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1 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES LUGARES-COMUNS: a Fotografia como lugar de afetos Paula Cristina Luis Nobre MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA - FOTOGRAFIA 2013

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS ARTES

LUGARES-COMUNS:

a Fotografia como lugar de afetos

Paula Cristina Luis Nobre

MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA - FOTOGRAFIA

2013

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS ARTES

LUGARES-COMUNS:

a Fotografia como lugar de afetos

Paula Cristina Luis Nobre

MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA - FOTOGRAFIA

Dissertação orientada pela professora Maria João Gamito

2013

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RESUMO

Lugares-comuns - a Fotografia como lugar de afetos parte do pressuposto que o

sujeito articula livremente os signos que compõem as estruturas sociais

convencionadas, dos quais se apropria e manipula (como se de um semiólogo se

tratasse), em função das suas necessidades afetivas e cuja produção resulta na

existência de um lugar que dê sentido à sua noção da realidade. Constituída a casa

como refúgio e lugar da intimidade, define-se um retrato de família das «maneiras de

fazer» que o quotidiano se encarrega de construir pelas relações e ações que se

estabelecem, mediante os prazeres associados ao grupo familiar. As práticas

domésticas relacionadas com a culinária aplicam séries de gestos herdados, descritos e

adaptados, fugazes e rotineiros que capturados pelo dispositivo fotográfico revelam

valores sensitivos ao comummente visto. A fantasmagoria da imagem fotográfica é

traduzida pelo estímulo dos sentidos e de sensações que tornam o quotidiano uma

manifestação com novos temperos, saberes e sabores que suscitam a existência de um

lugar de afetos, consubstanciado na série Lugares-comuns - a Fotografia como lugar

de afetos constituída por oito fotografias a cores entre naturezas-mortas e retratos que

resultam num retrato de família.

Palavras-chave: quotidiano, casa, família, lugar, fotografia.

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ABSTRACT

Lugares-comuns (Commonplaces) - Photography as a place of affection assumes that

the subject freely articulates the signs that make up the social structures established,

which it appropriates and manipulates (as if it were a semiologist), according to its

emotional needs and whose production results in the existence of a place that gives

meaning to its grip on reality. Once the house is set up as a refuge and place of

intimacy, a family portrait of the “ways of doing” is shaped by everyday life which

builds the relationships and actions that are established by the pleasures associated

with the family group. The domestic practices related to cooking apply a series of

inherited gestures, described and adapted, fleeting and uneventful, which, when

captured by photographic device, reveal sensitive values to the commonly seen. The

phantasmagoria of the photographic image is translated by stimulating the senses and

sensations that turn everyday life into a manifestation of new spices, flavours and

knowledge that give rise to the existence of a place of affection, embodied in Lugares-

Comuns - Photography as a place of affection consisting of eight colour photographs

of still lives and portraits that result in a family portrait.

Keywords: everyday life, home, family, place, photography.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar a minha gratidão a toda a minha família, especialmente aos

meus queridos pais, Henrique e Maria do Carmo, que continuam a surpreender-me

todos os dias com as suas manifestações de afeto e constante dedicação às relações

familiares. Sem eles, este projeto não teria existência. Quero portanto dedicar-lhes este

trabalho assim como a todos os pais e famílias que dão significado às nossas vidas, e

prestar-lhes aqui a minha homenagem.

Às minhas amigas Margarida Correia e Margarida Carvalho que, apesar da distância

que nos separa, contribuíram para a minha motivação e se disponibilizaram a apoiar

este projeto. A todos os amigos e colegas de mestrado que se mantiveram ao meu lado

durante o processo de execução desta dissertação, designadamente a Conceição Abreu.

A todas as pessoas que acreditaram em mim e na minha capacidade para concluir este

projeto. São exemplo disso os meus alunos do atelier Beco d'Obra e de forma tão

determinada o meu querido amigo Jean-Michel.

A todos sem exceção muito obrigada!

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ÍNDICE

Resumo........................................................................................................................ II

Abstract...................................................................................................................... III

Agradecimentos......................................................................................................... IV

Índice............................................................................................................................V

Índice de Figuras........................................................................................................VI

Introdução.................................................................................................................... 1

Capítulo I - Costumes Privados

1.1. Gestos Afectivos........................................................................................ 5

1.2. Ambientes Domésticos............................................................................. 11

Capítulo II - Figuras de luz

2.1. Traços ocultos.......................................................................................... 17

2.2. Revelações do invisível............................................................................ 22

Capítulo III - Lugares-comuns - a Fotografia como lugar de afectos....................... 30

Conclusão................................................................................................................... 40

Bibliografia................................................................................................................ 43

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ÍNDICE DE FIGURAS

Fig.1 - Chantal Akerman, Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 200 min.,

1976.

still 2:23:09

Fig.2 - Nan Goldin, The Hug, New York City, USA, 1980.

Cibachrome print, 1016x762mm, 2008

The Museum of Modern Art, NY

Fig.3 - Jeff Wall, A view from an Apartment, 2004-05.

Transparência em caixa de luz, 1670x2440mm

Tate, Inglaterra

Fig.4 - Paula Nobre, Lugares-comuns, 2011-12.

Impressão jato de tinta sobre papel mate Arquival, 400x300mm

Fig.5 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #2, 2011-12.

Impressão jato de tinta sobre papel mate Arquival, 400x300mm

Fig.6 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #8, 2011-12.

Impressão jato de tinta sobre papel mate Arquival, 400x300mm

Fig.7 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #1, 2011-12.

Impressão jato de tinta sobre papel mate Arquival, 400x300mm

Fig.8 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #7, 2011-12.

Impressão jato de tinta sobre papel mate Arquival, 400x300mm

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INTRODUÇÃO

Integrada no Mestrado de Arte Multimédia, com especialização em Fotografia,

pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, a presente dissertação,

intitulada Lugares-comuns: a Fotografia como lugar de afetos, é de natureza teórico-

prática.

A vertente prática deste trabalho é constituída por uma série de oito fotografias

a cores, cuja teorização se desenvolve em torno da seguinte questão central: como é

que a Fotografia constrói um lugar a partir de um retrato de família formado por

naturezas-mortas e retratos? E de que modo esse é um lugar de afetos?

Com vista a atingir o objetivo proposto, designadamente fundamentar a

construção e existência deste lugar de afetos mediado pela imagem fotográfica e em

resposta à questão definida, adotei uma estrutura dividida em três capítulos intitulados:

- "Costumes Privados"; "Figuras de Luz" e "Lugares-comuns - a Fotografia como

lugar de afetos". Os capítulos I e II subdividem-se em dois subcapítulos: - 1.1. "Gestos

afetivos"; 1.2. "Ambientes domésticos" e 2.1. "Traços ocultos"; 2.2. "Revelações do

invisível", respetivamente.

No Capítulo I, procuro dar a compreender de que forma o quotidiano se

relaciona e propicia a existência de um lugar determinado pela apropriação de gestos e

sua articulação livre na rotina diária, e de como estes influenciam a construção do

lugar da vivência do sujeito. Baseado especialmente nas obras de Michel de Certeau,

L'invention du quotidien - 1. arts de faire, e de Roland Barthes, Lição, o subcapítulo

1.1. "Gestos afetivos", centra-se sobretudo na possibilidade que o sujeito tem de

superar imposições sociais e adotar a sua própria noção de realidade, aliando a vida

prática (gestual) e teórica (linguístico-narrativa), através da forma como opera e aplica

conteúdos descritos referentes às práticas comuns das quais se apropria e cujo destino

será a constituição de um lugar que dê sentido à sua existência privada e íntima. As

chamadas «maneiras de fazer» que cercam a referida obra de Certeau sugerem

múltiplas possibilidades de escolha ao sujeito e àquilo que produz quotidianamente. O

quotidiano é entendido como um lugar de oportunas conexões entre o exterior e o

interior, tendo em consideração os espaços público e privado que estimulam e

oferecem atributos e significados ao lugar-comum de modo a deslocá-lo para uma

esfera organicamente construída e constantemente adaptada ao prazer do sujeito. O

gesto rotineiro atinge assim um estatuto que se retira do banalmente conhecido através

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da livre articulação dos signos que compõem determinada ação com preponderância

na afetividade a ela associada. Aquilo que o sujeito produz pela apropriação,

manipulação e adoção individual de gestos quotidianos, determina a escala de valores

sensoriais e sensitivos (entenda-se por sensorial e sensitivo o que diz respetivamente

respeito aos sentidos e às sensações) ao lugar-comum que é o quotidiano associado às

mais elementares práticas domésticas. Os saberes e «maneiras de fazer» comuns

partilhados com a família, revelam as vivências do gesto rotineiro e ritualizado

enquanto afeto e sabor que convocam memórias e experiências passadas que atingem

valores simbólicos e míticos.

O subcapítulo 1.2. "Ambientes domésticos", pressupondo a existência de um

lugar constituído pelos gestos quotidianos associados às relações de afeto, aprofunda

essa noção a partir do espaço privado materializado na casa e na família. A casa-objeto

é entendida como uma estrutura desprovida de sentido até ao momento em que se

torna o lugar que alberga a intimidade do sujeito que em relação mútua e continuada e

através da experiência vivida quotidianamente se transforma numa casa-sensível. Os

valores humanos atribuídos à casa-objeto, os quais fundamentei baseada no livro A

Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, devem-se ao ambiente doméstico criado

pelos membros da e para a família. Ainda assim, procura-se valorizar a colaboração

entre os territórios privado e público ou interior e exterior que operam e sensibilizam a

interioridade da casa, como se de um organismo vivo se tratasse. Uma vez mais o ato

de habitar conflui para uma realidade de vivência afetiva cujo sentido sustenta as

práticas domésticas e a relação familiar. A relação mantida com a casa é comparada ao

funcionamento de uma pinhole pela sua sensibilidade às ocorrências exteriores,

nomeadamente ao contacto com a luz. Desta influência resultam novas articulações

regeneradoras que oferecem renovados sentidos ao território de afetos comummente

conhecido. A casa funciona portanto como uma estrutura moldável e sensível.

O Capítulo II, "Figuras de luz", desenvolve o discurso em torno das questões

anunciadas no capítulo anterior mas, desta vez, face ao que concerne à Fotografia e à

imagem fotográfica.

No subcapítulo 2.1. "Traços Ocultos", a fotografia enquanto dispositivo de

resgate do real opera em tempos que marcam distintamente todo o processo desde a

sua captação, à fixação e revelação. A génese da imagem fotográfica fundamentada

pelas teorias de Philippe Dubois no livro, O Ato Fotográfico e outros ensaios, é

expressa sob o ponto de vista do afeto no sentido da sua relação direta com a luz

enquanto projeção de vida. À semelhança do que faz o sujeito na sua relação com a

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casa, também o processo fotográfico funciona em consonância com uma troca de

conhecimento entre o exterior e o interior, manifestado pelas ocorrências domésticas

em contexto familiar. Ambas, casa e câmara são lugares de receção, transformação e

transferência de "saberes". A realidade vivida e materializada num objeto, resulta

numa morte aparente e fantasmática. A ausência provocada pela morte do gesto que

passou, dá lugar a presenças improváveis que operam na consciência contemplativa. A

imagem fotográfica resulta de uma transferência de valores humanos trazidos pela luz

que a realidade projeta no plano sensível estimulando o «inconsciente óptico». Nessa

medida, a fotografia transforma e transporta a ação e os gestos rotineiros para uma

linguagem sensitiva da experiência vivenciada porque ela tem o poder de dar a ver o

«não visto» que potencia o punctum (aqui entendido como a fantasmagoria da

imagem).

Relativamente ao subcapítulo 2.2. "Revelações do invisível", destaca-se o valor

contemplativo da imagem fotográfica e os seus efeitos na perceção do comummente

conhecido. O retrato é entendido como resultado de uma ocorrência manifestada

fisicamente pela ação do sujeito em ambiente privado, cujo impulso advém da sua

interioridade. Com o intuito de clarificar melhor a definição de retrato, são analisadas

a ação e relação íntimas decorrentes do espaço experienciado através das obras de

Chantal Akerman e o seu foco cinematográfico preciso na gestualidade doméstica;

Nan Goldin e a sua captura do real que se forma na intimidade com o universo

retratado, e finalmente Jeff Wall e a sua construção de ambientes onde se observam

personagens numa atitude de absorção, neste caso, face ao doméstico. Procura-se que

todos apontem para a possibilidade de retrato enquanto lugar relacional vivenciado

afetivamente. Com vista a auxiliar e a fundamentar a última afirmação, são citados os

autores Roland Barthes e Walter Benjamin que de resto acompanham grande parte

desta dissertação.

O Capítulo III, "Lugares-comuns - a Fotografia como lugar de afetos", incide

sobre a teorização da série fotográfica apresentada. Partindo da abordagem

etimológica da expressão lugar-comum, pretende-se sobretudo compreender a

importância e os valores atribuídos ao conceito para a presente dissertação, e que

dizem respeito sobretudo ao seu caráter puramente formal ao qual se quer dar um

sentido que ultrapasse a banalidade do termo. Construída a partir da minha própria

intimidade familiar, a série fotográfica Lugares-comuns procura estabelecer diálogos

com a interioridade do observador. Partindo da contemplação dos gestos rotineiros e

de relações entre pessoas e objetos em ambiente doméstico privado, fixados em

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imagens, procura-se desencadear estímulos que ofereçam ao observador um

(re)encontro com a sua própria experiência íntima e afetiva. A imagem pretende assim

veicular valores sensoriais e sensitivos ao «inconsciente óptico». Finalmente

constituída como um retrato de família, Lugares-comuns procura dar existência a um

lugar de afetos mediado pela imagem fotográfica.

A série Lugares-comuns é constituída por fotografias em formato digital. No

entanto, este facto não invalida o recurso ao processo analógico enquanto

argumentação e fundamentação teórica da dissertação.

No que concerne à metodologia, foi uma preocupação recorrer aos textos

originais, cuja tradução é da minha responsabilidade. No entanto, recorri a obras

editadas e traduzidas para a língua portuguesa.

Foram citados os autores que se seguem: Michel de Certeau; Roland Barthes;

Walter Benjamin; Gaston Bachelard; Pierre Bourdieu; Claude Lévi-Strauss; André

Bazin; Philippe Dubois; Susan Sontag; Michael Fried e Edgar Morin. Todos

contribuíram de forma diferenciada para sustentar esta teorização, sendo que a

recorrência aos autores Roland Barthes e Walter Benjamin se mantém constante ao

longo do discurso, dada a sua relevância na argumentação da dissertação.

A filmografia em geral, e em particular o filme que trago à discussão da

diretora de cinema belga Chantal Akerman designadamente, Jeanne Dielman, 23 Quai

du Commerce, 1080 Bruxelles, foi analisado e revisto antes da sua integração no texto

que se apresenta no Capítulo II.

A imagem The Hug, NYC, da fotógrafa americana Nan Goldin faz parte de um

vasto conjunto de 700 snapshots a cores, tiradas entre os anos de 1979 e 1986

instaladas e apresentadas em slideshow com som, da peça intitulada The Ballad of

Sexual Dependency. Contudo, The Hug, NYC, é uma imagem retirada dessa mesma

série, que foi impressa como outras tantas, para uma exposição no MOMA, Pictures

by Women: A History of Modern Photography, realizada de 7 de maio de 2010 a 18 de

abril de 2011, em Nova Yorque.

A fotografia A view from an Apartment, do fotógrafo canadiano Jeff Wall,

fazia parte da exposição The Crooked Path, que tive oportunidade de visitar no Centro

Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela, em novembro de 2011.

Apesar do desenvolvimento da componente prática desta dissertação

acompanhar irregularmente a componente teórica, foi fundamental manter contacto

visual com as imagens realizadas. Ao longo do processo de escrita a série fotográfica

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que se apresenta foi sujeita a alterações relativamente à sua seleção até alcançar o

conjunto definitivo.

CAPÍTULO I – Costumes privados

1.1. Gestos afetivos

Era o prato favorito do General Galliffet, que tinha a interessante

ideia de que essa mulher, essa chefe de cozinha, conseguia

transformar um jantar numa espécie de caso de amor. Sim, um

caso de amor que não fazia distinção entre apetites espirituais e

outros.

Gabriel Axel, A Festa de Babette, 2007, 1:17:34.

Segundo Michel de Certeau, em L’Invention du Quotidien – 1. arts de faire, o

quotidiano e todo o conjunto de práticas comuns a ele associadas, constituem «ações

operativas» ou «maneiras de fazer» de uma cultura de consumo totalitário imposto

pelos sistemas de produção. A realidade surge assim como um conjunto determinado

de regras e operações institucionalizadas às quais obedecemos, condicionando o nosso

comportamento social que acaba dependente de expectativas anunciadas e antecipadas

pelo próprio sistema onde nos integramos socialmente. Ora neste sentido parece não

restar alternativa ao indivíduo, senão seguir as ordens impostas, daí resultando uma

rede de códigos e comportamentos idênticos que caracterizam cada cultura. No

entanto, para que se destaque e diferencie da massa socioeconómica e política, Certeau

refere a importância daquilo que o consumidor «fabrica» a partir dos «produtos»

impostos.

A “fabricação” revelada é uma produção, uma poiein, - mas escondida, porque se

dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas da “produção” (televisiva,

urbanística, comercial, etc.) e porque a extensão cada vez mais totalitária destes sistemas

não deixa aos “consumidores” espaço onde marquem aquilo que fazem dos produtos.1

(Certeau,1980: XXXVII).

Analogamente, Roland Barthes afirma que o poder «se insinua por todo o

lado» (Barthes,1977: 12) mesmo através da linguagem, que ele define como

«legislação» e a língua como o seu «código» composto de signos que se repetem.

Deste ponto de vista, a única possibilidade de escapar ao poder e à própria língua (que

está ao seu serviço) encontra-se na articulação dos signos que compõem o código

1 «La “fabrication” à déceler est une production, une poiétique, - mais cachée, parce qu’elle se

dissemine dans les régions définies et occupées par les systèmes de la “production” (télévisée,

urbanistique, commerciale, etc.) et parce que l’extension de plus en plus totalitaire de ces systèmes ne

laisse plus aux “consommateurs” une place où marquer ce qu’ils font des produits.».

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linguístico. E só a literatura consegue fazê-lo «pelo jogo de palavras de que é palco»

(Barthes,1977: 16). A literatura, ao contrário da ciência, «não diz que sabe alguma

coisa, mas que sabe de alguma coisa»2 (Barthes,1977: 17). Mais importante ainda, é o

facto de frisar que a escrita só o é quando as palavras têm sabor, ou seja, tal como na

culinária também as palavras devem ser temperadas para que o saber se torne

«apetecível» e «fecundo» (Barthes,1977: 19).

Verificamos assim que o quotidiano encerra um vasto conjunto de códigos aos

quais estamos sujeitos. As regras implícitas nas instituições e grupos sociais existem e

oprimem a liberdade do indivíduo. Uma das alternativas será, numa espécie de jogo,

conseguir adequar e articular as partes constituintes da complexidade social e

reconstituir a nossa própria noção da realidade.

Partindo destes dois autores que, respetivamente e de forma recorrente, aliam a

vida prática (gestual) e teórica (linguístico-narrativa) a um poder implícito que as

condiciona, procuro definir e investigar um quotidiano entendido como uma forma de

“literatura” escrita pela própria vida. Por outras palavras, à semelhança do que faz a

literatura (segundo Barthes), também o homem deve valer-se das ferramentas (signos)

que tem ao seu dispor e manipulá-las, como faria um semiólogo3, para que com elas

alcance algum prazer e sabor na vida. O quotidiano surge assim como a mais autêntica

literatura carregada de saberes e temperos. As referidas «maneiras de fazer» a que se

refere Certeau, não são mais do que o conjunto de articulações possíveis entre signos

que constituem o “jogo literário” de que é feita a vida humana. Neste jogo com regras

aparentes e sem vencedores nem vencidos, a palavra e o gesto em posições opostas e

complementares, ora afastando-se, ora em colaboração, desenvolvem de forma

imprevisível, estratégica e criativa, um conjunto de ações que o tornam eternamente

estimulante. Compreenda-se o signo como cada gesto traçado e cada palavra envolvida

na vivência das mais elementares práticas quotidianas. Estes saberes entre gesto e

narrativa (considerados distintos por Certeau)4

tornam-se diluídos na vida prática e são

traduzidos por ressonâncias de tempos antigos (lendas, provérbios, etc.), memórias

2 «É porque a literatura põe em cena a linguagem, em vez de simplesmente a utilizar, que engrena o

saber no mecanismo da reflexividade infinita: através da escrita o saber reflecte continuamente sobre o

saber, segundo um discurso que já não é epistemológico, mas dramático.» (Barthes,1977: 18). 3 «O semiólogo seria em suma um artista (...): manipula os signos como se se tratasse de um logro

consciente, que saboreia e que quer dar a saborear e a compreender a fascinação.» (Barthes,1977: 32). 4 Os «gestes» e «récits», na «estética urbana» caracterizam duas «correntes operativas» distintas, «uma

tática» e outra «linguística» que se relacionam com a «manipulação dos objectos, o seu movimento,

alteração e emprego». São «colagens inventadas» a partir de «citações do passado»– mito - que se

tornaram «séries (processos gestuais, itinerários narrativos)» no presente. (Certeau,1980: 201).

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milenares sustentadas pelo nosso inconsciente coletivo. Tradições, hábitos herdados,

narrativas esboçadas pelo gesto diário, são partes que constituem o todo. Estes saberes

partilhados com a família e grupos sociais aliam-se às relações afetivas que em

associação definem o quotidiano enquanto “obra literária”. É o dia a dia que se

encarrega de “escrever” cada página do livro. Não se trata de uma descrição da vida

quotidiana, mas da sua inscrição nas camadas sensíveis do corpo humano. Se

considerarmos o mundo como uma imensa biblioteca, este livro produzido pela vida

não se enquadra na secção das ciências e das enciclopédias, mas numa recôndita e

discreta prateleira dedicada aos acontecimentos e prazeres comuns do dia a dia. Cada

página folheada, procura revelar aquilo que vivenciámos a partir do gesto rotineiro e

ritualizado enquanto afeto, saber e sabor. Como referiu Barthes, trata-se «de uma outra

experiência: a de desaprender, a de deixar germinar a mudança imprevisível que o

esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que

atravessámos.» (Barthes,1977: 37). Segundo o autor, esta experiência chama-se

«Sapiência: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo

de sabor possível.» (Barthes,1977: 37). São relatos contados através dos prazeres

sensoriais da experiência humana enquadrados numa esfera privada e íntima, que

servem de base de dados de amores discretos. Porém, é no espaço público e social que

estes prazeres ganham sentido, oferecendo ao “leitor” a possibilidade de com ele

partilhar sensações e emoções que ultrapassam a dimensão concreta da realidade.

Toda e qualquer necessidade implica que estejamos em contacto com o

exterior (espaço público) que nos garante, de uma forma ou de outra, o nosso sustento

(as compras, o médico, etc.). Desta dependência resulta uma apropriação por parte do

consumidor das estruturas estabelecidas, e logo nos apercebemos de uma «produção

silenciosa» (Certeau,1980: XLIX) através da construção da sua linguagem própria (e

manipuladora), conforme os seus interesses e prazeres pessoais. É justamente desta

relação “apropriada” com o mundo exterior manifestamente convencionado e

estabelecido, que o indivíduo procura um território de afetos, íntimo e potencialmente

carregado de memórias que se perpetuam através de rituais – aqui o lugar privado

adquire uma importância vital. O sistema de gestos repetidos e a cada vez

diferenciados que garantem o equilíbrio das relações íntimas entre as pessoas,

especialmente as que se referem à arte de cozinhar, definem o quotidiano que procuro

documentar. Mas é acima de tudo, um quotidiano privado, em espaços privados,

pessoais, afetivos, emocionais e sensíveis, dos quais a cozinha é o centro.

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As atividades diárias realizadas durante uma refeição são para cada indivíduo

ou família algo de comum, mas em cada contexto são potenciadas singularidades à

experiência sensorial. Em cada família e em cada cozinha, ainda que semelhantes,

distinguem-se comportamentos, hábitos e «maneiras de fazer». Esse caráter singular

torna acessível um maior conhecimento antropológico e sociológico de determinadas

culturas e grupos sociais que, por vezes, convoca heranças míticas. Estas práticas

elementares culturalmente associadas ao sexo feminino, representam o pano de fundo

da manutenção da vida familiar. São ações capazes de marcar as nossas memórias

desde a infância. Na realidade, as operações domésticas, e mais concretamente, as do

ato de cozinhar exigem uma multiplicidade de competências, mas são as que se

relacionam com o gesto que traduzem a ação que importa salientar. O conjunto de

operações e procedimentos inerentes a esta prática forma séries de gestos. É um saber

rotineiro imparável, hábil e adaptável às circunstâncias sociais e culturais. São gestos

que se inscrevem no ritual que, não só define uma necessidade vital (básica) mas,

acima de tudo, eterniza e propaga prazeres a ele associados, nomeadamente a partilha

de momentos irrepetíveis entre sabores e afetos. São práticas que definem a nossa vida

presente e representam o sucesso das nossas vidas passadas. Elas sustentam gerações,

perpetuam memórias, representam e diferenciam identidades, revelam sentidos muitas

vezes ilegíveis, decifráveis apenas no mundo virtual associado ao mito.5 Nesse espaço

poético, a ação e o gesto adquirem novos sentidos.

O gesto refere-se a todo o conjunto de movimentos que o corpo oferece a cada

ação desencadeada. É o trabalho manual e físico carregado de afetividade que se

destaca e que envolve o nosso olhar desde a infância. A mente memoriza-os com todos

os atributos sensitivos (sons, odores e sabores). Assim, a cada gesto corresponderá

uma determinada rede de memórias, emoções ou sensações. A cada rotina do gesto,

correspondem hábitos herdados, ainda que submetidos a renovados gestos geracionais

culturalmente adaptados, mas que a memória se encarrega de guardar.

Resumidamente, é uma prática de subsistência tal como é o amor.6

5 «Os mitos não têm autor; a partir do momento em que são vistos como mitos, e qualquer que tenha

sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é contado, ouvintes

individuais recebem uma mensagem que não provém, na verdade, de lugar algum; por essa razão se lhe

atribui uma origem sobrenatural. É, pois, compreensível que a unidade do mito seja projetada num foco

virtual: para além da percepção consciente do ouvinte, que ele apenas atravessa, até um ponto onde a

energia que irradia será consumida pelo trabalho de reorganização inconsciente, previamente

desencadeado por ele.» (Lévi-Strauss,1964: 39). 6 «Dans les cuisines, on se bat contre le temps, le temps de cette vie qui va toujours vers la mort. L’art

de nourrir a à voir avec l art d’aimer, donc aussi avec l’art de mourir.» (Certeau,1980: 239).

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Tal como os utensílios, os provérbios, ou outros discursos, são marcados pelo seu uso;

(...); eles significam as operações dos quais foram objecto, operações relativas a situações

duma determinada prática; eles indicam uma historicidade social na qual os sistemas de

representação ou os processos de fabricação não surgem apenas como quadros normativos

mas como ferramentas manipuladas pelos utilizadores.».7 (Certeau,1980: 39-40).

Esta comparação entre os utensílios (objetos e sua manipulação – arte de fazer)

e o discurso (arte de falar), leva-me a dois conceitos a que o autor se refere mais

adiante no texto, sobre a prática e a teoria, e mais especificamente, sobre a prática sem

teoria, ou seja, o operativo puro e absoluto. Eles reforçam a ideia de que a arte de fazer

(maneiras de agir), advém como já foi referido, de uma determinada experiência

tradicional adquirida pela educação ou pela própria experiência de vida do

indivíduo. Isto implica afirmar que nem todas as ações exigem uma reflexão teórica.

Este tipo de ação propaga-se ao longo dos tempos apoiada numa espécie de “herança”

ou memória coletiva. As técnicas são descritas, em vez de serem interpretadas. Como

acontece com o ato de cozinhar entre outras atividades domésticas.

Ainda podemos identificar um outro tipo de saber que parece situar-se entre a

prática e a teoria, sobre o qual o indivíduo não reflete. É um saber inconsciente,

«análogo ao das fábulas e dos mitos». São narrativas que se estendem a todas as

práticas quotidianas e que pertencem a todos e a ninguém.8 É um saber intuitivo,

genial, artístico, mais «primitivo» do que «discursivo» (Certeau,1980: 111). Esta

capacidade permite ao indivíduo construir algo novo a partir de estruturas pré-

existentes, aproximando-o assim da produção artística. Através da criação e da

inventividade define um gosto individual. Aqui o ato de cozinhar eleva-se a uma arte

de cozinhar:

Eu não cozinhava, eu fazia arte e quando eu fazia, o Papin sabia sempre, o Papin

reconhecia...Sim, ele dizia, e eu pensava ter esquecido, que um grande grito sai da alma

do artista.9.

7 «Comme les outils, les proverbes, ou autres discours, sont marqués par des usages; ils présentent à

l’analyse les empreintes d’actes ou de procès d’énociation; ils signifient les opérations dont ils ont été

l’objet, opérations relatives à des situations et envisageables comme des modalisations conjoncturelles

de l énoncé ou de la pratique; plus largement, ils indiquent donc une historicité sociale dans laquelle les

systèmes de représentations ou les procédés de fabrication n’apparaissent plus seulement comme des

cadres normatifs mais comme des outils manipulés par des utilisateurs.». 8 «Le savoir primitif, dans la mesure où il a été progressivement dissocié des techniques et des langages

qui l’objectivaient, devient une intelligence du sujet, mal définie sinon par des neutres (avoir du flair, du

tact, du goût, du jugement, de l’instinct, etc) qui oscillent entre les regimes de l’esthétique, du cognitif

ou du réflexe, comme si le “savoir-faire” se réduisait à un principe insaisissable du savoir.»

(Certeau,1980: 112-113). 9 Gabriel Axel, A Festa de Babette, 2007, 1:35:55.

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Tal como o gesto e a narrativa, também o mundo exterior (público) e o mundo

interior (privado) funcionam como duas realidades opostas e complementares que se

relacionam de modo a proporcionar as condições ideias de vida. Este reencontro entre

o dentro e o fora assemelha-se, como veremos mais adiante, ao que faz a fotografia. A

relação que se estabelece entre estes dois mundos e entre os membros de uma mesma

família é sublinhada pelo modo como partilham saberes, sabores e comportamentos

que se tornam rituais particulares em território privado.

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1.2. Ambientes domésticos

A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no

regaço da casa.

Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, 1957, p.26.

A família, enquanto estrutura social, rege-se segundo uma espécie de

linguagem afetiva comum e codificada que a mantém unida10

, sendo que neste caso, o

grupo considerado é o modelo predominante de família na cultura ocidental, quer

dizer, monogâmica, entre um homem e uma mulher que procriam e educam os seus

filhos. Esta estrutura social funda-se também numa «prestação de serviços recíprocos»

(Lévi-Strauss,1983: 73), sejam eles de natureza económica ou jurídica, naturalmente

estabelecida entre os seus membros. No entanto, nasce e desenvolve-se sobretudo pela

envolvência sentimental, emocional e afetiva que assegura a sua continuidade e

permanência. Daí, como forma a garantir a sua estabilidade surge a necessidade de

construir «um lugar de confiança», (Bourdieu, 1994) que resista e que garanta a

existência da vida privada - a casa.

Enquanto abrigo e refúgio, a casa representa e caracteriza o sujeito que nela

habita e marca o que nela habitou. Neste contexto, a casa e a família funcionam como

o «ninho» que acolhe a «intimidade» e que a mantém segura e protegida

(Bachelard,1957: 78). É precisamente nesta redoma privada que o lugar se desenvolve

enquanto estrutura formal, sociológica e cultural da experiência subjetiva da realidade.

Mais do que uma tipologia geométrica de casa, importa salientar o ambiente no

interior dessa estrutura particular e privada. Aquilo que se procura documentar

pertence às instâncias sensoriais da intimidade quotidiana de uma família, estimuladas

pela ocorrência de atividades domésticas rotineiras, que de algum modo suportam as

relações de afeto que mantêm viva a casa. Segundo Bachelard, «o que na casa une o

10

«(...) devemos levar em conta todo o trabalho simbólico e prático que tende a transformar a obrigação

de amar em disposição amante e a dotar cada um dos membros da família de um “espírito de família”

gerador de dedicações, de generosidades, de solidariedades (trata-se aqui tanto das inúmeras trocas

correntes e contínuas da existência quotidiana, trocas de dons, de serviços, de auxílios, de visitas, de

atenções, de amabilidades, etc., como das trocas extraordinárias e solenes das festas familiares – muitas

vezes sancionadas e eternizadas por fotografias consagrando a integração da família reunida). Este

trabalho incumbe muito particularmente às mulheres, encarregadas de alimentar as relações (...) As

estruturas de parentesco e a família como corpo só podem perpetuar-se ao preço de uma criação

contínua do sentimento familiar, princípio cognitivo de visão e de divisão que é ao mesmo tempo

princípio afectivo de coesão, quer dizer, adesão vital à existência de um grupo familiar e dos seus

interesses.» (Bourdieu,1994: 97).

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passado mais próximo e o futuro mais próximo, o que a mantém numa segurança de

ser, é a actividade doméstica.» (Bachelard,1957: 79-80).

O ambiente é determinado pela dialética entre pessoas e objetos. Contudo, ele é

simultaneamente o resultado de uma construção mental do domínio sensível à qual

podemos aceder através da sua suposta materialização na casa. Assim, esta coisa

concreta e objetiva surge como uma oportunidade de contemplação deste mundo

desconhecido e ocultado do outro e por conseguinte de nós mesmos. Esta possível

aproximação ao outro concretiza-se e resulta do movimento interno edificado no

ambiente doméstico. Toda e qualquer ação expressa significa algo que retém mais do

que o simples gesto visível. A ação transporta outros significados e outras conotações

jamais apreendidas, pois representam a linguagem da intimidade. Apesar das ações

explícitas, nelas não há nada de explícito na medida em que pertencem ao domínio da

interioridade, quer dizer, sendo uma prática absolutamente inequívoca sobre a sua

função operativa nem por isso se revela claramente. A simplicidade do pequeno gesto

representa mais do que aquilo que demonstra ser.11

Este fator alimenta os sentidos e

coloca-os em estado de alerta, e é desta postura atenta que o ambiente se vai revelando

em partes, em fragmentos da intimidade doméstica. Estas atividades comuns,

especialmente as que se referem à preparação de determinada refeição, revelam as já

referidas «maneiras de fazer» que participam no microcosmos familiar.

A qualificação da casa e em particular da casa natal habitada, é

incomensurável. Ela é moldável, rica, afetuosa, nostálgica, grande, pequena,

acolhedora, íntima, fantasmagórica, secreta, preciosa, misteriosa, etc. Porém, esta

infinidade de adjetivos assemelha-se à caracterização de um ser orgânico.12

É

precisamente este caráter orgânico da casa em geral, e da casa natal em particular, que

retrata «os valores de intimidade» (Bachelard,1957: 33) do ato de habitar. Neste

íntimo núcleo familiar, os gestos mais elementares e primitivos tais como os relativos

à culinária, parecem encarnar todo o poder de se fixarem em lembranças que repousam

na nossa memória. O gosto pela ocorrência recorrente de gestos definidos pelos ritmos

e rituais de cada família, acaba por inscrever-se no ambiente sensorial e íntimo que

11

«O pormenor de uma coisa pode ser o signo de um mundo novo, de um mundo que, como todos os

mundos, contem atributos da grandeza.» (Bachelard,1957: 164). 12

«Mas, para além das lembranças, a casa natal está fisicamente inserida em nós. Ela é um grupo de

hábitos orgânicos.» (Bachelard,1957: 33).

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determina a nossa noção de casa e por conseguinte a construção do lugar. Por outras

palavras, aquilo que define a casa enquanto lugar relaciona-se com o que de humano,

transferimos para as suas estruturas físicas. Citando Bachelard: «A casa adquire as

energias físicas e morais de um corpo humano.» (1957: 62).

Tal como Lévi-Strauss, quando refere não pretender «mostrar como os homens

pensam no mito, mas como os mitos se pensam nos homens» (Lévi-Strauss,1964: 31),

também aqui não se pretende mostrar como os homens pensam a casa mas como a

casa se pensa nos homens. Neste sentido poderíamos afirmar que enquanto objeto, a

casa é moldável ou maleável, logo suscetível de alargar-se e contrair-se conforme a

intensidade dos valores íntimos do sujeito que a pensa. É nesta plasticidade e dinâmica

relacional entre a casa e o modo como a pensamos que se esboça o lugar que ela

significa para cada sujeito. As qualidades matéricas da casa são como que aglutinadas

dando lugar a valores sensíveis da experiência humana, tornando-a um organismo vivo

em nós e para nós. Assim sendo, estamos perante uma relação de correspondência

recíproca entre a casa e respetivo habitáculo do pensamento (íntimo). Em ambos os

sentidos há uma submissão aos fenómenos de ordem externa (casa-objeto) e de ordem

interna (casa-sensível) aos quais é vulnerável. Isto implica dizer que a casa que se

pensa nos homens constitui uma série de estímulos que a mantêm ativamente presente

graças aos impulsos produzidos pela própria vida. Numa espécie de movimento

subliminar a casa é um reflexo do sujeito que a pensa, mas acima de tudo ela

acompanha esse movimento ajustando-se a ele de maneira a que se harmonize numa

imagem/pensamento ideal que se vai acomodando às nossas necessidades e prazeres.

A afetividade decorrente desta relação, seja ela positiva ou negativa, oferece

qualidades acrescidas a todo o processo tornando-a fortemente capaz de se desdobrar

em sensações que se expandem ao nível da nossa profunda intimidade, engrandecendo

assim os valores humanos.

Os pares opostos material e imaterial, físico e mental ou racional e sensitivo

parecem diluir-se nesta relação orgânica que se estabelece entre as estruturas concretas

e objetivas da casa-objeto e das estruturas subjetivas da casa-sensível. Em

comparação, poderíamos acrescentar que a definição daquilo a que chamamos casa,

põe em ação o referido «duplo contínuo»13

cujo sentido Lévi-Strauss atribui à música

13

«Como a obra musical, o mito opera a partir de um duplo contínuo. Um externo, cuja matéria é

constituída, num caso, por acontecimentos históricos ou tidos por tais, formando uma série teoricamente

ilimitada de onde cada sociedade extrai, para elaborar seus mitos, um número limitado de eventos

pertinentes; e, no outro caso, pela série igualmente ilimitada dos sons fisicamente realizáveis, onde cada

sistema musical seleciona a sua escala. O segundo contínuo é de ordem interna. Tem seu lugar no tempo

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e ao mito. A construção da casa implica um complexo diálogo entre fenómenos

externos e internos da natureza humana do qual resultam narrativas mentais

particulares. Esta íntima relação com o lugar enquanto casa-sensível perpetua

lembranças que dialogam com a imaginação primordial. Este lugar somos nós próprios

encerrados em toda a nossa imensidão íntima. Como afirmou Bachelard, a casa é um

‘estado de alma’ exatamente porque «fala de uma intimidade» (Bachelard,1957: 84).

Reconhecermo-nos através do lugar que a casa ocupa nas nossas mentes não

basta para definir a nossa identidade. As relações que estabelecemos com as várias

estruturas que constituem a casa, e nomeadamente entre os membros da família, são

também elas reveladoras. Entre outras coisas, habitar significa expressar sem palavras

aquilo que somos; expandir o nosso território interior; criar um segundo corpo;

afirmar uma identidade; partilhar com o mundo a nossa existência; herdar e deixar

herança, etc. Esta capacidade em alargar o espaço ao qual estamos confinamos

(corpo), faz da casa um complemento que une corpo e alma, tal como o próprio ser

humano. Assim sendo, a casa é também intimidade que se quer protegida e defendida.

Logo, por mais que nos afastemos dela, mesmo que prolongadamente14

, jamais

esquecemos esse lugar íntimo que nos acolheu. Esse território interior de lembranças

vividas também pela imaginação é reativado e renascido numa nova realidade15

que

parece imortalizar-se.

À semelhança de uma câmara escura que projeta a realidade por meio de uma

entrada de luz que atravessa a sua abertura, a casa-objeto e o seu interior secreto são

sensibilizados quando esta se “abre” ao exterior. Tal como uma pinhole, a casa possui

“paredes sensíveis à luz”, ou seja, ela resulta também da relação que mantém com o

“lado de fora”. É portanto uma caixa com paredes sensíveis. Esta permeabilidade da

casa com o exterior que a sujeita à luz, seja qual for a sua origem, que a “queima”

psicofisiológico do ouvinte, cujos fatores são muito complexos: periodicidade das ondas cerebrais e dos

ritmos orgânicos, capacidade da memória e capacidade de atenção. São principalmente os aspectos neuropsíquicos que a mitologia põe em jogo, pela duração da narração, a recorrência dos temas, as

outras formas de retorno e paralelismo que, para serem corretamente localizadas, exigem que o espírito

do ouvinte varra, por assim dizer, o campo do relato em todos os sentidos à medida que este se desdobra

diante dele.» (Lévi-Strauss,1964: 37). 14

«Mas, se voltarmos à velha casa depois de décadas de odisseia, ficaremos muito surpresos de que os

gestos iniciais, subitamente estejam vivos, ainda perfeitos. Em suma, a casa natal gravou em nós a

hierarquia das diversas funções de habitar. (...) A palavra hábito está demasiado desgastada para

exprimir essa ligação apaixonada entre o nosso corpo que não esquece a casa inolvidável.»

(Bachelard,1957: 34). 15

«Uma irrealidade se infiltra na realidade das lembranças que estão na fronteira entre a nossa história

pessoal e uma pré-história indefinida, exatamente no ponto em que a casa natal, depois de nós, volta a

nascer em nós.» (Bachelard,1957: 72).

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(como a uma película fotográfica), permite revelar o seu mundo interior e o modo

como este se comporta sob a sua influência.

A exterioridade de aparências diversificadas (cinema, televisão, rádio, jornais,

vizinhos, amigos, etc.) estabelece com o espaço privado (casa) uma relação mútua de

cumplicidade entre mais ou menos empatias. No que se refere ao poder da cultura

produzida pelos mass media considerada por muitos sociólogos, como é o caso de

Edgar Morin, «uma ameaça contra os valores artísticos e intelectuais e uma fonte de

estupidificação ou de alienação para as populações atingidas» (Morin,1984: 250), não

é prioridade desta dissertação tomar posições de concordância ou discordância mas

sim, colocar em confronto “realidades” que se cruzam e se intersetam na expectativa

de haver novas conexões e interações que melhor acentuem o grau de disparidade

entre culturas da mesma cultura. Aqui pretende-se sobretudo retirar quaisquer

obstáculos que possam diminuir ou sacrificar a liberdade do sujeito. É precisamente

pelo uso livre das múltiplas estruturas que tem ao seu dispor que o sujeito constrói e

conquista o seu território privado de afetos e alarga a sua intimidade.16

Aquilo que o

“detém” deve ser encarado como uma nova possibilidade de articular signos, de onde

resultarão novos sentidos. Na verdade é exatamente nas oposições contraditórias entre

a vida vivida (realidade?) e a vida que se quer dar a viver (realidade ficcionada pela

influência dos mass media) que a dinâmica relacional entre grupos sociais,

particularmente no grupo familiar, se torna interessante porque inovadora. É neste

processo de entrada de luz, sempre regenerador, que ocorre nas relações com o

exterior, que a família tem a possibilidade de se posicionar face às “adversidades”

muitas vezes impostas pela sociedade reguladora. O modo como cada indivíduo ou

grupo social usa a sua capacidade de apropriação e de manipulação relativamente aos

fenómenos externos determina perceptivamente a sua revelação pela construção de

uma “nova realidade” reproduzida no ambiente doméstico. Partindo do princípio que o

sujeito mergulha numa espécie de realidade virtual (mass media) a sua intimidade

mergulha também ela nessa mesma virtualidade? A ser verdade, poderia afirmar que

quanto maior é o traço dessa passagem, menor o acesso a esse espaço íntimo que se

camufla na superfície das coisas. Assim sendo, como poderemos ir ao seu encontro?

Resta-nos apenas encontrar na realidade aquilo que consideramos verdadeiramente

16

«A imensidão foi ampliada pela contemplação. E a atitude contemplativa é um valor humano tão

grande que confere imensidão a uma impressão que um psicólogo teria toda a razão em declarar

efémera e particular.» (Bachelard,1957: 214).

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livre de sentidos duplamente reais. As pequenas tarefas, os simples afazeres, ainda que

possam concretizar-se neste dúbia verdade, são o que resta a contemplar e daí retirar o

que de “real” adquirem pela aliança dos afetos. A afetividade é parte integrante e

integradora desta dupla realidade. No encontro entre ambas (realidade e virtualidade)

renasce uma outra dimensão do real – a realidade afetiva. As emoções, os sentimentos

só o são na dimensão real, do espaço/tempo de determinado instante. O lugar da

afetividade pertence à linguagem do universo sensitivo e sensorial reservado à

intimidade do ambiente interior doméstico. No entanto, este é um lugar que se revela e

que se expande a cada contacto com a luz exterior. A intimidade do ambiente que a

realidade afetiva ou que o lugar de afetos ocupa revela-se na dicotomia entre o lado de

fora e o lado de dentro. Nessa medida convém salientar a importância que tem a

Fotografia enquanto fenómeno exterior que contribui para esta revelação. Podemos

assim verificar que cada «clarão» luminoso (sinónimo de uma relação com o exterior)

dá ao «gesto maquinal» doméstico «novas impressões» (Bachelard,1957: 80). A cada

clarão, podemos dizê-lo, corresponde uma renovação do gesto que oferece ao trabalho

doméstico «um valor de começo» (Bachelard, 1957). Assim, nascem renovadas

nuances do mesmo gesto articulado. Os afazeres e cuidados domésticos, inscritos no

ritual, surgem desta penumbra que emana íntimos valores humanos de «uma nova

realidade do ser» (Bachelard, 1957). A ação recorrente coloca-nos no lugar da origem,

na ordem primordial da história de uma casa de família onde reina o mundo dos afetos.

Ainda assim, este será sempre um processo limitado às superfícies iluminadas. Aos

nossos olhos chegam raios de luz emanados deste mundo, os quais são “absorvidos”

pelos circuitos sensíveis do nosso sistema percetivo que consequentemente

interpretam a realidade visível. O conjunto de costumes familiares que se desenvolvem

automaticamente atingem os nossos sentidos que transformam a luz absorvida em

sensações afetivas. Numa espécie de simbiose, entre casa-objeto-câmara e casa-

sensível-película, a mente usufrui desta contemplação através da (re)construção da

realidade. Chega assim o momento de abordar o efeito e o poder da imagem

fotográfica na captação deste fenómeno relacional orgânico exposto ao olho que

observa.

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CAPÍTULO II – Figuras de luz

2.1. Traços ocultos

É uma natureza diferente a que fala à câmara ou aos olhos;

diferente principalmente na medida em que em vez de um espaço

impregnado de consciência pelos homens, surge um outro

embrenhado pelo inconsciente.

Walter Benjamin, Pequena História da Fotografia, 1931, p.119.

A casa-sensível que resulta da relação íntima que com ela estabelecemos, a qual

passamos a assumir como um organismo vivo, ocupa um lugar que parece estender-se

e encontrar paralelo no processo que origina a imagem fotográfica17

e mais

concretamente com o que acontece no interior da câmara escura. Partindo deste

pressuposto, a imagem fotográfica e a sua produção partilham traços comuns

relativamente ao que de humano transpomos para as coisas que nos rodeiam

quotidianamente, e que dizem respeito à capacidade quase mágica de atribuirmos

valores humanos às coisas da vivência comum. Digamos que naturalmente deixamo-

nos envolver com o mundo concreto ao ponto de nos revermos nele, pelas vivências

que vamos mantendo e acumulando ao longo da vida. Gestos simples adquirem grande

significado e valor simbólico numa escala sensorial humana tão singular, porque se

refere a cada indivíduo, quanto familiar por ser tão comum à sua natureza.

Como sabemos, a existência da fotografia está dependente da luz. Ironicamente,

esta luz é particular porque possui uma ambivalência quase perversa, na medida em

que tem o poder de exigir (à natureza) o que depois oferece (dessa natureza

transformada). Por outras palavras, e à semelhança do que faz o indivíduo em

interação com o mundo quotidiano do qual retira o que por exigência ou necessidade

deve oferecer, a luz na fotografia dá ou devolve aquilo que retirou ou resgatou do real.

Efetivamente, a imagem fotográfica resulta do contacto direto da luz, projeções

da vida, sobre uma superfície sensível que a recebe numa recíproca envolvência. Este

lugar sensível, ínfimo espaço protetor e reservado que é a câmara escura, permanece

na obscuridade absoluta até nova relação com o exterior. E a cada abertura o mesmo

ritual se repete, nada mais detendo o contacto físico-químico (ou eletrónico no

17

Apesar de se tratarem de processos distintos, não procuro desenvolver questões ontológicas que

estabeleçam fronteiras entre uma imagem fotográfica produzida analógica ou digitalmente. Ainda que a

componente prática da presente dissertação resulte do processo fotográfico digital, recorro à câmara

escura e à película como referências analógicas do processo que dão sentido à minha argumentação

teórica. No entanto, e por equivalência, o sensor da câmara digital é considerado igualmente uma

superfície sensível que absorve (e processa) a luz que recebe.

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processo digital) entre a luz, que toca afetuosamente a matéria sensível que lhe dá

corpo. Por instantes a luz inunda este lugar secreto e as duas naturezas distintas

tornam-se uma. Ambas, luz-vida e câmara-ardente, energias cúmplices, praticam

reencontros misteriosos e ocultos que anunciam o espantoso poder da imagem. Que

outros segredos guardam, para além da conhecida transferência bruta de energia

luminosa sobre o seu plano recetor? Sobre este facto Bazin afirmou: «Pela primeira

vez, uma imagem do mundo exterior forma-se automaticamente sem intervenção

criadora do homem, segundo um determinismo rigoroso.»18

(Bazin,1976: 13). Este

rigor científico anunciado pela não intervenção humana mas mecânica no

instante/registo de obturação - «génese automática» da fotografia - não deixa de

suscitar perplexidade face ao resultado deste processo. A relação estabelecida entre as

duas realidades exterior e interior respetivamente luz (imaterial) e a câmara-escura

(material) adquirem algo que está para além da cientificidade do processo. Em

conjunto, elas possibilitam uma outra visão ou versão do mundo que já não se explica

em termos científicos mas sensitivos. Uma vez mais, salientam-se também aqui traços

caracteristicamente orgânicos no processo que origina a imagem. Da mesma forma

que o sujeito se desdobra em realidades distintas, entre o exterior e o interior, com as

quais mantém um debate contínuo contribuindo para o alargamento da sua experiência

de vida.

Contudo, há que ter em consideração os tempos que antecedem e que se

sucedem ao disparo. A «imagem-ato», utilizando o termo de Philippe Dubois, «não se

limita trivialmente apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto

da “tomada”), mas inclui também o ato de sua recepção e de sua contemplação»

(Dubois,1990: 15). Ora, isto implica afirmar que a par desta objetividade processual

literalmente cega (no instante do disparo, a luz é vedada ao olho que espreita pelo

orifício da câmara), estamos sempre em presença de um sujeito que viu, verá e dará a

ver. O sujeito não só regista o referente (signos ou índices) na medida em que toma

decisões à partida sobre o que fotografar, como enquadra e ilumina o que fotografa e

decide os mecanismos óticos com que o faz (objetiva, câmara, etc.), mas acima de

tudo contempla-o, estabelecendo com a imagem revelada relações sensitivas. Podemos

então afirmar que entre o instante do disparo, existem dois outros tempos – o antes e o

depois deste gesto, respetivamente face à realidade e à sua reprodução. Três tempos,

18

«Pour la première fois, une image du monde extérieur se forme automatiquement sans intervention

créatrice de l’homme, selon un determinisme rigoureux.».

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três modelos, três imagens, três traços, que comprovam tautologicamente que uma

imagem do real é de facto verdadeiramente objectiva de acordo com a sua

representação? Cada imagem a seu tempo, constitui partes de um todo que se

manifesta num objeto imagem que expande, que imortaliza esse tempo somado de

tempos. Por mais que a imagem nos remeta para o seu referente (fotoíndice que apenas

revela semelhanças), facto indissociável que determina a contingência da imagem

fotográfica, imobilizado num determinado instante, este encerra em si algo de

«invisível: não é» ele «que nós vemos» (Barthes,1980: 14).

A impressão luminosa de natureza mecânica e química (ou eletrónica) é

seguramente o primeiro registo, uma inscrição, ou melhor ainda, é o «traço» na

camada sensível do suporte. A câmara escura recebe a luz projetada que se acomoda e

entrega, caindo num sono profundo e morre. Tal como uma casa, este é um lugar

íntimo e privado que mantém relações com o exterior. Sendo um lugar de receção, de

transformação e de transferência, a câmara escura assemelha-se ao que faz o indivíduo

na sua relação com o mundo em geral e com a casa em particular. O instante de vida

acolhido neste refúgio fica retido, em latência, aguardando a sua própria revelação,

paradoxalmente, no escuro, sem luz. No interior da câmara, aquilo que era vida (em

forma de luz) veio depositar-se para sempre neste lugar. O “aqui jaz...” de uma

qualquer placa tumular, significa dizer o mesmo que afirmou Barthes com o «isto foi».

No entanto, aqui a morte é aparente, é o seu negativo, porque dela outra vida vai

nascer e outras vidas se reproduzirão a partir dela.

Na revelação literal desta matriz (negativo), o referente ressuscita ao

reencontrar-se com a luz, ilumina-se, renasce e mostra-se para nosso espanto. Cada

imagem revelada é uma afirmação da vida que a morte não aniquilou. O positivo e o

seu plural reivindicam uma presença que se ausentou do real, e dessa ausência tornada

presença temos acesso a outra realidade que se manifesta na linguagem das sensações

ou do seu singular, ou seja, da «sensação» a que se refere Roland Barthes ao

contemplar a Fotografia do Jardim de Inverno. Esta imagem era o retrato da

«verdade» porque precisamente ali, a sua mãe «constituía para» si, «utopicamente, a

ciência impossível do ser único» (Barthes,1980: 81). Acrescentando ainda que esta

imagem era «uma foto acrescida, que continha mais do que aquilo que a essência

técnica da fotografia pode razoavelmente prometer.» (Barthes,1980: 79). A

objetividade e cientificidade que estão na origem do dispositivo fotográfico, destinam-

se ironicamente à sua desvalorização, extinção ou anulação sempre que uma imagem é

revelada.

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Participando da mesma relação ou natureza automática e mecânica, também o

gesto rotineiro se transforma e renasce outro através da sua reprodução pela imagem.

A soma do duplo traço, da vida real e da sua morte pela luz resulta num terceiro traço

que retorna à vida. Ato de ressurreição, milagre que dá à vida para além da morte

poderes mágicos. O sempre visto transforma-se em nunca visto.

Comprovadamente, a imagem fotográfica resulta de um acumular de relações

entre luz e sombra, entre interior e exterior, semelhante ao que ocorre nas relações que

estabelecemos com os espaços privado e público. A fotografia surge igualmente como

uma realidade intermédia e intermediária entre fora e dentro, entre visível e invisível,

entre material e imaterial ou ainda entre vida e morte porque ela espelha a natureza

que se nos apresenta como outra; ela reflete e coloca-nos em reflexão; ela estimula e

opera «um espaço» «embrenhado pelo inconsciente» (Benjamin,1931).

Como afirmou Walter Benjamin, no texto Pequena História da Fotografia:

Apesar de toda a habilidade artística do fotógrafo e da metodologia na atitude do seu

modelo, quem contempla a fotografia sente o impulso irresistível de procurar, aqui e

agora, o cintilar insignificante do acaso com o qual a realidade, por assim dizer, ateou o

carácter da imagem, sente o impulso irresistível de encontrar o ponto singelo em que a

existência de cada minuto há muito decorrido contém o vindouro e de forma tão

convincente que nós, retrospectivamente, o poderemos descobrir. (Benjamin,1931: 118-

119).

Mais do que rever através da fotografia, temos a oportunidade de ver o «não visto»

(Frade,1992: 103). Este «não visto», pode implicar ou colocar em ação o punctum que

por equivalência é interpretado aqui como a fantasmagoria da imagem, que representa

o verdadeiro sentido da fotografia porque é através desta mágica aparição e não da

aparência que nos surpreendemos ou nos deixamos afetar com experiências que já

pertencem ao nosso íntimo relicário sensitivo.

Esta fantasmagoria que podemos considerar como uma presença oculta, ou

melhor dizendo, uma ausência, é o que oferece à imagem fotográfica a sua função

transcendental. Aquilo que Barthes denominou punctum como «acaso que» na imagem

«me fere (mas também me mortifica, me apunhala).» (Barthes,1980: 35).

Como pudemos constatar, o ato fotográfico pressupõe uma continuada presença

de algo ausente. É inegável que o disparo interrompe ou corta literalmente o decurso

da realidade. Paradoxalmente é deste resgate, imobilização da vida - morte - que temos

a possibilidade de presenciar e contemplar outra vida. Digamos que através da

fotografia experimentamos a morte como algo eternamente vivo em nós.

Efetivamente, a magia da imagem fotográfica ganha ênfase nesta sua capacidade em

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30

animar um jogo ligado ao reconhecido referente passado, a que Barthes atribuiu o

nome de spectrum e que diz respeito ao «espectáculo» trazido pelo objeto, ao qual

acresce o «regresso do morto» (Barthes,1980: 17). Por outras palavras, e transpondo

todo o discurso para a convencionada classificação do retrato, será justo afirmar que o

sujeito enquanto objeto (que pressupõe a sua morte) significa a possibilidade de se

redescobrir? Ou é a sua aparência no objeto que faz renascer outra visão de si próprio,

provocada talvez pela distância espácio-temporal entre o instante passado e o

presente? Barthes confirma esta questão quando diz que «a Fotografia é o

aparecimento do eu próprio como outro, uma dissociação artificiosa da consciência de

identidade.» (Barthes,1980: 20).

De modo a obter uma maior clareza sobre as questões acima mencionadas,

recorro à seguinte analogia: à semelhança do ato fotográfico que pressupõe a extensão

de fragmentos da vida imobilizados pela imagem, o próprio sujeito na sua relação

quotidiana com o espaço privado reforça e reafirma a sua existência e identidade a

cada gesto traçado durante as atividades domésticas. Entendida como uma extensão

física (objetual) do sujeito, a casa, tal como a fotografia, representa formalmente e

quase sempre de modo inconsciente a renúncia à mortalidade e finitude humanas. As

atividades domésticas representam as já referidas táticas, às quais o sujeito recorre

para tornar visível e pôr em prática uma interioridade manifestada pela manipulação

das coisas que o rodeiam. Sendo a casa um espaço habitável quotidianamente, o olhar

torna-se cego porque habituado à convivência permanente com o que julgamos

conhecer, ou seja, o sujeito fica impedido de se ver a si próprio. Esta dificuldade em

percepcionar as ocorrências diárias advém de um estado que Benjamin designou no

texto Pequena História da Fotografia, por «inconsciente óptico» (Benjamin,1931:

119). Ora tal fenómeno não ocorre na Fotografia, aliás o papel da imagem fotográfica

é precisamente, dar a ver o não visto. Se quisermos, a fotografia oferece a

possibilidade do sujeito refletir sobre si próprio pela contemplação do seu retrato que

não se esgota na sua imagem figurativa, estando mais fortemente ligada às relações,

ações e gestos que desenvolve no espaço privado e em família.

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2.2. Revelações do invisível

O ambiente familiar, é o que sempre vimos sem nunca o termos

olhado de facto. Em rigor aceitamos fotografar a nossa casa ou

que a fotografem depois de a arrumarmos, decorarmos (como

num dia de festa por exemplo), quer dizer domingueiro como nós

próprios fazemos para posar.19

.

Pierre Bourdieu, Un Art Moyen - Essai sur les usages socieux de

la Photographie, 1965, p.57.

A contemplação da nossa própria imagem, designadamente a revelada

fotograficamente, leva-nos a uma confrontação que assenta na estranheza de nos

consciencializarmos da presença de um corpo (que é o nosso) fora de nós. Isto

significa dizer que a materialização da nossa imagem num objeto como a fotografia

coloca-nos no lugar ocupado geralmente pelo outro. Se excluirmos o reflexo

provocado por e sobre qualquer superfície refletora (água, espelho, etc.), podemos

concluir que sem a imagem fotográfica somos um corpo invisível. A alternância

sentida entre presença e ausência, entre vida e morte, entre finitude e imortalidade,

provocadas pela contemplação da imagem fotográfica, obriga a uma deslocação

temporal entre presente e passado, entre fugacidade e imobilidade, entre inconsciente e

consciência, ultrapassadas por quaisquer imagens refletidas do sujeito. Diria que a

imagem refletida é dominada pelo sujeito enquanto se observa; já a fotografia implica

uma certa submissão à interrupção e imobilidade causadas pelo instante do disparo

colocando-nos assim à sua mercê. Os efeitos não dominados provocados pela imagem

fotográfica são provavelmente o que propicia o seu poder encantatório, pelo facto de

nos conseguir surpreender.

Partindo destas considerações, chega o momento de abordar o retrato como o

meio pelo qual se dá visibilidade ao corpo invisível do sujeito. Mas este corpo

estende-se à ação por ele desencadeada. Envolvido no ato de fazer, portanto

absorvido20

, fica duplamente incapacitado de ver-se a si próprio e ao ambiente que o

envolve. Neste sentido o retrato define-se pela ação do sujeito absorto no seu ambiente

familiar comum e privado. Este define-se assim como um retrato da intimidade

justamente porque se desenvolve num lugar íntimo e inacessível ao olhar exterior, mas

acima de tudo porque se manifesta a partir da interioridade do sujeito. Assim conclui-

19

«L’environnement familier, c’est ce que l’on a toujours vu sans jamais l’avoir regardé. A la rigueur on

accepterait de photographier sa maison ou de la faire photographier après l’avoir arrangée, décorée (un

jour de fête par example), c’est à dire endimanchée comme on s’endimanche pour poser.».

20 Termo de Michael Fried, cuja obra é referida mais à frente neste capítulo.

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se que as atividades domésticas definem o contexto onde a intimidade adquire forma

através do retrato. Por outras palavras, o retrato funciona como uma possível abertura

para o exterior com o qual comunica estabelecendo com ele uma relação recíproca de

conhecimento.

O retrato e a sua contemplação procuram atribuir significado ao sujeito cujo

sentido provém dos gestos e ações que realiza e vivencia no espaço por ele habitado e

em interação com pessoas e objetos.

A personagem principal do filme de Chantal Akerman, Jeanne Dielman, 23

Quai du Commerce, 1080 Bruxelles,21

de 1975, no papel de mãe de um adolescente,

durante os preparativos de uma refeição, apresenta-se no contexto desta dissertação

como um retrato (Fig.1).

Fig.1 - Chantal Akerman, Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles.

Uma só cena de duração real, de enquadramentos fixos, de literalidade quase

dramática dos gestos tão misteriosamente descritivos em que uma só ação se desdobra

em séries gestuais que deixam o nosso olhar perplexo e hipersensível a cada

movimento. A captação cinematográfica literal da gestualidade elementar das rotinas

em forma de ritual, é tão perturbadoramente banal quanto vital.

Akerman afirma: «Tiveram origem naquilo que via enquanto criança - todos

aqueles gestos da minha mãe.»22

. Gestos que parecem traduzir e desvendar traços do

caráter do personagem em ação. O hiper-realismo da cena coloca-nos numa elipse

entre dois polos exterior e interior, concreto e abstrato, e até mesmo entre amor e ódio.

21 http://www.youtube.com/watch?v=jwectciSZDs.

22 «It came from what I saw as a kid — all those gestures of my mother.» Retirado do jornal The New

York Times, de 16 de janeiro de 2009.

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33

Provavelmente, esta espécie de esquizofrenia deve-se ao controlo da ação inerente à

natureza ficcional de que é originária. Contudo, e transpondo esta cena para situações

reais de vida que inspiraram Akerman, gestos idênticos se exercitam com o mesmo

fim, o de cozinhar. Os «gestos» a que se refere a autora, cuja duração parece perdurar

apenas na nossa memória, representam a ação do sujeito que se quer retratar na

presente dissertação. A necessidade de apreender traços do gesto fugaz obriga ao seu

resgate através da utilização da «câmara» como se de uma «arma predatória»23

se

tratasse, que interrompe a vida quotidiana a cada instante/disparo. É desta relação

estreita e direta entre a vida e o seu resgate ótico e mecânico que se dá visibilidade ao

corpo. Porém, esta interrupção tem como destino a morte de um tempo que já passou.

O abismo provocado pela distância temporal entre o disparo e a revelação da

imagem fotográfica, a qual nunca nos dá o antes visto, mas outra perceção das

aparências, é o que torna fértil a dimensão sensorial do gesto resgatado. A morte que

magicamente se anima renascendo noutra vida agora imortal, é traduzida para outra

linguagem elaborada pelos afetos. O sabor passa agora a pertencer ao prazer da

experiência da imagem que opera em conjunto e em parceria com a memória.24

Se considerarmos o álbum de retratos de família, venerado de geração em

geração, também pela acumulação de experiências vividas (rituais festivos, viagens,

etc.) que marcam a história deste grupo social, concordamos que este pretende ser um

documento privado e íntimo. Ora, no caso da fotógrafa americana Nan Goldin a

utilização da fotografia como um álbum de família, ao contrário do que seria suposto,

é aberto ao público com quem quer partilhar as suas próprias experiências de vida.

Segundo a autora, as relações que mantém com as pessoas retratadas parecem ser

melhor compreendidas quando mediadas pela imagem, e o facto de as tornar públicas

funciona como «um convite ao» seu «mundo»:

A Balada da Dependência Sexual é o diário que eu deixo que as pessoas leiam. Os meus

diários escritos são privados; eles formam um documento fechado do meu mundo e dão-

me a distância para o analisar. O meu diário visual é público; expande a sua base subjetiva

através dos input das outras pessoas. Estas fotografias podem ser um convite ao meu

mundo, mas elas foram tiradas para que eu pudesse ver aquelas pessoas. Por vezes não sei

como me sinto em relação a alguém enquanto não fotografar. Eu não seleciono as pessoas

23 «(...) there is something predatory in the act of taking a picture. To photograph people is to violate

them, by seeing them as they never see themselves, by having knowledge of them they can never have;

it turns people into objects that can be symbolically possessed. Just as the camera is a sublimation of the

gun, to photograph someone is a sublimated murder(...)» (Sontag,1971: 14).

24 «O afecto era aquilo que eu não desejava reduzir; sendo irredutível, ele era por isso mesmo aquilo que

eu queria e devia reduzir a Foto; mas seria possível reter uma intencionalidade afectiva, uma finalidade

do objecto que fosse imediatamente penetrada de desejo, de repulsa, de nostalgia, de euforia?»

(Barthes,1980: 29).

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em função da fotografia que faço delas; eu fotográfo diretamente da minha vida. Estas

fotografias vêm de relações, e não da observação.25

(Goldin, 2005).

Nan Goldin relaciona-se com o ato fotográfico a partir do interior, no sentido em

que está inserida num contexto conhecido, familiar e íntimo (Fig.2). No entanto, esta

relação de intimidade para com o universo fotografado não empobrece o seu espanto

ao contemplar as imagens. A imagem é justamente o documento valioso que sustenta a

sua memória e que a ultrapassa pelas relações que estabelece com os objetos

fotografados.

Fig.2 - Nan Goldin, The Hug, New York City, USA, 1980.

Em Nan Goldin, a realidade (que é a sua) tornada imagem ou objeto (fotografia)

significa uma forma de conhecimento sobre as pessoas e as relações que mantém e que

manteve com os retratados. A fotografia funciona assim como a possibilidade de

melhor compreender o seu universo afetivo. O dispositivo fotográfico oferece ao

observador a possibilidade de rever, reconhecer e, fundamentalmente, descobrir novas

perceções a partir do corte temporal a que sujeitou o decorrer da vida quotidiana. O

passado é trazido ao presente com formas renovadas, espantosamente potenciadoras de

25

«The Ballad of Sexual Dependency is the diary I let people read. My written diaries are private; they

form a closed document of my world and allow me the distance to analyze it. My visual diary is public;

it expands from its subjective basis with the input of other people. These pictures may be an invitation to

my world, but they were taken so that I could see the people in them. I sometimes don't know how I feel

about someone until I take his or her picture. I don't select people in order to photograph them; I

photograph directly from my life. These pictures come out of relationships, not observation.».

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valores sensitivos. No fundo, a imagem funciona como uma nova forma de vida que é

animada pela sua contemplação. O decurso da vida e o seu resgate estimulam esta

constante descoberta do novo e do renovado, e é o que mantém ativo o fascínio da

imagem.

No trabalho fotográfico de Jeff Wall a realidade fotográfica assume

características teatrais (com cenários e atores que desempenham um papel

determinado pelo autor, à semelhança do que faz o teatro e o cinema). A fotografia de

Jeff Wall é uma encenação «quase documental» como afirmou o próprio artista.

Michael Fried, em Why Photography Matters As Art As Never Before, elabora

uma longa teorização em torno dos conceitos de teatralidade e absorção a par de

produções artísticas na área da fotografia contemporânea. No que se refere à obra de

Jeff Wall, podemos observar frequentemente os seus personagens numa atitude de

absorção nas tarefas que realizam, alheando-se da existência do espectador. Este

comportamento comum à vida real, torna-se artifício nas fotografias de Jeff Wall. Para

ele, quer a absorção quer a teatralidade são «modos performativos» (Fried,2008: 41).

Nada no trabalho deste artista acontece ou aparece por acaso. As suas fotografias

obedecem a um processo criativo que não deixa margem para grandes desvios

concetuais, pois evocam uma ordem e uma estrutura que culminam numa composição

escrupulosamente refletida26

, que o autor refere como uma «construção pictórica»

(Fried,2008: 41).

Na imagem A View from an Apartment (Fig.3), tudo parece indiciar teatralidade

e o seu oposto. Ao mesmo tempo que aceitamos esta cena como um acontecimento

naturalmente comum, pressentimos uma inexplicável estranheza. A ficção despreza o

aleatório, o inesperado, o inoportuno e o acaso, fatores que regem o movimento da

Natureza27

e que nesta imagem parecem não ter lugar.

26

Jeff Wall sobre as suas fotografias afirma: «The form and the technique tend to have a

hyperorganized, rigid character, everything is strictly positioned. I want to express the existing

unfreedom in the most realistic way.» (Wall,1985: 195).

27 Numa entrevista dirigida por Sheena Wagstaff, Jeff Wall refere: «When you’re looking at a picture

you are feeling that you are really seeing something, seeing it in a way you can’t see it in the world

itself. I guess that is true, but it is more interesting to depict something in a way that the viewer feels he

or she is really seeing, but at the same time suggest that something significant isn’t being seen – that the

act of picturing creates an unseen as well as a seen.» (Wall, 2005).

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Fig. 3 - Jeff Wall, A view from an Apartment, 2004-05.

As personagens femininas que compõem esta imagem, estão integradas num

ambiente doméstico em estado de absorção. Aqui a consciência do sujeito afasta-se do

fotógrafo / observador / espectador, anulando a sua presença e demonstrando

indiferença pelo ambiente que as envolve. O nosso olhar é atraído e converge para a

ação que realizam, que nesta obra em particular, se relaciona com tarefas e gestos

banais do quotidiano doméstico. Parece existir na imagem uma reciprocidade entre a

ação desencadeada pelo sujeito absorto e a reação do olhar do observador. A ação

torna-se um fator dominante na atração visual de quem observa a imagem.

No texto intitulado Gestus, Jeff Wall afirma que o seu «trabalho se baseia na

representação do corpo. No médium da fotografia, esta representação depende da

construção de gestos expressivos que podem funcionar como emblemas.»28

. Este

atributo emblemático ao gesto significa para o artista «pose ou ação que projeta o seu

sentido como um signo convencionado.»29

. Esta afirmação que define o gesto como

uma manifestação convencional vem a propósito do gesto que procuro documentar,

ainda que se distingam radicalmente na sua origem e no seu significado. Enquanto que

o gesto em Wall é uma construção, no que concerne à presente dissertação ele resulta

do movimento da vida real. Contudo, importa reter a importância do seu contexto que

neste caso particular vai de encontro ao ambiente doméstico que pretendo retratar,

essencialmente, pela atitude dos personagens envolvidos na ação. Como afirma Jeff

28

«My work is based on the representation of the body. In the medium of photography, this

representation depends upon the constrution of expressive gestures which can function as emblems.»

(Wall,1984: 85).

29 (...) "Gesture" means a pose or action which projects its meaning as a conventionalized sign.»

(Wall,1984: 85).

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Wall, os personagens «não estão "a agir" no seu mundo mas apenas "'a ser' nele".»30

.

Por outras palavras, podemos afirmar que o sujeito "está" e "é" na ação que realiza. O

estado de absorção é considerado uma circunstância que origina esta singularidade de

"ser/estar" relativamente ao sujeito retratado. A absorção é, digamos assim, um modo

de estar no mundo ou utilizando o termo francês um oubli de soi (esquecimento de si),

que adquire uma preponderância enorme na atração do observador e

consequentemente na ação que decorre na imagem contemplada. Esta particularidade

aliada à absorção que implica um esquecimento de si por parte do sujeito no ato de

fazer, parece transferir para a imagem revelada que se contempla uma dimensão

sensorial trazida pelo gesto que vemos interrompido, mas que completamos na nossa

imaginação e ao qual juntamos outros atributos sensoriais a ele interligados

nomeadamente odores, sons e sabores. Reforçando esta afirmação cito Nan Goldin,

referindo-se ao seu trabalho:

Memória real, para a qual estas imagens disparam, é uma evocação da cor, cheiro, som e

presença física, a densidade e sabor da vida.31

(Goldin, 2005).

O retrato representa assim o espaço relacional, vivenciado, do mesmo modo que

retratar significa participar dessa experiência não só visual e fisicamente mas

sobretudo afetivamente. «A visão do fotógrafo não consiste em "ver" mas em estar lá.»

(Barthes,1980: 58).

Tal como afirmou Barthes a propósito do punctum: «Certos pormenores

poderiam "ferir-me". Se o não fazem, é certamente porque foram lá colocados

intencionalmente pelo fotógrafo.» (1980: 56). Devemo-nos entregar à imagem, a qual

aceitamos e intensificamos literalmente de olhos fechados para «deixar que o

pormenor suba sozinho à consciência afectiva.» (Barthes,1980: 64).

Roland Barthes, em A Câmara Clara, coloca o espectador num inevitável

diálogo com a sua interioridade através da contemplação da imagem fotográfica. Isto

prende-se com a referida relação de afeto que com ela mantemos. E em consequência,

o mesmo autor refere-se às relações que estabelecemos com a imagem como

‘studium’32

e ‘punctum’33

(Barthes,1980). Sendo que o último é uma perturbação do

30

«Not to be "acting out" his world, only "being in" it.» (Wall,1984: 38).

31 «Real memory, which these pictures trigger, is an invocation of the color, smell, sound, and physical

presence, the density and flavor of life.». 32

Segundo Barthes, o studium «(...)resulta de um afecto médio, quase de um treino» (Barthes,1980: 34).

É o «(...)que não significa, pelo menos imediatamente, "o estudo", mas a aplicação a uma coisa, o gosto

por alguém, uma espécie de investimento geral, empolgado, evidentemente, mas sem acuidade

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primeiro e é dessa perturbação que usufruirmos da imagem no valor máximo de

afetividade. Acrescentando ainda que esta perturbação é «uma espécie de fora-de-

campo subtil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que dá a ver(...)»

(Barthes,1980: 67).

O ato de contemplar é também ele uma ação não no exterior mas no interior.

Confrontarmo-nos com a impiedosa passagem do tempo que nos priva no presente de

amores e afetos de familiares e entes queridos, pode tocar-nos estranhamente. Mas

mais estranho ainda, será o choque se estamos perante uma imagem que nos revela no

passado, o futuro. O isto foi transforma-se numa espécie de atestado do fim, de

finitude, de morte vista por antecipação. A fotografia ocupa o espaço dessa angustiante

perda de consciência. Ela é um convite à descoberta de si e da sua identidade. Partindo

da sua privacidade tornada pública, o sujeito acolhe a sua verdade libertando-se numa

renovada imagem, retornando à sua essência pela descoberta de outros horizontes para

a sua felicidade.

Para finalizar, e retomando a citação de abertura deste texto, a fotografia e os

acontecimentos comuns formam um dueto operativo que partilha cumplicidades na

magia de tornar visível o invisível e afirmando a vida tal como se apresenta, sem

pretensões nem poses.

particular.» (Barthes,1980: 34) «O studium é uma espécie de educação(...) que me permite encontrar o

Operator(...)» (Barthes,1980: 36), e as suas intenções práticas.

33 Como afirmou Roland Barthes, o «punctum é também uma picada, pequeno orifício, pequena

mancha, pequeno corte e também lance de dados.» (Barthes,1980 :35). O punctum trespassa o

observador como se fosse apunhalado.

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CAPÍTULO III - Lugares-comuns: a Fotografia como lugar de afetos

Etimologicamente lugar-comum é uma «expressão derivada do latim locus

comunis. Nos tempos modernos, assume o sentido pejorativo de expressão trivial,

banal, que se repete frequentemente.» (Ceia, 2012). Segundo o mesmo autor, o

conceito lugar-comum utiliza-se «muitas vezes como sinónimo de outras expressões

de valor semântico semelhante: cliché, chavão, chapa, frase feita, estereótipo, slogan,

etc.» Porém, o autor refere também que o «lugar-comum era, na verdade, uma figura

fundamental da retórica e não se referia a qualquer vulgarização do discurso.».

Citando Roland Barthes e Jean-Louis Bouttes, Carlos Ceia refere ainda que

«“originariamente, os lugares são formas privadas de sentido, mas que servem para se

encontrar sentido. Existiam, portanto, ‘lugares-comuns’ (loci communes), puramente

formais (contrariamente ao sentido actual da palavra), ou seja, comuns a todos os

assuntos possíveis, fosse qual fosse a particularidade (...)"» (Ceia, 2012). Transpondo

para o trabalho criativo que se apresenta, Lugares-comuns parte inicialmente de uma

perspectiva também ela puramente formal, no sentido de se tratar objetivamente da

casa enquanto lugar-comum que dá corpo à vivência do sujeito. Ainda que pela

etimologia este seja um conceito muito associado à repetição e à banalidade, Lugares-

comuns revê-se principalmente na possibilidade de transpor a referida «vulgarização»

dos termos e atingir um «valor renovado» sugerido pelas ações/relações estabelecidas

entre pessoas e objetos em território privado do quotidiano doméstico familiar. Este

valor atribuído ao comummente conhecido é realçado e fundamentado pelo recurso à

imagem fotográfica que oferece ao sempre visto a possibilidade de adquirir sentidos

renovados.

Lugares-comuns desenvolve-se em ambiente privado e íntimo, concretamente

na casa dos meus pais. A minha família, reside na zona Oeste, numa cidade do centro

de Portugal Continental, a qual fotografei regularmente, aos fins-de-semana, durante

cerca de dezoito meses consecutivos. Digamos que se trata de um semanário do

quotidiano rotineiro pessoal que surgiu de uma combinação de elementos que se foram

constituindo naturalmente e progressivamente ao longo das semanas de trabalho. Esta

regularidade originou um numeroso conjunto de imagens que focam especialmente as

atividades domésticas realizadas pelos meus pais. No interior da casa, e

especificamente na cozinha, a minha família dá início ao ritual (considero-o assim)

que se manifesta pelas ações desenvolvidas nos preparativos de refeições. A lavagem

dos legumes e o seu corte; o descascar das batatas; o amanhar do peixe; o amassar do

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pão; a cozedura; os grelhados, enfim todas as atividades que se realizam na preparação

da comida, assim como o próprio ato de comer e convívio a elas associado. A

objetividade dos gestos domésticos diariamente experienciados, nomeadamente os

relacionados com a culinária, parece encerrar em si outros sentidos ao comummente

conhecido.

«O traço de banalização que é notório no estereótipo e no lugar-comum não se

aplica ao protótipo, que exige a condição de originalidade.» (Ceia, 2012). Esta

referência ao protótipo revaloriza uma vez mais a importância da Fotografia enquanto

dispositivo gerador de matrizes cuja existência se destina à (re)produção de sentidos

diferenciadores aos atos recorrentes ou rotineiros de que se ocupa o presente projeto.

Assim, contrariando o estatuto tendencialmente banal, Lugares-comuns ocupa ou

procura ocupar e conquistar um território de descoberta. O lugar (representado aqui

pela casa) é substituído por lugares, multiplicando assim a possibilidade de

renascerem novos sentidos com outros sabores do primeiro lugar (de origem).

A importância da gestualidade é crucial para a compreensão das relações

mantidas entre os membros desta família em particular. O quotidiano da minha família

é pautado por reuniões que se efetuam e que se mantêm em redor da culinária e da

mesa. Neste ritual, de algum modo, é assegurada e afirmada a união e cumplicidade

familiares. O quotidiano, a casa, a família e os gestos definem-se igualmente como

lugares que constituem o núcleo de relações que se destinam à imagem que revela o

trabalho criativo Lugares-comuns. A incidência sobre o gesto banal que se fixa pelo

uso do dispositivo fotográfico leva-me a Walter Benjamin e à sua afirmação, segundo

a qual «(...) o acto de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal

sabemos o que se sabe entre a mão e o metal ao efectuar esses gestos, para não falar de

como neles actua a nossa flutuação de humor.» (Banjamin,1936: 104). Acrescentando

ainda que «(...) a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus "mergulhos"

e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as

suas ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a

psicanálise ao inconsciente das pulsões.» (Benjamin,1936-39: 104-105). Efetivamente,

a câmara é o instrumento eficaz na captação do gesto, fixando-o. A imagem

fotográfica permite aceder e percecionar o que a experiência visual e gestual da

realidade quotidiana não consegue devido à automatização ou ao «hábito», utilizando

o termo de Walter Benjamin, inerente ao ato de fazer a que faço referência (cozinhar).

Neste sentido, a captação e fixação dos gestos quotidianos mediante o uso da câmara

oferecem ao tempo efémero outro tempo alargado, de «recolhimento por parte do

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observador» (Benjamin,1936-39: 109). Assim, o gesto rotineiro que se fixa através da

imagem adquire e possibilita a existência de novas relações que ultrapassam a sua

função primária e trazem à consciência o «inconsciente óptico». A expressão fugaz

captada e revelada pela imagem fotográfica é magicamente transformada de modo a

ser capaz de estabelecer novos diálogos com o observador que sente o tempo curto

alargar-se pela fixação da imagem provocada pelo dispositivo.

A série que apresento é constituída por um conjunto de oito fotografias a cores

que poderíamos distinguir, entre retratos e naturezas-mortas (Fig.4).

Fig.4 - série fotográfica Lugares-comuns.

Paula Nobre, Lugares-comuns, #1, 2011-12. Paula Nobre, Lugares-comuns, #2, 2011-12

Paula Nobre, Lugares-comuns, #3, 2011-12. Paula Nobre, Lugares-comuns, #4, 2011-12.

Paula Nobre, Lugares-comuns, #5, 2011-12. Paula Nobre, Lugares-comuns, #6, 2011-12.

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Paula Nobre, Lugares-comuns, #7, 2011-12. Paula Nobre, Lugares-comuns, #8, 2011-12.

Jean-François Chevrier refere-se ao retrato, a propósito da obra de Patrick

Faigenbaum, como «a expressão» que «designa a energia e firmeza do traço»

contendo «igualmente a ideia de uma interdependência entre figura e lugar, além de

induzir uma concepção plástica (escultural) do corpo no espaço.» (Chevrier,2007: 61).

Retratar pressupõe certamente captar esta mesma energia gestual que se fixa no lugar

onde a figura existe, isto é, na casa. Ou ainda, pôr em evidência o traço (entendido

como gesto) que a figura concebe no espaço por ela habitado. Consequentemente, o

retrato resulta num conjunto de imagens que figura não só o corpo mas também a sua

interação/relação com os elementos envolventes (pessoas, objetos, entre outros.).

Na presente dissertação, o retrato de família desenvolve-se em torno da

intimidade doméstica quotidiana onde prevalecem as atividades relativas à culinária. O

enquadramento umas vezes mais afastado, outras mais aproximado decorre de um

movimento que reforça mais ou menos o caráter íntimo que caracteriza o ambiente que

dá lugar à série de acontecimentos. A privacidade do gesto banal rodeia-se de

penumbras ou de sombras marcadamente negras que contrastam com a luz oferecida

ao dispositivo e à qual se submete no ato de captação e fixação do mesmo. Esta

submissão à luz ambiente pode originar imagens com algum arrastamento e

inevitavelmente algum desfoque determinado pela exigência do próprio dispositivo

fotográfico. Por outras palavras, o recurso a uma maior abertura do diafragma é um

fator determinante e incontornável na captação da fugacidade do gesto. Daí a perda de

profundidade de campo de um espaço (lugar) que se quer manter sem traços definidos.

O que se define é apenas e só o espaço/tempo relativo ao gesto que se elabora. O foco

apresenta ou sugere a existência de um ato que se faz ou de um ato que se fez ou em

vias de se fazer. Esta referência ao ato/ação presente e passado insere-se ainda no

momento da sua captação e diz respeito à ação propriamente dita que requer um

determinado processo de execução. A imagem fotográfica que resulta desta

captação/fixação significará sempre uma relação com o passado e seguramente com o

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futuro, mas este momento contemplativo implica outro tipo de relações que não se

verificam no momento da captação.

Várias são as ações em curso nomeadamente, os legumes que cozem para a

sopa, o refogado que se adianta, os pratos que se distribuem na mesa, entre outras. Na

azáfama do ato de cozinhar, são inúmeras as operações que se desenvolvem em

simultâneo e ainda outras fora do contexto da culinária que se intrometem no percurso.

O telefone que toca, a visita da vizinha ou de um familiar, o programa de televisão ou

de rádio, a conversa entre os meus pais, etc. A velocidade e o número de ocorrências

físico/motoras competem com outro tipo de ocorrências sensitivas. No ambiente

instala-se um misto vasto de cores, formas, sons e odores que sensibilizam os sentidos.

De repente, os cheiros tornam-se mais intensos ao ponto de estimularem o apetite.

Encontro-me no centro das tentações sensitivas onde o corpo se transforma numa rede

de sensações visuais, olfativas, auditivas e gustativas. A experiência tátil fica a cargo

da minha mãe e do meu pai que juntos elaboram e concretizam o ritual. E é

precisamente esta experiência tátil carregada de sabores e de todos os outros valores

sensoriais que quero trazer às imagens de Lugares-comuns.

As imagens caracteristicamente denominadas naturezas-mortas, contrariamente

à sua natureza "morta", significam vida porque elas resultam do trabalho manual

referente ao mesmo ritual. O peixe no lava-loiças aguarda nova intervenção (Fig.5).

As couves largadas no alguidar não tardam a ter outro destino, etc.

Fig.5 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #2, 2011-12.

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A natureza-morta funciona como uma espécie de pausa do processo/ação, que na

realidade não parou. Porém, não deixa de ser uma pausa que oferece uma observação

mais aproximada (quase de pormenor, sem o ser de fato) e mais prolongada, dos

elementos que compõem o ritual. Ainda assim, esta natureza "morta" é interrompida

pela entrada de mãos (Fig.6) ou pelo alargamento dos planos provocado pelo aumento

da distância da câmara face ao objeto fotografado abrindo assim espaço à presença das

pessoas (Fig.7 e Fig.8). Quer as naturezas-mortas quer os retratos propriamente ditos

funcionam como uma unidade, ou melhor dizendo, como um retrato. Não se trata de

universos separados, trata-se antes de universos convergentes porque se equivalem e

igualam no seu objetivo. Ambos se referem a uma mesma relação e a um mesmo

lugar. É precisamente o jogo de relações estabelecidas neste lugar (que é a casa de

família) que justifica e dá existência ao meu retrato de família.

Fig.6 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #8, 2011-12.

Com o intuito de captar a efemeridade dos gestos elementares do quotidiano

doméstico recorro ao uso da Fotografia que tem o poder de fixar, congelar, resgatar e

acima tudo imortalizar o instante. Seguramente, a fixação do instante/gesto e sua

transladação para o objeto fotográfico altera, enriquece e torna possível o que na

realidade é impossível. A morte causada pelo resgate da vida, retorna à vida com

contornos de luz e sombra não detetados antes. A tradução da realidade quotidiana em

objeto (fotografia) transforma a banalidade do gesto e fá-lo ecoar o nunca visto. O

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ambiente doméstico rotineiro reservado e íntimo ressurge como algo particularmente

renovado e inovador. A cozinha dos meus pais é o cenário de uma performance

artística sendo que o público é obviamente a minha própria família destinada a

saborear o resultado desta ação (Fig.7).

Fig.7 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #1, 2011-12.

O tempo fugaz e imperceptível passa a não ter tempo limitado graças à

imagem, tornando-se intemporal e sujeito ao ato contemplativo que permite ao

observador ir ao encontro de novas relações com o banalmente conhecido. O fato de

acedermos à imagem revelada do ambiente doméstico íntimo assinala o poder da

materialização da vida experienciada num objeto. Numa espécie de vida prolongada, a

imagem fotográfica expande essa experiência vivenciada para além do lugar onde

decorreu a primeira ação, e desloca-a para outro universo que já diz respeito à

intimidade de cada observador. Nesta medida, a intimidade que é minha, passa a ser

intimidade do outro por intermédio da imagem fotográfica. O quotidiano contemplado

por meio da sua revelação numa imagem fixa permite novas perceções e sensações

que procuram desencadear renovados valores e sentidos no sempre visto. Lugares-

comuns pretende retardar o tempo curto das ações ocorridas, aspirando uma

observação mais prolongada das mesmas e aspirando que esse tempo seja

suficientemente capaz de intervir na interioridade do observador contemplativo. Não

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se pretende que esta série de imagens estruture um discurso narrativo, mas sim que

estimule exatamente, e por oposição, um discurso livre onde o observador possa fazer

associações, atribuir valores e sentidos que são os da sua própria intimidade e

experiência pessoais, recolocando-o em diálogo com a sua interioridade sensorial e

sensitiva.

Escusamo-nos a questionar aquilo que por hábito fazemos. As chamadas

«maneiras de fazer» que se destacam nesta série de imagens são raramente sujeitas à

dúvida, ou seja, são gestos usados como uma espécie de linguagem que se mantém

inalterada ao longo de gerações. As práticas gestuais consolidadas na minha família

reconduzem-me ao passado e às memórias de outras experiências de tempo. Este

trabalho é, diria assim, uma documentação destas mesmas experiências que se vão

mantendo, quase inalteradas, ao longo de décadas e gerações. São gestos herdados,

discretamente adaptados, mas na sua essência fiéis ao seu sentido e valor primordiais.

Funcionam como arquétipos do comportamento humano relativo à subsistência e que

o tempo não apaga. A imagem enquanto documento deste tipo de gestos simples,

atesta a eficácia dos mesmos na consolidação da vida familiar e provoca um certo

distanciamento necessário a uma melhor perceção do mundo que nos rodeia

quotidianamente. Nesta medida, a série fotográfica Lugares-comuns persegue a

eventualidade de encontrar a existência de um outro lugar, através da observação das

ações rotineiramente vividas mediadas pela imagem. Por outras palavras e

resumidamente, o lugar que origina a imagem e que se define pelo meu retrato de

família, convida a existência de outros lugares que já não lhe pertencem mas que,

mesmo assim, fazem referência a um determinado lugar que apela aos afetos de cada

observador.

Independentemente da circunstância, constatamos pela observação das

imagens, que os meus pais se encontram absorvidos nas ações que realizam. Esta

atitude tão comum ao ato de fazer indicia, não apenas a anulação da minha presença

enquanto fotógrafa que capta os instantes, ou se quisermos do observador, mas

particularmente uma entrega à ação (ainda que possamos admitir acontecer de forma

inconsciente, ou melhor ainda, de forma irrefletida). Esta suposta entrega à ação

rotineira tão automatizada quanto apaixonada e dedicada (assim interpreto a atitude

dos meus pais) deixa espaço para outras reflexões ou estímulos provocados pelos

odores trazidos do gesto. Enquanto a mão intervém na matéria e nos elementos, a

mente liberta-se para encontrar lugar noutras atmosferas sensitivas. A previsibilidade

dos gestos traçados no ato de cozinhar dá lugar a momentos de prazer antecipados e

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consumados no ato de comer. Estes gestos com cheiro e sabor apelam ao apuramento

dos sentidos, funcionando como despertadores sensitivos que estimulam e provocam a

nossa consciência. Os olhares dos retratados convergem para a ação e a relação de

intimidade entre eles (os meus pais) é reforçada pela cumplicidade na partilha das

tarefas diárias e seguramente pelos momentos durante as refeições. Estes são os

tempos que dão razão a toda a azáfama anterior. O tempo precedente anuncia relações

que atingem o seu valor máximo na refeição: saborear os alimentos enquanto se

trocam palavras e onde o espaço se torna convívio. A minha família reforça a cada

ritual a razão da sua existência que reside na partilha constante do seu íntimo universo

afetivo, estendendo-o a familiares e amigos. O território de afetos evocado pela

relação de cumplicidade que mantêm entre si e com os outros, sobressai a partir da sua

interioridade que projeta valores humanos sobre o meio físico envolvente e, sobretudo,

transferem uma energia acolhedora que molda o ambiente tornado lugar (Fig.8).

Fig.8 - Paula Nobre, Lugares-comuns, #7, 2011-12.

O retrato de família a que se refere Lugares-comuns dá expressão ao gesto

ritualizado que cria o ambiente íntimo afetivo. O ambiente pressupõe portanto a

construção de um lugar. Analogamente, os lugares e os tempos que a Fotografia fixou

condensam-se e constituem o documento que quer afirmar a existência de um outro

lugar.

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Os lugares pertencentes ao real, materializados pelo registo direto da câmara,

oferecem a possibilidade de nos interrogarmos através da sua contemplação. A

imagem fotográfica condensa lugares distantes do passado num outro lugar capturado

e fixado num objeto. Esta perturbação temporal causada pelo dispositivo fotográfico

provoca não só familiaridade como estranheza porque conseguimos reconhecer formas

e expressões mas, simultaneamente, somos confrontados com um mundo

desconhecido visto à distância, e ao qual não acedemos na experiência direta,

surpreendendo-nos com a sua aparição. Efetivamente o desfasamento temporal

inerente à imagem fotográfica favorece uma confrontação entre presente e passado

que dificilmente encontra lugar fixo. A transitoriedade entre ambos alimenta uma

relação imparável de viagens no tempo que estimulam a consciência de sentidos e

valores que nos afetam afetivamente e que culminam numa desmaterialização do

próprio objeto fotográfico. Quer dizer, a materialização dos gestos fugidios do

quotidiano familiar em objeto, resulta na sua desmaterialização. Ironicamente aquilo

que deixou de ser luz volta a sê-lo, sustentado pela relação contemplativa que

estabelecemos com a imagem. Por outras palavras, mantemos com a imagem revelada

relações afetivas que proporcionam a existência de um lugar, ainda que suspenso entre

dois tempos - presente e passado - mas com projeções no futuro. A experiência e

relação oferecidas pela imagem a cada ato contemplativo são sempre uma retoma de

sensações afetivas que mantêm presente um tempo passado no futuro. A Fotografia é

assim entendida como um lugar de afetos. Como afirmou Roland Barthes, através da

contemplação da imagem deixamos «que o pormenor suba sozinho à consciência

afectiva.» (Barthes;1980: 64). Lugares-comuns refere essa possibilidade de lugar

construído através deste retrato de família.

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CONCLUSÃO

A contextualização das palavras-chave do trabalho Lugares-comuns,

designadamente ‘quotidiano’, ‘casa’, ‘família’ e ‘fotografia’ foi fundamental para

compreender a relação que pretendi estabelecer com a realidade enquanto espaço

vivenciado que origina a construção de um lugar.

Inserido num contexto socialmente estruturado e convencionado, o sujeito é

entendido como um elemento ativo, autónomo e livre para estabelecer relações com o

mundo que o rodeia. O quotidiano é uma construção constituída por articulações

produzidas pelo sujeito na sua experiência de vida diária. A apropriação e

manipulação que determinam e diferenciam «maneiras de fazer» implicam a existência

única de cada indivíduo. Ao considerar a experiência quotidiana um espaço de livre

escolha, estou a atribuir ao sujeito o poder e a responsabilidade de optar pertencer a

um lugar que se adequa às suas necessidades e prazeres (afetos) assim como do seu

grupo familiar do qual faz parte.

Seguramente, interligamos com facilidade os três conceitos ‘quotidiano’, ‘casa’

e ‘família’ mas importa salientar como se constituem numa noção de lugar. Mais do

que uma fixação geográfica, lugar significa vivência e experiência partilhada num

espaço determinado. Razão pela qual Lugares-comuns se desenvolve inserido num

ambiente, justamente porque este determina a existência do lugar que quis definir,

mais concretamente um ambiente doméstico caracteristicamente rotineiro que tem

existência concreta na casa. Neste sentido, quer o quotidiano, quer a casa, quer a

família ocupam grande parte deste território íntimo. Assim, e na sequência desta

afirmação, lugar implica uma construção que tem origem nas relações que

estabelecemos com o referido território no qual se desenvolvem afetos em

consonância com a livre articulação e prazeres do sujeito. Aquilo que o sujeito produz

na sua intimidade quotidiana esconde saberes e sabores inacessíveis ao exterior. A

casa é o refúgio da simplicidade dos gestos banais íntimos que transportam estes

saberes. São precisamente as ações quotidianas que indicam a existência do saber e do

sabor relativo a determinado lugar e grupo familiar. No entanto, são saberes

condicionados à expressão íntima.

Aos gestos rotineiros atribuí valores e sentidos que relançaram o banalmente

conhecido para o imprevisível universo de descoberta sensitiva e sensorial, auxiliada

pela memória de experiências marcantes da minha própria existência, as quais quis

partilhar. Procurei facultar particularidades associadas às práticas domésticas (da

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culinária) que pudessem contribuir para uma valorização do gesto comum enquanto

manifestação de afeto que significasse um ato de consciencialização do sujeito.

Ainda que a existência do lugar seja também ela física, esta engrandece por

oposição, na sua ausência. Na verdade, é a imaterialização do lugar que faculta uma

expansão desse mesmo lugar. Quer dizer, é no ato de contemplar a realidade

quotidiana materializada em objecto que é a imagem fotográfica, que o lugar se forma

e se expande na nossa sensibilidade afetiva. A fotografia funciona portanto como o

lugar de afetos, no sentido de a partir dela acedermos a sensações e a sentimentos que

acionam a nossa consciência afetiva. Este acontecimento deve-se precisamente à

contemplação da ação do sujeito nas práticas domésticas. Como afirmou Edward T.

Hall: «Para além da nossa linguagem verbal, comunicamos constantemente os nossos

verdadeiros sentimentos através da linguagem do comportamento.» (Hall,1959: 11).

O quotidiano entende-se assim como o lugar que dá significado às ações do

sujeito. Inserido na casa e no núcleo familiar, esse lugar converge para a intimidade do

grupo social que se move livremente e em função das suas necessidades afetivas. A

relação de afeto entre membros da mesma família ocasiona a existência de sentidos

que ultrapassam o gesto comum. Com base na gestualidade primária ou de

subsistência familiar, inevitavelmente enraizada na sociedade e carregada de saberes e

sabores intemporais, podemos concluir que esta se baseia em grande parte na

afetividade e no prazer que o sujeito partilha com o seu grupo familiar e de amigos.

Gerado na privacidade da casa de família, o quotidiano doméstico define-se como a

manifestação de afeto mais discreta porque rotineira aos nossos olhos. Porém, esta

aparente evidência suscita novas interpretações nomeadamente as que se referem à

ação propriamente dita. O fato de agirmos em conformidade com as nossas

necessidades não significa que estejamos sempre a obedecer a impulsos afetivos. Mas

se fizermos a mesma consideração relativamente às relações que estão na base da

união familiar, designadamente interesses e laços comuns, certamente se confirma o

sentido desta afirmação. A dependência consequente do grupo familiar leva-o a

comportar-se de acordo com a rede de afetos que o une. E nessa medida, podemos

considerar a sua ação numa vertente mais afetiva e menos mecanizada ou maquinal.

Lugares-comuns reflete sobre essa possibilidade reportando para a intimidade

doméstica da minha própria família, a qual retrata e personifica precisamente esta

atitude. O ritual associado à culinária é comprovadamente uma manifestação de afeto

da intimidade que se vive no meu contexto familiar. O ato de habitar em conjugação

com os gestos e ações relativas à cozinha, constituem incisivamente esta afetividade

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que se quer manter viva através da partilha. A fotografia entende-se como o lugar que

abre essa possibilidade porque é ela que materializa este lugar de afetos. Rever e

redescobrir a minha própria realidade quotidiana na imagem, estimulando e

sensibilizando a minha afetividade conduz-me à necessidade de a partilhar com o

exterior. Ainda que Lugares-comuns "fale" na língua da intimidade pessoal, prefere

estabelecer relações que se estendam fora dos limites privados porque acredita no

diálogo construtivo entre o dentro e o fora para assim expandir sentidos e sabores que

signifiquem estímulo para outrem. O traço privado da minha experiência pessoal

(privado), aspira a ser um traço da experiência social (público). O retrato da minha

família significa também essa experiência de ser no outro, fora do contexto que o

originou. Consequentemente, a imagem fotográfica "falará" sempre sobre a intimidade

que já não é a minha. Os afetos já não serão certamente os meus mas os de alguém.

Esse é o lugar que a fotografia ocupa, isto é, o de sensibilizar afetivamente o

observador pela contemplação de simples prazeres da minha experiência pessoal e

familiar por intermédio da imagem. E nessa medida, a fotografia constituir-se-á um

lugar destinado a outros lugares-comuns.

A construção da noção de lugar resulta sempre de relações mantidas entre

pares supostamente opostos. Diálogos recíprocos entre o exterior e o interior ou entre

o material e o imaterial, marcam, elaboram e cooperam de forma indispensável para a

existência do lugar. A Fotografia funciona como o vestígio dessa relação recíproca

sendo que também ela opera entre os mesmos pares, designadamente entre o exterior

(resgate do real) e o interior (absorção da luz), e entre o material (objeto fotográfico) e

o imaterial (ato contemplativo)34

.

Na sequência do trabalho Lugares-comuns e procurando dar continuidade a

pressupostos por ele introduzidos, designadamente a atribuição de valores humanos

(afetos) ao que experienciamos quotidianamente, neste caso concreto à casa e aos

gestos/ações que estabelecemos com a família que os tornam um lugar, especialmente

na sua relação contemplativa pela imagem fotográfica, continuarei a desenvolver e a

aprofundar esta noção afetiva associada à imagem a partir de ambientes que não sejam

necessariamente da minha intimidade.

34

«(...) tornamo-nos conscientes da função de um olhar que nada tem a fazer, de um olhar que não olha

mais para um objecto particular e sim olha o mundo.» (Bachelard,1957: 213)

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