luiza_alvim_godard e o eterno retorno da música da morte
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7/23/2019 LUIZA_ALVIM_Godard e o Eterno Retorno Da Msica Da Morte
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Godard e o eterno retorno da msica da morte1
Godard and the eternal return of the music of death
Luza Alvim2(Doutora em Comunicao e Cultura !"#$
"esumo%
Analisamos o uso repetido de peas preexistentes de Mozart e Beethoven e seus significadosassociados ideia da morte em filmes distintos de Jean-Luc Godard: o Concerto para clarinetaK622 de Mozart em Acossado !"#$% e Masculino-Feminino !"##%& e a Sonata para piano
op.14 n.1de Beethoven em O demnio das onze horas!"#'% e Made in SA!"##%( )omo noeterno retorno de *ietzsche e segundo o conceito de repeti+o de ,eleuze& s+o retornos uetrazem o Mesmo sempre .utro(
&alavras'chave%
)inema& m/sica& Godard& Mozart& Beethoven(
Astract%
0e anal1ze the recurrent use of preexistent pieces 21 Mozart and Beethoven and theirmeanings associated to the idea of death in different films of Jean-Luc Godard: the Concerto !orclarinet K622 21 Mozart in "reathless!"#$% and Masculine Feminine!"##%& and the #ianoSonata op.14 n.1 21 Beethoven in #ierrot le !ou!"#'% and Made in 34A !"##%( As in theeternal return 21 *ietzsche and follo5ing the concept of repetition 21 ,eleuze& those are returnsthat 2ring the 4ame al5a1s .ther(
)e*+ords%
)inema& music& Godard& Mozart& Beethoven(
6m v7rios de seus filmes& o cineasta Jean-Luc Godard fez uso de m/sica do repert8rio
cl7ssico pr9-existente na trilha musical( ara )laudia Gor2man ;$$7 conhecida e >7 pronta
1?ra2alho apresentado no @ 6ncontro 4ocine de 6studos de )inema e Audiovisual na sess+o ! do4emin7rio ?em7tico $eorias e %st&ticas do Som no Audio'isual(
2rofessora su2stituta da 3niversidade Cederal do Dio de Janeiro 3CDJ%( . tra2alho vem da pesuisade 8s-,outorado em M/sica na 3niversidade Cederal do 6stado do Dio de Janeiro 3*D.% em ;$!E-;$!F(
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proporcionava ao diretor um maior controle so2re o elemento musical( avia tam29m um fator
de ordem pr7tica& pois o uso de gravaHes existentes levava ao 2arateamento do filme e&
muitas vezes& Godard nem indicava a grava+o utilizada para n+o pagar os direitos autorais(
.utro fator& segundo orcile GAD6LI .D)L6& !"";%& seria uma mostra de erudi+o
por parte do diretor( )om efeito& nos filmes de Godard& h7 um intrincado sistema de citaHes
liter7rias& pict8ricas e musicais& num procedimento de colagem( ortanto& tais trechos musicais
pr9-existentes funcionam como uma referncia a algo presente no mundo e& portanto& cit7vel(
*uma entrevista& Godard afirmou: KA m/sica& para mim& 9 um elemento vivo& da mesma
maneira ue uma rua ou autom8veis( algo ue descrevo& algo pr9-existente ao filme em
entrevista de !"#'I B6DGALA& !"N'& p(;N$%(
Mais ainda& o retorno do mesmo trecho de um filme a outro evoca uma rede intertextual
de significados& como a associa+o morte ue assumem o Concerto para clarineta K622 de
Mozart e a Sonata para piano op. 14 n.1de Beethoven nos filmes de Godard(
Godard, msica e re-etio
. procedimento da colagem& foi caracter=stico das vanguardas do Modernismo& como&
por exemplo& na pintura cu2ista( *os filmes de Godard& Mozart e Beethoven s+o Kincorporados
pelo filme& tal como o pedao de >ornal numa pintura de icasso(
Al9m disso& mais do ue um amontoado de citaHes num determinado longa-
metragem& os filmes de Godard se citam uns aos outros& com o retorno de frases e nomes de
personagens( 4errut ;$!!% o2serva ue Godard lana m+o da t9cnica de &chantillona(e
sonora s9rie e prepara+o de amostras% uando ele retoma& num determinado filme& a r9plica
de um personagem de outro( ?al procedimento ocorre tam29m pelo constante retorno das
mesmas incursHes musicais em diferentes filmes(
.2servamos ue Godard parece ter uma verdadeira o2sess+o por determinadas o2ras
de Mozart e Beethoven( A pr8pria imagem de Beethoven 9 uma figura recorrente& se>a como
imagem literalmente O no arm7rio do uarto de hotel de Made in SA!"##%& h7 uma 2lusa
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com o retrato estampado de Beethoven& filme em ue h7 tam29m um certo doutor Lud5ig(
tam29m uma referncia na fala de um personagem: uando o protagonista Cerdinand se refere
aos Ktrs golpes da )uinta Sin!oniade Beethoven e os ouvimos logo a seguir%& em O demnio
das onze horas #ierrot le !ou& !"#'%( .u se>a& nesses longas-metragens& em ue peas pr9-
existentes de Beethoven s+o utilizadas& a imagem do compositor tam29m ronda o filme(
Miriam 4heer ;$$!% relata ue& em !"'"& ric Dohmer descrevia Godard na 9poca&
colega nos Cahiers du Cin&ma% como algu9m ue ouvia intensamente e repetidamente os
mesmos compassos de um uarteto de Beethoven e ele foi assim retratado por Dohmer na
festa do in=cio de seu filme O si(no do le*o& de !"'"%( )onforme 2em o2servou 4heer ;$$!%&
tal descri+o tam29m revela o modo recorrente como Godard cita os trechos de m/sica em
seus filmes(
Assim& os primeiros compassos do Concerto para clarineta K622 de Mozart foram
utilizados em Acossado A +out de sou!!le& !"#$% e retornaram& alguns anos depois& em
Masculino-Feminino Masculin F&minin& !"##%( A coda do primeiro movimento da Sonata para
pianoop.14, n.1 de Beethoven& ue pontua diversos momentos do filme Made in SA!"##%&
>7 estava no final de O demnio das onze horas !"#'%(
?ais trechos ue voltam continuamente& se>a dentro de um mesmo filme como em
Made in SA%& se>a reutilizados em filmes posteriores& fazem-nos pensar nos conceitos de
Kdiferena e repeti+o e Kritornelo& de Gilles ,eleuze& assim como o Keterno retorno& de
Criedrich *ietzsche(
ara ,eleuze !"#N%& repetir n+o 9 simplesmente adicionar uma segunda vez& mas sim&
elevar a primeira en9sima potncia: o princ=pio da repeti+o n+o 9 o do Mesmo& mas o do
.utro& ue compreende a diferena( ?am29m a no+o de Kritornelo de ,eleuze e Guattari
!""
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Acossado 9 a hist8ria do ladr+o Michel Jean-aul Belmondo%& ue vai a aris
encontrar a namorada americana& atricia Jean 4e2erg%( ,iferentemente do modo um tanto
grosseiro de Michel& atricia 9 o prot8tipo de estudantes estrangeiras cultas em aris( 6m seu
uarto de hotel& encontramos uma s9rie de citaHes da alta cultura do pr8prio Godard:
reproduHes de icasso e de Denoir& um disco de Bach e outro de )hopin& ue ela coloca para
tocar(
tam29m ela ue& no final do filme& coloca& na vitrola& o concerto para clarineta de
Mozart( J7 acostumada com os gostos musicais de Michel por canHes& ela lhe pergunta se a
m/sica o incomoda( 6le lhe responde ue n+o& pois o pai havia sido clarinetista em2ora& neste
momento do filme& ouamos apenas a introdu+o oruestral do Alle(ro, com a clarineta solo
tocando em meio oruestra, do2rando a melodia dos primeiros violinos%( & portanto& uma
raz+o 2astante pessoal ue move a simpatia de Michel pela pea(
*o entanto& mais do ue marcar as oposiHes entre atricia e Michel correspondentes
alta e 2aixa cultura& este concerto de Mozart est7 no filme como uma referncia morte(
Godard disse ue o incluiu nesta seuncia pr8xima ao fim do filme e morte de Michel& pois
acreditava& erroneamente& ser esta a /ltima o2ra de Mozart em entrevista a Ba21& !"#$E%(
Mais ainda& em texto de !"#'& Godard mencionava o Ksom mortal da clarineta em
Mozart G.,AD,& !"#'%( )om efeito& na manh+ seguinte& enuanto atricia o denuncia
pol=cia e& pouco antes de sua morte& Michel& adormecido so2re a mesa& ouve o solo de clarineta
do terceiro movimento& o ond(
6m Masculino !eminino !"##%& este concerto para clarineta de Mozart 9 retomado&
apesar de estar em circunstPncias menos tr7gicas do ue em Acossado( ,e ualuer modo& 9
um filme em ue ocorre a morte do protagonista aul Jean-ierre L9aud% no final em2ora ela
n+o se>a mostrada& mas sim relatada pol=cia pelas personagens )atherine e Madeleine%(
A primeira incurs+o musical do concerto acontece no meio do filme& logo depois ue
aul diz ao amigo Do2ert estar triste por causa da dificuldade em se relacionar com Madeleine(
*uma >ogo de palavras de cunho sexual& reparam ue& na palavra masculin& h7 Kcul e& em
3A /ltima pea de Mozart 9& na verdade& o e/uiem.
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!&minin& n+o h7 nada( A=& ouvimos os oito primeiros compassos doAlle(roa apresenta+o do
tema principal& >7 ouvido em Acossado%& de forma extradieg9tica& so2re o plano do rosto
decepcionado e paralisado de aul( A amargura tam29m est7 no sentido dos intert=tulos ue
aparecem a seguir& uma cita+o da pea #our 0ucrce& de Jean Giraudoux: K0a puret& nest
pas de ce monde. 3 mais . $ous les di5 ans, il a sa lueur, son &clair7 KA pureza n+o pertence
a este mundo( < mas N( A cada dez anos& h7 sua luz& seu 2rilho%(
. di7logo ue antecede a m/sica 9 uma referncia ao sexo& o ue pode& por si s8&
com2inar com o Ksom mortal deste concerto de Mozart& no entendimento de Godard
lem2remos ue orgasmo& em francs& 9 la petite mort%( or9m& aul e Do2ert est+o errados:
no final do filme& Godard nos mostra ue& em !&minin& retirando-se a parte do meio da palavra&
ficamos com o termo K!in& numa referncia mulher como o fim e& no /ltimo plano do filme&
vemos Madeleine na pol=cia depondo so2re a morte de aul%(
or outro lado& a pea #our 0ucrce foi a /ltima escrita por Giraudoux tal como
pensava Godard em rela+o ao concerto de Mozart%& tendo sido montada somente em !"'E&
uase !$ anos ap8s a morte do autor( A Lucr9cia do t=tulo 9 uma referncia lend7ria
personagem da Antiguidade )l7ssica& mulher romana citada como exemplo de pureza e ue se
mata ap8s ter sido violada por um general etrusco(
. concerto de Mozart 9 ouvido tam29m de forma dieg9tica& mas a= 9 o seu Ada(ioo
segundo movimento% ue aul coloca na vitrola( )omo verdadeiro melQmano& aul descreve a
m/sica 8a 'a 'enir& Kvai chegar& referindo-se ao solo da clarineta% para a amiga de Madeleine&
)atherine& e ualifica a oruestra !antasti/ue%( Mas o sentimento geral de aul 9 de a2andono
por Madeleine e ci/mes dela(
Apesar de n+o deixar de fazer referncia ao Michel deAcossado por conta da presena
do solo da clarineta& diferentemente dele& se aui h7 alguma oposi+o entre alta e 2aixa
cultura& aul est7 mais pr8ximo primeira( )om efeito& Madeleine& 9& tal ual sua int9rprete
)hantal Go1a& uma >ovem cantora &-&4e suas canHes est+o 2em presentes no filme(
4 . &-&foi um gnero de can+o surgido na Crana nos anos #$& semelhante ao i9-i9-i9da JovenGuarda 2rasileira& muitas vezes& com cantoras adolescentes( As canHes eram veiculadas no r7dio enuma revista editada por ,aniel Cilipacchi& ue era tam29m editor dos Cahiers du Cin&ma(
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Madeleine reclama& antes de aul colocar o disco& ue eles v+o ouvir de novo une
musi/ue +ar+areO K27r2ara& no sentido de estrangeira ao seu gnero musical - & em2ora& ao
final do filme& diga& numa entrevista& gostar de Jean-4e2astian Bach e ue ele n+o 9
incompat=vel com sua pr8pria m/sica(
/orte e 0eethoven em O demnio das onze horas e em Made in USA
A referncia morte em momentos de m/sica tam29m est7 presente em O demnio
das onze horas !"#'%( ,urante a fuga dos dois protagonistas para o sul da Crana& Cerdinand
Jean-aul Belmondo% diz ue comea Ka sentir o cheiro de morte( A seguir& liga o r7dio e
ouvimos o concerto 0a tempesta di mare& de ivaldi& enuanto& ironicamente& o carro cai no
mar(
Mas a morte dos dois protagonistas s8 se d7 no final& uando& ap8s a troca de tiros ue
mata Marianne Anna Rarina%& Cerdinand se suicida e& nos cr9ditos finais& ouvimos pela
primeira e /nica vez no filme& a coda do primeiro movimento da Sonata para piano op.14 n.1de
Beethoven& marcada pela am2iguidade dos modos maior e menor o ue 9 reputado& na
an7lise de m/sica de filme e da m/sica em geral& produzir efeitos de alegria e tristeza&
respectivamente%& num filme em ue o cheiro de morte e a tortura se d+o numa Crana
ensolarada(
6ste mesmo trecho 9 retomado diversas vezes em Made in SA!"##%& filme ue >7
comea com uma agress+o O sem nenhum peso dram7tico& como se fosse algo corriueiro - e
ue tem& como protagonista& a mesma Anna Rarina(
4ua trilha musical 9 constru=da principalmente a partir de trechos de m/sica pr9-
existente extradieg9ticos& repetidos ao longo do filme( Al9m da coda da Sonata para piano
op.14 n.1de Beethoven& ouvimos: o in=cio da sonataI dois acordes do primeiro movimento da
)uinta sin!onia& do mesmo compositorI o in=cio do Scherzoda Sin!onia enanade 4chumann e
um /nico e grande trecho do 0ar(uettoda #rimeira Sin!oniade 4chumann(
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Detomando os conceitos de diferena e repeti+o de ,eleuze& todas as vezes ue
ouvimos a coda da sonata de Beethoven em Made in SA& ela& em2ora a mesma& 9 sempre
.utra& at9 porue 9 ouvida em momentos diferentes do filme& so2re outras imagens( ,e modo
semelhante& a associa+o Mozart O morte& presente em Acossado& volta numa forma diferente
em Masculino !eminino(
or outro lado& num filme t+o anti-narrativo como Made in 34A& a escuta de trechos
repetidos ao longo do filme nos situa& nos lem2ra de onde estamos& cumprindo a fun+o
territorializante do ritornelo& pois& para ,eleuze e Guattari& o ritornelo funciona como um marco
do territ8rio& da casa ,6L63S6I G3A??AD& !""ustaposi+o ,6L63S6& G3A??AD& !"";& p(;F'%(
?ais repetiHes sempre outras s+o& na verdade& m7scaras ue s8 co2rem outras
m7scaras& tal como define ,eleuze !"#N%( *ietzsche !"";% o2servou ue ,ion=sio& num
eterno retorno& voltava sempre como her8i da trag9dia grega& travestido em diferentes
personagens( como as frases de Mozart e Beethoven& m7scaras da morte em diferentes
filmes de Godard(
"eferncias
BABT& T( KMon film est un documentaire sur Jean 4e2erg et J(( Belmondo( 0e Monde& !N mars!"#$(
B6DGALA& A( :ean-0uc ;odard par :ean-0uc ;odard( aris: ditions de lUtoile& !"N'(
,6L63S6& G(
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G.DBMA*& )( Auteurmusic. n: G.L,MADR& ,(& RDAM6D& L(& L66D?& D .rg(%( "eondthe soundtrac>? representing music in cinema( Los Angeles: 3niversit1 of )alifornia ress&;$$