cinco minutos ele também empacotara. Como o bando havia sumido de vista e estavam a cavalo, sendo que Tentem podia dispor de tais na vila para persegui-los, se quisesse; coisa que não fez. Achando-se a pé naquele momento, causa pela qual resolveu deixá-los desaparecer sem nenhuma perseguição; como também pela razão de que os meliantes dominavam bem a caatinga e aí as coisas poderiam complicar. Resolveu retornar a sede de sua casa e ordenou ao mensageiro voltar a Catingueira levando os fatos ali passados. ... Passou-se uma semana e chegou domingo, dia de missa, nesta o Padre Mauro caprichou no sermão. - Meus filhos – Começou estando com a igreja abarrotada de fieis – Vivemos em uma época dificílima como aquela em que o apostolo Paulo viveu apregoando aos pagãos do mundo. Vocês ouviram a leitura feita por Dona Luzia Belo. Pois bem! Nos tempos atuais uma praga maldita como aquela dos gafanhotos anda a solta por aí; desta feita em forma de cangaceiros a assolar o pobre povo de Deus. Assim sem um Moises para enfrentá-los, nos resta os fuzis, espingardas, revolveres, carabinas, foices, facas cutelos e outros objetos sagrados que possamos usar para enxotar esta praga – Neste ponto o homem se benzeu a resmungar baixinho – “É preciso pregar assim Senhor. O Senhor viu o que eles fizeram a seu Chico Divino” - Depois prosseguiu em voz alta – Estejam preparados dia e noite, caso sejamos atacados por esta corja, vamos revidar, expulsando-os e eliminando quantos pudermos despachar da face de terra – Outra ação de benzimento e mais um desabafo em cochicho – “Eita praga ruim estes cangaceiros” – Depois voz alta – Lampião é um bandido sanguinolento, Antônio Silvino, Corisco, Jurubeba e outros mais são as próprias crias do mal e só podem ser combatido por gente como nós; cristãos filhos de Deus – Neste ponto ergueu a mão e a dirigiu em direção ao povo como a benzê-los, dizendo – Estejam prontas para o bom combate. Amém? Em coro veio a resposta. - Amém. Após este discurso inflamado o Padre voltou aos ritos finais e caminhou a celebração para seu término.

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... Em casa de João Seridó, um caboclo que morava no Sitio Brecha, estrada para o Ceará, passagem obrigatória a quem fosse para o Estado de Pernambuco, estando esta localidade na geografia da Paraíba, naquele momento em que Inhá Catarina mexia a água fervente de um caldeirão a adicionar massa de milho moído na preparação de um angu, estando já à massa em fervimento a levantar bolhas que rebentavam a produzir um leve som, entrou seu filho mais velho; um frangote de quinze anos, pele sarnenta, cabelos agalegado com uma cara de espanto a alertar. - Mãe! Os cangaceiros tão vindo aí perto pela trilha da serra. A casa ficou com esta noticia um reboliço só. - Atento João! Os cabras tão chegando – gritou Inhá por uma janela que dava para o muro aonde pendia preso a esta uma armação de vara em forma de poleiro e onde podia se notar algumas panelas velhas. João já chegou arrumando a matula apanhou um bornal encheu de farinha e rapadura, deu garra de mão de uma cabaça, sacou a bate buxa e passou-a ao longo das costa por uma “cia” preta e muito usada. O rapazola agarrou dois irmãos pequenos que se arrastavam no chão; a mãe meteu uma rodilha molhada na cabeça jogou a panela sobre esta de modo que o contato do fundo desta com a toalha molhada produziram ligeiramente um sibilar, e, rapidamente atemorizados ganharam o caminho da mata numa fuga aflitiva. Dez minutos depois o bando aportou na porta da casa encontrando-a abandonada. De fato era o próprio senhor do cangaço com seus homens que estavam aportando ali. Ligeiramente inspecionaram a casa e se acomodaram calmamente a descansar sossegados; acostumados que estavam com esta situação de sempre e sempre alguém “doar-lhes” a casa para parada. Compunha-se aquela formação marginal de quarenta e dois homens, ficando boa parte fora a armar suas redes abaixo do telheiro da comprida casa de talpa. Ali montaram um sistema de vigília em rodízio e com exceção dos que estavam a assumir o posto, foram repousar; travando entre os mais espertos uma ligeira falação. - Cê viu seu Ezequiel! Os donos daqui sairão meio apressado. O Fogo ainda está aceso? Observou um mestiço de estatura elevada e com um sinal em forma de caroço pendurado na orelha esquerda, cujo nome de bando vinha desta anomalia: Caroço, falava com um sujeito de idade avantajada, de cor branca, traços fortes que ao escutar o companheiro mais moço sorriu a responder. - Você ainda não se acostumou Caroço? Isto é muito normal. Vai ver: foram prestar queixa pro Governo. A esta frase caíram na gargalhada, no que alguns outros os acompanharam. ... Uma patrulha caminhava adiante do bando comandado por um Cabo veterano das volantes, seu nome José Tanieide Cordeiro, um moreno de pele fechada, alto, rosto alongado, voz pausada e mansa, lento de movimentos, possuidor de uma força física descomunal.

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Estavam na pista de Lampião há cinco meses e num desencontro de informações por um espião amedrontado, ao acaso da sorte, passavam de largo do bando há uma distancia de duas léguas na direção norte. Daí o posicionamento a frente da súcia. Acamparam numa restinga de floresta verdejante, próximos das correntes águas de um rio que vinha cruzando naquele período por três estados. O Rio do Peixe não era perene e todos os anos após o período chuvoso suas águas iam gradativamente baixando fazendo com que por um não sei quanto número de lugares ficar no chão torrado e noutros mais profundos permanecer com águas por muito tempo, no que nestes riachos a população se servia para banho, beber e cozinhar. Quando estes também baixavam, por ultimo praticavam a pescaria já que neles concentrava-se muitos peixes de pequenos portes. A volante espalhava-se pelo acampamento montado conversando animadamente naquelas horas a assar carne de bode fatiada e salgada, provisões que traziam em suas matulas. O Soldado Maza, José de Sousa Rolim e o Cabo Taniede glosadores que o eram, logo se travaram num embate de poesias, sendo Maza oriundo de um lugar chamado Cachoeira dos Índios e o Cabo da cidade de Bonito de Santa Fé, ambas no interior da Paraíba. Um outro miliciano acostumado naquela vida errante que poderia terminar a qualquer momento pediu aos dois que “vater” poetizasse algo sobre o que a morte faz, no que foi de imediato atendido. Maza começou em primeira voz: 1ª - Já morreram meus irmãos Também morreram meus pais Já morreram alguns amigos Vão morrendo outros mais E pela primeira vez Vou dizer para vocês O que é que a morte faz Tanieide sustentou a segunda glosa 2ª - A morte trás a tristeza A vida trás alegria A morte é destruidora De tudo que a terra cria A morte não tem amor A mesma morte matou Jesus filho de Maria 1ª A morte por ousadia Matou mamãe e papai

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Não sei de onde ela vem Não sei de onde ela sai A morte trás o desprezo Se alguém mata vai preso A morte mata e não vai 2ª A morte que matou meu pai Mata qualquer vivente Mata o rico e mata o pobre Mata o fraco e o valente A morte não se engana No dia que ela se dana Mata até o presidente 1ª Mata a criança inocente Mata o jovem e a donzela Mata o homem do cinema Mata a mulher da novela Matou Joaquim e Raimundo Anda matando no mundo E ninguém persegue ela 2ª Mata aquele mata aquela Da morte ninguém escapa Dos seres vivos da terra A morte vem e faz o rapa Mata o leigo e mata o padre Mata a freira e o frade Mata o bispo e até o papa Maza fechou a glosa. - Nunca vi doença boa Nunca vi morte bonita Feliz de que tem fé E em Jesus Cristo acredita Mas Deus disse com certeza

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Quem comunga em minha mesa Morrendo se ressuscita. A volante aplaudiu frenética satisfeita com os dois poetas e logo um outro solicitou uma segunda rodada com o mote: Como Deus Criou o Mundo. Desta feita Tanieide fez a primeira e Maza a segunda voz.

1ª - O autor da criação Com seu poder profundo Criou de tudo no mundo Sem em nada por a mão Fez com tanta perfeição A terra e a maresia Fez a noite fez o dia Fez as estrela e a lua Como o seu poder continua É Deus o pai que nos cria. 2ª Deus fez o céu e a terra O sol e o firmamento Fez as estrelas e a lua Fez o ar que é o vento Com suas mãos abençoadas Fez isto tudo do nada Assim diz o antigo testamento Mas para mostrar seu talento Completou tudo nos seis Deu força pra satanás Mas ele é besta e não faz Aquilo que Jesus fez 1ª Deus ainda fez o homem Por um motivo qualquer Viu que dos ossos seus Havia um sem "mister" Mas Deus por não ser ingrato Quando ia jogá-lo no mato

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Lembrou-se e fez a mulher 2ª Deus criou a mulher Da costela de Adão E fez com tanta perfeição Toda cheia de mistérios E pelo um motivo qualquer Notou que tinha errado Para não cair em pecado E nem se tornar infeliz Deus fez a mulher E não quis... Ficar com ela ao seu lado. Tanieide reconhecendo que Rolim estava inspiradíssimo deu por encerrada a glosa num aperto de mãos e a volante eufórica após apreciar aqueles versos voltou ao seu cotidiano. Momentos depois o *Soldado Maza após comer um pouco teve a idéia de tomar um banho. Como já havia muitos companheiros que tinham realizado tal ação nas correntes do Rio do Peixe e nadador exímio que o era se distanciou das margens sob os olhares de alguns camaradas. Repentinamente desapareceu num mergulho. A principio os seus companheiros acharam normal, depois pela demora se aperrearam a alarmarem da delonga do parceiro. O Cabo amigo e compadre além de companheiro de versos retirou apenas a gandola do corpo e jogou se contra as águas, nadou em direção aonde indicaram o mergulho de Maza e ali mergulhou também. De certo mais de um minuto depois o cabo retornou a tona agarrado com seu camarada que em espasmos de agonia colara-se ao seu pescoço num abraço mortal, como fazem os afogados após barroarem em qualquer coisa num instinto de sobrevivência. Como ainda estavam em área profunda, agarrados. O Cabo tentando chegar às margens e Rolim seguro a este em desespero, dificultando o salvamento; foram ambos tragados pela correnteza. Aqueles nas margens, agoniados, nada podiam fazer até que eles saíssem da posição mais funda. Novo mergulho e quase outro minuto submersos; desta feita Tanieide sempre agarrado a Rolim vieram dar no raso aonde mãos terminaram de arrastá-los para fora. O Cabo Tanieide respirava ofegante. Soldado Rolim, o Maza, desencilhado do Cabo pendia quase sem nenhuma respiração e logo entrou em óbito por afogamento para total desespero da coluna volante. Tanieide ficou de pé e foi lamentar-se da desgraça; entretanto uma forte fisgada de dor no coração o fez cair sentado e quando seus companheiros correram até ele: o homem entrou em espasmos, um possível ataque cardíaco pelo esforço sobre humano que fizera também o levou aos braços da morte. Os milicianos eram homens acostumados à vida dura e de lutas; quase sempre tinha companheiros morrendo em batalha. No entanto, esta era uma situação contraria e mortes tão estúpidas lhes causavam uma revolta e uma tristeza incontrolável. Com isso levantaram acampamento e sumiram na vegetação conduzindo os

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corpos de seus camaradas em meio a um silêncio tão profundo que nem um dos vinte e dois homens ousavam falar, mesmo com o colega ao lado. Dirigiam-se na direção da Catingueira. ... Em casa de João Seridó os acordes de mulher rendeira enchiam a estrada quedando o sol para a tardinha; ali os meliantes reunidos dançavam, riam, proseavam entre si lembrando de algumas bravatas pelos sertões. Os que estavam em casais se distanciavam dos demais aonde podiam manter suas intimidades sem a intromissão de ninguém. Noutro ponto, neste momento a volante estava em seu trajeto marchando funesta e seus adversos num arrasta pé aos acordes do xaxado. (Poesias doadas por João Pedro dos Santos – João de Catarina - poeta popular) Marimbas - Cachoeira dos Índios - PB * Maza – o José de Sousa Rolim e Tanieide, José Tanieide Cordeiro Ferreira, foram realmente policiais militares do Estado da Paraíba que pereceram muito jovens; o Soldado Rolim Vulgo Maza por acidente automobilístico e Tanieide vitima de afogamento em situação similar à narrada. Aos dois presto minha homenagem tornando-os personagens deste livro por ter tido a honra de conhecê-los e de poder dizer que foram meus amigos além de companheiros de trabalho.

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CAPITULO III

Depois que Lampião arribou das terras do aleijado, após o Cabo Teles engrossar

as hordas marginais, libertou por solicitação deste aquele Soldado aprisionado com o Tenente. O militar raso chamava-se Raimundo Bandeira. Aquele depois de ganhar a liberdade e a vegetação matutava uma série de indagações na cachola. Conhecia a fundo o Cabo Teles, eram inclusive compadres. Daí a razão da estranheza da atitude do camarada já que conhecia a personalidade do amigo. - “Será que Teles fez aquilo para salvar-me? Ou não?! Será!”. As indagações, respostas e duvidas o atormentavam; entretanto sabia bem que só estava vivo graças à ação do Compadre e isto gerava em si uma divida de honra que teria que pagar fosse como fosse. Foi esta a única certeza que o acompanhou naqueles momentos difíceis. ... A beata Mocinha de seu Ó, segunda na ordem carismática da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da boa vila de Catingueira entrou na casa paroquial com os “bofes” de fora, ofegante naquela manhã de quarta feira do ano de 1925 do mês setembro.

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- Padre Mauro! Corre que chegou um homem vindo do Balanço a mando de Manoel Tentem com a noticia de que eles estão debaixo de fogo do cangaço. O Padre se preparava naquele momento para dejejunhar e estava naquele preciso instante a segurar um chicrão de café, o qual voltou a depositar na mesa ao ouvir o alerta, soltando entre dentes alguns impropérios contra a súcia. - Desgraças do mundo! Gente sem futuro. Esta bandidagem não deixa ninguém quieto. Santinho! – Chamou a lançar os olhos para uma portinhola que dava para sacristia. Um frangote magricela meio amarelo de aproximadamente dezesseis anos, trejeitos afeminados, surgiu por esta apressado. Já chegou perguntando. - O que foi Padre Mauro? - Os malditos cangaceiros! Corra até a casa de Dodô Cândido e avise para ele arrumar alguns homens. Os que puderem. Tentem está precisando de ajuda – Encerrou a ordem indo ele mesmo armar-se de fuzil e pistola para dar combate aos cangaceiros. Tendo Luzia chegado naquele momento junto com Mocinha ignoraram a atitude do Padre se armando para enfrentar os cangaceiros. - O senhor não pode fazer uma coisa destas Padre. Matar é um pecado mortal - Expressou-se Dona Luzia. Mocinha confirmou. - É verdade Padre, e o Senhor bem sabe disto. Padre Mauro olhou para as duas com a cara dura e respostou. - As senhoras têm razão. Bem sei disto. Matar é pecado e neste causo especificamente: não matar aquelas pragas também o é. Assim dêem licença que aqueles lá não são gente não. Se eles podem matar quando bem querem também podem morrer quando homens de bem desejam. Agora dêem licença que tenho algo mais com o que me preocupar. Expressou-se deixando o recinto. O Padre Mauro era mesmo pau para toda obra; para as do cristo e também a dos homens. Vinte minutos depois, Dodô Candido, Bodôgo, os irmãos Pajeú, e outros membros de famílias locais, em cerca de vinte voluntários todos a cavalo, mais o Padre, partiram para o Balanço em galope a fim de dar combate aos atacantes do vilarejo. A uma légua de distancia o som da pipoqueira da troca de tiros entre os defensores de Balanços e os seus atacantes pôde ser escutado. Estando os defensores do arraial abrigados em suas casas a efetuarem disparos pelas portas e janelas das casas mais baixas e das mais altas pelos sotons na parte frontal, estando estas na parte superior do terreno. Logo abaixo protegidos por raízes de árvores, barreiras ou outra formação qualquer que fosse, muitos homens respondiam aos disparos açulados por um homem de boa estatura, estando este embuçado por trás do tronco de um pau darco. O reforço da catingueira ainda longe destes abandonaram suas montarias e vieram deslizando sorrateiramente para atingi-los pela retaguarda. Lampião em pessoa era quem comandava aquele ataque. Contudo! Como grande guerrilheiro que era: traçava bem os seus planos e muito raro alguém o pegava de calças regaçadas. Tanto era assim, que logo notou alguns disparos surgirem as suas costas por

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quatro homens posicionados por ele para evitar surpresas, começando estes a combater um inimigo que estava chegando. Alertado pela surpresa que sempre esperava ocorrer. Embora fosse raro alguém vir dar-lhe combate, com exceção das volantes. Ordenou aos seus cabras a recuada. Iniciando-se aqui uma retirada por um flanco aberto, ao tempo que com precisão respondiam aos disparos contra o povo de balanço e contra os recém surgidos. Profundo conhecedor da região e mestre nesta tática de guerrilha, velozmente desapareceu com seus homens numa retirada que lhe rendeu três baixas causadas pelos atacantes as suas costas. Sendo os mortos: Zé Cuscus, jovem cangaceiro de pouco mais de vinte anos, tombado no terreno por uma bala de fuzil disparada pelo Padre Mauro; cujo projétil espatifou a massa encefálica do meliante que quedou morrendo instantaneamente. Tião Jati, vulgo bacamarte, quedado com dois disparos no tórax que rasgaram lhe as carnes fazendo suas vestes empampar-se de sangue. O terceiro e último a cair, degringolara com um tiro no coração, chamava-se Ventania. Pelo outro lado, do Balanço, um defensor perdeu a vida por uma bala ter-lhe acertado na cabeça. Outro teve a perna baleada, mas o ferimento não era grave. Já da tropa de reforço ninguém se feriu e da serenata de disparos aos poucos os acordes foram diminuindo até que cessaram de vez, tendo Lampião evadido do local. Tentem mostrara mais uma vez que o Balanço era intransponível e que não temia o rei do cangaço. Contudo desta feita o reforço da Catingueira fora quem lhe garantira a manutenção desta posição. Por determinação de Dodô Candido ninguém ousou seguir os cangaceiros; haja vista em plena caatinga a vantagem ser dos meliantes, assim não correriam riscos desnecessários. Pouco tempo depois, Manoel Tentem e os reforços da catingueira comandados pelo Padre e por Dodô comemoravam a vitória daquela escaramuça em pleno vilarejo. Os corpos dos cangaceiros foram trazidos para a pequena capela local e expostos à curiosidade do povo. O defensor que perdera a vida fora levado para a sua casa aonde seria velado e o ferido recebeu os cuidados de duas anciãs locais. O Padre por sua vez encomendou os corpos dos marginais cujo teor do sermão obedeceu a seguinte falação. - Deus! Perdoe os pecados destes homens e os conduza a um lugar aonde possam pagar pelo mal que espalharam. São gente ruim Senhor, que só merece a morte. Por isto estamos aqui como instrumento para acabar com esta praga que assola nosso sofrido sertão. Daí força aos nossos irmãos para que sempre possa sobressair-se a esta caterva salteadora mandando-os comer capim pela raiz... O povo olhava impressionado para a figura do vigário; muitos ainda não o conheciam pessoalmente apesar de terem visto falar dele. Padre Mauro era realmente um padre diferenciado. “Concluíram” enquanto este terminava o sermão. - Amém? – Ordenou erguendo a cabeça a fitar os presentes boquiabertos com suas expressões. Tão atarantados estavam que só uns poucos responderam ao chamado num sussurro leve da expressão de resposta que também era um amém. Aí o Padre ergueu a voz, encarando os presentes para os risos dos fieis de catingueira que já lhe conheciam bem, a indagar.

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- O que foi? Estão com fome? Não comeram hoje? Respondam: Amém. Desta feita o coro foi altivo. - Amém. ... Vontade de não ser vitima de nenhuma injustiça o povo tinha de sobra e moldada esta vontade pelas palavras encorajadoras de um religioso, e sendo este Padre, nas terras da Catingueira e no Balanço a situação ficava cada vez mais difícil para qualquer meliante. Tanto era assim que numa tarde do ano de 1929 dois fora-da-lei desgarrados de um bando por força de um confronto com a volante aportaram na Catingueira achando que ali seriam os donos do lugar como era costume aonde aportavam. Dirigiram-se a casa de empório local e tomaram o dinheiro do comerciante Lau após esbofeteá-lo na presença de Totonho Moreira, amigo do proprietário. Ao próprio Totonho aplicaram uns safanões exigindo que lhes desse o dinheiro que portava; coisa que aquele homem não levava consigo. Inesperadamente dez minutos depois de adentrarem no comércio se viram arrastados por mais de quinze homens que se reuniram e assaltaram o empório aprisionando aos dois marginais que não puderam esboçar qualquer reação. Pegos de surpresa por crerem que ali eram os donos, foram arrastados até a presença do Padre Mauro que já os aguardava sentado em uma mesa em uma pequena casa na ponta da rua, construída para ser a delegacia local. Estando os meliantes com as mãos amarradas para trás foram apresentados ao Padre pelo líder dos homens que os prenderam, Dodô Candido que fazia naquele momento às vezes de polícia. O Padre já os fitava com uma expressão dura, rangendo os dentes, a demonstrar claramente sua má vontade contra aquela espécie de homem. - Padre – Começou Dodô para ser interrompido. - Padre não Dodô. Agora sou o Delegado, Juiz. Carrasco. Mais tarde talvez seja Padre. Continue. A explanação do religioso causou risos nos catingueirenses e certo estupor nos dois cangaceiros. - Estamos lhe entregando estes dois meliantes que saltearam Lauzinho Belo após espancá-lo, bem como ainda ameaçaram Totonho com alguns safanões. O Padre ficou de pé a deixar ver pelos meliantes sua longa batina branca o que causou um ar de riso num dos dois que expressou zombeteiro. - Juiz uma ova! Se tivesse com as mãos desamarradas até dançava um xaxado com vosmecê pensando que era uma mulher. Imediato a frase soltou uma grandiosa gargalhada na qual acompanhou seu comparsa. Mauro Carli nada disse, esperou os meliantes terminarem aquele riso e quando os dois se recompuseram a encarar o religioso olhando o nos olhos; perceberam algo indescritivel na face do homem que os fizera se arrepender imediatamente da graça. Contudo, não tiveram tempo de compreender, pois do Padre veio à ordem.

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- Dodô! Não sabe ainda qual o tratamento que estas bestas merecem? – fez um pequeno silêncio estando Dodô Candido a encará-lo esperando a conclusão de sua fala, que veio curta numa única palavra. - Enforque-os. Não houve mais tempo para os cangaceiros dizer qualquer coisa, engoliram um seco e foram arrastados por muitos pares de mãos que os conduziram a um enorme pé de algaroba no centro da rua; ali duas cordas penderam pelas grossas galhas da árvore e foram colocadas em volta das cabeças dos dois bandidos que aos gritos de pavor e misericórdia demonstravam conhecer bem, muitos personagens bíblicos, haja vista ao tanto que invocaram. Tudo em vão, o Padre se retirou e minutos depois os dois corpos pendiam pelo pescoço sob os olhares da turba que tendo completado o serviço foram se ausentando a deixar sozinhos os corpos dos desafortunados meliantes a balançar-se sob a ação dos ventos quando este vinha dar nos dois. Na sala da casa paroquial o Padre bebia um vinho se acalmando a resmungar entre dentes. - Dançar comigo! Era só o que me faltava. Agora não falta mais nada. Nas terras da Catingueira ou no Balanço de Manoel Tentem após aqueles dois últimos acontecimentos reinou um período de paz; um ou outro bando marginal esporadicamente trafegava naquelas imediações, entretanto evitava adentrar nos vilarejos. Faziam vitimas nos sítios adjacentes às vezes até com morte, mas, sobretudo evitavam ir direto aqueles arraiais. Vez por outra alguém surgia com noticias de encontro das volantes com os cangaceiros que geralmente culminava em morticínio de homens gerando boas histórias para a posteridade.

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CAPÍTULO IV

O combate diminuía, mas não cessava de um todo, aqui e acolá ao longo do rio

seco, pequenas escaramuças eram travadas entre os homens do Capitão Virgulino, o célere Lampião e os combatentes de uma volante Paraibana comandada por um Sargento chamado Venceslau Silva. Encontraram-se por acaso, no meio daquele rio, neste período estrada para viandantes, e aos gritos, estando ambas as partes frente a frente separados por um espaço de vinte metros; açularam uns aos outros para irem às armas, o que aconteceu a explodir um tirinete sem descrição de tamanho. O certo é que a bala rolou a entoar uma canção funesta de gritos, palavrões e expressões que conotavam dores, tudo ritmado pelo maestro morte. José Barbicha, o sabonete adiante do grosso marginal mostrava aos seus o tamanho de sua fibra, atirava encorajando aos outros buscando abrir uma brecha na linha oposta, buscando com isso vê-los fulgir. Atirador endemoniado alvejou um Cabo de frente, no instante em que o miliciano agachava-se a manusear sua arma para posição de fogo. O homem ainda conseguiu botar a bala na agulha, mas foi só. O disparo de Barbicha sabonete o alcançara no tórax projetando o para trás no terreno, fazendo no movimento o milite jogar a arma para frente. Ao mesmo tempo um soldado amarelo magro que só vendo, acionou a sua arma fazendo um projétil de aço vir milimetricamente alojar-se entre os olhos de Sabonete a produzir um pequeno orifício frontal e arrombar a parte detrás levando parte do celebro do marginal que

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morreu sentado como se estivesse sendo seguro por forças invisíveis. Em fração de segundo tombou de lado ficando no solo. Quando este pendeu na terra o praça gritou a plenos pulmões. - Esta vingado Cabo Moraes. Neste espaço a maior parte dos dois grupos já se alojara no que podiam dispor e aí se iniciava um tiroteio mais técnico. O Sargento em tom de precaução gritava a ordenar o embuço às margens do rio, buscando assim abandonarem o centro do Rio Seco. Estavam os milicianos naquele momento em número de dezenove. Lampião contava com um pouco mais; vinte e quatro homens. Tivera a infelicidade de horas antes destacar um grupo do mesmo porte para coletar dinheiro na propriedade de um protetor, fato que causara o encontro quase nos mesmos termos de igualdade de armas. Seus seguidores seguiam da mesma forma a ordem de seu chefe, recuando e buscando proteção. Acontecendo com isso leve diminuição nos pipocos das balas. Neste recuo Pente Fino disparou contra o Sargento conseguindo ferir-lhe superficialmente na altura do ombro; por sua vez Venceslau disparava noutro cabra que estava a correr para uma barreira buscando cobertura. Teve melhor sorte: Sua bala adentrou no meio das costas do malfeitor impulsionando-o para diante, após o homem chocar-se contra as barreiras do rio caiu na terra e ficou a rodopiar enlouquecido em espasmos frenéticos, soltando gritos com dores insuportáveis. Caserna próximo deste; sorriu da cena e com aprovação de Lampião silenciou o comparsa encurtando seu sofrimento, enterrando seu punhal até o cabo no coração do ferido, fazendo-o aquietar-se nas ânsias da morte. Outro, um pouco afastado de Caserna foi impulsionado por algo ao solo, quando se levantou tinha as tripas fugindo de sua barriga por um enorme talho fendado quando a bala que o alcançara nas costas ao sair rasgara o coro da pança trazendo suas entranhas em estado de miséria. Com a dor o homem ficou de pé e saiu a caminhar de olhos esbugalhados a segurar a barriga. Ao invés de recuar caminhava de encontro à força. Algumas balas o colheram nesta trajetória e ele foi impelido para o terreno tombando morto. Da milícia uma praça levou as mãos ao rosto e rolou ribanceira abaixo com a cara estourado por um disparo ter lhe acertado em cheio. Uma outra bala com destino mortal veio encravar-se na perna de outro milite que com o ferimento largou sua arma a recolher-se para segurar a perna. Todavia antes de encerrar o movimento dois mosquitos fatais alcançaram o seu corpo na caixa toráxica levando-o a morte. Foi mais um na lista de sete militares e seis cangaceiros que tombaram para sempre dentro do rio seco. No pequeno intervalo de silêncio instalado pelo recuo da sobra miliciana protegida a margem direita do rio, Lampião gritava para seus homens só efetuarem disparos precisos a fim de poupar munição. Já os militares brigando por suas vidas efetivaram uma recuada estratégica até um ponto íngreme algumas centenas de metros adiante aonde existiam uma elevação rochosa a se projetar do barro vermelho, ali bem protegidos pela formação natural posicionaram-se a aguardar a investida dos cangaceiros. Virgolino por sua vez avançou até a linha direita onde estiveram seus antagônicos e após ligeira varredura constatou o número de baixas adversas; comparando com as suas perdas não ficou contente. Afinal não gostava de enfrentar os macacos em igualdade de condições, pois apesar de ter eliminado um inimigo a mais concluiu que perdera muito; Já que

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sempre havia gente sobrando na força; “matava-se um para dois o substituírem”. Enquanto que no cangaço já era bem diferente. Muitos poucos queriam seguir naquele ramo. Assim após estudar o terreno e vasculhar cuidadosamente não lhes foi difícil encontrar os fugitivos protegidos entre as pedras numa formação que nem ele até ali conhecia e como o ponto de encontro com seus homens era há quatro dias adiante, apesar do desejo de sangrar toda tropa ali embuçada, porém temendo surgirem outras volantes, resolveu se afastar daquele canto decapitando seus companheiros e levando as cabeças para estes não serem identificados. Rumando no princípio da noite na direção do Rio Grande do Norte. Os milicianos, contudo, bem protegidos esperaram o sol nascer e quando se sentiram seguro desapareceram daquele lugar; felizes por ainda estarem vivos. Sem a presença de um batedor, quedado no confronto, Venceslau retirou-se na direção do Ceará, doze léguas daquele encontro, já que Rio Seco estava situado nas terras do Bonito da Santa Fé. Neste avanço a milícia deveria passar em Catingueira consoante ordens recebidas posteriormente num plano de ação do Comandante do Batalhão de Pombal. Quando caiu à tarde do dia seguinte aos fatos acontecidos em Rio Seco, os cangaceiros andavam pela caatinga em fila indiana conduzindo seus apetrechos e indumentárias comuns a vida do cangaço, eram banhados pelo sol da tarde que fazia o suor abundante escorrer em suas peles ressecadas até suas vestimentas amarrotadas da poeira do torrão nordestino. Um ou outro sempre se dispunha a puxar no bico mulher rendeira em assobios que ganhavam velozmente companhias de outros camaradas. Naquele passo atingiram a casa de um coiteiro que atendia pelo nome de João Bagaceira; sendo que nesta região o rei do cangaço sempre era bem acolhido fazendo parada na casa dos amigos e protetores da sua causa. A vivenda era rústica e mal acabada na sua arquitetura, sendo o frontispício de tijolo e a parte traseira de barro na madeira. Imperava em casa de Bagaceira uma pobreza extrema, mas na sua índole um amigo não se traia por nada e por esta postura se portava prezando o amigo Virgolino Ferreira que também o tinha nas mesmas condições; nunca Lampião o visitara para não lhe doar boa soma de contos de reis. A casa de João estava situada numa geografia ao pé de um morro de elevada altura e habitado por uma grande sorte de árvores nativas, numa restinga de floresta intacta ao machado. Pelo pé deste morro havia uma trilha de pouco uso, sendo que por esta a horda alcançaria à casa do coiteiro. Lampião estudava o lugar por um binóculo, varrendo palmo a palma a área em volta da vivenda e um pouco adiante aonde lhe propiciava o alcance das lentes. Após pequeno estudo concluiu que tudo estava bem, já que não havia nem um pano pendurado na janela; conforme sinal combinado a representar perigo; combinação esta feita em tempos idos. E como não havia sinal para preocupação avançaram seguros para a vivenda do caboclo abandonando a fila indiana e avançando cada qual a sua maneira. Depois de alguns minutos atingiram a casa de João Bagaceira que se encontrava com as portas entreabertas, bem como as janelas. Ali já foram entrando na casa a chamar pelo nome do morador: o Capitão Lampião, Caserna, Relâmpago, Corisco e Cutruvia, sendo que a abordagem fora feita pela frente e por trás;

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ficando os demais cangaceiros em pé no terreiro da vivenda a esperar as ordens que adviria do seu chefe. Apesar de durões, acostumados a morte no seu dia a dia à cena que presenciaram no interior daquela miserável choça os encheu de raiva e ódio, além de uma compaixão pelas vitimas ao ponto de Cutruvia e Asa Branca chorarem como crianças pela descoberta macabra. João Bagaceira estava morto, degolado, possuindo um talho na garganta que se estendia de orelha a orelha, amarrado, sentado a uma cadeira aos pés da mesa da sala. Na cabeceira deste mesmo móvel com os pulsos amarrados para trás posicionada de frente para o homem, como a espiar para ele, jazia Joaninha sua mulher, nua, violentada, espancada até a morte; suas pernas também estavam amarradas, entreabertas, puxadas pela corda numa abertura frontal quase a igualarem-se as pernas da tosca mesa de mais de dois metros quadrados; das suas partes intimas, fluía um sangue ainda “vivo” a dar a entender que ela morrera há bem pouco tempo. Estudando melhor seu corpo, Lampião e Caserna concluíram que ela fora esmurrada, chutada e levara muitas coronhadas, haja vista as formas do cabo da arma estar desenhado nitidamente por várias partes de seu corpo. A vagina estava rasgada, com certeza pela razão dos inúmeros estupradores que abusaram daquela infeliz mulher. Certamente João Bagaceira fora obrigado a presenciar aquele terror. “Concluíram os cangaceiros”. No único quarto da casinhola a cena mais horrenda esperava os bandoleiros, cena que fez o próprio rei dos cangaceiros respirar profundamente num estado de indignação e dor que até então nunca demonstrara. Ali, uma menina de mais ou menos onze anos, pendia num velho colchão de palhas, estuprada e morta estrangulada, já que uma enorme mancha escura se apresentava em torno de seu pescoço e o que era ainda mais horripilante: no sexo da criança havia um cabo de vassoura enterrado a completar a cena dantesca de uma violência bestial. Completando o quadro espectral da morte, aos pés da cama da menina estendido no solo pendia morto com um tiro na testa uma criança de seis a sete anos. Possivelmente ao ver a violência que estavam praticando contra sua irmã correu para socorrê-la e a besta endemoniada autor daquela façanha o matou com um tiro. Talvez este menino tenha sido o que menos sofreu naquela casa de torturas e dores. “Pensaram os ocupantes da casa” Todos daquela casa eram apadrinhados do Capitão Virgolino e como gozavam da pecha de coiteiros pagaram com suas vidas um preço exageradamente alto até em comparativos com a violência predominante naquele sertão de ninguém. Lampião ordenou tristemente o sepultamento daquelas pessoas, fato que causou enorme comoção aos meliantes que um a um fizeram questão de ver com os próprios olhos o terror descrito, para depois providenciarem um justo descanso no leito da terra àquela pobre família. O Bando se reuniu em torno das quatro covas cavadas no pátio da casa e formando um circulo seguraram as mãos um do outro numa corrente que teve uma prece iniciada por Beato, um cangaceiro que já fora um dia seminarista; prece que concluída acompanhou-a, as juras de vinganças dos cangaceiros contra todo e qualquer macaco da volante; já que atribuíram aquelas mortes à polícia. Por ultimo Virgolino Ferreira “O Lampião” tomou a palavra.

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- Cabras – Começou – Hoje alguns de vocês viram pela primeira vez em suas vidas o que aqueles macacos são capazes de fazer; protegidos como são do Governo deles, estão acima da lei. Se é que ela existe. No entanto, quem a compõe chega a ser pior que nós. Assim espero que cada um de vocês dê o melhor de si para exterminarmos com esta raça de gente maldita que anda a semear a desgraça e a miséria aos meus irmãos nordestinos. Macaco bom! É macaco morto. Assim, doravante o que agente pegar terá que passar na ponta de nossas facas. O sangue desta terra vai ficar muito vermelho até que a sede de minha binguana seja saciada para aplacar a raiva que estou sentindo. Neste ponto o homem se benzeu e os demais fizeram o mesmo a concordarem resmungando uns para os outros. A guerra de Lampião contra a policia ganhava mais um incentivo a morte da família de João Bagaceira. O Cabo Teles após a fala de Lampião adiantou-se ao centro do bando e pediu para falar no que todos silenciaram para escutá-lo. - Quando eu aderi ao bando do Capitão Virgolino, o fiz para salvar a vida do Soldado Raimundo Bandeira, meu compadre e amigo, homem de bem a quem conheço de perto. Pensava que das três vidas: da minha, da dele e da do Tenente só haveria necessidade de uma ser perdida. Já que salvei a Raimundo e ainda continuo vivo, pensava: um dia mais adiante poder largar o bando e ir embora para São Paulo. Porém! Depois de hoje Capitão. Com exceção de Raimundo, eu mesmo sangro qualquer um da volante que cruzar meu caminho. Isto – Apontou para os corpos já nas covas – Não é papel para homem, mas para covardes e covardes só merecem a morte. Doravante mato qualquer um, como já disse antes, a exceção de Raimundo e o faço com prazer já que nunca tinha visto algo assim... – Parou de falar, pois as lagrimas já começavam a fluir e um nó se formou na sua garganta, neste momento que fitava a menina e o menino mortos no inicio de suas vidas. Após alguns minutos de silêncio em meio à comoção instalada Caserna concluiu. - Que eu não mereça mais viver se doravante não proceder assim. Que todos vocês me piniquem de faca se não fizer os “macacos” implorarem pela morte antes deu terminar com qualquer um que pegue. Lampião mais recobrado assentiu com um gesto de cabeça e se afastou para sentar-se numa cadeira preguiçosa armada na frente da tapera; com isto alguns homens ligeiramente cobriram os corpos das vitimas com a terra ao pé de cada abertura. Naquele dia e pelo tempo que ali permaneceram reinou um silencio gigante, a sanfona emudeceu e os homens não viam graça para nada. A revolta daquelas mortes e lamentação pelo sofrimento dos Bagaceiras os manteve assim até o bando arribar novamente ganhando a caatinga puxados por Virgolino Ferreira a mascar entre dentes um fino talo de capim, mergulhado em pensamentos que só Deus poderia adivinhar. Neste fardo de passo e peso desapareceram sedentos de sangue para aplacar a ira que carregavam em suas matulas e corações.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

CAPÍTULO V

Era um botequim muito pobre, destes a beira de estradas, ali no caminho para a

Lagoa dos Patos, “O Espinheiro” passagem obrigatória a quem transitasse por aquele caminho; estrada carroçal bastante usada pelos fazendeiros da região e tropeiros comerciantes que desciam ou subiam para a capital vindo pelo espinhaço da Serra de Santa Luzia. O dono do ponto era um enorme negro de sorriso farto, fala mansa, estatura mediana, meio calvo, olhos grandes e arredondados a emitir uma chispa de sangue, haja vista o vermelhão na parte branca da vista; tinha uma musculatura avantajada de um hercúleo titânico, gestos lentos e moderados. Gostava de sempre pela tardinha ficar sentado em uma cadeira forrada com couro de cabra na alta calçada da pequena casa de dois cômodos a expiar para o caminho, sempre na espera de algum freguês que costumeiramente surgia dali ou de acolá vindos do oco do mundo estando estes a enlinhavar o sovaco do sertão. Nestas sentadas na calçada geralmente ficava até a noite quando escolhia a hora de se recolher, ocorrendo inopinadamente visita noturna, no que não se negava a atender; mesmo com receio que o horário propunha. No entanto aquele homem que atendia pelo vulgo de dois pontos desconhecia o medo a assim abria a porta quando era chamado fosse que hora fosse ou situação que surgisse. O nome dois pontos veio depois dos raros moradores da localidade

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posicionados em diferentes lugares observar no seu linguajar a expressão corriqueira “é o seguinte: dois pontos” só depois disto surgia o colóquio normal. Daí ficou dois pontos a sua própria identificação; logo nem seu verdadeiro nome o povo conhecia, a referencia era dois pontos. Uma tarde quando despachava a uma camponesa da região de nome Geralda Garbosa, ouviu da mulher um aviso para ter cuidado com os cangaceiros; geralmente naqueles meados costumavam passar na região, e como ele: Dois Pontos, não tinha ainda um ano de comércio naquela área poderia ocorrer algum assalto a objeto de valor que possuísse. Dois Pontos riu da preocupação da mulher e entregando-lhe o pacote das mercadorias compradas, sorriu a explicar com sua voz pausada. - Se preocupe não Dona Garbosa. Deixe estar que eu sei me cuidar muito bem. A mulher foi embora e o negro ficou pensativo a buscar em sua mente algumas imagens dos tempos de outrora; depois sorriu a desabafar para os botões de sua camisa. - Seria mesmo interessante se o bando do Capitão Virgolino desse as caras por a cá. Na certa o homem ia querer ter uma conversa especial comigo – Concluiu sorrindo. Mais tarde um pouco, quando a tonalidade do sol foi mutando e o astro rei abria caminho para o poente, um homem de meia idade, cabelos compridos, barbas nas mesmas proporções, trajando uma camisola marrom de um tecido de algodão bem grosso, calçando sandálias de rabicho, a segurar um cajado alto, maior que sua estatura; mas de bom uso, pelo estado de alisamento que a madeira demonstrava. Olhos negros, firmes e penetrantes, voz forte de trovão, de alta sonoridade, magro que só uma agulha em pé, adentrou no recinto e pediu água para saciar a sede. Foi de pronto atendido pelo comerciante que dispunha de dois potes cheios de uma água doce e fresca, colhida numa cacimba ao pé da Serra. Servido o estranho personagem sorriu para sacar de dentro das vestimentas, abaixo da linha de cintura uma moeda e aí perguntou ao outro se ele tinha fogo e velas; no que foi também atendido com a mesma presteza. Fazendo o pagamento ainda recebeu alguns vinténs de troco do fósforo e da vela. Guardando o pedido voltou a indagar. - Moço ainda estou longe da cidade adiante? - Um bocado - Respondeu o vendeiro para continuar - Mais de um dia de viagem; antes, porém o Senhor vai passar em alguns vilarejos. - Agradecido a sua atenção. Estou a ver que o Senhor tem uma cadeira lá fora e uma preguiçosa aí fechada – Apontou com os olhos o objeto referido - Poderia emprestá-la para eu descansar o espinhaço desta enfadonha jornada que estou a lançar mãos. Dois Pontos sorriu apressando-se a servir o viajante religioso. - Mais é claro que sim seu... - Joaquim Divino do Amor Caneca, um seu criado. - Pois sim seu Caneca – Resolveu chamá-lo assim – Pode tomar assento na calçada que já deve estar chegando o vento da tarde e logo lhe faço companhia para batermos um pouco os dentes.

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O outro gesticulou com a cabeça em um sinal de afirmação e saindo para a calçada abriu a cadeira e sentou-se a aliviar as dores das costas. Logo depois, Dois Pontos também veio cá para fora a sentar-se na sua surrada cadeira de madeira, posicionando-a ao lado do distinto e já chegou travando prosa. - Não tenho mulher por isso a bóia demora um pouco e não é das melhores, mais dar para se comer. Já aumentei a água do feijão e assim que estiver pronto convido-o a cear comigo. O homem vestido a beato sorriu a responder. - Só como uma vez no dia meu filho. Agradecido a sua boa vontade. Ademais já encontrei por aí o Cristão que me fez à caridade de me assegurar a refeição diária. Agora só preciso descansar um pouco esta carcaça já que atingi a exaustão. Amanha sigo em frente. Obrigado mesmo a sua hospitalidade. - Não por isso. Fique a vontade. Contudo para dormi lhe ofereço uma rede que tenho quando vosmecê desejar pernoitar. - Ah! Isto eu quero mesmo. A generosidade era, e ainda é um ponto de referencia da gente camponesa do meu Nordeste. - A propósito! Qual a sua graça Senhor? - Dois Pontos. -Muito bem – Resumiu o beato. Compreendendo que o viajante expressava nítidos sinais de cansaço e que desejava tirar uma sesta ali mesmo, sentado, o vendeiro encerrou a prosa lançando seus olhos na direção da vegetação e da serra lá adiante; as expressões rochosas, não tão distante formavam desenhos e a elas gostava Dois Pontos de apreciar. Cinco minutos depois o viajante roncava alto em estado de repouso, vencido pelo estado de cansaço adquirido na andança; também pela sua consoante fraqueza imposta pelo regime alimentar: percebeu o negro. Mal o homem ferrara o sono surgiram pela estrada dois cabras fortemente armados atentos caminhando em estado de observação; trajavam-se a cangaceiros e ostentavam aquele enorme chapelão inconfundível. Dois Pontos não se alterou, antes sorriu da chegada dos ditos; certamente haviam muitos outros bem atrás “concluiu o dono do empório a ficar de pé encarando a chegada dos dois”. Estes por sua vez já haviam distinguido a bodega e sem alterarem o passo avançaram na direção da referida. Quando atingiram o frontispício do local saudaram aquele que estava em pé impetrando um olhar de dureza e estudo. - Boa tarde moço. Cumprimentou o mais adiantado da dupla. - Boa tarde Senhores. - Tarde – Respondeu o segundo. Dois Pontos sem demonstrar nenhum receio a estes já foi logo os convidando a entrar.

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Os dois desconhecidos aceitaram o convite a galgar os degraus que dava para o nível superior da calçada. Olharam ligeiramente para o religioso e num sinal de respeito bendizeram-se a passar por este atingindo o interior da venda. - Moço bota ai duas pingas pra gente tirar a poeira da garganta – Pediu o segundo da dupla que entrara primeiro no recinto. Dois Pontos sorriu a retirar da tosca prateleira uma garrafa de aguardente de engenho. - Tenho a cá uma brejeira vinda da “Felipéia” trazida por tropeiros que é de ótima qualidade. Mas sei que vocês vão querer mais que uma dose. Ta aqui o litro e os copos. Os desconhecidos sorriram relaxando o clima e passaram a saborear a cachaça oferecida pelo taberneiro. O amigo tem mesmo razão. Esta cana é da melhor qualidade - Explicou o que pedira a bebida passando a língua nos lábios ressecados como a depurar o álcool que entrou em contato com sua boca. O outro pandengueiro tomou a fala. - Amigo! Responda-me com presteza clara... Dois Pontos franziu a testa contraindo os cenhos. - Vosmecê não viu passar por aqui recentemente alguma volante da polícia? Com naturalidade o outro respondeu. - De forma nenhuma passaram por a cá. Até porque se tivessem passado de largo os poucos moradores desta região teriam dado noticias e até então não ouvi nada sobre passagem deles. Logo tenho certeza de que não andaram por a cá ou aí. Concluiu com firmeza na voz que não deixou dúvidas aos forasteiros. Um deles depositou o fuzil sobre o estrado em cima do balcão para depois afirmar. - Este sujeito está dizendo a verdade Januário – Afirmou ao comparsa pelo nome para concluir- O cabra é mesmo de fibra. Dar pra ver nos olhos dele. O elogio saiu do que parecia comandar a dupla e o ouvinte concordou preciso. - Também acho. Então se volto agora mesmo a informar ao Capitão que a área ta limpa, enquanto vosmecê fica aí a prosear com o moço. - Certamente camarada. Ligeiramente, a luz da afirmação deste o cangaceiro sumiu da venda e ganhou a estrada num passo bem acelerado em busca do grosso da tropa. A cá o cangaceiro iniciou uma conversação com o vendeiro. - Mais o amigo vendedor ainda não disse a sua graça? O indagado sorriu. - Nem vosmecê também! - Tem razão mesmo. Não disse ainda. Chamo-me Dois de Ouro. O Negro sorriu ao ouvir o nome do famigerado cangaceiro celebre no nome e na pratica de maldades. Homem valente e de valor do bando marginal; depois respondeu. - Me chamam Dois Pontos.

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A resposta fez o cangaceiro se engasgar e cuspir a cana para fora ao ouvir o nome do outro. Compreendendo que este ria da semelhança dos nomes, o botequineiro também caiu num escancara bocas. - É uma baita coincidência – Explicou o meliante se recobrando da surpresa pelo nome do outro. Logo ali estava presentes Dois de Ouro o naipe do cangaço e Dois Pontos o desconhecido que certamente tinha lá sua história para contar. - Dois Pontos deve ser só apelido não? – insistiu Dois de Ouro - Sim. O meu verdadeiro nome é Luzinaldo Severino. Afirmou o negro também segurando um copo no qual enchera da cachaça para bebericar mais o visitante. Quando confirmou seu nome Dois de Ouro foi quem franziu a testar buscando se lembrar de alguma coisa. Quando pareceu encontrar abriu a face a sorrir calmamente. - Luzinaldo Severino! Já ouvi este nome muitas vezes cabra da peste. Você era Lançadeira quando andou com o Capitão. Não é isto mesmo? O Comerciante sorriu a buscar em sua mente imagens de um tempo a muito ido. - Era sim. O Capitão falou de mim? - Ele lá esquece os cabras bons que pelejaram sob suas ordens homens – Afirmou Dois de Ouro – Ademais ouvi seu nome várias vezes da boca dele contando um causo especial pras bandas de Cariri Açu, no Estado do Ceará. Vosmecê não é daqueles lados? - Sou sim Dois de Ouro. - E este beato aí fora quem é? – Quis saber o cangaceiro. - Disse se chamar Joaquim Divino. Ta há descansar um pouco para prosseguir adiante. Dois de Ouro olhando para aonde estava o religioso, percebia claramente suas pernas pela abertura da porta; depois retornando para seu anfitrião retornou a conversar. - O nome não me diz nada. Mas esta gente é protegida do Capitão. Ele deve ser mais um amalucado que anda a percorrer o sertão querendo consertar as misérias com palavras ao invés das armas – O homem fez uma pausa – Isto lá e causa de resolver com a boca. Só isso é que pode fazer alguma coisa. Né não? Explicou perguntando a exibir suas armas. Dois Pontos sorriu para responder. - Digamos que é mais objetiva e as pessoas escutam mais. A esta resposta os dois caíram numa gargalhada estrondorosa que teria acordado ao viajante se este já não tivesse desperto e ouvido as ultimas palavras do cangaceiro. Assim levantou-se serenamente e entrou na quitanda a lançar um olhar ríspido para o cangaceiro que o fez se calar. Ocorrendo a mesma situação a Dois Pontos. - Amalucados. Loucos somos todos nós meu filho - Começou a destravar um sermão aos ouvidos do meliante que ficou calado a ouvir o que o beato tinha dizer – Passageiros desta vida terrena que pode se acabar a qualquer instante. Vai ser pelo que fizermos que seremos lembrados aqui, e o que plantarmos nesta vida colheremos na outra. A

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recompensa espiritual é privilégio de uns poucos. Só digo a vosmecês – Referiu-se a olhar nos olhos de Dois de Ouro – Que não mato e nem tão pouco roubo de alguém. E que quando eu bater com a caçoleta alguns vão dizer que eu era um doido; mais muitos irão afirmar que eu era um homem justo... Dois de Ouro tomou a palavra. - Já de mim vão dizer que eu era um bandido imprestável. É isto? O Beato sorriu ciente de que o cangaceiro entendera a proposta; sem demonstrar o menor medo da fúria assassina do meliante, concluiu. - Cada um será julgado pelo que faz – Afirmou. Uma chispa de raiva fluiu nos sangue de Dois de Ouro porem ele se conteve. O Capitão respeitava os homens santos e ele não queria inflamar a ira de seu líder por algo que fizesse aquela figura. Contudo alertou. - Beato sua sorte é que o capitão não aceita que corrija gente como você. Por isso nossa prosa ta encerrada. Se afaste de mim e espere que já, já o Capitão surge por aqui. Diga a ele o que disse a mim. Informou dando a costas ao religioso que voltou a sentar-se resmungando entre dentes algumas palavras contra o cangaceiro que lhe chamara de maluco. Dois Pontos chamando a atenção de Dois de Ouro voltou a encher lhe o copo travando nova prosa sobre outros assuntos. Logo tiveram suas atenções chamadas para a porta de entrada ao perceberem a aproximação do grosso do bando avançando pela estrada. Vinham conversando em pequeno os grupos e o Capitão Virgolino Ferreira vinha no meio destes, estando à ponta da horda o cangaceiro Caserna. Quando atingiram a bodega já encontraram o Beato de pé a segurar o cajado com firmeza olhando duramente para aquele grupo de homens armados até os dentes. Seus olhos duros e vivos buscavam entre aquelas figuras a do seu líder; quando o divisou o Capitão já caminhava adiantando-se aos demais para ficar de fronte a ele, e na deixa o religioso peregrino soltou um inflamado sermão contra o bando cangaceiro que apenas o escutava sem nada dizer. Na seqüência o homem direcionou suas palavras ao líder de todos aqueles cabras. - Então sois vós o famigerado terror deste sertão: herói e bandido. Bom e ruim. Cara e coroa da mesma moeda. Na verdade o Senhor não me assusta e até queria prosear com você a parte. Lampião parou frente a frente com o beato, de tal modo que um podia sentir a respiração do outro; aí abriu um sorriso pela metade e respostou calmamente. - Pois se já, já agente conversa Beato; antes devo tomar alguns cuidados com minha estadia aqui. Mas vê aí se no seu sermão fala menos dos meus homens. Explicou retirando-se a ordenar para alguns dos seus que tomassem as providencias cabíveis para evitar surpresas desagradáveis. Logo dois meliantes conhecidos por Saracura e Papelote se encarregaram desta parte. Depois do bando tomar pousada em volta da quitanda Lampião voltou a sua atenção para o Beato; porém neste momento Dois

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Pontos saiu porta afora acompanhado de Dois de Ouro e ao religioso sobrou a cadeira que voltou a ocupar esperando que o famigerado Lampião viesse ter com ele haja vista o líder dos cangaceiros ao ter botado os olhos no comerciante: abrir um largo sorriso e ir abraçá-lo amistosamente. - Ora! Ora. Mais que mundinho pequeno sô! Encontrar um amigo como você é sempre uma surpresa agradável. Cumprimentou ao negro e de imediato explicou para os seus camaradas quem era aquele homem. Assim todos puderam conhecer o famoso Laçadeira; um dos primeiros companheiros de Virgolino ao entrar no cangaço, ainda quando pertencia ao grupo do Senhor Pereira. Momentos depois. Todos se encontravam sentados na alta calçada pelo chão ou em alguma cadeira colocada para os segundos em comando. Como já se iniciava a noite Lampião não permitiu as visitas às casas da região, antes concentrou seus homens naquele ambiente e aí foi ter a prosa que o Beato havia solicitado. - Já passa um pouco da hora do anjo Beato. Mesmo assim nós não vamos quebrar o costume. Vamos tirar o Ofício da imaculada Conceição e o Senhor puxa o oratório. Terminado o Senhor me diz o que tem para dizer. O Beato o olhou indiferente e como a cangaceirada já se punha de joelhos em grande parte apenas confabulou. - Que assim seja – E já foi direto a o inicio da oração com um apelo em forma de pedido. - Virgem mãe imaculada; rainha cheia de graça rogamos a ti tua benção e as graças para que interceda junto ao pai por nossas almas pecaminosas e o perdão pelos nossos erros. Para estas almas que aqui se encontram e estão arrependidas conduza-as à presença do pai e aos que não aceitam os teus ensinamentos lance os nas profundas do inferno para pagar por seus erros bestiais – Lampião neste ponto lançou-lhe um olhar ríspido, entrementes o Beato fez que não viu e continuou – E ao Chefe destes homens seja imputado o que ele dever – desta feita Lampião pigarreou a alisar o cabo de sua arma; então o Beato olhou firme e indagou – O que foi? O Senhor que continuar a prece? Lampião respondeu. - De forma alguma quero o seu lugar. Mais deixe estar que dos meus pecados me confesso eu. Falou num tom firme e coeso que fez o Beato compreender que aquele homem sabia de sua divida para com Deus e não carecia de intermediários neste assunto. - Está certo. Que assim seja... Os demais rituais do ofício se cumpriram sem mais algum entreveio e ao término da oração pelo Beato um cangaceiro teceu um comentário maldoso contra o religioso. Comentário que não passou despercebido por Virgolino. - O que foi que tu disseste mesmo Azeitona? O cangaceiro baixo gordo, meio amarelo; conhecido dos demais por sua índole violenta baixou a cabeça quando Lampião lhe dirigiu a voz.

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- Nada demais não Capitão. Virgolino levantou-se de sua cadeira e o olhou com um ar ruim; estando o outro de pé no pátio do empório. - Nada demais o que cabra bosta! Eu ouvi bem a grossa que você disse com o Beato. Doravante que isto não se repita. Mulher, criança. Velho e religioso; homem tem que respeitar mesmo não gostando. Ta entendido? - Sim senhor. Sim senhor – Respondeu o outro se afastando para um lugar mais reservado. Depois Lampião concluiu resoluto. - Com a fé não se brinca. Mesmo quando não se acredita no que lhe dizem – Depois olhou para o beato e completou – Desculpe o meu cabra peregrino ele não desrespeitara novamente a fé de ninguém – O religioso assentiu com a cabeça – Agora nós. O que vosmecê tem para mim dizer? O Beato ficou de pé a encará-lo dentro dos olhos. - Vosmecê já me disse tudo que eu precisava ouvir pelo que eu acabei de ouvir. Doravante ganhou o meu respeito – Afirmou voltando a sentar-se na preguiçosa. Depois desta explicação; Lampião sorriu a lançar os olhos em Dois Pontos. - E você homem de Deus! Não acha que poderia servir a mim e a você mesmo de outra maneira? O que acha? Dois Pontos coçou a cabeça para respostar. - No que poderia ser Capitão? - Um cabra como vosmecê não é de ficar parado, esperando as coisas acontecerem. Ou tu acha que me esqueci da tua firmeza Laçadeira? Um cheiro de carne de bode já se espalhava pelos arredores, conseqüências de alguns cangaceiros terem armados fogueiras e estarem preparando a bóia noturna. Dois Pontos agora acompanhado apenas de Lampião, Caserna, Corisco e do andarilho pregador sorriu com calma. Os outros que os ladeavam estavam agora ao pé da brasa aonde porções de carnes chiavam ao fogo. - Lampião – Começou Dois Pontos como a mergulhar suas lembranças em uma era que não havia esquecido – Muitas coisas aconteceram daqueles tempos para cá. Confesso que às vezes penso em pegar em armas; porém quando lembro que estou velho e não possuo mais aquela disposição de antigamente, o fogo baixa e aí eu me sossego. Já não sou mais aquele frangote de antes. vosmecê mesmo está muito mudado. Era magro e muito jovem. Hoje; já despontam em sua cabeça mechas de cabelos brancos. Tem esposa e filhos e deve de ter suas preocupações pessoais. O Cangaço já não me serve mais. Desculpe-me amigo. Lampião o olhou melancólico -Tem razão compadre. Muita coisa mudou. Estou mais velho mais pensado; tenho uma mulher que é uma verdadeira guerreira. Chama-se Maria Bonita. Não está a cá comigo por que a mandei para fazer um tratamento médico de um ferimento a bala em casa de um

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amigo. Mais quanto à idade sou daqueles que acredita que quanto mais velho melhor. No entanto respeito a sua opinião. O ex Cabo aproveitou a oportunidade e movido pela curiosidade perguntou ao comerciante quais as razões que o levaram a ser cangaceiro. O indagado não se fez de rogado - Meus pais eram moradores de um Coronel latifundiário no Estado do Pernambuco; o Homem era Senhor de Engenho, mandava em tudo e em todos. Um de seus filhos em determinada ocasião estuprou a minha irmã caçula, uma moçoila de dezesseis anos. O pai foi tomar satisfação daquilo e acabou por levar a maior sova que já vi um cristão tomar. Inconformado procurei a justiça e dei com os burros na água. Dias depois minha segunda irmã também foi atacada por outro filho do Coronel. Antes mesmo do pai fazer qualquer coisa o balearam numa manhazinha quando saia de casa e ele morreu para servir de exemplo para os outros agregados de que ali naquele lugar mandava o Coronel João Fontes da Água Branca. Eu era ainda um molecote naquela época. Bem! Tempos depois minha irmã a primeira violentada foi achada morta por estrangulamento no roçado. Soubemos depois que fora causa dela ter dito estar grávida. Daí aqueles malditos acharam por bem eliminá-la, o Coronel não queria netos bastardos. A minha outra irmã se descobrindo também buchuda anoiteceu e não amanheceu em casa. Fugiu após explicar suas razões para nossa mãe. Causas que levaram três meses depois minha própria genitora a cova. Morreu de dor, desgosto e sofrimento. Sozinho no mundo, já que nunca mais soube da minha irmã fugida fiquei sete anos naquele rancho aos cuidados de meu padrinho, um outro colono amigo de meu pai. Quando completei dezesseis anos, Certa noite adentrei na casa grande do Coronel e naquela noite fiz uma inspeção em todos os quartos da casa para depois sumir no mundo. Foi isso que me levou ao cangaço. Atento ao relato o Cabo reclamou para o sorriso de Virgolino. - Assim não meu amigo! Assim não. Diga o que fez nesta inspeção aos quartos do grande fazendeiro. Olhando para Lampião que já conhecia este relato Dois Pontos concluiu. - Degolei com um machado os três filhos do Coronel, cada um em seu quarto. Violentei a filha única daquele homem e depois a matei com uma machadada na cabeça. Esta é a única coisa que me arrependo de ter feito naquele data. Como O Coronel era viúvo e costumava levar amantes para sua casa, havendo uma naquele noite em seus aposentos. Esquartejei o velho na frente dela, depois de lhe cortar a cabeça e os demais membros, botei os pedaços dentro de um saco de estopa e atirei pela janela do andar superior da casa para o pátio da fazenda; em seguida mandei a rapariga sumir e depois alteei fogo naquele lugar sumindo no mundo. Depois, bem, depois, só me sobrou o cangaço que abandonei quando Senhor Pereira foi embora. Caserna se deu por satisfeito e junto com Corisco levantou-se a caminhar para uma roda em torno de uma fogueira. Beato também se levantou, mas foi para adentrar no recinto

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em busca de uma tipóia que fora armada para ele. Nas cadeiras restaram Dois Pontos, o Laçadeira e Lampião que seguiram numa prosa saudosista. - Senhor Pereira – Iniciou Lampião – Taí um homem que se voltasse a pegar em armas até eu me submeteria ao seu comando. - Grande Homem era aquele. Também sinto saudades Virgolino. Mais o que se foi não volta mais – Redundou Laçadeira. - Aonde será que anda o homem nestas horas? – Inquiriu Virgolino Ferreira a olhar para as estrelas despontando em miríades num céu escuro. - Sabe-se lá – Resmungou o outro a respirar profundamente para concluir – Só tenho certeza de uma coisa. Pro cangaço eu não volto. Lampião sorriu amargo. - Lhe dou até razão. Para um homem deste sair da vida é só querer. Quanto a mim que sou o chefe a coisa é diferente. Mesmo que quisesse não poderia, as perseguições seriam constantes e o Governo não descansaria enquanto não me pegasse. Entrementes bem sei que só tenho um caminho é o de seguir em frente. Qualquer dia pode até ser que eles me peguem. Mas até lá muita gente vai levar tiro e comer da minha faca. Ainda derrubo centenas deles antes deu tombar – Concluiu categórico. Ainda demoraram muito sentados enredados numa prosa singular até a hora de irem descansar. ... Na manha seguinte Lampião seguiu caminho e em respeito ao antigo companheiro não visitou a ninguém do lugar para tomar dinheiro. O Beato antes mesmo da tropa arribar já havia ganho a estrada caminhando a se escorar no longo cajado, companheiro de jornada. Dois Pontos escorado no caixilho da porta de sua quitanda assistia passível à partida dos visitantes. Nestes momentos uma ânsia medonha lhe sufocava as entranhas e um enorme desejo de seguir mais o bando fazia seu coração disparar acelerado. Entretanto resistiu a vontade e se manteve firme na direção do novo estilo de vida que estava levando a centena de léguas das suas origens. Naquele torrão ele era um homem digno.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

CAPÍTULO VI

Quando cai a tarde nos sertões do nordeste brasileiro a caboclada fiel no passo

das dezoito horas costuma botar os joelhos no chão e rezar a Ave Maria: tradição esta que se perdeu no tempo e que está quase esquecida como muitas outras. Mas no tempo dos Cangaceiros esta ação era uma obrigação diária e assim se procedia naqueles idos. Dias depois da saída da quitanda de Dois Pontos acostou Virgolino Ferreira com seus cabras nas terras de um Senhor de Engenho no solo da Paraíba, fronteira com o Rio Grande do Norte, esta propriedade pertencia ao Major Otoniel Moreira da Nóbrega, bem sucedido homem de negócios. Estava os agregados da fazenda em seus labutares e obrigações da fé na hora do anjo; quando sentiram a fazenda assaltada e tomada por mais de vinte cangaceiros liderados por Caserna e Corisco a mando de Virgolino Ferreira. Os defensores da fazenda não tiveram poder de reação e mediante o fator surpresa foram obrigados e se submeterem a uma rendição sem lutas, fato que não causou perdas naquele lugar. O Major Otoniel estava fora, viajando a negócios. A frente da propriedade estava à senhora sua esposa Dona Maria Francisca de Nogueira que ao sentir-se prisioneira dos meliantes procurou conduzir as

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negociações do pagamento que deveria efetivar ao bando para estes irem embora. Caserna conduziu a esposa do fazendeiro para o escritório da casa grande e a sós com a mulher exibiu a carta de Lampião cobrando cinco contos de réis que seriam para manutenção do bando. Maria Francisca era uma mulher jovem de seus vinte e sete anos, não tinha filhos e era dona de uma beleza fenomenal, mulata de cabelos negros caídos até a linha de cintura, lábios carnudos e boca pequena, nariz afilado, olhos esverdeados, rosto comprido, vos suave, cintura fina, pernas torneadas, seios grandes e duros a projetar-se contra a blusa que usava; falava manso e delicado. Cheirava igual uma rosa. Sua beleza era tanta que o ex miliciano não tirava os olhos da mulher a ponto de desejá-la tomar para si. Entretanto o código de honra que seguia não permitia tamanha barbaridade pelo uso da força. Com isto conteve seu desejo e esperou a mulher terminar de ler a carta. - Cinco contos de réis é o que quer seu Capitão Senhor? – Indagou a estonteante mulher olhando para o meliante - Teles do Nascimento Guedes, um seu criado. É isto mesmo - concluiu. - Mas é muito dinheiro seu Teles! Otoniel não guarda tanto assim em casa; Agora o que eu faço? Perguntou se aproximando do homem a encher o ar de seu cheiro. Ao avanço da mulher uma carga elétrica percorreu o miliciano que sentiu ascender seu facho por baixo da roupa num estado de dureza que forçava a braguilha da calça. A mulher notou o estado do meliante e sorriu a olhar para a linha de cintura do cangaceiro cujo membro forçava as vestes querendo saltar para fora. - Seu Teles tudo o que dispomos é de quatro contos de reis que esta no cofre desta sala aí por trás do senhor – Explicou caminhando a passar rente a este roçando seus seios no corpo do marginal. A ação desnorteou o Cabo que segurando a pelo braço não pode se conter, puxou a para si e a beijou alucinadamente. Para surpresa do cangaceiro a mulher não resistiu antes se entregou totalmente a volúpia do momento. O Cabo arribou suas anáguas e arrancou sua caçola, ela mesma desabotoou a braguilha do salteador e conduziu o membro para fora. Depois saltou sobre o homem de pé e entrelaçou sua linha de cintura numa cruzada de pernas. O homem deu alguns passos em direção à mesa da escrivaninha e lá apoiou o corpo fenomenal de Maria, aonde a penetrou e em movimento de vai e vem ejaculou toda sua volúpia no interior da fazendeira que agarrada à boca do homem beijava-a com desejo animal. Terminado a cena. Ela se recompôs, abriu o cofre e entregou os valores que possuía. Quatro contos de reis. O cabo arrastou mais um do próprio bolso e completou os cinco, saindo dali no mais completo silencio com o dinheiro na mão para entregar a Corisco que já se impacientava pela demora do outro. Porém com o dinheiro a vista o homem se esqueceu de tudo e momentos depois partiam dali para retornar ao ponto que estava Lampião. Maria ficara sorrindo, o meliante chamado Teles seguia incrédulo com o ocorrido e duplamente feliz, pelo sucesso da missão e pelo prazer proporcionado pela fazendeira. “Otoniel que fosse lixar seus chifres noutro ferreiro, já que a mulher dele era boa demais para ser dispensada” Concluiu já longe da casa grande do engenho.

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Numa campina dentro da caatinga o restante do bando aguardava a chegada dos enviados, coisa que aconteceu três horas depois. Recebido o dinheiro Lampião sorriu ditoso e antes de elogiar os que mandara em missão um cangaceiro apelidado de Caracol veio até ele. Era um de seus batedores avançados. - O que foi Caracol que você viu por aí? - Capitão tem uma pequena volante arranchada à meia légua daqui e é da Polícia Alagoana. Reconheci pela farda. - Quantos são? - Dezesseis homens ao todo contando com o Tenente que os comanda. - Muito bom – Disse Virgolino a coçar o queixo – Hoje nós vamos nos vingar da família de João bagaceira cambada. Explicou Lampião para a total aprovação da súcia sedenta de descontar em alguém a ira que estavam sentindo pelas mortes cruéis da família de João Bagaceira. Não precisou dizer mais nada em dez minutos seguintes desmontaram acampamento e orientados por Caracol divididos em quatro frentes de mais ou menos dez homens; avançaram de armas na mão para o lugar aonde descansava o contingente miliciano denominado volante. O Tenente João Fernandes era um homem voluntarioso tanto na prática de ações policiais como no tamanho, o sujeito era meio avermelhado, de uma estatura descomunal, olhos claros, cabelos louros, lábios finos, narigudo de fala elevada. Ao longo dos anos já matara muitos cangaceiros e outros tantos civis que julgasse coiteiro. Matava por puro prazer e diversão; os homens ao seu comando o temiam muito mais pelo comportamento do que pela autoridade investida; atingira o posto de Tenente matando gente de toda e variada forma. Se fora ele e os seus ou outra volante nunca se soube quem trucidou a família de João Bagaceira. Mas que pagara por aquelas mortes: pagaram e pagaram muito caro. O Tenente estava sentado sobre uma pedra com um punhal na mão a escavar as unhas retirando a terra debaixo destas; os seus comandados: um cabo e mais quatorze homens espalhavam-se a vontade, sentados a sombra de algumas moitas, estando um mais afastado a cuidar de uma fogueira armada aonde fervia um caldeirão ao fogo. Lampião e seus homens vieram pelos quatros flancos, de modo a deixar os militares cercados dentro de um quadrado mortal. A determinada altura deitaram-se pelo terreno e em posição de rastejo alcançaram a distância de tiro. Lampião fez mira contra o Oficial e acionou o gatilho de sua arma; o tiro serviu de alerta aos demais militares. Entretanto uma saraivada de balas acompanhou aquela primeira. O Tenente João Fernandes foi colhido pelo projétil em cima do peito esquerdo; à bala o impulsionou para trás fazendo-o largar do punhal. Caiu gritando um urro descomunal de dor, contudo não morreu ao disparo. Após quedar no solo; rolou de lado, levantou-se sacou seu revolver e efetuou dois disparos na direção que julgou ter sido acertado. Lampião deixou o homem caminhar em meio aos mosquitos zumbindo, após este efetuar o segundo tiro, alvejou-o na cabeça espatifando seus miolos com uma bala certeira. João foi novamente impulsionado ao chão e desta feita estrebuchou agonizante. A pipoqueira dos disparos eram ensurdecedores e aos gritos de açulo dos milicianos emboscados num corre-corre buscando pegar em armas, os

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sons se misturavam naquela sonora balada da morte. Um a um, os milites foram tombados a beijar o chão atravessados pelas balas dos cangaceiros; alguns buscaram em vão furar o cerco e escaparem da morte. Em vão, os que tentaram isto tiveram a cara espatifada pelas cargas das balas dos fuzis adversos. O cozinheiro da milícia apavorado, gritando por Padre Cícero entrou em pânico mediante a carnificina dos seus; tentou alcançar uma depressão no terreno que dava para um penhasco, porém uma bala veio adentrar em sua testa e este foi impulsionado para cima da fogueira, causa que o fez entornar o caldeirão que estava cheio de feijão. Desta situação Lampião resmungou uma frase que arrancou risos dos cangaceiros. - Eita que azar danado! O cabra derramou o feijão, isto sim é uma perda lamentável. Aos poucos os tiros foram cessando e logo reinou um silencio impressionante; aí o bando se pos de pé e foi averiguar o resultado da campana; dos milicianos apenas dois malfadados membros volantes ainda respiravam: um em estado terminal e o outro apenas ferido levemente. Este foi conduzido à presença de Lampião para interrogatório. - Sabe macaco – Explicou lampião – Foi o melhor combate da minha vida. Não sofremos um único tiro que fosse; não perdi nenhum homem, ao passo que vocês estão todos mortos. O Soldado mirou-lhe nos olhos ciente da desgraça em que caíra. Sabia que seria morto cruelmente e neste momento ensejou que antes tivesse perecido por uma bala. - É. Estou vendo a sua bravura. Tive a infelicidade de quando baleado tombar e bater a cabeça perdendo os sentidos. Do contrário eu teria morrido buscando as armas. Azar o meu – Concluiu em desabafo sem nenhuma expectativa de piedade. Ainda perguntou – Vai me matar agora ou espera que lhe implore clemência. - Lampião soltou uma soberba gargalhada da atitude corajosa do miliciano. - Macaco! Geralmente agente sangra cabra como você. Até que gostaria que tivesse mais alguém vivo para dispensarmos um trato especial em pagamento ao que vocês fizeram lá em casa de um chegado meu. O soldado o olhava calado e Lampião prosseguiu. - A covardia de matar gente daquele modo é própria de vocês; eu não gosto de descer tanto. Por isso tu vai viver. Não porque mereça ou pela coragem que tanto aprecio. Mas porque é o único que pode levar os relatos aqui ocorridos pros cachorros da tua laia. E principalmente pro corno do teu Governador. O Praça não sabia a que mortes Lampião referia-se ou se sabia não demonstrou. Entretanto tinha convicção que Virgolino estava referindo a algum coiteiro seu, assim permaneceu calado. - Porém – Disse-lhe Virgolino Ferreira – Vosmecê além de levar o meu recado é de nos presentear uma coisa sua; para eu ter certeza que não vai querer nos enfrentar outra vez. O Miliciano o olhou intrigado a espera da má noticia que iria receber, já que tinha agora ciência de pelo menos sair vivo. Com isto arregimentou forças e esperou com firmeza o que o outro iria querer dele. - Então se diga o que é – Replicou.

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Lampião o olhou de soslaio sorrindo. - Caserna, corisco, Meio dia, mais você, você e você – Explicou apontando o dedo para os demais cangaceiros referidos – Arranque as cabeças do Tenente e do Cabo e aos demais pendure no que encontrar; galhos de arvores, pedras, e exponha os nus para os bichos e os urubus acharem logo eles. Os indicados com mais outros arregimentados por Corisco foram cumprir o encargo. Logo o som do facão em contato com o pescoço dos dois militares indicados era ouvido, até um som seco de osso partido se fazer maior e demonstrar que os milites foram degolados. Enquanto as roupas e armas além dos valores pessoais da tropa eram despojados. Lampião em pé no centro do local da matança, arrodeado de sete homens mais os dois que ladeavam o soldado sobrevivente, assistiam passíveis a ação dos camaradas, enquanto o praça prisioneiro esperava o desfecho final a ser prenunciado por Virgolino. - Valdetário – chamou Lampião a um cabra que estava carregando os corpos em cumprimento a ordem deste. - Cá estou capitão – Respondeu imediatamente. - Aproxime-se. A ordem de Virgolino o homem se achegou do grupo com as vestes e mãos meladas de sangue. - Pronto Capitão aqui me tem. Lampião o olhou sorrindo; depois para o miliciano preso aonde um nó se formou na garganta deste imaginando coisas mil que iriam lhe ocorrer. Depois de alguns segundos de suspense Virgolino deliberou. - Valdetário me corte os dois indicadores deste cabra para que ele não possa mais atirar tão cedo, e o faça sem que ele morra exaurido em sangue. - Certamente Capitão – Concordou o meliante sorrindo a olhar para o praça que só baixou a cabeça ciente de que nada poderia fazer a não ser passar por aquele sofrimento. Meia hora adiante, Valdetário armou uma fogueira e colocou seu punhal para esquentar na brasa. Depois, conduzido por dois cangaceiros o Soldado foi seguro para colocar a mão em cima de um toco para a decapitação de seus dedos. Já aqui a tropa marginal fazia um circulo a assistir soltando pilhérias no suplicio do prisioneiro. Quando foi empurrado para o solo a ficar de joelhos e sua mão foi colocada em cima de um rolo de madeira de uma antiga baraúna, forçada pelos cangaceiros, o homem rompeu o silencio. - Podem me soltar. Não vai ser preciso ninguém me segurar – explicou resignado ao tormento que deveria se submeter. Ao ouvir as novas, os cangaceiros a sinal de Lampião se afastaram e este colocou a mão esquerda e direita com o dedo indicador posicionado em riste, para frente, deixando os demais recolhidos. Após, fechou a boca com força a pressionar os lábios e dentes, uns contra os outros como tentasse morder-se em forma de aliviar a dor que iria passar. Depois

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Valdetário puxou a lamina do fogo e constatou que seu gume estava em brasa. Na seqüência segurou o punho do homem e sorriu a lhe dizer baixinho. - Não defeque nas calças não soldado. A dor vai ser grande – aquele outro nada disse. Lentamente Valdetário levou sua lamina de forma a encostá-la a meio centímetro do dedo do praça, aonde descendo de vez com a força de seu corpo o gume do aço contra o indicador da mão direita do militar, fez o dedo citado rolar e saltar para diante, decepado. A praça ainda emitiu um gemido abafado, mas não abriu a boca. Também não houve sangramentos, porque com a ação de corte as carnes sofreram a ação de cauterização pelo estado de aquecimento da lamina nas brasas. Realizado a metade da encomenda o cangaceiro soltou o braço do praça e voltou a colocar a lamina nas brasas da fogueira. Um suor frio escorria pelo rosto do miliciano que trincando os dentes buscava-se manter firme. Dois minutos depois o seu outro dedo esquerdo era arrancado nos mesmos moldes do primeiro e desta feita o homem não suportou a dor caindo desmaiado. Lampião então veio até ele e sorrindo explicou. - Macaco de coragem é este daqui. Muito bem homens! Vamos embora; quando ele acordar vai sumir daqui e levar as notícias desta brigada. A nossa parte já fizemos vamos embora agora. Logo o bando ganhava as veredas da caatinga e desaparecia deixando a tropa volante rechaçada a uma coluna de mortos e a um remanescente seriamente ferido. A praça só recobrou os sentidos cinco horas depois a sentir uma dor lacerante nas mãos e uma ligeira queimação no ombro aonde fora ferido pelo disparo. Depois de ficar em pé e recordar os ocorridos, meio zonzo, pos se de pé e embrenhou-se na mata a fim de buscar socorro e relatar aos seus superiores às mortes de sua patrulha.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

CAPÍTULO VII

Corria o ano de 1935, as volantes intensificavam suas buscas numa constante varredura contra o famigerado Lampião em todo o solo dos estados Nordestinos aonde costumeiramente agia o bando meliante. Na Paraíba, no Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco principalmente, estas buscam eram maiores; é obvio que em outros Estados havia também suas volantes e sofriam da ação pestilenta dos cangaceiros, mas em menor escala já que o grosso destas ações ocorria sempre nas áreas dos quatro estados vizinhos. As pobres populações camponesas destes sertões viviam constantemente entre dois fogos; obrigados que eram pelo sistema de governo a submeterem-se a uma destas facções ou ao Coronelismo reinante e seus jagunços. Era um tempo ruim em que as armas falavam e ditavam a lei do mais forte. Nas terras da Paraíba uma volante sob o comando do Sargento Erasmos Brasil reforçada pela Volante do Sargento Wenceslau Silva estava aportando na Catingueira do Padre Mauro que a viu chegando; estando ele na porta da Igreja a espiar para a estrada adiante um pouco antes do meio dia.

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O homem bendizeu-se temeroso com a presença daquele contingente, afinal aos cangaceiros poderia fazer frente já a policia não. Rilhando os dentes notou a contra gosto que no outro extremo começava a surgir aos olhos do povo uma segunda volante de elevado número miliciano; esta era comandada por um Tenente, ambos os grupo caminhavam no sentido de se encontrarem no centro da ruela do lugarejo. O Povo do pequeno lugar saía às ruas admiradas com o número de policiais em seus domínios, a criançada fazia festa e já o povoado ganhava vida com gente e mais gente se aglomerando a confabularem no que estava a ocorrer. Padre Mauro abandonou sua posição e veio acompanhando a marcha dos grupos para ver de perto aquela inusitada situação. Os dois pelotões se encontraram na frente de uma pequena praça na fronte da igreja e após ligeira confabulação do Oficial com os dois Sargentos acamparam ali mesmo espalhando pequenas barracas ao longo da praça. Depois o Tenente conhecido pela alcunha de Pontes e o Sargento Erasmos vieram de encontro ao Padre naquele instante a conversar com a beata Luzia. O vai e vem do movimento das praças armando as barracas proporcionava uma festa à meninada curiosa que aos poucos se aventurava a vir fazer perguntas a um ou outro milico que se dispunha a uma cavaqueira sem fim. Aqui mediante a curiosidade dos pequenos alguns soltavam à trava labial numa enxurrada de histórias que transformava os cangaceiros em coisas piores que o eram e eles policiais em mocinhos. Sempre com algum soldado criando histórias fantásticas de uma valentia enorme aonde eles faziam e aconteciam. A maioria tudo mentira. Mas não para os pequenos e atentos meninos da Catingueira. - Bom dia senhor Padre? Ou boa tarde como seja. Saudou o oficial João Gonzaga Pontes ladeado do graduado que também cumprimentou na mesma voz o Padre e a beata. - Ainda é bom dia Tenente. Por bem pouco mais é bom dia. E antes do Oficial dizer qualquer coisa o Padre já foi direto no assunto. - Os senhores vão acampar aqui na praçinha? O que estar a ocorrer? Antes dos militares responderem um grupo de moradores locais surgiram a caminhar pela ruela em direção ao Padre e aos milites. Entre eles vinham: Dodô Candido, Belo Nóbrega, Abel Moreira, Joaquim Pajeú e muitos outros preocupados em saberem o que estava a ocorrer já que Catingueira nunca fora visitada por tantos policiais. Chegaram ao tempo de ouvir a seguinte explicação do Tenente Pontes. - Se aperreie não Padre. Esta vila ainda vai receber outras volantes no decorrer de hoje ou mesmo amanha. Em conseqüência de um ultimo ataque a uma volante em que os cangaceiros mataram praticamente todos os homens a exceção do Soldado Chico do Quebra de quem lhes arrancaram os indicadores. Vamos nós por determinação dos nossos superiores prepararmos uma investida contra Lampião e seus homens. Como é policia de vários estados, decidiram que o encontro seria aqui na Catingueira por causa de sua posição geográfica. Daí a visita das volantes ao seu lugarejo. - Padre Mauro olhando firme ao miliciano foi taxativo ao ouvir as novas.

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- Isto é muito bom Tenente. Só espero que seus homens se comportem e não crie nenhum problema com a gente do nosso lugar. São pessoas simples e dispostas até a atirar em Cangaceiros. Mas também na policia se ela se portar como a gente tem ouvido falar por aí. O Tenente fechou a cara a estas palavras do religioso. Neste ponto o Padre olhou para Dodô Cândido e seus companheiros e dentre eles Abel Moreira arredundou a explanação do religioso. - É verdade sim seu Tenente. Se depender da gente: vocês tem mais armas ao seu dispor. Mais se algum de seus homens sair da linha desrespeitando as nossas moças ou a um cidadão o senhor passara a ter sérios problemas conosco. O Tenente sorriu amargo compreendendo que aquele povo não confiava na polícia em virtude das más ações de algumas patrulhas e buscando contornar aquele aviso sem levar a mal as explanações daquela gente falou elevando a voz. - Destar que eu mesmo trato o cabra a meu comando que sair da linha. Também sei muito bem que algumas volantes não têm se portado de maneira condescente com o povo; algumas até tem sido pior que os cangaceiros. Mas dou lhes minha palavra de que não existem homens assim ao meu comando, e se alguém se meter a besta eu mesmo esfolo o engraçado para todo mundo ver. Onde passei com os meus homens o respeito andou ao nosso lado - Explicitou. Mediante aquela explicação o grupo deixou escapar suas temerosidades e logo Dona Luzia, junto com Mocinha e outras mulheres se juntaram informando que iam providenciar um almoço para a tropa e que seria servido no casarão velho da família de Augusto Davi. O Tenente vendo aqueles rostos duros se descontraírem sorriu a perguntar para o grupo quem entre eles era Dodô Cândido? Mal o militar concluiu a pergunta este se adiantou aos demais, intrigado. - Sou eu Tenente. Por quê? - Vosmecê não é sobrinho do Capitão Antônio Cândido do Estado Maior do Exército Brasileiro? - É fato sim senhor – Afirmou Dodô. - Pois bem – Explicou o Tenente – Seu tio passou um relato do comportamento desta gente mediante aos homens do cangaço. Já sabemos que a cá bem como num lugarejo aqui perto por nome de Balanços, Lampião nunca teve vez. Por isto e pela posição, também, escolhemos nos encontrar aqui para traçarmos planos de uma investida para acabarmos de vez com a praga do cangacerismo. Aguardo a presença de outros Oficiais como o Tenente João Bezerra; o capitão Everaldo Basto e muitos mais. Com isto espero contar com a valiosa colaboração dos senhores mesmo que em informes, pois de armas teremos o suficiente. O diálogo do Tenente com aquela gente se arrastou por mais uma meia hora e quando culminou a população saiu mais tranqüila. Afinal a temerosidade a polícia era tanta quanta aos cangaceiros. Até porque os atos bizarros de algumas volantes estavam legalizados pela representação governamental do estado e o que eles fizessem estava bem feito. É bem

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verdade que haviam homens sérios e preocupados com o seu legitimo papel e o Tenente Pontes era um destes. Assim ligeiramente a população passava a saber, quem era o policial bom e quem era o ruim; pois o próprio Sargento Wenceslau sob as ordens de Pontes não era lá flor que se cheirasse, o homem era o diabo em pessoa. Para atingir seus objetivos fazia tudo. Entretanto, estando abaixo de ordens não lhes restava alternativa a não ser obedecer e foi que fez. Algumas praças após entendimento do Tenente com a população, assumiram posições estratégicas nas casas que alguns moradores desocuparam para ceder à milícia. A própria torre de vigília da igreja foi ocupada por uma guarnição de homens fortemente armados. Um caboclo foi enviado ao Balanço para dar conta a Tentem das boas novas; se ocorresse de algum cangaceiro aparecer por ali no decorrer dos próximos dias a coisa iria ficar ruim para este. ... Na manha do dia seguinte uma outra volante comandada por um Tenente da policia Paraibana de nome Paiva aportou na Catingueira; o Tenente era um sujeito de um metro e oitenta mais ou menos, um pouco calvo, gordo, de pele branca, fala suave, rosto arredondado lábios finos, nariz afilado de bons modos e foi quem trouxe a informação de que Virgolino Ferreira e seu bando encontravam-se nas terras daquele Estado e que estava no aguardo de um informante com a exata posição para irem atrás deste. Ainda aportou na pequena localidade uma volante Cearense comandada pelo Cabo Espedito Jacu e um grupo de voluntários da família Cerqueira de Morada Nova. Por ultimo apareceram dois emissários de outras volantes com os informes que iriam acampar em Vila Velha depois da cidade de Sousa, também já com informes do bando marginal. Surgindo estes na queda do sol para se por. Descendo uma serra em terras da região de Ibiara naquele exato instante Lampião, não ao acaso, encontrava-se com Antônio Silvino e um grupo de onze pandengueiros arranchados nos restos de uma casa grande da antiga propriedade do Major Galdino Pires; estas terras encontravam-se abandonadas após servir de palco para vários conflitos no que culminou seu abandono. Virgolino dispunha naquele momento de quarenta e dois homens e após ligeiro entendimento com Silvino mais oito engrossaram suas fileiras a compor uma hoste de cinqüenta homens fortemente armados. Antônio Silvino e mais três dos seus cabras resolveram seguir adiante para cumprir uma empreitada. Como a coisa era pequena decidiram que eles quatro resolveriam a parada e depois regressariam para inchar o bando cangaceiro. Na ocasião, o Cabo Teles atual Caserna solicitou de Virgolino que o tomara por compadre, permissão para seguir com Silvino em razão da direção que eles iriam tomar dar passagem na sua cidade natal. Como há muito tempo não via os seus aquela era uma boa oportunidade para rever os parentes. Causa que Lampião julgou justa e apertando a mão do companheiro desejou-lhe boa viagem concedendo ainda mais a ampliação do pedido facultando-lhe o tempo que julgasse necessário ficar com a família.

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O Cabo Teles não havia ainda virado um proscrito procurado pela simples razão de que o soldado que salvara na data de seu ingresso ao bando não ter relatado a ninguém os ocorridos naquela oportunidade praticados por este da forma real. Aguardava ansioso poder se encontrar com este para passar a limpo aquela situação que vinha lhe martelando a cachola.

Ao acaso do tempo a policia deu o Cabo por morto em combate e Raimundo Bandeira mais ainda se fechou em seu segredo para ver no que ia dar. O laço de amizade que tinha por seu compadre era muito forte e no intimo ele desconfiava que o homem se sujeitara ao bando apenas para salvá-lo. Razão que um dia esperava saber. No inicio da manha do dia seguinte, Antônio Silvino e seus três homens mais o Cabo Teles, trajando a caráter como cangaceiros ganharam à estrada. Lampião de posse de uma luneta vez por outra fazia uso desta a observar uma estradazinha estreita um quilometro abaixo, estando seus homens espalhados em vários pontos da antiga vivenda. Seu rosto clareou-se de um sorriso de felicidade quando numa destas olhadas resmungou baixinho. - E ela! Está chegando. Maria Bonita, Inacinha, Rosa da Conceição e Lurdinha de Sergipe mais dois cabras de sua confiança vinham a cavalo em lombo de burros a subirem os contornos do caminho que dava para aquele local. - Veado Branco! Corre a cá cabra amulherado. Um cangaceiro de jeito afeminado apressou-se a obedecer às ordens de Virgolino. - Maria ta chegando Cabra; e vem com mais outras mulheres. Vá recebê-las e cuide bem da minha jóia. O Cabra se apressou felicíssimo por gozar desta confiança de Lampião; era sempre este que servia de “dama de honra” a celebre cangaceira Maria Bonita. Certamente por causa da sua transparente conduta desviada. Um segundo ponto chamava a atenção naquela figura de matador meio afeminado. Apesar dos trejeitos femininos Veado Branco era um excelente lutador na contenda de armas brancas e tiro de fuzil. Poucos no bando tinham sua precisão em mira e disparo. Com isso já despachara muitos cristãos para o outro lado, nem seus companheiros de bando insinuavam liberdades pilherientas com este por medo de sua reação. De fato no inicio de sua vida pregressa botara o fato de um companheiro abaixo porque este em tom de caçoamento espalmara suas nádegas estando estes caminhanado em fila. Daí nasceu o respeito e a consideração por aquele cabra diferenciado. Com a chegada das mulheres no bando o grupo ganhou novos ares e uma felicidade espontânea invadiu o coração sofrido daqueles homens durôes acostumados a toda sorte de barbaridade. De sorte que a presença das mulheres trazia sempre um sentimento mais nobre nas ações dos cangaceiros e graças à intervenção destas em muitas oportunidades o sangue deixou de ser derramado. A sanfona roncou alto naquela manhã e o xaxado explodiu na dança e cantares da caterva motivada pela presença feminina. À tardinha com a fresca da hora levantaram acampamento e ganharam caminho revitalizado pelas presenças embelezadoras das mulheres. Caminhavam dentro de um passo lento avançando por dentro da vegetação que estava a perder as folhas, conseqüência da

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estação seca. Moviam-se com facilidade igual ao vento transpondo os obstáculos naturais numa prova viva do costume aquele tipo de ação... Lampião deslizava pelas campinas, pradarias e serras há quase quatro dias; parando conforme a necessidade urgia. Na tarde deste ultimo dia em avanço, evitando localidades habitadas e com ciência de que não haviam deixado pistas de seus rastros alcançaram um torrão denominado sitio do Guedes em terras do município de Piranhas Velhas, aonde existia uma única casa de taipa armada perto de um riacho de água doce. Ao vislumbraram a casa e pelo grande número de homens que dispunham a horda evitaram maiores cuidados e vieram direto a vivenda de onde saia pela janela um agradável cheiro de toucinho assado na brasa. O proprietário da casa só deu conta da visita quando sentiu que na porta de entrada alguém batia palmas a chamar. - Oh de casa posso entrar? O homem estava naquele momento deitado numa rede na ante sala perto da cozinha; assim ao ouvir o prefixo se pos de pé e mandou a mulher continuar em seus afazeres. -Oh de fora pode sim – Respondeu vindo para ver quem o solicitava. Não ficou surpreso ao chegar à sala e deparar com mais de cinco homens sentados num gasto banco de madeira, armados até os dentes, portando roupas típicas de cangaceiros. Estava também sentada em uma cadeira de melhor qualidade uma mulher morena de boa formosura. Sorrindo já chegou falando. - Boas tardes para todos os senhores. E quem eu tenho a honra de receber em minha modesta morada? Lampião que estava sentado ficou de pé a lançar um olhar para o homem. - O Capitão Virgolino Ferreira, Maria Bonita – Apontou para a mulher - E meus homens. E o Senhor que me recebe com tanta cordialidade quem é? - Serafim Guedes um seu criado. Mais se fique a vontade que a casa é sua. Lampião voltou a sentar-se e o homem lançou um olhar pela janela a divisar o restante do bando descansando no pátio de sua morada. - Capitão já ouvi falar muito do Senhor e é uma satisfação tê-lo em minha casa. Pena que eu seja pobre, pois do contrário lhe oferecia um banquete. Contudo o pouco que tenho divido com o amigo. Lampião percebeu que não havia medo no camponês e que este falava com lealdade. - Se aperreie não Serafim. O que consumirmos aqui lhe pagaremos dobrado. - Não carece não homem. Lampião insistiu: - Faço questão e não se fala mais nisso. Haviam entrado em prosa quando a dona da casa chegou à sala e Serafim se apressou a apresentá-la ao rei dos Cangaceiros e sua consorte Maria Bonita. Daí ligeiramente Maria chamou a mulher a parte e abandonou a sala; momentos depois Veado Branco e as

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outras cangaceiras adentraram direto para cozinha e foram tratar de ajeitar comida para o bando. Dois porcos que Serafim tinha no chiqueiro passaram pela faca afiada de Corisco e com o passar do tempo uma mesa foi colocada no pátio da casa aonde os cangaceiros puderam apreciar o feijão, a farofa de pão de milho, a carne dos porcos, assada e cozida, galinha na panela, mungunzá (mancunzar no linguajar nordestino) rapadura e uma boa aguardente, num verdadeiro banquete sertanejo oferecido pelo agricultor e sua consorte dona Santú Guedes. Naquelas alturas Lampião já se sentia bem à vontade com o caboclo sertanejo e estando ambos ladeados a mesa perguntou ao seu novo aliado se este não desejaria se juntar ao bando. Serafim riu a olhar para cima buscando relembrar algo perdido no tempo, aí respondeu. - Noutros tempos eu iria com prazer. Mais agora não posso. Santú ta grávida de dois meses e depois as minhas dividas pessoais já tirei a limpo bem direitinho conforme determina o homem que é homem. Corisco sentado frente a Serafim e apreciador de belos causos já foi lhe pedindo para contar sua história. - Então se conte pra gente este causo seu Serafim que somos todos ouvidos. Ao passo que os cangaceiros fizeram silencio a cear, Serafim afastou o prato de si e destravou a dentadura. - Eu tinha um irmão que se chamava Lucas, comerciante, tropeiro, que fazia linha pelas estradas dos sertões, vendendo e comprando, levando e trazendo. - Igual ao que fui um dia Serafim – Informou Lampião se calando para o outro continuar o relato. - Com o passar dos anos meu irmão foi crescendo sua tangida e seus negócios a tal ponto que um compadre seu cresceu os olhos e premeditadamente numa viagem de Lucas para São Miguel de Itaipu o homem arrumou dois comparsas e foram assaltar o fruto das negociações de meu irmão. De fato se botaram na tocaia a oito léguas de chegada a nossa casa que ficava situada no município de Cruz do Espírito Santo lá no Estado do Ceará. Daí, quando Lucas se aprochegou deles anunciaram o assalto. Meu irmão reagiu e foi morto com seus três ajudantes de comitiva e seus pertencentes foram tomados. Passou-se dois anos e até então não nos restava esperança de descobrir o autor daquele assalto. Até que um relógio de bolso com as inicias LG no fundo do dito apareceu nas mãos de um importante homem da nossa cidade. O Doutor Delegado Chico Sabonete; Ele sacou o relógio para olhar as horas em um sermão do Padre Gervásio que estava a fazer romarias por todo sertão do nosso Estado. Como minha mãe foi quem presenteara Lucas com aquele objeto, mesmo só vendo rapidamente não teve dúvidas, reconheceu a peça que dera ao meu irmão. Estando ela naquele momento em que o homem olhava as horas em pé ao lado deste, coisa que ele não notou. Arreliada, mainha me contou o que vira e aí por conta própria passei a investigar o

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referido Delegado. E em certa manha, estando ele sozinho na delegacia, adentrei ao local e me pus a conversar com ele sobre a morte de meu irmão. Aí notei que ele buscava evitar a prosa a todo custo. Inopinadamente se fazendo que fosse embora disse que já estava muito tarde e perguntei-lhe as horas. Parece que motivado pelo desejo de me ver longe dali, não pensou direito e arrastou o relógio do bolso para informar a hora; foi quando segurei seu punho e constatei por si mesmo que aquele relógio era de fato o de meu irmão assassinado. Atento ao relato Lampião terminando de comer afastou o prato a prestar atenção no final da narrativa. - E daí o que houve – Chegou a perguntar. - Como só estávamos nós dois na delegacia, antes do homem entender a minha descoberta arrastei uma faca da cintura e encostei no pescoço dele a ordenar. - Me diga agora mesmo aonde conseguiu este relógio ou você não terá tempo sequer de ver o sol de novo. Pois lhe sangro aqui mesmo seu assassino. Compreendendo que eu havia reconhecido o relógio o homem empalideceu e desandou a tremer como uma velha nervosa, daí respondeu gaguejando. - Ganhei do Cabo Miguel numa mesa de jogo mais por quê? - Ta se fazendo de besta. Este relógio era de meu irmão e foi tomado no dia que ele foi assaltado e assassinado. Vendo que eu havia descoberto o fio da meada Chico Sabonete resignou-se a me relatar o que sabia e contou-me que meu irmão fora assaltado e morto pelo Cabo Miguel o Soldado Sales e um vizinho nosso de nome Esperidião. E que ele delegado veio descobrir isto bem mais tarde; quase um ano depois. Contudo como não tinha coragem de fazer valer a lei, abandonou o causo ao esquecimento. Corisco o interrompeu demonstrando estar vivenciando o relato na integra. - Estava cada vez mais se complicando esta situação Serafim. Como você resolveu? - Sem a certeza dele estar diretamente envolvido como os que trabalhavam mais ele, e por ser o delegado um grande covarde, resolvi lhe dar um voto de credibilidade. Afinal se ele estivesse me dizendo a verdade estava a correr risco de vida por parte de seus companheiros. Bem! Resumindo. Tomei lhe o relógio e já fui direto atrás de Esperidião. Encontrei o em casa, chamei-lhe a porta e ele veio sorrindo a ejetar toda sua falsidade. Bom! Eu já estava decidido o que fazer. Quando ele se igualou a mim puxei o relógio e perguntei se ele lembrava dele? O homem mudou de cor. Tentou voltar imediatamente para o interior de sua casa. Não lhe dei tempo, o arrastei pela gola da camisa e puxando minha biguana a fiz desaparecer uma, duas, três, muitas vezes na barriga dele. Quando o larguei ele já estava morto. A mulher do moço ao ouvir o primeiro grito do marido saiu a alardear por ajuda, mas ninguém ousou chegar até nós. Assim sai caminhando até meu cavalo e voltei à delegacia aonde havia deixado o frouxo delegado. O Homem ainda estava tremendo que só vara verde. Exigi que me dissesse onde estava o Cabo e o soldado no que ele me disse a entrar ainda mais num estado de enervamento que foi preciso sentar para não cair. Visto as manchas de

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sangue em minha roupa. Voltando para casa abracei minha mãe pedi sua benção e expliquei que Lucas estava quase vingado já que os dois últimos responsáveis por sua morte estavam para desaparecer desta terra logo, logo. Sabendo eu que eles estavam a pescar de canoa numa barca no açude de pilões, no município vizinho ao nosso, cavalguei imediatamente para lá, para cobrar o que eles nos deviam. Nesta corrida, quase mato o cavalo em açoite para chegar onde os milicianos estavam. Lá chegando saltei do baio de arma na mão e caminhei direto a parede do açude. Um frangote que estava na beira da água a segurar uma vara com anzol quis correr ao me ver chegar, mais o impedi mandando se acalmar. Explicando a ele que minha questão era com outros. Aí ele me informou que na sangria do açude eu deveria encontrar a canoa e dois homens a pescar perto das margens. Ligeiramente caminhei para lá por trás da parede para que eles não me vissem, e assim que atingi a sangria subi ao topo da parede e há bem menos de cinco metros deparei com o Cabo e o soldado buscando manusear uma rede de arrasto. Não contei conversa, manuseei a lavanca do rifle e disparei gritando. - É pelo meu irmão Lucas seus assassinos safados. O Cabo virou-se perplexo e foi colhido pela bala que mirei na suas costas a adentrar em seu peito. Tombou estrebuchando dentro da canoa. O soldado foi tentar pular na água, mais com o movimento do companheiro quedando se desequilibrou e caiu na água enrolado na rede de arrasto se enroscando nela. Só não afundou depressa porque ao cair conseguiu segurar com a mão na lateral da canoa. E aí buscava se livrar das redes num aperreio descomunal sabendo que eu estava do outro lado com a arma engatilhada para despachá-lo. Num esforço sobre humano ergueu a cabeça a cima do nível da canoa estando preso o outro braço e parte do corpo na rede. Então aí mudei a posição da mira: da cabeça para a mão dele. Percebi que ele quis me dizer alguma coisa, mais já era tarde. Atirei na mão que o mantinha fora da água e pela dor do balaço o homem soltou a borda da canoa e foi arrastado para o fundo do açude. Lampião sentiu um arrepio a pensar no homem se afogando, mas falou sorrindo. - Eles mereceram. - É verdade – Disse Serafim – Depois fugi no mundo conheci Santú, me casei com ela e vim me enfiar aqui. Do tal delegado nunca soube noticias, a minha mãe; trouxe para cá onde morou comigo até os últimos dias de sua vida. Assim espero continuar por aqui até quando for possível. - É justo que seja assim – Afirmou Corisco. Olhando para Lampião Serafim resolveu indagar algo ao rei dos cangaceiros. - Também tenho algo que gostaria de saber do amigo? - Pois se diga o que é que lhe digo agora sem rodeios. - Não me leve a mal. Mais por causa da natureza ruim dos homens e de suas constantes andanças e constantes batalhas: o amigo não tem medo da traição de algum aliado ou mesmo de um cangaceiro seu?

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A esta pergunta a horda se encheu de um silêncio nervoso; visto que os próprios cabras de Virgolino desejavam saber o tratamento a algum traidor e não tinham coragem de indagá-lo sobre isto. - Pois bem – Disse Lampião – Medo eu tenho. Mais se isto ocorrer eu tento me superar no exemplo para que ninguém nunca, nem em sonho pense nisso. - Se superar como Capitão? – Perguntou o agricultor. - Uma vez teve um coiteiro frouxo que me traiu, e só não cai em esparrela porque tenho a proteção do Padre Cícero. Mais descoberto a traição juntei meus homens e adentrei na fazenda do cabra covarde. Daí o prendi e na frente da sua mulher e filhos o amarrei em quatro corcéis formidáveis, pernas e braços esticados em forma de “x” depois, Corisco fez dois disparos para o alto bem perto dos animais que amedrontados buscaram partir tentando se mandar dali. O Cangaceiro fez uma pausa a apreciar a lembrança da cena e ninguém o interrompeu. - Era uma estraladeira que só vendo. Não demorou nem um minuto direito os animais conseguiram partir, cada qual na posição que estava postado. - E o cabra Lampião - Insistiu Serafim. - Uma parte dele deve de ter chegado ao Ceará. Outra no Pernambuco e por aí vai. Serafim desta feita foi quem sorriu. - Fez bem feito. O Homem que é um traidor deve morrer devagarzinho. ... Já concluídos a refeição fizeram uma enorme fogueira no terreiro. Regados à cachaça e ao som de mulher rendeira a sanfona rasgou a noite. Sem ocorrências anormais o bando pernoitou naquele dia naquelas terras e pela manha cedinho ganharam à mata deixando mais uma amizade travada e a certeza de que nas terras de Serafim sempre seriam bem recebidos. Também a este agricultor, Lampião presenteara quatro contos de réis uma fortuna para um homem do campo naquele tempo.

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NO TEMPO DOS CANGACEIROS WANDERLEY DA SILVA MARQUES

CAPÍTULO VIII

Tendo, pois Lampião levantado das terras de Serafim Guedes, a força de informes

colhidos com alguns sequazes em determinadas regiões, arrumou o prumo no sentido do Juazeiro do Padre Cícero em alternância aos planos que trazia em mente. Nesta caminhada de retirante sem esmo nem beira aportou na localidade chamada Poço dos Andradas e por ali enviou emissários com o fito de juntar dinheiro e arregimentar mais homens. Matutava neste retorno investir novamente contra Balanços de Manoel Tentem e posteriormente a Catingueira. Concluíra o rei das caatingas que se Manoel fosse eliminado seu exemplo não seria seguido e com isso a vida dos bandos seria só um pouco mais fácil. Gozava Virgolino Ferreira de uma dispendiosa rede de informantes e coiteiros no que se obrigava a exigir dinheiro dos proprietários rurais e de quem ele julgasse necessário tomar, para manter em perfeito funcionamento sua rede de informantes e protetores. No entanto estas medidas causavam no povão uma grande rejeição no chefe cangaceiro que o viam como ladrão e tudo mais de ruim que fosse. É fato que assim o era, pois quase ninguém esperava para recebê-lo quando este se aproximava após alvissarados de sua chegada. Estava ainda no Poço quando foi informado dos contingentes que se agruparam dias atrás nas Catingueiras com o intento de uma investida maciça contra o seu bando. Acaso,

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ao invés de ficar com medo o celebre cangaceiro agradou-se do que ouviu e traçando novos planos concluiu que mataria dois coelhos de uma paulada só. A isto, reuniu seu estado maior e com estes passou a discutir um plano de ação que visava rechaçar o Balanço com sobras para a vila de Catingueira. Esta reunião no Poço ocorria em residência de Manoel de Ascindino; um rapaz velho que nunca casara e morava sozinho numa propriedade denominada Brejo do Sapo na região do Poço dos Andradas dezenove léguas pela região Sul até a Catingueira e depois o balanço. Aquela casa era enorme de tijolos firmes; a alpendrada corria pelos quatro cantos apoiada em densas e grossas toras de madeiras bem trabalhada por finos carpinteiros. O grosso do bando se espalhava nesta armação passadas grande quantidade de redes, e na sala principal do casarão secular. Sentava-se a mesa o estado maior do bando meliante, composto dos melhores cabras de Lampião; não estando naquele momento o Cabo Teles que ausente encontrava-se de viagem a sua terra natal. Os homens escutavam atentos as resoluções de Virgolino Ferreira explanando suas idéias a colocarem seus pontos de vistas no que julgavam preciso. A reunião foi demorada e ao término dela decidiram pernoitar ali mesmo para seguirem viagem com o surgir da madrugada. Os cangaceiros decidiram dividir o contingente em sete grupos iguais e que usariam a tática de guerrilha; investiam e recuavam sumindo na caatinga numa expressão de briga que julgava perfeita, até porque após a investida e o recuo a força deveria abandonar sua posição em perseguição. Assim o grupo em recuo era defendido por outros em tocaia; depois outro grupo investia por outra localidade contando com o mesmo sistema de defesa. Nisto até que tinha razão, pois o grande número de homens em movimento na caatinga, numa ação de movimento tornar-se-ia alvo fácil e de nada serviria a lei do maior número. Virgolino Ferreira nesta empreitada contava com setenta e quatro homens. As tropas que estiveram em Catingueira chegaram a reunir duzentos e vinte e sete militares. Entretanto, só um pouco mais da metade ainda permanecia naquele lugar; sendo estes homens da força publica paraibana. As demais volantes haviam por determinações superiores seguidos para o Juazeiro do Padre Cícero; aonde existiam boatos de um grande encontro de políticos nacionais para tratar de problemas com revoltosos da coluna Prestes. Cortando pelas matas a horda cangaceira caminhava no sentido da Baixa Grande; uma comunidade próxima da terra do Padre Mauro. Daquele local separar-se-iam para o ataque; por ordem: A vila de Catingueira e depois ao Balanço. Dois dias de marcha com pequenas paradas a tropa meliante espirrou na Baixa tomando por assalto a propriedade de Manoel Calango fazendo reféns sua esposa e seus filhos menores; Calango não era coiteiro, mas obrigado por proteção aos seus entes queridos foi forçado a inspecionar como espião as tropas volantes estancadas no Vilarejo. Entrementes, morava com Manoel um agregado filho da casa há quase meio século; um moreno magrelo, baixo, deficiente da voz e audição que atendia por Expedito Mouco. Somado a estas deficiências o homem era meio fraco da bola e como não falava foi ignorado pelos cangaceiros que o deixaram transitar livremente no cumprimento dos afazeres diários; já que era este quem enchia os potes de água com o galão

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nos ombros. Era também quem varria o terreiro pela manhã e quem afiava na pedra de amolar fincada no terreiro da casa até a metade, as facas, foices e facões. Expedito era quem tirava o leite das quatro vacas da propriedade e quem zelava cuidadosamente de muitos outros afazeres singelos da vida roceira. Pois bem! Este cidadão fora ignorado pelos cangaceiros num descuido que raramente Lampião deixava acontecer. Virgolino Ferreira estrategicamente dividiu os grupos passando o comando de cada a seus oficiais imediatos; estando ele neste instante sentado a mesa da sala de janta da casa grande da propriedade de Manoel Calango que após vir a Vila informou cuidadosamente o número de policiais que ainda encontravam-se no vilarejo. Contente pelas informações recebidas, ordenou que trancassem em um quarto Calango a esposa e seus filhos deixando um cangaceiro na guarda destes. Depois espalhou alguns homens em várias posições no caminho de percurso da Baixa Grande a Catingueira. Estes em total de quinze homens portaram-se embuçados na vegetação a se comunicarem em vigília do caminho. Com isto mantinham sobre controle o acesso de chegada à vila e asseguravam sua permanência na fazenda enquanto discutiam os últimos pontos para inicio da investida. Cento e vinte e cinco militares era este o número de policiais volantes agrupados na Vila a aguardar novos comandos vindos da capital. Para aprovisionamento destes homens, um pelotão era destacado dentro de um espaço de tempo determinado para fazer os transportes de mantimentos da cidade de Cajazeiras até aquele ponto quando estes escasseavam. Este pelotão estava a comando do Cabo Bentevi e compunha-se de dezesseis homens. Exatamente naquela oportunidade estavam reforçados passando de vinte homens por uma facção de subordinados do Sargento José Ciola que conhecera na vila uma donzela por nome de Judite e estava enamorado já falando em casamento. Ciola aproveitara a deixa de Bentevi ir buscar mantimentos e com alguns subordinados reforçara este pelotão para ir a Cajazeiras telegrafar ao Comandante Geral requerendo permissão para casar-se. Pedido que fora imediatamente deferido e fazia surgir no rosto do homem certo ar de felicidade. A força milite caminhava em duas filas de treze homens estando à frente o Sargento e o Cabo atentos ao caminho que vinham a cobrir. Entre as filas seis burros carregando caçuás marchavam no passo da força conduzindo os mantimentos que foram buscar. Inúmeros pares de olhos acompanhavam o passo militar na estrada carroçal tomada de mato e cortando a vegetação florescente composta de muitas árvores de denso tronco. Árvores que faziam os milicianos dispensarem toda atenção por medo de virem surgir a qualquer instante uma tocaia. O serviço de informes de Virgolino ligeiramente o pos a par do avanço dos passos milicianos; rapidamente agregando o bando decidiu começar por aquele contingente o inicio de seu ataque a Catingueira. Assim resoluto partiu para eliminar a força em avanço a vila. Tencionava emboscar os milites na altura da ladeira grande a quatro quilômetros do lugarejo. Ali os milites teriam que avançar lentamente e aí estando entre dois fogos de lados opostos da estrada cairiam como patos.

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Em casa de Manoel Calango, o clã trancado no quarto e conhecedores dos planos de ações do cangaço, decidiram que deviam fazer algo para alertar as milícias. Então, rapidamente, a consorte deste homem escrevera em uma folha de caderno informações que davam conta da presença de Lampião por ali e de seus planos e que este estava se deslocando para emboscar uma possível volante que estava a se avizinhar da vila. Contava ainda que estavam presos como reféns e que Lampião já sabia até do total de militares na Vila, que era preciso Dodô Candido e os demais cidadãos pegarem em armas. Bem como avisava por último que Manoel Tentem seria posteriormente atacado; e que se eles se juntassem agora Lampião era quem seria pego de surpresa. Colocando a folha dobrada presa na anágua abaixo da saia, a mulher veio até a porta e pediu ao vigilante que a permitisse ir ao banheiro. Acaso, naquela época e ainda hoje em muitos lares do interior, os banheiros, “privadas” ficavam situados isolados da casa, geralmente no final do muro. Isto é! Quando possuíam banheiro como aquela, já que grande partes destas vivendas era desprovida de tais e as necessidades eram feitas no mato, a céu aberto. O homem de fuzil na mão e uma cara de poucos amigos após forte insistência da mulher permitiu que ela fosse satisfazer suas necessidades. No entanto, este a acompanhou até a porta do banheiro e ali ficou postado do lado de fora. Seu comparsa levou os demais membros da família para sala e lá obrigou todos a sentarem mantendo-os sobre vigília a exceção daquele chamado Expedito Mouco, que como sempre ficara a vontade, alheio a tudo e todos. No banheiro da casa de Manoel Calango, na parte traseira havia uma pequena abertura para arejar o ambiente. Ali dentro, presa pelo vigilante à mulher ligeiramente foi até ela e de lá avistou Expedito a varrer o terreiro. Rapidamente retirou sua saia e colocou-a pela pequena abertura que só dava para passar até a metade do braço pelas quatro fendas em linhas. Ali passou a agitar a veste na esperança de que Expedito a visse e viesse olhar. Dois minutos depois o cangaceiro já a apressava para sair do banheiro e esta informava que já estava terminando para sair, que era um desarranjo intestinal e que estava a se recompor. O homem riu e relaxou por uns segundos. Arreliada ela voltou à atenção para o pergolado e ao agitar a saia teve o prazer de ver que Expedito notara. Curioso, o mudo veio até ali ver o que era no mais completo silêncio. Ao se achegar reconheceu a esposa de seu patrão e arregalou os olhos como a perguntar o que era em sinais. Ligeiramente esta lhe passou o papel escrito e usando a língua dos gestos manuais informou que era para entregar a Lauzinho Belo com urgência escondido dos cangaceiros. Expedito era mouco e meio lelé; porem já houvera anteriormente ido muitas vezes ao empório de Lauzinho comprar mantimentos escritos num papel como aquele, e sempre o fizera sem o conhecimento de outrem que não fosse seu Manoel ou sua mulher. Assim não foi difícil para ele dar cabo daquele mandado. Saindo a pé por dentro da mata cortando caminho por uma vereda que ele conhecia bem. Logo se meteu no percurso de Catingueira para cumprir com sua tarefa. Mesmo sendo o homem meio retardado, compreendeu que os seus patrões estavam apressados. Com isto veio correndo

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para dar cabo do mandado. E por aquele trajeto evitou casualmente de se encontrar com qualquer cangaceiro. Fato que veio favorecer aos Calangos. Neste momento o cangaceiro na frente da porta do banheiro impacientou-se passando a ameaçar de arrombá-la, causo a mulher demorasse mais. Só não cumpriu a ameaça por que a corajosa mulher abrira-a informando que tinha acabado. Dali foram conduzidos para o quarto e trancafiados mais uma vez. Ficando um cangaceiro a porta de entrada do cômodo e outro por fora na janela lateral. ... Antes de atingir o pé da ladeira o Sargento Zé Ciola passou a mão na testa afastando o suor corrente da face; depois alisou a barriga ordenando um alto para a tropa. Ali confabulou com Bentevi alguma coisa e como já estavam em cima de seu destino passou o comando do pelotão para este, ganhando o mato para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Após o Sargento entrar na vegetação para defecar; conforme ordenado, Bentevi seguiu a marcha. Quatro minutos depois chegavam ao pé da ladeira, que de tão íngreme: era possível a quem estivesse em seu topo avistar a vila logo abaixo encravada numa planície lá adiante. Ali, já estava Lampião e seus homens espalhados pelos dois lados da estrada de armas em riste prontos para começar o festim. Neste momento, Expedito cortando por dentro da mata corria como doido para chegar à vila a fim de fazer entrega da correspondência que carregava consigo. Zé Ciola subia as calças após evacuar as fezes e ter se limpado com folhas do mato. Teve o graduado que se jogar para frente ao sentir alguém chegando as suas costas mansamente. De fato um dos cangaceiros espiões postos na estrada ao ver o homem saindo da volante e entrando na mata compreendeu o que se passava e foi assegurar-se de eliminar o volante em silencio, sem o uso da arma de fogo, para não alardear os demais. De sorte que quando Zé se jogou para diante o cabo de um fuzil desceu impiedoso para rachar-lhe o crânio. Contudo, como este tinha se atirado para diante, a arma desceu até o chão fazendo o bote se perder. Zé Ciola Sentiu com isto o vento da morte passar junto ao seu corpo. Ao tocar o solo o coice da arma acertou as fezes defecadas por Ciola a produzir um som fofo e fazer o cangaceiro perder o equilíbrio, além de ser *saplicado pela bosta soltando um palavrão. velozmente sem ter tido tempo de fechar a braguilha o Sargento já voltou ao ataque num lance a se jogar contra o cangaceiro. Este se recompondo do avanço perdido aonde quase caíra, recebera o ataque do outro quedando ambos agatinhados a rolarem sobre si, por cima da relva e da merda que se espalhara a melar os dois contendores que segurando um, as mãos do outro buscavam dominar a peleja. Não falavam, moviam-se desprendendo toda força necessária a dominar o adverso. O cangaceiro de Lampião estando por baixo tentou alavancar o Sargento de cima de si. Só não conseguiu porque Zé percebera a manobra e redobrara sua ação em força e movimento. Nova pirueta e o cangaceiro tentou alcançar a garganta do militar para estrangulá-lo. Quando seus dedos avançando lentamente roçavam a garganta do oposto, por sorte do destino, a outra mão de Zé Ciola que avançava contra o inimigo não sendo contida pela mão

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de defesa do cangaceiro, alcançou seus olhos e entraram com força, conseguindo Ciola enfiar um dedo no olho e outro no nariz do antagônico, e fechando com firmeza a mão sentiu o cangaceiro recuar instantaneamente a mão de ataque para conter aquela que o feria. Foi o ultimo ato da vida errante do meliante. O grito da dor dilacerante ao ter o olho varado o desconcertou e Ciola conseguindo sacar da própria cinta do homem seu punhal o cravou várias vezes nas carnes do adverso. Quando parou o meliante estava morto ensangüentado com o rosto disforme e a pança esburacada de facadas. Ligeiramente o empurrou de lado e terminou de se vestir, melado de sangue e de bosta; foi aí que compreendeu a desgraça que seus homens caíram. Bentevi já relaxara na guarda por completo, ciente de que já não tardava chegar a Catingueira e que logo, logo estaria na caça dos cangaceiros que deviam estar bem longe dali. O som da surpresa do disparo foi da metade de um segundo. O Cabo caiu para trás por uma bala ter lhe rachado o crânio. Morreu sem compreender o que se passava. Lampião foi quem atirara neste. Com o disparo uma ensurdecedora descarga de tiros cortou o ambiente partindo de duas posições contra o contingente que se encontrava colhido na linha de tiro. A esta primeira saraivada de disparos, três terços da coluna quedaram mortos com balas entrando e saindo por varias partes de seus corpos. Nove mantiveram-se em pé aterrorizados sem o menor poder de reação. Quando tentaram buscar suas armas para combater os invisíveis adversários. Já! Novas frentes de balas vinham cortar seus corpos fazendo os caírem nas mais variadas posições a beijarem o chão numa viagem só de ida.. Do grosso, cinco homens fardados quedados no solo usavam os corpos dos companheiros e dos animais como escudo para resistir ao ataque dos cangaceiros. Prostrados de fuzis nas mãos um gritou a plenos pulmões. - Atira cangaceirada! Hoje a porta do inferno se abriu pra receber muita gente nossa! Mais amanha será de vocês. A estas palavras uma ensurdecedora descarga de tiros veio contra os últimos volantes baleados no solo a resistir disparando aonde lhes conviesse. Todavia cientes de suas desgraças. - Não é assim que se mata homens cangaceiros bastardos! Filhos de quengas rangueiras – Gritou outro soldado estando escorado por trás do corpo de um burro quedado a escorar seu fuzil numa perna enquanto revistava a câmara da arma para divisar que ali continha cinco balas pontiagudas. - Como é que se mata então Macaco? - Veio a indagação no mesmo tom de provocação. A praça respondeu. - Se eu pudesse ficar de pé – Este estava baleado na coxa e perdendo muito sangue – Te mostrava ladrão safado. Contudo não posso brigar. Mais mesmo assim vocês não vão se divertir as minhas custas. Agora vejam como é que um homem morre!

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Gritou a plenos pulmões. Após o alerta trouxe o cano de sua arma para dentro da boca e acionou o gatilho da arma. O disparo estourou seus miolos que voaram em mil pedaços. Lampião se bendizeu assistindo a cena na distancia. - É uma pena um cabra desses ta do outro lado. Terminem com isso. Ligeiramente a facção se movimentou apertando o cerco e com mais algumas detonações a volante perecera por completo a exceção do Sargento. O Sargento Ciola localizando os sons dos disparos e consciente que nada podia fazer, ajuntou toda sua ira e raiva sentida a meter-se numa corrida para a vila evitando aonde se encontrava os homens de Tocaia. Neste ponto. Expedito Mouco em desabalada carreira adentrava na vila a correr chamando atenção do povo local. Os sons de alguns disparos chegaram forte dentro da vila despertando a tropa que já se ponha de pé prontos para ir ao encontro de aonde vinham os disparos. Todavia, o Tenente Paiva ao notar aquele homem correndo determinou a tropa que permanecesse no local que só sairiam após seu retorno. Dali já correu para onde havia entrado o homem que vira acabar de chegar. Impaciente a tropa já se fez pronta para vir pela estrada e cortando pela vegetação. Entrementes, deveriam aguardar o comando do Tenente que em casa de Lauzinho foi o segundo a ler a missiva de Bastiana a esposa de Manoel Calango. Assim a par dos planos de Virgolino em dividir o seu bando em grupos num sistema de guerrilha; coisa que nem ele esperava, adotou a mesma medida e enquanto o povo do lugarejo se organizava formando grupo de defensores. Dividiu suas tropas em dez equipes e se meteu pela estrada e vegetação vindo na direção de onde escutara os primeiros disparos. Por determinação do Padre um emissário a cavalo partiu velozmente para alertar ao povo do Balanço para de lá vir com os que pudessem contar para enfrentar Lampião. Próximo da cena da tocaia, Lampião ordenou dois grupos avançarem mais para perto da cidade para atacar quem ousasse sair de dentro dos domínios urbanos e um terceiro investir contra a volante ali situada ou em movimento a fim de arrastá-los ao interior da caatinga aonde os emboscaria com os grupos espalhados. Na casa de Manoel Calango, naquele instante aportavam mais dois grupos de cangaceiros para se unirem a Lampião mandados por Antônio Silvino. Um grupo tinha a frente um mestiço de nome Cancão de Fogo e compunha-se de sete homens. O outro de oito homens vinha das bandas de Maciço Velho e era liderado por Chico Pereira, cangaceiro perverso e de ações truculentas contra o sofrido povo sertanejo. As ações de Chico Pereira espalhavam-se por muitos lugares, entretanto o que ocorria a ele ocorria a outros pequenos grupos de meliantes. Faziam suas atrocidades e às vezes a culpa era imposta a Lampião, cujo nome era o maior naquele meio de vida errante. Estes recém chegados após informações dos dois cangaceiros na guarda dos proprietários desceram pela estrada em passo rápido a fim de encontrarem com Virgolino e reforçarem seu bando.

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Parece que a força do destino empurrava muitos homens para a terra dos mortos caminhando com seus próprios pés, naquele momento que o sol mudava a tonalidade passando do meio dia, boa hora para um funeral. ... No campo de briga avançava a tropa militar em seus vários contingentes espalhados e bem próximos a se cobrirem conforme planos determinados pelo Tenente, pela mata e bem perto do aceiro da rodagem. Ação esta que não era esperada pelo rei do cangaço. Em Catingueira mais de vinte voluntários se armaram para garantir a vila e houve uns poucos que seguiram com os militares naquela marcha de guerra. Os milites avançavam em várias linhas divididas com uma escolhida a dedo no caminho da estrada. Era composta pelos mais corajosos e destemidos homens da força publica; as demais cobriam este avanço em encontro ao rei dos marginais que se surpreendeu mediante esta manobra. Menos de uma hora depois os grupos enviados por Lampião deram de cara com a volante que vinha pela estrada e com sua cobertura, o mesmo ocorria com os cangaceiros que foram ordenados a controlar a cidade; depararam-se com guarnições defensoras e pequenas patrulhas militares travando com o encontro ligeiro e violento tiroteio que desta feita custou à vida de vinte e nove cangaceiros e apenas de quatro milicianos que além de abrirem caminho rechaçaram três patrulhas inimigas, ficando estes há menos de um quilometro de Lampião. Aquele, notadamente percebendo o fiasco da intentona e o risco que passou a correr ordenou a retirada dos seus em direção ao Balanço. Ocorrendo aí troca de disparos dentre os que recuavam e os milicianos que avançavam sedentos de sangue e motivados pelo desejo de vingança ao descobrirem seus camaradas mortos na descida da ladeira grande. A esta cena os esforços da milícia acresceu em vontade e aos poucos neste recuo agora desesperado de Virgolino em sair com vida por dentro da campina aqui e acolá um cangaceiro pendia beijando o solo caindo varado de balas. Proporcionalmente, enquanto a milícia de Paiva derrubava cinco, seis opostos apenas um dos seus caía. Nesta ação de guerra em pleno sertão os cangaceiros sentiram o peso da morte abater-se sobre eles conforme predestinara aquele miliciano que se matara horas atrás. No Balanço, Manoel Tentem reuniu quarenta e sete homens que no lombo de cavalos galoparam apressados para Catingueira no intento de se unir aos defensores do arraial contra a horda maléfica. Pela estrada que dava a vila avançava os homens de Cancão de fogo e Chico Pereira sobre a força de suas botas já que apenas os lideres dispunham de montaria. Quando atingiram a ladeira e viram os corpos espalhados dos milicianos sorriram felizes e satisfeitos com a certeza de que Catingueira já devia ter caído. Os sons dos disparos escutados dentro da mata soava para eles como se fossem os seus camaradas eliminando mais macacos, já que estavam a par da estratégia de Lampião no ataque elaborado anteriormente. Também pela razão de que até ali não avistaram quase nenhum corpo de cangaceiro, mais muito de polícia. Todavia, dois quilômetros à frente eles

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notariam o inverso da situação, já que neste local as hordas começaram a ser dizimadas. Mesmo assim seguiram em frente por acharem que ali residiu toda resistência da Vila. Neste instante o Sargento Zé Ciola chegava à Vila e após lavar-se e livrar-se da farda juntava-se a Dodô Cândido na defesa do arraial informando da desgraça com seus homens e contando como conseguira escapara pela sorte do destino. A história causaria boa risada se à hora não fosse imprópria e se o perigo iminente ainda não existisse totalmente. Pois teriam que se manter vigis até o retorno de alguém da milícia a informar de como terminara o combate dentro da mata. Drasticamente Virgolino Ferreira sentia na pela o resultado da incursão dos homens daquele valente Oficial que já se posicionara duas vezes frente a ele numa troca de desaforos e elogios outros que sempre culminavam numa ação de recuo do bando marginal pela força dobrada das armas contra eles. Acaso, o bando estava reduzido a vinte e sete homens já que muitos corpos se espalhavam dentro da vegetação mortos em combate. Assim: sentindo o peso da ação miliciana e sabedor que Balanço tinha um osso duro de roer o Rei do Cangaço ordenou a fuga imediata daquele local e ao preço de mais oito vidas do seu grupo desistiram do confronto preocupando-se a despistarem a tropa perseguidora sedenta de sangue. Como Virgolino Ferreira era mestre neste tipo de escapatória conseguiu sobressair-se da implacável perseguição do Tenente Paiva e de seus homens estando ele próprio ferido no ombro. O Tenente percebendo a desistência dos cangaceiros em enfrentá-los reuniu seus homens e varreu palmo a palmo a região do confronto resgatando os corpos dos cangaceiros para levarem até a vila. O Mudo que voltava para Baixa Grande pela estrada em certo trecho, bem antes da ladeira e depois do local aonde havia muitos cangaceiros mortos, do primeiro encontro da milícia do Tenente com estes, notou o avanço daqueles que vinha pela estrada no sentindo da Baixa Grande. Velozmente retornou nos calcanhares para a cidadela alertando por sinais que vinha mais pela estrada. Dodô Candido, Abel Moreira e muitos outros se posicionaram para receber a visita daqueles que surgiam pela estrada a passo rápido. Cientes pelo cessar dos disparos que a vila era deles. Quando aqueles homens depararam pela estrada com muitos outros corpos caídos de seus companheiros antes da cidade. Estancaram aperreados buscando compreender o que se passara. Já que a graça da dúvida começou a intimidá-los. Foi aqui que revistaram os corpos e contaram dezessete; porém como sabiam que o bando era imensamente maior do que aquele número e não encontrando Lampião entre os quedados a maioria deles acreditou erroneamente que aqueles homens haviam avançado descobertos e foram pegos pelos militares mortos na ladeira. Foi assim que explicaram esta situação para eles mesmos. Com Canção de Fogo empregando a seguinte narrativa: - “A patrulha em avanço rechaçou a primeira linha cangaceira e aí continuou avançando, mais adiante foi também rechaçada por Lampião que estava agora na vila ou nos arredores dela caçando algum fugitivo”.

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Concluíram, debateram sobre esta possibilidade e acreditaram nela. Bem como passaram a ter certeza de que havia muito mais militares mortos na vila e por dentro das matas aonde escutaram há bem pouco tempo o som de muitas detonações. Crentes neste equivoco vieram e foram adentrando a vencerem as primeiras casas do arraial que estavam de portas e janelas batidas. Após vencerem a metade da rua principal do vilarejo foi que desconfiaram pelo silêncio reinante que algo estava errado. Mas aí já era tarde demais. Nena Belém posicionada na torre da igreja segurou seu fuzil com firmeza e acionou o gatilho estando a cobrir o cangaceiro um pouco mais a frente. Era Cancão de fogo. Era, e foi finado depois que ela atirou. Após isto Dodô fez abrir a porta da casa que estava embuçado e descarregou suas arma numa precisão assustadora. Ao mesmo tempo muitas janelas e portas se abriram a cuspir fogo contra os homens que estavam na rua. Chico Pereira, notando a desgraça se avizinhar, fez seu cavalo dar meia volta e aos açoites de seu chicote sumiu por entre seus homens que ali buscavam revidar ao ataque. Por milagre o homem conseguiu desaparecer debaixo da chuva de balas que vinha contra ele. Os defensores da vila e os reforços do Balanço comandados por Manoel Tentem logo decretaram a extinção do reforço enviado por Silvino que um a um sentiram o mesmo drama da volante do Sargento Zé Ciola, caprichosamente disparando em seus alvos a deixar correr uma lagrima em seu rosto; possivelmente relembrando de seus companheiros caídos horas atrás. O Padre Mauro orando em pé de crucifixo na mão e segurando com a outra um rifle papo amarelo assistia de dentro da igreja a degringolada marginal. Matutava com seus botões que só usaria a arma se algum cangaceiro invadisse a igreja, aí ele mesmo se encarregaria de despachar o arrogante autor desta proeza. Coisa que não aconteceu, pois em menos de cinco minutos o bando estava reduzido a uma porção de cadáveres a encher a rua principal do vilarejo. Após o termino dos disparos a população veio confirmar o resultado daquela incursão Sabedor que havia uma facção miliciana nos arredores Tentem esperou o retorno do Comandante para se juntar a este em possíveis diligencias na caça aos fugitivos. Diligencias que por razões especificas e desvantajosas ao militares ainda separados em pequenas patrulhas o Tenente achou por bem suspender. Mesmo por que havia muito trabalho para ser realizado nas identificações dos mortos, militares e cangaceiros. Assim, formaram um mutirão para juntar os quedados em combate e algum tempo depois os voluntários e militares retornavam a vila conduzindo aquela macabra carga de muitos mortos sendo a grande maioria cangaceiros. Os militares foram ensacados em sacos de estopas, pois não havia caixão para todos e emalados sobre três carros de bois para serem levados a cidade de Cajazeiras, para o devido sepultamento com honras militares. Os cangaceiros tiveram suas cabeças decepadas e salgadas, foram colocadas em sacos também de estopa para serem entregues ao comando policial daqueles homens para os devidos fins. Os corpos destes por sua vez foram sepultados todos juntos numa grande vala cavada pelo povo da vila. Se quer fazer alguma prece para estes o padre foi, muito menos permitiu algum religioso encomendar aquela gente, que para ele não passava de lixo. “Disse que não mereciam, era causa perdida”.

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Na Baixa Grande com a demora de alguém para vir lhes avisar da incursão conforme combinado, os dois meliantes que ficaram na guarda da família Calango resolveram com a delonga abandonar aquela gente e cair no mato para descobrir o que estava acontecendo. Com isto lograram sair vivos daquela jornada. O Sino bateu anunciando a hora do anjo e o povo veio rezar em homenagem aos milicianos emboscados e também em honra dos civis da vila que caíram no confronto. Manoel Calango, Dona Bastiana com seus filhos e o mudo; além de muitos moradores arredores vieram para catingueira naquela hora. O sermão do Padre não foi diferente de outros. Porém apesar das perdas milicianas um sorriso especial abria se em seus lábios. Lampião fora botado para correr e tão cedo não apareceria de novo por ali. ... No dia seguinte, muito longe dali: Virgolino Ferreira, suado, cansado, abraçado por Maria Bonita seguido pelos remanescentes de sua tropa caminhavam cabisbaixos, sem darem o menor pio. Mulher rendeira estava afogada na goela daqueles machões acostumados a vencerem. Caminharam todo o dia sem fazer parada quando o escuro da noite reinou absoluto estes desapareceram como fantasmas no meio das trevas em avanço para o estado do Pernambuco. Corria aqui o ultimo dia do mês de julho do ano mil novecentos e trinta e oito (1938). Sentado numa pedra insólita e solitária dentro da campina sertaneja um homem fardado fazia anotações em seu caderno era o comandante daquela facção ali repousando; chamava se João Bezerra, Tenente da polícia alagoana, que ao surgir dos primeiros raios solares levantou acampamento tomando a direção de um coiteiro de Virgolino Ferreira nas imediações de Angicos. Vinte e oito dias depois; Virgolino Ferreira se viu de novo a frente de outra volante e de outro Tenente. Era o fim de uma época. FIM

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Catingueira, atual Cachoeira dos Índios por sua posição geográfica entre estados,

foi e é ponto de passagem obrigatório a quem trafega da Paraíba para o Ceará ou vice versa. Muitas vezes Lampião esteve por cá, chegou a causar mortes e o mito de uma botija ainda hoje rodeia uma fazenda na atual localidade de Baraúnas em nosso município. O historiador Zé Antônio com ajuda de Abel Moreira certa vez descreveu alguns fatos aqui ocorridos que foram muito bem relembrados e é um registro vivo da historia daquela época quando Catingueira, hoje Cachoeira pertencia ao município de Cajazeiras. O nome de muitos personagens e os dramas vividos neste romance são sonhos e devaneios deste autor em homenagear amigos de hoje e de ontem. Porém Manoel Tentem no Balanço dentre todos merece um destaque especial; pois como proprietário de terras, grande latifundiário fez frente à Virgolino que nuca botou os pés naquelas terras. Se Lampião tinha vinte trinta cabras; Tentem contava com mais e junto a sua valentia destemida dizia sempre aos emissários de Virgolino quando vinham exigir dinheiro. - Diga a ele que se for homem venha buscar o que ele quer. Lampião nunca foi. O Balanço permaneceu intocável enquanto vila pelos homens do cangaço. Permanece intocável no desenvolvimento, talvez por sua posição geográfica muita acidentada. Não tive o prazer de saber o verdadeiro nome deste homem já que tais fatos me foram passados quando eu era criança por José Feitosa, comerciante deficiente que muitas vezes esteve frente a frente com Virgolino em sua casa e por quem o cangaceiro demonstrava respeito, hoje de saudosa memória e que me inspirou um personagem neste livro. Porem João de Sousa um ancião de mais de setenta anos residente em nossa cidade pode lhe dizer e confirmar tais informações. O Cangaço passou, mas as injustiças perduram até hoje, Os nomes dos personagens deste romance é minha homenagem às pessoas que aqui vivem ou viveram. Minha amada Cachoeira terra de meus pais e meus avós, irmãos e irmãs. De minha esposa e meus quatro filhos a quem dedico esta epopéia. Wanderley da Silva Marques

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(LIVRO 3)

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CAPÍTULO

1º e único - Uma estória de muito sangue com muitas mortes

OS HOMENS DA SERRA DO QUATI

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Wanderley da Silva Marques

Havia fascínio ao olhar para aquela serra. Na distancia destacava-se o verde das

copas das árvores e um azul escuro quase chegando ao verde em nuances insinuativas de imagens projetadas pelos contornos naturais daquela grandiosa formação. As cadeias rochosas estão presentes por quase todo seio da serra, ladeado por uma vegetação exuberante e típica daquela geografia como os cocos catolés, existentes apenas ao longo da cordilheira de pedras formadora de figuras e lendas inimagináveis aos desconhecidos a citar as Caiporas a Pedra da Moça, lendas contadas e acreditadas pelos simplacheirões sertanejos moradores dos sítios Serrote, Boa Fé e Caiçaras, situados ao sopé da montanha a volteá-la em todas as direções no solo da atual Cachoeira dos Índios, antiga Catingueira. O solo destas áreas na maior parte é vermelho vivo e muito fecundo a relembrar certamente a luta dos pioneiros que o regaram com sangue em tempos idos, desbravando aquele torrão na força braçal, moldando a terra para uma condição que melhor lhes favorecesse tirar o sustento das abastadas lavoras cultivadas a enxadas, foices e chibancas depois do roço, broca e queima. Este solo respondia aos seus moradores com grandes safras em resposta as suas labutas, sendo que da fauna e da flora exploravam ainda a boa caça e a madeira para construção. No entanto, era uma época difícil, um tempo duro, de homens e mulheres rudes de pouco conhecimento e nenhuma leitura as suas próprias existências era um legado de aventuras. Também não havia escolas, meio de transporte se não o de animal, energia elétrica era um sonho distante, grande ou pequeno qualquer conforto dos tempos atuais eram uma raridade absoluta. Tinham, porém, um respeitável código de leis e uma fé inabalada e a religião caminhava a frente destes clãs. Era de fato uma época dura, seca, reta, sem curvas. Mesmo contra as intempéries por falta de cultura daquele tempo, desenvolveram o famoso Código de Honra da palavra empenhada “palavra de Homem não volta atrás”, ela valia mais do que a própria escrita e na defesa e cumprimento desta, matavam ou morriam, cumpriam a custo do que fosse a aplicação deste código de valores moral. As palavras quando empenhadas, em publico ou não, tinha a força da fé, estava acima da própria existência de quem empenhara, pois valia pela honra deste empenhante e também de todos de sua família. Assim cumpriam a risca uma promessa e aos poucos que ousavam desobedecer estes critérios rapidamente perdiam o respeito às amizades e tornava-se um ente mal visto no seio aonde residia, fazendo logo de imediato com este buscasse se retratar ou então sair dali para recomeçar noutro canto tal era a desgraça de não se ter palavra; pois ai do infeliz alterador deste código. Quem o quebrasse tornava-se um homem sem valor e ninguém confiava nele, o tinham como um imprestável. Os homens desta época eram amigos leais, sinceros, bons patriarcas, absolutos paternalistas, tendo suas companheiras papeis secundários aos seus, todavia respeitavam e amavam suas mulheres; rudes nos modos, gentis no coração, religiosos coesos, e... Inimigos terríveis quando explodiam em contenda, usando daí dos meios que podiam, já que ninguém

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tinha medo de ninguém e um mais forte bater noutro mais fraco era assinar sua sentença de morte, já que imperava o jargão “em homem não se bate, se mata”. Viviam intensamente dentro das suas limitações, topando de frente uma peleja já que a desmoralização era uma sentença de desgraça, muitas das vezes só corrigida com sangue. Daí o adágio “a honra de um homem só se lava com sangue” Entretanto é preciso que se compreenda que tinha de ser mesmo assim, pela força do tempo e pela ausência da saúde, educação, segurança, etc., este código é o responsável direto pelo que temos hoje; direi com convicção que foi o principio das nossas leis, pena que parte daquele código foi desvirtuado e caminhou para o lado ruim, nos legando situações indesejáveis que vivenciamos dia a dia. Certamente os pioneiros, lá de cima estão tristes pelo esquecimento das suas heranças. Mas, quiçá, todavia, Oxalá... Voltando no fio do tempo, caminhemos para mil oitocentos e noventa e sete (1897) para as terras do Sitio Serrote do Quati. Em meados do mês de abril deste ano, eclodiu a intriga dos Angelinos com os Aparecidos, habitantes no sopé da montanha; intriga esta que se arrastou por muitos anos e que teve inicio quando João Angelino embuchou antes do casamento, sua noiva Doroteia, filha de Pedro Aparecido. Revoltado com a situação pela vergonha que caiu sobre sua família, armou-se da faca e arcabuz e foi ter direto com o futuro genro, tão logo soube da desgraça. Em casa dos Angelinos a conversa descambou para discussão e culminou em briga e se João Angelino sobreviveu a Pedro foi graças à intervenção de seu pai. O velho Adonias Angelino disparou à pequena distancia um tiro de socadeira de grosso calibre nas costas de Pedro Aparecido no exato instante em que seu filho fora derrubado com um soco e já seu agressor sacava da cintura sua peixeira para sangrá-lo. A detonação antecedeu os movimentos de Pedro ecoando ensurdecedor por dentro de casa fazendo Pedro ser empurrado pelo impacto dos projeteis a sair porta a fora tombando no terreiro de chegada, aos pés de seu cavalo. Adonias e João, então, atravessaram o corpo do morto na sela de seu animal e o conduziram de volta a sua residência para sua esposa e filhos. Estes o receberam no mais completo silêncio, nenhuma única palavra foi trocada naquele momento. Sabiam estes que aquilo poderia ocorrer desde que Pedro saíra para ter com os Angelinos. Pedro Aparecido só possuía um varão, os demais eram mulheres em número de três que com a mãe somavam quatro fêmeas em casa; sem esquecer que entre estas estava Doroteia, a grávida do responsável pela morte de seu pai. Depois de entregado o corpo Adonias e João retornaram para casa; não precisavam fugir ou dar satisfação qualquer para ninguém, cuidasse para não sofrer represálias que do resto o ano, o século encarregavam-se de tratar. Aquele período era propicio a estas situações. A lei, quando dois clãs entravam em atrito, prevalecia “a do mais forte” ou então quando um lado se retirava dando por acabado ou ainda se chegava ao fim de uma contenda pela extinção dos adversos. Prevalecia o uso da força. Assim não poderia ser diferente a estas famílias. Uma semana depois da primeira morte veios as segundas. Adonias e João retornavam certa tarde com o cair do sol de uma viagem feita à vila da Baixa Grande, aonde

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foram ver umas reses para a compra, quando em certo trecho do caminho se viram cercados por três homens da família Aparecido que saíram de dentro do mato já de espingardas engatilhadas na posição de mira; não ouve conversa ou troca de vocábulos, os tocaiados sabiam o que tinham de fazer e já foram tentando uma reação em busca de suas armas. Reação inútil pela vantagem do numero e posição das armas do trio que antes estava embuçado. Pai e filho tombaram arrancados de suas selas pela varredura do chumbo flamejante a atravessar-lhes os corpos numa carga mortífera que os cuspiu ao solo. Terminada a tocais os Aparecidos sumiram dali para retornar as suas vidas. No terreno o sangue fluente de mais duas vitimas clamavam numa prece silenciosa, pedindo vingança. Serra do Quati, de uma hora para outra virara palco de guerra; bem sabia disto as outras famílias que assistiam passiveis a explosão de brigas entre aquelas duas famílias. Ali residiam, Os Nóbregas pela parte do meu avô, os Querubinos, Algustins, Leites e Avelinos. O próximo a tombar foi um irmão do finado Pedro, chamava-se Almeida; estando o homem a capinar no roçado de facão na cintura, enxada na mão e tiracolo uma inseparável bate bucha, sentiu surgirem vindo de dentro da mata em galope na sua direção dois homens fortemente armados. Rapidamente, bateu de mão da espingarda e disparou no mais adiantado. Errou o alvo, acertando um cantil preso a cela do baio a ferir de raspão cavaleiro e montaria. O cavalo ao sentir a ardência da queimação freou estaticamente arremessando seu montador por sobre sua cabeça numa queda fantástica, fazendo o quedado rolar no terreno e parar inerte sem outro movimento qualquer dando a impressão de ter morrido. O segundo atacante a estas ações disparou sua arma sobre o roceiro. Contudo foi infeliz no tiro, pois o homem saltara de lado a proteger-se do balaço. Contudo o atacante conseguiu encostar-se ao agricultor e do jeito que vinha a galope saltou do cavalo em cima de sua vitima. Não quisera atropelá-lo com o cavalo por temer a defesa do outro e ficar na seqüência de costas ao adverso. Com isso preferira atracar-se ao oposto rolando pelo terreno em luta corporal. Nos movimentos agaturrados amassaram a vegetação rasteira e as covas de milho e feijão por muitos metros. Aquele quedado do cavalo, nesse ínterim, levantou-se meio zonzo a ver as coisas girando e uma centena de pontos luminosos a voltear em sua cabeça. Fechando os olhos com força, trincou os dentes e balançou-a buscando espantar a tonteira; foi quando divisou seu comparsa agarrado ao homem que viera matar. Recomposto pela necessidade, sacou do cano da bota um punhal pontiagudo chamado lambe-lambe e partiu correndo para onde rolava a peleja. Naquele momento Almeida levava vantagem no desafio e tinha conseguido rolar sobre o atacante fazendo o homem ficar por baixo dele, enquanto que com a mão direita apertava seu pescoço enforcando, com a outra livre, buscava arrastar seu facão para terminar a peleja, já que o dominado fisicamente mais fraco usava suas duas mãos para tentar diminuir a pressão sofrida em volta da jugular. Sem perceber a aproximação do primeiro homem da dupla pelo calor da briga, também por já julga-lo morto, Almeida Aparecido, só sentiu o seu equivoco quando sentiu suas entranhas sendo dilacerada em cortes por uma dor indescritível da fisgada do punhal; depois, outra e mais outra e muitas mais. Estas fisgadas o levaram a realidade e a compreensão para causar-lhe um esmorecimento repentino, fazendo

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largar do dominado por sua impressionante força braçal. Depois, exangue olhou para seu atacante traiçoeiro, virando-se de lado ao tempo que era empurrado pelo homem que estava debaixo de si, tombando de banda a entrar em espasmos de morte. Na seqüência seu carrasco ajudou o comparsa a levantar-se e depois rilhando os dentes assistiu Almeida se esvair em sangue ainda tremelicando qual um bicho sacrificado. Impacientando-se pela demora em morrer do fadado campônio, aquele que estivera prestes a ser estrangulado por Almeida, apossou-se de seu facão e desferiu um certeiro golpe no pescoço da vitima, apartando a cabeça do corpo e terminando o suplicio do desafortunado agricultor. Depois de consumado o que vieram fazer ali, sumiram em suas montarias retornando aos seus afazeres diários, e, mais uma vez um sangue derramado pedia outro em troca. Cumprindo a rotina de que a cada vitima tombada a vingança se fazia latente, precisa, igual aos desejos ocultos de uma virgem a se tornar mulher. Com isto, no momento oportuno alguém tombaria perdendo a vida sem que houvesse necessidades de haver uma seqüência lógica de um por um, poderia ser dois, três, quatro ou até mais. Bastaria a iniciativa de quem tivesse mais coragem e vontade de atiçar a fogueira da desavença e da desgraça. Ao acaso, houve um período de paz, sem mortes, contradizendo as perspectivas da renhida intriga; quase um ano. Neste meio tempo nasceram os filhos gêmeos de João Angelino com Doroteia Aparecido; estas crianças trouxeram consigo a pecha da inimizade e o sangue fluente em suas veias dos dois clãs. Poderia; se aquela gente fosse habitante de uma outra época ser o símbolo da paz e o ponto de um armistício entre aquele povo. Quiçá! Só poderia! Em casa de sua mãe, Doroteia sofria humilhações e xingamentos, tanto da genitora como das irmãs, além de um desprezo total por parte de todos com o sobrenome de seu pai. Antes mesmo dos meninos completarem seis meses em meio aos sofrimentos impostos por culparem-na como a causadora de toda ruína que se abateram entre eles, “acusações que a estavam levando a beira da loucura”. Doroteia decidiu certo dia dar cabo de sua infeliz vida, bem como as de suas crias. Para tanto, numa manha de sol forte caminhou com as crianças até o açude das caiçaras e ali passou horas a fio a contemplar o fio da lamina de água brilhante ao ser atingida pelo astro rei. Entretanto, quanto mais tempo passava meditando no transloucado ato mais a coragem lhe fugia; em dado momento os pirralhos riram para ela e aí a coragem de se matar bem como a eles evaporara-se por completo. Abraçando cheia de amor as crianças, beijou-lhes as testas e aí adquiriu uma outra expressão no semblante, como se algo tivesse morrido dentro dela. Depois disto ela sumiu, desapareceu sem deixar o menor vestígio ou sinal de sua existência, já que as crias? É claro! Foram com ela. Dos dois clãs o inventário humano daquela gente depois das mortes, ficou assim estabelecido: dos Aparecidos, a viúva de Pedro, duas filhas, o filho varão e um sobrinho deste primeiro sendo cria de Almeida com o nome de Amaro; este desde a morte do pai mudara-se para casa de uma tia irmã de sua mãe que também fôra junta; dos Angelinos, um irmão de Adonias residindo perto da Baixa Grande numa fazenda com seu filho e mulher, além de um outro homem chamado Edmundo Angelino um tísico que mal saia de casa por viver a beira da

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morte pelos fortes acessos da doença morando este na vila em companhia de sua mãe já viúva e de idade muito avançada. Neste ponto é devida uma explicação para se entender adiante; às vezes os nomes das mães de alguns personagens não foram citados aqui por serem oriundas de outros clãs e só ganharam destaques quando surgiram para fazer valer o peso de suas vinditas. No término do ano de mil oitocentos e noventa e nove, depois de uma trégua prolongada, as mortes recomeçaram. Lazaro Aparecido, o filho varão de Pedro, mostrava-se um homem de paz apesar da briga ter começado com a morte de seu pai, pregava a paz e a reconciliação e tanto se esmerou nesta empreitada que certamente aquele período amistoso deva ter existido em função dele. No entanto sua aparente calma e zelo pela paz era um engodo premeditado já que havia meses em elaboração de um plano junto com seu primo de nome Amaro contra todos os antagônicos do clã adverso e quando assim procedessem os Angelinos sumiriam da face da terra. Ocorreu, porém, que tendo Amaro ido pescar no açude de caiçaras, jamais retornou; foi encontrado no dia seguinte afogado nas águas pacificas do gigante reservatório moldado à mão humana. Sua genitora não suportando a perda de seu ente sentiu uma pontada no coração e logo outras a procederam a rasgar-lhe as entranhas. Das pontadas outros malefícios físicos a imolaram a dominar seu corpo abatido e nestes termos não sobrou outro caminho se não o da terra dos pés juntos; morreu roxa, roxa, levando consigo a desconfiança que seu filho fora afogado. Foram enterrados pela tarde com um dia de diferença de um sepultamento a outro e diante destes novos ocorridos, Joana Maria Caprichosa Aparecido desconfiada que Lazaro seu filho tencionava alguma coisa, resolveu para não vê-lo morto, crente que o arrastaria consigo, vender suas terras e ir embora do Serrote do Quati. Assim pensado, assim feito. Dias depois desapareceu no mundo, porém só ela e as filhas, já que o mancebo bateu pé, fez birra e rejeitou todos os argumentos para ir embora, informando desta feita que ficaria nas terras do seu tio, prometendo ainda a sua mãe que nada iria acontecer já que a paz iria prevalecer. Sua mãe vendo que nada mudaria o filho, decidiu tristemente seguir adiante; poderia a qualquer momento quando os homens se acabassem: recaírem as mortes sobre elas, desta forma salvaria a si e as filhas. Decidida seguiu seu destino partindo daquele rincão sabendo Deus para onde. Nenhum vivente presenciara ou sabia como Amaro morrera afogado, todavia alguns hematomas espalhados por seu corpo fizeram rapidamente correr os boatos de afogamento por assassinato e com isto mais rápido decidiu agir seu primo, as surdinas em tudo, haja vista suas pregações de paz em campo aberto o favorecer. Para todos era um homem de paz que vivia para a paz. Não ao acaso esta pregação lhe garantiu não ser importunado. Dividindo-se a opinião local sobre ele de duas formas: uma que a paz era a cura para o fim de tudo. A segunda fazia alguns crerem que ele era muito mais um covarde que qualquer outra coisa. Porém ele mesmo pouco se importava com o que pensavam dele; já tinha suas idéias e saberia colocá-las em pratica quando fosse possível. Em determinado dia um Padre saiu da Baixa Grande e veio ao Serrote do Quati pedir numa pregação que aquela briga chegasse ao

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fim no que conseguiu em parte o comprometimento de alguns. Como Lazaro era um esmero incentivador desta bandeira foi logo pelo vigário tomado como exemplo desta pratica e tão eloqüente foi o religioso que os demais clãs começaram a crer que o mancebo era quem estava certo. “Coração é terra que ninguém anda e como não pode ser explorada não se é possível decifrar o que por lá existe” Certa noite, com a fresca da brisa surgiu no caminho para a vila a açoitar a montaria sem dó nem piedade um vaqueiro a galopar seu alazão; vinha num galope desvairado. Somente os sons dos cascos do animal foram notados quando este passou ao lado da pequena rua de três casas. Naquela hora já rodavam os primeiros momentos da madrugada. O cavaleiro chegando ao seu destino numa casinha sem reboco, isolada das demais foi até a porta frontal e afinando a voz a parecer com a de uma mulher chamou pelo nome do morador da simplória. Poucos segundos depois uma tosse seca e um resmungo veio lá de dentro acompanhado de passos em direção a porta. O Homem que não dormira a noite inteira por conseqüência dos espasmos de tosse que lhe sufocavam acompanhado da falta de ar ouvira o chamado e até pensara ser uma de suas vizinhas pelo timbre que escutara. “Edmundo!” repetiu-se o chamado. Esgotado pelo estado de fraqueza e sem raciocinar com perfeição na situação de inimizade que seu clã estava enfiado destravou a tranqueta que escorava a porta para ver quem era. Quando passou a metade do corpo por sobre a porta inferior buscando apurar a vista turva, sentiu-se agarrado por um par de braços fortíssimos em forma de gravata que o prenderam com uma violência impressionante; logo o ar que já era pouco foi bloqueado em sua garganta e suas veias começaram a inchar; em vão tentou ainda livrar-se do abraço mortal, porém pelo seu elevado estado de fraqueza logo cedeu à pressão e em menos de um minuto seus pulmões estouraram pela conseqüente pressão sofrida no conjunto de ações que começaram pelo impedimento da entrada do ar por suas narinas e boca. O homem debateu-se desesperado, mas logo amoleceu sucumbindo. Seus músculos se retesaram e deixou pender as mãos. O assassino ciente de ter cumprindo seu papel, largou o corpo deixando-o pendurado a passar metade por sobre a parte inferior da porta que continuava fechada. Na seqüência desapareceu da mesma forma como surgira em meio ao escuro e o silencio reinante só cortado pelo cantar de um ou outro galo. Ninguém mesmo, nem a velha mãe do morto percebera aquela desgraça. Um pouco afastado dali, em casa do ultimo irmão vivo de Adonias a movimentação da labuta diária já se iniciava e este com o cantar do relógio sertanejo já se ponha de pé para iniciar sua lida. Corria a quinta hora da madrugada neste preciso momento em que também, um vulto negro caminhava agachado por trás de uma faxina com arma nas mãos prometendo a si mesmo extinguir com os últimos Angelinos. Ao segundo cantar do galo o agricultor abriu a porta da cozinha e saiu bocejando em direção ao pequeno curral no muro da casa aonde se encontravam quatro reses. Ao chegar junto dos animais ajeitou um banquinho na posição mais adequada e levou um balde para baixo das tetas da primeira vaca. Neste ponto o cano de uma arma foi escorado por entre as varas entrelaçadas da faxina e posta em mira contra o colono sentado de costas para o atirador. No

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exato instante em que o matador cobria a cabeça de sua vitima com precisão de mira para o disparo, um barulho na porta da cozinha chamou-lhe a atenção e este deteve o disparo a olhar para aquele ângulo. Pela porta surgiu o filho do lavrador que veio até o curral auxiliar seu genitor no serviço da ordenha; trazia também um banquinho e um balde os quais posicionou na segunda rês ao lado da primeira, ficando sentado bem perto de seu pai. O personagem da tocaia sorriu maldoso e ligeiramente buscou um novo ângulo para que ao disparar a carga do chumbo acertasse os dois homens ao mesmo tempo. Quando volteou para esta nova posição também ficou mais perto de suas vitimas e a favor do vento por onde conseguiu ouvir um relato bastante macabro. Os trabalhadores gargalhavam relembrando da forma que afogaram Amaro nas águas da Caiçara. Enquanto um falava fazendo os trejeitos pai e filho riam gostosamente sem se quer imaginar que uma cobrança não menos diferente já se avizinhava deles. O homem trajando roupas pretas viera ali para matar em nome da briga que mantinha contra aqueles sentados; entrementes ao ouvir o que não imaginava sentia um prazer contagiante no que ia fazer. A sensação da tocaia e o gosto de vingar seu primo o levavam a um estado de êxtase e satisfação indescritível. Um largo sorriso se abriu em seus lábios enquanto direcionava sua arma para a posição de disparo. Trocara com toda calma do mundo o cartucho que repousava na cama da espingarda por outro carregado por ele mesmo com pólvora, chumbo, pregos e até pedaços de vidro num tiro para matar boi bravo. Realizada a operação fez nova mira e passando a ponta da língua nos lábios como a saborear o disparo acionou o gatilho da arma que fez o percussor movimentar-se de encontro à espoleta do cartucho e o disparo acontecer ensurdecedor. O bradar do disparo soou como uma explosão de dinamite a encher a madrugada prolongando-se para a mata e a caatinga adiante a encher o ambiente de uma cantiga mortal. Só o grito dos baleados foi o som que conseguiu chegar à metade do som do disparo; a carga mortífera os pegou em cheio já que o tiro viajou a abrir um quadro de um metro de diâmetro, suficiente para balear até mais que dois homens. Os projeteis picaram seus corpos da linha de cintura para cima, varando ou alojando-se nas entranhas dos corpos que agora rolavam no terreiro na dança que precede a morte. Tal foi o estrago da carga preparada que as víceras do pai chegaram a sair por um rasgo na pandulha; as demais partes superiores de seu corpo bem como do filho apresentava-se picotado ou rasgado e médico nenhum, mesmo hoje, seria capaz de concertar aquele estrago. Com a certeza do que viera fazer o matador desapareceu sumindo ao toque dos primeiros raios solares. Nenhum médico poderia salvar aqueles homens exceto Deus, pois o rapazola apesar da violência sofrida insistiu em respirar acompanhando este esforço um jato de sangue. Logo sua mãe ao sentir um cavalo se afastando correu até seu esposo e filho gritando como uma louca, no entanto ao perceber o filho resistindo arrumou forças suficientes para arrastá-lo até em casa e ali passou a cuidar deste buscando evitar a hemorragia. A pobre coitada deixava escapar um rio de lágrimas dos olhos enquanto fazia o possível e o impossível para manter seu varão vivo. Acaso, por não ser mesmo o dia do mancebo morrer ou pela intercessão da força divina a roceira após a aplicação de alguns mezinhos conseguiu estancar o sangue fluente e assim pode correr para buscar o corpo de seu companheiro inerte numa poça de

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sangue. Agora, também aquela mulher fora tocada pela vontade de matar, era o ódio que se espalhava dominador, crescendo a chama da destruição entre os homens e mulheres daqueles clãs. Depois de arrastar a massa humana disforme do marido para casa, conseguiu num esforço tremendo deposita-lo em uma rede. Depois pensou em ir a Baixa Grande ou até o vizinho mais próximo buscar ajuda, mas o receio do filho morrer na sua ausência ou mesmo do matador voltar a fez ficar ali, firme no pé da cama. O dia amanheceu e alheio às misérias decorrentes naquele lar fez as horas correram e ao meio dia o mancebo abriu os olhos estando com o corpo ardendo em febre. Ali chamou por sua mãe, e aparentando estar consciente conversaram ligeiramente na troca de algumas frases. Depois disto o mancebo fechou os olhos e adormeceu como estivesse dormindo. Entrementes, percebeu Ana Rosa Maria que seu filho estava partindo para sempre, aí um desespero gigante invadiu-a, fazendo esmurrar com a força de um gigante as paredes invisíveis da vida. Tão só, desprezada, amaldiçoada, desgraçada se achava naquele instante em seu estado de melancolia que uma angustia e uma dor indescritível passaram a rasgar-lhe as entranhas paralisando-a sentada na cadeira que estava a segurar as mãos de seu filho, fixa de rosto e movimentos mortos sem mexer sequer as pálpebras. Ana Rosa Maria do Parto Vidalgo Ferreira era originária do clã Ferreira e agora ela adquirira razões para entrar na peleja. À tardinha um vizinho que passara em casa daquela família encontrara a cena acima descrita ainda nos moldes relatados. Este estava vindo ali para anunciar da morte da Baixa Grande e ao perceber o ocorrido naquele canto chegou a deixar cair lágrimas dos olhos ao deparar com Rosa Maria, sentada no quarto a segurar a mão do filho em meio a um silencio louco. O sepultamento dos mortos ocorreu ao mesmo tempo na manha seguinte pelo zelo e cuidado dos vizinhos daquela gente. Rosa caminhava acompanhada de algumas senhoras, mas mesmo quando lhe apresentavam os pêsames esta nada respondia, parecia que a voz desaparecera de sua garganta, que ela não estava mais ali. ... As opiniões sobre o autor daquelas mortes divergiam por alguns não crer que Lazaro fosse capaz de tamanha crueldade mesmo sendo o ultimo homem vivo daqueles clãs. Exatamente pela pregação insistente de que a paz seria o melhor caminho. Graças a isto muitos não acreditavam que tivesse sido ele. Mas a minoria que acreditava nesta hipótese questionava. Se não foi ele foi quem? Novas e divergentes respostas surgiam a esta indagação. Alheio a tudo, Lazaro Aparecido continuava sua vida normal dando a entender que era um medroso e de que nada tinha a ver com aquilo; chegou mesmo a lamentar de publico as três ultimas mortes ocorridas. Era agora o único homem vivo dos dois clãs e é obvio o autor daquela cartada final que eliminara os últimos varões dos Angelinos; mesmo muitos crentes que não fora ele o autor da façanha. Levava Lazaro uma vida normal depois das ultimas mortes, ciente em si de que o perigo havia sumido com o desaparecimento dos Angelinos homens. ... Muitos anos depois.

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Certo dia, Doroteia o ponto de partida daquela guerra retornara do oco do mundo, trazendo consigo as crias “para os seus” bastardos. Gêmeos diferentes em aparência cor e pensamento. Na idade os meninos entraram para os quatorze anos, o tempo que levou para as famílias se matar. Nos nomes, Doroteia os batizou por: Adonias Angelino Neto, sendo este de pele mais fechada; ao outro: Pedro Aparecido Neto, sendo este de tez mais clara. Guardava com estes substantivos próprios através dos filhos a reconstituição das famílias dizimadas, e melhor, unidas em uma só pelos laços do sangue paternal e maternal. No Serrote do Quati em casa do seu irmão Lazaro não foi recebida, este a tratou com frieza se quer aos sobrinhos aceitou a benção, e ainda escudado na forja da falsidade alegou ser homem de paz e querer distancia tanto dela como de qualquer outro membro da família sem se importar de que lado fosse. Doroteia ouviu tristemente em alto e bom tom o que o irmão lhe disse naquela oportunidade, “que saísse dali e fosse viver da forma que quisesse. Pois ela nada representava para ele. Era uma estranha a quem não queria bem ou mal” Triste pelas palavras de Lazaro a quem ansiava se relacionar já que tinha sido surpresa não ter achado a mãe nem as irmãs. Decidiu a mulher arribar para a Vila da Baixa Grande e abrir um empório, haja vistas a carência do comercio naquele fim de mundo. Coisa que tocou para frente com as poucas economias que conseguiu juntar. Mas tanto trabalhou e pelejou naquela tarefa que rapidamente prosperou e cresceu ganhando notoriedade e muito dinheiro. Em pouco tempo, estabelecida, seu comercio passou a ser o maior da região. Lazaro Aparecido o seu único irmão vez por outra vinha a Vila, todavia jamais botou os pés na casa comercial da irmã; se quer aceitava puxar conversa com alguém quando falavam no nome de sua mana. Assim vivia levando a risca a promessa de que para ele, ela e seus filhos inexistiam. Os ponteiros do tempo foram correndo e os anos passando carregando consigo a tenra flor da idade dos meninos que dos velhos adquiriam e ganhavam a experiência para o presente que surgia as suas portas. Labutava Lazaro Aparecido despreocupado em sua roça, como de costume, os anos haviam apagado o medo de qualquer reação contra ele. Assoviava naquele momento uma velha canção popular preso aos caminhos que sua mente levava. Não esperava ou se quer acreditava que algum resquício da briga ainda pudesse existir crepitando em uma lasca do tempo, silenciosa, coberta de cinzas. Suado do trabalho braçal a arrastar a enxada, rasgando a terra, em dado momento, depois de terminar um “eito de quatro carreiras” caminhou até uma moita de mofumbo no aceiro da roça e dali arrastou uma cabaça enrolada em trapos molhados para depois sentar-se ao solo de onde lançou seus olhos pela plantação de milho e feijão, rasgando o solo a uma altura de dez centímetros. Neste instante seu sorriso se abriu a pensar na colheita futura, pela continuidade do inverno. Retornando do pensamento sacou uma cuia de coco e a encheu de água fria para saciar a sede que o consumia. Bebeu, bebeu duas ou três vezes a água do recipiente cheio. Voltando depois a guardar a cabaça e a pequena cuia. Calmamente destrinchou uma manoca de rolo, sacada de dentro de um embornal e pacientemente picotou o fumo preparando um cigarro de palha grosso qual um

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cachimbo. Tragando-o prazerosamente soltou a fumaça pelas narinas para depois dar uma volumosa cusparada para diante. Quando findou com o cigarro tentou se levantar para retornar a limpa, mas aí algo o impediu de finalizar suas intenções... Uma dor dilacerante em forma de fisgadas lhe encheram a pança e em grau tão alto que este só conseguiu agarrar a pantulha e deitar-se rolando pelo terreno a emitir careta e gritos descomunais pela dor que o consumia; como se seu intestino estivesse sendo rasgado cru. Um suor frio lhe empapava as vestes, o mundo rodopiava em voltas cada vez mais rápidas e logo sentiu o fôlego desaparecer como se sua garganta estivesse bloqueada por algo. De uma convulsão frenética, parou de olhos arregalados, papo para cima e com uma baba viscosa escorrendo pelo canto da boca a ter o sol batendo forte em sua cara. Agora já não ouvia, nem sentia nada. Estava morto, irremediavelmente morto. Quando o corpo do homem parou de dar sinal de vida alguém saiu de dentro do mato e veio até ele, ajoelhando-se ao seu lado. Depois retirou um frasco do bolso e o fitou sorrindo voltando a guardá-lo com exímio prazer. Na seqüência apoderou-se da cabaça do morto e enfiou-se na mata desaparecendo assim como surgira. O corpo de Lazaro Aparecido fora descoberto ainda naquele mesmo dia, pelo decorrer da entrada da noite, já que não tendo aparecido em sua casa para almoçar, sua esposa e filhas foram até a roça saber o que se passava e ali descobriram o corpo do homem quedado no solo. Os vizinhos da viúva, intrigados e curiosos foram de imediato buscar o corpo do morto, providenciando para o dia seguinte o seu sepultamento. Renascendo aqui uma enxurrada de idéias para aquela morte. Para a casa de Lazaro Aparecido naquela noite convergiu muita gente a fim de prestar solidariedade à família. Ali Dona Corrinha, a mulher do finado explicava e recontava que não havia pelo corpo do marido o menor sinal de agressão a não ser algumas raladuras nas pernas, causa pela qual, o povo começou pela opinião de um ancião a achar que o homem fora picado e morto pelo veneno de uma cobra. Causa iclusive que passou a crer todo o povo do rincão sem mais dali por diante a levantar outra hipótese qualquer que fosse. Lazaro foi velado como o costume da época. Cachaça; Café quente, chá, casa cheia só de mulheres, pois os homens se ajuntavam por fora a fazer “moias” rindo, contando piada, ou lembrando outro caso qualquer. Choro mesmo. Só da mulher e das filhas e uma ou outra senhora mais sentida. Na primeira hora da madrugada Doroteia Aparecido conduzindo uma charrete e acompanhada de seus filhos chegou à casa de seu irmão. Neste instante um silêncio quase profano encheu o lugarejo e a mulher mais seus rapazes adentraram a casa para a sala aonde repousava o corpo de lazaro sobre a cama do casal. Dona Corrinha que estava na cozinha a lamentar de seu infortúnio para uma conhecida estranhou o silencio impetrado e veio ver o que se passava; ao chegar à sala deu de cara com a cunhada e os filhos que também passaram a encará-la no espaço do pequeno silêncio instalado. Antes que Doroteia dissesse qualquer coisa, Altiva e senhora de si, de forma dura e direta esta pediu para a outra ir embora dali, explicando que não era bem vinda. Pois se Lazaro nada queria com ela em vida esta nada

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tinha para ver ali em sua casa na sua morte. Baixando a cabeça Doroteia deixou cair lágrimas dos olhos mas nada disse, volteou nos calcanhares e logo em sua carroça ganhou o caminho de casa com o coração magoado e cheio de tristeza. Neste momento seus filhos lhe acalantavam enquanto o veiculo saia das terras do seu finado irmão embaixo dos olhares alheios. Com o dilúculo do novo dia mais uma ou outra pessoa se fez presente à casa de Lazaro Aparecido e perto das dezoito horas a cargo do Beato Salú conduziram o corpo do finado dentro de uma rede e lhe deram sepultura ao sopé da montanha, bem perto das arvores frutíferas: os cocos catolés que se erguiam imponentes as centenas, abrigando em suas copas um ou outro macaco prego, além de sonhins e várias aves cantoras. Uma coisa era certa, a Serra era um paraíso ecológico e um lugar fenomenal aos olhos dos amantes da natureza. A época tão raros quanto à lei a medicina e a educação. As folhas das árvores começaram a quedar marcando a mudança de estação; com o relógio biológico do tempo correndo solto uma estação deu lugar à outra completando cada qual seu circulo de duração até começar tudo de novo, sendo o ponto de partida o bendito inverno. As nuvens se agruparam no firmamento, cinzas, escuras, claras, percorriam a capricho da natureza os céus nordestinos descarregando suas massas chuvosas sobre o solo terrestre para o encantamento dos braçais labutores da terra. As pancadas de chuvas rapidamente encheram os rios marcando o período das enchentes que caudalosas avançavam pelos leitos dos rios num percurso cujo final dava no oceano. Contudo! Aqui ou acolá alguns destes rios davam numa barragem moldada pela mão humana e só quando esta também sangrava saturada era que a jornada das águas se completava. A terra revitalizada pelo inverno se cobria de uma nova vestimenta cuja cor predominante era o verde. Nestes períodos, aos poucos o sentimento de prazer dos homens aplacava a dureza de suas ações e a violência explorada na contenda entre Angelinos e Aparecidos ia aos poucos sendo esquecida. Só em comentários perdidos é que alguém ainda relembrava um ou outro amigo morto. Destas duas famílias apenas os gêmeos carregavam os sobrenomes dos clãs opostos. Nomes que não deixavam totalmente cair no esquecimento à guerra passada. O inverno veio e foi embora, depois outro e mais outro e na dança do relógio do tempo, transcorreram contando a data de nascimento dos meninos: dezoito anos. Adonias Neto, o mais moreno e mais parecido com a sua mãe, também nos sentimentos e expressões é claro! Legara o gene da sua genitora. Pedro Neto por conseqüente herdara as características físicas do pai. Agia primeiro para se preocupar depois; sua índole despreocupada trazia consigo uma atração para a violência e as situações de riscos lhe eram ligeiramente atrativas. O oposto de seu mano. Baixa Grande se desenvolvia aos pulos. O empório de Doroteia crescia a passos bem mais largos e ajudou muito nisto o abrimento de uma estrada para automóvel passando por aquele lugar. Na construção desta vultosa obra muita gente de outras regiões veio parar na Baixa Grande e estes povoaram o lugarejo tornando um formigueiro humano. Ruas

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apareceram, a primeira escola publica trazida pelo Padre Ibiapina foi implantada ali, além de outros pequenos benefícios. Contudo não só foram coisas boas que aportaram ali. E em se falando de gente muita peça ruim aportou por a cá. Tanto foi assim que um dos peões da estrada surgido das brenhas do mundo cuja alcunha se dava por Juvenal Quaresma se fez perceber como valente, brigão, desordeiro e pronto para furar quem quer que lhe entrasse no caminho. Sem esquecer que era dado ao habito de soltar impropérios que faziam até meretrizes se bendizer quando este estava a falar mal de alguém. No empório fez freguesia e passou a comprar para saldar no final do mês de quando do pagamento do seu trabalho na estrada pela “firma”; bem como a grande maioria destes trabalhadores. O homem não era daquele lugar surgira ali pela construção da estrada. Entretanto: coincidência ou não. Os mais velhos achavam que tinha aquele forasteiro aparência com o clã dos Aparecidos, com a família de Doroteia. E bem claramente algo nele lembrava um dos gêmeos. Entrementes aqueles que percebiam isto nada diziam nem tão pouco questionava aquela semelhança. Doroteia logo ampliou seu comercio e ao lado do empório que se transformara num amplo armazém edificou uma pensão de grande porte e com quartos para alugar. Gerenciando o armazém seus filhos e ela este último. Numa tarde perdida quando sibilava as cigarras nos ocos dos paus, surgiu pela estrada barrenta e empoeirada um velho caminhão Ford de boleia dupla a estacionar em frente à pensão trazendo em seu gradeado uma boa quantidade de móveis e outros cacarecos num sinal claro que alguém estava mudando para aquele lugar. Da boleia duas senhoras bem trajadas e um rapazote na fina flor da idade desceram ao solo; estando as mulheres com seus rostos cobertos por um véu preto e transparente. O chofer do auto que atendia por Zé Belo entrou no armazém e logo retornou depois de conversar com Dona Doroteia. Ali já foi recebido por Adonias que educadamente ofereceu os serviços da pensão; sendo que estas recém chegadas e seu filho já de imediato alugaram dois quartos e rumaram para estes. Doroteia que assistia a chegada das desconhecidas cujos rostos não se era possível decifrar sentiu um arrepio ao olhar para aquelas pessoas, mas nada disse. Não guardava consigo mais nenhuma esperança de reencontrar suas irmãs ou mãe. Até porque elas mesmas certamente jamais iriam querer saber dela. Com isto não ligou aquelas figuras com ninguém da sua parentela. Baixa Grande estava constantemente recebendo visitas ou mudanças de pessoas de longínquos lugares. Logo não eram estranhas aquelas forasteiras aportarem ali. Dando os ombros depois que as duas entraram notou ainda que o rapazola ficou a conversar com o condutor do caminhão e com dois peões para certamente resolveram na questão da descarga da “tralha”. Quando Doroteia deixou de cubá-los o veiculo seguiu tomando o caminho que dava para a Serra do Quati. Porém nem ela nem ninguém notaram algo de anormal nesta situação. As terras de Pedro Aparecido foram vendidas por sua mulher há muitos anos passados. Contudo, anos depois no futuro, fora novamente revendida por seu atual dono a uma família desconhecida. Disto o povo sabia do fato e até um singelo camponês vivia agregado naquelas terras a cuidar destas até a chegada de seus proprietários. Mas até aquele homem não

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conhecia bem os donos da área fazendária a não ser o nome constante nos papeis de registro que informavam Joaquim de Brito. Voltando no tempo quando Lazaro Aparecido ainda era vivo, certa vez recebera uma carta dos atuais donos e nelas recebiam orientações para ajudar na conservação da ex propriedade de seu pai, pois ali sempre haveria espaço para ele; o próprio feitor das terras já sabia disto. Foi por esta razão que Lazaro viveu, trabalhou e morreu na área rural da fazenda de seu genitor sem nunca ser questionado por ninguém. A noite daquela chegada em Baixa Grande às duas senhoras desceram de seus quartos à sala de refeições por onde entre mesas navegavam muitos homens. Uns “jantando” outros partindo com marmitas e até alguns apenas a prosear entre si, já havendo gastos seus tostões. Estas senhoras se mantiveram distante de todos, somente o mancebo e aquele motorista fizeram questão de prosear com um ou outro presente. Quando elas terminaram de cear voltaram aos seus aposentos sem dar o ar da palavra até mesmo aos gêmeos donos do comercio. No pedido da refeição fora o jovem rapaz que escolhera o cardápio. Adonias e Pedro estranharam aquela situação, mas nada disseram. Ao clarear do novo dia, o caminhoneiro fretista ganhou a boléia da nave automotiva e desapareceu na estrada por entre uma enorme nuvem de poeira vermelha, naquela hora já havia grande movimento de pessoas transitando pelas ruas do lugar. O rapazola que se registrara como nome de Joaquim Bezerra Brito pagou os custos da hospedagem e logo ganhou a rua com as distintas mais um moleque nos seus calcanhares a arrastar uma mala. Saíram para a rua e ali já os esperavam um carroceiro que rapidamente tomou a mala e guardou-a no estrado do transporte. Depois ajudou as mulheres ganharem posição no veiculo. Bezerra Brito atirou uma moeda para o pequeno que saiu dali correndo alegre e já a carroça partiu em direção a Serra do Quati. Pela Baixa Grande aquele mancebo havia feito espalhar a noticia que os donos das terras de Pedro Aparecido estavam chegando para tocá-las dali por diante. Domingo, o segundo da chegada daquelas senhoras, os moradores da zona rural e da área urbana da Baixa Grande convergiam para a rua principal da pequena localidade, tornando-a um formigueiro de transeuntes; era dia da feira livre, dia da missa pela tarde; a noite ainda se podia notar resquícios dos movimentos diurnos pelos incontáveis bêbados rodando os poucos bares daquele fim de mundo. Sendo que vez por outra alguém promovia um samba ao som do fole de oito baixos de Zé Enanias, acompanhado de um zabumbeiro e um trianguista. Com isto o domingo era um grande dia na vida da Baixa, transformara-se na marca registrada daquela gente ao convergir para dar cabo de seus inúmeros compromissos. A feira corria a solto com uma linha de pequenas mesas cheias de toda variedade de produtos. Tais como: farinha, feijão, milho, raspadura, mandioca, potes, panelas, copos e outros instrumentos de aço. Facas, foices, enxadas, estatuas e retratos de santos, terços, chapéus de todos os tipos e moldes. Brinquedos, tecidos, comidas, doces, bebidas, roupas, calçados. Enfim de quase tudo se via por ali transportados pelos tropeiros e comercializados pelos pequenos vendeiros.

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Adonias e Pedro caminhavam por entre as barracas de mercadorias fazendo um percurso de banca a banca, a título de curiosidade e divertimento mais a fim de cavacar com os conhecidos do que comprar algo. Também convergente da Serra do Quati estavam as duas senhoras e o rapazola Joaquim. As mulheres quase não falavam, todavia o moço falava pelos calcanhares e com isto ligeiramente passou a conhecer muita gente. Dando ao conhecimento que uma daquelas mulheres era sua mãe e a outra tia. Mas sobre estas era só o que deixava saber, pois tinha razão de sobras a guardar segredos de quem eram realmente. Ora! Aquelas mulheres nada mais eram que as duas filhas regressadas de Pedro. Sabe lá Deus de onde! Carregavam no intimo de suas almas um ardoroso ódio pela irmã a quem julgavam causadora da ruína da família e ao aportarem na Baixa descobrindo aquela rica e bem sucedida, mais a inveja e o ódio dominaram as duas; embuçadas por trás dos nomes falsos e do véu que sempre ostentavam a dar-lhes o ar de resignadas beatas, no intimo de seus corações injetavam lentamente um ódio imenso no coração de Joaquim pela tia Doroteia, incluindo aí seus bastardos filhos. Pelo outro lado; apesar de ser a peça inicial daquela briga passada, Doroteia ardia de desejos de reencontrar a mãe e as irmãs, de abraçá-las, pedir perdão e dividir com estas as alegrias de sua existência, voltando a viverem como antes de tudo. O tempo caminhava a cidade crescia, o desenvolvimento chegava lento mais chegava. A cidade ganhara ate uma pequena delegacia e de saldo cinco milites, uma padaria, três armazéns, sendo o maior o de Doroteia, um pequeno hotel, seis ruas de casas, um colégio, uma igreja consagrada a Nossa Senhora da Conceição, duas praças, uma sede para a Prefeitura, um posto médico com visitas do profissional há uma vez por mês e uma lavanderia publica. Alem é claro! Da estrada que estava sendo construída a cortar pela cidade vindo da direção de Cajazeiras a correr no rumo do ceará. Todavia a lei predominante ainda era dos Coronéis e Majores, ou seja, a dos mais ricos, senhores de terra e propriedades enormes. A polícia instrumento apaziguador e mantenedor da ordem muitas das vezes estava a serviço destas pessoas, mas não era sempre que isto ocorria, havia as exceções. Político destacava-se a época o Coronel Calixto, Coronel de verdade, da polícia do Estado. Este, vez por outra aportava na pequena cidade a fim de visitar este ou aquele cabo eleitoral que mantinha abaixo do chicote o curral eleitoral vigente naquele espaço... Pela feira caminhava também Juvenal Quaresma com o bucho cheio de maropeia e a cabeça tumultuada de más intenções. Metia-se com tudo e todos, pilheriando ou metendo o bedelho aonde não lhe cabia. Naquela hora geralmente seus palpites eram bem aceitos pela causa do medo ou mesmo por parte daqueles mais sensatos que o acatavam apenas para evitar um vozeio ou coisa pior. Os milicos conhecedores da fama do tranca rua também o evitavam já que deste confronto o resultado seria funesto, depois vinha o fato de que aqueles milicianos passavam à vida na beira dos rios metidos em pescarias e a namorar com algumas raparigas que sugiram na região. Assim era mais fácil encontra-los de vara e anzol nas mãos do que em seus postos de obrigação. Por estas e outras meias dúzias de razões Juvenal era o

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dono da cidade quando entendia agir daquela maneira. Não foi ao acaso que a lei só se estabeleceu no nordeste a custo de muita peia e outro bom tanto de tiros. Nas andanças entre as barracas esbarraram em dado momento Juvenal Quaresma com o mancebo Joaquim de Brito. O rapazola imediato ao choque se deteve tremulo a olhar o corpanzil do outro já segurando na mão o cabo de sua faca ainda na cintura. Nesta atitude o chupa rolhas olhava com cara de mau agouro para o rapaz tremendo igual à vara verde sobre o açoite dos ventos. Já conhecia Joaquim a fama daquele individuo, situação que lhe trouxe uma gigantesca soma de medo por sua vida. Apreciando o embaraço do rapaz Juvenal escarrou uma enorme cusparada entre as pernas bambas do moço a dizer-lhe meia dúzia de palavras de calão. Joaquim nada disse, só baixou a cabeça em sinal de respeito e medo e pediu em suplicas intimas auxilio ao seu anjo da guarda. Provenientemente Juvenal sorriu ditoso a olhar para os curiosos e como quem dado por satisfeito pela cena de medo do outro seguiu adiante sem mais importunar ao mancebo que por sua vez respirou fundo seguindo seu curso. Mais adiante Juvenal avistou os irmãos gêmeos sentados em um banco de madeira na parte frontal de uma das barracas da feira e pensando sabe lá Deus em quê. Meteu-se na direção dos dois. Os esbarroes que ocorriam com este geralmente eram provocados por ele com o pretexto de iniciar a contenda ou então para demonstrar de publico que ele era o valente dali. Todavia um transeunte meio avexado foi quem desta feita esbarrou em Juvenal Quaresma que já o fitou a lhe falar mal de tudo quanto tinha vontade. O homem se chamava João Galdino, sujeito pacifista que imediato ao esbarrão descarrilou um rosário de desculpas pondo em sua fala um batalhão de Santos para demonstrar que fôra sem querer. Juvenal acalorado pelo recuo do outro e vendo os olhos voltados para aquele ponto, segurou o agricultor pelo colarinho a proferir um furacão de atrevimentos e ofensas outras. João Galdino desandou a tremer sentindo que estava desgraçado, foi quando Pedro Aparecido cansado daquela situação se pos de pé e caminhou para junto dos dois homens no meio das barracas. Seus passos firmes fizeram seu irmão ficar de pé atento ao que viria. Juvenal que nunca antes fora submetido a uma contra opinião elevou os olhos para o rapaz caminhando para junto dele. Acaso, esta cena lhe fez um sorriso malvado brotar nos lábios e antes deste falar qualquer coisa. A poucos passos do tranca rua, Pedro descarrilou um discurso em defesa de João que passou de educado para grosseiro e por fim ganhou contornos de ofensas a Juvenal que tocado de rancor empurrou Galdino de lado, largando do mesmo a fitar para seu desafiante. Frente a frente, olho no olho, Juvenal compreendeu que aquele caboclo não o temia. Tanto era assim que o mesmo já se mantinha de guarda pronto para fazer suas laminas se lamberem. O silencio que imperou no local só desapareceu quando o tranca rua temendo por si criou uma fala para desaparecer do local evitando o confronto com Pedro que mantinha se sereno disposto a provar da sua bravata. Adonias aproveitando a falta de confiança do brigão chamou seu irmão para junto de si pedindo que deixasse aquilo para lá, já que não pagava apenas uma briga por nada. A esta fala Juvenal deu meia volta e seguiu noutra direção bufando de raiva e rancor fazendo com isto os transeuntes se distanciarem para dar-lhe passagem. Carregava no intimo o ardor de matar aquele rapaz breve, breve.

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Imediato a saída de Juvenal o povo ali presente comemorou efusivo a coragem de Pedro, o parabenizando por ter botado as rédeas no jerico. Todavia não faltou quem o alertasse por parte de represálias traiçoeira do funcionário das estradas. João Galdino respirando aliviado por ter se safado das mãos do valente e agradecendo aos irmãos desapareceu imediatamente dali antes que outra inopinada situação lhe fizesse frente. O palco da vida estava montado, os atores prontos para participar dos atos que logo adviriam mesmo à contra vontade de alguns. Desfraldada a cortina do destino era impossível a um filho desta obra conseguir escafeder-se das cenas que já estavam escritas no grande livro do destino. Assim sendo, requeiro ao diretor destas linhas o meu mestre consciente, que nos faça conhecer, se não todas, algumas situações das cenas que empurram meus personagens para dentro desta trama familiar, comum à época. ... Ardia às vezes a se turvar a opaca chama do candeeiro, conforme a corrente de ar da noite batendo em linha no chumaço do pavio, causando assim, uma luz omissa naquele momento na sala da casa daquelas duas senhoras bem perto da meia noite, a clarear impreciso os rostos dos presentes na sala debatendo entre si o assunto que os reunia ali. Eram eles: Joaquim de Brito, sua mãe e sua tia, ambas em trajes escuros o que mais as embuçavam no ambiente reinante, sentado de frente a estes um homem de elevada estatura a baforar um cigarro de palha fazendo a brasa se destacar quando este sugava o citado fumo, sendo aquele: Juvenal Quaresma o baderneiro, que na verdade, consoante planos antes bem preparado, aportara ali. O homem era primo de Joaquim e filho da irmã da mãe deste. Para aquelas paragens fora enviado na frente com o objetivo de se situar da situação da sua tia e de seus filhos. Para isto arrumara trabalho na estrada e ali ficara até aquele instante aonde junto à mãe a tia e o primo decidiam o que fazer a partir dali, já que descobriram a tia rica e pronta para receber sua parte de merecimento da contenda que os separara para todo o sempre. Aqueles membros do clã Aparecido guardavam um imenso ódio por Doroteia e suas crias. Ódio que refazeria a chama da vingança crepitar em estalos de alta ressonância. Pessoa alguma naquela cidade imaginava ou poderia pensar que os velhos tempos estavam voltando e que aquelas pessoas naquela sala eram os parentes desaparecidos de Doroteia. Estes por sua vez não aceitavam em nenhuma hipótese a probabilidade de paz. Doroteia e seus filhos deveriam pagar e pagar bem caro pela parte de misérias e humilhações que sofreram pelo mundo quando arribaram dali. Juvenal Quaresma era filho bastardo de Benedita Aparecido com um homem de negócios da capital. Fruto de uma relação amorosa das muitas que teve de se submeter a fim de ganhar algum dinheiro para sobreviverem quando o pouco que sua mãe levara havia acabado e estas foram obrigadas a mendigar e prostituir até assistirem sua velha mãe morrer em baixo de um viaduto passando as maiores privações possíveis. Causa que mais reavivou o ódio por Doroteia e quem dela nascesse. Sofreram muito até conseguir juntar umas parcas economias e quando já seus filhos adultos passando a ajudar as duas; com muito esforço puderam retornar paras suas origens carregando alguns tostões e muito, mas muito mesmo, ódio e rancor para descarregar na irmã antagônica. Deste quarteto Joaquim de Brito

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diferenciava dos demais, amava e respeitava a mãe, gostava da tia e temia seu primo brutamontes. Ansiava no intimo o fim daquela situação. Entretanto temia defender seus anseios em aberto. Por conhecer a fundo o rancor impetrado nos corações de seus parentes. Também gozava sobre os demais do poder do conhecimento. Já que na capital tivera a felicidade de ser apadrinhado por uma beata que guiara pelo caminho das letras e logo, logo, graças a sua inteligência e perspicácia conseguiu concluir a cartilha do ABC, sabendo, portanto ler e escrever além de conhecer e dominar as quatro operações de conta. Aquela macabra reunião deixou decidido que depois do sumiço de Doroteia e seus filhos elas como irmãs seriam as legítimas herdeiras dos bens deixados e o que precisariam fazer era agir sem levantar suspeitas para que o povo não se voltasse contra eles. A reunião avançou até tarde naquela noite só terminando quando todos os pontos premeditados foram amplamente discutidos com a ciência de exatidão sem o menor atrapalho quer fosse. O dia de segunda feira trazia ao povo da localidade a expectativa de um inicio de semana de muitos trabalhos e cada homem ou mulher se fiava a cumprir com seus afazeres. Neste mesmo dia pela tarde, surgiu na praça uma mendiga maluca, esta se fazia acompanhar de um avultado enxame de meninos a tirá-la a pagode: com lorotas, palavrões, apelidos e até empurrões. A meninada fazia a festa e a pedinte descarrilava aos pequenos endemoniados uma enxurrada de impropérios que se seguiam de todos os tipos de adjetivos de inferioridade aos pais e irmãos dos pequenos danados. A desmiolada só conseguia com isto aumentar seu padecer já que o grupo gostando da “troça” aumentava seu número. Aquela só ganhou um descanso quando um dos gêmeos em frente à pensão se condoeu daquela situação e ralhando duramente a meninada os enxotou para longe. Depois recolheu a desafortunada e de imediato lhe deu um bom prato de comida o qual a mulher deglutiu com ânsia e voracidade de leão. Após, Adonias outra vez encheu o prato e a pobre mulher ligeiramente passou para dentro num sinal claro de que estava padecendo também de fome. Terminado a comida o gêmeo sob o olhar de seu irmão ofereceu alguns tostões a maltrapilha, dinheiro este que ela recusou terminantemente agradecendo com sua voz rouca e definhada a informar que mais do que dinheiro ele já havia lhe dado que era respeito e alimento. Complementando com um Deus lhe pague sumiu da vista dos mancebos com um sorriso espontâneo nos lábios, sorriso este que transcendia a compreensão de quem a via naquele ínterim. Pois na mente daquela figura uma batalha de ataque e defesa se iniciava chegando ao fim quando a mestre consciência decretou a vitória da razão. Com isto os Aparecidos foram perdoados de algo entranhado na linha do tempo, já que pelos rapazes de sobrenomes contundentes, similares ao do seu cunhado e de seu esposo e mais seu filho, em seu coração uma chama foi extinta: a do ódio. Respirando fundo a deixar sair de seus pulmões o ar ruim daquela cidade aonde *um dia veio buscar certo veneno, e metodicamente, embuçada no mato conseguiu ministra-lo numa cabaça para depois ver morrer diante de seus olhos um homem em vingança ao seu marido e filho, ficou de pé sentindo sua alma renovada e crente que o passado deveria ser esquecido. Na seqüência voltou a andar para dentro da cidade com o desejo de passar alguns

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dias por ali, perambulando e esmolando a estudar aqueles dois bondosos jovens e sua tão triste quanto ela, mãe. Só para ter a mais absoluta certeza de que os rapazes não mereciam morrer como muitos outros dos dois clãs. Os dias correram de um para o outro e vez por outra a mulher esmolava perto da pensão, nestas horas Adonias ou Pedro e esporadicamente Doroteia ofereciam-lhe de bom grato, comida, roupa e alguns tostões no que ela sempre recusava o dinheiro. Aquela família diante de sua imagem sofrida era só compaixão e benevolência. Muitas vezes ela fixara os olhos nos de Doroteia e nos dos filhos, e no fundo se suas almas conseguiu vislumbrar as boas pessoas que eram, sinceras, honestas, trabalhadores e de corações puros. Com isto o passado estava morto e sepultado. Tantos dias ela esmolou perto da pensão que no dia que ela não vinha Doroteia já sentia falta e logo arrumava um prato e com este amarrado numa rodilha saia em busca da pedinte para lhe deixar o almoço ou jantar. Para ela pedinte nascia em seu coração a certeza de que aqueles varões repovoariam a terra outra vez com pessoas carregando em seus sobrenomes Aparecidos e Angelinos e tanto acreditou nisto que passou a sonhar com este momento como se ele fosse o seu objetivo de vida, ressurgindo em seu rosto transfigurado a luz de um sorriso em cadeia de ligação direto ao coração. Sonhava e vagava pelas ruas como a mais pobre das criaturas e como a mais feliz das almas. Neste transe dormia a noite em qualquer lugar que lho desse a telha carregando a tiracolo um saco de cacarecos o qual fazia de travesseiro quando o sono lhe batia. Os dias foram chegando e partindo até o novo domingo, o dia grande para os sertanejos, também dia de feira de visitas e da missa na igreja da cidade. A pensão continha um avançado movimento neste dia, local pelo que Juvenal Quaresma foi cear com o propósito de estar perto de seus primos; estudando-os a sorrir consigo mesmo numa expressão malfazeja a estampar-se em sua face. Os dois irmãos sem desconfiarem que aquele fosse seu primo e pelos fatos ocorridos anteriormente o olhavam desconfiado sem lho dar as costas; algo lhes despertava para atenção com aquele individuo. Entrementes, este elemento estava ali apenas na função de espião em sua mente rixenta não passava a idéia de arrumar um bafafá; seguia copiosamente às orientações colhidas na reunião na casa do Serrote do Quati. Estava ali, portanto, para fartar-se de arroz, feijão, farofa de pão de milho, batata doce, cebola e ovos fritos com toucinho torrado. Ainda lhe foi oferecido para mistura, um bom naco de carne de carneiro assada na brasa. Vez por outra entornava uma dose de cana de cabeça, já que para o seu deleite solicitara uma garrafa desta cachaça. Bebia o liquido após a refeição pacientemente, quando naquele instante adentrou no local vinda do empório, Doroteia Aparecido, que viandando entre as mesas veio até aquela em que estava sentado o tranca rua; o seu sobrinho desconhecido. Defronte ao moço pediu licença e sentou-se junto ao citado para pedir e avisar que não queria problemas ou intriga com este e seu filhos, pois já vinha de um mundo de brigas que lhe tirara pai, mãe, irmãos, irmãs, noivo, tudo, tudo. Só lhes restando os filhos. Assim queria paz e viver tranqüilamente em harmonia com todos. No entanto se isto não fosse possível não toleraria a perda dos meninos e que se ele ou qualquer outro que fosse lhe tirasse um filho ela mesma faria valer a lei de talião. (olho por olho, dente por dente).

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Juvenal engoliu um seco, não esperava aquela coragem por parte de sua tia já que de outra oportunidade ela preferira fugir e agora estava dizendo estar pronta para brigar. Sorriu amargo e lutando para segurar o nervosismo que o momento lhe impusera, Juvenal Quaresma lhe assegurou que o fato da discussão com ele e os filhos dela era causo esquecido, que aquilo não valia de nada; já ate o tinha esquecido, fora coisa de cachaça. Doroteia medindo as palavras do rapaz sentiu de certo que aquele era uma cobra traiçoeira, o que ele lhe dissera não soava com o tom da verdade. Contudo fingiu crer. Desta forma já alertou aos filhos para doravante andarem preparados e ter o máximo de cuidados com o tal Juvenal Quaresma, aquele lá tinha patas como o demo e algo lhe alertava que ele lhe traria muitos desagravos... Da pensão o mancebo saiu a caminhar pela rua, entre o emaranhado de pequenas bancas; fazendo parada em um gasto banco de madeira em baixo de um pé de pau na pequena praça central, de fronte a igreja já em um ponto extremo a propriedade de Doroteia. Não demorou muito sentado ali e logo surgiu entre os transeuntes o seu primo Joaquim de Brito; o rapaz boa pinta sentou-se ao lado do outro e com um sorriso a olhar para os passantes ensejou saber alguma coisa dos parentes. Entretanto, Juvenal Quaresma estava sisudo com ares de poucos amigos e achou por bem se fiar pouco resumindo que tudo ia bem. Esta cisma se dava no intimo do homem por saber que sendo Doroteia sangue de seu sangue, era muito bem capaz de se defender da forma que desse. Possivelmente se esta tivesse descoberto o retorno das irmãs, talvez ela própria já tivesse reiniciado a contenda. “Pensou”. Vendo que de quase nada estava valendo prosear com o outro, Joaquim resolveu sair dali para ir ao encontro de sua mãe, estando esta ladeada da irmã a sair da igreja. Quando as duas vinham pela rua, surgiu aquela desmiolada a pedir um vintém a quem passasse perto. Esta olhando copiosamente para aquelas duas beatas, aproximou-se a distender uma caneca de lata implorando uma esmola das irmãs. Por sua vez as duas olharam com desprezo para a figura da pedinte a lançar-lhe um pouco de suas iras, mandando-a pedir noutro local. Ao sentir a voz das mulheres, Maria estancou resfolegando apressada de braços abertos em forma de cruz no centro da rua a gritar em voz alta para que todos a ouvissem. Logo também começou a pular e em meio a gritos de expressões lógicas e irracionais, estando seus olhos todo tempo fixos no rosto das mulheres escondido por baixo do fino véu preto, mas que não escondia assim de perto os contornos naturais das feições, Mariá passou a dizer seus nomes verdadeiros em alto e bom tom, ao passo que dançava, gritava, rodopiava em volta das duas a chamar a atenção do povo que se aglomerava e ouvia o que a doida dizia das irmãs, atirando inconscientemente o disfarce daquelas por terra. Neste momento achegaram-se também os gêmeos que vinham buscá-la para lhe oferecer alimento, como já faziam há muito tempo. Aquela cena; os nomes de suas tias, tão bem conhecidos por eles despertou uma estupefação e uma surpresa gigantesca, contudo se mantiveram em silêncio. As irmãs rapidamente procuraram desacreditar a louca e arrastando Joaquim buscaram em meio a frases que demonstravam o estado de raciocínio transloucada da pedinte, sair dali, afastando-se do local. Logo as duas desapareceram incrédulas com a cena, pois também não conheciam aquela varrida e não imaginava quem fosse aquela.

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Mariá, a louca, era uma mulher velha, com o rosto totalmente desfigurado e cheio de rugas, os cabelos soltos e assanhados lhe davam um aspecto assustador; sua boca tinha lábios finos e sumidos para dentro, quando esta falava sua dentadura incompleta e cheia de falhas aparecia aumentando mais ainda o estado de medo que sua imagem passava; certamente, totalmente as avessas do que ela fôra outrora. A única coisa que se mantinha preservada em sua face eram os olhos pretos e pequenos, ligeiros e conversadores, quando esta estava furiosa eles ganhavam contornos maiores e dimensões assustadoras. Quando recobrava a calma voltava a adquirir uma tranqüilidade expressiva e até seus lábios ensaiavam um sorriso que era acompanhado pela expressão no canto dos olhos. Expressão esta que ela estava recobrando agora pela aproximação dos irmãos que vinham auxiliando-a já há algum tempo. Quando os dois se aproximaram ainda surpreso pelo que presenciaram a louca já foi recuperando seu estado natural, todavia o estardalhaço que sua descoberta causou já se iniciava a correr de boca em boca pela cidade, com crenças e descrenças na veracidade ou não do que a louca dizia. Tanto ocorreu assim que mesmo antes dos gêmeos chegarem em casa com Mariá, sua mãe já estava sabendo do ocorrido na frente da igreja. Ora! A briga dos Aparecidos e Angelinos não foi à única ocorrida naquela região, entrementes fora a maior e mais prolongada, além da maior em número de mortes entre os clãs; logo toda a gente do município independente da idade sabia de cor e até como alguns fatos aconteceram pela graça da falação popular. Com isto, aquela descoberta estava causando um redemoinho de especulações no que veria a seguir; a própria Doroteia de frente a Mariá olhava-a com atenção perguntando a si mesma quem seria ela? E como tinha tanto conhecimento da peleja dos seus? Em sua cozinha sentados todos em volta de uma longa mesa de madeira a comerciante e seus filhos, estando Mariá, sentada entre os rapazes, procuravam com ardileza saber mais daquela história; causa impossível já que a mulher em meio a sorrisos e gritinhos eufóricos só repetia os nomes Benedita e Aparecida às filhas do finado Pedro Aparecido. Nem quem era ela mesma, os gêmeos conseguiram saber e momentos depois ela voltava às ruas, calma, serena, como se nada tivesse acontecido, a voltar a pedir a quem lhe cruzasse a frente. Afinal, até o seu nome Mariá viera da rua, colocado pela meninada. Ninguém conseguiu descobrir ou relembrar quem era aquela mulher, porém a estória sabe que se tratava da viúva de um marido e da mãe de um filho assassinados de madrugada na tirada do leite por uma cria de Pedro, cujo homem, também sucumbiu após beber água envenenada de sua cabaça quando labutava no campo. Sendo que ela Mariá, foi quem despachara aquele sujeito depois de tanta dor pela perda dos seus, aonde depois caiu no mundo e desgarrada de tudo e todos, enlouqueceu perdendo o seu legitimo nome e todas as suas raízes; vindo sabe lá Deus como! Parar de volta naquele local onde ganhou o nome Mariá pelo qual ficou conhecida com um desejo enorme nos momentos pequenos de consciência de continuar matando aqueles membros da família Aparecido. Entretanto, os gêmeos em sua ação de caridade, no intimo mais profundo daquela mulher, tocaram em sua alma e ela passou a ver os rapazes como seus filhos e eles seriam os resgatadores dos dois

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clãs já que carregavam nas veias o sangue derramado dos Aparecidos e Angelinos e tanto acreditava nisto que mesmo cheia de loucura mediante a presença dos gêmeos uma paz imediata batia sobre ela e quase tudo que os moços pediam era atendido por esta. Contudo, pessoa nenhuma, nem mesmos os mancebos sabiam disto ou desconfiavam que assim fosse. ... O som do martelo no gume da enxada sobre uma pedra ou outro instrumento quer fosse se escutava ao longe em repiques de intervalos idênticos; como um relógio soava ininterruptamente a encher o ambiente daquele atrito, espalhando-se até definhar nas extensões que a onda cavalgava levada a pico para depois decrescer em silêncio. Repentinamente, outra martelada reproduzia a mesma situação, depois outra e mais outra nos mesmos moldes cadenciava-se o som de maneira a acostumar os tímpanos de quem auscultava. Esta cena é tão comum nos campos que ainda hoje nos dias atuais, quem a presencia, consegue mentalizar o espaço da pancada e do som, chegando a repeti-lo mentalmente quando o agricultor atrasa a batida ou termina esta tarefa de amolação das enxadas. Preso neste transe de som, o emissário que cavalgava a Serra do Quati logo divisou a antiga casa dos Aparecidos no exato instante em que alguém terminava de amolar seu instrumento de trabalho passando, a sorrir, os dedos no gume de sua enxada. O homem fez parada na frente da velha casa a chamar pela dona com o secular prefixo, Oh de casa! Não demorou e as duas senhoras logo surgiram porta afora, cada qual com uma pulga atrás da orelha. Desconfiadas e cheias de dúvidas se os seus disfarces haviam caídos por terra. Nesta enfadonha e cansativa incerteza logo compreenderam que pela presença daquele senhor, já suas dúvidas seriam resolvidas. O homem de idade, cabelos brancos, rosto comprido, lábios maçudos de média estatura, curvado pela idade, fala meio rouca, não precisou apresentar-se, pois se tratava de um antigo conhecido da família, era o Beato Salú, que vendo Raimunda e Benedita sem os véus não teve a menor dúvida, eram de fato as filhas do finado Pedro. Estava, portanto certa, a louca. Homem de poucas palavras. Salú não procurou saber o porquê delas esconderem suas identidades e já no aconchego da sala da casa aonde cujo ar pairava uma expectativa de ansiedade foi direto ao assunto que lhe arremetera aquele lugar, expondo que Doroteia gostaria de ter com elas. Por isto, as convidava para um almoço em sua casa e que de muito grado ficaria se elas resolvessem esquecer o passado e juntas pudessem dispor da amizade como a que tinham antes de tudo acontecer. As duas se entreolharam buscando sorrir; tendo Raimunda tomada as rédeas da resposta, mandou informar à irmã que iriam, mas de preferência no domingo; pois era exatamente o que elas desejavam e que só haviam ocultado seus nomes por receio dela não perdoá-las, por terem no passado descriminado e maltratado-a; Entretanto, os anos havia ensinado as duas que precisavam recompor suas famílias, destruída e afastada ao longo do tempo. Com isto, retornou Salú depois da resposta das irmãs a matutar no que ouvira das duas; conheciam bem os Aparecidos e sabia que aquela gente era de guardar rancor, mesmo

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que contra eles, principalmente Benedita, “A Benê” esta possuía um gênio malévolo e fora ela quem mais incentivara ao pai a ter com o futuro genro. Sabia disso, pois era amigo pessoal do falecido e antes do homem acertar com os Angelinos lhe confidenciou a pedir conselhos como proceder; apesar de ter aconselhado e pedido ao camarada para agir com mais calma o peso da desonra e a pressão dentro de casa levaram as coisas ao pé que aconteceu: o banho de sangue entre os clãs. Refletiu bem sobre o que ouvira das irmãs, contudo guardou para si seu pensar, afinal também poderia estar errado. Em Baixa Grande, Doroteia ficou felicíssima com as alvíssaras, sendo aquele dia uma quarta feira, de imediato já começou a se preparar para receber as irmãs naquele que lhe seria um grande dia, o tamanho de sua alegria era tanto que ela estava nos ares, sorrindo para tudo e todos, ascendia em seu peito uma chama de satisfação que nenhuma palavra seria capaz de descrevê-la, com os filhos dividia esta animação. Adonias logo foi contagiado pelo estado de prazer da mãe, aos amigos confidenciava seu enorme jubilo Pedro por sua vez mantinha-se mais calmo, mais distante daquela realidade, entrementes também desejava que aquilo fosse real e que o passado estivesse definitivamente enterrado, no entanto, algo lhe mandava ficava atento. O povo, a respeito deste enredo dividia as opiniões meio a meio e o Beato Salú era o que menos acreditava nas intenções das recém chegadas irmãs, mas guardava para si suas desconfianças. Na quinta feira Pedro conheceu uma moça de família local e após ligeira troca de olhares em flertes de paixão já foi de imediato pedir ao pai da donzela permissão para namorá-la, morando esta moça no Sitio Cipó dos Moreiras e sendo, por conseguinte desta honrada clã. Augusto Davi Moreira o fazendeiro pai da cachopa, homem abastardo de posses e proporcionalmente em respeito, além de letrado, “uma exceção aos fazendeiros da época”, analisou o rapaz, entrevistou-o com uma sabatina de indagações e ao final acabou por consentir a visita do mesmo uma vez por semana em suas terras para flertar com a menina sua filha de nome Joviana Davi, a caçula de seus três filhos sendo os demais dois varões. A mãe da rapariga, Dona Maria Marques após a permissão de seu marido também quis conhecer o mancebo e depois de rápida conversa com este acabou por simpatizar com Pedro; daí nasceu naqueles fazendeiros à certeza que sua filha estava em boas mãos. Que o namoro era sério, para casamento. Também ficou acertado com o mancebo a hora da visita para evitar falação das más línguas, sendo o dia escolhido para a vinda de Pedro, os sábados. Nas terras de Augusto Davi os agregados e funcionários foram orientados a tratar com fineza e lisura o pretendente da mão de Joviana que a partir dali passava a ser um membro da família. “Convém lembrar que naqueles idos os namoros eram curtos e para casamento, rapaz não passava muito tempo alisando banco em casa de donzela”. Com a aprovação pelos futuros sogros, Pedro partiu em retorno do Cipó num galope desenfreado, tal era o estado de satisfação que seu coração lhe proporcionava causado pela explosão de sentimentos do verdadeiro e legitimo amor. Em casa de sua mãe, ao saber das novas Doroteia redobrou seu estado de prazer e logo incumbiu o amigo da família, o Beato Salú, de levar uma

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missiva ao futuro sogro de seu filho constando da apreciação no namoro e de quando da data do casamento definida por ele “Augusto” ela se encarregaria de dar a festa do casório. Deste fato, Augusto Davi respostou pelo portador que a festa fazia questão de fazê-la ele mesmo, afinal sua princesinha era única e receberia toda atenção mandada pelo figurino, causa pela qual não mais se tocou no assunto e assim ficou definido. Mesmo porque é o pai da noiva segundo nosso costume quem banca a festa na noite nupcial. Naquele meio tempo enquanto os dias corriam para o domingo, Benedita e Raimunda tiveram tempo de reconversar e mudaram seus planos, acertando com Juvenal que ele ainda não se identificaria como membro da família haja vista ainda não haver sido descoberto sua filiação. Desta feita continuaria agir às escondidas até o momento oportuno. Contudo surgiu aqui um entrave entre estes. Joaquim vendo a sinceridade de sua tia, passou também a aceitar aquela opinião e de imediato discutindo com os seus deixou claro que o melhor mesmo era apagar o passado e começar tudo de novo. Por isso, quase apanhou da mãe, da tia e do primo, sendo obrigado a silenciar sob uma plêiade de ameaças que chegaram aos safanões e tabefes do primo Juvenal com o aval de sua própria mãe. Entrementes, esta situação só serviu para fazer aumentar uma determinada simpatia por sua tia, mas reservou-se em silêncio recolhido na esperança que algo acontecesse para mudar aquele quadro. Mariá, a demente, vinha caminhando pela rua a esmolar e falar coisas desconexas, palavras e frases de sua antiga vida, aonde nestes relances, às vezes, só às vezes! Fazia sentido o seu linguajar; sendo aquele momento há sétima hora matinal do domingo; o movimento pela rua já estava avultado e pendia para mais, ocorrendo naquele instante uma zoada tremenda proporcionada pelos camelôs e transeuntes sendo grande parte o pessoal da estrada. A cidade se enchia de gente, movimentos, vida. No meio disto tudo, a louca se destacava em sua andança seguida de perto por alguns moleques a aperriar-lhe a cachola e tanto estes pequenos lhe provocaram que acabou por fugir da multidão recolhendo-se ao abrigo no qual vinha passando as noites; uma casa velha em ruínas já fora da rua e que por sinal nenhum daqueles danados se aventurava a vir lhe fiar. Acompanhava isto tudo em volta de Mariá, dois pares de olhos atentos, cheios de maldades, cujo possuidor notando a retirada da mulher seguiu-a de longe observando cuidadosamente se não era notado. Em seu abrigo Mariá atirou sua trouxa de cacarecos ao solo e perdida na sua sandice sentou-se no terreno a remexer nos objetos. Em dado momento percebeu dois pares de botas estacionados a sua frente, erguendo a cabeça lentamente acompanhou as formas ali estáticas passando pelas pernas, linha de cintura, tórax e cabeça. Quando completou o movimento seus olhos esbarraram dentro dos olhos do homem que a observava com um sorriso maldoso. Naquele instante a loucura desapareceu completamente e Mariá pode entender a maldade que trazia aquela figura; com calma, sem nenhum medo se pôs de pé frente a frente com seu visitante para descrevê-lo numa única frase. “Demônio” Foi tudo: dois pares de mãos fortíssimas a agarraram pelo pescoço e começaram a se fechar num aperto mortal, a mulher num ato de pura defesa ainda conseguiu levar suas mãos para segurar nos braços do atacante, porém mais fraca e debilitada de nada resultou, e tanta força usou o agressor que conseguiu erguê-la

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do solo presa pelo pescoço. Num aperto de morte, soerguida do solo, suas pernas se contorceram em espasmos; um roxo escuro dominou sua face e seus olhos se arregalaram em dimensões horripilantes. Com o fluxo de oxigênio cortado os pulmões de Mariá explodiram silenciosamente levando-a morte. Seu corpo tremelicou suavemente e o matador sentindo o êxito de sua ação atirou-a no solo como a um mamolengo, sumindo em seguida sem deixar a menor prova de quem o fosse. Só Mariá, soubera quem era seu assassino; porém este segredo foi com ela. Depois da prática delituosa o elemento escafedeu sorrateiramente em meio ao silencio reinante a adentrar na vegetação crescente por trás da casa. Na casa de Doroteia próximo das nove horas estancou a carroça tirada a cavalo dirigida pelo moço Joaquim, depois de vencer o transito fazendo parada no frontispício da pensão. Por sua vez Doroteia já os esperava na calçada, tão ansiosa se encontrava naquele momento que mal avistou o veículo já chamou seus filhos e foram ao encontro dos recém chegados, aonde se cumprimentaram se abraçaram e do rosto sofrido da comerciante algumas lágrimas insistiram em cair. Suas irmãs ao contrário retribuíram aos abraços, mas seus rostos continuavam serenos sem demonstração de anormalia na expressão. Joaquim por sua vez abraçou a tia com muita sinceridade e aos primos tratou da mesma maneira, quebrando o gelo que estava instalado entre estes. Logo foram convidados a entrar para poderem melhor conversar. Benedita e Raimunda faziam o máximo de esforço para demonstrar gentileza, entrementes por mais que se esforçassem não conseguiam esconder sua insatisfação. Doroteia que era só alegria logo percebeu isto, mas achando que fosse conseqüência da longa separação encarou como natural. Pedro e Adonias respeitosamente mantinham-se em silencio a assistirem a prosa das irmãs. O povo passante na rua, sabedor daquele encontro acompanhava a distancia com olhares curiosos a atípica situação. Entre estes do povo: O Beato Salú em baixo de um pé de trapiá torcia o canto da boca a confabular consigo mesmo. Adonias Aparecido e Pedro Angelino rapidamente se entrosaram com o primo Joaquim. Já todos sentados em volta de uma mesa. Os sorrisos de Doroteia ligeiramente viraram um rio de lágrimas quando estas junto com as irmãs começaram a escavar o passado. Benedita astuciosamente percebendo a fraqueza da irmã, velozmente começou a relatar as suas sagas com a mãe quando arribaram dali e tanto se esmerou na narrativa que conseguiu fazer Doroteia se sentir culpada pela morte da mãe na mais completa miséria. Joaquim de Brito que ali estava de coração percebeu logo a astúcia argüida para ferir sua tia e inteligentemente pediu a todos para não mais tocar no passado e que daquele momento em diante buscassem se preocupar com o futuro. O que passara não voltaria mais e relembrar era sofrer duas vezes. Esta frase fez com que sua mãe e sua inseparável tia lhe lançassem um olhar injetado de raiva que fez o moço baixar a cabeça. Adonias percebeu de relance a cena, mas nada disse. A alegria que sua mãe estava sentindo não merecia ser quebrada por nada. Por sua vez Raimunda e Benedita dobravam seus esforços para parecerem amigáveis e com exímio zelo passaram a explicar o porquê dos nomes falsos de quando das suas chegadas.

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Além desta, tantas outras mentiras arquitetaram que não lhes foi difícil fazer Doroteia acreditar nelas. As horas correram o tempo passou. Pedro desviou a conversa na direção do seu namoro e para isto as suas tias demonstraram interesse a colherem todas as informações que julgavam úteis as suas estratégias anteriormente montadas. Haja vista que se um daqueles mancebos casasse certamente os bens de Doroteia passariam como herança para esta nora e isto elas teriam de evitar de uma forma ou de outra. A conversa continuou enveredada por muitos outros temas e... A tarde passou depressa chegando à noite e apesar da insistência de Doroteia em convidá-las para que pernoitassem ali, as irmãs resolveram arribar naquele mesmo instante alegando que ficaria para uma próxima vez. Assim resolutas e decididas ganharam o caminho da Serra carregando suas almas impregnadas de maldade e pensamentos ruins. Joaquim não, decididamente simpatizara com a tia e com seus primos, já ardia em seu intimo o desejo de ver sua mãe e tia mudando de comportamento. Entretanto! Como é que iria conseguir este mérito era o que lho preocupava. A violência não lhe atraia e agora conhecendo melhor a sobra de sua parentela ganhou a convicção deste fato; somado as pesquisas realizadas com os mais velhos sobre a contenda entre Angelinos e Aparecidos bateu o martelo no tribunal de sua mente sentenciando que a guerra dos clãs só trouxe prejuízos e nenhum benefício. “Por nada valeria a pena começar aquela zorra” pensou. O carroção cortava a estrada Joaquim se mantinha preso aos seus pensamentos, Benedita e Raimunda por sua vez discutiam as suas impressões daquele encontro ao passo que na cidade um alvoroço medonho se espalhava rua a rua, casa a casa; alguém descobrira o corpo da louca estrangulada e uma verdadeira multidão saia às ruas para ir ao local onde estava caído o corpo de Mariá. Os Militares por sua vez convergiram para aquele ponto para averiguar a situação e como realmente não tinham o menor interesse em descobrir o autor daquele feito, sendo Mariá uma jogada do mundo, sem eira nem beira; trataram apenas de carregarem o corpo para o cemitério e se este não foi enterrado como indigente, foi graças à ação de Doroteia que comprou uma cova, uma urna funerária e ainda pagou a encomenda de seu corpo. Os gêmeos mediante esta situação ficaram extremamente revoltados e até ofertaram uma boa soma em dinheiro a quem lhes apontasse o autor de tamanha crueldade. Coisa que não esperava o assassino, pois passou a ficar temeroso de ter sido visto por alguém. Dia seguinte, pela tarde. Juvenal Quaresma estava vindo de um boteco naquele instante em que o corpo da louca estava sendo carregado para o campo santo; notou que quase ninguém seguia o funeral, entre os poucos presentes Doroteia “sua tia” os primos, Pedro e Adonias, O beato Salú, duas beatas, um homem desconhecido e mais alguns meninos que seguiam silenciosos a acompanhar o corpo daquela que fôra noutrora a razão de muitas brincadeiras e lorotas, razão que iria lhes causar enorme falta no preenchimento das horas. Fora estes, o cortejo resumia-se a um soldado seguindo bem atrás, muito mais para ter a certeza do sepultamento do que

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qualquer outra razão. (Também aqui, nota-se que mesmo naquela época muitas pessoas só valorizavam as outras pessoas, pelo que elas tinham). Nesta tarde, Juvenal faltou nas obras de construção da estrada, seguiu disfarçadamente bem atrás o macabro cortejo, seguia e sorria maldosamente portando na mão um litro de aguardente do qual entornava alguns goles em intervalos de tempos distintos. Antes mesmo do funeral chegar ao cemitério o tranca rua estancou em um banco de madeira numa calçada qualquer e ali ficou rilhando a dentadura a esvaziar a cachaça do litro enquanto o féretro saia da cidade na direção da terra dos pés juntos. Vez por outra o homem olhava para o ponto em que o acompanhamento havia sumido, aí! Alisava o cabo de sua peixeira, soltava três quatros impropérios e voltava a beber sua cana. Pedro foi o primeiro a voltar do cortejo, isto notou Juvenal e quando rapaz se dirigiu para a pensão, ligeiramente o grandalhão o seguiu a alisar o cabo de sua faca e conversar carinhosamente com o instrumento como se este tivesse capacidade de lhe compreender. Altamente alcoolizado o bêbado foi direto ao balcão de atendimento onde passou a encarar o seu primo, também atento desde a entrada deste no estabelecimento, ciente de que aquela alma queria reza. Esmurrando o tablado do móvel “o Valente tranca rua” soltou um palavrão de ofensa ao proprietário e desafiou aos demais com a pergunta “se ali não havia homem?” Os fregueses da pensão ligeiramente recuaram diante da ofensa do grandalhão. Pedro por sua vez, calmamente levantou-se da cadeira que estava sentado por trás de um *biror depois do balcão a olhar seriamente para aquele indivíduo. Juvenal Quaresma era muito maior do que o mancebo, isto se dava para notar estando os dois em pé como naquele instante. Depois o comerciante caminhou calmamente para junto do provocador parando a menos de um metro de distancia deste; agora os dois se olhavam dentro dos olhos a se estudarem silenciosamente. Só aqui Pedro respondeu a indagação do outro. A resposta desagradou ao brutamonte de uma maneira tal que seus olhos crepitaram chispas de fogo, haja vista a dimensão do retorno da indagação que foi esta: - Só você dos que estão aqui é que não é homem. Juvenal vociferou a segurar com firmeza o cabo de sua faca e buscando amedrontar o primo que desejava matar, chutou com força a mesa mais próxima fazendo-a virar e quebrar o jogo de pratos que estava sobre ela. Pedro sorriu alertando-o que agora não só seria expulso dali, mais também iria cobrir os prejuízos causados. Em contra partida Juvenal sacou sua lâmina e prometeu guarda-la na barriga do outro tantas vezes quando fosse possível. Em posição de guarda Pedro perguntou pelo que o outro estava esperando e aí o grandalhão investiu bufando de raiva. Os gritos dos fregueses alertaram o povo na rua, alguns correram saindo do local, outros correram adentrando para ver a contenda. Cá dentro, Pedro se desviara da investida de Juvenal e em contra partida conseguiu ao girar o corpo soltar uma “mãozada” no pé da orelha do outro que o fez desandar de lado e cair sobre o balcão. Ligeiramente Pedro se voltou de frente para este, meio agachado em posição de defesa e ataque ao passo que Juvenal se recompôs a alisar sua cara com a mão esquerda enquanto com a direita ainda mantinha a lamina empunhada. Cego de ódio, bufando de raiva o homem

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investiu novamente contra o mancebo na esperança de eliminar o antagônico. Nova pirueta do gêmeo e Juvenal não passou nem perto de lesionar o corpo deste. Novo ataque; nova dança de defesa. Outra investida e novo bote errado. Agora Juvenal perdera toda a razão, resfolegava alto igual a uma besta do campo e até seus ataques tornaram-se mais fáceis de serem evitados. Acaso, esta situação cada vez mais o deixava maluco, pois que, nada do que tentava conseguia atingir seu objetivo. Doroteia e Adonias retornando do enterro um pouco atrasado ao notarem o movimento na pensão apressaram o passo e mais correram quando souberam tratar-se de um confronto entre Juvenal Quaresma e Pedro. Adonias o primeiro a entrar no estabelecimento logo percebeu a situação e se armando de uma cadeira ligeiramente se acercou do adverso de seu irmão, que de tão cego pelo calor da contenda não notou a chegada do outro gêmeo. Só sentiu o mundo se apagar quando algo se espatifou de encontro a sua cachola e caiu por terra tonto pela pancada recebida. Também sua faca caiu da mão e rapidamente Adonias se apossou desta ao passo que Pedro desferiu-lhe alguns ponta-pés descarregando o nervosismo que o momento impusera. Juvenal que não desmaiara com a pancada na cabeça ao sentir o peso daquelas botas na sua barriga compreendeu que estava sendo surrado e em meio às dores que estava sentindo acovardou-se pedindo para que não lhe batessem mais. Doroteia chegando também neste momento, pediu aos filhos para pararem com aquilo no que foi atendida de imediato. Quando o homem conseguiu sentar-se muita gente estava em volta do brigão sorrindo satisfeita pela coça que ele levara, também pela razão de que sua crista havia caído. Agora, Juvenal não mais cantaria de galo naquela freguesia. Doroteia esperou pacientemente que ele recobrasse a razão, o que levou alguns minutos e quando o homem estava dentro de sua consciência, ficou de pé a segurar a cabeça no ponto que a cadeira lhe acertara fazendo um corte por onde o sangue corria a empampar-lhe as vestes. Olhando para a mulher que sabia ser sua tia, ficou calado, abatido, envergonhado, cheio de ira, mais nada disse; apenas ouviu o que Doroteia lhe falou. Sem condições de vomitar valentia, apanhado, humilhado, com a arrogância em frangalhos caminhou para sair da pensão com a mais plena certeza de que se fosse visto outra vez na cidade ou mesmo trabalhando na rodagem sua vida de nada valeria, chegaria ao fim; pois na frente de todos Doroteia assegurou quinze contos de reis para quem lhe despachasse a partir daquela noite quando ele saísse dali. Logo não lhe restava consolo a não ser desaparecer até o momento que pudesse se vingar daquelas pessoas. Uma hora depois o homem juntava suas tralhas no barracão dos peões da estrada e montado na sela de seu cavalo desaparecia galopando para se embuçar nas primeiras nuances do fim de tarde, inicio de noite. O carroção avançava lentamente pela velha estrada deixando a serra do Quati com destino a baixa Grande naquela manha do dia seguinte aos fatos da pensão. Seu condutor assobiava preocupado pensando em como fazer sua mãe e tia esquecerem aquela idéia de vingança. Agora sua cabeça fervia ainda mais preocupado com o primo que chegara surrado e prometendo sangrar os autores daquela surra que mesmo ele não dizendo já desconfiava ter

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sido seus primos gêmeos. Estava indo a cidade comprar algum medicamento para cuidar da cabeça e do lombo de Juvenal que apresentava hematomas das pancadas sofridas. Enquanto a carroça avançava seu cérebro trabalhava em busca de um meio que não conseguia divisar. À sua tia e sua mãe, Juvenal Quaresma contou a briga de uma outra maneira, narrando que fora pego de surpresa pelos dois filhos de Doroteia, sendo surrado até perder os sentidos e que eles mesmos foram os autores do inicio da contenda. Isto mais aumentou a raiva das irmãs contra Doroteia e suas crias. Quando Joaquim atingiu a cidade dirigiu-se direto ao empório de Inhar Bastos, um especialista em drogas e plantas medicinais que mantinha um pequeno empório similar a uma drogaria. Em conversa com o caboclo atarracado e de uma pança roliça e rechonchuda, rosto largo e jovial, de pele escura, ficou sabendo dos últimos acontecidos na cidade. A morte da louca; A briga de Juvenal Quaresma na tentativa de assassinar Pedro de Doroteia e da tremenda surra que levara, mais ainda: da recompensa de quinze contos de réis oferecida por Doroteia a quem desse cabo do valentão se ele botasse os pés de novo na Baixa. Cumprida sua obrigação, Joaquim coçou a cabeça arreliado com mais esta dificuldade que estava a surgir no caminho da paz que ele também almejava. Antes de retornar a Serra decidiu passar na casa de Doroteia aonde foi dar a benção a sua tia e colher mais informações dos últimos acontecidos. Depois conversou com Adonias e Pedro descobrindo a verdadeira causa da briga de Juvenal; contudo ficou em silêncio já que até ali ninguém sabia que o perigoso peão da rodagem era seu primo, sobrinho de Doroteia e primo dos filhos desta. Após despedir-se dos parentes com o farnel pronto na carroça ganhou o caminho de casa com a cabeça engarrafada de pensamentos diversos. Enquanto ele se afastava Doroteia o seguia com os olhos, seu coração sorria de alegria ao ver aquele rapaz e no fundo de sua essência sua alma fazia planos em meio aos arautos de paz que ela achava ter conseguido. ... O dia, depois à noite, novamente o dia e outra noite. Estes elementos do tempo foram se alternando entre si até se passar uma semana. As pessoas seguiam suas vidas normalmente dentro do cotidiano de cada um. Os pais de Joviana juntamente com os demais membros de sua família resolveram certa tarde visitar Doroteia e a partir deste ato os laços de amizades entre estas pessoas mais se estreitaram; Doroteia noutra oportunidade retribuiu a visita e já desta feita decidiram marcar a data do casamento de suas crias, uma vez que todos faziam gosto nesta união. Por outro lado aos sábados o mancebo vinha logo cedo visitar sua futura consorte e foi numa destas visitas que Juvenal Quaresma resolveu dar o ar de sua graça; estando o elemento escondido nas terras da fazenda do Serrote do Quati. Cavalgava o noivo a trotar em seu cavalo, vestido elegantemente, como sempre se vestia naquelas oportunidades, pela estreita rodagem ladeada de uma vegetação variada de pequenos arbustos a grandes árvores, e vinha inebriado com a imagem de Joviana, linda e perfumada a sorrir para ele, tão absorto estava em seus devaneios de amores que não notou a uns cinqüenta metros a sua frente um homem escorado por trás do tronco de uma baraúna a segurar sua arma sorrindo maldosamente. Há pouco mais de um metro do solo o tronco da

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árvore se dividia em três outros por onde se prendia um incontável emaranhado de galhos menores, todos cheios de folhas verdes e viçosas, as quais serviram para esconder o meliante por trás. Há menos de trinta metros do cavaleiro para árvore partiu a detonação que encheu o ar daquele horrendo som mortal. O cavaleiro quedou baleado caindo no terreno; seu cavalo partiu para diante num galope frenético, cortando o caminho o mais rápido possível. A fazenda Cipó estava tão próximo que seus habitantes ouviram o disparo. Joviana que traçava um crochê ao sentir o som ficou de pé, estática assustada, como se algo lhe tivesse atingido. Sua mãe que também escutara o disparo correu para junto da filha e já percebeu as lágrimas caindo de seus olhos. Neste preciso momento o cavalo de seu noivo adentrou galopando na fazenda. Os irmãos desta com o velho Augusto Davi que também escutaram o disparo já correram para suas montarias e ganharam a estrada em busca de descobrir o que se passava. Naquele momento mais do que uma má impressão, a certeza de uma desgraça estava presente entre eles. No interior do casarão Joviana agarrava-se a sua mãe em prantos, tendo este aumentado ao notar o cavalo chegar sem seu noivo. Caído no terreno o cavaleiro avistou um enorme jardim cheio de flores por onde corria Joviana entre as borboletas e pássaros que cantavam toadas de amor; ali notou o rapaz uma incontável miriades de flores, lindas, perfumadas, coloridas. Joviana continuava dançando por entre estes canteiros, sorrindo, cantando e quando este se aproximou dela com um enorme calhamaço de flores para lhe dar, esta que estava de costas, virou-se para ele e ele pode ver as lágrimas de choro que corriam pela face da mulher. As flores que segurava haviam se transformado em sangue e quando ele quis correr para alcançá-la suas pernas titubearam e ele caiu. Repentinamente um escuro irrompeu dominando tudo, e este ainda ergueu a mão a clamar por sua noiva. Fechou os olhos; abriu, e nada. A escuridão continuava ali. De repente começou a sentir um frio descomunal e pode ver ao longe uma moça vestida de branco correndo de encontro a ele. Ficou de pé e também correu de encontro a ela, mas estranhamente quanto mais corria mais longe ficava daquela. Esta sensação lhe causava um desespero indescritível. Juvenal Quaresma caminhou até chegar junto do quedado a assistir ele respirar com dificuldades. Sorrindo com muita calma remuniciou sua espingarda e apontou para dar o tiro de misericórdia. Neste momento o som do tropel de cavalos as suas costas lhe chamaram a atenção e antes de efetuar o disparo saltou para dentro do mato buscando escapulir dali. Mal o elemento se embuçou Augusto e seus filhos chegaram junto do ferido constatando em profundo estado de melancolia que o jovem estava morrendo. Lágrimas começaram a correr pelos rostos dos irmãos de Joviana e também pela face do calejado sertanejo Augusto Davi, que se perguntava intimamente quem fizera aquilo e o porquê? Em meio à impotência da situação transportaram o rapaz até sua casa na esperança de conseguir ajudá-lo. Na fazenda os agregados corriam feitos loucos, uns organizavam uma batida pelos arredores, outros cuidaram de arrumar algum socorro através do conhecimento que tinham naquelas ocasiões. Em fim: foi um corre-corre geral. Porem, o mancebo deitado na cama de um de seus cunhados, estando Joviana abraçada com este a amparar sua cabeça no colo e fitá-lo com o coração dilacerado, os olhos marejando em

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lagrimas, suspirou pela última vez sucumbindo nos braços da mulher amada. Ao notar a morte do seu amado, Joviana entrou em pânico; sua mãe abraçou-a e a afastou dali. Augusto Davi, acostumado a dureza da vida, mediante aquele quadro, também chorava silencioso, trancado na sua amargura e no nó que estava sentindo a atravessar-lhe a goela. Seus filhos com alguns agregados estavam vasculhando a área para ver se descobriam o assassino. Diante disto, naquele desespero saiu a pegar seu cavalo e mais rápido quanto pode cavalgou para a Baixa Grande a casa de Doroteia Aparecido para ter com esta sobre o ocorrido ao seu amado filho. Doroteia que sentira uma dor momentos antes ao ver Augusto entrar em sua casa já começou a chorar e não foi preciso o homem dizer mais nada; seu coração de mãe descobrira tudo. Apenas abraçou ao visitante e este a segurou evitando dela quedar, enquanto o homem pedia para ela ser forte. Adonias fechou o estabelecimento e correu apressado para junto de sua mãe ao ser alvissarado do ocorrido ao seu irmão Pedro. O estado de abandono e desolo que sua alma se encontrava era tão grande que dor nenhuma poderia ser maior do que a que ele estava sentindo agora. Não havia palavra nem ele desejava dizer nada a ninguém, apenas abraçava sua mãe deixando seus olhos se inundarem com as lágrimas que corriam em abundancia. Era como se ele mesmo estivesse morto. Arrasado, sentindo-se o ultimo ser sobre a face da terra. Porém daquilo tudo um nome martelava em sua cabeça e não saia: Juvenal Quaresma. O fogo da ira fôra aceso no archote da desgraça e logo a sede de vingança varreria a vida de muita gente. Naquela mesma noite dois militares da cidade e uma comitiva de amigos foram à fazenda Cipó buscar o corpo de Pedro, entre aquela gente cavalgava Augusto Davi, sisudo, cabisbaixo, aprendera a amar o jovem genro como se fosse seu filho e também ele daria a mão direita para agarrar o autor daquela proeza. Doroteia apesar de ter certeza que fora Juvenal o autor da morte de seu filho, sentia agora nascer uma dúvida que jamais pensara antes. Será que haveria algum resquício da antiga contenda entre Angelinos e Aparecidos na morte de seu filho? Era a dúvida que lhe corroia o íntimo. No Serrote do Quati, Juvenal Quaresma chegou à casa de sua mãe contando eufórico a sua façanha. Benedita e Raimunda gargalharam com a notícia recebida; porém Joaquim ao ouvir esta desgraça saltou de tempo a proferir uma série de acusações ao primo, que mesmo lhe impondo medo, não sentiu-se impelido de destravar o seu furor. Partindo a partir dali para uma enxurrada de acusações verbais e adjetivos outros. Nesta hora também sobrou acusações a sua mãe e tia, chamando-as de loucas. Antes de conhecer sua tia e seus primos, houve uma época que Joaquim também ansiava o fim daquela gente. Contudo, depois que viera morar ali e conhecera melhor a eles e a história do seu avô, passou a ter a mais clara convicção que o passado deveria ser esquecido e que Doroteia estava certa, a paz deveria reinar. A tal ponto chegou o desentendimento entre Joaquim, Juvenal, mãe e tia que ele acabou partindo para as vias de fato contra o assassino de seu primo. Juvenal irritado com as intempéries do outro he desferiu um potente soco no queixo que o fez quedar. Novamente

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Joaquim ficou de pé e partiu para o adverso, outro murro e nova queda. Sentindo-se impotente mediante a capacidade física do primo; ficou de pé e correu saltando por sobre a porta que estava fechada só à parte inferior. Sua mãe ligeiramente ordenou a Juvenal que o segurasse, mas já era tarde, Joaquim conseguira ganhar o terreiro e numa corrida desabalada adentrou na vegetação que dava para a serra, sem que sua mãe sua tia ou mesmo o primo, conseguisse convencê-lo a voltar para casa, como tentaram com apelos diferentes. Arreliada, Benedita e Raimunda perceberam que se Joaquim não se acalmasse poderia estragar tudo. Juvenal Quaresma temendo por sua mãe e sua tia, compreendeu que se aquele louco o delatasse elas passariam a correr perigo de vida; assim decidiu ir atrás do primo, mesmo sem esperanças de localizá-lo dentro do escuro da noite. Como de fato não o encontrou. O dia veio, mas Joaquim não apareceu mais em casa. Preocupadas com ele e com elas mesmas as duas irmãs decidiram na manha do dia seguinte da fuga de Joaquim aparecer na cidade para prestar seus pêsames a Doroteia e descobrirem alguma coisa do desaparecido. Afinal guardavam a esperança de que ele não as trairia, afinal uma era sua mãe e outra tia.Juvenal por sua vez ficou escondido na fazenda. Na boleia da carroça as duas fizeram os cavalos galoparem no sentido da Baixa, e pela pressa que andaram não demoraram a chegar na cidade, aonde foram direto para a pensão de Doroteia, local em que era velado Pedro. O Armazém estava de portas batidas com uma enorme faixa preta em sinal de luto. E no local em que o povo velava o mancebo quase toda cidade convergia a prestar sua solidariedade; ali também estavam Joviana vestida de preto e todos os seus parentes a receberem os amigos naquela hora difícil. Adonias trancou-se em seu quarto e dali não saiu para ver ninguém; queria estar só, esmurrando as pilastras da raiva que sentia por não ter matado quanto pode o infame Juvenal Quaresma. Quando conseguia conter o pranto Doroteia buscava explicação para aquela perda, aí uma nova onda de depressão se abatia sobre ela e só conseguia chorar. Quando as irmãs entraram no velório vieram em silencio direto a Doroteia, abraçaram-na falsamente e transmitiram seus pesares à irmã convencendo-a de que também estavam sofrendo. Realmente as duas estavam com cara de preocupação, mas isto se dava pelo sumiço de Joaquim, não pela morte do sobrinho. Pela ausência deste explicaram que ele estava doente e que não poderia vir naquele dia, mas logo faria uma visita a tia e seu primo. Como havia muita gente prestando sua homenagem, Doroteia, valente guerreira se fez de forte e saiu a conversar com todos que chegavam a lhe estender a mão. Neste espaço de tempo Raimunda e Benedita aproveitaram para prosear com o fazendeiro Augusto Davi que gentilmente acreditando na sinceridade daquelas duas informou-as que elas não se arreliassem que logo após o enterro de Pedro ele iria compor um grupo de caçadores e dobraria a proposta de Doroteia de que quem lhe trouxesse vivo ou morto o tal de Juvenal Quaresma ganharia a pequena fortuna de trinta contos de réis. Acaso esta noticia soou como uma bomba para aquela duas que não esperavam esta reação. Logo um mal estar tomou conta da mãe do meliante e uma enxaqueca dominou sua tia que alegaram não estar se sentindo bem e pediram desculpas para se ausentarem dali. As falsas demonstrações de dor e sentimento desapareceram surgindo uma verídica dor de cabeça.

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Esta alviça de Davi assombrou as duas de tal maneira que muito mais rápido cavalgaram de volta para casa para alertar a Juvenal que este teria de passar uns tempos fora, e o que é pior, as duas começavam a divisar um grau de dificuldades que não esperava encontrar naquela campana. ... No cume do serrote do Quati, há dois dias caminhando dentro da mata, se alimentando de frutos, Joaquim de Brito descobriu uma formação rochosa altíssima e de difícil acesso que precisaria ser vencida para atingir a outra parte da montanha. Por aquele caminho que intitulou de cordão de pedras se meteu até alcançar a parte mais elevada da serra e só parou quando alcançou ao acaso uma pedra em declive, lisa, com uma barroca no centro, causada por um pingo de água que caia de outra pedra há uns vinte metros acima; a força desta ação abrira aquela saliência que estava cheia de água, a qual servia de bebedouro a pequenos animais. A este local, o rapaz batizou de pinga. Depois disto, movimentando-se com mais calma e observando atentamente a natureza do lugar constatou a existência de várias espécies de animais como gato do mato, macacos, papagaios, periquitos, mocós, sonhins, tatus, cutias, guaxinins entre tantos outros. Sentando-se sobre uma gigantesca pedra a saborear uns cocos catolés começou a pensar no que fazer dali pra frente. Não queria ver mais mortes, mas não podia delatar a mãe. Não estava a favor de brigas, no entanto estas começaram como um rio caudaloso que corre para o mar e só pára quando atinge seu objetivo. Assim sendo como é que ele iria conseguir conter aquela horda de irracionalidade. Cantava uma juriti suas melodias silvestres e concentrado nesta toada Joaquim deitou-se sobre a pedra embriagado com o cantar da ave; também cansado dormiu profundamente e ao longe seus ouvidos captaram sons de passos e uma conversa ininteligível; abriu os olhos sobressaltados e viu um pequeno homem vestido em pele de animais, cabelos assanhados, olhos vivos e ligeiros acompanhado de uma onça pintada a olhar fixamente para ele, depois do distinto, percebeu Joaquim que convergia uma grande variedade de animais pairando no ar uma tênue neblina a dificultar sua visão. O homenzinho se aproximou dele e arrastando de dentro de um bornal também de pele de animais uma espécie de pó, atirou-lhe na vista. Rapidamente uma centena de pequenas luzes brilhou por sua volta a incandescê-lo, quando repentinamente sentiu-se sugado para dentro de uma sala escura em meio a um redemoinho de vento; depois veio um silencio e uma enorme claridade seguida de um estado de bocejo e dormência que o fizeram ferrar no sono. Mágica, trama, sonhos, fantasias; nunca ninguém soube. O fato é que dias depois um grupo de homens liderados por Augusto Davi batendo a serra em busca de Juvenal Quaresma, encontrou distendido sobre uma enorme pedra as roupas intactas e perfeitas de Joaquim de Brito. Perto desta encontraram uma outra pedra que de determinado ângulo forma a silhueta de um homem, surgindo a partir daqui o mito da Pedra Encantada. Ainda hoje, nos dias atuais a pedra está lá, em cima da serra. As lendas e as crendices, estas sumiram no decorrer do tempo; porém Joaquim de Brito nunca mais foi visto ou alguém soube dar noticias do paradeiro dele.

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Após descer da serra com seus homens, Augusto Davi aportou na casa de Raimunda e Benedita, a estas entregou as vestes encontradas em cima da montanha. Quando fez a doação daqueles acessórios à mãe do rapaz, ela reconheceu aquelas roupas entrando em profundo estado de desespero, certa que ficou do filho ter morrido. O estado de melancolia e pranto da mulher fez aqueles caçadores se compadecerem da dor da agricultora, assim passaram para diante sem revistar a vivenda para a sorte de Juvenal que estava dentro de casa escondido de arma na mão. Este fôra pego de surpresa e certamente estaria morto se não fosse aquela situação da roupa. Que por sinal explicou a sua tia e sua mãe como sendo um ardil de Joaquim, pois sem coragem de lhes barrar ou denunciar, fugiu para longe, deixando ali as vestes para dar um maior mistério ao seu sumiço. Ainda assegurou a estas que com o tempo Joaquim voltaria, era só esperar. Pelo menos estas palavras serviram para acalmar as duas mulheres que aceitaram aquela explicação. No transcorrer dos dias, Raimunda e Benedita acabaram por aceitar a idéia pregada por Juvenal; um dia Joaquim retornaria para elas. Entretanto isto jamais ocorreu. Doroteia arrasada pela perda de Pedro, passou a gerência de seus negócios a um filho do Beato Salú. Decidindo dar uma viajada na intenção de superar a perda de seu ente querido. Tão debilitada estava naqueles dias que viajou sozinha sem informar a ninguém para onde ia à exceção do filho. Augusto Davi e seus filhos continuaram em diligencias na busca do temível Juvenal Quaresma a quem atribuíram à morte do mancebo, exatamente por ser este o inimigo direto dos gêmeos. As irmãs quando vieram saber que Doroteia havia viajado ficaram irritadas, afinal ainda tencionavam levar adiante o plano que trouxeram para aquela cidade. Por isto, muito tentaram diante de Adonias descobrir para onde sua irmã havia ido. Mas orientado por Salú, o mancebo nada disse; já não confiava mais em suas tias, como começara em outra hora. Fechando-se cada vez mais para suas tias, Adonias passou a freqüentar com mais presença a propriedade de Augusto Davi e logo ele mais os filhos deste fazendeiro começaram a praticar incursões que pudessem descobrir o paradeiro de Juvenal.Quaresma, por sua vez, estava se escondendo em uma velha casa na fazenda dos seus que servia de depósito. Ali estava sendo sua morada até que ele pudesse agir novamente. Coisa que já teria feito se não fosse à atuação de sua mãe mandando-o ter calma. Esperançava que logo os Davis perdessem o gosto por sua procura e abandonassem a causa de Pedro; afinal Joviana era nova, bela, formosa e logo arrumaria outro pretendente fazendo o caso de Pedro cair no esquecimento. Pois assim, sem aqueles aliados seria mais fácil eliminar Doroteia e Adonias. De fato aquelas víboras estavam certas. Joviana logo descobriria o interesse por outro rapaz; Contudo não foi como elas premeditaram já que a moça depois de certo tempo caiu de amores pelo irmão de seu ex-noivo e seus próprios irmãos chamados André Davi e Renato Davi foram quem trataram com o pai de que dava para fazer o casamento de Joviana com Adonias, remediando a falha do destino. Coisa que foi por todos da fazenda aceito de bom grado. No princípio ainda quis o moço relutar contra esta situação em respeito à memória de Pedro; contudo o argumento de que se ele não casasse com Joviana certamente alguém de fora faria, quedaram sua resistência. Então só lhe restou aceitar e manter a moça presa a

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sua clã. Até porque, ele também estava gostando da rapariga. Augusto Davi contentíssimo com esta noticia e atendendo a solicitação dos novos noivos imediatamente marcou a data do casório, mas não avisou a ninguém a não ser a mãe do rapaz. Afinal não havia clima para festas, seria uma celebração simples e pronto, tudo estaria consumado. Uma semana depois um Padre vindo de longe fez a união dos jovens em presença de todos da fazenda e de Dona Doroteia, recém-chegada, que sobre orientação do seu filho não convidou suas tias. Afinal Salú lhe orientara a só confiar nestas em ultima estância. A mulher ainda relutou sem acreditar nas desconfianças do filho. Entretanto como era o casamento dele, resolveu atender e esperar para ver no que ia dar. No dia seguinte, a noticia daquela união repercutiu por todo rincão chegando inclusive na casa das irmãs de Doroteia que soltaram uma centena de pragas contra aquele enlace que lhes dificultava os planos. Juvenal agoniado pela espera foi quem mais se mostrou revoltado a culpar a mãe e tia pelo atraso que culminara na geração de novos herdeiros dos bens de Doroteia. Por ele a muito seu primo sobrevivente já teria batido com a caçoleta. Desoladas as duas manas compreenderam que seus esforços em legarem o patrimônio da irmã haviam falhado, e o que era pior: Juvenal permanecia sendo caçado, já, Joaquim sumira de vez. Depôs desta situação Juvenal aumentou seu estado de impaciência e certa manha se armou até os dentes avisando para sua mãe e tia que ia para a cidade ter com Adonias e de nada valeria apenas elas insistirem para ele não ir, pois era causo decidido e que se fosse preciso até aos Davis daria cabo. Tinha ele sua própria mentalidade do drama. Próximo do meio dia, Juvenal Quaresma adentrou a cavalo na Baixa, ali já foi direto a casa de Adonias para ter com este, ao passar defronte a Delegacia o único soldado de plantão bateu as portas do local e saiu pelos fundos com uma vara de pescar nas mãos. O povo ao vê-lo cavalgando de forma natural também dispessou-se das ruas e logo parecia que a cidade se esvaziara, Quando o mancebo alcançou a porta do armazém já chegou de planos traçados e em sua mente maléfica um grande plano havia se formado, é óbvio que contara com o auxilio das suas protetoras. Corajosamente adentrou no empório e quando caminhou alguns passos encontrou Adonias a segurar um rifle apontando para ele, Doroteia estava ao seu lado, sendo que Joviana saíra a mandar avisar ao seu pai o que estava se passando. Antes de qualquer coisa o homenzarrão ergueu as mãos para o alto e alertou para aquele a sua frente que se quisesse poderia matá-lo, mas seria covardemente como fizeram ao seu irmão. Que ele nada tinha a ver com aquilo e que estava fora quando o fato ocorreu, conseqüência da promessa de Doroteia em colocar sua cabeça a premio por quinze contos de réis. Mãe e filho se entreolharam, fazia sentido o álibi do outro, entrementes se não fôra ele, fôra quem? Ficou na dúvida Adonias. Juvenal prosseguiu a explicar que só retornou aquele local por receio de ser baleado por uma conta que não devia; assim sendo se tivesse que morrer seria daquela forma, pagando pelo que não fez. Ainda acrescentou para que todos pudessem ouvi-lo em um belo discurso de que não iria mais sair da cidade, que a briga com aquela gente era causo passado, que havia mudado e iria continuar trabalhando e quem sabe arrumar um rabo de saia para emendar sua vida. Adonias confuso baixou a arma e pediu para

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que ele se retirasse dali. Doroteia novamente deixou as lágrimas caírem de sua face e momentos depois irrompia pela venda fortemente armado Augusto Davi e seus dois rapazes. Quando tomaram conhecimento do desenrolar da situação; Davi coçou o queixo e não deu nenhuma credulidade ao discurso do tal Juvenal, assim reuniu-se com o genro e passou a expor seu ponto de vista criando um plano para descobrirem a verdade ocultada. O clima de insegurança voltou a andar pelas ruas da Baixa; os comentários se espalhavam avultados e até ali ninguém conseguira ainda descobrir que Juvenal Quaresma era sobrinho de Doroteia. Esta ressentida pela perda do filho vivia trancada em um quarto dentro de casa; das próprias irmãs se afastara um pouco, raramente dava o ar da graça para conversar com alguém, e neste tema enveredado na angustia dilacerante da saudade se distanciava cada vez mais da realidade. Contudo certa manha as duas irmãs surgiram a sua porta, vinham chorosas e tristes lamentando o desaparecimento de Joaquim; Doroteia as recebeu e sentida da perda de sua cria, logo todas passaram a dialogar suas lamurias chorosas. Foi à única vez que Benedita e Raimunda choraram de verdade na frente da irmã, mas tudo pelo sumiço indecifrável do jovem Joaquim. Naquele dialogo Doroteia ainda achou que possivelmente Juvenal também tivesse eliminado Joaquim, pois tinha desconfiança que fôra ele quem matara Pedro. As estas acusações às irmãs procuram combater descrendo que aquilo fosse verdade. Já que em sendo aquele homem não teria corrido tanto risco em voltar ali. Dúvida que mais ainda atormentou a comerciante. Benedita criou ainda uma hipótese que em muito passou a ser considerada por sua irmã, disse ela que possivelmente algum Angelino ainda vivo estivesse continuando a vingança dos seus. -... No dia seguinte Juvenal voltou para as estradas na buscar de ser readmitido. Ali foi recebido pelo chefe da construção que o despachou informando que sua vaga fõra preenchida. Que ele pegasse as mudas de roupas que deixara no galpão e desaparecesse dali. Quando o encarregado se afastou caminhou sorrindo para o barracão dos peões, mas com um ódio profundo por aquele sujeito que lhe tratara grosseiramente. Na barraca afastou a cortina surrada que pendia a porta de chegada e caminhou para adentrar no recinto. Ali cantou suas coisas e ajeitou-se para sair bufando silenciosamente igual a uma cobra pronta para dar o bote. Antes que conseguisse deixar o galpão, um homem surgiu a sua frente com uma expressão sisuda era Augusto Davi, que parou frente a frente com este. Uma expressão de desagrado lampejou na face do facínora e este se achegou frente a frente com o fazendeiro a encará-lo perguntando o que ele queria. Os dois rapazes de Augusto então surgiram por trás do valentão a explicar do que se tratava. Se sentindo cercado o homem perdeu a coragem que antes demonstrara diante do pai dos rapazes. Entendendo que a situação se complicava tentou amenizar o momento, informando que ele havia mudado. Não pôde continuar falando os mancebos o seguraram pelos braços e Augusto tratou de amarrar-lhe fortemente as mãos. O homem prometeu gritar para que os peões ouvissem o que acontecia se eles não tirassem à corda de seus punhos. Augusto desta feita foi quem sorriu a orientá-lo explicando que ficasse a vontade; já acertara com os peões e ninguém, uma única alma se quer iria se importar com

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ele. Para tanto o conduziram abertamente diante do grosso dos homens perto dali, que se quer olharam para estes. Neste instante, sentindo um temor gigantesco o homem perdeu o controle e passou a falar mal de todos os seus ex-camaradas, ameaçando-os de morte. Acaso isto ajudou mais ainda a Augusto desaparecer com ele dali. Tomando uma trilha insinuosa por dentro da vegetação cavalgaram na direção da fazenda Cipó. Em certo trecho do caminho quatro peões se juntaram a eles fazendo aumentar o estado de desespero de Juvenal Quaresma que dali já fôra escoltado até as águas rasas do rio que cortava aquelas terras. Agoniado e quase chorando sentindo as coisas se complicarem cada vez mais, o homem perdeu a compostura e passou a implorar por sua vida. No entanto o grupo mantinha-se no mais completo silencio e isto mais ainda enervava-o arreliando seu desespero. No rio, o grupo de homens caminhou com o preso, forçando-o a andar até a altura que água chegava ao umbigo. Ali começou a sessão de mergulhos e perguntas. No princípio este ainda negou ser ele o autor da morte de Pedro, todavia depois de vários mergulhos forçados e com o ar sumindo de seus pulmões, sentindo que aquela gente iria afogá-lo de uma forma ou de outra. Pediu uma garantia para contar tudo se o velho prometesse não mata-lo afogado, mas sim o entregasse a justiça. Augusto Davi sorriu finalmente, prometendo ao meliante que não o mataria, nem ele, nem seus filhos ou mesmo qualquer agregado deste. Isto foi o suficiente para Juvenal recobrar a calma e pensando ligeiro procurou criar uma situação que lhe fosse favorável. Neste instante um dos peões que o seguravam sentiu vontade de revistar o brutamonte e metendo a mão no bolso da camisa do tranca rua, arrastou um papel bem molhado, afastando-se até a margem entregou-o a Augusto que com calma abriu-o sentindo um choque ao tomar conhecimento do que se tratava. Momentaneamente, Juvenal ainda assustado sem a direção total de seu raciocínio não percebeu o que estava acontecendo, mas como um raio sua mente explodiu em claridade. Aquele papel tratava-se da sua certidão de nascimento. Agora tudo estava desgraçado. Augusto Davi ao sentir o impacto da descoberta ordenou que trouxesse o homem para a margem e pendurassem-no de ponta cabeça na marizeira frondosa que crescia imponente na barreira do rio. Preso pelos calcanhares se contorcendo de dores Juvenal Quaresma sentiu estar perdido; já não tinha a menor condição de explicar tantas coisas, e o que era pior, sua mãe e tia agora estavam descobertas. Relembrando ao fazendeiro que ele impusera sua palavra em não mata-lo o aprisionado quase chegou a chorar se sentindo perdido. Novo jogo de perguntas lhe foram feitas e que para poder responder pediu que lho tirassem daquela posição, pois já estava se sentindo tonto. Amarrado de pé ao tronco da árvore, momentos depois, Juvenal sentiu Augusto se avizinhar dele com uma faca na mão, e aí desandou a tremer lembrando de imediato a promessa do outro. Apavorado, segurando sua vida na frágil linha de promessa do fazendeiro, e buscando dar respostas favoráveis aos ouvidos deste, Juvenal finalmente entregou o jogo, quando já! Augusto mandara baixar-lhe as calças para castrá-lo, lembrando ao mesmo que prometera não matá-lo, mas não prometera não capá-lo. Mediante este novo impasse mais ainda o elemento abriu o bico negociando sua integridade física em troca dos planos malvados

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de sua tia e irmã. Mesmo em razão do temor que estava sentindo pelo momento imposto, o elemento conseguiu de forma astuta ocultar certos fatos. Augusto sorriu ciente que descobrira o fio da meada e em segredo ao preso ordenou a um de seus filhos que fosse buscar Adonias enquanto ele mantinha a prosa com aquele caboclo. Duas horas depois Adonias chegou resfolegando suado, apreensivo e depois de tomar conhecimento da nova situação quis de imediato sangrar seu primo. Todavia Augusto o lembrou que ele voltara a negar ser o autor da morte de seu irmão e só dera a entender para ganhar o empenho de sua palavra em não matá-lo. Solicitou ainda Augusto Davi ao futuro genro para não matar o arruaceiro, pois seria bom um confronto de opiniões deste com sua mãe e sua tia na frente de Doroteia. Acrescentou ainda que mesmo sem a milícia merecer confiança naquela situação ela iria funcionar, pois ele em pessoa iria fazer valer o seu peso de fazendeiro. “Espécie de Coronel político naquelas bandas” ... Pouco tempo depois, aportavam na delegacia de Polícia, Augusto Davi com os seus mais Adonias e sua mãe que se juntara ao grupo na cidade, aonde foram entregar o malfazejo a milícia local. Terminado de trancafiarem Juvenal Quaresma, Benedita sabedora das novas em volta daquela situação que tanto lhe causou surpresa quanto ira, mandou selar um cavalo para tratar de tirar a limpo aquela querela, imediatamente. ... No Serrote do Quati, Benedita e Raimunda entraram numa aresta pelo sumiço de Joaquim; a mãe deste mancebo acusava a irmã de que o filho dela deveria ter matado o seu, como fizera ao de Doroteia; a outra defendia Juvenal com unhas e dentes dizendo que ele não fizera aquilo; que Joaquim iria aparecer. Ora! O entrave prosseguiu e as acusações foram aumentando e explodiu numa tremenda discussão que passou do bate boca para vias de fato. Agaturradas rolaram pelo terreno cada qual procurando lesionar a outra. A mãe de Joaquim gritava possessa que antes melhor seria ter feito as pazes com Doroteia do que ter dado ouvidos ao assassino do Juvenal e sua miserável matriarca. Na troca de ofensas a genitora de Juvenal no auge de sua ira respondia que se seu filho tivesse eliminado Joaquim, tanto melhor o cabra era frouxo e logo a mãe dela iria se juntar a ele. Nesta troca de acusações, pancadas, gritos e calunias um ódio descomunal explodiu entre ambas. Agora as duas brigavam defendendo cada qual sua vida e ensejando por um fim na da outra. Fora de controle as duas reviraram a casa quebrando tudo e se ferindo em golpes desferidos uma contra a outra; agora pouco falava apenas grunhiam em um elevado estado de estupor e raiva. Descabeladas, mordidas, lesionadas, continuaram se atracando numa luta infernal; quem as visse ali agora jamais imaginariam que um dia foram carne e unha, já que tomaram os postos de duas gladiadoras que duelavam para matar. Não havia família, razão, lógica, humanidade, apenas o desejo da morte; com isto a ferocidade da luta atingiu seu pico. Benedita conseguiu enterrar um dedo no olho direito de Raimunda dilacerando o em frangalhos; a mulher gritou horrorizada, mas não largou da outra; antes laçou o pescoço da irmã com um ódio animal e começou a fazer pressão enforcando-a. Benedita relaxou no ataque e sentindo o ar

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desaparecer buscou se defender tentando se desencilhar daquele bote mortal. Redobrando o ímpeto de sua força mais ainda, a mulher agora sentada sobre o corpo da irmã entre suas pernas, apertou a jugular da outra, fazendo o ar desaparecer de seu domínio. Desesperada Benedita esperneou tentando se livrar daquele ataque fatídico; todavia quanto mais ela resistia mais forte aquelas mãos estreitavam seu pescoço num aperto infinito. Perdendo os sentidos pela falta da oxigenação no celebro Bene desmaiou deixando pender sem forças as suas mãos e sem poder proporcionar qualquer defesa foi assassinada por estrangulamento, já que Raimunda só há largou dez minutos depois quando sentiu que ela estava irremediavelmente morta. Ainda ali ela segurava o pescoço da outra a gritar lhe uma série de ofensas. ... Meia hora depois quando o silêncio se restabeleceu no local, Raimunda saiu de cima do cadáver de sua irmã; seu rosto desfigurado e cheio de sangue demonstrava que perdera um dos olhos na luta pela vida. Arrastando-se a respirar, procurando entender aquela situação, em busca de paz, alcançou uma cadeira derrubada e a ajeitou sentando a começar a compreender o peso da desgraça que caíra sobre elas. Quando a consciência despertou em seu intimo; a mulher levantou-se repentinamente da cadeira e olhou para a irmã morta, distendida no meio da sala; aí! De pé soltou um grito bestial de desespero e saiu correndo porta afora de roupas rasgadas, cabelos assanhados, pés descalço e rosto sangrando pelo ferimento do olho; buscava neste momento o caminho da Baixa. Quem a visse passar pela estrada não a reconheceria naqueles farrapos, também Raimunda estava similar a Mariá, de sua boca só saia agora palavras sem nexo da mais completa loucura. Desvairada em uma sandice doentia a única frase completa que pronunciava referia-se a Juvenal Quaresma, dizendo que ele sabia; no demais não falava coisa com coisa. Transloucada pela conseqüência do ódio guardado e da explosão de desencontros que culminaram naquela contenda, Raimunda estava muito pior em aparências do que a mendiga Mariá enquanto doidejava pelas ruas. Dos seus lábios feridos e roxos só saia agora um grunhido irracional indecifrável, incompreensível, até para os loucos. Assim que o cavalo de Doroteia ficou pronto o grupo de pessoas composto por Augusto Davi, seus filhos, Adonias e sua mãe resolveram ir a Serra do Quati ter com as irmãs desta ultima. O Beato Salú após tomar conhecimento das novas se juntou ao grupo estando a conduzir uma carroça. Logo todos se botaram em marcha para o serrote acrescidos ainda por dois milicianos, sendo que o Cabo ficou de plantão na guarda de Juvenal até o retorno de destes aonde certamente toda aquela história seria passada a limpo. Assim o grupo de pessoas marchou para o Serrote do Quati ganhando o percurso de trajeto pela rua da delegacia; causa que fez a turma passar por uma rua enquanto Raimunda estava entrando na cidade por outra, havendo aí um desencontro inesperado. Raimunda naquele estado estava irreconhecível. Enquanto caminhava ensangüentada e suja a dizer frases desconexas fez com que uma dezena de meninos se juntasse a vir-lhes tirar a terreiro como fazia noutra hora a Mariá. Desta feita a louca armou-se

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de umas pedras e mal um menino se aproximava dela já fazia menção de atirar-lhe o objeto. Esta situação ao invés de fazer a molecada se afastar ocorreu como atração; pois já, ligeiramente havia quase uns cinqüenta pirralhos a desafiá-la chamando-o de doida da pedra. De certo um de seus arremessos contra os pequenos abriu a cabeça de um menino de dez anos. O pai deste pirralho revoltado ao invés de exemplar o filho correu a Delegacia para avisar ao Cabo dos ocorridos, afirmando que se ele não tomasse providencias com a doida ele mesmo iria dar uma corça naquela maluca. Explicando que não poderia se ausentar até o retorno dos seus subordinados o Cabo pediu ao queixoso para este trazer a doida até ali que ele a trancafiaria até resolver aquela querela. Meia hora depois Benedita foi trancada na mesma cela que Juvenal Quaresma seu sobrinho marginal. Razão de só existir um xadrez naquele local. A principio o homem se manteve de costas sem olhar para aquela estranha amalucada, mas só por pouco tempo... Raimunda Aparecido, maltrapilha, ferida, suja, realmente estava disforme, quase irreconhecível aos olhos dos seus, entrementes após alguns segundos o homem passou a olhar para aquela figura com bastante calma e aí não foi difícil descobrir que se tratava de sua tia. Aqui um desespero aterrorizante se apossou do seu ser que caminhando para junto da louca, segurou-a a pedir explicações sobre o que acontecera. Em vão seus apelos foram debalde; Raimunda não só estava com a roupa em retalhos, como também seu cérebro apresentava-se mais retalhado ainda. No Serrote do Quati, Doroteia, Augusto, Adonias e os demais, encontraram uma cena inexplicável; a casa revirada a mobília quebrada, as portas e janelas entreabertas e Benedita distendida no solo morta por estrangulamento. Depois de revistarem palmo a palmo a casa grande e os arredores compreenderam que não havia viva alma por ali. Era um mistério o sumiço da outra irmã da morta. Assim discutiram o que fazer e decidiram colocar o corpo de Benedita no largo do estrado da carroça de Salú para depois se botarem de volta pelo caminho a Baixa. ... Na Baixa Grande, a pedido do Cabo, uma velha senhora com conhecimentos de enfermagem chamada Severina, “Dona Severina” para aqueles simplacheirões, veio até a delegacia fazer uns curativas na louca que já o cabo descobrira ser tia de Juvenal e, por conseguinte irmã de Doroteia Aparecido. Pacientemente Dona Severina limpou as feridas da enferma, estancou o sangramento do olho varado, limpou com muito cuidado o sangue da face da mulher; depois abriu uma pequena caixa de primeiros socorros e sacou uma tesoura com a qual rasgou o vestido desta na altura do seio, aonde havia um sangramento por conseqüência de uma tremenda mordida. Com maestria e conhecimento limpou e tratou também daquela ferida e outras mais que havia pelo corpo de Raimunda. Ao terminar deixou a maleta no solo e veio até a sala posterior aonde se encontrava o Cabo aguardando o final do atendimento a ferida, já que para a realização deste ato retirara a “louca” da cela, deixando-a aos cuidados de Dona Severina. Aproveitando deste relance momentâneo, Raimunda abriu a maleta e sacou a

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tesoura, olhando-a com um ar enigmático, ocultou-a nas vestes. Momentos depois ela voltava ao cárcere, ficando junto de seu sobrinho. Juvenal arreliado em querer descobrir o que se passara em casa, desta feita tratou-a com mais calma tentando saber o que havia ocorrido para ela estar ali naquele estado. Novamente o elemento não obteve respostas, e em dado momento dando as costas para sua tia, esta sacou debaixo das vestes a tesoura roubada e se pondo de frente ao sobrinho a quem julgava assassino de seu filho, em um golpe impressionante de força e precisão enterrou a tesoura até o cabo na jugular do mancebo e fez tão rápido o movimento que enterrou a lâmina, retirou e repetiu o golpe, fazendo o rapaz desandar a levar as mãos ao pescoço aonde espirrou um jato de sangue. Incrédulo o homem entrou em estado de choque, porém a louca se agarrou a este e aí a tesoura passou a entrar e sair por muitas outras partes do seu corpo. Naquele momento os olhos vítreos de Juvenal estavam enxergando a Mariá sorrindo para ele a vir lhe cobrar sua morte, Já que fôra ele o autor daquele crime. Só percebendo a cena quando não havia mais o que fazer, o cabo abriu a cela e foi examinar o moribundo, concluindo que ele estava morrendo. Ao seu lado, dentro do pequeno cômodo, Raimunda cantava e dançava gritando de mãos distendidas sobre o corpo de Juvenal em espasmos cada vez mais lentos com a tesoura cravada em cima do peito nos últimos suspiros de vida. Naquele momento irrompeu delegacia adentro Doroteia, Adonias e os demais da comitiva. Esta chegando à grade presenciou Raimunda buscando pisar o corpo de Juvenal, estando ela segura pelo Cabo, mas rindo assustadoramente a expressar a palavra vingança. O moribundo ainda respirava dificultoso buscando a vida que insistia em abandoná-lo. Em último ato, este virando o rosto de lado divisou a tia e o primo ao pé das barras de ferro. Num derradeiro suspiro de vida deixou uma lágrima cair de seu rosto melado de sangue e num esforço tremendo quis perguntar por sua mãe. O som desconexo encheu a sala numa expressão ininteligível. Todavia Doroteia compreendeu o que seria aqueles sons e respondeu balançando a cabeça em sinal de negação. O moribundo então compreendeu que sua tia assassinara sua mãe assim como a ele por alguma razão desconhecida. Que tanto poderia ser: o desaparecimento de Joaquim do qual nada sabia, ou outra coisa qualquer. Consciente de sua derrocada ergueu sua mão na direção de Doroteia e em pensamentos lhe pediu perdão confessando que fôra ele o assassino de seu primo; que tudo fôra um plano de sua mãe, mas que agora eles estavam pagando o preço de suas atitudes. Doroteia diante daquela cena macabra não pôde guardar rancor, distendeu sua mão como quem buscando alcançar a do sobrinho a abençoá-lo dando seu perdão. No entanto, já era demasiado tarde, a mão de Juvenal pendeu inerte e este exalou seu ultimo suspiro. Após seus olhos se fecharam e ele não sentiu mais nada, estava morto. Aqui, Raimunda recobrando a calma e o vendo imóvel se ajoelhou perto dele e pediu para que este se levantasse para irem embora, Benedita os estava esperando. Doroteia abraçada a seu filho chorava indignada, perguntando o porquê daquilo tudo. Augusto mais o beato os afastaram dali; nada mais poderia ser feito. O mal que as irmãs de Doroteia aprontaram voltou-se contra elas, foi o que explicitaram a esta. ...

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Raimunda foi enviada a capital do estado para ser internada em uma clinica. Nunca mais ficou boa, acabou por se enforcar determinada noite num ato transloucado em que parecia estar conversando com Benedita e Joaquim. Adonias casou-se com Joviana e logo tiveram filhos. Meninos, gêmeos a quem batizaram por Pedro Sobrinho e Augusto Neto. Doroteia pode então conhecer a paz e viver feliz até os últimos dias de sua vida que chegaram à soma de cento e dezenove anos. Os Angelinos, Aparecidos cruzados com Davis repovoaram o rincão. Dos homens da Serra do Quati restou à lenda da pedra encantada, contada, desacreditada e esquecida nos dias atuais. Mas que estar lá a pelejar contra o tempo numa prova inconteste de um tempo longínquo, nas terras da minha amada e querida. Atual Cachoeira dos índios.

fim As ilustrações deste livro são da autoria do escritor

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Paula da Silva Marques, Antônio Marques da Nóbrega e Wanderley da Silva Marques. Cajazeiras - Paraíba, 1967. Dedico este livro a minha esposa e aos meus filhos, irmãos e irmãs, bem como a minha mãe e especialmente a meu Pai Antônio Marques da Nóbrega, sujeito de uma conduta impar, de um caráter intocável e de um legado de ensinamentos fantásticos. Jamais até hoje, sem querer desmerecer a outros homens: encontrei alguém igual a ele. Nem mesmo, nós, um de seus filhos conseguimos se aproximar das virtudes que ele tinha. Obrigado Deus, por ter nos presenteado este homem como pai. Antônio Marques da Nóbrega faleceu no dia 31 de maio de 1991, de câncer, nos últimos dias de sua existência quando a doença o consumia ele ainda sorria e cantava nos orientando a fazer o correto. Predisse para mim a data de sua partida dentro daquele mês; e de fato no ultimo dia daquela fatídica data ele encerrou os olhos nos deixando para sempre.

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Não é à toa nem ao acaso que os meus personagens que combatem as injustiças possuam traços do caráter por ele

deixado. }