lya luft - por que nos mutilamos

2
8/27/2015 Spring_intensity data:text/html;charset=utf8,%3Cfont%20size%3D%225%22%20face%3D%22Arial%22%20color%3D%22blue%22%20style%3D%22fontstyle%3A%20n… 1/2 Por que nos mutilamos? "Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamos na busca da juventude eterna" Numa página de revista, deparo com um espetáculo deprimente: uma milionária americana de 62 anos entra num restaurante expondo a fotógrafos e freqüentadores um rosto tão desfigurado por plásticas, preenchimentos e outros processos que não era só feio e disforme, mas assustador. Nada mais ali combinava, as sobrancelhas em alturas diferentes, os olhos artificialmente enviesados estavam desemparelhados e o nariz sumia num rosto de lua cheia, fruto de inadequados esticamentos e exageradas invasões. Há poucos dias vi por acaso uma conhecida que não encontrava fazia anos. Reconhecia de longe, de costas para mim, e quando ela se virou na cadeira senti um choque. O corpo elegante de uma mulher madura era o mesmo. O rosto era uma coisa redonda e intumescida, lisa, com pouco das verdadeiras e simpáticas feições de que eu me lembrava tão bem. Os lábios estavam enormes, com algo de genital, os olhos pareciam pequenos demais, e seu nariz adunco, em lugar de ter sido corrigido para um pouco menos adunco – embora nunca tivesse sido feio –, era uma pobre batatinha perdida numa paisagem hirta e inexpressiva. Ilustração Atômica Studio Sei que no folclore a meu respeito consta entre outras coisas que sou "contra cirurgia plástica". Nada mais incorreto e tolo. Eu mesma, viúva pela primeira vez aos 49 anos, de maneira súbita e brutal, aos 51 tinha o rosto tão devastado pelo abalo que um amigo, excelente cirurgião, fez um lifting discretíssimo e pequeno, que não me rejuvenesceu – nem eu quereria –, mas talvez tenha tirado um pouco do ar cansado e triste demais. Portanto, sou a favor de recursos, não para enganar o tempo, o que em geral acaba em resultados desfavoráveis e patéticos, pedindo sempre mais e mais intervenções, mas para abrandar, eventualmente corrigir. A fim de que a pessoa, homem ou mulher, se sinta bem na própria pele. Não para que aos 60 a gente pareça ter 30 anos, e aos 80 viva a melancólica ilusão de ter 50. Não é a juventude que interessa, mas a felicidade e a alegria. Olharse no espelho e poder dizer: bem, esta sou eu, aqui está a minha história, o que for excessivo vou corrigir, mas não quero ser uma adolescente eterna, a não ser que minha alma permaneça infantilóide. Observo uma atriz importante dando entrevista e na contraluz estão evidentes as marcas impiedosas de cirurgias, fios de ouro, ou seja lá o que for, e outras intrusões que aos poucos vão se manifestando. Logo virão novas intervenções para corrigir aquilo, e assim será, talvez, até o fim da vida. A não ser que um amigo, um familiar ou um médico piedoso lhe diga para parar, em lugar de se torturar numa busca irracional fadada ao fracasso. A angústia por manterse jovem muito além dessa fase pode levar aos maiores desatinos. Como os modelos que se nos apresentam em nossa cultura superficial indicam que o bom é ter sempre 15 anos, se não tivermos alguma bagagem interior (o que inclui a cultural) para remar contra a correnteza, em breve faremos parte da legião de mutiladas, as quais têm pouco delas mesmas, peles fanadas expostas em decotes

Upload: lucymystika

Post on 14-Dec-2015

24 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Delete.

TRANSCRIPT

Page 1: Lya Luft - Por Que Nos Mutilamos

8/27/2015 Spring_intensity

data:text/html;charset=utf­8,%3Cfont%20size%3D%225%22%20face%3D%22Arial%22%20color%3D%22blue%22%20style%3D%22font­style%3A%20n… 1/2

Por que nos mutilamos?"Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamosna busca da juventude eterna"

Numa página de revista, deparo com um espetáculo deprimente: uma mi­lionária americana de 62 anos entranum restaurante expondo a fotógrafos e freqüentadores um rosto tão desfigurado por plásticas, preenchimentose outros processos que não era só feio e disforme, mas assustador.

Nada mais ali combinava, as sobrancelhas em alturas diferentes, os olhos artificialmente enviesados estavamdesemparelhados e o nariz sumia num rosto de lua cheia, fruto de inadequados esticamentos e exageradasinvasões.

Há poucos dias vi por acaso uma conhecida que não encontrava fazia anos. Reconheci­a de longe, de costaspara mim, e quando ela se virou na cadeira senti um choque. O corpo elegante de uma mulher madura era omesmo.

O rosto era uma coisa redonda e intumescida, lisa, com pouco das verdadeiras e simpáticas feições de que eume lembrava tão bem.

Os lábios estavam enormes, com algo de genital, os olhos pareciam pequenos demais, e seu nariz adunco, emlugar de ter sido corrigido para um pouco menos adunco – embora nunca tivesse sido feio –, era uma pobrebatatinha perdida numa paisagem hirta e inexpressiva.

Ilustração Atômica Studio

Sei que no folclore a meu respeito consta entre outras coisas que sou "contra cirurgia plástica". Nada maisincorreto e tolo.

Eu mesma, viúva pela primeira vez aos 49 anos, de maneira súbita e brutal, aos 51 tinha o rosto tão devastadopelo abalo que um amigo, excelente cirurgião, fez um lifting discretíssimo e pequeno, que não me rejuvenesceu– nem eu quereria –, mas talvez tenha tirado um pouco do ar cansado e triste demais.

Portanto, sou a favor de recursos, não para enganar o tempo, o que em geral acaba em resultados desfavoráveise patéticos, pedindo sempre mais e mais intervenções, mas para abrandar, eventualmente corrigir.

A fim de que a pessoa, homem ou mulher, se sinta bem na própria pele. Não para que aos 60 a gente pareça ter30 anos, e aos 80 viva a melancólica ilusão de ter 50.

Não é a juventude que interessa, mas a felicidade e a alegria. Olhar­se no espelho e poder dizer: bem, esta soueu, aqui está a minha história, o que for excessivo vou corrigir, mas não quero ser uma adolescente eterna, anão ser que minha alma permaneça infantilóide.

Observo uma atriz importante dando entrevista e na contraluz estão evidentes as marcas impiedosas decirurgias, fios de ouro, ou seja lá o que for, e outras intrusões que aos poucos vão se manifestando.

Logo virão novas intervenções para corrigir aquilo, e assim será, talvez, até o fim da vida. A não ser que umamigo, um familiar ou um médico piedoso lhe diga para parar, em lugar de se torturar numa busca irracionalfadada ao fracasso. A angústia por manter­se jovem muito além dessa fase pode levar aos maiores desatinos.

Como os modelos que se nos apresentam em nossa cultura superficial indicam que o bom é ter sempre 15anos, se não tivermos alguma bagagem interior (o que inclui a cultural) para remar contra a correnteza, em brevefaremos parte da legião de mutiladas, as quais têm pouco delas mesmas, peles fanadas expostas em decotes

Page 2: Lya Luft - Por Que Nos Mutilamos

8/27/2015 Spring_intensity

data:text/html;charset=utf­8,%3Cfont%20size%3D%225%22%20face%3D%22Arial%22%20color%3D%22blue%22%20style%3D%22font­style%3A%20n… 2/2

ousados de precários vestidinhos.

Nem todo mundo vai gostar do que escrevo aqui e digo em muitas palestras: dirão que madureza e velhiceimplicam doença e deterioração. Uma maturidade tranqüila e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis àcaricatura em que nos tornamos na busca do paraíso perdido, que é também uma ilusão.

Pois a juventude nunca foi a melhor época da vida nem a única época interessante, embora possa cintilar eferver mais. A cada fase da vida seu próprio encanto e, claro, suas próprias dores.

Então, quem sabe a gente – homens e mulheres – procure gostar de si um pouco mais, trocando a fatal tentativade negar o tempo por saúde, equilíbrio, beleza real e alegria, que fazem um bocado de falta neste mundo nosso.

Lya Luft