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Leonardo Valesi Valente Construindo a Relaªo Terapeuta-Paciente: Smbolos e Linguagens, Encontros e Possibilidades no Percurso da Terapia Ocupacional UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG Escola de Educaªo Fsica, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Curso de Graduaªo em Terapia Ocupacional Professora Orientadora: Tnia Lœcia Hirochi Trabalho MonogrÆfico de Conclusªo de Curso Requisito Parcial para Obtenªo do Ttulo de Bacharelado em Terapia Ocupacional 1” Semestre Letivo / 2003

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Construindo a Relação Terapeuta-Paciente: Símbolos e Linguagens, Encontros e Possibilidades no Percurso da Terapia Ocupacional Autor: Leonardo Valesi Valente UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Curso de Graduação em Terapia Ocupacional Professora Orientadora: Tânia Lúcia Hirochi Trabalho Monográfico de Conclusão de Curso Requisito Parcial para Obtenção do Título de Bacharelado em Terapia Ocupacional

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Leonardo Valesi Valente

Construindo a Relação Terapeuta-Paciente: Símbolos e Linguagens, Encontros e Possibilidades no

Percurso da Terapia Ocupacional

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG

Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Curso de Graduação em Terapia Ocupacional

Professora Orientadora: Tânia Lúcia Hirochi Trabalho Monográfico de Conclusão de Curso Requisito Parcial para Obtenção do Título de

Bacharelado em Terapia Ocupacional

1º Semestre Letivo / 2003

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Lembro, neste momento da passagem, de duas companheiras que especialmente puderam me

ajudar a continuar seguindo, especialmente por saberem fazer a diferença:

Tânia, em sua generosidade de ideais e formas de cuidado pude sentir a força que faz motivar;

Vanilza, por ter dado importância ao olhar conjunto antes de escolher como caminhar,

com cada um daqueles que cuidamos...

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INTRODUÇÃO

�Toda vida existe para iluminar o caminho de outras vidas que a gente encontrar� Milton Nascimento

Dizer sobre a relação terapeuta-paciente somente se faz primordial se temos razões para

buscar, de acordo com Nise da Silveira, �a emoção de lidar� que possa existir a partir do encontro deste par

de sujeitos na prática terapêutica. Aliás, tal assunto não se trata de somente indagar sobre os possíveis

elementos subjetivos e psicossociais das práticas rotineiras nos ambientes clínicos em que exercemos a

Terapia Ocupacional; é aqui, sobretudo, o reconhecimento de que os fragmentos nos olhares do terapeuta e

do paciente sejam materiais de trabalho, da condução terapêutica propriamente dita. Fragmentos esses que

primordialmente ainda devam ser os próprios sujeitos e suas naturezas, sendo que o quê olham aponta para

o quê eles fazem entre si e reflete os sentidos para o trabalho por eles compartilhado. Tal a dinâmica que se

constitui um material instigante de saberes, sobre as possibilidades dos cuidados e da própria relação de

ajuda, elementos aos que tradicionalmente os terapeutas ocupacionais têm se disponibilizados a

implementar com sua atuação. Considerar o binômio terapeuta-paciente é uma necessidade que merece

também uma pré-definição dos loci de cada um, assim o que estamos a chamar de paciente vai sair de uma

conotação de entrega, passividade, para ocupar-se como um indivíduo � ser da singularidade, repleto de

necessidades, de buscas, que pode ser denominado �cliente�, �usuário dos serviços de Saúde�, seria

também aqui denominado de �o ajudado�, no caso da tese deste trabalho monográfico.

Indago-me sobre o motivo de tanto desejar estudar, aprofundar, discutir a relação terapeuta-

paciente... Por que estudar sobre um tema, dito tão complexo, como este da relação terapêutica? Por que

dizer sobre algo que reside tão intimamente ao que denominamos ao nível do sentir, como é o caso do

encontro que se dá entre terapeuta e paciente, convivência que ocorre na ocasião da relação de ajuda?

Apesar de eu reconhecer que possam existir inúmeras respostas, satisfatórias às

percepções de quem ousa respondê-las, tais questões me estimulam a valorizar ainda mais o tema deste

presente estudo monográfico: o que há de infindável nos possibilita uma perspectiva intermitentemente de

atualização. As respostas que possam ser construídas, a respeito do tema em todos os contextos relativos à

sua construção, queiram ser soberbamente válidas; no entanto, o que me atenho aqui é ir compartilhar

alguns sentidos que nos permitam ser cada vez mais motivadores � não por esgotar os aprendizados, mas

por gerar uma (inter)locução constante de reflexões e de fazer perguntas. Uma atitude que alicerçada na

necessidade de motivar-se ensina que é preciso sempre o buscar. Ainda que encontre uma resposta que

faça toda a diferença para mim, sinto que isto não seja suficiente para o ser um terapeuta já pronto, feito,

enfim um terapeuta completo; sendo que no caso da formação do terapeuta ocupacional quaisquer

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respostas demandam ainda uma construção que não deixa de ser processo (contínuo) e aprendizado mútuo

para o par terapêutico, dentro da tríade terapeuta / contexto de atividade / paciente. A estratégia assemelha-

se a um inesgotável vir-a-ser diante àqueles com quem me deparei e estarei propenso a encontrar num

inexorável vir-a-ajudar... E esta monografia representa tão somente um ensaio que mostra parte do que se

há em se formar um terapeuta ocupacional.

Tamanha a razão para estar aqui, isto seja apenas a pura vontade de renovar um conteúdo

tão profundo e vai bem além dos pormenores que já estão nos livros. Escrever sobre e pesquisar a relação

entre terapeuta e paciente constituir-se-á desafio inegável, o que de certa forma explica a relativa escassez

com que o tema vem sendo considerado na literatura reconhecidamente científica, especificamente na área

da Terapia Ocupacional.

Desejo alcançar com o presente estudo um discreto relevar sobre o tema. Sei o quanto me

deparo com a exigência de aprimoramento metodológico e de discussão pormenorizada com outros

pensadores. Embora eu ouse apontar que não há satisfação numa prática que se restrinja a elaborações e

aforismos ultrateóricos, dado que o alcance do que tenho para considerar é algo que deseja ser anunciado

no cotidiano do vivo, marcado pelo encontro de existências e de humanidades � enfim, pelas trajetórias que

vim conhecendo via Terapia Ocupacional e por todos aqueles com quem encontrei. Simplesmente encontro

nesta dimensão uma maneira de contribuir.

Finalmente, espero alcançar com minha expressão de ser terapeuta àqueles com quem

cotidianamente desejam se transformar e mudar realidades. Espero também ser acessível aos outros que,

por suas limitações, ainda se permitem saciar com o distanciamento e a apatia dos moldes acadêmicos, que

ortodoxos e diplomáticos costumam inventar um suposto distanciamento afetivo entre terapeuta-paciente.

Desejo conhecer e reconhecer enredos, pelos quais a minha função de ajudador permita-me sentir o quanto

é impar poder amar cada paciente. E neste amor terapêutico vivenciar a-tua-ação que marque uma trajetória

humana, significante de trans-formações. É na relação terapeuta-paciente onde ocorre a dinâmica do vir-a-

ser de uma convivência que culmina na realização das existências de ambos.

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DISCUSSÃO

A relação terapêutica enuncia-se num contexto de encontro entre dois sujeitos, para que ao

inter-agirem um deles possa ser diretamente beneficiado por uma relação de ajuda; sendo que os conteúdos

e vivências por eles compartilhados passarão a constituir o saber que dá substancialidade à existência do

par. Por ser particularmente humana, a relação terapêutica é tocante, irrestrita, profunda; por estar dentro

das práticas de Saúde vai alcançar um significante próprio, ao qual tentaremos nos aproximar ao fazer o

desenho deste presente trabalho monográfico.

Faz-se preciso identificar um sentido que justifique conhecer, nas próximas linhas, formas

de dizer e viver � pelo que poderei mostrar parte do que me fez escrevê-las. Quero apenas compartilhar a

necessidade de desejar fazer a diferença; e que isto se dê pelos recursos que nós, terapeutas ocupacionais,

dispomos com a nossa atuação profissional. Este sentimento, considero assim, pode ir além até onde

consigamos auxiliar às pessoas, a quem cuidamos, a serem mais felizes e libertas de suas dores.

Valorizo a pertinência de quaisquer práticas que venham se pautar nos crivos da

cientificidade, absolutamente se estas façam correlatas inferências com a legitimidade do conhecimento

científico reconhecido em nossa área, bem como se é consoante às concepções técnicas e deontológicas

com as quais nos identificamos como terapeutas ocupacionais. Por isto, este introdutório estudo sobre a

temática da relação entre terapeuta e paciente, por excelência, pode somar a tudo o que aprendi nestes

quase seis anos de (inaugural) caminhada acadêmica, porém também é um construto que quer ir um pouco

além já que foi sendo construído ao longo de saberes que foram emersos do lidar, das circunstâncias dos

viventes. Renego, ultimamente, conceitos de cientificidade que não permitam um trabalho com o apropriar

das complexidades das pessoas e de suas problemáticas; tampouco não terá espaço nesta monografia

formas reducionistas de agir ou conceber a ação, que não se comprometam com demandas e globalidade

das formas que sejam trazidas por todos aqueles a quem nos propomos cuidar em Terapia Ocupacional.

Sinto-me motivado a investir em um estudo que seja essencialmente reflexivo e que se

constitua a partir da análise de vivências, ditas terapêuticas, bem como além dessas buscar novas

implicações para o cotidiano da minha formação profissional. Sou estudante do curso de graduação em

Terapia Ocupacional e isto, por assim dizer, significa que me é legitimamente necessário aprender a

valorizar uma ação (ou prática) na área da Saúde que procure tratar de pessoas que não possuam

capacidades ditas �normais� para viverem seus próprios contextos de vidas, de maneira autônoma ou ainda

independente.

A Terapia Ocupacional, desde seu surgimento histórico, tradicionalmente relacionado aos

períodos de pós I e II Guerras Mundiais e ao nascimento do Tratamento Moral de Phillip Pinel (na Psiquiatria

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francesa, em meados do século XIX), anseia por ser um instrumento social de promoção do ser humano �

em suas potencialidades e singularidades frente às necessidades do fazer humano e do relacionar-se. O

paradigma da Terapia Ocupacional consiste em oferecer uma possível construção da existência àquela

clientela que socialmente é apontada como deficiente, desviante, limitada, no desempenho de papéis

comuns, dos contextos ocupacionais, tais como o trabalho produtivo, as atividades de lazer, as atividades da

vida diária (entendidas aqui como o cuidado com o próprio corpo, da manutenção, sobrevivência e da vida

prática em sociedade).

A ação do terapeuta ocupacional não ocorre isoladamente do contexto social e da vida,

propriamente dita, daqueles indivíduos aos quais se propõe tratar (promover, prevenir, curar, reabilitar).

Sobretudo, tal ação vai constituir-se pela fundamentação materialista histórica quando concebe filosófica e

metodologicamente que a ação humana, práxica por excelência, seja transformadora, criativa,

existencialista, desenvolvimental, dialética, socializante e simbólica. Assim, a Terapia Ocupacional busca

propor intervenções para a Saúde que relevem eficientemente a relação do ser e suas necessidades

ocupacionais. O alvo dos discursos, especificidade científica e tecnologia aponta em Terapia Ocupacional

para a valorização de um indivíduo, que em processo intermitente de transformação, deve relacionar-se

consigo e com o externo, além de fazer-se existir a partir de seus próprios desejos e peculiaridades. Dessa

forma, a visão de individualidade legítima à profissão e também ao conceito de saúde (traduzido por um

processo de qualidade de vida, conforme as prerrogativas da Organização Mundial de Saúde) é um ser

transformador de suas vivências, histórico, que se realiza praxicamente e utiliza o trabalho como um veículo

para a produção de sua própria consciência, sendo o seu processo de vida e do viver é, diante do binômio

saúde-doença, um complexo dinamismo entre a busca de finalidades, desejos e se confronta com aquilo

que lhe é sua inerente necessidade de sobrevivência, aprendizado, adaptação, reabilitação...

Para promover a individualidade humana, tal profissão quer priorizar a ocupação cotidiana a

ser sua ferramenta para a produção de saúde, como o elemento primordial de indagações e propostas de

trabalho. Irá questionar e acolher, daí, em sua clínica social, o ser que adoecido demanda, assim, o

aprendizado e o desenvolvimento daquilo que lhe permitirá tornar-se o melhor diante de si mesmo,

repercutindo no sujeito uma performance ocupacional cada vez mais independente, funcional, engajada e

autônoma (capaz de tomar iniciativas e solucionar problemas) para alcançar um bem-estar conquistado.

Neste contexto de relações e complexidades, buscarei enfatizar a relação terapêutica dentro

de um contexto social específico, o que se refere ao encontro entre terapeuta e paciente. Tal relação será

assim denominada: - relação terapeuta-paciente, para explicitar por excelência a participação do par. Enfim,

entende-se aqui que a relação terapeuta-paciente é o estabelecimento de um vínculo entre dois sujeitos

através de uma relação de ajuda, que nasce de um contexto próprio de um serviço de Saúde, em que a

afetividade é fortemente marcante para a construção de um plano de tratamento (com metas terapêuticas) e

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a intervenção para a Saúde propriamente dita. O fenômeno que coexistirá na vida deste par qualifica-se

num encontro social e existencialista com a distinção de papéis, que pela relação terapêutica estes possam

ser identificados assim: o ajudador e o ajudado; bem como numa interface dinâmica e social em que

discursos, ações, necessidades, buscas são estabelecidos em um espaço comum passível de trocas,

possibilidades e de saberes mútuos, portanto.

A relação terapêutica é um fenômeno que, apesar de acontecer numa dimensão social, é

delimitada aos contextos e especificidade dos serviços de Saúde e o seu complexo binômio é socializante e

tem em seu bojo uma composição fenomenológica. Elementos como a cultura, a linguagem, a produção de

símbolos, os conflitos entre as classes sociais, os adoecimentos de acordo com os fenômenos da não-

produção da consciência, o alienamento, a (des)construção de estigmas sobre o corpo marcado e ou

deficiente, e os liames da estrutura social, que são os elementos que irão, de alguma forma, se reproduzir

no contexto de suas interlocuções. Por excelência, elementos como a constituição da consciência através

da prática terapêutica para a reabilitação psicossocial e ou física também serão apropriados e emancipados.

Significar ações, encontros que enunciam repletos de acontecimentos entre humanos, daí a suma

importância em desenvolver uma tese monográfica com caráter para além do interdisciplinar, de forma

promissora dentro das perspectivas do conhecimento que deve ser nos tempos do amanhã profissional,

qualificado em suas interfaces transdisciplinares - uma vez que o benefício maior para a produção deste

presente estudo deve ser algo que suscite valor e propriedade para a prática sempre questionadora e

altruísta do terapeuta ocupacional.

A partir desta contextualização sobre a relação terapeuta-paciente, como foco do presente

estudo monográfico, há o interesse de analisá-la segundo três pilares essenciais:

- a dimensão social do encontro entre terapeuta e paciente;

- a apropriação de linguagens, símbolos e formas próprias do contexto terapêutico em

que se estabelece tal relação;

- a constituição, a significação e o reconhecimento dos papéis que compõem o par

terapêutico.

A Terapia Ocupacional, ao firmar-se na categoria profissional da Saúde, tradicionalmente

reconhecida como profissão da área da Reabilitação, tem como produto legítimo uma clínica social,

intrinsecamente transformadora para a inserção na comunidade, dos indivíduos alvos de sua intervenção.

Como se dá a diferenciação de papéis na relação terapeuta-paciente? Eles podem ser

iguais em um dado momento? Onde estão traçados os limites desta relação?

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Com qual justificativa é possível situar a compreensão da relação terapeuta-paciente como

uma relação de ajuda? É preciso fazer uma análise sobre as diferentes formas de metodologias para a

intervenção em Terapia Ocupacional e assim melhor explorar o desenvolvimento desta relação?

Dentro do contexto clínico, questiona-se o seguinte. Como se dão os fatores simbólicos,

sociais, individuais, teóricos, clínicos a respeito desta relação? Como se dá a influência da concepção

materialista histórica nesta relação especificamente?

Nesta relação há influência dos mitos e suposições culturais que dão sentidos implícitos no

binômio real X ideal (prático X imaginário)? Existe uma representação própria desta relação para o contexto

de vida dos pacientes que se beneficiam da intervenção terapêutica ocupacional?

Como são explorados os produtos históricos destes sujeitos na relação de ajuda, são

transitórios quando internos, reflexivos e concretos quando externos, materiais ? Os produtos, ações e

trocas que se dão emergem de forças sociais produtivas específicas, possíveis somente a partir deste

encontro? A relação terapêutica tem limites e construções que factualmente relevam em si mesmos as

potencialidades dos sujeitos e suas singularidades quando se encontram e passam a interagir mutuamente?

Como uma relação social e também por seu caráter socializante tal encontro terapêutico

possui algo próprio em termos de afetividade, sensibilidade, existencialismo e idealização? O uso de

atividades, próprio da Terapia Ocupacional em sua prática social e da Saúde, oferece e repercute quais

instrumentos para a vivência no binômio Eu X Outro no contexto da promoção humana e da reabilitação?

Como tal relação contribui para a não fragmentação do ser? Qual o espaço das

subjetividades e do fazer metafórico nesta relação? Poder-se-ia em algum momento perceber pelo olhar o

sociológico algo como um Universo Compartilhado no setting terapêutico? Esta relação pode ser neutra? E

o discurso biomédico da saúde-doença é algo ainda presente na prática atual do terapeuta ocupacional em

sua clínica e especificidade?

Por sua fundamentação e concepção teórico-filosófica praxilogista, em sua prática clínica a

Terapia Ocupacional busca oferecer à pessoa recursos e possibilidades para que sua vida cotidiana se

torne singular no seu processo de bem-estar, de autonomia e maior independência. A ocupação terapêutica

como uma forma de tratar serve de, em Terapia Ocupacional, um instrumento para a potencialização de

conquistas e superações de limites, quando o paciente pode apropriar-se de si em processo constante de

transformação, acima das limitações e disfunções de ordens psíquicas e ou físicas, sociais e/ou culturais

inerentes aos processos de adoecimento, aos quais tradicionalmente a profissão se comprometeu a

trabalhar. O ajudado, nesta concepção, é um sujeito histórico que pode mudar sua vivência naquilo em que

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se engaja, dentro de contextos significativos que lhe seja nas relações de trabalho, no lazer, nas atividades

da vida diária e prática, enfim no processo de utilizar o tempo com intencionalidade e proposição de metas

em que ele é o sujeito de seus desejos e necessidades, e deve transformar a si, suas relações com o outro

e o mundo circundante.

O estabelecimento do processo terapêutico tem na elaboração reflexiva o maior interesse

deste estudo. De acordo com JORGE (1999, p.27), a empatia é a capacidade de se emergir no mundo

subjetivo do outro e de participar de sua experiência (...), é também a capacidade de se colocar no lugar da

outra pessoa, assim ver o mundo da forma como o outro o vê. Logo, a produção teórica e metodológica

sobre a relação terapeuta-paciente merece se tornar uma questão inegável de interesse pré-profissional e

acadêmico, a não ser somente objeto neste presente estudo, mas servir de ferramenta para a formação

primordial antes à inserção no mercado profissional. E promover, assim, aproximação do terapeuta em

formação daquilo que lhe permitirá manejar a empatia como ferramenta primordial em seu ofício clínico-

social.

O tema se constitui no universo irrestrito das relações entre homens � a relação de ajuda

possível no encontro terapeuta-paciente é um processo dialético e dicotômico: no eu e no outro (par de

terapeuta e paciente) estão a reunião dos aspectos (inter)subjetivos, afetivos, simbólicos e sociais que aqui

se interessam estudar. Indago-me: - é possível observar, investigar, refletir e criticar o estabelecimento do

vínculo entre o terapeuta e o paciente na dimensão clínica e social deste encontro humano? Como podemos

discutir sobre o binômio saúde-doença na relação entendida dentro da concepção dialética? Há a produção

e a reprodução da relação terapêutica ocupacional, na prática clínica da Terapia Ocupacional, como um

instrumento valioso para aquilo que se propõe: - a promoção da saúde humana? Como isto acontece?

Portanto, necessário elaborar os conceitos: - a relação terapêutica ou a relação terapeuta-paciente; -

estabelecimento do vínculo terapêutico; - o existencialismo desta relação; - quem é o terapeuta; - quem é o

paciente; - o que é um encontro terapêutico.

A temática deste trabalho é algo superior e ulterior ao meu interesse pessoal no que tange a

busca diante de uma fenomenologia das inter-relações humanas, possíveis na minha futura atuação

profissional como terapeuta ocupacional. O presente trabalho quer buscar preencher alguns espaços que se

dão na própria didática de ensino a respeito da dimensão da relação terapeuta-paciente e na motivação

para outras reflexões que se dão pelo cotidiano da formação acadêmica (notadamente na transição do ciclo

pré-profissionalizante para o profissionalizante da atual estrutura curricular do curso de graduação em

Terapia Ocupacional da UFMG), porém a própria temática da relação terapeuta-paciente é algo de interesse

para a maior compreensão do cotidiano clínico possível na profissão versus o perfil do profissional terapeuta

ocupacional. Considerando como regra geral que as ações da terapêutica ocupacional se dão via relação

terapêutica principalmente. Enfim, desenhar a relação terapêutica é um desafio para a constituição de um

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espelho de uso múltiplo e comum àqueles inseridos na lógica da Terapia Ocupacional e suas formas. Não

pretendo aqui fazer um retrato plástico, decisório, estático, coorporativo e sim conhecer ou apenas identificar

elementos interessante para que a imagem da relação terapeuta-paciente possa ser contemplada.

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CONCLUSÃO

A relação terapeuta-paciente é um processo dinâmico, de interação humana, afetiva,

simbólica e social que se estabelece por trocas efetivas entre um ser que precisa de ajuda e outro que faz

disponível para a realização desta necessidade. A relação é marcada de um forte sentimento amoroso, de

reflexões e de interlocuções intermitentes em que terapeuta e paciente se modificam e sofrem influências

naquilo que se propõem a trabalhar no setting terapêutico ocupacional e especificamente dentro do

estabelecimento desta relação. Se valorizarmos a relação terapêutica ao nível do humano, também

podemos conceber sua dimensão essencialmente socializante, o que alcança as interfaces entre as

necessidades dos sujeitos e o enfrentamento pra sua participação nos grupos sociais. Podemos daí criticar

o distanciamento pretenso de algumas metodologias de intervenção que predizem aos profissionais desta

área uma dita neutralidade clínica e profissional, entendida aqui como um possível não se influenciar pelo

outro - no caso o terapeuta não se envolve simbolicamente com o paciente no contexto terapêutico,

somente atuando com ditas técnicas de manejo clínico, pois os conhecimentos técnicos que deve possuir a

partir de sua formação acadêmica lhe dão toda a garantia e sucesso para tanto. No entanto, o objetivo maior

da terapêutica ocupacional é promover um alcance de fato transformador das existências.

O desenho da relação terapeuta-paciente pode assumir diferentes contornos. Se

considerarmos uma dimensão teórica é interessante conceber a relação terapeuta-paciente como um

produto da relação de ajuda, sendo também a substancialidade do cerne dos serviços de Saúde; isto além

de apontar para uma conceituação primitiva sobre o que seja a relação terapêutica vai alcançar um nível

paradigmático em que a própria saúde tem em si a qualidade de uma relação de ajuda. Por outro lado, se

buscarmos compreender a relação terapeuta-paciente dentro de seu alcance clínico, a partir de uma

dimensão empírica propriamente dita, um conceito sobre convivência terapêutica se fará essencial para

denominarmos o complexo de interfaces que acontecem a partir do encontro terapêutico entre o profissional

de Saúde e o seu cliente. Um esboço mais profundamente elaborado sobre a relação terapeuta-paciente

que possa alcançar uma tipologia ideal ainda tornar-se-á mais complexo, se considerarmos para uma

qualificação mais ampliada em elementos tais como: * definição de papéis, quando na relação o par

terapêutico vai ocupar em si uma distinção a partir de seus poderes (supostos saberes), o que justifica as

posições de ajudador e de ajudado, bem como os movimentos que se dão sejam ascendentes ou

descendentes durante a condução terapêutica � o que aproxima ou afasta o par terapêutico daquilo que foi

por ele eleito como meta para e pró-intervenção; * desenvolvimento de linguagens, quando o par terapêutico

constrói uma universalidade de processos semióticos, onde encontramos espaços para comunicações

verbais, não-verbais, analíticas, discursivas, idiossincráticas que irão interferir, novamente, na condução

terapêutica; * contextos clínicos, quando em Terapia Ocupacional podemos apontar ambientes e

terapêuticas específicas (por exemplo, psicoterapia ocupacional, reabilitação psicossocial, reabilitação

profissional, reabilitação física...) que essencialmente irão apropriar-se de estratégias e metodologias que,

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em seus aspectos determinados, qualificam seus próprios formatos de relação terapêutica. Outras

características, como os aspectos de afetividade, processos de cognoscentes e de produção de

consciência, a ambientação terapêutica, a presença de elementos híbridos (como co-terapeutas ou mesmo

os estagiários de Terapia Ocupacional) e a temporalidade, são finalmente indispensáveis para a

compreensão do fenômeno terapêutico e o seu alcance como relação de ajuda.

A partir do depoimento de um paciente torna-se mais palpável o entendimento de sua

abstração sobre a relação de ajuda, do seu papel como ajudado e da relevância na ação do terapeuta

(transcrito de acordo com a linguagem coloquial original). Compreende-se a relação terapêutica em um

alicerce psicoterapêutico, relacional, dinâmico, dado a uma dimensão simbólica pela qual afetiva e

subjetivamente terapeuta e paciente se aproximam / são aproximados em prol da existência do processo de

ajuda:

�Meu nome é G.F.M., sou um alcoólatra e drogado em recuperação. Comecei a beber aos

oito anos de idade. Aos doze conheci a maconha, parei de estudar, fui me drogando aos poucos, nos finais

de semana, nas festas. Comecei a beber e a fumar maconha por curiosidade e também pela minha timidez.

Com quatorze anos conheci as bolinhas, que misturadas ao álcool provocam estados de euforia. Daí,

conheci os xaropes que quase me mataram, só consegui parar porque não encontrava mais � foram

proibidos nas farmácias. Cheirei muita cola, gasolina, benzina, ló-ló. Aos dezessete, conheci a cocaína, me

viciei e virei um traficante. Cheirava, bebia, fumava maconha e tomava bolinhas todos os dias. Aos

dezenove fui preso, apanhei muito, tomava choques, saí da cadeia e fui para minha primeira internação

psiquiátrica. Depois casei, separei, tenho um filho. Conheci o crack, passei a roubar, fui internado mais sete

vezes em fazendas de recuperação. Me internaram 23 vezes em hospícios. Fui mendigo, abandonei todas

as drogas, menos o álcool. Tomei álcool de carro, de farmácia. Não me cuidava, me abandonei. Não tomava

banho, não cuidava da higiene pessoal. Procurei ajuda na macumba, no espiritismo, nas religiões. Dentro do

hospital psiquiátrico, sobre o efeito de muitos remédios, eu ia para a Terapia Ocupacional. Ia sem vontade

nenhuma, a minha maior vontade era a de fugir, ir embora de lá. No entanto, o carinho, a paciência que as

terapeutas ocupacionais tiveram comigo me cativou. Lá, me incentivavam a fazer muitas coisas. Aprendi a

fazer teatro, escrevi duas peças e saí muito bem. Com o tempo aprendi também a pintar, desenhar. Me

davam trabalhos a fazer, passei a me sentir útil, digno. Tudo foi desaparecendo, a ansiedade, a depressão,

o desespero e a solidão. Quando eu com elas conversava eu fazia um inventário sobre o meu passado,

onde pude ver todos os meus erros, falhas e medos. Passei a me conhecer melhor, a me aceitar e entender

a vida ao meu redor. Foram experiências muito boas, voltei a sorrir, comecei a me amar�.

A compreensão da relação terapêutica é por si mesma o resultado direto do lidar como uma

forma de comunicação e de inter-ação. Estabelece-se uma afetividade em que as vivências entre terapeuta

e paciente se dão humana, afetiva, sócio-política, subjetivamente. Os dois sujeitos se articulam mutuamente

para àquilo que foi identificado como necessidades de saúde do cliente; no caso da Terapia Ocupacional,

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algo que se interessa ao cotidiano, sua representatividade pessoal para o cliente e sua realização que este

limitando a participação mais autônoma e independente em contextos como o trabalho, o lazer, o

autocuidado. E a relação se anuncia para além de uma experiência subjetiva, pois a capacidade humana de

fazer transforma e dá sentido ao repertório do cotidiano, relevante ao paciente e à condução terapêutica.

Na relação terapêutica um universo de questões concernentes à ética vão se tornar

substanciais, o que culmina na estética da relação terapeuta-paciente através do sentimento amoroso

marcante na ajuda. O caráter da ajuda não-paternalista, beneficente, que priorize o respeito aos limites

inerentes ao paciente e seu processo de saúde-adoecimento, que valorize o princípio de autonomia e de

responsabilidade do paciente diante à condução terapêutica se fará amplamente compreensível quando

consideramos o conceito de empatia. Sendo empático é possível ao terapeuta se fazer compreender frente

ao paciente e compreendê-lo em sua singularidade. A empatia nos permite um processo dinâmico de

exercitar o respeito, a disponibilidade, a sensibilidade, a integridade na relação terapêutica como também

por ela é possível alcançar um nível sempre crescente de confiabilidade e conforto, que irão beneficiar mais

diretamente o cliente � alvo das intervenções. Enfim, por uma máxima bioética temos, na relação

terapêutica, o espaço seguro para que a expressão do paciente seja material de tratamento e também

resultado deste.

Goethe enuncia que �quem não conhece a história de sua arte não conhece sua história�. A arte

de ser terapeuta, qual a dimensão de buscar aliviar a dor que o outro sente? Aliás, o que faz o terapeuta é

somente aliviar ou ele pode, factualmente, estabelecer uma contigüidade que favoreça ao paciente a

construção da realidade de cura tão almejada? Infindáveis questões que despontam do existencialismo da

relação terapêutica vão se relacionar intimamente à esfera do humano, circunstância em que se

autoconhecer, desejar, transformar-se e aprimorar são as leis de se fazer existir. Tais leis a que também

está submetido o terapeuta. O terapeuta sente o medo de nada ter para oferecer quando se deparar com

demandas do cliente que apesar de todo seu conhecimento e formação acadêmica ainda não pode

dimensionar pela vivência que reuniu consigo até então. É possível o terapeuta cometer um equívoco se ele

se propuser a cuidar da doença - por julgar ser isto o mais concreto a lidar e ter nisto um caráter científico, e

não da pessoa em detrimento à esfera existencial que o ajudado traz na terapêutica. No entanto, o

terapeuta, em intermitente formação, dispõe da sabedoria de que sua ação pode fazer de cada momento na

relação de ajuda uma oportunidade de cura, em que o paciente pode libertar-se para além da escuta ir

ocupar um processo de superação. A dor do paciente, mesmo que isto seja denominado essencialmente

subjetividade, é o material para que o terapeuta possa exercer sua função e seja assim eficiente no que se

propõe a ajudar.

Alguns desafios serão encontrar definições para tratamento, terapia, ajuda, atender. Fazer um

paralelo com a questão: - o que o paciente quer? O paciente ocupa um foco onde a relevância é a escuta de

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seus pormenores. No outro, o terapeuta se faz escutar tudo o que possa ser atribuído à integridade do

paciente a partir dos elementos que este último traz. A relação binomial da ajuda vai compor-se como

vínculo de sensibilidades, encontro de acessibilidade mútua entre os sujeitos do par e (re)construção de

conteúdos, ou significantes, pelos quais o ajudado apropriar-se-á de um beneficiamento direto � são estes

os seus próprios limites advindos pela condução terapêutica.

Quando o terapeuta depara-se com a dor como o resultado de sua ação, uma intrigante

descontinuidade da proposição de ajuda. Atendi H., criança de 02 anos, portador de rara síndrome

metabólica, a de Lesh-Nyham, que altera o metabolismo das purinas, produzindo processos de anemia

crônicos e alterações comportamentais graves, num ambulatório de intervenção sensório-motora durante 02

meses. Meu primeiro contato com esta criança foi anterior, durante uma internação (por infecção de vias

áreas superiores) quando foi solicitado à Terapia Ocupacional realizar uma avaliação global do

desenvolvimento e, possivelmente, acompanhá-la. H. era uma criança que somente fazia movimentação

ativa das extremidades, notadamente às superiores, sem controle motor para movimentação do tronco ou

mesmo da cabeça, permanecendo deitado no leito severamente irritadiço, ansioso, aversivo ao contato. H.

mutilava-se inconscientemente, dado que este é uma produção sintomática da síndrome, mordendo seu

lábio inferior (já em processo acentuado de fibrosamento em sua maior extensão), em certas ocasiões

podia-se observar o relato da mãe de que �a criança comia sua boca�; em casa H. (por cerca de 06 meses

anteriores à esta internação) começou automutilações mordendo os seus polegares � que estavam, então,

em processo agudo de inflamação. Imediatamente pudemos proteger estes dedos com uma espécie de

dedal de plástico, resistente, que a mãe trouxera de casa. H. reagia agressivamente à minha presença,

impulsionava todo o seu corpo, como quem pulava deitado, utilizando a movimentação dos membros

inferiores. Após a alta, iniciamos o acompanhamento mais estreito no ambulatório. H. permanecia gritando,

chorando, assustado durante os primeiros dias deste novo trabalho: iniciamos ali um processo de

estimulação sensório-motora global para o aprimoramento no que tange ao severo atraso do

desenvolvimento neuro-psico-motor, associado a esta proposta buscamos conduzir uma abordagem

cognitivo-comportamental em que H. era convidado a conduzir um autocontrole para cessar, inibir ou

apenas frear o processo de mutilação que era desencadeado automaticamente quando retirávamos os

tampões na sessões terapêuticas. A dor daquele menino era transposta para além de seus olhos, sempre

lacrimejantes, seus lábios sangrando, seus movimentos angustiados de levar os polegares à boca � sua

repulsa por mim ou sua exposição durante a terapêutica faziam-me questionar, a todo momento, o próprio

ajudar, que somente viria posteriormente a superação de limites agudamente álgicos.

Em Terapia Ocupacional, o profissional almeja auxiliar o seu cliente em estratégias de

superação, a partir das dificuldades, deficiências, inabilidades ou mesmo incapacidades com as quais este

paciente se depara para se autogerir, seja nas atividades laborais, de recreação, da vida prática cotidiana ou

do autocuidado. Os resultados compatíveis a este propósito tornam-se significativos quando na condução

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algo relevante ao aprendizado / à inserção / recuperação vá ser erguido por um processo dinâmico de fazer.

O paciente que busca, que apreende o que seja escolher, que aprende o que lhe seja valor, metas,

necessidades de adaptação, depara-se na Terapia Ocupacional com um processo práxico de fazer-se

individualidade, consciente, autônoma, independente, resoluta. Apesar do que tais primórdios possam ser

inacessíveis a grande parte da clientela que tradicionalmente cuidamos, o que nos faz implicar em práticas

sempre desafiadoras e atualizadas frente à singularidade da vivência clínica. O alívio da dor, a ampliação de

um senso de competência, a �descoberta� de uma saída para que o cliente administre seus sintomas a

ponto de permitir que isto o faça ser e estar mais confortável no dia-a-dia; muitas vezes são estas as

circunstâncias que marcam o final da terapêutica, e o seu máximo de eficiência. Terapeutas ocupacionais

conhecem vivências em suas práticas sociais e na Saúde que lhes favorecem uma crença na arte que se

anuncia pela arte de viver, de poder viver bem, melhor. Perguntamos aos nossos clientes o que você

gostaria de fazer por si mesmo? O que precisa fazer e não o faz agora? O que lhe falta para ser e mudar?

Auxiliamo-nos a descobrir os porquês destes processos de abandono e com ele poderemos eleger

prioridades, relevância, para conquistar novos caminhos, ir ainda mais longe além da queixa do não

conseguir, do não fazer.

Uma antiga anedota, da existência humana, a que diz: �ninguém no mundo sabe quanto pode

durar um segundo de sofrimento� parece dar o tom da conversa quando qualquer cliente insere-se na lógica

da Terapia Ocupacional. O contexto que irá ser implementado deve partir deste tipo de indagação para que

o cliente identifique, e posteriormente aproprie-se de, o sentido da terapêutica via ocupação. A avaliação do

terapeuta ocupacional constitui-se de um elenco de instrumentos que o faz tocar, acessar, conhecer o

impacto daquele sofrimento na vida cotidiana. Sua ação nos diversos níveis de atenção à saúde e das

práticas ditas sociais, busca trabalhar com o quê seja dificultador / limitante para o cliente na participação

em contextos, papéis, demandas cotidianas e na manutenção dinâmica de bem-estar bio-psicossocial e

espiritual para a execução de performances ocupacionais, sobretudo nas formas de desempenho em

atividades da vida diária, autocuidado, lazer e do trabalho propriamente dito. Por este bojo de legitimar sua

função o terapeuta ocupacional vem se inserindo em serviços multi e interdisciplinares, trazendo em si uma

contribuição que articule as diferenças dos clientes e potencialize uma prática que venha a desconstruir

culturalmente estigmas e preconceitos e trate de fazer algo contra o não ser.

E se o terapeuta abandona seu cliente? E se o terapeuta precisa transferir seu paciente por se

ver completamente despreparado para atendê-lo? E se os valores do paciente vão contrários aos rumos

propostos pela terapêutica?

E o meu lugar? Onde moro?

O que sei que lá eu me acho:

Nos olhos do outro que está me olhando.

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Ao considerarmos o encontro humano que dá quando terapeuta e paciente entram em contato a

paisagem que se inaugura é o do descobrir a si mesmos, um diante do outro. Não são os mesmos, ocupam

lugares distintos, pré-definidos, porém as ações de um repercutirão em reação no outro. A falta dentro de

um será na expressa na busca que este fará no outro; no caso, é esta a direção na qual o terapeuta se

dedica por manejar clinicamente as demandas com que o paciente se depara e se apresenta no curso

terapêutico. O terapeuta ocupacional como um artesão constrói um saber de modo vivo, que advém do fazer

do cliente. Tal o fazer no trabalho psicoterapêutico, com o constante interlocução pró-transformação, que

almeja uma ação que forma, (re)forma, informa e, enfim, trans-forma. O saber o do cliente emerge em sei

mesmo em atividade. E se na prática o terapeuta ocupacional se mantém paralisado com o receio de

envolver com seus clientes, é por que em verdade ele momentaneamente se esqueceu que o saber é do

outro; a substancialidade da relação afeta mais diretamente o paciente, dado que este se defronta com todo

o material que somente ele poderá dedicar-se, haver-se, ainda que seja o terapeuta o instrumenta-dor desta

ação. O medo do terapeuta, de envolver-se com cada paciente, neste momento, torna-se solúvel e não mais

se justifica. Os produtos terapêuticos são feitos históricos, marcam a atuação do paciente num contexto

específico, do setting e da relação, mas que não permanecem ali estéreis no objeto produzido; de fato, está

indo constituir parte da história de vida deste cliente e ser, assim, por ele incorporado intrinsecamente.

Dificuldades da prática: - quando a quantidade precisa superar a qualidade, quando o terapeuta

se permite exercer protocolos rígidos, quando o profissional se fazer um técnico que se dá executar apenas

saberes específicos, restritos a ultraconcepções teórico-metodológicas. Ser terapeuta é algo que se aprende

a ser, que sempre demandará de que for sê-lo uma atualização sem fim de si mesmo diante dos outros, pois

que a constituição de sua atitude está ao nível do dispor-se e isto representa, por excelência, um cuidado

com a singularidade de cada paciente: pretensões de alcançar uma relação exclusiva, única a todo

momento do contexto da relação de ajuda. Num conceito psicanalítico, o terapeuta é um ser em pura falta-a-

ser, sua totalidade não é outra senão a de reconhecer que precisa alcançar o paciente de forma relacional,

aprendendo com ele. A égide da relação terapêutica está em estar diante. O estilo de cada terapeuta o faz

marcá-lo como um sujeito inigualável, que pode auxiliar o paciente de uma forma absolutamente própria, tal

qual virtude, dom quase indizível, concernente a um universo particular do seu vir-a-ser cuidador, papel e

disponibilidade para auxiliar pessoas nos contextos de Saúde onde atua. O acesso ao terapeuta é uma

forma dinâmica de se fazer comunicar, dentro de um molde que configure partilha de significantes,

significados, para estabelecer a ordem do comum, do par na ação terapêutica. Daí o paciente reconhecerá o

sentido para confiar e valorizar o sentido de se permitir ser ajudado na convivência desta relação.

Estabelecido o contato terapêutico, a relação enuncia-se para operar significantes inerentes à

sua justificativa. Esquematicamente encontramos os presságios para sua formulação: * as demandas que o

paciente traz ao terapeuta no serviço de ajuda; * a disponibilidade profissional terapeuta, que oferece ao

social uma possibilidade de auxílio, escuta, cuidado; * a constituição de uma atmosfera de calor pró-contatos

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entre terapeuta e paciente, própria da alma dos serviços de Saúde; * o reconhecimento da necessidade e da

existência de um ambiente protegido para o percurso terapêutico; * a construção da empatia e o processo

de vinculação. Finalmente, temos nesta hierarquia a singularidade da intervenção terapêutica propriamente

dita � dinâmica interacional do fazer e do lidar. Assim, no que se refere à Terapia Ocupacional a relação, em

estudo, alcança sua totalidade por ser embasada em atividades e ocupações, que somente tenham função

se relevadas às necessidades individuais trazidas pelo cliente. E ao cliente é permitida uma reinvenção a

todos os momentos da condução no setting, pois ele se conhece, aperfeiçoa-se e almeja inovar suas

conquistas. O terapeuta, por sua vez, trata de contribuir com esta prática inovadora, trazendo outros

estímulos, desafios para além dos já imprevistos que inevitavelmente qualificam todos os encontros

humanos.

O final da terapêutica aponta para o momento no qual o paciente já ocupa um grau mais

ampliado de autonomia, que represente a superação de uma demanda mais específica restritiva ao

cotidiano ou geradora de desconforto mais acentuado. Neste etapa, a convivência terapêutica deixa de

circunscrever aquilo que seja essencial para o paciente, dado que o processo intermediário da condução

serviu para superar objetivos e habilitá-lo. É necessário ao terapeuta conduzir seu cliente diante ao

estranhamento do �eu posso?�, �eu consigo sozinho?�, �então eu não vou mais precisar vir aqui, precisar de

você...?� tal que para favorecer percepção mais ampliada: o acompanhamento terapêutico mostra novos

horizontes, nos quais o cliente engajado poderá priorizar inovação de seus projetos de vida, circulação

social, renovação de metas funcionais.

O cerne da relação terapeuta-paciente ocupa um status binômico: provocar versus afetar. O

provocar (pró-vocar; vocare: chamado) permite com que terapeuta invista num chamamento do seu cliente,

uma sensibilizar-se ante ao processo que, supostamente, irão inaugurar juntos de mudanças. O afetar é um

estado em que o paciente depara-se com um incômodo, que dentro do processo terapêutico manifesta-se

contrário ao direcionamento da ajuda, por que só serve se gerar impasse e existe para gerar movimentos

dentro da óptica da relação a caminho; o paciente encontra-se aí numa instância subjetiva, afetiva,

propulsora para externalização de suas potencialidades. À medida que o terapeuta mais provoca o paciente,

promovendo oportunidades para a resolução de demandas e ou conteúdos por eles identificados como

significantes, mais afetado se tornara o paciente diante das suas próprias necessidades; a terapêutica

acompanha o ritmo destes dois valentes, sendo que o terapeuta avalia constantemente o quanto sua

intervenção já possibilitou recursos e aprendizados para que o paciente também inaugure, por si mesmo,

movimentos de apropriação deste tipo de ferramenta não somente na ambientação terapêutica, como

majoritariamente na vida cotidiana.

Tendo a formação de sujeitos como produção inequívoca da relação terapeuta-paciente, não

encontramos dentro do sentido da ajuda espaço para a produção de fenômenos massificadores. Sejam os

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elementos úteis ao par terapêutico especialmente objetivos que tendam a (re)inovação a efetividade, a

pertinência de resultados apontam três parâmetros: * aprender algo de si � apreensão via vivência; *

estabelecer processo de mudança � consciência do paciente sobre si e os outros, o mundo a ele

circundantes; * reconhecer historicidade a partir de uma trajetória comum � convivência terapêutica que

favoreça ao paciente desenhar (e criar linguagem) algo que lhe seja oportuno, relevante, transformador

diante sua realidade existencial. Entendo que estes parâmetros em conjunto nos possibilitam o

questionamento a respeito do que nós � terapeutas ocupacionais, temos formado, traçado contornos,

apropriação com o que nos propomos contribuir com nossa clínica que utiliza a ocupação humana como um

saber para e sobre a saúde. Além do mais a interseção entre terapeuta e paciente, cabível à aliança

terapêutica, preenche acolhimento, comunicabilidade e problematização para o crescimento mútuo no

encontro, o que faz dos impasses os desafios para terapeuta e paciente percorrerem em conjunto.

O saber do terapeuta, inerente à sua constituição e atuação, é um saber que não se aceita

esgotar. O alcance deste trabalho monográfico é só e tão discretamente ser ter pra si uma incompletude.

Estes escritos servem apenas para identificar a necessidade de exercitamos uma atividade reflexiva sobre o

que seja se dispor para caminhar numa relação terapeuta-paciente, oportunamente pelos percursos da

Terapia Ocupacional. Ao concebermos que temos necessidade de estudar mais profundamente a relação

terapêutica, inexoravelmente deparamos com um desconcerto de ter que mais conhecer o paciente: o que

vai ser aproximar. O presente estudo busca valorizar o tema, que acolhido pela vastidão da clínica, almejar

reunir-se a um campo ainda mais irrestrito, lugar onde a expansão toma frente para ser soberana de

sentidos, significados e formas de alcançar.

Um trabalho monográfico não pretende inventar articulações, apenas deve ser uma pequena

contribuição ao pensamento científico em voga. Busquei traduzir para o legível algo que encontrei

expressão nas vivências, e o que julgo ser passível de comunhão com outros terapeutas ocupacionais. O

dizer é uma prática, que de acordo com sua acepção grega significa dispor, disponibilizar, tal qual o sentido

da relação terapeuta-paciente. Ao dizer temos em nós também uma forma de saber mais e de escutar de si

mesmo. Acredito que é dizendo que nos deparamos juntos com propostas sempre interessantes ao

crescimento profissional. Diálogo para promover diversidade clínica, epistemológica, na legitimidade e na

ética da Terapia Ocupacional. Para mim este trabalho resulta do ultrapassar a fronteira do que eu soube ser,

o que deixo aqui registrado já é apenas parte, por que sei o quanto é necessário saber mais, fica de resto a

sensação de um vir-a-ser (a posteriori). Porém, a lacuna que houvera foi traduzida como reafirmação da

necessidade de conhecer mais e mais a riqueza da clínica e o que ela ensina em seu lugar de cuidado,

ajuda, das humanidades...

O paciente, para o estabelecimento de um vínculo interessante ao processo terapêutico em

condução, tem na transferência um recurso simbólico no qual seu inconsciente autoriza ao terapeuta ocupar

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o papel de ajudador, como já referido neste trabalho. A transferência tem em si um caráter perturbador que

na interface com o outro, o sujeito despoja-se de certezas fixas e passa a investir numa busca de conhecer,

de aprender, deixando-se tocar pelo outro, no caso o terapeuta. As descobertas serão advindas da falta que

o paciente sente em si, o movimento de busca o fará inscrever no mundo um dar de si, isto é sua marca

pessoal de significar as relações. Na transferência ocorrerá uma identificação simbólica do sujeito para com

o outro e que por um mecanismo psíquico lhe dá a sensação de que este outro poderá ajudá-lo em sua

própria falta. O psiquismo em suas três dimensões - real, imaginário e simbólico, cria linguagens que

manifestas aproximam o paciente do terapeuta, por identificações do primeiro e escuta e manejo do

segundo. O paciente crê que o terapeuta possa auxiliá-lo, o processo subjetivo nascente nesta relação é

fortalecido com estratégias de enfrentamento e de aprofundamento para que o ajudado efetivamente se

conheça e, por isso, reconheça a si. Em Terapia Ocupacional, há ressonância desta conceituação quando

valorizamos a natureza reflexiva do sujeito, para auxiliá-lo a implementar sua autobiografia, num compasso

de trocas com os outros, aprimorando dinâmicas de interação com mundo através de performances

ocupacionais. A contextualização de vida de uma pessoa, considerando a passagem por um processo

terapêutico ocupacional, idealmente poderia ser compreendida desde a sua pré-história, repleta de

demandas até elaborações significativas como: idealização do self, processo de individuação,

reconhecimento de diferenças, subjetividades e também da sua própria finitude como ser individual diante a

efemeridade do tempo; tais elaborações que possam conotar um sentido de viver intransferível para cada

paciente submetido à nossa intervenção.

A especificidade profissional da Terapia Ocupacional não tem para si uma função

normalizadora, tampouco normativa a respeito do que seja o fazer dos seus pacientes ou o que seja

apenas, como tradicionalmente fomos identificamos, de reabilitá-los. A pertinência da Terapia Ocupacional

reside num método que inclui: * identificação de fatores limitantes / incapacitantes para que o paciente seja

autônomo, independente, resoluto em seu cotidiano; * instrumentalização com o desenvolvimento de

habilidades, competências, desempenhos que repercutam em recuperação ou conquista de papéis, funções

ocupacionais do paciente em seus contextos relevantes; * manutenção de acessibilidade, quando a

profissão faz um diálogo direto entre o sujeito e suas idiossincrasias e a sociedade e suas exigências; *

implementação de habilitação, processamento de saberes e reconhecimento das diferenças para que o

paciente tenha uma estrutura bio-psicossocial e espiritual que lhe permita viver com qualidade e dignidade.

Este método faz uso daquilo que seja acessível ao humano, na condição de ajudado, que o configure como

uma identidade em latente expansão; tem ainda um caráter psicoterapêutico e interacional, sócio-afetivo,

pelo qual o terapeuta ocupacional interessa-se por estabelecer com seu cliente aprendizados (através) do

fazer e que isto construa valores-vivência únicos para cada caso. Tais valores seriam para o paciente o

conhecimento de seus limites, que se alargam durante a condução terapêutica, assim como o

reconhecimento de suas próprias estratégias de habilitação e a apropriação de lugares possíveis,

resultantes das mudanças implementadas com a terapêutica.

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O encontro terapêutico é regido por uma universalidade de sentimentos e emoções, que ora

permitem a aproximação afetiva do par, ora geram conflitos passíveis de tensão na condução terapêutica.

Os limites de um frente ao outro; os caminhos que vão tentar trilhar juntos, como metas terapêuticas a

serem alcançadas; a comunicabilidade e as interfaces das linguagens entre terapeuta e paciente, e suas

limitações pessoais; a temporalidade interna, intrínseca de cada um no encontro terapêutico; as dúvidas,

incertezas, inseguranças e ocupação das posições distintas de ajudador e de ajudado; as necessidades de

trocar, desejos, expectativas; os interesses frente às (in)compatibilidades e, por último, o direito inalienável

de sempre escolher, sendo assim traçamos aqui parte do que desponta humanamente neste encontro. É o

que irá atribuir expressão das diferenças e intersubjetividades que contribuem para o processo de libertação

da consciência, de apropriação da individualidade, na relação de ajuda.

A relação terapeuta-paciente é pautada pelo encontro humano que se dá em função da ajuda, como

meta de seu existencialismo. Interagindo terapeuta e paciente vão associando suas peculiares formas de

percepção, os caminhos que percorrem são produtos de suas complexidades em articulação. A relação

terapêutica oferece produtos que refletem a capacidade dos indivíduos de apropriarem de si mesmos como

individualidades, buscando daí aprimorar sua trajetória existencial; no caso do paciente, tal o sentido de

buscar articular-se pelo apoio que venha do outro, do externo, isto representa ocupar uma qualificação

identificadora � do papel de doente, deficiente, de menos valor, para o de entidade em construção, sujeito

capaz de desenvolver-se e superar suas questões, aprender além dos seus limites.

Os elementos culturais que cada pessoa carrega consigo permitem a significação de valores, numa

conjuntura ampla e totalizante da constituição do ser. Isto também será reproduzido na orbe do encontro

terapêutico, faz com que a realidade existencial de ser terapeuta e de ser paciente no serviço de Saúde /

social encontre na experiência de ajuda, mutuamente compartilhada, a inovação de um ideal igualmente

compartilhado que aponta para a necessidade de um projeto a ser construído. É possível denominar tal

projeto como um conjunto de metas, humanamente úteis para o bem-estar do paciente, somando-se a isto

criar uma instância que privilegiei o paciente em sua causalidade de ser.

A transferência, como um recurso simbólico, apresenta uma eficácia no momento em que se torna

possível um manejo de forças entre terapeuta e paciente, que especialmente faz com que o ajudado se volte

ao ajudador identificando-se. O paciente vai buscar apoio no terapeuta, por acreditar que é possível

encontrar neste algo que aliviei a sua dor. A postura do terapeuta representa proximidade, sendo que esta

percepção é conseqüente à elaboração subjetiva do paciente a partir da condução terapêutica, e do

processo de vinculação propriamente dito. Transferir passa a significar buscar subsídio no outro para

preencher uma lacuna, seja de falta a partir de quaisquer objetos distantes, perdidos ou ainda de confiar a

tal ponto no ajudador, quando se faz plenamente aceitável ao sujeito acreditar que o outro possa fazê-lo. O

terapeuta ocupacional, mais uma vez, depara-se com o desafio maior de utilizar desta transferência para

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alcançar o sujeito propondo a esse um fazer (com)junto, uma experiência humana de mudar a vivência e

que isto somente seja interessante em Terapia Ocupacional se for partilhada. Por isto, valorizamos o saber

humano, fruto de sua própria evolução histórica desenvolvimental; buscamos enfim utilizar, em nossa

clínica, instrumentos inerentes do fazer humano e do cotidiano para implementar a promoção de práticas de

Saúde, mais comumente reconhecidas as de Reabilitação.

A concepção de ser humano em Terapia Ocupacional caracteriza-se por compreendê-lo como

múltiplo, sociável, práxico, idealizador, desenvolvimental, subjetivo, como também de sua natureza dita

espiritual: desejante, cônscio de seus limites, potente de uma individualidade que o permite realizar-se. A

linguagem em Terapia Ocupacional é construída essencialmente valorizando os recursos do não falar, da

comunicação não-verbal intrínseca à esfera do fazer, do construir que tanto priorizamos em nossas

intervenções; a linguagem do não falar, mas, sobretudo do dizer pela amostragem, pela formação do sujeito

externalizada no objeto é advinda e implicitamente construída ao longo das transformações no setting

terapêutico ocupacional. O método terapêutico ocupacional deve promover, assim, aprendizados ao

paciente de forma a informá-lo de sua efetiva capacidade de fazer, refazer e apropriar-se de si mesmo

conscientemente. Por último, a relação terapeuta-paciente permite, de acordo com o conceito chamoniano,

saber (conhecimento sobre o si, o outro e mundo circundante), o dizer (expressão de formas como este

saber é construído) e o pensar (elaboração reflexiva-práxica pela qual o sujeito vai libertando sua

consciência, numa dimensão transformadora da própria existência e do ser como individualidade, self).

A interação na relação terapêutica se dá via o processo de cura, a relação de ajuda é o seu

instrumento. O paciente e o terapeuta compõem um conjunto, sendo que o desejo expresso por este par é

conduzir o ajudado em seus caminhos de busca. As prioridades para a condução terapêutica são demandas

a partir da temporalidade pessoal trazida pelo paciente, sua causalidade em engajar-se ou não em papéis

ou contextos de desempenho que sejam relevantes ao seu cotidiano, valorização pessoal (para nomeação

das metas, novamente relevância), estágios de consciência em locução com necessidades, pelo cliente

identificadas, como de (auto)libertação. Os resultados tendem a substancialidade de saberes, nos quais o

paciente sabe / aprende algo de si, do outro, do mundo e isto suficientemente o estimule a ir além do medo,

da insegurança, da insuficiência relatada, ou ainda da angústia existencial, da deficiência intrínseca ao ser,

sua incapacidades. Tais resultados são matérias-primas para que o terapeuta utilize sua sensibilidade em

prol da fomentação de saberes, inovação e incorporação de processos de mudança para seu cliente.

A relação terapêutica solicita, inerente a sua constituição, a criação de um espaço protegido, vivo

em acolhimento, digno ao mostrar-se do paciente. Denominado de setting terapêutico, de acordo com o

pensamento chamoniano, repleto de uma atmosfera de calor e que se justifica por: * fortalecer a esperança

do paciente de que algo ali será melhorado; * encontrar alguém que de fato possa protegê-lo, oferecer

cuidados naquele lugar; * visualizar um espaço concreto, onde se possa sentir a renovação; * promover o

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alcance às (inter)subjetividades, quando as sensibilidades ganham importância na interação da relação de

ajuda. O terapeuta, neste locus, busca motivar o seu paciente a lutar contra a negação da dor e do si, a não

aceitar a alienação frente às demandas da vida, a não acomodar-se e isolar-se com medo de ser e do fazer,

a não abandonar sua ética pessoal, por que para o terapeuta há recursos e valores no paciente e isto gera

expressividade, marco de uma existência digna, legítima. O terapeuta passa a identificar elementos que

possam ser erguidos, (re)feitos no setting, como a auto-estima, a capacidade de inovar, as estratégias de

enfrentamento (do termo em inglês coping) e o senso de pertencimento.

O uso de atividades na prática da Terapia Ocupacional, como um recurso para o terapeuta

ocupacional promover ações em Saúde, fornece recursos para elevar os pacientes (alvo da intervenção) a

uma condição relacional - quando a atividade terapêutica utilizada na perspectiva de fim-meio assume um

caráter expressivo e formativo (JORGE, 1995, p.07): ao sujeito é possibilitado a construção de sua

singularidade dentro da relação terapêutica. As falas do paciente, em Terapia Ocupacional, tem para si um

valor causional sendo assim meio, elemento que compõe a universalidade da relação terapêutica, mas o

que de acordo com o pensamento chamoniano (JORGE, 1995, p.07) diretamente deve favorecer à atividade

sua excelência como fim-meio. Isto repercute numa concepção de Terapia Ocupacional em que o intento

terapêutico prioriza a ação do sujeito, sendo que o paciente ao ocupar esta possibilidade tem para si

momentos desafiadores que o convidam a transformar a si mesmo e a lidar com o mundo ao redor, sendo

estes trabalhos os objetivos a serem buscados na nossa profissão.

Especificamente a condução da relação terapeuta-paciente, pelo cosmos da Terapia

Ocupacional, repercute em produtos não-verbais, tais como expressões, linguagens, percepções do sujeito

e sua forma de ser, estar, inter-agir, reflexões sobre o se fazer conhecer, necessidades de se mostrar ao

terapeuta, atribuir formação em sua condição existencial e da consciência e gerar informação com

atualização nos objetos produzidos de seu processo de saúde-doença, promoção de autoconhecimento

sobre limites, necessidades, anseios, potencialidades a serem apropriadas pelo paciente. O terapeuta

ocupacional assume uma perspectiva de substancializar tais produtos naquilo que seja interessante à

dimensão relacional de seu paciente, buscando caminhar com o ajudado para aonde seja possível elevar o

nível de autonomia, conquistar grau de independência que permita engajamento em atividades que

cotidianamente sejam relevantes, ou demandadas, aos contextos de vida do seu paciente. Finalmente,

Chamone compreende que �o trabalho do paciente é fim-meio para a construção de saber, quando a

capacidade de conhecer e o conhecimento são vistos fora de qualquer escala hierarquizante� (JORGE,

1995, p.30).

Ainda com referência na contribuição chamoniana - Rui Chamone Jorge em �O Objeto e a

Especificidade da Terapia Ocupacional� (JORGE, 1990), a Terapia Ocupacional epistemologicamente é um

método crítico-laborativo das relações humanas, que em sua dinâmica psicoterapêutica pode auxiliar as

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pessoas num processo de libertação da consciência frente às suas demandas de saúde, com a seguinte

caracterização: - utilizar ocupações livres, criativas, expressivas; - tratar pessoas em todos os níveis de

atenção à Saúde; - aproximar o terapeuta e o paciente num contexto de ajuda (relação e ajudador e ajudado

para o alcance dos objetivos por ele traçados no encontro terapêutico). Assim, novamente, para Chamone a

utilização das atividades humanas como um recurso terapêutico ocupacional vai estabelecer mediação do

processo psicoterapêutico transformador do paciente em três dimensões, essenciais à sua cura, a do fazer /

falar / saber. Chamone justifica que a importância da Terapia Ocupacional reside no fato de se oferecer ao

paciente a oportunidade de intervir no mundo externo (sendo possível incluir neste lugar o processo de

saúde-doença, contextos de performance ocupacional, rotinas, papéis e relevâncias pessoais) segundo na

sua intencionalidade, vontade (também motivação) e com liberdade de formas (JORGE, 1995, p.52).

A visão do paciente como individualidade é expandida em Terapia Ocupacional se o

compreendemos em sua natureza espiritual. Chamone enuncia: �Tudo do espírito provém. Viver é existir na

abertura do ser e na adequação do ser� (JORGE, 1995, p.33). Tal adequação do ser é a articulação do ser

em lidar com aquilo que lhe seja relevante, necessário ou intrinsecamente desejante, como as atividades de

autocuidado, da vida prática nos ambientes de casa ou da cidade, das atividades rotineiras da vida diária, do

trabalho, do lazer, enfim demandas que se façam relevantes à constituição do sujeito como um ser

interacional e capaz de se fazer existir, transformar, inserir, sua autogestão e sua realidade espiritual

marcante nestes processos de viver. A Terapia Ocupacional ainda concebe o ser humano com uma

natureza práxica: ser individual, reflexivo, sujeito idealizador de metas e potente em se transformar, de

acordo com seus próprios desejos e superação de necessidades advindas naquilo que se permite haver

consigo e diante do mundo. Produzir sentidos com seus pacientes, clientes, resgatar significados

idiossincráticos, existenciais, espirituais através das atividades terapêuticas desenvolvidas, promover

apropriação pessoal do ajudado em enfrentar o seu cotidiano de vida comum, construir com o cliente a

sensibilidade que o permita engajar-se motivado em papéis e rotinas, outros finalidades por ele demandas,

são os enfoques essenciais das ações do terapeuta ocupacional nos percursos da saúde práxica. A Terapia

Ocupacional apresenta ao paciente outros interesses além de suas preocupações mórbidas, não sendo aqui

entendidas como recreação puramente para preencher ócio, tempo livre, o nada a fazer, mas que ajudem o

cliente a externalizar seus sentimentos de hostilidade, angústia e dificuldades para manter sua auto-estima,

principalmente no que tange ao processo de adoecimento por ele vivido e os limites com que se depara para

o fazer, o transformar. A intervenção visa proporcionar ao paciente, através do fazer como um método de

alcance psicoterapêutico, recursos de acolhimento, de autoconhecimento, de enfrentamento de dificuldades

conscientes ou expressas subjetivamente e (re)construção de uma postura sempre ativa, para ser inerente

ao seu vir-a-ser existencial.

A Terapia Ocupacional, traçando para si uma especificidade para atuar nas ações de Saúde,

interessa-se por lidar com demandas pró-cotidiano e quer ampliar a rede de significantes do sujeito frente

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àquilo que o permita ser e manter-se autônomo, independente, potente; tal um processo que exorte o senso

de competência da pessoa que se recupera, dando valor à sua (re)modelação de auto-estima e dos sentidos

para viver.

O presente estudo monográfico nasce de uma experiência de rito de passagem. O estudante de

Terapia Ocupacional, inicialmente, com suas incertezas sobre o tema se fez disponível para conhecer e se

questionar diante o objeto de estudo traçado (o da relação terapeuta-paciente). Depois quando o estudante

se torna estagiário nos diferentes serviços, seja nas exigências da formação acadêmica em Terapia

Ocupacional nos estágios curriculares ou nas práticas das disciplinas aplicadas à clínica, alcança um

aprendizado ampliado sobre o estar diante do seu paciente e o defronta com todo o aprendizado teórico, até

então acumulado. Para finalmente, como um terapeuta ocupacional ocupar o papel de ajudador e apropriar-

se em saber sê-lo, mesmo que isto se faça uma clínica do sempre aprender a fazer com cada cliente que for

encontrar, um encontro que vá questionar as certezas e que, intrinsecamente, atribua autonomia em sua

função terapêutica e de construir realidades com sua ação.

Dois ditos encontros terapêuticos Atendi B., criança de 02 anos, em um ambulatório de Terapia Ocupacional para o

desenvolvimento infantil, em um hospital da rede estadual. Encaminhada para programa de estimulação

sensório-motora pela Neurologia, apresentava severo atraso do desenvolvimento neuro-psico-motor em

decorrência de um traumatismo crânico-encefálico aos 02 meses de vida, quando sofreu grave queda (do

colo da mãe em uma escada). B. mostrava-se absolutamente apática, pouco favorável ao contato no setting

terapêutico, sem fixação do olhar, nem sorriso social durante os primeiros contatos. Permanecia deitada em

decúbito dorsal, imóvel durante a maior parte do tempo, hipotônica (mais acentuadamente no eixo axial).

Sua mãe, que acompanhava todas as sessões terapêuticas, trazia um depoimento de angústia: ora

preocupada com as condições tão limitantes da filha, ora sensibilizada (relatando sentimentos de culpa,

angústia, sofrimento moral) pelo quê aquela terrível história gerou em suas vidas. A abordagem terapêutica

ocupacional, inicialmente apontaria para o programa de intervenção sensório-motora a ser desenvolvido

com a criança. No entanto, a demanda da mãe implicava diretamente num descompasso frente ao seu

papel de mãe e, sobretudo, da relação de cuidado com a filha. Os atendimentos daquele momento foram

marcados por uma abordagem centrada no núcleo familiar, entendendo a extensão do �problema� como

centrado na significação da vivência, do fazer relacional, entre mãe e filha e na perspectiva de superação

para a construção do cotidiano relevante ao seu contexto de busca: uma ocupando um papel de cuidadora

por excelência, outra se desenvolvendo para um bem-estar global em sua capacidade de ser. A partir de

então, fui dialogar com L., mãe de B. (sua segunda filha) sobre aquelas dificuldades emocionais que trazia e

como poderíamos abordar tal questão, juntos em prol da melhor condução terapêutica possível às

condições de B. Ao final dos atendimentos com a criança, a mãe era convidada a avaliar suas expectativas,

assim como as perspectivas em renovação sobre o ser mãe, em auto-organização, relevância pessoal e

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favorecendo seu próprio senso de competência e auto-estima. Apesar do registro inegável da dor, a mãe foi

gradualmente implementando formas de agir que fossem superar o limite, advindo do acidente e que era

explícito no desenvolvimento de B. L. passou a ocupar um papel eficiente de parceira na condução

terapêutica, procedendo em casa com os manuseios terapêuticos discutidos, ensinados, demandados nas

ações da terapêutica ocupacional � o que se tornou crescentemente viável, indispensável para alcançarmos

um conforto para B. A criança respondia com melhora discreta, o que registrávamos no padrão de

movimentação global. Após os 03 meses da condução terapêutica naquele ambulatório, B. alcançou

razoável sustentação do corpo antigravitacional, dado que apesar do rebaixamento da cabeça, podia agora

se manter um tempo maior na posição sentada. Porém quanto aos aspectos sócio-emocionais, em especial

ao componente de interação com o ambiente, de comunicabilidade e de respostas voluntárias, tão

valorizados nas ações ali conduzidas (compreendendo o papel de brincante, função ímpar para o

desenvolvimento da criança), pudemos conhecer a singularidade de B. em ser e se fazer viver.

Naturalmente, B. tornou-se uma criança �sorridente� � o orgulho e o alívio da mãe, reativa ao contato, capaz

de alcançar interações precisas no setting, durante a movimentação voluntária e a comunicação. Tal

mudança também observada pela mãe em casa: B. conseguia brincar com os outros membros da família e

respondia satisfatoriamente aos estímulos no que tange os momentos do autocuidado � banho, vestir e

alimentação. Especificamente pela avaliação contínua de Terapia Ocupacional, pude registrar que havia

intencionalidade em B. para a auto-expressão, traduzindo com a face o processo básico de comunicação

sim-e-não, desenvolvendo-se cognitivamente dentro do potencial esperado pela idade. Freqüentes, nesta

época, tornaram-se os relatos do quanto B. passou a brincar no banho, no berço, sua melhora de

sustentação do corpo, até mesmo para ser carregada e a mãe associava tamanha motivação de B. toda vez

que a criança reconhecia minha voz, ou me via, antes do início de cada dia de acompanhamento: tudo

pareceu favorecer o processo de construção relacional que nos dávamos a cuidar naquela ocasião. Maior

sucesso, naquela relação terapêutica, era presenciar a satisfação de B. em tocar os objetos e brinquedos

oferecidos, vê-la competente para ser lúdica, explorar o mundo com seu corpo limitado, mas modificando-o,

conhecendo-o e a si mesma intermitentemente. Estrategicamente esta satisfação era inserida na lógica do

programa de estimulação sensório-motor, o que classicamente já é desenvolvido por terapeuta ocupacionais

que lidam com a clínica do desenvolvimento infantil, repercutindo em mais motivação a partir dos �sucessos�

no �brincar�. Ao final da relação, L. avaliou que por maior que fosse o extensivo o déficit funcional de B. isto

já não mais impediria aquela pequena vida de ser e fazer-se agente no mundo de infindáveis possibilidades

a seguir.

Conheci Z., em um serviço residencial terapêutico - SRT (uma casa mantida pela prefeitura

municipal, que abriga e cuida de pessoas egressas de internação em instituições psiquiátricas), mulher de

55 anos, portadora de gravíssimo quadro demencial, tão comprometida funcionalmente que não fazia uso de

recursos para a linguagem oral, mantendo-se afásica, agnósica e apráxica. Z. apresentava-se sempre

favorável ao contato, abordava-a com a proposta de acompanhamento terapêutico, mostrava-se com um

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sorriso largo e comunicava-se com o olhar. Carinhosa, receptiva à aproximação ia tocando-me no antebraço

espontaneamente. Muitas vezes quando eu chegava no SRT, Z. encontrava-se ansiosa e permanecia dando

voltas inúmeras em torno da casa, não permanecia sentada à mesa ou no sofá na sala de televisão.

Tornava-se possível identificar uma angústia, a que favorecia alterações tão ostensivas em seu

comportamento, ininterruptamente. O cotidiano de Z., naquela ocasião, caracterizava-se por ir deitar em sua

cama, mas que logo se decorria num levantar e ir até a sala, ou depois ir ao terreiro, sair na direção da

cozinha, �procurar-me� no escritório, de novo à sala, à mesa onde não suportava sentar-se, ao quarto, na

cama... A equipe de enfermagem cuidava de mantê-la limpa, além da sialorréia intensa, Z. já não possui o

controle dos esfíncteres. Os episódios de incontinência contribuíam significantemente para o quadro de

ansiedade tão exacerbado, no entanto Z. era trocada, limpa, após um banho, sempre que precisava.

Durante a juventude Z. trabalhou como auxiliar de serviços gerais e de limpeza, numa escola da cidade,

morou sozinha, próxima à casa de sua mãe, tornou-se independente financeiramente e apreciava, então,

cuidar da casa e dos seus animais de estimação. De acordo com o relato de M., mãe de Z. que a

acompanhava no SRT, todo o histórico de sofrimento mental ocorreu subitamente quando Z. ainda era muito

jovem, por volta de seus 28 anos. Tornou-se naquela época bastante agressiva, quebrava toda a casa, ora

jogava a mobília fora no rio, ora se trancava e permanecia isolada ali durante dias seguidos. Sua mãe tão

assustada não podia reconhecer a filha, num momento tão atroz buscou recursos em uma instituição

psiquiátrica do estado e, dali em diante, Z. passou longos anos internadas em manicômios. Do estupor

psicótico até o quadro de demenciação grave, Z. deixou de falar, não conseguiu mais executar comandos

simples, confundiu-se quanto ao uso de objetos da vida prática, tornou-se completamente inadequada para

conviver no grupo social. Contornos grotescos passaram a ilustrar o seu cotidiano de via: comia pedras,

entulhos, suas próprias fezes, prostava-se sialórreica, emitia urros incontroláveis ou nos momentos de

desagrado ainda gritava palavras chulas, soltas; adquiriu ao final deste processo de perder um aspecto

pueril, sorrindo a todo tempo, associado àquela angústia que não cessava. Pude presenciar, muito

esporadicamente, um esboço de reatividade quando Z., de alguma forma contrariada, produzia sons

guturais como expressões orais semelhantes aos termos vulgares de outrora. Neste panorama de profundo

não ser, Z. veio morar no SRT após amais recente internação (07 anos em um asilo). O projeto terapêutico

para esta pessoa deveria valorizar uma reconstrução de cotidiano, possibilitando um pouco de conforto e

assegurando dignidade ao envelhecer tão adoecido: seria interessante buscarmos juntos, um processo de

mudança que repercutisse no que poderíamos identificar com qualidade de vida. O terapeuta ocupacional, a

equipe de cuidadores e Z., todos juntos se fizeram inserir num contexto em prol do transformar.

Especificamente, minha relação com Z. nasceu em meados do primeiro semestre de 2003, quando passei a

conviver diariamente com ela na casa. Convidei Z. a me auxiliar com o cuidado com as flores, íamos regá-

las juntos. Promovia um contato maior com o ambiente, na medida em que Z. pudesse perceber algo do que

estava ao seu redor e pudesse, então, interagir. Buscava resgatar um pouco do valor, de acordo com a

coleta do histórico ocupacional de Z., do cuidado ou da estima pelos animais domésticos: íamos nos

ambientando pela casa e aproximando dos gatos do lugar. Z. satisfazia-se com estes momentos, passando

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a demonstrar com um toque afável em minha mão que aquilo seria uma ponte estreita de aproximação entre

nós. Sorria quando pegávamos ameixas no quintal, colhíamos outras frutas e as guardávamos na cozinha,

tudo era finalizado em agradáveis piqueniques que nos dávamos corriqueiramente. Z. passou a me buscar,

puxando-me pelo braço, indicando para aonde gostaria de ir. Os nossos horizontes se alargaram: fomos

conhecendo a vizinhança, a calçada, muitas vezes ela ficava estática, quase que assustada (re)conhecendo

o trânsito a nossa frente, até quando nossas fronteiras chegavam à Lagoa da Pampulha e ao supermercado

local, e Z. voluntariamente mostrava-me pelo braço onde poderíamos chegar. Por excelência eu avaliava

com bem-sucedida a intervenção terapêutica, notadamente como uma relação de ajuda que repercutia em

produtos expressivos, pautados na linguagem não-verbal, no toque, na carícia, nos convites, tudo como

forma de desafiar aquela pessoa à uma perspectiva do vir-a-ser e, assim, de mudar sua realidade

existencial. Questionava-me a investir em cuidados com Z. de maneira a promover o �fazer com�,

priorizando o �ir junto� como a ferramenta mais primorosa do nosso encontro terapêutico. O meu trabalho na

casa, no SRT, qualificava-se primeiramente como uma intervenção de acompanhamento terapêutico, porém

fui desenvolver dentro dos recursos da Terapia Ocupacional uma proposta de reabilitação cognitivo-

comportamental que pudesse ser adequada à lógica do contexto em que estava: ali era a casa de Z. e não

uma clínica, ou um ambulatório. Para ajudar Z. eu não tinha a disponibilidade para transformar a casa num

setting terapêutico ocupacional, mas a Terapia Ocupacional em sua ênfase no cotidiano de vida das

pessoas seria a metodologia mais interessante para a implementação de um programa de cuidados, que

repercutisse em um grau de bem-estar bio-psicossocial aliado à performance ocupacional do dia-a-dia.

Iniciei, considerando a reflexão acima proposta, uma estimulação cognitiva com Z. em três ambientes

distintos: o banheiro, a cozinha e a copa (enfaticamente a mesa de jantar). Começamos a executar com

certa sistematização todas as atividades referentes às tarefas de banhar-se, arrumar-se em frente ao

espelho, vestir-se, alimentar-se (excluindo aqui a preparação da refeição), limpar-se quando sentada à mesa

e o deslocamento intencional dentre estes ambientes para a realização do nosso programa diário de treino

funcional de atividades de vida diária. Rotineiramente, durante 03 meses fomos caminhando juntos até

quando foi possível avaliar uma organização eficiente de Z. para identificar os ambientes (mais relevantes

às áreas de contexto da performance ocupacional) e as propostas de atividades que deveria executar, mais

autônoma e independente possível (P.S.: importante registrar que a equipe de enfermagem foi adequando-

se aos resultados e que, favoravelmente, mantia os ganhos funcionais quando cuidavam de Z. em outros

momentos do cotidiano na casa). Assim, a participação de Z. no cotidiano da casa passou a ganhar um

renovador contorno de interação, o que se denotava pelo fato da relação terapêutica valorizar também a

construção de um papel ativo em estar e ser, mesmo isto não pudesse efetivamente ser traduzido como

conquista da independência (impossível pelas limitações funcionais de Z. e seus componentes motores,

cognitivos, perceptuais, práxicos requeridos nos diversos contextos das performances). A Terapia

Ocupacional neste momento implicava na articulação entre terapeuta e paciente, ou melhor, moradora,

visando dar forma aos elementos subjetivos, sociais e ocupacionais como bem-estar em viver, destes

sujeitos em frente um do outro e em contato intermitente com o mundo circundante. A relação com Z.

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demandava-me olhá-la nos olhos a todo o momento quando (e como) ela me olhava, o que era a

significação concreta da proximidade de nosso momento íntimo, afetivo, a qual somente a relação de ajuda

poderia nos permitir alcançar.

Ao concebermos o fenômeno da relação terapêutica dentro da óptica das relações entre os

humanos é coerente considerar o amor como um dos elementos mais marcantes entre terapeuta e paciente.

O amor dito assim, como um amor terapêutico será a manifestação calorosa que vai marcar o encontro

entre os pares na relação de ajuda. A construção deste tipo de amor será possível a partir de uma

diferenciação, quando na alma dos serviços de Saúde, o terapeuta vai facilitar um cuidado na direção da

melhora, recuperação, ou cura do seu cliente, buscando enfim desenvolver junto ao ajudado o potencial

motriz da sua transformação terapêutica, que por sua vez encontra no Amor um eixo norteador de sentidos.

O Amor assume, na concepção deste trabalho monográfico, um caráter irrestrito de superação do ser diante

de sua história existencial.

O cliente que almeja crescer e se auto-superar vai ao encontro do terapeuta, que valoriza tal

movimento de busca e se faz disponível para acompanhá-lo, oferecendo uma terapêutica que dê subsídios

para amenizar conflitos, encontrar respostas, promover superações e, sobretudo, encontrar sentidos que

justifiquem o viver mais significativo o possível para o ajudado. O terapeuta acredita que há potencialidades

em cada cliente que justifiquem um trabalho conjunto para amar seu cliente além da dor que este venha

expressar, sua história de lástima, perdas, dificuldades e incapacidades. O que há de singular no ajudado

será para o terapeuta algo essencial na condução terapêutica para o exercício do amor terapêutico neste

encontro. Ao amar seu cliente, o terapeuta cria condições que favoreçam escuta, não julgamento, empatia,

acolhimento e estímulo; elementos tais que servem para a integração do ajudado diante daquilo que o par

se propôs a buscar na condução terapêutica. Esta aliança terapêutica é marcada pela capacidade do

terapeuta em amar fraternalmente, de forma universalizante, sendo que apesar de todo cliente ser, a

princípio, um ser desconhecido, o terapeuta deseja ajudá-lo e assume que ao alcançar esta meta terá assim

o maior sucesso de sua ação profissional. A atitude do terapeuta é de disponibilidade universal, no entanto,

ao avaliar as demandas trazidas pelo seu cliente, ao identificar instrumentos dignos à intervenção que será

feita, ao iniciar práticas no setting terapêutico dentro dos objetos traçados em comum acordo, já passa a

abordar o ajudado como um ser inexoravelmente singular, único; o que irá, então, determinar um

acontecimento sempre diferenciado para o estabelecimento de vínculo e relação de ajuda entre terapeuta e

paciente.

O amor terapêutico incondicional exigirá do terapeuta despojamento, entrega, presença, ao

mesmo passo que demandará do cliente enfrentamento, interesse, motivação em assumir para si uma

atitude inalienável de combate por si mesmo, de lutar para se autodescobrir como um ser potente, capaz,

íntegro e daí se (re)fazer e a sua própria trajetória de saúde-doença. Os limites na relação terapêutica serão

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evidenciados naquilo que permeia quaisquer relações humanas que sejam dignas, respeitosas, éticas,

devendo servir de alicerce para que a condução seja sempre marcada daquilo que o par se propôs a

construir efetivamente: a ajuda, bem como no reconhecimento de que o paciente será sempre o beneficiado

direto das ações no setting terapêutico e será a sua subjetividade o instrumento indispensável do trabalho a

ser realizado ali. A manifestação deste amor alcança no cliente um estado de confiar em seu terapeuta,

compreendo que o ajudador está alcançável e isto é uma das possibilidades das que o paciente dispõe para

se curar. Cuidar é assim um exercício de acessibilidade que marca a legitimidade do terapeuta em exercer

sua atitude profissional.

A relação terapêutica por tal dimensão caracterizada não está isenta de ser marcado por

elementos conflituosos como a raiva, o apego, a retração, o medo, a angústia, dado que os sujeitos que

compõem o par estarão intermitentemente em processo de vivência e a integração é marcada com aquilo

que cada um puder trazer à condução terapêutica. No entanto, por ser a relação de ajuda algo que é eleito

como um contexto compartilhado, tanto terapeuta, quanto paciente, deverão lutar em prol da melhor

superação de seus limites pessoais e da interação para juntos irem seguir no sentido de suas metas

traçadas. Finalmente, tal assertiva alcança o status da relação como uma ferramenta a ser usada pelo par e

a implicação de cada um diante disto.

Para COMTE-SPONVILLE (1995), no amor não há escolha e também não há nenhum tipo de

dever, o que caracteriza este sentimento como uma virtude (que se aproxima mais daquilo que chamamos

de liberdade, do que da coerção propriamente dita). A ética, uma virtude como o amor, não pode, então,

existir sem o próprio amor, que é sinônimo de desejo, de espontaneidade de ações que resultam no bem.

Se a ética existir sem o amor, ela deixa de ser ética, passa a ser uma obrigação e deixa de ser uma virtude.

Daí é possível compreender o amor como uma virtude ética, mais uma vez buscando fazer uma análise do

que caracteriza o encontro do par terapêutico. Para o mesmo autor, as pessoas não nascem cheias de

virtude, mas podem se tornar virtuosas através do exercício de amar �somente quem ama não precisa mais

agir como se amasse.� COMTE-SPONVILLE (1995, p.244)

A moral existe quando não há o amor. Por coerção, por obrigação, as pessoas realizam atos

comandados pelo amor, que objetivam amar como forma de bem-conviver. A busca é pelo momento em que

o dever cede lugar àquilo que é feito sem exigências, pelo puro desejo de realizar apenas o que é natural, o

que leva ao bem e partilhar um momento de aprazimento. O amor é algo além e anterior a toda lei social e

moral eleita pelos humanos. O ato humano de amar manifesta-se num círculo que não permanece nunca

como o mesmo amor onde começou, marca histórias de entregas, de partilhas, de correntes de

solidariedade que se fazem infindáveis no cotidiano de vida de qualquer pessoa. Portanto, a vontade de

partilhar de a ética, de uma moral sempre digna, só ocorre porque o amor alimentou o ser com a sede da

liberdade, e este amor parece nascer como a própria semente do indivíduo em sua natureza ética.

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Liberdade é uma expressão do amor e do amar, como diria Cecília Meireles a �liberdade é uma palavra que

o sonho humano alimenta. Não há ninguém que explique e ninguém que não entenda�. O encontro

terapêutico, assim, será marcado pelo exercício do Amor como uma virtude ética sendo isto a manifestação

por excelência do exercício da liberdade humana.

Para BOFF (2001), o cuidado é a atitude de amor que pode salvar o mundo e que por toda a

existência da humanidade tem mantido a espécie humana viva, talvez sobrevivente de si mesma. O cuidado

seria a atitude que impediria seres humanos de construírem formas de exterminar a si mesmos ou aos seus

semelhantes; ou de destruírem sua existência lentamente pela extinção dos recursos inerentes à

manutenção da vida física. O cuidado seria uma das formas de externalização do amor, que justifica todas

as ações tomadas entre terapeuta e cliente em comunhão para a relação de ajuda. Neste sentido, torna-se

interessante conceber o existencialismo da relação terapêutica diante um impasse: filantropia versus clínica

social.

Quando é abordado o amor dentro da relação terapêutica como eixo norteador e intrínseco que

justifica os interesses por partes dos sujeitos que compõem sua esfera de ajuda - novamente, terapeuta e

cliente, é possível vislumbrar um impasse: a filantropia, necessariamente entendida como um efeito genuíno

de ajuda, inerente ao �fazer o bem� que é um dos valores da nossa cultura, versus a clínica social, como

uma necessidade do profissional de efetivar uma intervenção na Saúde que se constitua numa clínica

humana e interacional por excelência.

No existencialismo da relação de ajuda o sentimento ocupa para si um fator de realização, passível

de construção e aprendizado nas ações e intervenções do setting terapêutico. Conforme VISCOTT (1982,

p. 17) temos que: �Os sentimentos são a maneira como nos percebemos. São nossa reação ao mundo que

nos circunda. São a maneira pela qual percebemos que estamos vivos�. Assim, a apropriação do Amor na

relação terapêutica irá ser consolidada em uma natureza perceptual e interativa para o terapeuta e para o

cliente para expandirem a si mesmos quando rumam para aquilo que traçaram juntos. O amor, como um

grande sentido da existência nesta relação, irá se compor a partir das necessidades humanas inatas de

bem-estar e de conviver, lidar. Há uma busca pela compreensão e pela comunicação entre as pessoas,

assim mesmo pode-se vislumbrar que além de uma necessidade, o exercício do amar e do permitir-se amar

são antes formas de ser sociável, de aprender, de ser; sobretudo, o amor deve ser uma atitude repleta de

arte, de ação humana. No existencialismo da relação terapêutica, o amor não almeja ser restrito ao que seja

denominado de habilidade, dom ou faculdade de um ou outro terapeuta, de um ou outro paciente, mas em

toda relação terapêutica o Amor necessita encontrar terreno fértil para se firmar dado que a ajuda é a

própria alma em todo encontro entre os dois sujeitos. E amar para cada um deles ocupará uma significação

e uma locução sempre únicas, porém intrinsecamente comprometidas com a viabilização das metas que se

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dispuseram buscar juntos. O amor se torna a virtude ética por excelência nesta dimensão do encontro

terapeuta-paciente.

O amor pode ser concebido dentro da relação terapêutica somente em sua esfera humana, pautada

na prática do vir-a-ser dos indivíduos, que através dela irão se conhecer. Os afetos (sentimentos advindos

da capacidade de se importar e tocar-se por algo, alguém ou circunstância) que as pessoas cultivam entre si

são circunstâncias peculiares de suas individualidades, ainda são somadas aos fatores da cultura, da

linguagem, da história do desenvolvimento e mesmo da simbologia pessoal � todos os elementos que

marcam a unicidade de cada encontro terapêutico. Pela relação de ajuda, estabelecida na atenção à Saúde

ou mesmo especificamente no processo terapêutico ocupacional, há apropriação de saberes / aprendizados

/ vivências entre terapeuta e paciente que os permitem superar lacunas como estigmas, perdas

psicossociais, limitações físicas, deficiências e restrições aos quais os indivíduos interessados de suas

intervenções estão submetidos e precisam ser beneficiados então, na tônica dos diferentes níveis da Saúde

(promoção, prevenção, cura, reabilitação). Desponta a questão: o profissional da Saúde também realiza

algum tipo de filantropia com sua ação? E se o faz com seu saber e instrumentais técnicos, portanto, ele

pressupõe poder resolver o problema da existência humana e suas crises através desta intervenção de

ajuda? Terapeuta e paciente desfrutam de um amor transcendental possível pela existência da ajuda no

cerne dos serviços de Saúde?

O profissional de saúde julga que sua ação é essencialmente profissional. Entende que seu saber,

construído pela formação teórico-prática lhe serve para ser um técnico e exercer plenamente sua função

como tal. Ao perceber que sua ação não irá, então, se compor como filantropia, pelo menos não a denomina

desta forma, mas que até poderia ser confundida como algo de sua especialidade acadêmica e científica

pela forma como o social o concebe, precisa questionar assim as suas próprias lacunas, saberes e técnicas

para então fazer sua clínica social. O profissional vai valorizar seus paradigmas, no que tange a ação da

Saúde e do Cuidado, e não simploriamente fazer um trabalho assistencial ou mesmo �caridade�. Aquilo que

move os profissionais de Saúde na busca pelo bem-estar ou da relação de ajuda, no caso dos terapeutas,

não pode ser restrita ao que seria identificado como filantropia, uma vez que toda sua intervenção e atuação

clínica são consolidadas por posturas éticas, científicas e técnicas, de uma conjuntura de se fazer ser um

profissional, que não existem só pelo sentimento de amor que eles podem trazer consigo intimamente.

Porém, para que exista efetivamente uma relação entre terapeuta e paciente é indispensável priorizar uma

dimensão afetiva entre as partes: - o amor que os une define o tom do caminho que irão seguir juntos. Este

Amor merecerá ser o elemento transformador, porém não é o único estandarte que deverão levantar, dado

que objetivamente os resultados da intervenção deverão ser palpáveis à superação do cliente e suas

demandas existenciais.

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Por parte do terapeuta o amor é uma preocupação ativa pela vida e precisa do crescimento daquilo

que ama FROMM (1960, p.49), no caso o paciente, pois quer oferecer recursos para o bem-estar e

instrumentalizar possibilidades efetivas de mudanças para o ajudado. O terapeuta age no sentido de que

sua ação alcance um processo de superação por parte do cliente. A clínica social é produzida, nesta

perspectiva, para oferecer instrumentos de inserção social. O cliente beneficiado na relação precisa ir

conquistar na sua vida, para fora do tratamento, do setting protegido, as suas maiores significações,

conquistas, (re)construções; desta forma, a relação suscita alicerce e motivação para tanto. Os

aprendizados, por parte do paciente, serão levados a novos contextos e a superação de suas crises e

perdas o que possivelmente será traduzida na cidadania como a saúde: meta e caminho.

Enfim, o altruísmo na relação é oferecer ao sujeito a liberdade de ir ao encontro de suas buscas e

formas de amar. A relação terapêutica, por ser uma das relações humanas, é permeada por vários

sentimentos, dentre eles o amor. O amor transforma uma mera obrigação profissional numa virtude ética.

O amor pode ser entendido de forma particular, intuitiva como uma disponibilidade interna do profissional na

relação de ajuda, e que é aprendido desde a infância com a família e com o círculo de amizades do

indivíduo. São as habilidades desenvolvidas para estabelecer as relações significativas em sua vida. Mas

para que a relação de ajuda seja profissional e terapêutica, é necessária a formalização destas habilidades

(tanto as já adquiridas quanto as que estão em desenvolvimento) através de estudos, discussões e da

prática clínica.

Ambivalências dos encontros terapêuticos

A relação de ajuda, intrinsecamente interessada em gerar recursos à libertação do sujeito, depara-

se com um impasse na dimensão de apego por parte do cliente.

�A ternura de uma escuta é permitir que o outro tenha a possibilidade não só de se exprimir, mas também de

se escutar� SALOMÉ (1994, p.37)

�Quando lhe peço para me escutar e você se apodera do que digo para tentar resolver o que julga ser meu

problema, por mais estranho que isto possa parecer sinto ainda mais perdido� SALOMÉ (1994, p.42)

�A ternura é a escuta da diferença � SALOMÉ (1994, p.68)

�A ternura é, simultaneamente, dom e acolhimento � SALOMÉ (1994, p.82)

�É preciso ser duro, sem esquecer a ternura jamais� Che Guevara

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Sensações no terapeuta a partir do encontro com os pacientes (sem elaboração, apenas empiria) �Terapeuta Ocupacional

Tem um propósito além do Normal

Doa amor, Que sensacional!

Afugenta o Mal Suas relíquias são pacientes

Dementes, frustrados, marginais que como boas sementes, contentes, plantados

não sofrem mais� R., em 05/07/2003

Z. � linguagem não-verbal, toque, carícia, sorriso, estar de frente um ao outro, ir junto, fazer com... B. � sorriso, reatividade a minha presença, fisionomia de satisfação, motivação... Y. � motivação, aprendizado, disposição, interesse e estado de alerta E. � uma possibilidade, fazer a diferença na vida de alguém, sentidos para continuar lutando D. C.: processo de morrer, cuidados de bem-estar e familiaridade diante do terapeuta D. O. � superação de limites intrínsecos e extrínsecos, incorporação de novos valores bio-

psicossocias, tolerância, escuta pela paciência R. � olhar de amargura, dor manifesta no corpo, movimento de repulsa a presença de terapeuta, choro C. � uma vida além da queixa, caminhos a buscar quando não há vontade, e se o morrer se torna o

caminho mais atraente, quando o amor da relação é o único sentimento que ocupe o cotidiano de um paciente.

O. � reconstrução do valor de ser humano, da historicidade de vida, do lócus social e do alcance para a ressignificação na família

M. d. C. � existe uma pessoa por trás da cronificação de um assujeitamento? Singularidade, capacidades remanescentes, um movimento em prol da renovação de uma existência

M. � acompanhamento, circulação na polis, ir e buscar, desejar, poder reaprender a fazer, construir um repertório além do tédio e do ócio, encontrar demandas, ir contra o embotamento afetivo, o sinal para limpar a boca

A. � violência, ira, invasão, crise, dor, amargura, grito, pedido de ajuda, socorro, toque, abraço, criança versus o monstro

N. � o terapeuta como fonte de violência e de sofrimento por vislumbra algo melhor a frente, os erros da limitação do próprio terapeuta frente à dimensão singular de seu cliente

S. aproxima do relato sobre a R., mas o focus do amor na relação terapêutica deve ser melhor diferenciado

A., menina que conversou comigo a primeira vez no CGP, depois a J. Os pacientes do Hospital São Paulo, o pós TCE ou AVC, o desequilíbrio, a inadequação frente ao

social A questão da memória do idoso e o descompasso com O. L. e sua implicância para chamar minha atenção no grupo D. e seus �abracinhos� O terapeuta diante do sujeito estranho, daquele que assusta mas apesar de repulsa é preciso atendê-

lo, as estereotipias do L., como não pude relacioná-las anteriormente ao autismo fazer comparação com o Y., quando a limitação está no próprio olhar do terapeuta

Quando há uma violência doméstica, abuso em casa, o idoso que não recebe seu benefício, a criança que é espancada, como no caso de J.

O processo da alta I., B., M. E.: desdobramentos da relação terapeuta-paciente para a vida e o retorno ao social

A gratidão dos familiares: I. A eficácia da intervenção terapêutica : N.

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Sobre a ética do encontro terapêutico �A dimensão ética começa quando entra em cena o outro (...). Não conseguimos compreender quem somos

sem o olhar e a resposta do outro� Umberto Eco

�Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa

companhia; quando vedes um dos vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis empatia por ele�

Jean-Paul Sartre, em Erostrato.

Sobre a Terapia Ocupacional �Método do FAZER LIVRE e CRIATIVO, que propicia ao homem

reencontrar e exercer sua capacidade de reflexão e crítica, buscando mudanças em seu posicionamento

diante da vida e, conseqüentemente, devolve a saúde ao homem� ARAÚJO (1995, p.15). �O terapeuta

ocupacional que dirige a construção do objeto, distancia-se de sua função e do que lhe é específico:

estimula, no paciente, a agressividade para se colocar ativamente no mundo, oferecendo-lhe a oportunidade

de criar com liberdade, propiciando assim, a concreção de sua história e a descoberta de novas

perspectivas e nova compreensão para as suas ações futuras� ARAÚJO (1995, p.26)

Direção clínica do encontro terapêutico: opinião é dóxa, paralelo com a vivência terapêutica e conhecimento é epistéme, paralelo com a relação terapeuta-paciente

Conceito chamoniano de Terapia Ocupacional: atividade é mediadora da relação entre terapeuta

ocupacional e seu cliente, dentro de uma dinâmica de ocupações livres e criativas, possui caráter formativo

e expressivo dos conhecimentos que o paciente alcança a partir de sua apropriação na relação terapêutica e

no processo de saúde-doença em transformação, de acordo com JORGE (1990).

A locução terapêutica entre o terapeuta e o paciente se dá numa constante inter-ação, sendo que

todo o processo contínuo do fazer e do vir-a-ser se formula tendo em suas subjetividades a

substancialidade do encontro terapêutico. Sobre o conceito de intersubjetividade, inerente ao objeto de

estudo neste trabalho monográfico, faz-se interessante considerar a seguinte enunciação: �Agora, enfim,

compreendo o que quer dizer a enigmática proposição de Husserl: �A subjetividade transcendental é

intersubjetividade�. Na medida em que aquilo que digo tem sentido enquanto falo, sou para mim mesmo um

outro �outro� e, na medida em que compreendo, já não sei mais quem fala e quem escuta... Ora, é no

coração de meu presente que encontro o sentido daqueles que o procederam, que encontro com que

compreender a presença de outrem ao mesmo mundo, e é no próximo exercício da palavra que aprendo a

compreender� MERLEAU-PONTY (1984, p.140).

Sobre o ser paciente: construto de si na (com)vivência terapêutica

�Muitas vezes relembro aquele dia

Em que fui despertada a vez primeira

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Do meu sono profundo. Sob as folhas

E as flores, muitas vezes meditei:

Quem eu era? Aonde ia? De onde vinha?�

Eva, ao ver-se refletida na fonte. Poema de Milton, sobre os primórdios da criação

Sobre a dinâmica da transferência: o amor no vínculo �Como haveria de querer a vida?

O próprio sofrimento menos duro

Era ao seu lado. O que era insuportável

Junto dele eu teria tolerado�

Antígona lamenta-se pela morte de seu pai, Édipo. Sófoles

�Em sua frente se ergue o velho templo

De longa, e de natura a voz potente

Parece lhe dizer: �Muito fizeste,

Frágil filho da argila! Teu humilde

Poder, este impotente santuário

Ao levantar, foi grande� (...)�

Senhor das Ilhas, Scott

Sobre a dimensão do humano no encontro terapêutico: processo do vir-a-ser

�O sentido é, pois, uma noção complexa: sempre há uma pluralidade de sentidos, uma constelação, um

conjunto de sucessões, mas também de coexistências, que faz da interpretação uma arte� Gilles Deleuze

A dialética na relação entre terapeuta e paciente: �O pensamento dialético está, aqui, à procura de

uma essência, de algo uno, universal, que se manifeste através das particularidades. Não se satisfaz com

uma definição enumerativa, particularizante� MARTINS (2002, p.26).

�Escavação no outro em direção do outro

em que o mesmo procura o seu veio

e o ouro verdadeiro do seu fenômeno� Jacques Derridá

MARTINS (2002, p.84) �A intencionalidade significa que o Sujeito não está voltado para si próprio,

fechado em si. Estamos voltados para fora, visamos o mundo dos objetos, visamos o outro. Do ponto de

vista da dialética, toda relação envolve uma modificação. Por isso, a intencionalidade é transfiguradora,

Sujeito e Objeto, Eu e Outro são transfigurados enquanto visam ou são visados�

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O papel do terapeuta no contexto da Reabilitação e a construção da Clínica JORGE (1998, p.23)

�(...) cabe aos profissionais de reabilitação reabilitar antes que o corpo, o desejo de combater em prol de si

mesmo de cada estigmatizado�

JORGE (1998, p.24) �O mundo não nos é dado, mas, sim, percebido por nós com significação. Isto

implica em que tereis de trabalhar antes com significantes que com deformidades. Se mudardes esta ordem,

caireis em risco de deformar vossa percepção de vida, e portanto, a que o paciente tem, ou possa vir a ter,

de si mesmo� p.24 �Sois terapeutas ocupacionais e usareis como instrumentos de comunicação, prevenção,

cura, avaliação e reabilitação as mãos e a capacidade, exclusivamente humana, de transformar a face da

Terra para assim transformar a face interna de cada homem transformado�

�Reabilitar e/ou ser reabilitado só é possível quando, não só enxergamos, mas antes de tudo,

suportamos a diferença do outro. Ao contrário disso, seríamos condizentes com aquilo que determina um

indivíduo como normal. Estaríamos estigmatizando as diferenças, não alcançaríamos nunca a possibilidade

de reabilitar� MOREIRA (1998, p.92)

MARTINS (2000, p.60) considera, a partir da concepção de Erving Goffman em �La Presentáciona

de la Persona em la Vida Cotidiana�, que �(...) os significados que mediatizam os relacionamentos entre as

pessoas estão sujeitos a um complexo mecanismo de deciframento. (...) a interação só é possível por meio

de procedimentos interpretativos que fazem da relação social uma construção. (...) Não há apenas

negociação e interpretação de significados, mas também critérios para seu uso�.

MARTINS (2000, p.11) �Para todos nós sempre foi muito difícil compreender as ciladas da travessia,

os desafios e a riqueza da nossa inautenticidade, do nosso hibridismo, da nossa lentidão e do nosso vir-a-

ser que não se cumpre senão de modo sempre incompleto e sempre insuficiente. Temos medo de ser o que

somos ou que temos de ser�.

�Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim�

Fernando Pessoa, em Obra Poética

A transição do estudante para o exercício de sua ação profissional é marcada por um conjunto de

angústias que se referem, de acordo com MARTINS (1997), às dúvidas do estudante quanto a compreender

os sentimentos do paciente; como ser receptivo; lidar com os seus próprios sentimentos diante o ajudado;

preocupações quanto à possibilidade de causar ao paciente sentimentos penosos, o choro, a depressão;

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medo de ser invadido pelos problemas ali avaliados e ainda teme invadir a privacidade do paciente. No

entanto, tal conjunto irá se somar para a condução mais satisfatória da relação entre terapeuta e paciente a

medida que se interessar pela elaboração de uma aliança terapêutica, como forma de processamento de um

vínculo e proximidade entre estes dois sujeitos, que por sua vez estarão se articulando numa dinâmica

constante de interlocuções, aprendizados e vivências compartilhadas. BALINT (1988) apud MARTINS

(1997) �deu ênfase à �aliança terapêutica� que deve existir no vínculo profissional-paciente, como propulsora

de um bom atendimento. Conforme o autor, a técnica por mais aprimorada que seja, tenderá a ser ou inócua

ou alienante, se não for veiculada por uma boa relação profissional-paciente�. Finalmente, ainda sobre o

estabelecimento do vínculo, temos em JEAMMET et al. (1989) apud MARTINS (1997) a conclusão de que �a

relação profissional-paciente é uma relação de expectativas e esperanças mútuas; o doente espera alívio e,

se possível, cura; o terapeuta espera reconhecimento de seu paciente, verificação de seu poder de

reparação ou da adequação de seus pontos de vista. A expectativa pode ser de tal ordem, em cada um, que

há risco de as relações de troca serem transformadas em relações de força�.

Desfechos possíveis

�Raskólnikov, sentado na outra extremidade, estava completamente vestido, tendo-se como dado ao

trabalho de lavar a cara e de se pentear, operações que não praticava havia muito tempo (...) o médico teve

a impressão de que cada palavra reabria uma ferida na alma do seu cliente; mas, ao mesmo tempo,

surpreendia-se ao vê-lo relativamente senhor de si� Fiódor Dostoiéviski, em Crime e Castigo

Em Terapia Ocupacional os recursos para a intervenção clínica são caracterizados por atividades,

que de alguma forma são demandas para o cliente com uma ênfase de reaprendizagem ou habilitação, em

que deverão ser valorizados os recursos intrínsecos da pessoa em se reconstruir; sendo assim, é a

terapêutica ocupacional um espaço sistematizado, protegido, legítimo do sujeito em se fazer ouvir naquilo

que poderá fazer ou faz, para demonstrar seus limites e ir a partir disto se identificar com uma possibilidade

de ascensão, construção, apropriação de processos de mudança que diretamente se articulem com o seu

cotidiano de vida. Este processo qualifica-se como um autodescobrimento do cliente e irá se articular com

aquilo ele e o terapeuta traçaram como um projeto terapêutico, norte de toda a prática em condução.

Incentivar ações sempre independentes, tendentes à autonomia do cliente, que exortem o senso de

competência da pessoa em recuperação e favoreçam um espaço para a (re)modelação da auto-estima e

dos sentidos para o viver bem, encontram em Terapia Ocupacional um coadjuvante indispensável quando a

clínica é pró-cotidiano e se faz sobre a óptica dos contextos relevantes para o viver específico de cada

paciente.

A aproximação entre terapeuta e paciente propicia a construção da relação de ajuda, na qual os

papéis de um e de outro irão se interferir mutuamente e contribuirão para o aprendizado, sempre único, do

cuidar entre eles. Numa ocasião específica, quando eu fazia atendimentos de acompanhamento terapêutico

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em domicílio a uma idosa, de 86 anos, pude perceber a dimensão que se dá a partir da entrada de um

terapeuta na vida de um cliente, bem como o quanto isto poderá representar efetivamente aproximação e

cuidado tão significantes à relação de ajuda. Esta idosa, C., encontrava-se agudamente deprimida,

portadora de graves seqüelas por complicações diabéticas, como a perda da visão (cegueira) desde os seus

últimos 07 anos e a perda da capacidade de deambulação (fazia uso da cadeira de rodas). Sua família,

bastante cooperativa e esclarecida sobre as necessidades daquela senhora, demandava o

acompanhamento terapêutico como uma forma de promover bem-estar cotidiano e favorecer um estado

mais ativo de enfrentamento da depressão, que representava agravo profundo como fator de morbidade. C.

Fazia hemodiálise todos os dias, havia um quarto separado na casa totalmente adaptado para a realização

diária do procedimento no próprio domicílio. Seu marido havia falecido há quase 10 anos e, a partir de

então, C. que sempre morou com ele na fazenda da família, no interior do estado, teve que se mudar para a

casa de uma das filhas em Belo Horizonte. Daí sua trajetória de vida marcou-se por perdas que foram se

tornando cada vez mais limitantes: deprimiu, deixou de caminhar voluntariamente, tornou-se cega, entregou-

se à inatividade por completo. Tudo o que qualificava a vida anterior repleta de afetos, flores, culinária,

sonhos, dias de alegria no aconchego daquela vida no campo, ao lado do amado, foi gradativamente

construindo aquela forma de viver, entregue e adoecida, onde somente o isolamento de si parecia ocupar o

dia-a-dia deste tempo presente. Tamanho o abandono de si mesma e de sua causalidade em agir, inter-agir,

quando C. já não mais visualizava sentidos para sair do leito, o que já se dava há uma longa permanência, e

continuar a viver o novo, e não �o triste resto da sua vida� como ela sempre me dizia. A família, neste

momento, fazia uma série de tentativas, que incluíam acompanhamentos com o clínico geral, o psiquiatra, o

fisioterapeuta, o padre, e o mais recente, o terapeuta ocupacional. Minha entrada naquele contexto foi

inicialmente se dando por visitas semanais, buscando uma ponte de aproximação que fosse adequada,

dado que apesar das deficiências já descritas C. encontrava-se absolutamente lúcida e não se interessava

por uma ajuda, apenas preferir ficar �sozinha, deitada na cama�. Lentamente aquelas visitas foram se

tornando encontros marcados e para nos vermos era preciso um compromisso: ora era a preparação para

as consultas com outros profissionais também envolvidos, ora algum momento familiar que criávamos

juntos, eu, C. e sua filha. A minha ação foi assumindo uma conotação de aporte, sendo que para C. isto se

dava como um espaço destinado ao prepara-se, ao se fazer ante o fazer que viria-a-ser. Era preciso eu

estar para que algo fosse motivante, para que as situações que seriam vividas por ele fossem percebidas

como significantes, relevantes à sua participação, ao seu envolvimento. Inúmeras foram as ocasiões em que

C. desistia dos nossos planos, questionava-me os sentidos pelo qual havia concordado comigo de �ter que

fazer isso ou aquilo�; imediatamente eu remetia às sensações de bem-estar e alegria que ela se remetia

quando vivenciávamos algum delicioso lanche com os netos, da melhor forma de se apresentar aos

visitantes na sala de estar, de recebê-los sentada juntamente à mesa. A nossa ligação foi se fortalecendo

quando pudemos durante quatro meses construir um pequeno jardim, na varanda, lugar que para nós

representava a possibilidade de contemplação do silêncio, dos olhares entre nós, das reminiscências sobre

o passado para ela tão vivaz ainda e para a percepção do ciclo natural da vida: como as flores que

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regávamos juntos, tudo se assemelhava ao plantar, ao cultivar, ao podar quando necessário, ao ver crescer,

ao se renovar com outras sementes, ao deixar de viver, ao renascer agora tão vivos naquele singelo jardim

de C. O nosso sentimento afetivo foi se expandindo, ela compreendia o sentido ter ao seu lado um tal

�terapeuta� como eu, agradecia-me o fato de que �muitas vezes esquecemos o quanto é maravilhoso existir,

mas que há alguém perto de nós para nos lembrar�, seria eu esta pessoa na vida de C. naquele momento.

Porém, apesar de muitas vezes vivenciarmos a realização de sair da cama e ir viver ao redor no lar, com os

seus entes queridos e com um renovado gosto que ela dizia apreciar, havia uma história que precisava

desfechar. Nosso encontro foi interrompido quando C. veio a falecer. Teve um processo de falência cardíaca

e morreu enquanto dormia, sem demais sofrimentos. Percebi o quão importante para C. era ser útil

agradando aos outros, por isto emanava dor naquilo que para ela seria �ser um problema� aos que amava,

porém havia muitas oportunidades para ela levar carinho aos que estavam ao seu redor e isto representou,

para nossa relação de ajuda, uma possibilidade efetiva de se preparar e viver melhor naqueles últimos

meses com sua família.

Outro aprendizado que percebo ser passível à experiência de ser terapeuta foi ao lado de outra

paciente, em uma nova experiência de morrer. E. era uma criança de 11 anos, portadora de lúpus

eritomatoso, em estado avançado da limitação da doença. Encontrava-se internada num hospital público

com dificuldades para respirar, já sem a capacidade para falar fluentemente dado a extensão das lesões

(contraturas) na musculatura facial (e o rosto já todo endurecido). A equipe solicitou a abordagem da

Terapia Ocupacional para com aquela criança, pois ela não respondia satisfatoriamente às outras

abordagens, apresentava-se com graves sintomas de depressão, seria interessante oferecê-lhe uma

possibilidade de cuidado que resgatasse o lúdico ou mesmo amenizasse aquele sofrimento neste momento

de internação. A Terapia Ocupacional classicamente interessou-se por auxiliar à pessoa em circunstâncias

de que repercutam em interrupção, perda, limitação, dificuldades enfim para se viver bem o cotidiano de

uma vida. E. encontrava-se especialmente neste tipo de situação, sobretudo por que aquele momento

representava um risco eminente à sua própria vida. Numa internação de 15 dias, pudemos estar juntos

numa tentativa de encontrar possibilidades, sentidos que pudessem fazer diferença para aquele atual estado

de vida, que a nossa relação representasse ali uma diferença e gerasse sentidos para uma luta em prol do

viver, buscando superar os agravos. Convidava E. para irmos à sala de atendimentos, antes ela se

preparava trocando de roupa no leito, arrumando-se em frente ao espelho, transferindo-se da cama para a

cadeira de rodas. No setting, entre livros inúmeros que líamos juntos, entre os desenhos que eu trazia para

ela apreciar avidamente, fomos construindo nossos códigos de linguagem sim-e-não. Fui conhecendo E., fui

percebendo seus movimentos existências, suas formas de expressar sentimentos como o medo, a angústia,

o cansaço, a surpresa, a alegria, o ânimo... O nosso encontro marcou-se como preparação de um sujeito,

que no caso E. encontrava por isto um espaço para estar mais tranqüila e amenizar tantos conflitos que

marcavam sua trajetória existencial. Até que um dia, depois que nos preparamos para sair e ir até a sala de

atendimentos, E. veio a falecer enquanto eu voltava para irmos juntos por mais um dia de atendimento.

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Lembro-me especialmente das nuances no seu olhar, como apesar do sofrimento havia significação quando

fazíamos algo que ia ao encontro de seus desejos. Isto representou um sucesso terapêutico, não somente

para nós, como para a equipe e também para sua família, que reconheceram como válida, digna e

humanizadora aquela experiência anterior à sua morte.

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