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Lugar Comum Estudos de mídia, cultura e democracia Número 44 set 2014 - abr 2015

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SUMÁRIO UNIVERSIDADE NÔMADE O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau? 5 Bruno Cava Podemos, América do Sul e república plurinacional 15 Salvador SchavelzonPodemos além Podemos, um poder constituinte na Europa 40 Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua 61 Márcio Tascheto da SilvaARTE, MÍDIA E CULTURA O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini 78Nicolás Fernández Muriano Benjamin e a percepção coletiva 104 Maurizio LazzaratoNA VEGAÇÕES Proteção social e trabalho no Brasil em tempos de capitalismo cognitivo 128Cecília Paiva Neto Cavalcanti Um, múltiplo, multiplicidade (s) 141 Alain Badiou Implementação do Conselho de Igualdade Racial em Teófilo Otoni 156 Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma 170 democracia por virGermano Nogueira PradoRESENHAS Elogio do intempestivo, sobre “Filosofia radical e utopia” 181(Andytias Soares de Matias) Murilo Duarte Costa Correa A terceira estética de Glauber Rocha, sobre “KorpoBraz” 187 (Giuseppe Cocco) Bruno Cava

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Lugar Comum Estudos de mídia, cultura e democracia Número 44 set 2014 - abr 2015

Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade. Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha Escola de Serviço Social, sala 33 22290-240 Rio de Janeiro, RJ EQUIPE EDITORIAL Alexandre do Nascimento, Alexandre Fabiano Mendes, Barbara Szaniecki, Bruno Cava, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Clarissa Naback, Fabricio Toledo, Giuseppe Cocco, Leonora Corsini, Marcelo Castañeda, Priscila Pedrosa Prisco, Silvio Pedrosa e Talita Tibola. DESIGN Barbara Szaniecki CONSELHO EDITORIAL Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Gerardo Silva, Rodrigo Bertame, Sindia Santos e Vladimir Santafé. Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria, Desirée Tibola – Porto Alegre, Homero Santiago – São Paulo, Márcio Taschetto – Passo Fundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Marco Ribeiro – Porto Alegre, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus, Joviano Mayer – Belo Horizonte, Fabricio Ramos – Salvador, Sérgio Prado Pecci – São Paulo, Sandra Mara Ortegosa – São Paulo, Salvador Schavelzon – São Paulo, Mario Joaquim Neto - Salvador. Outros países: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Ariel Pennisi – Argentina, Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Espanha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho – Bolívia, Raúl Sánchez Cedillo – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile, Alain Bertho – França, Ariel Pennisi – Argentina, Thierry Badouin – França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França. Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro: UFRJ, n. 44 – set 2014 - abr 2015 Quadrimestral Irregular (2002/2007) ISSN – 1415-8604 1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura – Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação. LABTeC/ESS.

CDD 302.23 306.2

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SUMÁRIO

UNIVERSIDADE NÔMADE

O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau? 5 Bruno Cava

Podemos, América do Sul e república plurinacional 15 Salvador Schavelzon Podemos além Podemos, um poder constituinte na Europa 40 Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua 61

Márcio Tascheto da Silva ARTE, MÍDIA E CULTURA

O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini 78 Nicolás Fernández Muriano

Benjamin e a percepção coletiva 104 Maurizio Lazzarato

NAVEGAÇÕES

Proteção social e trabalho no Brasil em tempos de capitalismo cognitivo 128 Cecília Paiva Neto Cavalcanti

Um, múltiplo, multiplicidade (s) 141

Alain Badiou

Implementação do Conselho de Igualdade Racial em Teófilo Otoni 156 Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma 170 democracia por vir Germano Nogueira Prado

RESENHAS

Elogio do intempestivo, sobre “Filosofia radical e utopia” 181 (Andytias Soares de Matias) Murilo Duarte Costa Correa

A terceira estética de Glauber Rocha, sobre “KorpoBraz” 187 (Giuseppe Cocco) Bruno Cava

Universidade Nômade

O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau?

Bruno Cava A diferença do populismo para um discurso liberal clássico está em que, para o

primeiro, o povo é algo ainda a construir-se, enquanto para os liberais o povo já está

dado. No primeiro caso, a construção do povo implica a construção de uma nova

representação. No segundo, cabe à representação apenas contemplar uma sociedade que

lhe preexiste, já formada.

No populismo, a história da construção de um povo passa pela divisão entre um

“nós” e um “eles”. Denuncia-se a falsa universalidade da ordem representativa

existente, que não mais nos representa, para a seguir reclamar uma nova universalidade.

Nas revoluções burguesas, foi a luta contra o ancien régime, a partir do que seria

possível libertar-se da aristocracia parasitária para formar a nação e a cidadania

burguesa, doravante considerada universal. Nas lutas anticoloniais, se lutava contra a

metrópole e o imperialismo, em nome da unidade da libertação nacional. Com o filósofo

Antonio Gramsci, a construção do povo reúne intelectuais, operários e camponeses

numa consciência coletiva nacional-popular, que se liberta dos burgueses.

Já para os tecnocratas, mais ligados ao discurso liberal clássico, não haveria

necessidade de construir povo algum: basta escolher as pessoas certas, adotar “ideias

que funcionam” e implantar a melhor gestão para cada situação específica.

A construção do nacional-popular

No Brasil, as ideias do nacional-popular estiveram presentes na versão

desenvolvimentista, em que a modernização nacional se atrela à emancipação popular

mediante ações mobilizadoras, pedagógicas e organizativas. A conquista do poder não

poderia ocorrer, simplesmente, com a tomada do estado, devendo passar por um

laborioso alastramento cultural e ideológico de formação nacional, desde as bases. O

papel dos intelectuais subdesenvolvidos, nesse projeto, consiste em liderar o processo

de esclarecimento das massas, segundo um programa emancipador. Evita-se, dessa

maneira, cair nalgum determinismo econômico segundo o qual bastaria industrializar o

país para formar um proletariado consciente. Sem a tarefa militante de emancipação

popular, a modernização invariavelmente produzirá ainda mais dominação de classe.

Cardês
Cardês
O que é um "intelectualsubdesenvolvido" ?
Cardês

PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

A teoria política mais próxima dessa promessa nacional-popular, ainda que

elaborada no contexto das sociedades industrializadas das economias centrais, é a teoria

gramsciana. Para Gramsci, escrevendo na primeira metade do século passado, o

exercício do poder no capitalismo não se sustenta somente com coerção e medo. É

preciso, sobretudo, fabricar uma legitimidade difusa que, mediante inúmeras

instituições coletivas culturais, colha continuamente o consentimento da maioria. A

esfera representativa em seu conjunto, formada por governos, partidos e sindicatos

pode, assim, operar como se representasse o “interesse geral”, preenchendo fissuras e

estancando os desvios.

A ideologia, aí, não aparece como um sistema de engodo sistemático. Como se a

ideologia fosse um véu aposto à realidade, um cortinado místico separando as pessoas

da verdade sobre as reais relações de poder. Mais do que isso, a ideologia tem um

caráter material: determina os comportamentos e se infiltra nos hábitos. O capitalismo,

em essência, não engana alguém, e são ingênuas as perspectivas de que poderia perder

força diante da denúncia de suas mistificações. As pessoas já sabem que o capitalismo é

um complexo de exploração que gera, numa ponta, luxo e desperdício e, na outra,

miséria e violência.

Hegemonia e contra-hegemonia

É isto que Gramsci chama de hegemonia: a forma normal de política em

sociedades desenvolvidas e complexas, onde vigoram democracias representativas. É

uma operação cultural de grande escala, antes que unidade forçada pelo estado,

determinando a existência de um grupo hegemônico que se coloca como portador do

“interesse geral”. Em termos de hegemonia, o xis da questão não é perguntar como o

capitalismo funciona, mas como nós próprios fazemos ele funcionar. O capitalismo tem

uma evidência e uma querência, impregnadas, em que estamos implicados ao elaborar o

nosso dia a dia, nossos planos e nós mesmos.

O confronto contra-hegemônico, portanto, passa por um enfrentamento

igualmente no terreno ideológico e cultural, com a gradual infiltração no sistema e

ocupação de posições-chave — o que o teórico marxista chamou guerra de posição. É o

esforço de rearticular as identidades políticas para romper a hegemonia e afirmar duas

posições antagônicas, nós (o povo) x eles (a burguesia). Quando bem sucedido, isto

significa construir o povo noutros termos, segundo uma consciência nacional-popular

Bruno Cava

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marcada pela identidade de classe operária e camponesa, a que corresponde a

representação socialista.

Laclau e o significante vazio

Ernesto Laclau, o pós-marxista argentino, se distancia de Gramsci ao se afastar

da ideia que a contra-hegemonia configura uma luta de classe. Escrevendo no final do

século 20, para Laclau vivemos uma realidade pós-ideológica, em que a sociedade não

pode mais ser interpretada no esquema dualista das classes. A luta de classe é somente

um aspecto, entre outros. A luta de contra-hegemonia se deslocaria, assim, para os

novos movimentos que articulam identidades políticas variadas, envolvendo também

lutas raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, imigrantes.

Em momentos de crise da representação, a estrutura vigente de sentido perde

consistência. Como se, devido à instabilidade, se abrisse uma brecha no bloco

hegemônico, o que Laclau chama de significante vazio. É um lugar estrutural, em que os

sentidos passam a flutuar ao sabor dos múltiplos atritos provocados pela contra-

hegemonia. A luta culmina seja com a colmatação das fissuras, numa reforma social e

do estado que recupera as demandas, coopta os intelectuais e restaura a ordem existente

(em termos gramscianos, a revolução passiva); seja com a ocupação do significante

vazio por um grupo capaz de afirmar uma nova universalidade, uma nova ordem do

discurso atravessada pela totalidade social até então subrepresentada.

Como o leitor vê, Laclau situa o discurso no centro da atividade política. A

contra-hegemonia laclauliana envolve uma redefinição discursiva da universalidade. A

autonomia do político se dá num embate que, em última instância, se resolve em termos

de linguagem. A força só consegue consolidar-se ao rearticular a vontade coletiva num

sentido social global. Tal cristalização de identidades políticas até então

subrepresentadas determina um novo bloco histórico, numa unidade simultaneamente

cultural e política.

Populismo 2.0 do Podemos

Iñigo Errejón, intelectual espanhol do novo partido Podemos, tomou Laclau

como referência em sua tese de 650 páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e

do Movimento ao socialismo (MAS) na Bolívia. O autor explica como, depois do ciclo

Cardês

PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MAS

conseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas

sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado

histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde

ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do

século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do

próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o

pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente,

a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras

identidades políticas como sujeitos ativos do processo.

O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da

Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci,

Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a

partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em

sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante

vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada

conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou

o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de

restauração aos moldes da revolução passiva.

O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo

na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto

implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da

sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela

repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de

Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova

universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto

significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa

consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado

e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.

A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus

líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças

de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder

descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma

Bruno Cava

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mudança qualitativa e douradoura no horizonte de sentido, integrando as diversas

demandas, desejos e sujeitos políticos para uma nova universalidade concreta.

A crítica ao populismo

Uma primeira crítica das teorias da hegemonia, de Gramsci a Iglesias, está no

fato que ela confere demasiada importância aos intelectuais. Evidentemente, intelectual,

aqui, não se confunde com acadêmico. Em gramscês, intelectual é qualquer um que

produza discurso. Em sociedades do capitalismo tardio, isto significa líderes culturais,

músicos, celebridades, âncoras de TV, enfim, a produção de mídia em geral. Nas teorias

pós-gramscianas, a comunicação assume uma centralidade grande.

No Brasil, tal tendência pode ser constatada com a profusão de análises que

sobrevalorizam o papel da “grande mídia” na articulação da vontade coletiva. Não

admira que, segundo o diagnóstico dessa linha hegemonista, um dos maiores obstáculos

para a contra-hegemonia consista na impermeabilidade de rádio e TV em relação a

identidades políticas subalternas. O “significante vazio” restaria bloqueado.

Para Gramsci, os intelectuais alinhados com forças historicamente emergentes

devem mergulhar na atividade militante cotidiana, em participação orgânica na vida

prática como construtor, organizador, convencedor. Mais do que fundir-se ao povo, ele

estaria trabalhando, assim, para a construção da consciência nacional-popular, que

aspira a tornar-se povo.

No Brasil, no século 20, multiplicaram-se os intelectuais, geralmente formados

nas camadas médias, que se atribuíram a missão histórica de conscientizar (e, pelo

menos num primeiro momento, liderar) os proletários. O que vai desde a pedagogia do

oprimido de Freire ou o teatro de arena de Boal, dedicados à ativação de classe desde

dentro, até as lideranças de movimentos sociais, como Guilherme Boulos, do MTST.

No “populismo 2.0″ de um Podemos, a leitura é outra. Mudou a composição de

classe na base dos movimentos, de maneira que não faz mais sentido organizar no

esquema dialético cúpulas/bases. A própria ideia de “trabalho de base” se tornou

anacrônica, em termos de maioria social. A diversificação dos espaços sociais, a

mobilidade das pessoas entre eles e a velocidade comunicativa impõem outra maneira

de abrir brechas no bloco hegemônico. Daí a concentração nem tanto na capacidade

intelectual propositiva, de sedução e síntese, quanto na vocalização transversal de

amplos setores dispersos e autônomos em seu próprio direito. Desaparece a figura do

Cardês
Cardês

PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

intelectual orgânico junto às massas, de cariz gramsciano: Iglesias se coloca no cenário

midiático como intelectual pós-orgânico, ou melhor, inorgânico.

Multidão x hegemonia

A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste

em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na

multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de

unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração

estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um

deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não

precisa de significantes.

A crise é gerada pela convergência de plenitudes constituídas por singularidades,

do que por alguma lacuna entre identidades e a totalidade. Muda a perspectiva. O 15-M,

nesse sentido, é antes uma experiência de viver o “sim”, uma experimentação de

cooperação, rede e amor à potência comum, do que um mero deslocamento de

significados. O trabalho da multidão não está em consolidar uma “universalidade

concreta” mediante a sutura dos sentidos, mas multiplicar pontos de atrito numa

variedade de táticas, visando ao aprofundamento das conquistas.

Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja

moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-

representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou

não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são

singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de

unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência

está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão

é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da

multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são

imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos,

capacidades criadoras de cidade.

Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se

Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de

identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo

determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na

Bruno Cava

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colaboração transversal e, na esteira de Deleuze e Guattari, na amálgama entre humano

e não-humano, no plano maquínico. Não é que a classe tenha se dissolvido numa

diversidade de “novos movimentos”, nos termos de Laclau;; em realidade, a classe se

reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse

terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora.

A crítica do populismo 2.0

Com o foco na teoria do discurso, o “populismo 2.0″ (Errejón) perde de vista

todo o substrato com que funciona o próprio capitalismo. Com as mutações de que

falam Negri e Hardt, desaparece qualquer possível divisão entre o terreno material das

lutas em que se constituem os sujeitos, e o terreno cultural e ideológico em que são

articuladas as vontades coletivas. Não tanto que cultura e ideologia sejam super-

estrutura de relações econômicas, — o que seria marxismo vulgar, — mas sim que estão

imediatamente atravessadas pelo plano pré-discursivo ou pré-linguístico, o plano

maquínico do desejo.

As experiências de luta dos novos movimentos e de ciclos insurgentes — na

Bolívia ou na Espanha — produzem transformações no nível da sensibilidade, uma

nova maneira de sentir a democracia e a ação comum. Os afetos gerados pelos bons

encontros são cristalizados em hábitos, mesclando-se com os comportamentos mais

“naturalizados”. Se o capitalismo tem uma evidência e uma querência, tais construções

político-afetivas têm o condão de produzir outras evidências e outras querências.

A mudança real não pode ser totalizada em ideologia abrangente que substitui a

velha ordem e não procede desta forma, ficando no plano linguístico. Com prioridade

ontológica, a mudança real precisa ser metabolizada pelos próprios movimentos

minoritários na construção de novos hábitos, afetos e agenciamentos maquínicos. Isto

não é privilegiar alguma micropolítica localista romantizada, mas praticar movimentos

expansivos com capacidade propagadora de alta intensidade, atravessando fronteiras,

identidades, espaços delimitados. Afinal, as minorias são todo mundo.

Muitas transformações, da segunda metade do século passado em diante, dessa

maneira, não passam pela reforma da representação, nem pela ocupação de algum

significante vazio, de resto um esquematismo a-histórico igualmente vazio. O leitor

veja, por exemplo, a revolução sexual e das drogas dos anos 1960, ou então uma série

de mutações de sensibilidade que, por vezes, são entendidas impropriamente como

PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

“evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos

cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e

reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos,

inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.

No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de

um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo

coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício

daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de

comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a

circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O

máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos

desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de

um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à

maquinaria da telenovela e do futebol.

Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”,

mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o

jogo no Galvão, por exemplo).

O Podemos na berlinda?

Disso tudo, não deveríamos cair num esquematismo precipitado. Como se a

descrição do MAS a partir do hegemonismo laclauliano, ou a autoelaboração do

Podemos por seus professores-ideólogos, fosse determinante para apreender o sentido

histórico e material daqueles. É preciso atentar que existe um lag entre o que falam de

uma experiência (mesmo aqueles implicados nela), e o que essa experiência nos

interpela.

A busca da maioria social do Podemos já foi criticada como captura dos devires

do 15-M, vago sincretismo populista, conchavo elástico demais, personalismo de

Iglesias ou, como escreveu o antropólogo argentino Salvador Schavelzon1, uma

tradução político-cultural deficiente (oportunista?) dos experimentos da América do Sul.

O Podemos levaria à Espanha não o que de melhor teria sido produzido na América do

Sul, mas justamente a parte problemática que tem levado governos a fechar-se em

1 Artigo a seguir, nesta edição.

Bruno Cava

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termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-

popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.

O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que

o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento

progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de

disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-

presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando

com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de

táticas.

De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento

pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele

parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter

medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?

O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-

laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das

táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)?

Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida

não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e

prescreve a própria experiência?

De onde vejo, essa questão está em aberto.

Dedicado ao companheiro sul-americano Santiago Arcos, cujo ímpeto de debate e luta

é uma referência de engajamento não-hegemonista

Bruno Cava é autor de “A multidão foi ao deserto” (2013), escritor e pesquisador associado à rede Universidade Nômade, bloga no quadradodosloucos.com.br

Referências BEASLEY-MURRAY. La clave del cambio social no es la ideología, sino los cuerpos, los afectos y los hábitos. Eldiário.es, 2015. <http://www.eldiario.es/interferencias/Podemos-hegemonia-afectos_6_358774144.html> DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. 34, 2010.

PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012. FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. Fuerza y poder; reimaginar la revolución. Eldiario.es, 2013. <http://www.eldiario.es/interferencias/Fuerza-poder-Reimaginar-revolucion_6_155444464.html> GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. Civilização Brasileira, 1999-. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Record, 2005. ____. Commonwealth. Harvard, 2009. LACLAU, Ernesto. A razão populista. EdUERJ, 2013. SÁNCHEZ, Raúl Cedillo. O poder do Podemos. Site da UniNômade, 2014. SCHAVELZON, Salvador. Podemos, América do Sul e república plurinacional. Site da UniNômade, 2015. < http://uninomade.net/tenda/podemos-america-sul-e-republica-plurinacional/>

Podemos, América do Sul e a república plurinacional da Espanha1

Salvador Schavelzon Podemos vem sendo analisado de várias formas: como dispositivo discursivo

que consegue captar a atenção midiática; como força política que irrompe e ameaça o

bipartidarismo; como partido dos indignados e produto do 15-M; como aparelho que

transmuda pluralismo e mobilização em centralização partidária de horizonte social-

democrata; como combinação pós-moderna de chavismo com esquerda pró-soviética;

como futuro para o sul da Europa mediante soluções para uma política asfixiada pela

austeridade.

Aqui ensaiaremos outra leitura, nos perguntando de que forma a proposta do

Podemos se relaciona com o caminho seguido pelos governos progressistas da última

década na América Latina. Em especial, nos interessa explorar a plurinacionalidade

como um dos “significantes vazios” que o grupo de Pablo Iglesias mobiliza ao tratar da

questão da soberania catalã, e que nos remete diretamente aos processos constituintes da

Bolívia e do Equador. De fato, e guardando as distâncias, alguém que compare os

movimentos e posicionamentos do Podemos com esses processos, estudados ou

acompanhados de perto por três dos cinco fundadores do partido, não poderá evitar uma

sensação de deja vu. Ela não é suficiente para prever um curso análogo, mas é o

bastante para tecer hipóteses que abram um parêntese no entusiasmo generalizado pela

possibilidade de mudança.

A rápida aparição da plurinacionalidade, como parte da convocação de uma

Assembleia Constituinte como horizonte que aparecia bastante no início da vida política

de Podemos, diz muito sobre um projeto político, para quem a experiência latino-

americana parece ter mostrado o caminho para a criação de um instrumento eleitoral

que aposte no fortalecimento do estado-nação e amortize a mobilização das

nacionalidades, a fim de impulsionar crescimento com foco no social. Como

componente de projetos políticos que partilham desta perspectiva no “tabuleiro

político”;; a plurinacionalidade constitucionalizada na Bolívia e Equador, agora proposta

1 Original em espanhol, em http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/01/podemos-sudamerica-y-la-republica.html Tradutor: Bruno Cava.

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

por Podemos, se adapta ao objetivo de dissuadir projetos de autodeterminação territorial

sob a sombra do estado de bem estar e de um chamado à pátria de todos os espanhóis.

Pode-se resumir esta proposta política partilhada como solução estatal para

temas sociais, sem rupturas a respeito do marco do capitalismo. Na demarcação de seu

espaço no imaginário político-discursivo, se opõe, por um lado, o liberalismo e os

bancos contra os despejos e hipotecas, no estado español, ou contra as privatizações e a

autonomia do Banco Central, na América do Sul. Por outro lado, este projeto se coloca

longe de formas de pensar o comum que não sejam as do social, longe de formas que

poderíamos associar à comunidade e à rede, presentes quando encontramos projetos de

autonomia, autogestão e horizontalidade, para a organização do comum.

Não é apropriado associar o Podemos com a social-democracia, apesar de

propostas deste tipo, porque na definição de seu lugar político é fundamental a crítica à

cumplicidade do socialismo europeu com o caráter antipopular e os partidos de raiz

conservadora ou liberal. Este projeto que amigos e inimigos descrevem como

“populismo”, na Bolívia e no Equador é remetido ao bolivarianismo de Chávez, em

Chávez se aludia ao peronismo de Péron, e desde o peronismo, hoje kirchnerista, as

referências mitopolíticas nos levam outra vez à Europa, mas aquela do passado, com

ainda outras modulações importantes em cada passagem destas. Em todas, é o povo

contra a oligarquia (ou o poder financeiro internacional) a conformar uma sociedade –e

um “povo”- na busca de sua realização a partir do estado, interpelando indivíduos e

seguidores em vez de povos em plural ou coletivos em movimento. Embora no

imaginário de Podemos circulem ideias que podemos identificar com autores variados

como David Harvey, o autonomismo italiano, a epistemologia do Sul, além dos

argumentos e posicionamentos adaptados dos governismos latinoamericanos, o autor

que permitiu fechar, em 2014, uma tática política com fundamento teórico de corte

“nacional-popular” foi Ernesto Laclau, mais do que qualquer outro.

Numa leitura especulativa sobre a forma em que esse imaginário se traduz numa

visão política e de mundo, vemos que o partido e o estado, como formas organizadas do

social, recortam redes e verticalizam conexões a partir de uma ideia do social que

prioriza a coesão à diferença, e se dirige desde acima a uma sociedade composta por

indivíduos, um selo sociológico moderno compartilhado com o liberalismo. A partir de

uma proposta pós-neoliberal, a chegada de governos progressistas na América do Sul ou

na Europa supõe várias vezes que o indivíduo rompa o isolamento consumista e atue

unido mediante o voto que, em alguns casos, pode vir acrescido da mobilização. Mas o

Cardês

Salvador Schavelzon

17

impasse com a sociedade que individualiza é efêmero, ao restabelecer-se rapidamente a

promessa de assistência ou inclusão de sujeitos concebidos como necessitados de mais

estado, muito distantes dos novos rostos de um comando que poderia tentar governar

diferente, mas sim a partir do mesmo lugar, e cheio de cinismo, impotência e

continuidade.

A esse lugar de hegemonia e projeto de mudança bastante específicos, apesar de

sua ubiquidade discursiva, se pode chegar partindo de muitos lugares, e é dessa maneira

que se podem convocar maiorias sociais. Embora poucas vezes passem a representar as

lutas e os desejos dos muitos, essa proposta política sempre fala a partir da

universalidade, como força que somente funciona se for expressão de todos, e não como

setor ou ideologia que poderá participar de coalizões ou frentes do ponto de vista da

parcialidade.

Embora a esse lugar se chegue desde o socialismo, o catolicismo, o

progressismo liberal e o nacionalismo; desde a Epistemologia do Sul, o pós-operaísmo

italiano e a Esquerda Unida ou o trotskismo do Secretariado Unificado pela IV

Internacional; a posição de chegada é a de um instrumento de todos os cidadãos, da

gente, do povo indignado, e a partir daí falam o kirchnerismo e o chavismo, Rafael

Correa ou Pablo Iglesias: somos o povo, “podemos” e sorrimos (isto último lançado

frente a campanha suja da imprensa). Podemos só funciona como um “todos” que

representa a Espanha. Fora ficam apenas a oligarquia, a “ultraesquerda”, os que rompam

a unidade e aqueles que perdem, isto é, aqueles que não estejam preparados para fazer

os sacrifícios de identidade e projeto necessários para “ganhar”.

Quanto mais crescer o grupo e ligar-se com lutas, nada terá sido dito, apesar das

tendências, sobre o que é fundamental: quanto tempo de crescimento terá que ter o

Podemos antes de chegar ao governo, quanto a ansiedade por ganhar deixará espaço

para a construção desde baixo. Mas, por enquanto, observamos que a formalização do

Podemos como partido de autoridades que decidem no dia a dia, e votantes esporádicos

sobre questões secundárias ou candidatos assinalados pelo líder, deixou perplexos os

protagonistas das ruas no momento anterior, aberto pelo 15M.

O modo de crescimento adotado pela organização foi de seguidores que delegam

e autoridades que prevalecem, em vez de corpos e diferenças que se enredam e se ligam

desde a horizontalidade, em buscas de formas novas de democracia e organizacao

social. Veremos também se esta é uma crítica injusta e testemunhal, que desconhece as

tarefas pesadas exigidas para a mudança, ou se realmente desse modo escolhido se

Cardês

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

perde uma oportunidade única para construir formas novas num momento em que os

contornos das instituições modernas estão se esfacelando, cada vez com menos

legitimidade.

Para coletivos urbanos, imigrantes, mulheres, precários desconectados sem

documentos, ou povos soberanos que, como indígenas e movimentos horizontais latino-

americanos, não concebem a participação política enquanto sociedades de indivíduos e

cidadãos da nação delegando ao estado e ao partido o vetor político de mudança, o

Podemos renunciou rápido demais em explorar todo o alcance de seu voo. Enquanto

isso, o fechamento sem fissuras ao redor de um comando político blindado, e a pátria

espanhola como referência identitária — ainda que justificada como estratégia, tal qual

no progressismo latino-americano, para alguns é parecido demais com o que se deveria

transformar antes de qualquer coisa.

Numa Europa que conheceu os problemas do nacionalismo e vê recrudescer

atualmente os conflitos étnicos e civilizacionais, se entende o lugar de uma esquerda

laica, moderna e republicana que busque distanciar-se de movimentos que considera

desvios da política social e defesa do estado de bem estar, concebidos como prioritários.

A partir de uma Europa das diferenças, apesar disso, os limites da república e do que

representa a Europa, com sua social-democracia totalmente cooptada pelo capital, o

projeto iluminista fracassado como companhia inseparável da violência colonialista, e

uma modernidade que em seus extremos mostra seu lado mais obscurantista, estão tão à

vista quanto a continuidade republicana do colonialismo nos Andes sul-americanos.

É nesse sentido que, desde uma proposta espanholista e social, ainda que seja

republicana, plurinacional e antimonárquica, pareça haver muito pouco do sentido

comum nascido nas praças ocupadas em 2011. Voltando à América Latina, se remete

menos às lutas indígenas e populares contra o neoliberalismo, do que ao seu termidor

desenvolvimentista multicultural. É esta a aprendizagem dos fundadores de Podemos na

América Latina, como projeto social que absorveu a plurinacionalidade e a alterou ao

modo do liberalismo que reduz diferença e autonomia a relativismo cultural, e um

nacionalismo que concebe o estado como instrumento central para organizar a vida e a

comunidade.

A perda da ambiguidade dos governos sul-americanos

Salvador Schavelzon

19

Os governos sul-americanos da última década trazem algumas chaves de leitura

possível para a proposta política de Podemos, e não somente por motivos biográficos de

seus fundadores. A experiência política de governos que deslocaram bipartidarismos e

partidocracias, que surgiram depois de importantes mobilizações antineoliberais,

oferecem um ponto de vista que ajuda a imaginar o que seria um governo europeu de

caráter “popular”. Mais do que exemplos concretos a seguir, tais governos oferecem um

ponto de vista e uma “narrativa” que já provou a sua eficácia enquanto dispositivo, para

impor-se eleitoralmente baseando-se na reivindicação do social frente a bancos e

recortes antipopulares.

Essa narrativa serve como demonstração que, depois de ditaduras e anos de

mobilização nas ruas e praças, é possível — e que “si, se puede” — ter governos

surgidos das lutas sociais, do voto crítico ou da indignação popular. Esses governos

conseguiram consolidar-se politicamente guiando períodos de crescimento

macroeconômico sustentado, depois de fortes momentos de crise. No terreno eleitoral,

foram encontradas fórmulas para obter apoios eleitorais que superaram os 50% em

reiteradas disputas.

Longe de uma demagogia meramente eleitoralista que liberais assustados

denunciam em Podemos, a disputa midiática se estendeu mais além das eleições, com

diversas medidas que permitiram aos governos antagonizarem com o passado, a elite e

as oligarquias partidárias, contrárias aos interesses da “pátria”. Sem necessidade de

mudanças estruturais que interferissem na dinâmica da distribuição de renda e a relação

com o mercado, a narrativa popular bastou para sustentar governos e abrir algumas

frentes de batalha. Na Venezuela, Argentina, Equador e Bolívia, a polarização com

quem se opõe aos interesses do povo excedeu o tempo eleitoral, apesar de que também

esteja claro que as alianças para governar sugerem transversalidade com os poderes de

sempre, em vez de antagonismo.

É notório o sentimento de familiaridade entre os governos progressistas sul-

americanos que se erigiram deixando para trás épocas de “ajuste neoliberal”, e a

proposta de Podemos – e Syriza – numa Europa comprometida com a austeridade.

Desde esse lugar, os diversos governos encontraram espaço político para debater-se com

o poder financeiro e os fundos “abutres”, recuperar algo de protagonismo para o estado

e combater a pobreza, principalmente extrema. A partir de uma realidade distinta, sem

dúvida, há uma mesma posição de sujeito na instalação do ponto de vista que, de

Chávez a Mujica, ressoa quando Podemos propõe caminhos políticos e marcos

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

constitucionais para uma mudança que, no entanto, não romperia com Espanha, a União

Europeia e o Euro, não proporia uma saida da OTAN.

Devemos notar que o diálogo elogiável que Podemos em sua fase ascendente

entabula com a política latino-americana nem sempre leva em conta os becos sem saída,

encontrados por processos que se desdobraram em pactos excessivos com o passado, na

aceitação de setores da velha política que nunca se foram e na tolerância com lastros

inesperados que impuseram distância a movimentos e antigos aliados. Uma debilidade

congênita para atacar privilégios e injustiças antes denunciadas se mostraria estrutural,

nos governos sustentados com acordos de governabilidade expostos como necessários, e

consensos conservadores no manejo da exploração de recursos e na expansão capitalista

no campo, com graves consequências ecológicas e de preservação dos territórios.

Na contramão do sentido comum da esquerda libertária contemporânea e de

imaginários pós-68, e talvez por isso um contraponto que funciona nas tertúlias

televisivas contra a direita conservadora e o regime pós-franquista de 1978, Podemos

buscará reconstruir e disputar uma identidade homogênea de um povo unitário.

Cidadãos que apoiam a partir das suas casas e encontram novos representantes para

substituir os desgastados, aparecem assim como a contraface de assembleias e redes

sem centro, ao que somente certa leitura despistada qualifica de ineficazes e sem efeitos,

como se o cenário atual não se devesse à magnitude daquele fenômeno.

Como diz Juan Carlos Monedero, os processos latino-americanos ajudaram o

Podemos a aprender e não repetir erros, e menciona que o Que se vayan todos de 2001,

assim como outras revoltas, os alertou de que é necessário uma alternativa com

capacidade de fazer governo e não somente impugnar [1]. Movimentos de protesto,

assembleias e ocupações do espaço público se reconhecem meramente como

antecedente primitivo e mitologizado que necessariamente deverá dar lugar a uma

institucionalização em que todos participem, mas apenas em consultas feitas por meio

dos telefones celulares, enquanto “os mais preparados”, como propõe Iglesias, sejam

convocados pelo partido para governar.

É o estado pra onde se devem dirigir necessariamente todos os esforços, nesta

visão, como catalisador de impulsos imaturos de um momento de protesto que

doravante se decreta encerrado. Disparando um deja vu ainda antes de aceder a algum

governo, vemos essa discussão quando Podemos opõe “ganhar” a “protestar”, na

proposta que, em janeiro de 2015, a Carolina Bescansa fez como parte de um debate

numa eleição interna do partido em Madrid, mas que na América do Sul já levou à

Salvador Schavelzon

21

prisão ativistas e líderes indígenas no Brasil e Equador, somente por protestar contra os

governos de que antes eram aliados. O mesmo juízo se adivinha na frase que “se não

estão gostando, montem um partido e ganhem as eleições”, com o que agora governos

progressistas também desafiam mobilizações contra medidas que afetam o bolso ou

formas de vida nos territórios.

A condução do Podemos, que busca fazer exatamente o que líderes como Lula

da Silva ou Rafael Correa propõem a seus críticos — formar um partido e ganhar —

pensa parecido quando enfrenta “eficácia” de frente às eleições, frente à democracia

interna e o pluralismo que a própria força política convocou inicialmente. Nesse sentido,

o debate que acompanhou a Assembleia Cidadã de Vista Alegre, quando se formava a

organização, teve Pablo Iglesias anunciando que sairia da organização caso sua proposta

não obtivesse a maioria, mas que se ganhasse queria listas completas e fechadas com

seus afins em todos os postos de autoridade partidária, como medida que considerava

necessária para ganhar. Ainda, além disso, buscaria integrar com sua gente os

Conselhos Cidadãos das comunidades, exceto onde as listas rivais tivessem chances de

rivalizar, onde ele sim estaria disposto a integrar com outros a condução do partido.

É mérito do Podemos mencionar os processos latino-americanos como

inspiração distante, ainda que não modelo, rompendo com a geopolítica colonial do

conhecimento, em que costuma ser mais usual que os países do sul sejam

contraexemplo e os da Europa modelo a imitar, justificativa para qualquer medida ou

reforma. A presença de muitos hoje quadros de Podemos na América Latina e noutros

lugares, apesar disso, é muitas vezes explicada por eles mesmos menos como

intercâmbio produtivo e vital, e mais como necessidade de sair do país obrigada pela

crise devido à falta de oportunidades. Em várias apresentações a que assistimos entre os

que correram para postular algum dos cargos do novo partido, se trata de heróis que

saíram por causa da crise e voltaram pela pátria, entidade sempre útil e lembrada

quando se busca aceder ao governo, mandar à guerra ou trabalhar.

A América do Sul oferece à Europa, sem dúvida, um rico repertório de

negociações soberanas de dívidas ilegítimas e políticas pontuais, mas também um

problema político irresolvido quanto à tolerância com o desflorestamento ilegal da

Amazônia, o extrativismo contaminador nos Andes e o avanço predatório da fronteira

agrícola para monoculturas transgênicas rentáveis, com suas consequências

irreversíveis, já causadoras de secas e inundações, resultado do uso descontrolado dos

recursos tidos como fundamentais para sustentar políticas sociais e manter o

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

crescimento e o consumo em alta. Esses temas não podem ser abordados como abusos

corrigíveis, nalguma possível versão melhorada, se trata antes disso de componentes

inseparáveis de modelos econômicos e projetos políticos, ao que Podemos parece

integrar-se, a julgar por posicionamentos passados de seus fundadores e propostas atuais

nos novos debates.

Como todo deja vu que devolve um passado sempre ubíquo e incompleto, o

lugar a partir de onde ler Podemos na América do Sul é disputado e instável. Um

primeiro impulso leva aos anos 90, com o auge e a queda de presidentes neoliberais,

bem como a líderes campesinos como Evo Morales, ou populares como Chávez, ou

cidadãos próximos da gente, como Chacho Álvarez, que impulsionaram seus partidos

com destinos diferentes mas inimigos similares. Embora os governos progressistas que

se consolidaram nos anos 2000 mantém viabilidade eleitoral até o presente; na América

do Sul também se evoca o Podemos em distintas iniciativas na busca de criar uma nova

força política, no momento em que retornam os protestos e o neoliberalismo denota

continuar.

Assiste-se na América Latina a um novo ciclo de mobilizações pela vida, o

comum e o território, na metrópole e comunidades, com movimentos sociais ou de

participação eleitoral, mas por caminhos políticos em que o objetivo não é a construção

de uma hegemonia que conduza a um novo estado, ou a acumulação de força eleitoral

para a remoção de partidos antipopulares, apesar de essas lutas não se oporem a isso. A

partir deste lugar, que não é o de nostalgia por mobilizações passadas nem de um

anarquismo que impugnaria qualquer institucionalização, a irrupção do Podemos parece

tão alheia quanto poderia ser para todo aquele que não considere terminadas as formas

coletivas que reverberaram no 15-M, ou na busca da mudança social com

autodeterminação.

O significante vazio confunde o soberanismo catalão que qualifica Podemos de

novo cavalo de Troia madrilenho do espanholismo, mas também como a melhor

interlocução possível na cabeça do estado espanhol. A ambiguidade também aparece no

novo partido que tanto é produto do 15-M, quanto a sua traição e antagonista. Se, com

efeito, a posição de sujeito em afinidade com os governos sul-americanos se constitui

como próximo governo espanhol, muitas dúvidas seriam rapidamente dissipadas. Como

tem acontecido, sem embargo, a capacidade de representar uma esperança — polarizar

com o neoliberalismo, mas governar com ele, — poderá manter-se. De qualquer modo,

Salvador Schavelzon

23

as inquietações das ruas e movimentos já podem ser enunciadas, como faz Uli Brand

sobre a Syriza e a Europa em geral: Nos comentários, se repete uma ou outra vez a cantilena pálida do ‘crescimento’ necessário. Mas, o que significa isso concretamente? Concretamente, que tipo de empregos serão gerados ou conservados? Estamos falando de empregos na indústria bélica, ou numa indústria produtiva o mais sustentável possível? Do trabalho de peões mal remunerados, na agroindústria? Ou de trabalhadores com emprego digno na produção ecológica de alimentos? E quem decide sobre as inversões que devem nos levar ao crescimento? Fundos privados de alto risco em busca do maior rendimento possível, ou empresários responsáveis, ou inclusive a população, mediante mecanismos e procedimentos de democracia econômica? [2].

Podemos e a plurinacionalidade

Em seu discurso em Barcelona, fechando o esplêndido ano de 2014 para sua

recém criada força política, Pablo Iglesias falou de respeitar o direito dos catalães de

decidir sobre o seu futuro. Algo básico desde o ponto de vista da esquerda universitária

que simpatizou com movimentos globais e latino-americanos, mas inédito para um

partido nascido em Madrid, que tem possibilidades de obter a presidência do governo.

Isso sim, Pablo Iglesias esclareceu em Barcelona: para que haja direito a decidir seria

necessário também decidir sobre a economia e outros assuntos. Qualquer decisão

vinculada à soberania, para Podemos, deve estar sujeita à abertura de um processo

constituinte geral.

Logo ao assumir o cargo de secretário geral, no teatro Apolo de Madrid, em 15

de novembro de 2014, Iglesias foi claro em detalhar em que medida o Podemos está de

acordo em consultar os catalães: a “relação jurídica que querem ter com o resto do

estado.” Pablo não escondeu, em várias declarações, que gostaria que os catalães “não

fossem embora” e “ficassem conosco”, mas a sua posição não é a de Rajoy. Em

Barcelona, falou da necessidade de “estender pontes em vez de elevar muros”. A

tradução desses desejos em termos de estrutura do estado tem a ver com o

reconhecimento de que a “Espanha é um país de nações” e a proposta de que “possamos

construir um futuro plurinacional juntos”, agregou no mesmo ato de 21 de dezembro,

em Barcelona.

O objetivo de Iglesias não é incorporar os setores soberanistas das comunidades

que contam com fortes movimentos independentistas. As pesquisas mostram que

Podemos não fecha com elas, mas sim, com mais incidência, com os votantes

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

desencantados dos partidos espanhóis, bem como entre novos votantes não

entusiasmados com a luta pela autodeterminação nacional. Trata-se de encontrar uma

saída ao desafio catalão que permita dispersar um nacionalismo que, desde a perspectiva

de esquerda ou social, não é julgado como autêntico ou essencial. Em lugar de

confrontar o soberanismo, se propõe um modelo de estado que o contemple, sem no

entanto perder o comando estatal requerido para efetuar mudanças sociais.

Depois que a Catalunha foi a comunidade com os piores resultados para o

Podemos na eleição para o parlamento europeu, em 2014, o partido parece ter

encontrado a forma de usar a mobilização soberanista a seu favor, tanto no impulso de

um processo constituinte mais amplo, como no desvio do descontentamento catalão

para outro tipo de saída. Íñigo Errejón definiu que “Para nós, a Espanha é um país

plurinacional, em que a cola deve ser o acordo livre e a sedução” [3]. Seduzir significa

conseguir que os catalães fiquem, atraindo um número suficiente de seguidores para

cimentar mudanças no estado espanhol.

As pesquisas dizem duas coisas interessantes para Podemos. Uma é que seu

avanço na Catalunha coincide com o retrocesso do independentismo. Na pesquisa de

dezembro de 2014, enquanto Podemos se convertia num ator de peso também para a

política catalã, se registrava pela primeira vez, desde o início das mobilizações

soberanistas, que ele não se impunha sobre o sim à independência [4].

O outro dado que seguramente foi avaliado pelo Podemos para propor uma

solução plurinacional foi que, nas medições de junho de 2014, nem o sim nem o não à

soberania plena se impunham quando se incluía uma “terceira via”, pela qual se

aumentavam as competências sem necessidade de uma ruptura secessionista [5]. Estes

votantes, cerca de um terço do eleitorado, é o que interessa a Podemos para somar

nacionalmente e impelir uma plurinacionalidade em que um bom número de catalães se

vejam refletidos, rompendo a aliança soberana popular e neoliberal, que encontra atores

muito diversos com as mesmas bandeiras da independência.

Para que esta proposta caia bem no público eleitoral, terreno preferido na análise

estratégica do Podemos, é chave que a narrativa do social chegue ao “cinturão

vermelho” de Barcelona, um dos focos de Pablo Iglesias em seu discurso de dezembro,

enquanto associava a casta espanhola com a catalã, e criticava o abraço de Artur Mas

(da CiU) com David Fernández (da CUP), símbolo do encontro conjuntural do

soberanismo popular com o da casta neoliberal. O cinturão industrial da área

metropolitana de Barcelona poderia assim ser a chave, e Podemos descobre isso quando

Salvador Schavelzon

25

parece substituir em seu bastião ao Partido Socialista Catalão, da onde não é casual que

também se fale em estado plurinacional como uma estratégia para o debate soberanista.

Gemma Ubasart, secretária de Plurinacionalidade do conselho estatal de Podemos, ex-

colaboradora da Tuerka [NT. Programa televisivo de debates que foi embrião

do Podemos] e que, como investigadora pós-doutora também passou pelo Equador, a

chave para o caminho da sedução. Como candidata à secretária geral da agremiação na

Catalunha, resume a sua visão se colocando bem longe do soberanismo: “Temos um

importante desafio à frente, construir um país de coesão e bem estar para todos, e livre

de corrupção” [6].

A partir de um modelo mais multicultural do que confederado e

autodeterminativo, a tendência parece ser apostar por uma consulta ao povo catalão em

que uma maioria soberanista não se imponha, canalizando desejos de soberania em uma

forma que permita manter o caráter unitário do estado, desde onde efetuar mudanças e

reformas de tipo social, tal qual assistimos em Bolívia e Equador.

Boaventura de Sousa Santos, de cuja equipe forma parte Juan Carlos Monedero,

e a quem este se refere como seu mestre, escreveu muito sobre a plurinacionalidade

latino-americana, destacando-a como parte de um novo constitucionalismo experimental

e pós-colonial que permite superar as formas modernas em países com mais de uma

nação, e que inclusive foi mencionado pelo sociólogo português como possível solução

para palestinos e judeus num novo estado secular compartilhado [7]. Esta proposta de

estrutura do estado é adotada pelo movimento indígena em Bolívia e Equador, como

caminho para aceder a uma autonomia territorial, mas se cimentou constitucionalmente

de forma aberta e indefinida.

A plurinacionalidade aparece, então, como o “significante vazio” que pode

permitir a Podemos repartir as cartas num eventual processo constituinte que o tenha

como protagonista, sem recorrer ao federalismo, proposto pelo PSOE e desacreditado

pelo provado centralismo de velho tipo desse partido, e sem definir, no entanto, quanto

se cederia em concreto de soberania e autodeterminação. O ponto de partida aberto fica

claro na entrevista com Pablo Iglesias em que o indefinido de sua proposta, claramente,

não deixa de ceder ante ao privilégio do social:

Pergunta: “Que modelo territorial o Podemos defenderá em Catalunha? Resposta:

Temos dito sempre que a Espanha é uma realidade plurinacional e é preciso atender a

essa plurinacionalidade para qualquer arranjo político. Pergunta: Mas em que se baseia

Cardês
Cardês
Assistir esse Programa.

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

esse modelo? Em um estado federal ou num mais centralizado que elimine

competências? Resposta: Coloquemos em cima da mesa num processo constituinte

todas as opções e vejamos qual é a mais eficaz para assegurar os instrumentos

soberanos. A mim, o que importa é que haja uma saúde pública para todos, que se está

atendendo em catalão, em euskera [língua basca], galego ou castelhano, para mim é uma

questão secundária” [8].

O desejo de autonomia e descolonização não é considerado pelos povos

indígenas nem por nenhuma nação que se entenda enquanto tal como uma questão

secundária que seria abordada depois de solucionar, desde o estado, a questão social. No

processo boliviano, a língua e o território, inseparáveis das formas comunitárias de

justiça e democracia, formariam parte de reivindicações em que se busca avançar à par

das demandas sociais e soberania nacional ou popular, sem hierarquização e com pleno

reconhecimento. Esta visada política que nasce no indianismo do altiplano e inspirou a

nova Constituição da Bolívia foi descrita como “os dois olhos”, como o avanço sempre

inseparável contra a discriminação étnica e opressão de classe.

A articulação de demandas de autodeterminação com direitos sociais pode soar

familiar pensada a partir de uma posição como a da esquerda nacionalista basca, e

algumas vozes embarcadas no soberanismo catalão. Assim, vemos que desde o

periódico Gara de Euskal Herria, o pesquisador alemão Raúl Zelik manifesta

entusiasmo por Podemos, mas também cautela, quando escreve: “A ruptura com a

continuação franquista tem dimensões diferentes: o tema das nações periféricas não

urge menos do que as exigências sociais e democratizadoras da esquerda estatal.” [9].

Poderia pensar-se que, com a posição de sujeito que vemos nos governos

progressistas e em Podemos, a dos povos indígenas sul-americanos se encontraria com

os que não se veem parte de um projeto de pátria espanhola com coesão e bem estar.

Nos processos de Equador e Bolívia, deve-se ser mais exato, os processos constituintes

se abriram e levaram adiante a partir de uma aliança entre organizações sociais e

indígenas e os novos governos. A partir de 2008 e 2009, apesar disso, conflitos

reiterados levaram uns e outros a distanciarem-se.

Como poderá acontecer na Espanha com setores soberanistas que embarcam na

proposta de Podemos, hoje nos países que incorporaram este modelo, o conceito do

plurinacional é disputado tanto a partir do estado como desde uma oposição que

continua em sua busca de autonomia, não mais em cumplicidade com governos. O

cenário é provável se pensamos que Podemos precisa das comunidades para abrir um

Cardês
Cardês
Ler a constituiçãoboliviana.

Salvador Schavelzon

27

processo constituinte formal, e que possa vir um governo que se mostraria mais aberto a

negociar uma consulta, como Escócia, ou Quebec, no Canadá.

O Podemos que surge como deja vu dos processos sul-americanos da última

década é o do distanciamento de demandas descolonizadoras e de autodeterminação, na

renúncia das buscas de alternativas ao desenvolvimento, que construam uma nova

institucionalidade pós-republicana e antiliberal desde a comunidade, as ruas ou o debate

constitucional. A multiplicidade do caráter minoritário que o pluralismo iria exprimir se

reduz a um problema de assistência social para os iguais antes que diferentes, carentes

antes que singulares, numa concepção que só pode derivar em mais estado e menos

plurinacionalidade.

A plurinacionalidade na Bolívia

A experiencia política boliviana é fundamental para entender o olhar sobre a

Espanha que deu lugar à aparição de Podemos. O processo constituinte boliviano

encontrou uma situação política marcada pela recondução da reclamação de autonomia

por regiões, povos e nações, a partir de uma narrativa política que punha ênfase na

intervenção econômica e nos direitos, dirão alguns, mas em Bolívia se viu a força com

que reivindicações regionalistas por autonomia (ou retorno dos poderes do governo, no

caso de Sucre, a capital constitucional) podem tanto abrir como fazer naufragar uma

Assembleia Constituinte e um processo de mudanças.

Num relato adotado por Podemos, o intelectual e acadêmico vice-presidente da

Bolívia, Álvaro García Linera, analisa a chegada do governo de Evo Morales e do MAS

[10], como a transformação de uma maioria social numa maioria política. A gente

comum, de rosto indígena, chegava em 2006 ao palácio de governo, com novos gestos e

modos, como inclusive a Europa foi testemunha quando, na sua primeira viagem

internacional depois de eleito, causou sensação à “chompa” (casaco) de Evo Morales, de

forma similar a símbolos poderosos como o rabo de cavalo de Pablo Iglesias, as

sandálias de Mujica, e a “simplicidade” do papa Francisco quando telefona a uma frera

ou se detém a conversar com os guardas.

Os gestos podem transformar-se em medidas políticas, e Evo Morales fez isso

não tanto com a incorporação da plurinacionalidade, que na prática não mudou a

institucionalidade nem o pacto territorial do país, senão com um decreto que mudou a

relação com as empresas estrangeiras de hidrocarbonetos de forma favorável à Bolívia,

Cardês

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

atendendo a uma demanda surgida da mobilização popular que destituiu um presidente

em 2003, e sobre a qual já haviam avançado os movimentos com pressão sobre o

parlamento. O mesmo lugar ocuparia talvez a esperada reversão da reforma do artigo

135 da constituição espanhola, pactuada pelo PP e PSOE em 2011, que blinda a

austeridade, e cuja reforma deverá ser acompanhada de medidas destinadas à situação

da moradia e da saúde pública.

O dado crucial, no curso do processo constituinte boliviano, é que para garantir a

continuação de Evo Morales e suas políticas sociais, foi necessário articular a proposta

que se traduziu constitucionalmente como “Estado Plurinacional, Unitário, Social, de

Direito e com autonomias”. O modelo autônomo era inspirado no modelo espanhol,

destinado a contemplar a reivindicação de mobilizações regionais que ameaçavam o

governo central, uma vez que as mobilizações indígenas haviam possibilitado a

ascensão do presidente campesino indígena.

Para aprovar a constituição e viabilizar o governo, foi necessário desarticular as

demandas autonomistas do leste do país, curiosamente defendidas em nível nacional por

uma “agrupación ciudadana” que também se chama Podemos (“Poder democrático e

social”, liderada por Tuto Quiroga), embora neste caso era inocultável a associação de

seus líderes com a velha “casta” colonial anti-indígena, derivada de partidos reciclados

da ditadura e que até então sempre haviam governado. É muito provável que, em

Madrid, os fundadores de Podemos associem esses setores autonomistas com a variante

neoliberal do soberanismo, encabeçando mobilizações especialmente na Catalunha.

No movimento que buscava neutralizar as demandas de autonomia a partir da região

mais rica do país, o MAS também iria se afastando de projetos de autonomia indígena e

campesina, justiça e democracia comunitária, territorialidade coletiva para povos, que

no auge da disputa com as regiões acompanhou com seu apoio, inclusive como forma

de debilitar os regionalismos a partir de demandas indígenas de autonomia contra elites

dos departamentos e províncias.

Se podemos associar o desafio separatista e autonomista da região da Media

Luna em Bolívia com o soberanismo basco e catalão; uma diferença entre o MAS de

Evo Morales e o Podemos da Espanha, é que o primeiro tinha a seu lado as lutas

descolonizadoras e de autodeterminação das nações indígenas, fundamento essencial da

plurinacionalidade. Elas se manteriam fiéis até a aprovação da constituição, quando

diferenças no bloco popular se tornariam irreconciliáveis. Frente ao Podemos, as

demandas de autodeterminação veem seu surgimento com desconfiança, portanto numa

Salvador Schavelzon

29

aproximação das situações deve mirar-se primeiramente a hostilidade da Media Luna e,

em segundo lugar, o momento de ruptura da aliança entre o governo e os indígenas,

posterior à aprovação da nova Constituição.

Corriam os anos de 2006, 2007 e 2008, e Pablo Iglesias publicava (organizado

com Espasaldín López), o livro Bolivia en movimiento. Acción colectiva y poder

político, enquanto outros futuros membros de Podemos assessoravam os governos de

Bolívia, Equador e Venezuela. A oposição a Evo Morales fundamentava a sua proposta

de autonomias com assessoramento de políticos catalães associados ao partido

socialista, imitando também o projeto de Estatuto que, desafiando o governo central,

fora aprovado pela população dessas regiões em referendo que se propunha como

vinculante.

Em formulação teórico-política ligada aos processos constituintes de Bolívia e

Equador, o constitucionalismo plurinacional não somente superaria o multiculturalismo,

como também se diferenciaria do constitucionalismo social, de inspiração nacionalista

ou bolivariana; assim como do constitucionalismo liberal, embora combinara alguns de

seus traços e incorporara vários de seus elementos. A riqueza destas propostas era a sua

capacidade de articulação de horizontes, sem que o social e o nacional eclipsassem,

entretanto, a autodeterminação indígena.

O que diferenciava o plurinacional de outros constitucionalismos era a

introdução de um vetor comunitário, descolonizador e de autonomia indígena

campesina. Estes elementos permitiam uma conexão do processo boliviano com o

neozapatismo de Chiapas e não somente o bolivarianismo de Chávez, com sua ênfase

no estado e no presidencialismo de caráter centralizador. A proposta do Pacto de

Unidade refletia as visões de organizações campesinas e indígenas das terras altas e

baixas do país. Dali surgia um modelo de estado que tinha muito de não-estatal,

reconhecendo as formas tradicionais de governo e justiça, assim como todas as línguas

indígenas como oficiais, em todo o território nacional e não somente nas regiões em que

falam [11].

Nas lutas que precederam a Assembleia Constituinte, e na defesa por parte das

organizações indígenas e intelectuais próximas a elas, o plurinacional avançava também

com o vivir bien (em espanhol da Bolívia), suma qamaña (em aimara) ou buen vivir (no

Peru e Equador) e suma kawsay (em quéchua), como alternativa ao desenvolvimento,

em construção que buscava formas de vida inspiradas no comunitário e no tom das

críticas ao capitalismo industrial e o desenvolvimento modernizante “desde acima”. Na

Cardês

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

Bolívia, significaria a introdução da Pachamama como parte do mundo comum,

enquanto no Equador se introduziam na constituição direitos da natureza que buscavam

quebrar com a concepção antropocêntrica e passiva sobre o meio ambiente.

Mais que no desenvolvimento destas discussões, o recurso do plurinacional por

parte do Podemos parte de um deslocamento de sentido ocorrido no período pós-

constituinte, notório no governo da Bolívia e do Equador, embora neste último país, ele

teve uma relevância constitucional menor. Uma vez os governos afiançados no poder, e

ao mesmo tempo em que a agenda do desenvolvimento e da exploração extrativista

dava lugar a importantes conflitos territoriais entre governo e povos indígenas, o termo

plurinacional começou a separar-se da questão indígena, referindo-se melhor a ideias

como inclusão e igualdade de oportunidades. Simultaneamente, a forma movimento do

MAS cedia ante um governo que se autonomizava na tomada de decisões e se impunha

como cabeça condutora centralizando tudo no chefe de estado, do partido e dos

sindicatos de produtores de folha de coca.

Num processo constituinte disputado, a inclusão da plurinacionalidade na

caracterização do estado boliviano, não foi acompanhada no desenvolvimento de

instituições ou formas estatais correspondentes. Esta releitura que tira do plurinacional a

sua força de luta étnica e de autonomia foi, ao mesmo tempo, a que permitiu encontrar a

chave do processo, para tecer um consenso com setores internos aos “processos de

mudança”, mas alheios ao projeto histórico de descolonização e governo indígena do

país; assim como para destravar na Assembleia Constituinte e no Congresso, em

Bolívia, a difícil maioria qualificada cuja chave estava nas mãos da oposição

conservadora.

O resultado de um acordo que tomou tempo e disputa nas ruas para chegar

permitiu isolar as demandas autonomistas e canalizar o processo às transformações

econômicas e à defesa de um desenvolvimento que buscara um “salto industrial”, nas

palavras do vice-presidente García Linera, e que convidou Pablo Iglesias como

conferencista em Bolívia pouco depois de seu triunfo nas europeias, além de ter incluído

uma conversa na Universidade Complutense como parte de uma viagem oficial pela

Europa, ainda antes que as eleições europeias de maio tivessem projetado Podemos

como voz da política europeia.

Atrás da imagem de um governo indígena ou comunitário, emergiria em Bolívia

uma identidade política que se aproxima mais do nacionalismo e do popular.

Observadores como Pablo Stefanoni e Fernando Molina descreveram este perfil,

Cardês
Cardês
já tinha ouvido falar da const. do equador. Rola de ler sobre.
Cardês

Salvador Schavelzon

31

enquanto García Linera preferiria enfatizar o indianismo e o evismo. Estas identidades

entram na disputa de significados em que está o jogo da definição do que seja o

indígena, flutuante nos censos e que desde o governo tendia a definir-se de maneira

genérica e remetendo ao popular, recordando a velha imagem nacionalista da

mestiçagem (como identidade nacional proposta pelo estado), e deixando de lado a

singularidade étnica e a busca da autonomia, importante em projetos de reconstrução

das formas originárias que foram marginalizadas no projeto oficial.

A identidade de esquerda, com seus símbolos e palavras de ordem, também

deixariam a linguagem política cotidiana na Bolívia, de maneira parecida como o

Podemos entrou no jogo eleitoral, em janeiro de 2014. Em termos constitucionais, uma

plurinacionalidade construída à margem dos projetos dos povos que buscavam novas

institucionalidades a partir de seus territórios, formas de representação parlamentar

coletiva, e que também participaram da Assembleia Constituinte e se mobilizaram por

ela, permitiria cimentar a refundação do estado mantendo um modelo centralizado, visto

como necessário para evitar o desmembramento trágico na história do país, e também

para garantir as políticas sociais e ingressos estatais pela exploração de recursos

naturais.

Com o significante vazio da plurinacionalidade e do viver bem, se neutralizava

inclusive o recurso a um modelo federal. A viabilidade política deste modelo era difícil

de assegurar num contexto em que se pressionava para que o estado central cedesse o

controle de todos os hidrocarbonetos e outros recursos, num momento de expansão

econômicos e alta dos preços das commodities, base para as políticas sociais, aumento

de reservas e estabilização da moeda, além de cimentar a participação estatal na

economia. A capacidade do conceito “plurinacional” para a realidade espanhola parece

ser, justamente, a sua flexibilidade, como o poder de conotar autodeterminação e

respeito a nações igualitárias, mas também unitarismo e menos descentralização. Falta

saber ainda se a reforma tributária poderá fazer no estado espanhol as vezes dos campos

de hidrocarbonetos, da soja e do minério na América do Sul. Mas está claro que a

plurinacionalidade se presta, sem dúvida, a ser o pagamento de um país indiviso que

reconheça soberanias distintas.

O que o MAS de Evo Morales conseguiu na Bolívia foi o que Pablo Iglesias

parece necessitar, já que não quer que os catalães deixem a Espanha, e sua agenda

definitivamente aponta às fissuras do social. Na Bolívia, foi essa a transformação do

conceito plurinacional, depois de um processo constituinte acidentado em que era

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

frequente ouvir falar de guerra civil, em que as regiões opositoras declaravam a

autonomia de fato e onde, depois de uma matança de indígenas em Pando, da tomada

das instituições nacionais em Santa Cruz, e da ratificação de Evo Morales num

referendo convocatório em que logrou o apoio de 67%, o governo conseguiu abrir uma

mesa de negociação que derivou na aprovação da constituição e a extinção da demanda

autonomista.

Para entender as modulações do plurinacional seria importante considerar que,

enquanto o autonomismo regional era neutralizado, os indígenas também perdiam a

cumplicidade com um governo que apostava no desenvolvimento. As bases campesinas

do MAS eram mais favoráveis a incorporar-se numa articulação camponês-indígena

com organizações de povos minoritários e setores intelectuais e de esquerda ativos no

processo, que buscavam o fortalecimento da comunidade, a autonomia e alternativas de

desenvolvimento. Este modelo que estimulava sobretudo a produção e exploração de

recursos para a exportação se tornou dominante em toda a América Latina, com uma

semelhança cada vez maior entre os governos bolivarianos, plurinacionais e

progressistas, com outros de outro signo político nos países vizinhos: Peru, Colômbia,

México ou Paraguai.

Na Bolívia, o indianismo inspirado pelo rebelde indígena Tupac Katari tem sido

o espaço intelectual e político desde onde a plurinacionalidade foi introduzida, embora

se registrem referências relacionadas ao modelo soviético de nacionalidades, impelidas

por partidos comunistas e oficinas de pesquisadores russos em toda a região andina.

Desde esta mirada que enfatiza a comunidade e a diferença indígena, hoje se avalia,

apesar disso, que o processo de mudança se aproxima das formas de nacionalismo

estatal contra o que sempre tinham enfrentado nas lutas de descolonização por um

governo índio, ou pela indianização da Bolívia.

Por outro lado, se por um lado a vigência das formas ancestrais ou reinventadas

indígenas são parte de um debate na Bolívia, também é certo que aimaras e quéchuas

prósperos e bem integrados no mercado capitalista devem ser considerados em sua

confluência com o projeto estatal de direitos, longe do indianismo que não renuncia a

pensar-se como alternativa civilizacional, mas também desde a identificação indígena.

Estes setores são parte das classes trabalhadoras que, em toda a América do Sul,

aumentam a sua participação econômica e capacidade de consumo, talvez como na

Europa e Estados Unidos do pós-guerra, mas hoje com supostas novas “classes médias”

festejadas pelos governos progressistas sulamericanos.

Salvador Schavelzon

33

As duas plurinacionalidades e a república

Não há um significado mais verdadeiro do plurinacional, e seu emprego em

novos contextos implicará transformações, mas talvez mantenha atualidade na Europa o

fato que em suas versões sul-americanas o conceito tem duas almas: surge de lutas

indígenas por autonomia e descolonização, buscando a partir da comunidade

alternativas ao desenvolvimento capitalista, mas se consolida como símbolo de um

projeto estatal que promete crescimento econômico e expansão do consumo com base

num modelo de desenvolvimento com ênfase na exploração de recursos naturais,

apostas pela industrialização e políticas sociais de transferência de renda para a

inclusão.

A plurinacionalidade entusiasmou povos indígenas que lutaram nas ruas contra o

liberalismo e a abertura de um cenário constituinte, mas hoje aparece atravessada em

Bolívia e Equador, pelas dificuldades de romper com o desenvolvimento convencional e

o modelo de crescimento de capitalismo pretensiosamente “social”, também presente na

Venezuela, Brasil, Uruguai e Argentina. Este lugar político, que às vezes parece

imaginar uma sociedade do trabalho e a produção de mais de meio século atrás, pode

permitir estabilidade política e econômica como na Bolívia ou propostas keynesianas

como as defendidas por Áxel Kicillof na Argentina, e Vincenç Navarro e Juan Torres

para Podemos e Esquerda Unida na Espanha. Mas esse lugar resulta intolerável para

quem vê seus direitos e formas de vida ameaçados pela intrusão exploradora em seu

território, e para quem não é incluído a partir de suas diferenças para além da evocação

de um povo abstrato a partir do olhar do universal.

A ideia de plurinacionalidade aparece, então, como tensão, na medida em que

busca exprimir e reconhecer a autodeterminação e a autonomia de povos e nações como

a catalã ou do povo galego, mas no marco de uma proposta onde o eixo é a mobilização

afetiva da consciência (mono)nacional ativada contra banqueiros alemães e a oligarquia

da casta nacional. A partir deste lugar, se abre um diálogo com a esquerda na crítica à

desigualdade social e os abusos do capitalismo, mas com soluções concretas pensadas

de cima para baixo, em relação a processos que podem incluir grandes mobilizações,

mas que não fazem de seus participantes sujeitos ativos na construção de um mundo

novo, mais além dessa condução desde acima, sem enclausurar-se nas decisões. Trata-se

Cardês

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

melhor de falar desde os grandes meios de comunicação ao povo feliz ou cidadão-massa

que consume e vota, protegido pelo estado e representado antes que empoderado.

Esse olhar sensível desde cima com a situação “social” dos de abaixo remete a

uma identidade política compartilhada na América Latina que aceitou como projeto a

administração mais humanitária do capitalismo, embora seja certamente crítica ao

neoliberalismo a partir de uma sensibilidade nacionalista e social. O consenso sobre

essa política ficou à vista na recepção entusiasta do papa Francisco como último grande

fenômeno midiático na política sul-americana que também explorou esse espaço

político depois de empossado pela igreja alguns dias depois da morte de Chávez.

Apesar de desacordos do passado com a igreja e com Bergoglio, os governos

progressistas celebraram a sua chegada por motivos parecidos aos de Pablo Iglesias,

quando o aplaudiu no parlamento europeu. O apoio cúmplice com a crítica papal aos

abusos do capitalismo contrastou com a saída do recinto de outros eurodeputados que

não fizeram ouvidos de mercador sobre a degradação dos direitos das mulheres e

homossexuais; recebid@s com paternalismo pela igreja de Francisco, mas sem

reconhecer livre de pecado a sua autodeterminação. Retirar do programa eleitoral ou

não dar ênfase ao direito ao aborto e o casamento gay, vem sendo justificado em

Podemos pela necessidade de vencer, na suposição de mentalidade conservadora que se

tem dos votantes. À luz dos processos sul-americanos, apesar disso, o que saiu do

programa para as eleições nunca voltou a entrar e, na verdade, atuou ao contrário —

nestes e noutros temas — desde uma moderação que se prolonga por cálculo de

governabilidade, ou convicção de quem se vai somando desde o conservadorismo

quanto mais firme a consolidação no poder.

As organizações indígenas de maior representatividade em Bolívia e Equador,

campesinos sem terra e populações levantadas contra a contaminação mineira, abriram

os processos constituintes mas hoje estão num lugar de excomunhão. É assim que o

Podemos se desenvolve como resposta possível — e necessária — se pensamos no que

se pode fazer a partir de uma narrativa “Espanha” para milhões de sem ocupação,

pobres e desamparados. Se outros horizontes se eclipsam e Iglesias pode seguir falando

de crescimento, emprego e reforma tributária, assim, estará em seu território e será

imparável. Numa política que se encontra mais além do povo enquadrado e mais além

de um centralismo espanholista, para muitos esta não será a melhor mudança possível a

ser construída.

Salvador Schavelzon

35

Para quem, antes que pobre ou sem emprego de uma Espanha integradora se

reconhece como mulher, minoria sem estado, coletivo urbano ou imigrante sem nação,

Podemos deixará de falar a ela muito rapidamente. Se a ideia de país que busca

construir se assimila a sua ideia de partido, como parece; poderá suceder que a

plurinacionalidade se definirá contra a autonomia, como ocorreu na Bolívia e Equador,

quando o termo deixou de referir-se a nações específicas no marco de um mesmo

estado.

Embora a plurinacionalidade surja no debate em oposição ao reconhecimento

multicultural, incorporado em várias constituições latino-americanas na década de 90,

com as reformas neoliberais, o momento em que para os indígenas o conceito perde o

interesse, é o que o transforma em sinônimo de inclusão de todos nas formas políticas

anteriores, como integração do colonizado antes do que descolonização que para os

povos indígenas se refere a aceitar uma pluralidade de formas de organização,

desenvolvimento e autonomia. No lugar de autonomia e produção comunitária, a

plurinacionalidade que prevaleceria em Equador e Bolívia seria a da possibilidade que

um indígena não seja discriminado e inclusive possa ser presidente, mas sem superar o

modelo de reconhecimento do tipo liberal, reduzindo a diferença ao multiculturalismo, e

a forma republicana da democracia capitalista para a política sempre transcendente e

isolada.

A presença indígena nos processos políticos andinos, em lutas zapatistas pela

autonomia, ou frente à mineração ou avanço do agronegócio em Paraguai, Chile e

Brasil, vem permitindo a construção de novos horizontes políticos que põem em diálogo

o ancestral com o comunitário, em debates bem atuais para quem também nas cidades

sente os limites das formas modernas de representação política, em sua cumplicidade

com um capitalismo que destrói o planeta e privatiza o comum, inclusive em suas

variantes de tipo nacionalista ou social.

Quando os povos indígenas são levados em conta como identidades rígidas

reconhecidas pelo estado desde a cultura, a plurinacionalidade se desliga da

cosmopolítica indígena e da comunidade, os direitos da natureza e a inclusão dos não-

humanos, referência que se origina na socialidade e no viver bem indígena, mas que é

referência também para o ambientalismo, a política e a filosofia da ciência

contemporânea. A partir deste lugar, é possível pensar um diálogo entre lutas do estado

espanhol e latino-americanas, onde viagens políticas como dos bascos a Cuba e

Chiapas, exílios mútuos e imigrantes constroem faz tempo as bases para conversar.

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

No idioma de Podemos, que é o do estado, o social leva ao econômico, como variáveis

macro que resultarão em direitos efetivos para indivíduos-votantes, reduzindo a

diferença à esfera do cultural, como se a organização em rede ou comunitária não fosse,

ao mesmo tempo, cultura, política e economia, mesclada antes que separada em esferas

que se administram desde acima. Nesta visada, o soberanismo e a autodeterminação se

reduzem à língua e bandeira, como símbolos subordinados ao social e o político, e não

como mundos sem limites para voltar a pensar no comum. Arrasando a austeridade e o

regime de 78, mas não muitas de suas determinações, uma nova hegemonia garantirá o

novo ciclo do capitalismo europeu na Espanha, talvez plurinacional, talvez republicano,

certamente com menos protagonismo para os povos do que para o estado.

Ainda depois de chegar ao governo, a presença inédita de indígenas e

campesinos no estado da Bolívia manteve vivo o projeto de descolonização, entendido

como mudança das formas políticas com que haviam sido sempre governados. Nesse

sentido, na nova Constituição do País, promulgada em 2009, o preâmbulo dá conta do

alcance com que se introduz a ideia da plurinacionalidade: “Deixamos no passado o

estado colonial, republicano e neoliberal. Assumimos o desafio histórico de construir

coletivamente o estado unitário social de direito plurinacional comunitário”. Pouco

depois, Evo Morales firmava um decreto em que se substituía a denominação do país de

“República de Bolivia” por “Estado Plurinacional de Bolivia”.

O antirrepublicanismo tinha no estado espanhol um sentido obviamente

diferente, com a monarquia dos Bourbon ainda em pé e a lembrança da realização

republicana também presente. Nos Andes sul-americanos, essa forma política se

associou com a continuidade do colonialismo que nunca permitiu acesso das maiorias a

direitos cidadãos, e este ponto é essencial pra entender o impulso inicial da

plurinacionalidade. Referia-se à busca de formas políticas mais democráticas, inspiradas

na comunidade indígena, mas para muitos adequada também para as grandes cidades.

Esta ideia de plurinacionalidade vinha com uma proposta de refazer o mapa do país,

hoje produto de poderes dos “caciques” e oligarquias que desenhavam a seu gosto a

territorialidade do país. Neste sentido, a política das autonomias, o “para além da

república”, e uma política de abertura a outras civilizações e à pluralidade ganhava um

sentido de mudança revolucionaria.

No Podemos, se fala da eleição do chefe de estado e não da república, por

estratégia. O limite que encontramos na nova formação, não é o de retomar ou não esta

bandeira que na Espanha remete a lutas importantes. A crítica tem a ver, antes, com

Salvador Schavelzon

37

pensar a política desde a necessidade de conceber as instituições e os instrumentos de

organização, como formas que não são neutras. É nesse sentido em que os processos

plurinacionais de Bolívia e Equador desenvolvem um ponto essencial contra a tradição

moderna europeia, cujo lado colonial não é visível somente na América nem para os

indígenas.

No discurso supracitado de Pablo Iglesias em Madrid, quando a estrutura do

partido se formalizava, o líder do Podemos chamou a “recuperar a Europa para os

cidadãos, os trabalhadores e trabalhadoras. E recuperar aquilo do que somos filhos:

liberdade, igualdade e fraternidade”. Disputar para o povo conceitos como república e

democracia apropriados pelo capitalismo é importante. Mas vale a pena refletir também

porque essa frase ocorre de ser evocada por liberais e conservadores contra o

“populismo”, termo que deveria evocar diferença e multiplicidade antes do que um

fechamento vertical ante a própria pluralidade.

Como significante vazio, no estado espanhol, a república poderá combinar-se

com o plurinacional como ocorre no Equador da “Revolução Cidadã”, ou era postulado

em Bolívia por Juan del Granado, do progressismo urbano de La Paz primeiro aliado e

depois opositor ao MAS. O importante é o modo em que permite expressar a diferença e

o pluralismo, que em Bolívia abria um terreno de experimentação institucional que não

se limita aos princípios políticos modernos, por suas alternativas para pensar a

propriedade comum, a representação direta e formas de economia e decisão que não são

as do capitalismo e do estado.

Outra coisa é o fechamento pragmático ao redor do imediato, seja por correlação

de força, concepção política ou aposta pelo já dado. Foi neste contexto que a forma

república foi reincorporada ao imaginário do “processo de mudança” na Bolívia,

disputando um termo inicialmente introduzido na Constituição a instâncias de oposição

ao MAS, cujo lugar enunciativo era do estado de direito, além da república e da nação.

Como todo processo de mudança, a participação inicial de campesinos indígenas no

processo, logo terminada, deixou como legado a ideia de que seria bom enterrar

algumas palavras e formas cunhadas pela “casta” política que queremos remover.

A mudança de ênfase e transformação do plurinacional foi expressado pelo vice-

presidente García Linera, que reconheceu o caráter republicano do projeto de mudança,

num momento em que o debate boliviano questionava a saturação retórica do discurso

oficial com elementos de origem indígena, empregados de forma contraditória com o

desenvolvimentismo e que se manteria já sem conexão com os projetos plurinacionais

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

de mudança com que haviam sido inicialmente associados. A redução do indígena a um

romantismo folclórico fundamentava uma volta à política liberal e republicana, como se

termos como igualdade, liberdade e inclusão não fossem eles próprios abstrações

retóricas contraditórias com o que ocorre na vida social.

Havia algo que se perdia enquanto o desenvolvimento substituía a

descolonização. A mudança ficou clara quando García Linera, próximo de 2013,

associaria o conceito de plurinacionalidade à proposta de Estado Plurinacional

Continental Latino-Americano. O projeto latino-americanista e bolivariano tinha o custo

do distanciamento das reivindicações indígenas de autonomia territorial e comunidade

para as quais, no passado, García Linera teve muita abertura em sua militância

indianista-marxista. Na fundamentação desta proposta, acompanhada de uma visada que

põe em foco o social e, como Podemos, reduz a diferença a uma questão de

reconhecimento cultural, o vice-presidente diferenciava as “nações políticas” (dos

distintos países sul-americanos) das “nações culturais”, indígenas campesinas, que

tinham aberto com sua mobilização um processo constituinte, mas que na nova

plurinacionalidade estatal e continental ficariam marginalizadas.

Quando vemos o lugar do poder como impotente e muito mais condicionado do

que condicionante, seria injusto atribuir a Podemos ou a Evo Morales e García Linera o

curso semântico que tomam os distintos significantes no contexto de um processo

político. Confiemos melhor em que, quando a máscara de Fernando serviu de desculpa

para iniciar um esguicho de lutas libertárias em toda a América Latina frente ao avanço

de Napoleão em 1808, nem o retorno do rei nem o restabelecimento do estado pode

impedir que nossas redes, povos e comunidades sigam buscando caminhos de

autonomia e autodeterminação.

Salvador Schavelzon é professor e pesquisador na Universidad Federal de São Paulo, Brasil. Publicou o libro El Nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia (Plural/Clacso/Cejis/Iwgia, La Paz, 2012) e Buen Vivir y Plurinacionalidad leídos desde Ecuador y Bolivia post-constituyentes (Abya Yala/Clacso, Quito, 2015). E-mail: [email protected]

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NOTAS

[1] Juan Carlos Monedero em “A Cara Lavada” da Radio Pública Argentina 29/7/14. https://www.youtube.com/watch?v=8tRHWxmZq74

Salvador Schavelzon

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[2] Uli Brand “¿Un nuevo comienzo para Europa?” Rebelión, 24/1/2015. http://www.rebelion.org/noticia.php?id=194691 [3] Errejón: “Los catalanes tienen derecho a decidir como los escoceses” 13/11/2014 El País. http://politica.elpais.com/politica/2014/11/13/actualidad/1415892800_413245.html [4] “El no a la independencia de Cataluña gana al sí por primera vez desde 2012”, El País, 19/12/2014. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/19/catalunya/1418984873_128596.html “La irrupción de Podemos trastoca el plan independentista”, El País, 22/12/2014. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/22/catalunya/1419283809_571655.html [5] “Más Cataluña pero dentro de España” (Àngels Piñol) El País, 25 de julio 2014. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/07/24/catalunya/1406230479_555975.html [6] Gemma Ubasart: Nunca antes un partido con opciones de gobierno había defendido el derecho a la autodeterminación. El Diario, 15/1/2015. http://www.eldiario.es/catalunya/politica/Gemma-Ubasart-Jamas-Espanya-autodeterminacion_0_345766548.html [7] Ver por exemplo o livro Reinvención del Estado y Estado Plurinacional, Santa Cruz de la Sierra, CEJIS, CENDA, CEDIB, 2007. http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/reinvencion%20del%20estado%20y%20estado%20plurinacional_Bolivia.pdf Sobre a proposta para a questão Palestina: http://outraspalavras.net/posts/a-possivel-extincao-do-estado-de-israel/ [8] Entrevista com Pablo Iglesias: “En las próximas elecciones habrá dos opciones: PP y Podemos” (Eva Saiz / Francesco Manetto) El País, 18/1/2015. http://politica.elpais.com/politica/2015/01/17/actualidad/1421526937_154439.html [9] Raul Zelik “Podemos y la «revolución democrática» en el Estado”, Gara, 07/01/2015. http://www.naiz.eus/es/actualidad/noticia/20150107/podemos-y-la-revolucion-democratica-en-el-estado [10] Movimiento al Socialismo, partido fundado como instrumento político dos sindicatos cocaleros e campesinos do país, que adotou esse nome quando uma facção da falange boliviana cedeu a sigla ao movimento que diferentes travas impediam de apresentar-se nas eleições. O processo de chegada ao governo, habitualmente considerado rápido, foi de 10 anos. [11] O catedrático da Universidade de Sevilha, Bartolomé Clavero opõe o constitucionalismo plurinacional, com eixo nos direitos indígenas, do bolivariano, com mais ênfase no presidencialismo e no estado. Rubén Dalmau, Albert Noguera e Viciano Pastor, da fundação CEPS, e Gerardo Pisarello, da Universidade de Barcelona, preferem englobar as constituições de Bolívia, Equador e Venezuela no mesmo marco de um novo constitucionalismo latino-americano.

Podemos além Podemos, um poder constituinte na Europa Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Nota dos editores: O pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sánchez Cedillo e o filósofo italiano Antonio Negri publicaram, entre fevereiro e abril de 2015, uma série de quatro artigos sobre as coordenadas em que se inscreve a experiência do Podemos na Espanha e da Syriza, na Grécia, cada artigo abordando o problema de um ângulo diferente. A seguir, estão os quatro artigos traduzidos dos originais espanhóis ao português, pela Universidade Nômade.

O eixo Syriza-Podemos por uma nova Europa democrática. (12/2/2015)

“Um espectro ronda a Europa”. Esse era o título da manchete de dias atrás do

jornal italiano Il manifesto, comentando as visitas aos governos europeus de Alex

Tsipras e Yanis Varoufakis, primeiro-ministro e ministro da economia da Grécia,

ambos da Syriza. Os dois estão na contramão do ônibus europeu, na iminência de um

choque, como descrito no jornal Der Spiegel, causando um verdadeiro pesadelo aos

ordoliberais alemães. Imaginem o que poderia suceder com a vitória do Podemos na

Espanha neste ano: que magnífico espectro à espreita, um monstro real gerado pelas

forças produtivas e exploradas da quarta economia europeia! Nas próximas semanas,

vários turnos eleitorais estarão acontecendo na Espanha, enquanto o mantra dos atuais

governos europeus continua o mesmo, agora com força redobrada, numa clara tentativa

de amedrontar os cidadãos espanhóis. Vamos nos preparar. Com a certeza de que a

arrogância e o mau olhado dessa propaganda serão derrotados.

O que o Podemos poderia dizer sobre a Europa? Consciente da aceleração do

tempo político que a vitória da Syriza na Grécia impôs, o discurso do Podemos sobre a

Europa é, de um lado, formado pela sincera solidariedade e alto apreço pela vitória da

Syriza, de outro lado, por uma avaliação prudente — a linha adotada por Tsipras

poderia fracassar, no curto intervalo entre as eleições na Grécia e na Espanha. Mas

prudência não é a mesma coisa do que ambiguidade. De fato, é óbvio como nada

poderia ser mais perigoso do que uma posição ambígua, a respeito não apenas das

políticas adotadas pela Troika na Europa. Qualquer ambiguidade, aqui, deve ser

eliminada, e assim tem sido na prática, se avaliarmos baseando-se nos últimos meses.

Duas Europas existem e é necessário posicionar-se numa ou noutra. A população

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

41

sensata tem consciência que vencer na Europa somente é possível com uma frente, já

aberta pela Syriza, e que agora precisa expandir-se pela Europa. A política da dívida, o

tema da soberania e a questão da aliança atlântica (com os EUA) somente podem ser

tratados a partir de uma esfera europeu total.

Já se esperava que haveria grande atenção nas propostas táticas e na política da

equipe econômica e financeira da Syriza. Independente da avaliação sobre a qualidade

das propostas, elas sinalizam um plano de cooperação transnacional e o abandono da

demagogia antieuropeia típica das “velhas” esquerdas, uma demagogia que, em

qualquer caso, nunca foi forte no Podemos. Claro que a aposta da Syriza está formulada

em termos de defesa da soberania nacional (“contra a Troika”, “contra Angela Merkel”

etc), mas na prática isto implica uma aceitação razoavelmente evidente da necessidade

de uma intervenção política dentro e contra a União Europeia (UE) da maneira como é

dirigida hoje. Nesse sentido, a opção primária agora está na coalizão dos PIIGS (sigla

para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha) e forças da nova esquerda, a fim de

sobrepujar o status quo da UE. Ao mesmo tempo, esta parece ser a única opção possível

para o Podemos ganhar a eleição.

Vamos tentar avaliar as coisas com maior profundidade. Até agora, o confronto

na Europa tomou a forma entre uma Europa neoliberal, neobismarckiana e

fundamentalmente conservadora, e uma Europa democrática, constituinte e

fundamentalmente afinada com as necessidades dos trabalhadores, camadas médias

empobrecidas e precarizadas, juventude desempregada, mulheres, imigrantes e

refugiados — os excluídos, velhos ou novos. A “alternativa”, por assim dizer, porque

afinal de contas partiu da crise de 2008, a alternativa bismarckiana se impôs à força,

deixando à outra Europa apenas um espaço marginal, de protesto e, por vezes, até

mesmo gritos de desespero. Entretanto, quando a situação pareceu ficar estritamente

fechada em relação às demandas de justiça e às revoltas contra a miséria, a alternativa

real se apresentou, a começar da Grécia. Agora, a tarefa é afirmá-la, organizá-la

precisamente nas áreas onde a iniciativa reacionária se impôs — onde se tenta afogar

Hércules para além de qualquer salvação popular.

A primeira questão, a primeira dificuldade, é enfrentar a dívida. A Europa da

Troika quer forçar as multidões europeias a pagar a dívida, e a habilidade em pagar essa

dívida se torna o metro da democracia e do grau de europeísmo. Mas todos esses que se

movem no fronte democrático pensam, ao contrário, que esse metro é insultante, porque

as dívidas cobradas das pessoas hoje foram contraídas por aqueles que governaram ao

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

longo dos anos. As dívidas engordaram as classes dominantes, não apenas mediante a

corrupção, sonegação ou favores fiscais, gatos militares insanos e políticas industriais

que não favorecem o trabalho, mas além disso ao submetê-la à lógica do rentismo

financeiro e impor precarização e incerteza sufocante sobre as formas de vida. Cada

homem, cada mulher, cada trabalhador teve de declarar-se culpado da dívida, da

imputação de que eles foram responsáveis.

O momento chegou para dizer em alto e bom tom que não foram os cidadãos,

mas os senhores do poder, os homens do projeto neoliberal, os políticos do “centro”, das

“grandes coalizões” — mais extremas e exclusivas a cada vez — foram eles que

geraram a dívida a partir do que vêm se apropriando para si e ante o que agora eles

exigem um reembolso indevido. Contra essa condição servil para as pessoas (não

apenas do sul da Europa, mas também do centro e de todo leste europeu), a nova

esquerda, através da Syriza, está exigindo um resgate — uma conferência europeia ao

redor da dívida, isto é, uma sede constituinte por um novo sistema de solidariedade,

pelo estabelecimento de um novo critério de medida e cooperação fiscal e para as

políticas do trabalho. Podemos pode trazer um apoio imenso a este projeto.

Todos sabemos que atrás desses tópicos reside um projeto de transformação

profunda das relações sociais. Uma vez mais, da Europa e na Europa, há um projeto de

liberdade, igualdade, solidariedade — um projeto que possamos chamar antifascista,

porque ele repete a paixão e a força das lutas da resistência. A aliança entre Podemos e

Syriza, e o impulso de fusão nesta aliança, endereça a todas as novas esquerdas

europeias, a possibilidade de construir um modelo — um modelo para uma UE

democrática e baseada na solidariedade, para além do mercado e contra ele.

Partindo desta refundação, a única política fiscal que pode ser feita está em

reduzir ou abolir a dívida, que tem sido consolidada sucessivamente até os dias de hoje

e então estabelecer e padronizar, para o futuro, critérios fiscais progressivos em toda a

Eurozona. Os temas centrais do estado de bem estar social — educação, assistência

médica, sistemas de pensão e políticas de moradia, mas também do trabalho doméstico

e no campo do cuidado [care] — podem ser desenvolvidos uniformemente no nível

europeu, acompanhando a grande inovação da renda básica de cidadania decente,

generalizada e uniforme. Tudo isso deflagra uma batalha constituinte nesses espaços em

que novos direitos de solidariedade podem ser reconhecidos, onde o comum se torna um

elemento central da organização socioeconômica.

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

43

Porém, para vencer nesses temas, é preciso indicar o terreno da luta: este

somente pode ser o espaço europeu em sua totalidade. O que nos traz ao tópico central,

ao redor do que muitos desentendimentos têm se acumulado: a cessão da soberania. Já

aconteceram transferências de soberania, e essas têm sempre sido feitas em favor dos

poderes neobismarckianos do capitalismo financeiro. Demagogicamente, ao atacar as as

cessões de soberania, direitos nacionalistas têm nascido e se desenvolvido

perigosamente na Europa. E apesar disso, é estranho como essas posições podem de vez

em quando ser assumidas (ou então encaradas com postura favorável) entre membros da

Syriza, Podemos e outras forças da “nova Europa” que está se formando.

Nós devemos ser claros neste ponto: cada um dos países que entrou na União, e

ainda mais os que entraram na zona do euro, não têm mais soberania plena. E isso é

bom, porque foi por trás da soberania nacional que cada uma e todas as tragédias da

modernidade se desdobraram. Se queremos continuar falando de soberania num sentido

moderno (e clássico), quer dizer, de um poder “em última instância”, nós devemos ser

claros que a soberania está cada vez mais identificada com Frankfurt, com a torre do

Banco Central Europeu.

A nossa situação está caracterizada por uma duplicidade perigosa. Precisamos

reconhecer isto: nós precisamos de Frankfurt, de uma moeda europeia, se não quisermos

cair como presas dos poderes das finanças globais, da política dos Estados Unidos ou

outros gigantes continentais que estão se posicionando contra a Europa; mas nós

devemos também recuperar Frankfurt para a democracia, para impor-lhe a razão dos

povos — e Frankfurt deveria ser assaltada pela Europa: primeiro pelos movimentos e,

então, gradualmente, pela maioria das democracias europeias e por um Parlamento

Europeu transformado em assembleia constituinte. Com a globalização, a centralidade

da governança monetária de zonas continentais foi imposta em todo lugar — e a Europa

é uma dessas zonas continentais. É impossível imaginar uma batalha política mais

essencial do que aquela levando ao controle democrático da moeda europeia. Esta é a

tomada da bastilha hoje.

Além disso, está claro que meramente levantar o assunto do controle sobre o

vértice político e monetário da Europa, e insistir na dissolução das velhas soberanias

monocráticas, poderiam abrir, de um modo produtivo, o tópico do federalismo, que é

outro passo essencial para a construção de uma nova Europa. Federalismo: não apenas

alguém quer que as nações europeias recomponham-se num diálogo constituinte, mas

também, e acima de tudo, uma articulação entre todas as nações, todas as populações e

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

linguagens que querem se sentir culturalmente e politicamente autônomas, com um

quadro unitário, isto é, federal. Não são apenas os PIIGS que querem isto; também há a

Escócia, Catalunha e o País Basco e todas as demais regiões que exigem autonomia e

habilidade efetiva de decidir sobre as suas constituições social e política. O federalismo

será a chave para a construção da Europa. O tema da soberania pode apenas ser

levantado e usado em termos de pluralidade, subscrevendo às dinâmicas que articulam

um franco federalismo para os próximos anos.

Aqui nós vemos novamente que somente a esquerda — a nova esquerda que

parte da radicalidade democrática dos movimentos emergentes de luta e se organiza ao

longo de linhas emancipatórias (Syriza e Podemos) — pode impor à União Europeia

não um instrumento de dominação, mas uma meta democrática. Radicalidade da

Europa-de-esquerda-democrática, este dispositivo está se tornando cada vez mais

importante para definir a defesa dos interesses da classe trabalhadora e para a

emancipação da população em relação à pobreza. Existe uma longa e suja tradição de

soberanistas de esquerda que deve ser encerrada, assim como nós devemos derrotar as

experiências populistas que usam sentimentos nacionais e transformam-nos em

impulsos fascistas (nacionalistas, identitários, isolacionistas). Somente uma esquerda

europeísta, profundamente transformada pela radicalidade democrática dos movimentos

emergentes contra a austeridade, pode construir uma Europa democrática.

Aqui, outro problema emerge, que nós podemos chamar de “questão atlântica”

— é um problema geralmente contornado ou eliminado do debate, como se fosse óbvio

que o processo da unificação europeia devesse necessariamente desenvolver-se sob a

proteção vigilante dos Estados Unidos. A Europa foi promovida dentro da Resistência

antifascista de maneira a superar a era das guerras que, até a metade do século, tinha

destruído, empobrecido e humilhado as suas populações.

Contra essa condição, os primeiros elementos do discurso europeu foram

construídos durante a era do pós-guerra na Europa e a transición na Espanha, com a

consciência de que a paz significava a possibilidade de democracia, enquanto que a

guerra sempre significou fascismo e militarismo. Depois da queda do muro de Berlim, a

unidade europeia também perdeu as suas características como último fronte contra o

mundo soviético e o expansionismo russo. Dessa maneira, a meta da União Europeia se

recentrou e reorganizou ao redor do quadro da civilização, nossas estruturas jurídicas e

autonomia no ambiente global.

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

45

Mas agora a Europa está cercada de guerras. Todo o Mediterrâneo está cruzado

por uma única linha de guerra, por fascismos e ditaduras, que se alastram por toda a

Europa em movimentos imigratórios, tensões críticas causadas pela política energética e

trocas comerciais. É uma linha que se estende por todo o caminho até o Oriente Médio,

fazendo da Europa um ator perigosamente exposto a movimentos armados com

importância e liderança globais.

Além disso, na fronteira oriental da Europa, uma guerra sem sentido está se

desenvolvendo entre populações falantes do russo, com responsabilidades que deveriam

ser colocadas num âmbito global de controle, pois a guerra contradiz os interesses das

populações europeias como um todo. Desta perspectiva, a soberania da Europa — não

mais a soberania imaginada de cada país, mas a soberania real da União que está sendo

construída — é projetada na OTAN e usurpada por ela. Isto é uma cessão verdadeira de

soberania nascida das populações europeias!

Quando Tsipras coloca, de maneira simbólica, a necessidade de lidar com o

problema, o premiê grego toca numa costura fundamental das estruturas europeias. Ao

fazer isso, ele introduz um problema a que nós deveríamos responder sem nos iludirmos

de que pudesse ser resolvido imediatamente, mas também sem negar a existência de seu

impacto central. Referimo-nos ao relacionamento da UE com a paz ou a guerra, com a

paz não apenas na Europa, mas também ao longo de suas fronteiras. Além disso, está

imediatamente claro que a questão atlântica não é um problema que concerne apenas

paz e guerra: é um assunto de paz e guerra traçado pelo sistema de controle e/ou

comando sobre as estruturas produtivas e financeiras da própria Europa.

De maneira a não ser hipócrita, a fim de falar claramente em imprimir um

ímpeto maior aos processos de construção de uma força política para a esquerda

europeia, nós vamos novamente colocar algumas questões na mesa que não podem ser

deixadas de lado.

O que o Podemos diz ou faz sobre a imigração, sobre os refugiados? Mas

também — repetindo-nos e tornando a nossa questão mais precisa — que diz sobre a

OTAN, sobre os conflitos regionais em curso na UE? Se tais tópicos forem

considerados “chabus” no reino eleitoral, é necessário evitá-los e/ou respondê-los com

exercícios retóricos, para sair do caminho? Não, não mesmo: é muito difícil adotar o

slogan “primeiro nós tomamos o poder, depois discutimos o programa”, neste domínio.

O tópico da paz e guerra não pode ser considerado secundário. Posicionar-se sobre eles

significa clarificar sem ambiguidade a respeito da orientação fundamental do grupo

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

liderando Podemos, não apenas a respeito de questões de paz e guerra, mas também em

assuntos que se referem à reforma e um projeto constituinte que afete toda a Europa.

A coragem e seriedade com o que Tsipras desenvolveu todo o contexto de

tópicos, que são agora importantes para a construção de uma Europa fora da Troica, são

os mesmos que podem permitir-nos de continuar traçando um dispositivo “além da

OTAN”. Os movimentos e governos de uma nova esquerda sabem que têm de tomar

esses assuntos como centrais. Sem ambiguidades, consciente de que a mesma

conjuntura global pode agora contribuir para a sua solução. De fato, o que cidadãos do

mundo estão exigindo, neste ponto, é uma Europa democrática no conjunto de uma

nova realidade global, porque a Europa é vista como uma realidade que pode renovar a

tradição democrática em longo prazo, seguindo a trilha aberta por Syriza e Podemos,

como esperança por reforma e em mover-se para além do capitalismo.

Os movimentos europeus querem ser incluídos na iniciativa política continental

que o eixo Podemos-Syriza podem criar/estão criando no espaço europeu. Essa

iniciativa constitui particularmente um ponto de atração para as novas esquerdas e a

nova radicalidade democrática em formação no sul da UE. O ritmo tanto quanto o grau

de articulação deste processo vai depender do curso presente do governo da Syriza e do

sucesso eleitoral do Podemos. Nós todos podemos organizar uma ruptura constituinte

no espaço europeu.

A democracia hoje é selvagem. O exemplo espanhol. (23/2/2015)

Dizem os companheiros que deram vida ao Podemos: temos conseguido sair

positivamente dos limites da horizontalidade do movimento, tão rica quanto infrutífera.

Temos conseguido isso com um gesto político de autoconstituição, de organização e

representação. Temos havido a inteligência para compreender que o espaço entre as

eleições municipais e as gerais, entre maio e o final do ano, é o único que poderia

permitir “romper o cadeado de 78″: no período eleitoral, o adversário se vê obrigado a

dispersar-se em seu território; as garantias constitucionais funcionam melhor do que

noutras condições e, consequentemente, se tornam zonas possíveis de ruptura do regime

atual, profundamente desacreditado e dividido. Além disso, no final de 2015, a frente

capitalista talvez esteja em condições de empenhar-se mais na preparação de seu ataque,

reorganizando-se depois de ter reagido, e eventualmente demolido, ferozmente, a nossa

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

47

resistência. Destarte, depois do final deste ano, a janela histórica de oportunidade

voltaria a fechar-se por muito, demasiado tempo.

Tudo isso admitimos. Os companheiros de Podemos são os únicos que, na

Europa, se atreveram a sério a dar esse passo e construir um eixo vertical, a partir de um

movimento com uma potência e uma novidade inauditas, organizando dessa maneira,

sem demagogia nem subterfúgios, um caminho de saída para o “democratismo de base”

— finalmente impotente ante o que os tempos exigem, para além da contemplação de

sua própria horizontalidade. Somente o barão de Münchhausen se jactava de ter

conseguido sair sozinho do atoleiro, puxando-se pela gola do casaco até levitar…o

Podemos conseguiu.

Apesar disso, para seguir ganhando, não apenas é necessário pensar no

adversário, em como derrotá-lo, desarticulando-o e levando-o a perder todo o peso

político e constitucional; é preciso estar certo de que o que se está fazendo nessa

direção, seja feito na mesma escala majoritária e radicalmente democrática de onde ela

nasceu. Nesse processo, não pode haver estreitezas, nem espaciais nem temporais.

Apenas para dar um exemplo: o Partido Comunista Italiano, a que tão frequentemente

os teóricos de Podemos fazem referência, perdeu toda a sua força junto com a cabeleira,

capturado que foi pelo inimigo: no caso do PCI, a estreiteza se chamava “autonomia do

político”.

A estreiteza não tarda em converter-se num nó corrediço que vai capturando os

dedos de quem colocar a mão — ou o pescoço. Sobre isso, a crítica à moda politóloga

do partido político, elaborada há pelo menos mais de um século, é meridianamente

clara: não somente sobre os limites da burocratização da estrutura-partido (sobre o que

insistiam aqueles teóricos, denunciando, como homens de direita que eram, a nascente

força dos partidos operários), como também, e sobretudo, acerca das características do

poder de mando, da direção, da liderança, do “carismático” que a autonomia do político

determina. Era uma análise correta de tendência, assim como de uma ameaça (uma a

mais entre mil outras, mas particularmente atinada), que se somava à luta daqueles

politólogos contra os partidos do operariado.

Até aqui, ficamos nos limites do que tínhamos chamado estreitezas “espaciais”.

Quanto às “temporais”, se vinculam à questão da “autonomia do político”. É bom deixar

claro desde já que nós não nos contamos entre aqueles que negam a possibilidade de

aproveitar, da melhor maneira, os tempos da crise, sejam eles eleitorais ou sociais; nem

entre aqueles que negam a necessidade de golpear num elo fraco da cadeia de poder de

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

mando, sobretudo se é possível fazer isso no momento em que as forças de protesto

social dos cidadãos estão mais fortes. Mas cuidado: um governo é difícil de exercer.

Não é algo que alguém possa fazer sozinho. Com maior razão ainda se pensarmos nos

regimes atuais de governança, em que a continuidade da ação não apenas deve manter-

se durante um longo ciclo temporal, como também está constituída por uma série de

atos pontuais. É preciso antecipar a capacidade de o adversário (direita nacional-popular

e/ou o “PPSOE”, projetos nacionalistas de capital catalão, Troika europeia e global etc)

sobrestar o contra-ataque indefinidamente. Ante esse adversário, na dimensão temporal,

“estar dentro” dos movimentos é essencial para a ação contínua de um governo

conquistado por Podemos.

Os companheiros bolivianos entenderam isso perfeitamente quando conseguiram

que convivessem durante uma longa temporada governo e assembleia constituinte. Foi

uma balbúrdia — mas esbanjou força e vitalidade.

O problema do exercício do governo “no tempo” não está apenas em sua

eficácia, senão sobretudo na irreversibilidade de suas conquistas. Quem se coqueteia

com a “autonomia do político” termina pensando que o desenvolvimento da democracia

de base é secundário. Em certas ocasiões, pode chegar a imaginar formas de poder de

mando energizadas de uma eficácia exclusivamente carismática: tragicamente, é o que

sucede de vez em quando. Mas não é o nosso caso, estamos trabalhando para sair em

definitivo dos dilemas weberianos do poder de mando burguês, que até agora tão

somente legitimaram soluções autoritárias aos conflitos sociais que as lutas levaram à

altura do político.

Sem embargo, voltemos ao problema central que abordamos aqui: da

horizontalidade à verticalidade; da agitação e resistência de movimento ao governo.

Podemos pede a toda/os a/os companheira/os que raciocinem partindo deste nível. Um

nível de governo central? Talvez. Isso se apresenta mais próximo e possível. Por acaso,

não seria certo que: somente se encaminhar a ação de todos os cidadãos para uma

renovação poderosa do governo das cidades, somente nesse caso, se pode dar o exemplo

próximo, palpável, de um projeto constituinte eficaz? Pensamos que sim. Porque a

cidade e o município, a vida cidadã e suas formas de encontro podem plasmar figuras

sólidas de administração e iniciativa constituinte. As acampadas na metrópole, as

cidades e inclusive os pequenos povoados têm sido um lugar de encontro constituinte.

Eles têm demonstrado que os modos de vida metropolitanos são modos políticos e

produtivos em termos gerais. Fazendo com que interajam democracia e (re)produção da

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

49

cidade teremos a possibilidade de articular o político, quer dizer, unir a vontade de

ganhar e a capacidade de decisão num tecido amplo, plural e ativo de presenças

militantes e produção de programas de transformação. O político se joga no interior

disto tudo. Aí se faz carne e osso o problema foucaultiano de “como queremos ser

governados?”

E acima de tudo, a partir daí, das administrações metropolitanas e municipais, se

dá a possibilidade de construir o governo no plano estatal, tijolo sobre tijolo. Num

regime biopolítico (a saber, em que o poder de mando, vida, produção, afetos e

comunicação se entrelaçam e se confundem como num labirinto), os saltos são difíceis

quando não impossíveis — na velha política também se davam assim as coisas, e

quando havia saltos, às vezes heroicos, quase sempre era necessário retroceder,

cobrindo de instituições artificiosas um terreno atravessado com pressa demais.

Verticalizar a horizontalidade não apenas significa conquistar as capacidades de

decisão geral, governo, gestão segundo uma “guerra de movimento”, senão também e

sobremaneira ter-se elevado a uma visão mais ampla desde cima: e aqui é quando se

compreende que a guerra de movimento não compensa se as posições conquistadas, as

frentes defendidas não possam se manter, consolidando-se e desenvolvendo-se

gradualmente.

O governo deve garantir o poder das organizações cidadãs — assim se dizia não

faz tanto tempo na América Latina, quando o movimento progressista era ganhador —

porque somente em tal caso, o governo central se coloca a salvo de capotagens

repentinas e/ou organizadas. Por quem? Podemos responder: já não somente pelo

adversário que conhecemos, por essas forças reacionárias que enfrentamos, senão por

uma hierarquia muito mais forte, que através de Europa se desdobra até as cúspides do

governo do capital financeiro.

Não cabe minimizar o reconhecimento de que não temos medo e que é possível

ganharmos dessas forças. Mas é preciso tomar cuidado de não tentar o diabo que ainda

pode surgir da profundeza do enfrentamento. A nossa força segue sendo as acampadas,

os municípios, as mareas, os movimentos — dito de outra maneira, o que o 15-M tornou

possível e praticável. Às vezes nos dá a impressão que, para os promotores do Podemos,

o “poder” é uma dimensão à parte. Não está certo: o poder é um incremento da

capacidade de atuar, é uma perspectiva de ação sobre e nas relações políticas, enquanto

“Poder” e “Político”, com maiúsculas, não existem. Não há senão graus diferentes e

múltiplos de contrapoder. Mas quase todos os dirigentes do Podemos reiteram, dentro e

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

fora da organização, o mesmo lema: “primeiro tomas o poder, e depois aplicas o teu

programa”.

A “autonomia do político” pode tornar-se uma teoria perniciosa se,

sobrevalorizando a instituição e a eficácia do poder estatal, negar a gênese e a

legitimidade materiais do fundamento do político. A representação que separa os

representantes dos representados, a “vontade geral” (chame-a “povo” ou “unidade

popular”), que cria um fundamento místico e inapelável dos representantes, nada disso é

o que interessa aos movimentos. Não. O importante passa por (re)criar um fluxo de

movimento político, um sistema aberto de governança desde baixo que mantenha

unidos — mediante o debate constituinte constante e uma contínua extensão desse

debate aos cidadãos — movimento e governo. É possível construir essa ponte, esse

conjunto — se todos se rendem à necessidade que se chama “ser maioria”. Este é o

empoderamento decisivo.

Podemos precisa ir do keynesianismo ao commonfare. (16/3/2015) Na mídia internacional que se ocupa da questão da Syriza, frequentemente

aparece certo incômodo: os gregos teriam se apresentado nas negociações de Bruxelas

com atitudes informais, pouco adequadas à etiqueta diplomática. Que sensação mais

estranha esse juízo provoca, se compararmos a franqueza do comportamento de Yánis

Varoufakis, o ministro da economia grego, com a secura de Wolfgang Schäuble, seu

colega alemão! Parece uma cena do Avarento de Molière: um gastador presumido de

fortunas ao lado de um burguês que defende com os cinco sentidos o dinheiro

acumulado! À margem da cena, lemos a peça de outra perspectiva: temos assim

Varoufakis, livre representante de uma multidão de trabalhadores que exige, para eles, a

possibilidade de produzir valor e criar riqueza — diante de Varoufakis, Schäuble

aparece como guardião viciado das finanças dos ricos; Varoufakis como a imagem do

trabalho, Schäuble como o agente da extração do valor desse esforço e imaginação.

Durante um longo período na Europa, a variável salarial foi a ponta de lança do

desenvolvimento capitalista. Os estados pagavam o estímulo ao desenvolvimento: daí,

nasceu o chamado Welfare State e, pela primeira vez na história, se propiciou certo bem

estar às classes trabalhadoras. Elas tinham entrado na maioridade de idade, se

apresentaram à cena política e traduziram a questão do salário e do Welfare como efeito

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

51

de uma relação de forças que lhes era favorável. Razão pela qual os estados se

endividaram em troca de paz social.

Agora, na crise, a casta patronal e política europeia pede, exige e impõe aos

trabalhadores o ressarcimento desse gasto, chamando-o “dívida”. E assim a dominação

se reapresenta sob a figura da dívida. Na crise, se repetem as origens do capitalismo. A

origem remete à acumulação desenfreada e ao monopólio da distribuição social da

riqueza e da moeda. Dessa maneira, nascem a sociedade e o poder da burguesia, que

constitucionalizam seus interesses e baseiam a sua própria identidade na exploração de

todo esse trabalho social. Assim, pois, o problema não é exatamente a dívida, senão

como ela se formou; não a sua quantidade, mas seu aspecto qualitativo, o modo como

determina a vida de todos.

Com a mudança das relações de força, a dívida se converteu numa condenação,

não para quem a contraiu (i.e., os patrões, com o objetivo de manter a paz social), senão

dos trabalhadores, que de boa fé haviam aderido a essa paz que renovava a sua

subordinação. Há que se romper essa relação de subordinação. Podemos — assim nos

parece — tem a possibilidade de começar a acabar com esse escândalo na Espanha e na

Europa. Por quê? Porque a Espanha é a quarta economia da Europa, porque sua

consistência demográfica e econômica a coloca a salvo de chantagens e manobras

excludentes, porque uma iniciativa democrática que parta de Espanha — com a revisão

da dívida pública, a compensação e novo impulso de crescimento na forma de créditos e

as ajudas estruturais — não poderá ser tratada com arrogância pela emperiquetada

diplomacia de Bruxelas, ao contrário, poderá somar-se ao interesse e ao despertar

político e constituinte de outras forças democráticas na Europa.

Agora, certo, uma política econômica de renovação somente pode partir da

eliminação da injustiça fiscal. Exige, por conseguinte, a imposição de critérios

fortemente progressivos em matéria de impostos, um controle lúcido das atividades

bancárias, uma taxa sobre as transações financeiras — tudo isso vinculado a uma

política de destruição de paraísos fiscais e rentismo financeiro. A nossa é uma firme

chamada ao intervencionismo fiscal. Sabemos muito bem até que ponto o

intervencionismo poderia resultar contraproducente e restabelecer as piores versões do

jacobinismo, quando se juntam ao sacrossanto sentido de justiça outras tantas doses de

sectarismo plebeu: mas no que tange à questão fiscal, isso hoje é necessário. Porém,

além de seus excessos, se trata neste caso de uma representação do sentimento de

igualdade que a democracia produz, bem como de um aspecto fundamental para uma

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

vontade constituinte renovada. Nesse terreno, é perfeitamente legítimo recorrer àquela

vigorosa persuasão moral — a alma do pensamento democrático, segundo Thomas

Jefferson — exercida com frequência e eficácia pelos movimentos multitudinários. A

reconsideração, a partir dessa experiência de justiça, desse sentido de igualdade, de uma

nova experiência constituinte para a União Europeia representa o verdadeiro tema da

crítica da economia política de nosso século. Quem paga os impostos, quanto e para que

fins? Trata-se de uma questão cuja reinserção é tachada de “vulgar” pela casta, mas que

se mostrou fundamental em todas as experiências constituintes da modernidade. E se

hoje estamos mais além, se estamos já na pós-modernidade, isto significa que não basta

fazer um discurso sobre a distribuição social dos lucros. Hoje é necessário, mais do que

isso, desenvolver um discurso econômico que, partindo da reprodução da vida e da

riqueza, proporcione acesso aos temas da produção social. A batalha democrática tem

de ser travada e ganha no terreno da produção.

Assim, pois, keynesianismo, pós-keynesianismo? Uma vez que tenhamos

reconhecido a natureza reacionária do ordoliberalismo e, consequentemente, da

constituição mesma do Banco Central Europeu sob a batuta do Bundesbank — que

marco econômico e financeiro poderia ser estimulado? e quem deveria ser o ator

fundamental desse renascimento ao mesmo tempo econômico e democrático? O

problema é difícil, já que é novo. Velha é, ao contrário, a sagrada história da

laboriosidade e austeridade do experimento da República Federativa Alemã (RFA,

antiga Alemanha Ocidental). Velho é o credo ordoliberal da “economia social de

mercado”, que tem Ludwig Erhard como profeta e a reforma monetária de 1948 como

primeiro de seus milagres. Uma vez terminada a sua função anticomunista, promovida e

organizada pelos ocupantes anglo-americanos, o evangelho ordoliberal se converteu

hoje, paradoxalmente, num instrumento de destruição das defesas erigidas contra um

neobismarckianismo alemão — que, outra vez, está se elevando como ameaça contra a

paz e a democracia no continente.

Quando dizemos que estamos na pós-modernidade, nos colocamos, para

começar, o tema do sujeito econômico como central, capaz de interpretar e guiar a

reforma no modo que a produção social exige. Agora sim, ao fazer isso na Espanha de

hoje, não podemos deixar de remeter-nos ao povo do 15-M. Precariado, força de

trabalho cognitiva, trabalhadores de indústria e serviços, professores e estudantes,

trabalhadores do cuidado e da saúde, desempregados que trabalham esporadicamente,

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

53

imigrantes, mulheres e homens: se trata de um povo explorado pelo capital global, uma

multidão social de quem se extrai difusamente o mais-valor.

O capital financeiro extrai valor da sociedade em sua totalidade, em todos os

tempos e espaços. Diante disso, o sujeito que atua nessas condições chega ao

conhecimento da violência e das dimensões da dominação capitalista, assim como da

forma que ela se exerce, para desprender-se da austeridade e eventualmente da miséria,

para subtrair-se aos mecanismos de exploração. O que combatemos (e aqui não se trata

de desdobrar questões ideológicas) não é apenas o egoísmo e a avidez de dinheiro e

poder, nem tampouco o individualismo moral que trazem consigo: é mais do que isso,

se não levarmos o discurso de radicalidade democrática ao plano da produção

econômica e da vida de todos os dias, nos arriscamos a deixar a nossa ação

completamente insuficiente. Então, a nossa tarefa consiste em mover-se para construir,

no comum, formas de redistribuição de riqueza e desenvolver um trabalho de libertação

da produção social.

O Welfare ou políticas de bem estar são apenas o primeiro terreno da batalha. A

renda básica garantida e digna para viver a nossa própria viva é um elemento

fundamental para um novo welfare, de modo a exercermos a nossa própria cidadania

como iguais e livres, a salvo de chantagens e privilégios, das empresas e da corrupção

das máfias de toda espécie. A renda básica deve ser desenvolvida, portanto, como um

dos elementos principais do programa econômico. A partir de uma renda básica

garantida e digna para todos, podem se desenvolver políticas de gestão e empresariado

cooperativo, para abrir-se a novos “serviços humanos para o ser humano”: hospitais,

escolas, moradias, transformação ecológica da produção, dos transportes e das cidades,

produções baseadas no software e hardware livres (o que os companheiros equatorianos

e espanhóis chamaram de FLOK Society). Algo fundamentalmente distinto do

neoextrativismo em sua versão espanhola, que consiste em devastação ecológica e

social de territórios submetidos a economias de exploração e precariedade desenfreadas.

Sim, mas também — apenas para sublinhar momentos com uma importância

excepcional — medidas imediatas que tirem os pobres da miséria e uma grande política

que propicie às mulheres sentirem-se finalmente cidadãs inter pares, que contribua para

que as mulheres se emancipem não apenas do patriarcado e da família, mas ao mesmo

tempo lhes dê respaldo para as peripécias de sua libertação; que conceda aos cidadãos

migrantes a plena cidadania do trabalho que lhes corresponde in primis, porque a

ninguém escapa que os imigrantes têm sido, nos últimos vinte anos, a base humana do

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

crescimento do setor imobiliário e dos serviços às pessoas e, sobretudo, à manutenção

do sistema público da previdência.

Trata-se, com isto, de formas de ações produtivas que se inscrevam na

construção do comum. Precisamos de “câmeras metropolitanas do trabalho” que

preparem instrumentos de luta e figuras para a organização do viver comum. E isto não

se aplica apenas ao salário social (renda básica), mas também ao salário dos

trabalhadores: a iniciativa sindical tem de medir-se com o campo social, se faz

necessário adotar e ampliar as formas de luta já experimentadas nas mareas e,

sobretudo, na Plataforma dos atingidos pelas hipotecas (PAH). Trata-se de um grande

objetivo: a unificação, num projeto forte e participativo, da iniciativa mutualista e

cooperativa com a sindical — voltada para a construção do comum. Sobre isso, não se

pode esquecer que a PAH é algo mais que um modelo de referência, é uma máquina de

guerra que está devolvendo vida e esperança a milhares de pessoas.

Podemos e seus economistas falam de uma ação inspirada no keynesianismo

para voltar a colocar em marcha a máquina produtiva do país. Não falta utilidade à

reivindicação keynesiana, para atacar diretamente as medidas ordoliberais de controle

social e econômico. Mas reinventar hoje o keynesianismo político não é uma tarefa fácil

depois da sua derrota política, depois de Thatcher, Blair e Schröder. Apesar disso, pode

começar a se tornar um terreno favorável para a recuperação de iniciativas empresariais

e a introdução de políticas redistributivas eficazes, ao se propor um novo âmbito de

programas sociais e decisão política, que incidam diretamente na relação entre capital

financeiro e sujeito produtivo social. O povo do 15-M de que temos falado pode assumir

aqui um papel antagonista. Mas surge a objeção: se trata de uma multidão não

organizada, essa é uma acumulação de forças muito distintas. E é verdade, mas ainda

pode tornar-se algo muito diferente. Assumindo a divisória, se faz necessário um

discurso e uma prática para uma (nova) luta de classe. Na esteira do 15-M, pode dar-se a

passagem da defesa e conservação do Welfare à construção europeia de um poderoso

Commonfare.

Quando chegou ao governo em 1933 e quis construir um New Deal que

reconquistou a classe operária para o desenvolvimento industrial, Roosevelt se propôs

acima de tudo a construir um sindicato novo, um sindicato do operário-massa (homem e

predominantemente branco). E assim foi feito, com o que funcionou a sua reforma

política: quer dizer, isso impulsionou a sindicalização das novas figuras operárias,

taylorizadas na grande empresa fordista — e assim nasceu o Congress of Industrial

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

55

Organizations, antagonista aos capitalistas no interior do terreno do trabalho; à sua

hegemonia foram subordinados os velhos sindicatos do operário profissional: que não

passavam de empresas frequentemente corruptas e incapazes de construir uma

universalidade para toda a classe operária.

Hoje se trata, nas novas condições, de atuar da mesma maneira: construir uma

coalizão dos trabalhadores nas redes sociais e digitais que corresponda à nova

composição de classe dos trabalhadores; unificar o mutualismo, instituições

cooperativas e, sobretudo, construir uma forte sindicalização do social. A renda básica

contra a exclusão é fundamental, mas não é suficiente para determinar o êxito do

projeto. A revisão da dívida pública, o imposto sobre as grandes fortunas e transações

financeiras são elementos igualmente essenciais. O decisivo é construir um sujeito que

una interesse civil e econômico, integrando as diferenças da multidão; que possa a partir

disso construir de tal maneira uma ação política coerente e contínua, uma agitação que

desabroche desde baixo a reforma constituinte.

Na busca dessas novas figuras da democracia econômica — e plasmando-as

eventualmente através do governo do país — poderá colocar-se em marcha o

empresariado social da multidão. Devemos arrebatar das castas políticas e financeiras o

injustificado monopólio ideológico e institucional sobre a capacidade de criar empresas.

Quando se atua com sensatez, a crítica econômica e os programas de reforma nascem

diretamente da relação entre governo e multidões. Estas não preexistem à ação política

desde baixo. Mas quando as iniciativas populares se fazem governo, até a teoria

econômica pode ter uma renovação. Precisamos de uma nova ciência do governo

econômico para a sociedade pós-moderna. Muitos esperam de Podemos a introdução

deste saber, que não apenas consiste na excelência da tática de governo, como também

na estratégia das multidões e na proposta de uma democracia.

Por uma iniciativa constituinte na Europa. (20/4/2015)

No último pós-guerra europeu, o sistema democrático constitucional se

organizou em todos os países (depois de 1978, também na Espanha, com o

complemento das forças nacionalistas e/ou independentistas) ao redor de um modelo de

alternância de exercício do governo entre a esquerda e a direita, no marco de um sistema

capitalista em evolução e suscetível de reformas — porém não submetido à discussão

fundamental: os termos da conferência de Ialta. Este modelo está em crise. De fato, em

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

muitos países europeus já surgiram terceiras vias, que se apresentaram no campo das

eleições, e que desbarataram o esquema dual. Sobre isso, seria preciso perguntar se a

nova estrutura constitucional da União Europeia não começou a construir-se,

precisamente, a partir da previsão de uma crise no modelo constitucional pós-guerra —

e, de todo modo, a partir da percepção de uma incontinência já presente no modelo

democrático clássico. Aquela estrutura havia se apresentado como garantia para a

manutenção de um modelo capitalista de desenvolvimento, frente à decadência de suas

formas nacionais estatais. De outro lado, tanto a esquerda quanto a direita já tinham

deslizado em direção ao “centro”, construindo formas artificiais de representação e

governo, destinadas a um equilíbrio que deveria garantir a estabilidade para o futuro,

eliminando assim qualquer dialética entre reforma e transformação.

Em consequência, hoje a situação está mudando rápido. A crise grega começa a

colocar a nu que aquela homogeneidade do poder de mando (composta de “direita” e

“esquerda”) exerce uma função sempre num sentido conservador e, não poucas vezes,

manifestamente reacionária. Por um lado, a direita considera a Europa um butim

próprio. O modo em que atuaram e continuam atuando as direitas até agora majoritárias

na Europa mostra que a querem como seu produto exclusivo — uma verdadeira

reificação. Por outro lado, se observarmos os governos socialistas, enrolados no bloco

centrista que lhes permite administrar interesses parciais, se vê que eles renunciaram a

qualquer esperança de renovação. Sirvam de amostra para o fenômeno o penoso

haraquiri do ex-premiê Zapatero, do PSOE, em maio de 2010 e a autodestruição do

partido socialista grego, o PASOK.

A União Europeia, tal e qual se formou e como se apresenta hoje, governada por

um “centro” político, — capaz de levar a cabo ações extremistas e devastadoras em

defesa dos equilíbrios capitalistas — está submetida à chantagem e talvez destinada a

despedaçar-se. Quanto mais as multidões europeias compreendem que, num mundo

globalizado, somente uma organização continental pode permitir a satisfação das

necessidades vitais das populações, menos as classes políticas europeias estão dispostas

a aceder a uma União política — a menos que seja criada para satisfazer direta e

exclusivamente os seus próprios interesses.

Precisamos nos afastar dessa descida e voltar a colocar em jogo a democracia

para a construção do projeto europeu. Isso é necessário para que a Grécia sobreviva,

para que as forças democráticas espanholas se afirmem e possam ganhar, e para que

todos os europeus se reconheçam na Europa e saiam de uma crise e uma austeridade que

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

57

não só já tornam difícil a subsistência, como também nos impedem de ser livres. Eles

podem jogar em ambos os terrenos: no da Europa existente e no de velhos

nacionalismos agressivos. Nós, em contrapartida, não.

Resulta particularmente doloroso o fato que, para falar a favor da Europa, para

trabalhar na fundação de um poder constituinte que imponha seu caráter social e sua

caracterização democrática com uma perspectiva federalista, hoje seja preciso avançar a

polêmica contra boa parte das esquerdas na Europa. Está claro que elas venderam o seu

direito de primogenitura. Já em 2005, momento do referendo sobre a Constituição

europeia, a cegueira das esquerdas europeias se colocou claramente. O fato é que os

socialistas europeus não veem outra possibilidade de fazer política e gerir o poder que

não seja no âmbito do estado nação. Essa cegueira sectária nacionalista renasceu (depois

de um longo eclipse) e chegou ao auge com a atual crise europeia. Em vez de aliar-se

aos movimentos de luta para mudar a realidade da União Europeia, as esquerdas

europeias têm se declarado, com frequência, não somente a favor das políticas de

austeridade, mas também contra a própria Europa (como, por exemplo, está

acontecendo agora na França). As esquerdas estão movidas por um egoísmo

corporativo, que está despojando a palavra “esquerda” do pouco esplendor que ainda

sobrava. Tanto é assim que esse egoísmo se confunde facilmente com o ódio das forças

fascistas contra a União Europeia. Dizem as esquerdas oficiais que a Europa não pode

funcionar porque, desde o começo, a um governo político no nascente processo,

preferiram-se as burocracias jurídicas: e isso está certo. Dizem também que, numa

segunda fase, tentaram-se compassar politicamente economias que tinham um ritmo

distinto e às vezes contraditório; porém, sem introduzir, naquele momento, motivos

eficazes de unidade programática nos planos fiscal e cultural: e isso está certo. Logo,

debaixo dos fogos da crise, não poderiam deixar de fracassar todos os mecanismos de

compensação, o que está conduzindo a União e o Euro — precisamente na ausência de

qualquer contraforça política — à beira da dissolução, em desdém ante a grande maioria

das populações do sul da Europa: e isso está certo.

Mas por que os partidos de esquerda querem nos dar lições quando foi

precisamente a visão exclusivamente estatal deles, isto é, o corporativismo dos

sindicatos e a traição a qualquer esperança internacionalista, o que nos levou a esta

situação em primeiro lugar? A ninguém escapa o fato que a unidade política da Europa

constitui o elemento fundamental de seu êxito econômico e civil, dentro de um marco

global. Trata-se de uma política cuja promoção corresponderia à esquerda — mas esta

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

confundiu e se corrompeu na aliança com a direita, não somente no âmbito das

instâncias de governo nacionais, como sobretudo nas europeias.

Agora não temos mais tempo a perder. Renovar a integração quer dizer, hoje,

abrir uma campanha constituinte, isto significa eliminar o consenso apassivante que, até

agora, tem permitido o triunfo das atuais estruturas europeias e a continuação do

desastre provocado por suas políticas. Quer dizer desenvolver uma opinião pública que

comece a desdobrar uma nova perspectiva constitucional. Por trás da vitória da Syriza e

abrigando as esperanças da vitória do Podemos, depois do que em muitas partes da

Europa comecem a nascer forças políticas eurorradicais, não custa entender que

constituir Europa significa sair de cima dos parâmetros conservadores que, até agora,

determinaram as suas estruturas e políticas. Resulta estranho manifestá-lo agora, mas o

certo é que, desde a vitória da Syriza, as dimensões interna e externa da União

começaram a superpor-se e caminharem de mãos dadas, como estímulo a um regime de

maior liberdade e igualdade, como esforço de fazer o “comum”, mais além da dicotomia

entre o privado e o público, como um valor reconhecido em cada país da Europa e, ao

mesmo tempo, uma pressão que os atravessa a favor de uma integração federal

sancionada democraticamente. Trata-se de um processo que está somente em seu

princípio, mas que é tendencialmente majoritário. Em qualquer caso, é preciso

reconhecer que se insinua um novo espírito constituinte: não seria precisamente a

percepção deste fenômeno o que — enquanto uma resposta — tem produzido tanto

histerismo e tanta vulgaridade nas mídias dos mandachuvas, nas declarações dos

partidos e das burocracias europeias? Há uma nova compreensão de que a dimensão de

libertação dentro de cada um dos países precisa conjugar-se com a potência da

federação em toda a Europa — não é exatamente isto o que amedronta as oligarquias

nacionais estreitas e ignorantes?

Num artigo formoso, publicado faz pouco no diário italiano Il manifesto, se

recordava o juramento dos revolucionários do Terceiro Estado, pronunciado quando se

tornou evidente que os demais estamentos do Ancien régime não poderiam apoiar uma

reforma constitucional baseada na liberdade, igualdade e solidariedade. Hoje, as forças

democráticas na Europa precisam dar um passo análogo, quer dizer, fazer um juramento

constituinte, que permita identificar formas novas de união federal e novas estruturas de

unidade econômica no plano europeu, e que recolham em sua base a nova radicalidade

democrática expressa de 2011 em diante.

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

59

Há elementos de política exterior, jurídicos, econômicos, que fundamentam essa

necessidade constituinte — ao que deve corresponder uma decisão política encarnada

nos movimentos. Os elementos da política exterior surgem de uma reflexão atenta sobre

a colocação da Europa no âmbito global. Hoje, a Europa participa de um bloco de forças

agrupadas na OTAN que orienta, de maneira irresponsável, as políticas externas dos

países da União. Os interesses das populações europeias estão totalmente subordinados

ao poder atlântico. Nesse terreno, assistimos todos os dias a paradoxos injustificados e

enredos injustificáveis, entre os quais aparece recentemente o financiamento europeu da

guerra ucraniana, ao mesmo tempo que se impede o refinanciamento da dívida grega.

Mas a confusão e a passividade dos povos e a opacidade das decisões, dos

compromissos e das vilanias em matéria de política exterior, de cada um dos países e da

União, são simplesmente indescritíveis: é preciso dizer basta! A irresponsabilidade da

relação estratégica e militar, numa época de instabilidade global, representa uma

condição perigosíssima que toda iniciativa constituinte terá que levar em conta como

prioridade (e aqui se trata, também, de acabar com a violência e o assassinato de

pessoas nas fronteiras externas da União).

A Europa, libertando-se do condicionamento atlântico, deve chegar a ser capaz

de desenvolver políticas autônomas,, tanto para promover intercâmbios e colocar à

disposição do mundo a inteligência coletiva — o general intellect de que falava Marx —

construído desde já; quanto para apoiar os povos que seguem oprimidos, quanto para

construir uma paz e um desenvolvimento duradouros. Com efeito, não nos esqueçamos

que o que está em jogo hoje é a paz.

Em relação às condições jurídicas, o certo é que o impulso em direção a uma

estrutura federal de governo das multidões da Europa não pode deixar de representar o

objetivo central desta fase constituinte. Somos partidários de um poder constituinte que

construa uma federação na Europa. Somos partidários de lançar as bases e fixar o

objetivo de um ordenamento federal que recolha, mobilize e consolide os interesses

civis, econômicos e morais dos cidadãos de cada um dos estados, numa comunidade de

europeus que reconheça, adicionalmente, a cidadania europeia desses cidadãos de

segunda e terceira categorias, que é como são tratados os migrantes comunitários e não-

comunitários. Sabemos que “federar-se” é difícil porque, na fase atual, exigiria a

destruição das oligarquias do governo europeu e, portanto, dos partidos de cada um dos

países da União. Mas a federação pode constituir-se apesar desses obstáculos, se

recordarmos que não se trata unicamente de uma unidade entre estados, de distintas

PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

configurações econômico-políticas, senão um processo em cujo interior se revelam uma

nova história da Europa (mais além das guerras do passado) e as virtudes de que ela

pode ser capaz (uma riqueza de força de trabalho cognitiva e de trabalho de cuidado,

produtora de inovação econômica e civil).

No entanto, sobretudo, temos de insistir ainda mais no fato que, a partir do grau

que alcançaram as lutas políticas e sociais, as novas lutas de classe, da organização

social do trabalho e da extração capitalista de riqueza, a unidade europeia e o

federalismo não podem constituir uma máquina juridicamente intocável, que venha a

reproduzir as atuais diferenças de classe. Não pode ser o jogo em que tudo muda para

que nada mude, como ocorreu nas transições europeias do fascismo à democracia do

pós-guerra, e também nos anos 1980 no caso da transição espanhola. Queremos uma

constituição que exija, desde cima, uma governança das liberdades; desde baixo, desde

as multidões, um exercício de gestão igualitária na produção e na redistribuição de

riqueza. Nos últimos anos, temos assistido à formação na América Latina de novas

constituições democráticas que combinaram o pluralismo dos sujeitos com dispositivos

de reforças econômica muito eficazes, e que construíram novas solidariedades sociais,

iluminadas por um irresistível sentido da igualdade. Não se trata de imitar essas

experiências ou de discutir o seu êxito.

Trata-se de suscitar e promover uma dinâmica democrática capaz de ganhar o

terreno de uma constituição federal baseada no comum. Trata-se de difundir e colocar

em prática uma capacidade de construir empresas políticas da sociedade, que combine

liberdade e riqueza. Trata-se de eliminar definitivamente todo sentimento de identidade

ameaçada, que não produz nada além de nacionalismos ou democracias suicidas em sua

reprodução de tipo oligárquico. Trata-se de construir uma Europa justa e unida.

Desgraçadamente, não há alternativa. As irrupções democráticas das multidões na

Grécia, Espanha e, a seguir, o êxito da Syriza e a esperança do Podemos não são, desde

este ponto de vista, nada mais do que um começo, uma ocasião a que é preciso aferrar-

se com coragem e inteligência.

Rául Sánchez Cedillo, é pesquisador da fundação ProCommunes, tradutor e escritor, participa da Universidad Nómada (Madrid). Toni Negri, filósofo, é autor de muitos livros e artigos sobre as lutas nas últimas cinco décadas, e participa da rede EuroNômade (Itália).

61

Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua1

Marcio Tascheto da Silva

E isto: cada sobrevivente e cada medo fundava uma hipótese de cidade, uma metrópole transitória e frágil, mas todas o são.

Gonçalo Tavares

Eu gostaria de acompanhar alguns procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos, e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveriam levar a

uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade. Michel de Certeau

Da cruzada negra à cidade espectral

Em meados da década de 20 (1924-25), uma travessia automobilística chamou a

atenção do mundo e especialmente da França: “La Croisade Noir”2. Percorrendo 28.000

km em menos de 8 meses, composta de uma equipe de cientistas, artistas, religiosos e

engenheiros, a cruzada negra representou uma grande façanha para a época. Com o

objetivo de promover publicitariamente as “máquinas”, Andre Citroen organizou uma

expedição ousada pelas profundezas africanas, chamando a atenção ainda hoje pela

riqueza de documentação etnográfica.

Através das fotografias de Georges Specht, os desenhos de Alexandre Iacovleff

e especialmente as filmagens de Léon Poirier, a cruzada negra retrata uma áfrica exótica

e misteriosa, recheada de paisagens desérticas e culturas estranhas. Com a marca do

colonialismo imprimida nas diversas imagens produzidas, o filme exibido no teatro de

ópera de Paris, marcou a representação do negro na França. Das Missões religiosas,

recepções pomposas aos administradores coloniais, triunfo das máquinas sobre a

natureza selvagem e suas savanas intermináveis - a civilização do homem branco

mostrando ao mundo seu poder desbravador -, desprendem signos fílmicos de uma

narrativa civilizatória onde o carro torna-se o emblema máximo do progresso.

Da era do rádio à Copa do Mundo da FIFA/2014 muitas águas já rolaram entre

os moinhos. A indústria automobilística e as campanhas publicitárias avançaram

tecnologicamente a passos largos, transformando-se completamente nesses quase cem 1 Artigo para a disciplina de Antropologia Visual e da Imagem. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. 2 Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=OjW2Fls0qAM

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

anos que nos separam das aventuras de Andre Citroen. No entanto, uma estranha

conexão parece persistir nas campanhas publicitárias da Citroen. Uma conexão que nos

remete as savanas africanas e seu espaço liso. Uma conexão que nos leva aos bancos de

areia de um deserto em preto e branco, nos povoando com paisagens fantasmagóricas.

Uma conexão com a imagem do deserto.

Porém, no incipiente século 21 a “cruzada” é outra. Não mais na África

misteriosa e profunda nos arrabaldes de culturas estranhas, mas no interior do mais

familiar e próximo. A cruzada se voltou para a cidade. No interior da metrópole mora a

nova maquinaria expedicionária. A colonização dos afetos e lugares, a colonização dos

imaginários, o mito do progresso continua apostar no espectral. Um espectro ronda o

mundo na atualidade, o espectro da cidade vazia.

Signatária dessa feérica tendência, a campanha publicitária do Citroen C4

lounge produzida no contexto da copa do mundo do Brasil/2014, teve como cenário as

ruas de Porto Alegre/RS3. Mais precisamente, as ruas desertas de Porto Alegre. No

comercial de TV um homem observa um conjunto de prédios. Papéis picados verde

amarelos caem aos milhares das janelas decoradas. Pessoas correm enroladas em

bandeiras com as cores nacionais. Ruas vazias deixam antever um clima de espera e

euforia. O jogo está para começar. Ao lado da paixão folclórica do brasileiro pelo

futebol, outra paixão vai sendo sugerida pela narrativa: a paixão de dirigir. Junto ao jogo

da seleção brasileira, o jogo da máquina e do homem está prestes a acontecer. O carro

aparece em cena exatamente quando as ruas estão desabitadas. Quando não há mais

obstáculos humanos e de outras máquinas e o fluxo da paixão homem-carro-cidade pode

desenvolver toda a sua utopia espacial.

É dada a partida.

As ruas da Porto Alegre real, conturbada, engarrafada, densa, dão lugar às ruas

de uma cidade que demoramos a reconhecer. Uma paisagem urbana que mais parece

saída das fotografias de Atget4, na Paris do começo do século passado. Enlevada pelo

imaginário de uma cidade privativa, longe das disputas territoriais cotidianas, o

personagem-motorista trafega livremente, deslizando o automóvel por uma cidade

somente sua. Uma nova mitologia do dia a dia é construída sob os auspícios de uma

cidade abandonada.

3 Disponível para visualização no site: https://www.youtube.com/watch?v=oD0-MIjUHHk 4 Eugène Atget (1857 – 1927), Fotógrafo Francês conhecido por suas imagens de cidades vazias.

Márcio Tascheto da Silva

63

Segundo Fuão (Fuão, 2002), esse esvaziamento do espaço público teria sido

antecipado enquanto tendência pelas reflexões propostas pelo filósofo Flusser (Flusser,

2011), no ensaio intitulado “Phanton City”. (...) escrito para uma exposição fotográfica que percorreu algumas cidades da Europa nos anos de 85 e 86. A exposição mostrava fotografias de vários autores, cujo tema era a cidade sem pessoas. Este material constitui um desdobramento da visão premonitória do papel da fotografia como imagem técnica, e da exclusão do homem das atividades públicas da cidade. (...) retirar a figura humana da fotografia da arquitetura é retirar a alma da cidade e da própria arquitetura, é ver nelas somente a beleza e o caráter objetivo. (Fuão, 2002; 1)

Desta forma, o autor tenta destacar o processo de mudança em curso que as

cidades vêm passando. Pelo viés da comunicação analisa as diversas mutações que as

cidades estão sofrendo na atualidade enfatizando a depreciação dos espaços públicos e o

desaparecimento da função da arquitetura como promotora de comunicação.

Preocupado em demonstrar como a fotografia em arquitetura sempre esteve de

alguma maneira ligada com “a ausência da figura humana na representação

arquitetônica, seja por fotos, seja por projeções” (Fuão, 2002: 2), o autor desdobra os

efeitos dessa tendência em tornar a cidade anti-humanista. Esta cidade desanimada e

deserta corrobora com a crise de subjetividade contemporânea e com a

espetacularização da cena pública.

Para Maurizio Lazzarato 5 a crise da subjetividade contemporânea é inseparável

do projeto central da política capitalista, tornando-se impossível apartá-la da crise

econômica. Da mesma forma que não podemos separá-la dos fluxos econômicos e

sociais, a crise da subjetividade contemporânea está profundamente entrelaçada com a

decadência do espaço público. Nesse sentido, a propaganda do automóvel torna-se

sintomática quando desertifica a cena urbana, dissolvendo a cidade do seu papel de

convivialidade.

O esquadrinhamento do espaço corresponde ao esquadrinhamento da

subjetividade, constituindo uma série de fragmentações e cesuras que fazem da

locomoção capitalista na cidade, um fatiamento da existência. No seminal ensaio de

André Gorz de 1973 (Ludd, 2005), a ligação que o autor estabelece entre o transporte e

a divisão social do trabalho dá boas pistas para entender essa correlação. Sobretudo, nunca coloque isoladamente o problema do transporte. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e a compartimentalização que ela introduz nas diversas dimensões da existência: um lugar para trabalhar, outro para “habitar”, um terceiro para se abastecer, é

5 Em seu recente livro “Signos, Máquinas, Subjetividade”, lançado pela editora Sesc/N-1, 2014.

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Ela corta uma pessoa em rodelas, corta seu tempo, sua vida, em fatias bem separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos negociantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: a unidade de uma vida, sustentada pelo tecido social da comunidade.” (Gorz , in Ludd, 2005: 82)

Seguindo a advertência de Gorz, não podemos perder de vista o enrodilhamento

de elementos e a compartimentalização que ela introduz. Da mesma forma que a

questão do transporte não pode ser descolada da questão da cidade e do trabalho, a

análise do comercial de TV do citroen C4 não pode ser desvinculada de uma

constelação de imagens que vinculam a experiência do dia a dia em uma metrópole a

uma rede de micro inseguranças que subjetivam o espaço e guetificam a vida em

porções de tempo e território.

Se a entrada da comunicação na esfera produtiva caracteriza fortemente o

capitalismo contemporâneo - tornando o trabalho imaterial e afetivo -, comerciais como

esse, representam uma virada de época significativa que, por intermédio do

fortalecimento do sentimento de inseguridade, constrói um paradigma de produção que

necessita dos afetos e dos signos do terror para seu sucesso.

Se as imagens são mediações entre o homem e o mundo (Flusser, 2011), e se na

contemporaneidade conhecemos o mundo essencialmente através das imagens

(Luhmann, 2005), que mundo/cidade experimentamos através das “cidades fantasmas”

do comercial da Citroen? Qual é o impacto subjetivo nas práticas urbanas? Que cidade

se origina desse imaginário? Que cotejos há entre essa cidade deserta e a cidade real?

Se é o “aspecto mole, impalpável e simbólico o verdadeiro portador de valor no mundo

pós-industrial” , que regime de signos estamos construindo ao ponto de construir estilos

de vida baseados na irrealidade de uma cidade espectral?

Seguindo a carga teórica/poética de Macluhan, são os nossos próprios olhos que

“alugamos” para mobilização de práticas urbanas em uma cidade que se fantasmagoriza

(Macluhan, 1965). Ainda que o recorte da publicidade não esteja marcado somente pela

dimensão do medo, nem tampouco, para um público específico; ainda que a crítica da

massificação midiática e a necessária relativização dos seus efeitos sobre os indivíduos -

não tão pacatos diante das investidas do “mass mídia”-, há uma inegável relação de

força e uma disputa de estilos de vida.

Márcio Tascheto da Silva

65

Se a arquitetura e a cidade são meios de extensão do homem (MacLuhan, 1965)

e a cidade real dá lugar a cidade virtual, um desdobramento possível no “homem

espectador” (Jean Epstein, 1897-1953), é o consumo de uma experiência urbana

empobrecida (Benjamin, 1892-1940). As ruas desertas da Citroen representam a

transvalorização dos valores. Nesse caso, uma vida forjada a contrapelo do direito à

cidade. Partamos da crise e de seus desdobramentos subjetivos para olhar mais de perto

esses fenômenos.

As quatro figuras subjetivas da crise

Segundo Michael Hardt e Antonio Negri (Hardt e Negri, 2014) o triunfo do

neoliberalismo não mudou apenas os termos da vida econômica e política, modificou

também as condições sociais e antropológicas, produzindo pelo menos quatro figuras

subjetivas. A hegemonia das finanças e dos bancos produziram o endividado. O controle das informações e das redes de comunicação criaram o mediatizado. O regime de segurança e o estado de generalizado de exceção construíram a figura oprimida pelo medo e sequiosa de proteção: o securitizado. E a corrupção da democracia forjou uma figura estranha, despolitizada: o representado. (Hardt e Negri, 2014: 21)

O endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado são o saldo

subjetivo da crise, estruturando um terreno social emblemático onde o campo de forças

contemporâneo orbita em um sentimento que transversaliza a todos: o medo. Antes de

tratarmos das conseqüências que essas quatro figuras articuladas representam e o que

promovem enquanto prática urbana, é preciso olharmos mais de perto cada uma delas.

Figura 1: O Endividado

A necessidade de contrair dívidas para viver está se tornando a condição social

geral. Financiamento da casa, seguros de saúde, escolas privadas, gastos com

previdência, consumo exarcebado, segurança, etc, são sintomas de um modo de vida

que tem na dívida sua estratégia de sobrevivência: “A rede de segurança social passou

de um sistema de bem-estar social para um de endividamento”(Negri e Hardt, 2014:

22).

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

O acúmulo de dívidas desencadeia um processo de responsabilização e

culpabilização pessoal, transformando-se rapidamente numa modulação das vidas a um

protocolo fechado das existências. Um duplo processo de culpabilização age de forma a

colocar na conta do indivíduo todos os motivos das intempéries sociais: o

endividamento financeiro é seguido de um endividamento moral. Espécie de figura central da crise, o endividado simboliza o avanço neoliberal

sobre as políticas públicas, desarticulando a rede de proteção social e entregando

serviços e direitos aos ditames do mercado. “O homem não é mais o homem confinado,

mas o homem endividado” (Deleuze, 2006), sujeito da transição entre a sociedade

disciplinar e a sociedade de controle, agrega uma trama diagramática de formas

vigilância e monitoramento no espaço e no tempo.

A dívida promove uma forma de controle que não mais está sujeita a apenas

restrições espaciais, como nas fábricas do período fordista, mas na hipoteca do próprio

tempo. Sujeito de sua dívida o homem endividado negocia o futuro para garantir sua

sobrevivência e o pagamento de suas contas, negociando sua própria biografia.

Com o todo o seu tempo comprometido em honrar suas dívidas, pouco resta para

uma vida autoral e o controle de sua própria vida (Sennet,1999). Suas escolhas de

trabalho e formas de existência vão se achatando, constituindo uma série de restrições e

de perda de horizontes coletivos. Um dos efeitos perniciosos do endividamento é a

personificação de problemas estruturais e sistêmicos da sociedade capitalista. O

indivíduo cada vez mais assume sozinho a responsabilidade por suas dificuldades

financeiras e psicológicas, destituindo-se de qualquer projeto coletivo de mudança.

Figura 2: O Mediatizado Só, correndo de um lado para outro para dar conta de suas dívidas, com o seu

tempo seqüestrado pela necessidade de trabalhar cada vez mais devido à perda de

direitos, aos arrochos salariais e declínio do seu poder de consumo, o sujeito endividado

torna-se bastante suscetível de uma invasão informativa, mediatizando seus afetos. Antigamente, muitas vezes se tinha a impressão de que, em relação à mídia, a ação política era reprimida principalmente pelo fato de que as pessoas não tinham acesso suficiente às informações ou aos meios de comunicar e expressar suas próprias visões. De fato, os governos repressivos atuais tentam limitar o acesso a sites, fecham blogs e páginas do facebook, atacam jornalistas e bloqueiam acesso às informações. Reagir a essa repressão é certamente uma batalha importante, e muitas vezes testemunhamos como as redes midiáticas e o acesso a elas rompem afinal e inevitavelmente todas

Márcio Tascheto da Silva

67

essas barreiras, frustrando as tentativas de fechamento e silêncio. No entanto, estamos mais preocupados a respeito de como os atuais sujeitos mediatizados sofrem do problema oposto, sufocados pelo excesso de informação, comunicação e expressão. (Hardt e Negri, 2014: 27-28)

Enclausurado em montanhas de informação e presos ao constante estar “on”, não

mais dispõe do tempo necessário para pensar e dizer algo original. Impossibilitado de

reconhecer as fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo livre, mobilizando sua

atenção para os diversos canais de interação e conectividade, o sujeito contemporâneo

nos parece menos um sujeito alienado e mais um sujeito mediatizado.

Invadido por imagens do consumo em todas as horas do seu dia, o sujeito

mediatizado dispersa sua consciência ao mesmo tempo em que tem sua atenção

absorvida. Consumidor passivo de valores e estilos de vida vai compondo visões de

mundo pauperizadas, alimentado-se de signos do poder e ideais de felicidade. Com a

experiência submetida quase que unicamente aos meios de comunicação, o sujeito

mediatizado se assujeita a padrões e diretrizes irradiadas pelo mercado.

Exemplo desse consumo passivo é o declínio do espaço público. Quando a

cidade é retratada de uma forma esvaziada e a “paixão” de fazer cidade se vê submissa

ao contato apartado do carro ermitão, o consumo dessa imagem implica em uma

construção de uma visão de cidade enfraquecida. Fraca de convivência, fraca de

solidariedade, fraca de encontro, fraca de criação. A cidade construída pela

subjetividade mediatizada é uma cidade sitiada.

Figura 3: O Securitizado Hardt e Negri ancoram sua terceira figura subjetiva da crise na obssessão

coetânea por segurança. O medo é um dos grandes mecanismos de controle da

atualidade, nutrindo formas de vida atemorizadas pelos perigos mais diversos. O securitizado vive com medo em relação a uma combinação de punições e ameaças externas. O medo em relação aos poderes dominantes e sua polícia é um fato, mas mais importante e eficaz é o medo de outras e desconhecidas ameaças perigosas: um medo social generalizado. (Hardt, Negri, 2014:39)

Tereza Caldeira no livro “Cidade de Muros”,(Caldeira, 2000), já alertava para

uma estética da segurança a partir de uma arquitetura do medo. Analisando as mudanças

urbanas de São Paulo6 como resultado de processos de segregação espacial, a autora

6 Embora a análise seja situada em São Paulo, os argumentos de Caldeira podem ser relacionados com características comuns a várias metrópoles.

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

enfatiza algumas características de isolamento que tipificam o que chamou de “enclaves

fortificados”. Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas características básicas. São propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não direcionados a rua. Cuja a vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem as regras de inclusão e exclusão. (Caldeira, 2011: 258, 259)

Elegidos a espaços de prestígio, esses enclaustros tornan-se o ideal de moradia

disseminado no imaginário social sobre a cidade, construindo uma inversão de valores

que havia prevalecido em décadas anteriores. Vendidos como meio de escapar da

cidade, esses espaços vão constituindo uma trama territorial amparada em técnicas de

segurança e vigilância que, em uníssono com a imagem/cidade/citroen, definem

segmentações e cesuras entre classes sociais.

Espécie de quintessência Hobesiana7, toda uma política do medo vai se

configurando em estilos de vida, compondo no binômio terror/segurança, uma dialética

baseada na renuncia do espaço público. O sentimento de inseguridade construído

diariamente pelo jogo de espelhos da publicidade contemporânea, aprimora o que Gilles

Deleuze e Félix Guattari tinham escolhido chamar de “micropolítica da insegurança”,

no começo da década de 80. A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança. (Deleuze, Guattari, 2004: 94)

Receptáculo de temores, o individuo contemporâneo é forçado a viver em uma

circunscrição do possível, direcionando ao consumo a única solução para o sentimento

de insegurança que o assola. Um regime de condutas que desemboca na produção de

subjetividades aterrorizadas em pânicos urbanos como: assaltos, sequestros, poluição,

roubos de automóveis, perda do emprego, colisões de veículos, atropelamentos, ruas

escuras, “bairros perigosos”, andar sozinho, usar o transporte coletivo, engarrafamentos,

etc. A economia do consumo depende da produção de consumidores, e os consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a enfrentar o medo são temerosos e amedrontados, esperançosos de que os perigos que temem sejam forçados a recuar graças a eles mesmos (com ajuda remunerada obviamente). (Bauman, 2010:15)

7 Argumento defendido na obra mais famosa de Thomas Hobbes “Leviatã”,de 1651.

Márcio Tascheto da Silva

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A cultura do consumo radicaliza o sentimento de isolamento, fechando as saídas

para soluções que não passem pelo viés do mercado. O perigo que o outro representa e o

imaginário de medos alimentados pela publicidade, ajudam a degradar ainda mais o

espaço público. Qual é o saldo político dessa conjugação de dívidas, midiatizações e

temores onipresentes?

Figura 4: O Representado Consciente das inúmeras contradições sociais, espectador cotidiano do teatro de

horrores dos noticiários noturnos, desencorajado de sair de casa em virtude dos perigos

que a cidade é capaz de lhe oferecer, descrente das soluções políticas e de suas velhas

organizações, o representado é forçosamente empurrado de volta para o medo (Hardt,

Negri, 2014).

Filho da ausência de possibilidades coletivas de mudança reconhece o

esvaziamento da política e suas formas de corrupção da democracia, no entanto, sem

enxergar alternativas, facilmente se submete a uma posição passiva.

E o representado? O que permanece de suas qualidades como cidadão nesse contexto global?Ao deixar de ser um participante ativo da vida política, o representado se descobre o pobre entre os pobres, lutando sozinho na selva dessa vida social. Se não estimular seus sentidos vitais e despertar seu apetite pela democracia, o representado se tornará um produto puro do poder, a casca vazia de um mecanismo de governança que não faz mais referência ao cidadão-trabalhador. O representado, então, como as outras figuras é o produto da mistificação. Da mesma forma que o endividado é destituído do controle de seu poder social e produtivo; da mesma forma que a inteligência, as capacidades afetivas e os poderes da invenção lingüística do mediatizado são traídos; e da mesma forma que o securitizado, vivendo num mundo reduzido ao medo e terror, é despojado de toda possibilidade de troca social associativa, justa e amorosa, o representado também não tem acesso à ação política eficaz. (Hardt, Negri, 2014: 45)

Quando transpostas para o contexto urbano essas quatro figuras sintetizam a

naturalização das imagens de uma cidade deserta. A crise que assola as grandes cidades

é incapaz de provocar o associativismo de uma ação política, caindo no buraco negro da

escolha sem alternativa do indivíduo por si mesmo.

Junto ao esvaziamento da política institucional e o seu conseqüente descrédito,

propagandas como a do Citroen C4 Lounge contribuem para o reforço de um imaginário

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

sobre a cidade que separam o indivíduo do contato com o outro. Que o separam da vida

pública e de toda a singularidade que a rua é capaz de proporcionar.

Quando a rua é marcada pela ausência da figura humana, quando a rua é

destituída de sua potência em proporcionar encontros, que tipo de desdobramento

político acarreta? A aleatoriedade, o acaso, o encontro, a diversidade e a possibilidade

da diferença se vêem tolhidas.

Fora do mercado Na perspectiva do cotejo com a cidade citroen, nasceu à experiência com a

etnografia de rua que narraremos a seguir8. A partir do itinerário do comercial de TV

pelas ruas de Porto Alegre foi possível reconhecer algumas ruas, cruzamentos, esquinas

e lugares. Uma vez mapeadas as rotas usadas na captação de imagens, tornou-se viável

fazer um estudo das possibilidades de realização de uma etnografia situada no mesmo

cenário urbano.

A busca por experenciar os mesmos lugares trouxe de imediato a consciência da

inviabilidade em etnografar todas as ruas que aparecem nas imagens do comercial,

exigindo a definição de um espaço mais restrito. Não só pelo espaço amplo de

referências que as imagens do comercial remetem, quanto pelo tempo disponível para

realizar o processo etnográfico. Tensão que levou a criação de possibilidades realizáveis

e oportunas ao rigor metodológico que uma etnografia urbana exige. Tornar-se um com os ritmos urbanos é perder-se no meio da multidão, deixar-se possuir por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos, mas é também localizar-se nas conversas rápidas dos habitantes locais, registrar piscadelas descompromissadas dos passantes, rabiscar apressadamente um desenho destas experiências no seu bloco de notas, tirar algumas fotos, gravar algumas cenas “estando lá”. Desenhos, croquis, anotações, fotos, vídeos, etc. No dizer Bachelardiano, para se praticar uma boa etnografia de rua o pesquisador precisa aprender a pertencer a este território como se ele fosse sua morada, lugar de intimidade e acomodação afetiva, através dos devaneios do repouso. (Rocha, Eckert, 2013: 23)

O esforço de familiarização, de construção de intimidade com as pessoas e

identificação com o território exige um demorar no lugar. Os registros gráficos, a

produção de imagens e outras formas de guardar indícios de uma experiência com a

8 Fruto de um exercício proposto pelas professoras Cornélia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha na disciplina de Etnografia Visual e da Imagem, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Disciplina ofertada no segundo semestre de 2014.

Márcio Tascheto da Silva

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etnografia de rua, forçam a um rigor metodológico complexo e intenso. Desta forma, o

quadrante composto pela Av. Julio de Castilhos, a Rua Siqueira Campo, o Largo da

Glênio Peres e o trecho que liga a Rua Borges de Medeiros a Av. Júlio de Castilhos nos

arredores do mercado público de Porto Alegre, região central, foi o cenário escolhido

para confrontar com a cidade fantasma Citroen.

Munido de equipamento fotográfico e de vídeo, contando com o importante

apoio do antropólogo e cineasta Josep Juan Segarra9, o exercício possuiu o objetivo de

contrastar os fragmentos visualizados no comercial da Citroen, com o ritmos de uma

cidade habitada, povoada dos mais diferentes personagens e histórias. A cidade Citroen

é desubstancializada de temporalidade, tornando-se um espaço sem o verniz das gentes,

cores, sons e texturas que a compõem como teatro das vidas. Como em um conto de

Rubem Fonseca (Fonseca, 2006), a arte de andar pelas as ruas de Porto Alegre revive a

memória literária das invisibilidades sensíveis de Ítalo Calvino (Calvino, 1990) ou

encantamento pelas ruas de João do Rio (Rio, 2008). Da “Noite” de Érico Veríssimo

(Veríssimo, 2009) e seus personagens nada convencionais a própria cidade como um

personagem estranho em Ruffato de “Eles eram Muitos Cavalos” (Ruffato, 2011). Toda

essa literatura urbana faz brotar o gosto por estar dentro do espaço, como um Ícaro

caído nos estratagemas de Dédalo (Certau, 1994). Na busca do encontro e diálogos menos fortuitos que aqueles que os deslocamentos na rua permitem ao etnógrafo, a cumplicidade dos pequenos gestos, sorrisos ou olhares dos habitantes da rua, moradores locais, comerciantes, freqüentadores, mendigos, vendedores ambulantes, menino(a)s de rua, feirantes, pode significar um convite a aproximação mais duradoura. (Rocha, Eckert, 2013: 25)

Dessa forma, buscando a experiência que só uma metrópole é capaz de

proporcionar, o afastamento da cidade desabitada dá lugar ao imprevisto do jogar-se na

cidade, praticando e sendo praticado pela cidade. Ao revés da cidade Citroen, tentamos

produzir imagens outras, que demonstrassem seu ritmos e pulsões. Suas rotas e

itinerários, seus ângulos e esquinas. Perspectivas atravessadas e comuns com o

comercial, tempos próximos e espaços semelhantes. A partir da perspectiva do terraço

do Prédio da Federasul, localizado na Av. Júlio de Castilhos, o primeiro intento foi

produzir fotografias panorâmicas do espaço, criando uma perspectiva ampliada do

Mercado Público e seus arredores.

9 Na oportunidade, cursávamos a disciplina de Antropologia da Imagem e Visual.

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

Esse prazer de ver o conjunto (Certau,1994), desmaranhando-se

temporariamente da cidade e colocando-se a distância em uma observação aérea,

produz uma compreensão ampla do perfil topológico do lugar. Marcada pelo

planejamento geométrico no desenho de suas ruas, largos, calçadas, avenidas, paradas

de ônibus, estação de metrô, praças, ao mesmo tempo pela ocupação caótica de

camelôs, pontos de taxi, tapumes, vendedores ambulantes, feira, carros, ônibus,

transeuntes, a cidade vista de cima é um complexo de interações espaciais e temporais.

Amálgama de tempos, a arquitetura dos prédios e outras construções, são o

testemunho vivo de épocas que convivem em segredo. Um segredo concreto, memória

de pedra, aço, vidro, madeiras. Continuada no tempo, a cidade se espacializa

desordenadamente como uma romaria de escritas que se avolumam em cada fachada,

porta e telhado. A rua em ao meio a cada prédio é um sinal seguro da inevitável

passagem do tempo que corre no passo trôpego da metrópole.

Descer ao nível da rua e produzir imagens fotográficas e videográficas depois de

experimentar um olhar de Ícaro, sem dúvida traz outras miradas. Pegar o ângulo do

comercial e não pegar a sua espetacularização da rua é a sabotagem da etnografia com a

publicidade.

O espaço ocupado pelos homens lentos (Santos, 2011), com suas vivências e

práticas do lugar, os motoristas que dividem a rua sem o sonho da privatização dos

caminhos, os engarrafamentos de carros e ônibus, reinserem Ícaro na altura dos demais.

Mais uma vez é a cidade falando aos sentidos. Os negócios, trocas, profissões, esperas,

expectativas, são percebidas facilmente quando ao descer do prédio da Federasul nos

imiscuímos no torvelinho da multidão.

Diferente da figura do securitizado apresentado anteriormente, o espaço público

se apresenta como um lugar de encontro com o outro. Em contraste com o motorista da

Citroen, caminhar pelas ruas de Porto Alegre fornece os encontros mais aleatórios.

Levando a câmera de um ponto ao outro no intuito de captar imagens na parte externa

do Mercado Público, entramos em contato com diferentes pessoas. Abordando e sendo

abordados pelos mais diferentes personagens. Músicos populares, moradores de rua,

trabalhadores informais, precários, funcionários da prefeitura, toda uma legião de

personagens que tingem o espaço com suas biografias, desejos, objetivos e desvarios. O engraxate de 80 anos que há sete décadas trabalha no mesmo local; A família

de músicos da cidade de São Luiz Gonzaga/RS que ganha à vida tocando no Largo da

Glênio Peres; A moradora de rua intrigada com o movimento que fazíamos com a

Márcio Tascheto da Silva

73

câmera e o equipamento que carregávamos naquela tarde chuvosa de outubro de 2014;

Os olhares desconfiados dos transeuntes que cruzavam incomodados com o travelling

que realizamos pelo mesmo trecho da Av. Júlio de Castilhos que o automóvel da

Citroen percorre no comercial de TV;; A “denúncia contra a ciência”10 que gravamos ao

sermos abordados por um jovem em frente à praça quinze; O espancamento do homem

negro que tentava roubar uma garrafa de vinho tinto; Enfim, a babilônia apresentando

suas diversas faces.

O engarrafamento de Cortázar

Imagine um engarrafamento que dura um ano. Uma auto-estrada cheia de

automóveis parados. Motoristas que retornavam de um final de semana na praia

enfurecidos pelo estancamento súbito de suas vidas. No começo ninguém desconfia que

a barricada de carros a sua frente durará tanto tempo. Que a copa de árvores que

visualiza ao lado esquerdo do pára-brisa dessa vez não passará como um raio e

permanecerá durante meses até sumir para sempre de sua consciência. Quem iria

imaginar que os modelos Citroen, Mercedes Benz, ID, 4R, Lancia, Skoda, Morris

Minor, Renault, Anglia, Peugeot, Prosche, Volvo, permaneceriam no seu campo de

visão tanto tempo, a ponto de você se familiarizar com essa disposição na estrada. Não

só se familiarizar como conhecer cada um dos integrantes daqueles veículos.

Aos poucos, um a um, os motoristas começam a abandonar seus carros. A moça

do Dauphine observa os meninos louros do carro ao lado. O engenheiro do carro atrás

reserva explicações detalhadas ao casal que lhe pede informações sobre o que está

ocorrendo kilômetros à frente. Toda uma rede relações começa a ser tecida. Carros

maiores viram leitos para os doentes. Encontros amorosos dividem lugar a pequenas

desavenças do cotidiano. Um grupo de homens sai em busca de mantimentos. Alguém

morre solitário agarrado ao volante que não voltará mais a dirigir.

Depois das chuvas tórridas do verão, do lento esfriar do outono, da neve e o

florescer da primavera, bem devagarinho a fila de automóveis começa a mexer. O

mundo constituído pela parada súbita dissolve-se ao ritmo da primeira marcha. A

velocidade aumenta e logo os carros atingem 80km/h sem saber para que tanta pressa,

10 Reproduzido no vídeo intitulado “Fora do Mercado”. O vídeo resulta de exercícios com etnografia de rua proposto na disciplina de Antropologia Visual e da Imagem PPGAS/UFRGS.

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

“por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia

nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para

frente”(Cortázar, 2011;; 35).

Olhando exclusivamente para frente os motoristas de Cortázar dão continuidade

a uma trajetória sem a presença do outro. Os laços de pertencimento se dissolvem a

medida que a rotação do motor se intensifica. O que o engarrafamento produziu em

possibilidade de encontros se dissipa junto à nostalgia que aflige os motoristas a cada

carro que desaparece para sempre de seu convívio.

O fantástico engarrafamento de Cortázar é uma inflexão de tudo que tentamos

argumentar até agora. Uma criativa forma de confrontar o motorista Citroen e suas ruas

fantasmas com o vigor de um experimento de “olhar para o lado” que o exercício com a

vivência com etnografia de e na rua proporciona. Endividado, mediatizado, securitizado

e representado, o homem-motorista contemporâneo é uma inflexão de uma encruzilhada

de medos.

Sintoma e produção de uma prática urbana despotencializada a marcha da

publicidade da citroen é de outra natureza da democracia. Ir para a rua mesmo sem a

parada obrigatória de um engarrafamento aos moldes de Cortázar, na condição do

exercício etnográfico e tudo que é capaz de fazer pensar, tornou-se o corolário desse

experimento e a razão de continuidade de uma pesquisa que permanece sem resposta a

várias perguntas realizadas nesse texto. Sem dúvida, ainda sim, com o mesmo gosto de

perguntar o mesmo, só que em lugar diferente.

Márcio Tascheto da Silva é professor da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo - UPF/RS. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS/RS.

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Márcio Tascheto da Silva

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77

Arte, mídia e cultura

O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini.

Nicolás Fernández Muriano

Identidades tribais, bárbaras.

Em 1965, Bertolucci e Gianni Amico apresentaram a Pasolini uma projeção

privada de Deus e o diabo na terra do sol (Rocha, 1964), organizada em Roma, como

efeito da fortuna do filme determinada pelo festival de Cannes do ano anterior; e, em

geral, do cinema novo (levando em conta a diáspora que se seguiu ao golpe de estado

ocorrido no Brasil nesse ínterim)1. Rocha espera na antessala. Não quer ver Pasolini

assistindo ao seu filme, o que lhe interessa mais é que essa visada já aconteça como um

momento construtivo da colocação em cena: “eu tinha filmado Deus e o diabo... quase

ao mesmo tempo, e o filme de Pasolini me revelava identidades tribais, bárbaras”,

recordaria dez anos depois2. A revelação de O Evangelho segundo Mateus (1964) não

significa que Glauber identifique a sua visada com a de Pasolini, ao contrário, a

imanência de outras visadas define a modernidade política do filme, para mais além do

traço singular da sua autoria3. Antes de viajar a Cannes, Glauber declara que Deus e o

diabo: “não é um resultado meu individual, não: eu creio que o filme é o resultado de

toda a consciência cultural propriamente dita que o cinema novo tem”4. O termo

“consciência”, na tradição teórica de Eisenstein e Bazin, que Rocha compartilha com

Pasolini, não aparece aí indeterminado: “em nenhuma outra arte o estilo pode fundar

uma moral... é o filme enquanto consciência”, escreve o brasileiro num ensaio do

mesmo ano5. Na continuação, Glauber propõe uma periodização da história do cinema

segundo os modos de apresentação da consciência da mise-en-scène: “a) o estilo 1 “Eu viajei com Deus e o diabo, veio a queda de Jango, voltei com tudo mudado e as pessoas dispersas, desmoralizadas, tristes”, ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 35. 2 ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naif, 2006. P. 256. 3 Resume Ismail Xavier: “em seus filmes, o caráter heteróclito da enunciação no cine vem em primeiro plano, porque soube inventar formas originais para articular faixas de som e imagem, ora incorporando traços da cultura popular, ora do teatro moderno ou da tradição literária, sem eludir seu diálogo intenso com o cinema de autor europeu que lhe era contemporâneo, o mesmo vale para o western dos anos 50 (...) seu cinema é o ponto de interseção dos conflitos entre vários canais de expressão, conflitos que os cineastas de sua geração tornaram evidentes ao questionar o imperativo de que uma única voz deve orquestrar todo um filme”, XAVIER, Ismail. Sertão mar. Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naif, 2007, p. 10. 4 ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo, op.cit. p. 274. 5 ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 248.

Nicolás Fernández Muriano

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enquanto discurso de uma moral” que caracteriza a découpage clássica do cinema

narrativo, representativo e industrial, e “b) o estilo enquanto moral” que caracteriza os

filmes surgidos na época do pós-guerra: “de Rosselini a Michelangelo e de

Michelangelo aos cineastas do futuro”. A articulação diferida entre os autores do

chamado “cinema moderno” e o postulado bem mais profético de um “cinema futuro”

constituem a margem problemática do “cinema novo”. O que antecipa a importância

estratégica de uma “identificação tribal, bárbara” com o primeiro filme de Pasolini,

tomando assim distância da filiação neorrealista de sua obra prima Accattone –

desajuste social (1961). Rocha viu O Evangelho um par de semanas antes da projeção

de Deus e o diabo, ele apenas regressava à Roma vindo de Gênova, onde acabava de

apresentar o manifesto da Estética da fome (1965), no marco do seminário “Terceiro

Mundo e Comunidade Mundial” (janeiro, 1965), que se destinava à promoção na Itália

dos filmes latino-americanos em destaque em Cannes. Um ano depois, Glauber escreve

o seu primeiro texto sobre Pasolini: “A moral de um novo Cristo” (1966).

O ponto de partida teórico do ensaio poderia ser confirmado por qualquer leitor

contemporâneo dos Cahiers du cinéma. “A consciência do mundo moderno, desde o

fim da segunda guerra mundial, está no cinema”6. A consciência do mundo moderno

identificada com o estilo dos autores é o pressuposto que permite a Bazin conceber o

plano-sequência de Rosselini como uma forma de piedade. Isto torna possível “voltar às

coisas” depois da guerra, uma clara alusão à fenomenologia de Husserl, que

demonstrava a posição necessária de uma consciência do tempo implicada nos perfis

incompletos das coisas7. “A moral de um novo Cristo”, apesar disso, considera O

Evangelho de Pasolini um filme precursor do novo Cristo latino-americano, seguindo a

tradição de Buñuel, para mais além da pietas rosselliniana: “o Cristo de Pasolini é um

revolucionário que sucede ao Cristo anárquico de Buñuel”. Um ano depois, a lista de

autores contemporâneos que projetam ao futuro o marco genético do pós-guerra não

deixa de acentuar a diferença moral dos latinos: No meio do caminho tombaram Visconti, Fellini, Bergman. Circulando no caminho com a cruz às costas: N. S. Buñuel. Satélite artificial circulando no caminho: Michelangelo. Guerrilheiro deste universo: Godard, dois filmes por semana, simultânea criação e vivência; poeta deste universo: Pier Paolo Pasolini; exército deste universo, espero, os futuros cinastas do mundo subdesenvolvido.8

6 ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 187. 7 BAZIN, André. Qué es el cine? Madrid: Rialp, 2008. 8 ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 367 e ss.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

“Nosso Senhor Buñuel”, Glauber lhe confere, para mais além de qualquer

periodização, a dignidade eclesiástica de um patriarca, sustentando a cruz desde a pré-

história do cinema, enquanto os velhos autores modernos ficavam pra trás: “Nosso

Senhor Buñuel é um monge rebelde, surrealista, não tem nada a ver com a História do

Cinema, o seu caminho é outro, artista bárbaro.”9 Antonioni é apenas um satélite

artificial e Godard, um guerrilheiro que dinamita solitariamente a história do cinema.

Pasolini, em vez disso, aparece articulado sem um senão sequer com o exército de

cineastas subdesenvolvidos do futuro. A cruz de Nosso Senhor e a esperança que

projeta o Apóstolo Profano constituem, em bloco, a filiação latina que excede o

momento genético de Rossellini: “autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico”.

Mas a tribo ou o exército do mundo subdesenvolvido ainda está por vir, somente aí,

num futuro possível, reside a identidade tribal de O Evangelho, que subtrai a moral de

Pasolini da sua identificação natural com “os místicos financiados pela Democracia

Cristã, assim como Rossellini, Antonioni e Fellini”, dada a sua condição revolucionária

que tampouco deriva dos “velhos comunistas de sistema, como Visconti ou De Sica”,

senão, sim, do Cristo anárquico de Buñuel10. A operação crítica complementar consiste

em subtrair a consciência do cinema novo de sua filiação natural na história do cinema

brasileiro. Um ano antes de Deus e o diabo, Glauber editava a Revista crítica do cinema

brasileiro (1963), em que “demonstra” a inexistência de uma cinematografia clássica

nacional que possibilite no Brasil um “cinema moderno”, no sentido de Bazin. O ensaio

polêmico produz um tipo de bloqueio histórico antes de chegar à época contemporânea.

O capítulo seguinte, “Origens de um cinema novo”, comenta uma série de filmes

recentes que, apesar das limitações técnicas, parecem desmontar o marco histórico do

cinema nacional: Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Garrincha ou a alegria do povo

(Andrade, 1962), Vidas secas (Pereira dos Santos, 1963), entre outros, não têm

precedentes no cinema brasileiro;; antes disso, eles próprios constituem as “origens” do

cinema por vir, na medida em que prolongam, para além de si próprios, uma nova

tradição nacional: “mais que o filme em si, interessa saber que o país em progresso terá

no cinema a sua expressão por excelência”. Deste modo, Glauber reformula a pergunta

pelo “cinema novo”: Garrincha é uma definição do cinema novo? (...) Não é uma definição do cinema novo, porque este cinema não se definirá previamente: a sua existência é a prática dos anos vindouros, na busca inquieta e na criação

9 ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 311. 10 Ibid., p. 256-257.

Nicolás Fernández Muriano

81

possível dos jovens diretores brasileiros que, segundo Louis Marcorelles, “são, em potencial, os melhores cineastas do mundo.”11

O atributo “novo” se usa no sentido de “por vir”, “potencial”, como uma

“criação possível”. Um ano depois do impacto do cinema novo em Cannes, que reduz o

“novo” a um simples catálogo de filmes contemporâneos, a Estética da fome amplia as

fronteiras nacionais e geracionais para restituir o sentido prospectivo ao termo.12 O

cinema novo se define a partir de “um gérmen” do que pode vir a ser. O gérmen consiste

numa “disposição subjetiva” do cinema dos países colonizados: “é uma questão moral

que se refletirá nos filmes”. Um ano mais tarde, “A moral de um novo Cristo” (1966),

que amplia as origens desde seus germens europeus, usa o termo “novo” como atributo

condicional do Cristo Latino, que está por vir, assim como define “moralmente” a

operação estilística do Patriarca espanhol e do Apóstata italiano. O primeiro rastro desta

concepção “crística” do cinema latino se encontra em “Os doze mandamentos de Nosso

Senhor Buñuel” (1962), que é uma espécie de declaração de princípios concorrentes

com as distintas etapas da filmografia do espanhol. A consagração simultânea dos

princípios, convertidos em mandamentos, e do próprio Buñuel alçado a “Nosso Senhor”

se realiza mediante uma série de gestos batismais: “autor ibero-americano”, “fundador

da estética da fome”, “primeiro cineasta da América Latina”, “artista bárbaro”, entre

tantas outras dignidades, que sustentam a eminência de Buñuel ao longo de toda a obra

ensaística de Glauber. Dez anos depois, pouco antes de morrer, Glauber agrega uma

precisão sobre a tribo latina do Nosso Senhor: “O cinema, como dizia Buñuel, não é

uma arte que possa ser realizada pelos latinos;; eu lhe perguntei: ‘E você?’, ‘não –

respondeu – eu sou um amador’. Segundo Buñuel, o cinema é para anglo-saxões, desde

o ponto de vista técnico e industrial.”13

O que torna possível o cinema latino é o seu “amadorismo”, entendendo-o não

apenas pelas condições subprofissionais de produção, como também por um “novo

amor”, inclusive pelo Cristo dos inimigos (Griffith, De Mille), que excede o pathos

idealista do catolicismo europeu ou latino-americano através da violência da estética da

fome:

11 ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naif, 2003 (1963). P. 151. 12 “O cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e enfrentar os padrões hipócritas e policiais da censura, ali haverá um gérmen do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou qualquer procedência... ali haverá um gérmen do cinema novo. A definição é esta.” ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004. p. 67. 13 O século do cinema. op cit. p. 328.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

Uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como tampouco diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, não é um amor de complacência ou de contemplação, mas sim um amor de ação e transformação.14

No texto de 1966, O Evangelho participa e projeta essa disposição moral e

afetiva que faz germinar o “novo Cristo” dos latinos, através da violência contra o

cânon “antigo”: “Anticinema – gritam alguns críticos furiosos diante da falta de respeito

de Pasolini pela técnica tradicional, a gramática dos espetáculos antigos do cinema

americano. Pasolini não se interessa pela continuidade, as técnicas de interpretação, o

realismo dos cenários etc.”15

Mas Pasolini não tem a mesma sorte do que o Nosso Senhor. A partir da década

de 1970, Rocha deixou de crer nos filmes do italiano que, ao mesmo tempo,

profissionalizaram e perverteram o “amadorismo” do cinema latino. A figura de Cristo

constitui o fio condutor da insistência dramática no nome do italiano, na reflexão de

Glauber Rocha – desde a identificação de 1966 até o depoimento impiedoso de 1981

intitulado “O Cristo-Édipo” e publicado pelos Cahiers du cinema: “incômodos,

escutávamos a sua voz veemente, o encanto de seu francês com sotaque brasileiro, o

ajuste de contas colérico e afetuoso com Pier Paolo Pasolini, as reprovações post

mortem”, lembra Serge Daney16. O ajuste de contas “colérico” deixa intacto o princípio

“afetivo” da relação, que é a imanência do Cristo de Pasolini na mise-en-scène de seus

próprios filmes, ao contrário, o ajuste o intensifica mediante a conjuração do seu signo

de identidade: Em meu último filme, A idade da Terra (1978-80), falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão de um Cristo Terceiro-Mundista que não tinha nada que ver com o Cristo pasoliniano.17

A mimese sagrada

Poucos meses depois da projeção de Deus e o diabo, em Roma, Pasolini

apresenta o seu famoso ensaio sobre “O ‘cine poesia’”: “Como exemplos concretos de

tudo isto, trarei para a análise Antonioni, Bertolucci e Godard – mas poderia agregar

14 Revolução do cinema novo. p. 66. 15 O século do cinema. op. cit. 280. 16 DANEY, Serge. Cine, arte do presente. Buenos Aires: Santiago Arcos ed., 2004. p. 100. 17 O século do cinema. op. cit. 285.

Nicolás Fernández Muriano

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desde o Brasil também Rocha... e, naturalmente, a muitíssimos outros (presumivelmente

quase todos os autores do festival de Pesaro).”18

A apresentação do ensaio no marco do Festival de Pesaro de 1965 autoriza

Pasolini a generalizar a sua tese sobre uma nova condição estilística que se tornou

evidente na época em que o cinema se acostumou a mostrar a câmera (em contraste

com a “montagem invisível” da découpage de Hollywood): o plano “subjetivo indireto

livre”. Rocha toma distância imediatamente da analogia literária de Pasolini: “não se

podem aplicar métodos literários para a crítica do cinema, porque o cinema é uma arte

nova que não tem nada a ver com a literatura”, escreve no ensaio de 196619. Não se

pode pensar o “novo” através do “velho”. Esta objeção tensiona a escritura de Rocha

desde os seus primeiros ensaios, destinados a disputar no meio local o significado e a

extensão da expressão “cinema novo” (ser em potencial, porvir). A apresentação da

Estética da fome, em 1965, marca a abertura da discussão desde o velho mundo,

complicada poucos dias depois pela revelação do Evangelho. Pode dizer-se, também,

que a Estética da fome é o primeiro marco ensaístico do calendário crítico de um ano

atravessado de polêmicas desencadeadas pela irrupção do cinema do Terceiro Mundo,

pondo em crise as categorias forjadas nos Cahiers: “Cinema de autor x cinema

industrial”. Existe, de direito, um terceiro cinema ou um cinema novo, não é tão

somente um testemunho cru da violência política das nações sem desenvolvimento

industrial, um cinema pré-industrial (primitivo) antes que “anti-industrial” (moderno),

no sentido de uma política dos autores?20

Pasolini está entre os primeiros a reconhecer teoricamente a novidade estilística

do terceiro mundo, comparável à de Antonioni, Gordard e Bertolucci. Por isso, para

além das diferenças irredutíveis com os europeus e as objeções contra o dispositivo

conceitual de Pasolini, é factível determinar a correlação teórica entre os postulados do

brasileiro e os princípios estilísticos do italiano, o que Ismail Xavier define a partir do

privilégio do “foco expressivo” da Estética da fome: “Da fome. Uma estética. A

preposição ‘de’, ao contrário da preposição ‘sobre’, marca a diferença: a fome não se

18 PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herético. Córdoba: Brujas ed., 2005. p. 249. 19 O século do cinema. op. cit. p. 281. 20 A Estética da fome começa assim: “Enquanto a América Latina lamenta as suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria... como dado formal de seu campo de interesse... Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida em que satisfazem a sua nostalgia de primitivismo.” Revolução do Cinema Novo, p. 63.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

define como tema, um objeto de que se fala. Ela se instala na própria economia do dizer,

na própria textura das obras.”21

A Estética da fome não é um testemunho “digestivo” sobre a vida dos

esfomeados, antes disso, ela expressa uma “nova sensibilidade” além de qualquer

limitação temática: “é uma questão moral que repercutirá nos filmes, na hora de filmar

um homem ou uma casa, num detalhe a observar, na Filosofia.”22 A partir disso, cabem

distinguir dois níveis na composição de um filme, segundo o texto de Glauber: um que

corresponde ao plano de conteúdos (homem, casa, filosofia etc), e o outro ao plano da

expressão (estética da fome, cinema digestivo etc). Noutras palavras, a singularidade da

estética da fome deverá rastrear-se ali onde Pasolini finca a subjetividade do autor:

“debaixo deste filme transcorre outro– é o que o autor teria incluído, sem o pretexto da

mimese visiva de seu protagonista: um filme total e livremente de caráter expressivo-

expressionista.”23 A analogia que Pasolini faz entre o “cinema de poesia” e o “discurso

indireto livre” do romance contemporâneo, que não deixa de ser um modo de prosa

narrativa, longe de introduzir um equívoco na sua distinção inicial, facilita a

esquematização da tese principal do ensaio: se o “discurso indireto” caracteriza a voz de

um narrador em terceira pessoa e o “discurso direto” equivale a uma citação direta da

voz do personagem, se chama “indireto livre” o discurso composto de maneira

indiscernível entre os dois níveis: “consiste simplesmente na imersão do autor no

mundo de seu personagem e, portanto, a adoção, por parte do autor, não somente da

psicologia de seu personagem, como também de sua língua”, diz Pasolini.24 De maneira

análoga, se, no cine de prosa, as tomadas objetivas apresentam uma “visada indireta” ou

exterior ao conjunto narrado e as tomadas subjetivas equivalem a uma “visada direta”

desde os olhos do personagem, o cinema de poesia constitui uma “subjetividade indireta

livre”, esta que consiste numa “mimese visiva” de autor e personagem. Por exemplo: Antonioni libertou o próprio momento mais real: pôde finalmente representar o mundo visto por seus olhos, porque substituiu, em bloco, a visão de mundo de uma enferma, pela sua própria visão delirante de esteticismo: substituição em bloco justificada pela possível analogia de ambas as visões.25

21 XAVIER, Ismail. op. cit. p. 13. 22 A revolução do cinema novo. p. 67. 23 PASOLINI, op. cit. p. 225. 24 Op. cit, p. 244. 25 Op. cit., p. 251.

Nicolás Fernández Muriano

85

Além da antipatia de Glauber pela nomenclatura literária de Pasolini,

existem ressonâncias frequentes do postulado geral do cine de poesia em suas análises

críticas: Fellini é Fellini, Mastroiani o seu meio. O meio é o ator, o Duende, enquanto Deus Fellini descansa no paraíso. O eu partido. Eu e meio, eu e uma metade, Esquizofrenya, Projeção do Eu Escondido, celebração orgiástica deste Amor à Eu-autocrítica, excreção, ritual, prazer, gozo, sexo (...) o Meio é a mensagem... uma metade realizada do ser em Estétyka.26

A proliferação de figuras sagradas e neotestamentárias na reflexão de Rocha (e

de Pasolini) não é casual, nem pertence a uma ordem espiritual ou cultural indiferente

do meio cinematográfico.27 Além da primazia dos autores cristãos em toda a história do

cinema (Griffith, Ford, Hitchcock, Bergman, Bresson, Buñuel, Rossellini etc), o Deus

escondido e seu meio expressivo, personagem, duende ou Cristo, constituem as duas

metades do “ser em estética”, compostas pela “mimese sagrada” do espírito do cinema:

“se trata de uma operação de enunciação que opera no lugar dos atos de subjetivação

inseparáveis”, descreve Deleuze, “que constitui um personagem em primeira pessoa e

outro que assiste a seu nascimento e o coloca na cena.” Deleuze remete os polos de

análise do discurso (sujeito de enunciação/sujeito do enunciado) a uma matriz

transcendental (“Cogito/sujeito empírito”), que permite repartir de maneira equânime as

formas do visível e do enunciável pela síntese (ou a discordância) de uma consciência-

câmera.28 O modelo transcendental gasta o resíduo de transcendência que compreende

a relação dos sujeitos no vocabulário de Pasolini: Pasolini decide chamar mimese esta operação de dois sujeitos de enunciação, ou de duas línguas, com o discurso indireto livre. Talvez o termo não seja afortunado, já que não se trata de uma imitação, mas de uma correlação entre dois processos assimétricos funcionando juntos na língua. São como vasos comunicantes. Apesar disso, Pasolini insistia na palavra “mimese” para sublinhar o caráter sagrado da operação.29

26 ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 268. 27 “Rossellini se transformaria no autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico... é um místico antes do que neorrealista... é a voz que se projeta contra a destruição do homem pelo homem... a sua câmera às vezes gira como louca, quando o homem se encontra perdido... é uma paisagem mais além do real, sem transigir com o real. Assim é possível definir o estilo de Rossellini como Mise-en-scène da Mística, desde que o seu realismo é um “Por quê?”, lúcida e livre interrogação poética... Jean-Luc Godard é “Filho e Espírito Santo do Pai”, enquanto Pasolini se faz Apóstolo Profano”, op. cit. p. 209 e ss. 28 “Trata-se do Cogito: um sujeito empírico não pode nascer no mundo sem se refletir ao mesmo tempo num sujeito transcendental que o pensa, e no qual ele se pensa. E o Cogito da arte: não há sujeito que atue sem outro que o veja atuar, e que o capte como atuado, tomando para si a liberdade de que o desapossa. Daqui existem dois eus diferentes, um dos que, consciente de sua liberdade, se erige em espectador independente de uma cena que o outro representaria em forma maquinal. Mas este desdobramento não chega nunca ao fim. É melhor do que isso uma oscilação da pessoa entre dois pontos de vista sobre si própria, um ir e vir do espírito, um estar-com.” DELEUZE, Gilles. La imagem-movimiento. Buenos Aires: Paidós, 2005. p. 112. 29 Op. cit.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

A crítica da imitatio é injusta. A expressão “mimese visiva” não se define

somente pela oposição entre a “imitação naturalista” e a realidade, mas sim por uma

“imitação subjetiva” da língua audiovisual do personagem, pela simples razão que não

existe um equivalente visivo das “línguas especiais, os jargões, as diferenças sociais”

ou, melhor ainda, se existem “estão totalmente fora da possibilidade de catalogação e

uso” por parte do diretor.30 Nisso consiste a condição poética da operação,

inconfundível com o procedimento da prosa contemporânea31. As “línguas

diferenciadas” do narrador e do personagem, compostas num discurso unificado sobre o

mundo narrado, não oferecem um modelo de diferenciação transponível às visadas do

autor e do personagem. A diferença, segundo Pasolini, se estabelece no plano dessa

mesma realidade: “A visada de um camponês... abarca outro tipo de realidade, do que a

visada de um burguês culto a essa mesma realidade: os dois veem em concreto ‘séries

diversas’ de coisas, mas não apenas, também cada coisa em si própria resulta diversa

nas duas ‘visadas’”32

Pasolini não confunde o “enquadramento obsessivo” de Antonioni com uma

“fixação obsessiva” de seu personagem sobre o objeto enquadrado, ao contrário, destaca

a tendência da câmera a abandonar os seus personagens para enquadrar espaços vazios,

fora da diegese. 33 Trata-se de um processo assimétrico, dois atos de subjetivação

correlativos, no sentido de Deleuze, em nenhum caso uma imitação. Por isso, a

“mimese” se caracteriza como uma “substituição” que o autor opera sobre a visada do

personagem “mais aquém do limite da patologia: simplesmente o estado-meio de um

novo tipo antropológico” 34 O cinema de poesia é uma criação de realidade, um

“momento mais real” alcançado pela visada do cineasta, que antecipa um novo tipo

antropológico: “libera das possibilidades expressivas compreendidas pela tradicional

convenção narrativa... até voltar a encontrar nos meios técnicos do cinema a originária

30 “como na literatura burguesa, onde “o indireto livre” é um pretexto: o autor se constrói um personagem... para expressar a sua própria e particular interpretação do mundo”, PASOLINI, op. cit. p. 245 e ss. 31 “Portanto, se o cineasta se identifica com o personagem, e através dele narra os fatos ou representa o mundo, não pode valer-se desse formidável instrumento diferenciador natural que é a língua. Sua operação não pode ser linguística, senão estilística”, PASOLINI, loc. cit. 32 Ibid. p. 248. 33 Conforme o nosso texto “Deleuze lector de Pasolini. Acerca del estilo indireto livre en el cine”, na revista Imagofagia, n.º 9, 2014. www.asaeca.org/imagofagia. 34 PASOLINI, op. cit. p. 254.

Nicolás Fernández Muriano

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qualidade onírica, bárbara, irregular, agressiva, visionária.” 35 A crítica de Rocha está no

outro lado (e alcançaria a Deleuze), “mais aquém”, por assim dizer, da compreensão

convencional da forma narrativa, – existe uma condição a priori que a exige enquanto

movimento de autocompreensão de si próprio: Se o filme, por ser nacional, não é americano, ele decepciona. O espectador condicionado impõe ao filme nacional uma ditadura artística a priori: não aceita a imagem do Brasil que veem os cineastas brasileiros, porque ela não corresponde a um mundo tecnicamente desenvolvido e moralmente ideal. 36

O texto de 1968 identifica a colonização da imagem nacional na estrutura

reflexiva da subjetividade, que Glauber descreve como uma identificação entre o ponto

de vista colonizado e a matriz perceptiva do colonizador. De maneira que é possível

catalogar as “matrizes óticas” do colonizador, não tanto como uma semiologia da

realidade, senão como história do cinema que deixa aberta uma brecha genealógica para

o estabelecimento de uma nova perspectiva “Tricontinental”.37 O objetivo polêmico da

Estética da fome, desde a primeira linha, não era outro senão desautorizar o modelo

reflexivo da crítica europeia: “nossa originalidade é nossa fome, e nossa maior miséria é

que esta fome, sendo sentida, não pode ser compreendida.”38 A condição do autor não é

menos convencional nem compreensiva que uma narração, porque está constituída

sobre a mesma tradição, “herdeira da razão revolucionária burguesa europeia”, que tem

a sua melhor expressão na imagem de povo como sujeito político: “o povo é o mito da

burguesia. A razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo”, dirá com

toda a precisão em Estética do sonho (1971).39 A crítica, nesta altura já radicalizada, do

ensaio sobre o cinema de poesia (“é um erro, e inclusive repercute na obra de

Pasolini”), somente se entende nestes termos: não se pode restituir o velho pelo novo,

nem muito menos substituir em bloco os meios expressivos do autor moderno pela

potência visionária da tribo bárbara, sem confinar as suas possibilidades expressivas na

forma da temporalidade do sujeito europeu moderno, – ainda que seja para acentuar a

incompreensão correlativa entre as visadas, no sentido de Pasolini (“os dois veem, em

35 Ibid. p. 249. 36 Revolução do cinema novo, p. 128. 37 “O cinema do Terceiro Mundo não deve ter medo de ser primitivo. Será naif se insiste em imitar a cultura dominadora. Também será naif se fizer-se patrioteiro. Deve ser antropofágico, fazer de maneira que o povo colonizado pela estética comercial (Hollywood), pela estética populista/demagógica (Moscou), pela estética burguesa/artística (Europa) possa ver e compreender a estética revolucionária popular, que é o único objetivo a justificar a criação tricontinental. Mas, também, é necessário criar essa estética.”, op.cit., p. 237. 38 Op. cit., p. 65. 39 Ibid, p. 250.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

concreto, ‘séries diversas’ de coisas”). Por isso, a retrospectiva sobre O Evangelho na

década de 1970 introduz um hiato que limita a identidade com Pasolini a 1964:

“[naquela época] o filme de Pasolini me revelava identidades tribais comuns, bárbaras...

Mas eu já estava pensando em Terra em transe, no mar que sucede ao sertão, ondas

mais além da Nouvelle Vague”.40 O impacto de O Evangelho é descrito como “porra

louca e genial, mescla de Godard e Che Guevara”. Durante a filmagem de Deus e o

diabo, Rocha identifica em Godard a condição de partida do cinema novo: “é necessário

dar um tiro no sol: o gesto de Belmondo no início de Acossado define, e muito bem, a

nova fase do cinema.”41

Godard tinha rastreado o momento genético da “consciência de um autor” no

umbral estilístico do filme: “um enquadramento é uma decisão moral”, dizia Glauber,

ao mesmo tempo que compartilha esta concepção, condiciona a sua projeção aos países

subdesenvolvidos: “Tricontinental, a decisão política de um cineasta nasce no momento

em que a luz fere a película. E isto é assim porque ele escolhe a luz: câmera sobre o

terceiro mundo, aberto, terra ocupada. Na rua, no deserto, nas florestas ou nas cidades, a

escolha é imposta.”42

A tese de “Tricontinental” (Cahiers, 1967) é paradoxal. A primeira política de

um autor é a decisão sobre a luz na composição do quadro. Mas a eleição do cineasta é

imposta nos enquadramentos do terceiro mundo. Não tanto porque a “ocupação da

terra” condicione a “abertura da câmara” à liberação territorial, como ocorreu na Itália,

mas sim por uma condição genética do cineasta latino-americano, independentemente

da censura ou do compromisso eventual que limitem desde fora a sua margem de

liberdade: o que se impõe é a própria decisão, que nasce no ato de enquadrar, não antes,

nem como uma limitação, senão de maneira positiva, imanente ao processo de criação.

Noutras palavras, não é por uma condição negativa que se define a barbárie do cinema

do terceiro mundo, nem é por uma consciência do enquadramento que se ampliarão as

possibilidades expressivas de um novo tipo antropológico, mas sim porque a escolha do

cineasta latino é investida de uma força maior do que a sua consciência autoral. Há

outras forças concorrentes no enquadramento do terceiro mundo, o que não significa a

exclusão de toda moralidade não seja equiparável com um defeito formativo: “existe o

plano americano, o italiano, o francês, e também o da América Latina: o que é feito

40 ROCHA, Glauber. O século do cinema, p. 256. 41 Revisão crítica..., op. cit., p. 36. 42 Revolução do cinema novo, op. cit. p. 104.

Nicolás Fernández Muriano

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como um cu”, como costumava dizer. Rocha, desde antes de partir à Europa, milita por

uma definição positiva dos enquadramentos bárbaros, tomando como uma expressão de

forças que não se possam estabilizar numa sequência contínua, que projete no plano da

consciência tomada pelo enquadramento. É um dos mandamentos de Nosso Senhor:

“quando tudo está iluminado e o enquadramento composto, Luis se aproxima, dá um

empurrão na câmera e manda rodar”.43 A extensão dos planos está condicionada pela

irrupção de forças que exigem a repetição do momento genético, quer dizer, a

disposição instantânea da força que impõe ou sustenta um ponto de vista. A “operação

sagrada” da América Latina não se pode consolidar sobre nenhuma perspectiva moral

que justifique a duração correlativa dos dois sujeitos num plano indireto livre: Que linguagem original usar, uma vez rechaçada a linguagem da imitação? (...) O cinema, inserido no processo cultural, deverá ser em última instância a linguagem de uma “civilização”. Mas qual civilização? Terra em transe, o Brasil é um país indianista / ufanista, romântico / abolicionista, simbólico / naturalista, realista / parnasiano, republicano / positivista, anarco / antropofágico, nacional / popular / reformista, concretista / subdesenvolvido, revolucionário / conformista, tropical / estruturalista etc etc. A informação das oscilações fecundas de nossa cultura de superestrutura (porque falamos de uma arte produzida por elites, muito diferente da “arte popular produzida pelo povo”), tampouco basta para saber quem somos. Quem somos? Qual cinema é o nosso?44

A moral de um novo Cristo. “Pier Paolo Pasolini, em 1964, filmou O Evangelho segundo Mateus. Versão

moderna da vida de Cristo, análise histórica do fenômeno judaico e tentativa de nova

moral revolucionária, o filme de Pasolini foi atacado por setores da crítica francesa.”45

O comentário de Glauber ao filme parte de uma distribuição de pontos de vista e do

plano dos conteúdos, segundo uma disposição temporal: versão moderna (presente),

análise histórica (passado), tentativa de uma nova moral (porvir). O caráter de tentativa

caracteriza o novo, como ponto de vista sobre um objeto possível. A análise histórica,

ao contrário, pressupõe seu objeto como uma realidade independente de qualquer

análise. A modernidade do filme, em primeiro lugar, se opõe aos clássicos de

Hollywood: “não se interessa pela continuação, as técnicas de interpretação, o realismo

dos cenários etc”. Em termos positivos, consiste na composição de duas perspectivas

irredutíveis, que desmontam a continuidade objetiva e a narrativa do plano de

conteúdos: a análise histórica do fenômeno e a “mimese visiva”, entre a tentativa do 43 O século do cinema..., op. cit., p. 174. 44 Revolução do cinema novo, op. cit., p. 131. 45 O século do cinema, op. cit., p. 188.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

autor e a perspectiva revolucionária de seu personagem, duende ou Cristo. A análise

toma distância dos fatos que narra, da própria letra do evangelho. Por exemplo, Pasolini

filma a página do Texto fora da diegese dramática, entre atos, por assim dizer, como um

objeto que não é interpretado por um personagem nem posto em perspectiva pelo

narrador, procedimento característico que está associado com outros, como

interpretação autoral não dramatizada. Por exemplo, se o Cristo cumpre ao pé da letra o

evangelho, é como se não o concernesse em absoluto, pelo menos, segundo o pathos

codificado pelo Actor studio.46 A paixão é desapaixonada, se poderá dizer,

correlativamente, o primeiro plano não codifica psicologicamente a expressão do

personagem, com frequência o autor sói dessincronizar a faixa de som da imagem etc.

Diz o ensaio: Seu Cristo – que predica a intolerância antes do que a piedade, que predica a violência antes que a complacência, que se volta (revolta) contra o Pai quando, na Cruz, se vê desamparado – é o porta-voz de uma nova moral: a moral da fome subdesenvolvida consciente. O Cristo de Pasolini é um estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos os comportamentos que caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, ao homem colonizado.47

A “tentativa de moral”, apesar disso, não se limita a inverter de fato a moral do

homem colonizado. A “operação sagrada” depende da neutralização dramática dos

pressupostos morais e estéticos da mise-en-scène do Texto. O mesmo desamparo de

Cristo na cruz não muda de signo porque o autor expresse outra atitude, insubmissa, no

lugar da resignação do gesto: o rosto neutralizado se converte em superfície refletiva

das paixões complementares, desde o ponto de vista de seus possíveis intérpretes. É o

contrário de um suspense, a câmera não manipula o espectador, o deixa livre de

manipulação que venha a constituir a priori a condição moral do espectador

cinematográfico: “o herói positivo, o esquematismo sociológico”. Nesse sentido, “é um

estigma contra a alienação”, contra a imagem que tira proveito de “todos os

comportamentos que caracterizam o homem colonizado”. Os ataques da crítica se

explicam menos pela violência contra as matrizes narrativas do que pela dificuldade, da

parte dos especialistas europeus, de assistir à imagem de um povo em formação e a

46 Uma das características principais do cinema moderno, segundo Deleuze: “Precisamente porque o que sucede a eles não lhes pertence, não lhes concerne mais do que pela metade, eles sabem descolar do acontecimento a parte irredutível ao que acontece”, La imagem-tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2005. p. 35. 47 O século do cinema, op. cit.

Nicolás Fernández Muriano

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mise-en-scène de novas forças que não estão encarnadas expressiva ou historicamente, –

nem sequer por oposição entre classes, em tensão dramática resolutiva: Pasolini respondeu e deu a chave do problema: “a sordidez da crítica francesa recusa a admitir a existência de um subproletariado em evolução nos países subdesenvolvidos, recusa a compreender os valores dessas novas forças. A cultura francesa caiu num racionalismo que Sartre já denunciara como aristocrático e decadente.” 48

O primeiro parágrafo do ensaio introduz como princípio da orientação

genealógica do novo cinema a desarticulação das forças expressivas, a respeito do

campo dramático da tradicional convenção narrativa preparada por Buñuel.49 Esta

disposição inorgânica das forças tem na violência dos enquadramentos narrativos não

apenas uma condição estilística de partida, como também um suplemento de verdade: O despertar do terceiro mundo faz do cinema a sua língua viva: as brutais consequências da fome mascaram as imagens desse cinema, queiram ou não os heraldos de um mundo digestivo e belo onde os homens são bonitos, fortes e invencíveis, onde as rosas divisam a terra e as frases de efeito procuram esconder o câncer que nasce nos lábios da miss ou a criminalidade que se desenha na cabeça do diretor.50

A “verdade” desta moral de “novas forças” está marcada no nível da expressão

das imagens deste cinema como um espírito que é maior que a sua vontade de autor51.

A violência contra a fotogenia industrial não se reduz a uma forma limitativa, que

arrastaria a Buñuel, Pasolini e Rocha a reproduzir o mesmo gesto de negação contra

Hollywood, em vez disso, é o filo genealógico que conduz positivamente o Cristo

Anárquico ao Cristo Revolucionário: O surrealismo de Buñuel é a pré-consciência do homem latino, é revolucionário na medida em que pela imaginação libera o que a razão proibiu. Esta liberação, contudo, não é uma fuga, mas sim uma arma que castiga, como o Cristo de Pasolini, os símbolos da sociedade capitalista subdesenvolvida.

O momento Buñuel é a pré-consciência da ideia. Isto não significa que a tomada

de consciência encerre a tentativa. O prefixo “pre” não deve ser pensado em termos

temporais, mas num sentido vagamente psicanalítico. Buñuel libera a imagem da

48 Op. cit. 49 “O sortilégio bloqueia as portas da igreja. Os padres paralisados, os fiéis misteriosamente detidos. O povo explode nas praças, a cavalaria dispara. Enquanto as massas lutam contra as forças fascistas, os signos soam. Um bando de carneiros, mansos e servis, marcha na direção dos templos. Esta, a sequência final de O anjo exterminador, que significa? Sugestão de que a igreja e o fascismo, principalmente nos países latinos, andam sempre de mãos dadas? Saída que se abre para quem joga cartas com o sexo (Viridiana), mostrando que a estrada mais consequente é a que leva às praças e não aos templos? O anarquismo do velho espanhol estaria em crise? O homem livre de sua alienação (carneiros), precisa disciplinar a liberdade e a violência para fins políticos?, op. cit., p. 185. 50 Op. cit. 51 Revolução do cinema novo, p. 237.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

repressão psicológica e moral do racionalismo, que expulsa fora de campo o

“enquadramento irracional” de forças psíquicas. Esta liberação não é uma fuga pela

imaginação, mas é sim violenta no nível dos símbolos que expressam, reforçam e talvez

inventem as identidades morais e estéticas do ocidente. A demolição dos valores

vigentes, primeiro mandamento da moral anárquica, não está orientada na direção a um

futuro.52 Um rasgo típico de Buñuel consiste na “repetição” do tempo, que arrasta a

representação realista até o desmoronamento dos costumes e da própria forma narrativa,

mediante uma desestabilização das forças expressivas que deslocam o gesto repetido,

por exemplo, a saudação inicial em O anjo exterminador (1962) ou a repetição da

última cena no banquete orgiástico de Viridiana (1961): “Buñuel, no absurdo quadro da

realidade do Terceiro Mundo, é a consciência posssível (...) O surrealismo em sua obra

é a linguagem por excelência da fome oprimida.” O quadro da realidade absurda define

a composição sagrada de Buñuel com “a linguagem do oprimido” no êxtase das forças:

“o herói de Buñuel (...) é, em última redução, um fanático latino organicamente

esfomeado: o comportamento de um esfomeado é tão absurdo que o seu registro real

cria o neossurrealismo; a sua moral, enquanto subproletariado, é mais metafísica do que

política.”53 O “neossurrealismo” não é específico das elites culturais como na Europa,

na realidade, ele define uma “mimese viva” provisória entre o mundo visto pelo cineasta

e o mundo que seus personagens deliram. É, por isso, “a consciência possível”. Aquela

que pode ter um tempo presente, como moral provisória: “frente à opressão, ao

policialesco, ao obscurantismo e à hipocrisia istitucionalizada, Buñuel representa a

moral libertária, a abertura de caminho, o constante processo de rebeldia clarificadora”.

O irracional entendido como “consciência possível” é uma força clarificadora da

realidade, um suplemento de verdade, o que vincula Buñuel a Pasolini, através da crítica

do método histórico introduzido pelo Evangelho: Em sua última entrevista à imprensa, em março de 1965, Georg Lukács declarou que é necessário revisar a programática política em relação ao mundo subdesenvolvido. A alienação no mundo burguês, que alguns teóricos europeus – inclusive ele próprio – impuseram, não tem validade em absoluto para o homem subdesenvolvido. Neste homem, afirma por sua vez Pasolini, as forças do irracional geraram Cristo. Aqui, a Virgem Maria é o irracional, é

52 “Frente a sua multidão de esfomeados (como o subproletariado que seguia a Cristo, colonizado pelo Império Romano), Buñuel preparou, na história do pensamento cinematográfico moderno, o caminho para o novo Cristo de Pasolini. Buñuel pode ser considerado como anarquista de esquerda, é o demolidor dos valores vigentes do mundo ocidental cristão (principalmente do submundo latino): não propõe uma nova ordem, mas não aceita a ordem vigente.” O século do cinema, op. cit. 53 Op. cit., p. 189.

Nicolás Fernández Muriano

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o suprarreal, é a imagem de um povo sofrido, cuja alienação provoca, num parto a fórceps, antes ou depois, o Cristo redentor.54

A tese que sustenta que a colocação da realidade na imagem surrealista falseia a

imagem do mundo só é válida para o velho continente: “a crise da velha Europa

Ocidental faz do cinema um espelho de sua alienação.” Mas, no “mundo

subdesenvolvido”, o espelho inverte a sua direção e o seu sentido. Por um lado, é a

“programática política” do realismo socialista que falseia “a linguagem por excelência”

do povo, refletindo-se a si própria, segundo o seu próprio esquematismo (“o sujeito

revolucionário europeu”), enquanto que o irracional da composição provoca, produz,

pela violência surreal ou anárquica, antes ou depois, o Redentor ou uma nova

subjetividade. A crítica do “racionalismo” antecipa o ponto central da discussão com a

perspectiva do cinema europeu, que alcança a sua formulação mais consistente na

Estética do sonho (1971): A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime a bala. Para ela, tudo o que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que lança a sua vida na imprevisibilidade da prática histórica, é a cabala do encontro com as forças irracionais das massas pobres.55

Encontramos neste fragmento alguns dos tópicos do que temos considerado. O

“novo”, a “revolução”, é um estado de possessão, se orienta na direção de uma “ideia”

que não tem outra consistência que a de um objeto de crença. Não prossegue na direção

da história, nem segundo a ordem racional da consciência: é uma tentativa, lançada em

direção à ideia que ela própria afirma. A tentativa não apenas caracteriza uma

disposição espiritual, como também a conduz a sua maior altura: da mística religiosa à

mística política. O “novo” implica uma relação problemática com a história, se faz na

imprevisibilidade, de modo que a sua possibilidade de ser não está articulada com os

antecedentes e consequentes da narrativa histórica: é uma cabala, um encontro possível

com as forças irracionais. Por isso, não pode ser objetivada na análise histórica como

uma “imagem do povo”.56 A Estética da fome (1965), em seu momento, definia como a

única contraparte moral da miséria o “raquitismo filosófico” da ideia que não pode

compreender a sua própria realidade de maneira reflexiva, nem mesmo postulando uma

tomada de consciência da fome a respeito de sua própria realidade: “nossa originalidade 54 Op. cit. 55 Revolução do cinema novo, op. cit. p. 250. 56 Em caerta do mesmo ano, diz: “as velhas interpretações econômicas, sociológicas, antropológicas, pouco valem frente ao desafio tecnológico e místico que o país nos impõe.” Cartas ao mundo, op. cit., p. 411.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome que pode ser sentida não pode ser

compreendida”. Este raquitismo filosófico, sem embargo, tem o seu momento positivo:

“a fome não é somente uma realidade alarmante, mas sim o nervo positivo da América

Latina”. O que pode ser sentido é uma possibilidade de expressão. A violência de

Buñuel (que desconfigura as forças articuladas narrativamente), que intensifica Pasolini

(neutralizando a codificação dramática do que pode ser sentido) e Rocha (sobre-

expondo a película à luz mais além dos umbrais da fotogenia) desloca a continuidade

orgânica de seu objeto, assim desativando os signos da pobreza que costuram o nervo

expressivo à realidade: “nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico,

mas de um esforço titântico e autodevastador no sentido de superar a nossa

impotência... aqui reside a trágica originalidade do cinema novo”.57 A Estética do sonho

(1971) diagrama a curva genealógica que conduz desde a neutralização dramática do

“nervo expressivo” até a tentativa positiva de uma moral revolucionária, que supera a

impotência filosófica, literalmente, como outra cabeça, que funciona diferente e a partir

de outros recursos em relação à “consciência possível”: De modo que este pobre se converte em um animal de duas cabeças. Uma é fatalista e submissa, a razão pelo que o explora como escravo. A outra é naturalmente mística. A revolução como possessão do homem que lança a sua vida rumo a uma ideia é o mais alto grau de misticismo.58

A mise-en-scène do pobre como um “animal de duas cabeças” (ou de duas

morais) condiciona a “mimese visiva” do cinema da América Latina, já que desmonta a

operação sagrada em duas perspectivas distintas sobre o seu objeto, composto

inorganicamente pela operação do Patriarca espanhol e pela tentativa do Apóstolo

Profano. A segunda operação somente é possível por meio e junto da primeira, que

constitui as condições de uma nova sensibilidade, porque amplia os efeitos sensoriais do

cinema, mais além do enquadramento que naturaliza a sensibilidade do colonizador,

como um marco compreensivo do que pode ser sentido no terceiro mundo: “a arte

revolucionária deve ser magia capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não

suporte mais viver nesta realidade absurda.”59 A violência irracional, neossurrealista, do

Cristo anarquista, deste modo, torna possível uma tentativa revolucionária como a de

Pasolini: “O Cristo de Pasolini é o porta-voz de uma nova moral, que é a moral do

homem subdesenvolvido consciente”, porque esta nova moralidade não pode ser

produzida por meio da consciência (fatalista e submissa) do subdesenvolvido: 57 Revolução do cinema novo, op. cit., p. 65. 58 Ibid., p. 250. 59 Ibid., p. 251.

Nicolás Fernández Muriano

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“passaram mil anos antes que o povo possa ouvir algum discurso”, disse Paulo Martins

no carnaval político Terra em transe (1966). Mas nos países subdesenvolvidos, “afirma

Pasolini”, o Novo Cristo é criado, antes ou depois, em um parto a fórceps, por uma

“cabeça mística”. A operação mística é lançada em altura mediante uma ruptura da

continuidade dramática ou “horizontal”, no sentido de Eisenstein. Mas o sonho, desde a

sua altura, não se pode limitar a elaborar reflexamente as penúrias da vigília, como

ensina Buñuel em Os esquecidos (1950), quando os seus miseráveis sonham de noite a

carne que não comem de dia e o incesto que não se atrevem sequer a desejar. A moral

anarquista decodifica a cabeça “fatalista e submissa” do pobre que pensa a pobreza

abaixo do que pode sentir. A moral revolucionária elabora o plano de conteúdos da

“cabeça mística”, que sustenta a consciência estilística do autor (“porta-voz”) sem

encarná-la dramaticamente nos personagens, a não ser pelo buraco expressivo que não

traduz nenhuma afeição programática ou psicologicamente justificada (como as risadas

dos pobres típicas de seus filmes, nunca motivadas psicológica ou dramaticamente: de

que riem os esquecidos de Pasolini?). Os dois filmes de Rocha contemporâneos à

Estética do sonho são exemplares: Cabeças cortadas (1970) desmembra a violência

absurda da realidade (que filma exteriores) do plano discursivo delirante (que filma

interiores), como uma cabeça é separada do corpo, vista por dentro, enclausurada numa

interioridade sem nervo, como um fluxo ideativo separado do espaço puramente

intensivo das forças disponíveis. O leão de sete cabeças (1971) introduz uma nova

disposição que transborda da tentativa pasoliniana, mediante um princípio de

metamorfose que põe em “transe” o porta-voz das tentativas. Por isso, cada palavra do

título se diz num idioma europeu distinto, lido por uma cabeça distinta de um Novo

Evangelho: É toda uma reversão da fé cristã que Glauber levará a sua culminação num filme como A idade da terra, com a multiplicação de Cristo, liberado do cristianismo (o Cristo índio, o Cristo negro, o Cristo militar e o guerrilheiro), um Cristo investido de forças desestabilizadoras.60

O Cristo Édipo

A década de 70 contrasta de maneira irreversível as condições de produção dos

italianos frente à diáspora de cineastas subdesenvolvidos do porvir. Rocha cada vez

60 Cartas ao mundo, p. 31.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

escreve mais e filma menos.61 O ano de 1969 marcou o ápice de seu reconhecimento

internacional. O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) obteve o prêmio

de melhor direção no festival de Cannes. Glauber ironiza. Tive que fazer um western de

estruturas paralelas para ser distinguido na Europa enquanto um autor. O Maio Francês

tinha feito de Terra em transe uma espécie de ícone audiovisual, completando La

chinoise (Godard, 1967). Depois de Cabeças cortadas (1970) e O leão de sete cabeças

(1971), apesar disso, Glaub não consegue financiar nenhum outro projeto até 1975,

quando realiza Claro, em Roma, praticamente sem outros recursos além de uma câmera

na mão e o amor de Juliet Berto, que ele rouba da nouvelle vague, – como Rossellini

havia feito com a star Ingrid Bergman. É uma mimese visiva delirante e amorosa, sem

fio condutor técnico nem literário, a intervir performaticamente na arquitetura política

do velho mundo. A revista Nouvel Observateur critica o filme desapiedadamente.

Existem duas cartas do mesmo ano que vinculam o “ataque” da imprensa com Pasolini.

A primeira é remetida a seu crítico. Aqui o signo “Pasolini” é positivo: Como pode você, tendo eu sido liberado, falar em narcisismo confuso e, sobretudo, insuportável. Siclier, Le Monde, também: “...o desprezo do autor pela língua burguesa, filho de Marx e Maldoror etc... insuportável”. Para você eu não sou um filme perpetrado em Roma, para Siclier um imprecador – como Pasolini e os condenados da terra.62

A identidade tribal subsiste contra a crítica dos franceses. Pasolini está do

mesmo lado de Frantz Fanon. Mas a tribo terceiromundista avança sobre o centro. O

centro reage: A periferia avança para o centro e Godard político (Sadoul) é um filho do cinema novo? Você entende italiano? Inglês? Não entendeu Cabeças cortadas quando Franco ainda estava vivo. Frantz Fanon, tem aqui a estética colonialista: Rocha para a crítica deve se manter confinado na tribo terceiromundista. Não aqui. E por que proibir o filme? Você defende os interesses de quem? Meu filme será lançado, se chama Claro (Luz...) que desnaturaliza a mitologia... É preciso rever esse filme insuportável legendado para não cometer o crime da censura em nome do revisionismo acadêmico anticomunista profissional... Em Claro têm católicos e comunistas em Roma. Tropicalismo mais neorrealismo mais nouvelle vague = Claro. O cinema novo, segundo ato, a periferia avança ao centro.

O centro é definido em termos geopolíticos e genealógicos. O cinema novo

chega a Roma, onde tem um fio político com Godard e a protagonista de 2 ou 3 choses

que jê sais d´elle (1967). A periferia transborda em resistência cultural à crítica

europeia, amarra as suas línguas, pensa mais rápido, opera mimeticamente através de 61 “A Itália é a maior indústria cinematográfica da Europa e concorrente de Holywood porque dispõe dos melhores cineastas do mundo”, O século do cinema, p. 242. 62 Cartas ao mundo, op.cit. p. 546.

Nicolás Fernández Muriano

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suas atrizes (Juliet Berto) e faz falar as suas novas cabeças (Carmelo Bene). Clarifica os

monumentos da mitologia política europeia, católica e burguesa, camada por camada,

operação complementar a que realiza Idade da Terra (1981) sobre a América Latina.

Isto define o segundo ato do “cinema novo” e é a razão do “profundo reacionarismo” da

crítica. 63

Pensemos na segunda carta, remetida a um colega brasileiro. Aqui o signo

Pasolini é negativo: O último filme de PASO é o processo sobre um intelectual burguês revolucionário que passou a sua vida explorando o cu do subproletariado e acabou vítima de sua própria culpa, um carneiro morto. A crítica francesa recebeu mal Claro no festival de Paris: disseram que o meu “desprezo pela linguagem burguesa me conduzia para além do suportável”... e ainda me chamaram, de sacanagem, de filho de Marx com Lautréamont (...) PS = continuo pobre! 1975, novembro.64

A pobreza é uma prova de honestidade socrática aplicada sobre a morte de

Pasolini. Rocha vincula o crime do italino com a consumação de um último filme, o

momento mais real de sua obra, o nervo expressivo de Pasolini: “inclusive se foi um

atentado fascista, eles aproveitaram a cenografia pasoliniana para matá-lo segundo os

seus próprios ritos.” De maneira correlativa, o último filme de Pasolini, Saló ou os 120

dias de Sodoma (1975), produz um tipo de efeito crítico retrospectivo que despe a

“tentativa” de seu autor: Cristo se compõe com Édipo. O nome de Pasolini se decompõe

no nome do filme e do pathos que investe o seu amor cristão: “Paso Sado Maso Salo”.65

Antes da estreia de Saló, entre 74 e 75, Glauber periodiza a filmografia de Pasolini,

numa rápida anotação de seus títulos, ordenados por data e acompanhados de uma ou

duas palavras (“Accattone é o último grito do neorrealismo”), que chega até Il fiore

delle Mille e una notte (1974). A descrição muda de tom drasticamente: “ritual

estetizado pela frustração sexual”. A outra diferença notável está na extensão do

comentário. Rocha reconstrói a contrapelo a periodização da virada moral em Pasolini:

“Neste filme, o Pasolini revolucionário do cinema se converte em costureiro da montagem,

63 “Os críticos de Paris que proclamaram Rocha gênio irão massacrá-lo. Muito típico de profundo reacionarismo. Siclier denunciou Imprecación e você Perpetración. Filme perpetrado em Roma? Perpetrado? Juiz, polícia, tira, moralista etc. Não dependo mais de seu diário para assegurar o sucesso de meus filmes. Claro é o meu primeiro filme. O primeiro filme da nouvelle vague... você não sabe de nada... o cinema novo saiu do subsolo... bem... falaremos amanhã. op. cit. 64 Op. cit. p. 539. 65 Assim intitulava-se um texto que não chega a publicar em vida, nem está fechado: “entre a cidade e o campo, o Édipo cristão... professor, escritor, kyneazta, um intelectual profyzyonale, mas o escândalo não é ‘a arte de Pazolyny’, o bonito é a imoralidade da vyrtude kriztyana pela sexualidade absoluta, o sofrimento e o prazer, a extasorgiástya (cruz do Pai), falo sagrado de um pai que mata... o encurramento, (inkukazione) de Kryzto por Deus, de Édipo por Layo, de Pier Paolo por alguns ragazzi di vita... Krystedipo deve ser punido”, O Século do cinema, op. cit. p. 323.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

maquiador de heróis decadentes, fotógrafo de turismo, um sonoplasta raso e poeta católico e de

tendência espanholizante.”66

O mínimo que se pode dizer é que Pasolini largou a cruz de Nosso Senhor

Buñuel, abandonando o caminho do amadorismo latino, nos dois sentidos da palavra:

profissionaliação da colocação em cena e perversão do amor, perpassado por forças

sexuais frustradas, dissimuladas pelo enquadramento vazio e pela costura do raccord

narrativo. Esta operação de “a arte de Pazolyny” se projeta através da visada dos

personagens, como um espelho invertido de sua própria alienação: “é a exposição de

fantasmas cristãos que desfilam no terceiro mundo com o encanto da flexibilidade

sexual dos primitivos.” A sensibilidade ampliada da sexualidade primitiva reflete os

fantasmas morais do catolicismo e, vice-versa, a barbárie moral dos personagens

exprime o erotismo frustrado do autor. A perversão de Pasolini se condensa num ritual

de primeiros planos expressivo-expressionistas: “Pasolini coloniza o sexo do pobre, o

subproletariado é uma máquina indefesa frente a sua morbidez”. Deleuze define o

“primeiro plano” como um procedimento de rostificação de qualquer superfície

refletora: “o relógio me olha”, diz. Nisto, segue-o Eisenstein, que pensava o close-up de

Griffith como a expressão da moral puritana que anima os detalhes das coisas inertes, a

partir de Dickens: “foi num guisado que tudo começou”.67 Rocha é einsensteiniano

quando escreve “Pazolyny”, “Kryztedipo”, “Eztetyka”, com as letras do alfabeto da

teoria do cinema, e também quando define o enquadramento obsessivo de Pasolini,

codificado pelo primeiro plano de Griffith, como uma substituição em bloco da visada

primitiva sobre a sexualidade, por sua própria fixação visiva no sexo dos primitivos:

subjetivação fetichista do sexo dos personagens e sexualização simultânea do olho da

câmara (“o sexo me olha”). A adaptação de As mil e uma noites conclui, perverte a

literatura árabe por meio de um ritual codificado narrativa e dramaticamente para

inverter a disposição das forças expressivas do povo: A literatura árabe nasce do povo e estruturou uma sociedade capaz de resistir ao cristianismo imperialista. A magina nasce da fome, mas Pasolini se diverte com peripécias sádicas... Pier Paolo vende poesia erótica popular. Pasolini anuncia São Paulo.68

Este comércio sádico da imagem do povo é a expressão estética da moral de São

Paulo, o Cristo imperialista, ponto de inflexão do cristianismo em Pasolini, que nasce

66 O século do cinema, op. cit., p. 282. 67 A referência a El Grillo del hogar está em EISENSTEIN, Sergei. “Dickens, Griffith e o filme de hoje”, Teoria e técnica cinematográficas. Madrid: Rialp, 2002. 68 O Século do cinema, op. cit., p. 282.

Nicolás Fernández Muriano

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certa vez da piedade de Rossellini, o Cristo Neorrealista que morre financiado pela

Democracia Cristã e volta a nascer da Cruz de Buñuel, o Cristo do Terceiro Mundo

traído pelo Cristo Romano e que, em última instância, morrerá no espelho de Édipo,

como uma configuração ritual da frustração sexual mais inveterada do ocidente. Esta

conclusão se atinge nos textos posteriores a Saló. Mas como Saló, Il fiore... opera na

periodização de Glauber uma espécie de efeito clarificador retrospectivo: “O Evangelho

é a integração do artista ao Vaticano Comunista”. Pasolini ocupa o centro da moral do

velho mundo desde 1964. Mas Il fiore... é todavia uma última tentativa de mascarar, sob

um véu esteticista, a virada do poeta da revolução em direção à “inkukazione” edípica,

que articula sobre o plano da produção a frustração das forças anticapitalistas que se

dispõem industrialmente.69 Os efeitos ou pelo menos os ecos da industrialização do

cinema na Itália justificam histórica e geracionalmente a perversão pasoliniana: Pasolini foi aquele que chamou o produto do milagre do Plano Marshal, na Itália. Depois da geração de fome – os neorrealistas – o cinema italiano se converteu numa indústria. O momento de Pasolini representa a passagem da fome à gula e penso que o escândalo Pasolini era um “mais-valor”, um luxo para essa Itália que queria ser desenvolvida desde o ponto de vista industrial e moderno, desde o ponto de vista ideológico, mas que em realidade era uma Itália desagregada, arcaica, selvagem, bárbara, anárquica. Contudo, a selvageria, a barbárie, a anarquia pasoliniana eram dominadas pela disciplina marxista, pelo misticismo católico, tornando-se uma barbárie maquiada.70

Da fome à gula, a geração do luxo, financiada por Hollywood, exprime o desvio

ou a perversão das forças que conduzem da fome ao sonho dos latinos. Pasolini mata o

seu pai histórico (Rossellini) e o seu pai genealógico (Buñuel), assim como Bertolucci é

“o assassino cinematográfico de Pasolini”. Mas, diferentemente de Bertolucci, que

assume sem resistências o imperativo do raccord narrativo (levando ao extremo a

unidade temporal de seus longa-metragens), o assassinato ritual antes de Saló conserva

em Pasolini, sob um verniz estetizante, um mais-valor irredutível à estética do

classicismo, o que equivale a dizer que Pasolini não consegue produzir um só plano

objetivo que estabeleça um corte preciso com a subjetividade de seus personagens.

Todos os seus planos são expressivo-expressionistas: Não era uma prática sexual, mas sim uma religião, uma ideologia, um mecanismo de fetiche, um misticismo. É o que se vê em seus filmes, essa dialética entre Cristo e Édipo, o Cristo-Édipo. Isto podemos ver bem no Evangelho segundo São Mateus, no momento da morte, Cristo diz: “Pai, por

69 “Ele rechaçava a sociedade capitalista, mas a aceitava no sentido em que se converteu num profissional da indústria editorial e cinematográfica. Ele passou do estatuto de cineasta marginal (realizando filmes que não davam dinheiro) a cineasta que fazia filmes abertamente comerciais, como a Trilogia”, op. cit., p. 283. 70 Op. cit. p. 282.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

que me abandonaste? que é o momento mais forte do filme, ele é crucificado no falo do pai (inexistente) e a mãe que esconde sempre a condição de mulher (as mulheres estéreis ou histéricas, ou as mães possessivas que não cedem o lugar à mulher). Esta fusão Cristo-Édipo o leva ao desespero, à derrisão, à infelicidade permanente.71

O efeito retrospectivo provocado por Il fiore e por Saló está muito bem

detalhado em “O Cristo-Édipo”. A neutralização dramática do plano dos conteúdos é

tomada a partir de agora como signo geral da “perversão” maquiada, um rodeio

perverso de ponto de vista, que nada tem que ver com a disposição revolucionária das

forças: Ele fala sempre de sexo, mas não nos excitanmos com os seus filmes. Os personagens são frios, teóricos, a violência é programada, o sexo é sempre “dobrado” pelo cérebro (é por isso que seus filmes são sempre dobrados), e ele vai sempre na direção da tragédia, do sacrifício, da autopunição edipiana e cristã.72

A violência está controlada. O “mais-valor” não libera o nervo expressivo da

cabeça que pensa o enquadramento erótico das forças. Em consequência, a outra cabeça

de Pasolini, seu misticismo, não se logra constituir numa verdadeira expressão poética,

mas sim num intervalo fantasmático que dobra ou substitui em bloco o sexo pelo

cérebro. Por isso, o público não se excita com as suas imagens. A dobra de imagem e a

faixa de som são outras formas de maquiagem fetichista, igual a seus primeiros planos

etc. O “buraco” dramático que o “sonoplasta” deixa livre para escamotear a sua câmera-

edipiana ,debaixo da pele de um Cristo revolucionário que tem de ser punido: “o que me

choca em seu cinema é a ausência de poder, nunca é convincente, os seus personagens

são fracos, e penso que é por isso que ele não sincroniza os diálogos.”73 Ausência de

poder / ausência de excitação;; o “mais-valor” da defasagem estetizante é todo o

contrário de uma violência expressiva que seja capaz de desencadear as “novas forças”

do subproletariado: Penso que o sadismo, que se converteu em um mito na cultura contemporânea, sobretudo para a geração de Pasolini, é o renascimento do espírito fascista nessa geração e é também um mais-valor sofisticado das sociedades que não têm verdadeiramente problemas de sofrimento. Sade em sua época, Sade na Bastilha é uma coisa, mas o neossadismo como fetiche, como mito é o delírio da fascinação fascistizante.74

O precursor latino era, na realidade, um efeito perverso da sua época. Não

projeta uma esperança revolucionária, mas sim o renascimento do espírito fascista, que 71 Op. cit. p. 284. 72 Op. cit. p. 284. 73 Op. cit. p. 283. 74 Op. cit. p. 285.

Nicolás Fernández Muriano

101

está perfeitamente plasmado em Salò: “Pasolini, em Salò, aceita a sua verdadeira

personalidade.” Até então, Pasolini tinha adulterado a visada do subproletariado por

meio de sua própria visão edipiana de Cristo: Em meu último filme, A Idade da Terra (1978-80), falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão de um Cristo. Terceiromundista que não teria nada que ver com o Cristo pasoliniano. Pasolini procurava no terceiro mundo um alívio para a sua perversão. Para mim, o conceito de subversão é muito diferente do conceito de perversão, porque a perversão culturalmente constituída pelos intelectuais sadianos não é a minha. Para mim, a subversão é verdadeiramente inverter essa perversão por um fluxo amoroso que não exclua a homossexualidade.

O fluxo amoroso do cinema revolucionário foi uma maquiagem do erotismo

visivo de seu autor. Mas Glauber não postula uma espécie de ascetismo moral, como

um kantismo sem a sua dobra sádica. Sobre a perversão europeia, se limita a dizer: “esta

não é a minha”. Numa carta de 1973, identifica a sua no nome de seu personagem: Sou um sádico de massas. O ritual do sangue me fascina... começo a entender a significação do sadomasoquismo e a infinita ternura que existe no crime. Eu sentia um verdadeiro prazer filmando Antonio das Mortes mascarando beatos, projetava em meu inconsciente fascista em cima de miseráveis.75

Glauber não somente é o único cineasta latino que colocou em cena o genocídio

latino-americano ao mesmo tempo em que ocorria, – e inclusive antes, quando somente

poderia ser exprimido por uma sensibilidade descarnada, sem figuras morais ou

políticas, quer dizer, sem justificações ou ilusões “liberacionistas”, – como também

elaborou positivamente nos transes de seus filmes das décadas de 1960 e 1970 as forças

fascistas da sensibilidade política de sua época, tocando o nervo expressivo mais

profundo de seus filmes: “este zero ideológico nos deixa limpos.”76 De maneira geral, a

expressão “o ritual de sangue me fascina” é a mais sincera expressão do amante do

cinema. O ritual erótico de Pasolini é um duplo complementar para o mesmo princípio

(“o ritual sexual me fascina”). Portanto, é um momento interno da reflexão do

“amateur”. Por outro lado, em 1973, o italiano reconhece antecipadamente a justeza da

crítica de Rocha: Para um diretor como eu, que tivesse intuído que a cultura (em que se havia formado) estava acabada, que já não representava nada, senão precisamente (talvez) a realidade física, era consequência natural que a realidade física se identificasse com a realidade física do mundo popular. O signo da realidade corpórea é, com efeito, o corpo nu: é, de modo todavia mais sintético, o sexo... se quiser continuar com filmes como O Decamerão eu já não poderia fazê-los, porque já não encontraria na Itália – especialmente entre os jovens – a realidade física (cujo estandarte é o sexo em sua glória) que é o conteúdo

75 Cartas ao mundo, op. cit., p. 29 e s. 76 Op. cit. p. 57.

O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

desses filmes (...) me arrependo da influência liberalizadora que meus filmes eventualmente podem haver tido nos costumes sexuais da sociedade italiana. Contribuiu, na prática, a uma falsa liberalização, na realidade, querida pelo novo poder reformador permissivo, que é o poder mais fascista que a história recorda.77

A composição da cultura moribunda com o corpo desnudo do povo caracteriza a

operação sagrada de Pasolini, segundo a sua própria reflexão. É um composto do velho,

enquanto sujeito da expressão, e do novo, como personagem que dispõe num fluxo de

amor as novas forças do proletariado, desaparecida com a modernização na Itália, – o

que implica para o próprio Pasolini a impossibilidade de prosseguir na mesma operação:

“Tetis, me arrependo”, diz: a “operação sagrada” contribuiu com a liberalização querida

pelo poder mais fascista da história. Rocha leva essa conclusão ao limite: O problema não é a homossexualidade ou a heterossexualidade, é a fascinação pela herança fascista, os grandes balés contorcionistas de um homem vindo do campo, de uma civilização arcaica, e que utiliza várias linguagens (a literatura, o cinema) para sublimar, disfarçar enfim, ou com Salò, alcançar a sua verdadeira personalidade que não era nem Cristo nem Édipo, senão algo muito misterioso, o prazer fascista.78

O neossadismo de Pasolini elabora de maneira fetichista a fascinação fascista

pelas grandes colocações em cena da estética das massas comum à Hollywood, Mosfilm

e a Goebbells e Leni Riefenstahl: o povo deve morrer. O problema não é Pasolini.

Pasolini é uma configuração possível do nervo positivo do Terceiro Mundo. A

subversão moral contém a perversão fascista germinalmente, erotismo e sangue, mas

um fluxo amoroso precisa articular-se com as imagens do povo, libertar as forças da

claudicação sádica do pathos do autor: A Idade da Terra... investe o mito cristão, mas não o mito do Cristo Católico, europeizado ou civilizado, investe uma espécie de cristandade descristificada. Meu Cristo não morre, não é Crucificado. Encontro inclusive que, em meu último filme, não há sofrimento como nos outros.79

Pasolini vira na direção contrária e, com Salò, alcança o momento mais real de

seu estilo, seu verdadeiro personagem, uma vez que o ponto de vista já não se mimetiza

com a maquiagem dos oprimidos, senão que substitui em bloco a perspectiva dos

torturadores por sua própria visão autopunitiva num espaço de clausura: Salò é o filme de Pasolini que prefiro, porque penso que é o melhor desde o ponto de vista da forma: está bem enquadrado, bem montado, bem representado, o filme se converte num corpo convincente, com uma violência existencial, e não com a violência teórica de seus outros filmes. Porque em Salò diz a verdade ao afirmar: “aqui está, sou pervertido, a perversão é o meu

77 PASOLINI, Pier Paolo. “Tetis” in Vittorio Boarini (ed.). Erotismo e destruição. Madrid: Fundamentos, 1998. p. 99 e ss. 78 O século do cinema, op. cit., p. 286. 79 Cartas ao mundo, op. cit., p. 65.

Nicolás Fernández Muriano

103

personagem, meu herói ama aos carrascos como eu amo o meu assassino”, e depois de seu filme ele morreu numa aventura de exploração do sexo proletário.80

A perversão como personagem composto dos dois sujeitos do filme é a primeira

“mimese visiva” justificada por seu autor, uma sorte de parúsia final que alcança o

momento mais real de uma época: “ele assume a tragédia, punido pelas falsas máscaras

de Édipo e de Cristo... nisso está o fundo do mistério, não somente de Pasolini como

também do Pasolini em que se converteu, e por causa disso, é um mito contemporâneo.”

O epitáfio é duplo e recíproco. Assim como o Cristo de Rocha é elaborado com e contra

a versão de Pasolini, por um efeito de simetria selvagem do ritual de snague e do ritual

erótico, pode dizer-se também que a morte de Rocha coloca em cena o seu próprio rito

sádico como um duplo recíproco ao assassinato ritual do italiano. Pouco antes de voltar

ao Brasil, Glauber consagra ao General Golbery do Couto e Silva, “gênio da raça” e aos

militares “legítimos representantes do povo”: “serei Sócrates, bebendo a cicuta na polis?

Não, eu quero estar no banquete democrático da república”, diz premonitoriamente. Em

meio desta última mise-em-scène, morre subitamente de uma infecção generalizada.

Linchamento e funeral, recepção e despedida, põem em transe a liturgia de seu último

filme. Antes de partir, se despede de Pasolini nos Cahiers: Já ninguém falava dele, salvo para dizer que tinha ficado louco ou que tinha comprometido com o regime militar brasileiro. Tinha vindo à França mostrar, quase às escondidas, o seu último filme, em que havia investido muito tempo, dinheiro e trabalho, e tinha deixado os que o tinham visto em Veneza, no mínimo, perplexos. Chamava-se A idade da Terra e não se parecia com nada conhecido: era um filme torrencial e alucinado, um ovni fílmico, nem mais nem menos... Falava muito, sem dúvida delirava: nada do que dizia era insignificante. Nos Cahiers perguntamos a ele se aceitava escrever algo sobre Pasolini... Encerrou-se no escritório e, sem necessidade de que lhe fizéssemos perguntas, falou sozinho durante horas ante um pequeno gravador. Incomodados, escutávamos a sua voz veemente, o encanto de seu francês com sotaque brasileiro, o ajuste de contas colérico e afetuoso com Pier Paolo Pasolini, as reprovações post mortem. Era já um diálogo de mortos.81

Nicolás Fernández Muriano é professor de filosofia na Universidade de Buenos Aires, coeditor da revista Fármacos, é autor de A Biblia Gaucha.

Tradutor: Bruno Cava.

80 O Século do cinema, op. cit., p. 284. 81 DANEY, Serge, op. cit., p. 99 e s.

Benjamin e a percepção coletiva Maurizio Lazzarato Nota dos editores: Este texto é o capítulo de conclusão do livro “Videofilosofia. La percezione del tempo nel postfordismo” (Roma: manifestolibri, 1996), de Maurizio Lazzarato. O capítulo foi traduzido por Gustavo Bissoto Gumiero. 1.

Antes de chegarmos às conclusões, queria repreender todas as temáticas tratadas

até agora e confrontá-las com o trabalho de Walter Benjamin, de modo particular com o

seu conceito de percepção coletiva, que poderia lançar as hipóteses aqui levantadas

sobre um terreno político. Ao contrário de Bergson, para Benjamin “o modo no qual a

percepção se elabora (o medium no qual se realiza) não é determinado somente pela

natureza humana, mas pelas circunstâncias históricas” (BENJAMIN: 1991, 143). A

intersecção destes dois pontos de vista nos leva a pensar a nossa atualidade. A

metodologia benjaminiana nos interessa porque liga de maneira direta a mecanização

do trabalho e a mecanização da percepção, a forma coletiva da produção e a forma da

recepção, o choque produzido pela rede de montagem e o choque produzido pela rede

das imagens montadas, as transformações da forma-mercadoria e a introdução das

tecnologias de reprodução da obra de arte (a qual é conectada com a crise do conceito

de arte, de obra de arte e de autor). E tudo isso sob a base do advento do cinema como

tecnologia adequada à socialização das formas de percepção introduzida pelo

capitalismo. Enfim, uma metodologia que pensa juntas a socialização da percepção e da

memória com os processos de socialização e de desenvolvimento do capitalismo. Esta

conexão é o que este trabalho tinha em mente e que geralmente falta no meio acadêmico

e que constitui a verdadeira dificuldade.

Devemos, pois nos distanciar do conceito de Benjamin sobre reprodução técnica

a respeito da obra de arte que apresenta muitas ambiguidades. Benjamin oscila entre a

reprodução automática da obra de arte, a sua produção estandardizada e serializada e a

análise das temporalidades próprias do capitalismo. Assim, ele nem sempre chegou ao

fundo da relação entre automação e o tempo, ainda que tenha examinado e criticado as

mudanças da percepção e da memória e os processos de subjetivação. Automação e

tempo andam paralelamente sem que se impliquem reciprocamente. Mas é exatamente

esta implicação que resulta decisiva hoje.

Maurizio Lazzarato

105

2. Em Benjamin, a análise da percepção coletiva é entendida na relação tempo-

memória. O homem da metrópole vive, no spleen, a impossibilidade de se liberar do

fascínio que o passar vazio do tempo exercita sobre ele. O ideal baudeleriano,

interpretado por Benjamin como antecipação do tipo metropolitano, responde à perda da

experiência recorrendo à memória involuntária, depositária das imagens da vida

anterior. A poética de Baudelaire poderia assumir-se na tentativa, destinada sempre a

falência, de reinserir a imagem na recordação da memória involuntária. A destruição

desta última é obra da informação, que constringe a consciência a responder com o

intelecto aos choques, definidos por Benjamin como “a forma preponderante da

sensibilidade na época da grande indústria”. Quanto mais a consciência é levada a se

defender dos choques, mais desenvolve uma forma de memória voluntária que responde

aos estímulos através de reflexos mecanizados.

É importante entender a leitura de “Matéria e Memória” feita por Benjamin para

compreender as diferenças fundamentais com relação à nossa interpretação de Bergson.

Benjamin coloca o trabalho de Bergson dentro da oposição entre tempo da tradição

(memória involuntária) e tempo do capitalismo (memória voluntária). Bergson tenderia,

mediante o conceito de memória, a “restaurar a experiência autêntica que existe em

função da tradição”, opondo-se, assim ao modo de experiência próprio da época da

grande indústria. A nossa interpretação não relaciona a memória bergsoniana ao tempo

da tradição, mas ao tempo vazio do capitalismo, ao tempo liberado de qualquer

subordinação dos “movimentos do cosmo e da alma”, e à sua possível inversão em

tempo-criação, tempo-potência.

É precisamente o conceito bergsoniano de memória virtual que pode nos ajudar

a definir mais precisamente as dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit

(o presente messiânico ou a imagem dialética), que Benjamin, ao fim da sua vida via

como alternativa seja ao tempo vazio e homogêneo da informação, seja à restauração

(impossível) do tempo da tradição. A crítica da progressão de um tempo vazio e

homogêneo próprio do capitalismo deve converter, como vimos em Bergson, a forma

vazia do tempo em tempo-potência que cria contemporaneamente o presente e o

passado (e pode assim, como queria Benjamin, redimir este último). Bergson, como

Baudelaire, insere a imagem na recordação, descobrindo uma memória mais profunda,

uma memória ontológica que é o fundamento da memória psicológica e da memória

social.

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

É interessante notar que, para Benjamin, as condições que abrem o acesso ao

passado, à consciência social – mas não a este ou àquele passado, mas ao passado

virtual, ao tempo não cronológico – são as mesmas que permitem que o tempo enquanto

tempo mesmo mostre-se à consciência individual; a marcha da vida frente aos olhos

daquele que está em perigo de morte (o enforcado ou o afogado de Bergson1) ou o

improviso de uma recordação. O materialismo histórico deve captar uma imagem do

passado como se apresenta ao sujeito no improviso ou no instante de um perigo

supremo (BERGSON: 1959, 342).

O presente, que é a forma mais contraída do passado, uma vez liberado das

necessidades de ser útil à ação finalizada, uma vez liberado da sua subordinação ao

tempo da banalidade cotidiana, nos introduz à experiência do “tempo em pessoa”. O

rompimento da solidariedade do tempo e da imagem com os mecanismos senso-motores

do individuo é representado, a nível social, pelo ato revolucionário, que rompe o

percurso do tempo vazio do valor. O movimento é, assim, tão importante quanto o

rompimento. As articulações de destruição e de constituição, como tarefas fundamentais

da revolução, nos são dadas, nas “Teses sobre a filosofia da história”, como tarefas que

consideram diretamente o tempo. “O ato de pensar não se funda somente sobre o movimento do pensamento, mas também sobre o seu impedimento. Suponhamos que o movimento do pensamento seja improvisamente bloqueado – produz-se, então, uma constelação com grande carga de tensão, uma espécie de choque; um choque que permitirá à imagem de organizar-se no improviso [...] Esta estrutura se apresenta ao materialista histórico como o sinal de um bloco messiânico de coisas passadas; dito de outra maneira, como uma situação revolucionária na luta pela liberação do passado oprimido” (Idem, p. 346).

Somente nesta condição se poderá desvencilhar da continuidade vazia e

homogênea do tempo do valor e colher a singularidade de uma época ou de uma vida.

Nesse trabalho, Benjamin coloca a ênfase no tempo não cronológico, onde o passado

vale para todos os tempos. O presente messiânico é um tempo que contém todos os

tempos (todos os passados), sendo ele mesmo a forma mais contraída do passado.

Parece que Benjamin oscila algumas vezes, de um texto a outro, entre a tentativa de

fundar o tempo no “passado que conserva” e a tentativa de fundá-lo no “presente que

1 Em casos excepcionais, a consciência renuncia improvisamente à atenção, à vida e rompe, assim, sua subordinação à ação finalizada e aos esquemas senso-motores: “Imediatamente, como por encanto, o passado torna-se presente. Nas pessoas que veem surgir a ameaça de uma morte imediata, no alpinista que escorrega em um precipício, nos sequestrados [...] isto basta para que muitos detalhes esquecidos sejam trazidos à mente para que a história inteira da pessoa desfile como um movimento panorâmico” (BERGSON: 1959, p. 1387).

Maurizio Lazzarato

107

cria”. Esta dupla fundação do tempo, que encontramos no conceito de memória virtual

de Bergson, não parece suficientemente articulada em Benjamin. Se a oposição entre os

tempos históricos é certa, precisa, o mesmo não se pode dizer das condições

ontológicas do tempo. O presente como evento, como abertura do tempo não

cronológico leva de maneira contínua, e mesmo alternativamente, a estas duas formas

da memória virtual-ontológica e é este levar que dá um tom particular à obra de

Benjamin, presa entre o tipo do novo bárbaro que, nas condições capitalistas de

ausência de memória, não deve deixar escapar a oportunidade histórica de se liberar da

opacidade mentirosa da sua vida interior e o novo tipo religioso que, como o messias,

deve liberar e resgatar o passado de todos os oprimidos e de todos os vencidos da

história.

As dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit apresenta devem-se

à tentativa original de articular as formas históricas do tempo com as suas formas

ontológicas (ausentes em Bergson). No trabalho de Benjamin, encontramos uma

tentativa de tematização das condições histórico-sociais que anunciam e preparam a

inversão do tempo-medida em tempo-potência, que também em Bergson é quase

ausente, podendo somente ser deduzida de seu trabalho. Benjamin nos diz que a

mutação introduzida pelas tecnologias de reprodução da obra de arte determina as

condições para uma “tomada de consciência do papel político da imagem e do tempo”.

Mas a relação que Benjamin estabelece corretamente entre reprodução de massa e

reprodução das massas corre o risco de mascarar o processo de produção/reprodução

industrial do tempo, que faz as suas primeiras aparições com o cinema. O cinema

(reprodução automática da imagem) seria melhor definido como um dispositivo que

introduz o movimento e o tempo nas imagens (e não tanto como um processo de

reprodução serial da existência singular e única da obra de arte). O cinema é, dessa

forma, um dispositivo automático que cristaliza o tempo, um motor que produz e

reproduz as sínteses do tempo. Fundamentalmente, Benjamin entende a reprodução

técnica como a reprodução de uma cópia, cujo modelo pode ser comparado àquele da

imprensa; para nós, entretanto, aquilo que a técnica reproduz é o tempo.

O nosso conceito de máquinas que cristalizam o tempo quer demonstrar como o

capitalismo opera uma reprodução automática do tempo, daquele tempo que é a matéria

prima da percepção, da memória e da subjetividade. O conceito de reprodução mecânica

das obras de arte tende a fazer com que estas tecnologias sejam colocadas entre as

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

tecnologias mecânicas. Nós procuramos, entretanto, demonstrar a especificidade e a

originalidade delas como tecnologia do tempo.

Agora que já tomamos a distância necessária de Benjamin com relação a este

ponto fundamental, podemos voltar à leitura de seu trabalho de maneira específica em 3

aspectos: 1) a socialização das formas de percepção e recepção, que encontra no cinema

a sua primeira realização e nas massas o seu primeiro objeto: o processo de produção da

subjetividade é organizado por dispositivos tecnológicos (maquínicos), como o processo

de produção material. 2) A forma coletiva da percepção determina uma transformação

radical das formas seja da produção que da recepção das obras de arte. A mutação da

função da obra de arte não se deve somente à industrialização da sua produção, mas

também e, sobretudo, à atividade das massas que querem aproximar-se do objeto,

reduzir a distância hierática (que, como veremos, é fundamentalmente um problema

temporal) que as separa da obra. A forma na qual esta aproximação se dá é aquela da

percepção coletiva que se constitui na distração e no entretenimento. 3) A percepção

coletiva transforma o público em um especialista. Benjamin liga esta mutação às formas

de socialização e cooperação que se constituem no processo de trabalho. A

transformação do público e a transformação do trabalhador coletivo [operaio colletivo]

são duas faces do mesmo processo, ao ponto de Benjamin conseguir ver, nas formas

coletivas que assume a produção cinematográfica, a “forma mais pura de superação da

divisão capitalista entre trabalho manual e trabalho intelectual”.

Estas indicações são tão atuais que podem ser aplicadas também às passagens

posteriores (televisão e redes digitais) do desenvolvimento da percepção coletiva

determinada pelas máquinas que cristalizam o tempo.

3. Precisamos voltar a estes três pontos de uma maneira mais profunda e

procurarmos seguir as mutações que o capitalismo e a luta de classe determinam na

percepção coletiva, no conceito de público e na natureza do trabalho. A adequação da

realidade às massas é, para Benjamin, um fenômeno decisivo e que abrange todos os

campos. A massa é a matriz, onde se geram novas atitudes em relação à percepção, à

sensibilidade, à obra de arte. A reprodução mecânica desta última modifica a maneira

que a massa reage com relação à arte. No cinema, que é a primeira forma de percepção

adequada às massas na época da grande indústria, podem-se verificar e definir essas

novas atitudes, cuja característica principal consiste na tendência das massas a romper a

Maurizio Lazzarato

109

distância que normalmente a obra de arte estabelece com relação aos seus fruidores:

nesta renovada forma de percepção, o prazer emocional e do espetáculo confunde-se

intimamente com a atitude do especialista. A grande ligação entre o juízo crítico e o

prazer puro e simples é, para Benjamin, o sintoma da importância social de uma forma

de arte.

A recepção do cinema, que poderia encontrar seus antecedentes no poema épico,

diferencia-se da fruição das pinturas nas igrejas, nos monastérios e nas cortes da

Renascença pela sua forma intrinsicamente coletiva. A recepção das massas se

contrapõe, além do seu caráter coletivo, do fato que acontece na distração e no

entretenimento. Este movimento é motivado pela vontade das massas de aproximar-se

do objeto2, de torná-lo seu, de penetrar nele, de conhecê-lo, de experimentá-lo, de tirar

toda a sua aura, que como veremos, é uma aura temporal e de poder. Precisaríamos ler a

perda da aura não como um processo unilateralmente capitalista, como acontece

sempre, mas como uma manifestação da luta de classe, da intervenção ativa dos sujeitos

sociais. Deste modo, estamos mais próximos à metodologia benjaminiana que coloca na

dupla natureza da mercadoria o motor desta transformação.

A recepção na distração e no entretenimento opõe-se radicalmente à percepção

na contemplação: aquele que se coloca diante da obra de arte penetra dentro dela como

um pintor chinês que desapareceu no fundo da sua paisagem [...] a massa, entretanto,

através de sua distração, recebe a obra de arte dentro de si, transmite a ela o seu ritmo de

vida, abraça-a com os seus fluxos (BENJAMIN: 1991, 167).

A contemplação estabelece uma distância entre a obra e o seu fruidor, distância

essa que a massa não aceita, porque leva consigo uma outra temporalidade, uma outra

sensibilidade, uma outra atitude com relação ao mundo.

4. Gostaria de comentar este parecer de Benjamin com um texto de Bakhtin, no

qual ele demonstra extraordinariamente que esta atitude com relação à distância é uma

atitude relacionada com o tempo. Este comentário nos leva de maneira surpreendente ao

problema das máquinas que cristalizam o tempo e às sínteses que as constituem.

Bakhtin lê o desenvolvimento e a luta dos gêneros literários como uma tentativa por 2 O desejo apaixonado das massas hoje: “aproximar-se” (näherzubringen) das coisas não deveria ser outra coisa que a inversão do sentimento de alienação crescente que a vida cotidiana gera no homem, e não somente no homem confrontado consigo mesmo, mas também confrontado com os objetos (BENJAMIN, op. cit., p. 179).

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

parte dos gêneros baixos, cômicos e populares de “reorientar-se para o futuro”, como

expressão de uma sensibilidade que se sente mais próxima ao que irá acontecer do que

ao passado. Já a alta literatura se constitui pela tentativa de superar a realidade

contemporânea, o presente “baixo” fluente e transeunte, a vida sem início e sem fim

(BACHTIN: 1976, 200). O ponto central da avaliação artística e interpretativa da alta

literatura está, segundo Bakhtin, no passado absoluto, na memória, porque o presente,

no seu fluir, é privado de uma verdadeira realização e, portanto, de essência.

É importante a correlação dos tempos: o tom axiológico não cai sobre o futuro, não existem os méritos frente ao futuro (esses estão diante da eternidade extratemporal), mas a memória futura se serve do passado, serve-se da ampliação do mundo do passado absoluto, o seu enriquecimento com novas imagens (a despeito da idade contemporânea) de um mundo que, por princípio, se contrapõe sempre a cada presente transeunte3.

Esta hierarquia dos tempos é uma hierarquia que trata diretamente a hierarquia

do poder. A idealização do passado tem um caráter oficial. Todas as expressões externas

da força e das verdades dominantes são organizadas dentro da categoria do passado, da

distância, da memoria, dentro de um tempo fechado como uma roda, diz Bakhtin.

Já na criação cômica popular, o presente, a idade contemporânea, o “eu em pessoa”, os

meus contemporâneos e o “meu tempo” estão sujeitos ao riso ambivalente, alegre e

destrutivo ao mesmo tempo. O presente que aponta para o futuro se opõe ao passado

absoluto (dos deuses, semideuses e heróis). O livre contato familiar se opõe à distância

e ao afastamento; o presente ainda não realizado se opõe ao passado fechado, realizado.

É então, segundo Bakhtin, que nascem novas atitudes com relação à língua, à palavra, à

representação e também com relação ao poder e à tradição.

As intuições de Benjamin a respeito da percepção no entretenimento e na

distração (e também sobre a vontade das massas de aproximar-se do objeto), parecem

estar conectadas às atitudes carnavalescas com relação ao tempo4 que, segundo Bakhtin,

3 Segundo o autor, o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no passado: “O que não significa que neste passado não haja nenhum movimento. Ao contrário das categorias temporais relativas, no seu interno, são elaborados de modo rico e sutil [...] há uma alta técnica artística da representação do tempo. Mas todos os pontos deste tempo realizado e fechado em uma roda estão longe do tempo real e dinâmico da idade contemporânea; na sua complexidade, não é localizado em um processo histórico real, não é correlacionado nem com o presente, nem com o futuro e, por assim dizer, contém em si mesmo a plenitude dos tempos” (BACHTIN: 1976, 198). 4 Mas é necessário notar que este processo de reorientação para o futuro não podia realizar-se na “ausência de prospectiva” da sociedade antiga, onde este futuro não existia. “Pela primeira vez, esta reorientação aconteceu no Renascimento. Nesta época, o presente se sentia não somente continuação incompleta do passado, mas também um início novo e heroico” (BACHTIN: 1956, 221).

Maurizio Lazzarato

111

estão na origem da literatura moderna. O cinema estaria, portanto, na origem da arte

moderna.

É o riso que destrói tanto a distância épica quanto qualquer outra distância hierárquica que distancia o objeto no sentido axiológico. Na imagem de distanciamento, não há como o objeto ser cômico; para que ele o torne assim, é necessário aproximá-lo; tudo aquilo que é cômico é vizinho, está próximo [...] o riso contém a força extraordinária de aproximar o objeto; isso o introduz em uma zona de rude contato, onde pode-se familiarmente tateá-lo por todas as partes, rodá-lo, colocá-lo de ponta cabeça, olhá-lo de cima, de baixo, tirar a embalagem, lançar um olhar ao seu interno, decompô-lo [...] O riso destrói o medo e o respeito com relação ao objeto, com relação ao mundo, e torna o objeto familiar, predispondo-o, assim, a uma análise absolutamente livre [...] O riso, ao aproximar e familiarizar o objeto, é como se o entregasse nas mãos de uma análise – tanto científica como artística – e de uma livre invenção experimental que serve aos objetivos desta análise (Idem, p. 202).

Para Bakhtin, o cômico é a expressão de uma temporalidade absolutamente

específica. A função da memória é mínima: zomba-se para esquecer. O tempo do

cômico popular é um tempo que destrói a distância do passado absoluto e entreabre o

tempo da indeterminação, da irrealização, da criação. Uma temporalidade que se apoia

no futuro ao invés do passado. O seu ser exige uma continuação no futuro, e quanto

mais prossegue nele, mais se torna irrealizada, indeterminada, aberta à “imprevisível

criação do novo”. Um presente que não é somente histórico-social, mas que goteja

virtualidade.

A mesma zona de contato com o presente ainda não realizado e, portanto, com o futuro, cria a necessidade desta não coincidência do homem consigo mesmo. Nisso permanecem sempre potencialidades ainda não realizadas. Existe o futuro, e ele não pode não pensar à imagem do homem, não pode não ter raízes nela. O homem não se representa por inteiro no existente histórico-social” (Ibidem, p. 216).

Bakhtin encontra a representação artística desta “gaia eccedenza” do tempo nas

máscaras italianas da comédia da arte. Arlecchino e Pulcinella são os heróis da

improvisação, de um processo vital sempre contemporâneo, indestrutível e que se

renova eternamente. Giorgio Agamben, em um artigo sobre cinema, faz destes

personagens os portadores de uma prática artística na qual existe um “misto de potência

e ato que foge às classificações da ética tradicional5”.

5 “Arlecchino, Pulcinella e Beltrame não são sub-personagens, mas “experimentum vitae” em que a destruição do autor e de seu respectivo papel acontecem paralelamente. É a própria relação entre texto e execução, entre real e virtual que é colocada em pauta novamente. Entre um e outro, aparece um terceiro

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

Nós lemos estas formidáveis páginas bakhtianas como um exemplo da luta com

relação ao tempo. As duas formas de temporalidade que fundam a “memória pura” ou

“virtual” nos trabalhos de Bergson (o passado que conserva e o presente que cria)

tornam-se, nas mãos de Bakhtin, elementos de uma forte luta entre formas existenciais,

processos de subjetivação, práticas artísticas, modos alternativos de constituição da

sociedade e das suas finalidades. E aludem, segundo a indicação de Agamben, ao

conceito de “potência” (do tempo-potência) e a duas éticas radicalmente opostas.

Benjamin reencontra estes tons nas novas atitudes que a massa exprime no

cinema e, de modo mais geral, com relação às formas de fruição da obra de arte.

Segundo a teoria literária de Bakhtin, é o romance (organicamente adaptado às

novas formas da percepção muda, isto é, da leitura) que herda e desenvolve o presente

ainda não realizado, a atualidade da época contemporânea e a subjetividade que não

coincide nunca consigo mesma. Poderíamos talvez acrescentar que esta temporalidade

encontra no cinema uma forma de representação através das próprias imagens-duração

do tempo, enquanto na televisão e nas redes digitais o presente que “se está fazendo”, o

tempo aberto ao futuro não são somente representados, mas constituem também a

matéria e o tema destes dispositivos tecnológicos.

Benjamin sabia bem que responder à industrialização da percepção e à

comercialização da obra com a reafirmação da arte não era somente reacionário no

sentido etimológico do termo, mas também, do ponto de vista político, absolutamente

ineficaz. A canonização do cinema como sétima arte é, para Benjamin, a outra face da

hollywoodização das novas condições da percepção coletiva. Ela reintroduz a distância,

o afastamento, o respeito e o medo do objeto, que não são outra coisa que a distância, o

respeito e o medo do poder. Benjamin nos adverte que a postura daquele que se

encontra diante da obra de arte pode, a qualquer momento, transformar-se em um novo

comportamento religioso, introduzir o passado absoluto e a sua ética. Comercialização e

arte são as alternativas que o poder reproduz e que os intelectuais de esquerda tomam

como problema.

A divisão social do tempo na sociedade capitalista contemporânea poderia ser

descrita do seguinte modo: o presente passa à indústria cultural (a imagem que ainda

não se realizou, essência, mas que é interpretada somente como um contínuo

desaparecimento, presente que é simplesmente repetição), enquanto o passado é

momento que é uma mistura de potência e de ato que foge à classificação da ética tradicional” (Agamben, G; “Trafic”, Paris, n. 3, 1992, p. 5).

Maurizio Lazzarato

113

entregue à arte (a imagem realizada, o tempo que permanece e se conserva). São estas

as novas qualificações às quais o surgimento do tempo-potência é submisso, nas

condições do capitalismo: requalificações que atualizam a definição do tempo do poder

como nos descreveu Bakhtin.

O presente (como desdobramento do tempo), que pede uma requalificação da

postura carnavalesca com relação às tecnologias do tempo, parece encontrar uma

realização somente no grande desenvolvimento, operado pela televisão, do livre contato

familiar, da necessidade de destruir a distância e de se aproximar do objeto na distração

e no entretenimento que, de qualquer forma, as massas continuam a exprimir.

5. O conceito de percepção coletiva benjaminiano nos dá outras sugestões que nos

levam de volta à Bergson, mas também, de maneira ainda mais produtiva, às condições

da nossa atual forma de percepção coletiva. A descontinuidade das imagens

cinematográficas, ligando-se em sucessão contínua, produz movimentos anormais para

a nossa percepção, que se iniciam no inconsciente ótico.

Para Benjamin são as transformações, as alterações, as catástrofes do mundo

visível produzidas pelas deformações da câmera cinematográfica que garantem o acesso

ao inconsciente ótico. Como vimos, é a câmera que nos leva ainda mais longe na

descoberta da percepção pura (o inconsciente bergsoniano), além do tempo e do espaço

homogêneos. “Percebe-se que a natureza que fala à câmera é diferente daquela que fala

aos olhos. Diferente principalmente no sentido que o espaço do homem que sofreu

penetração inconscientemente substitui o espaço conscientemente explorado”

(BENJAMIN, op. cit., p. 163). O cinema produz uma explosão do inconsciente e a

massa se apropria, dessa maneira, das formas de percepção do psicopático e do

sonhador. Apropria-se, assim, dos movimentos da consciência que invertem a

subordinação do tempo ao espaço. Tudo isso é, para Benjamin, sinal evidente de uma

mudança da função do dispositivo de “apercepção humana”. Mas “os encargos que são

impostos à percepção humana não podem ser resolvidos somente através da ótica, isto é,

através da contemplação. Essas tarefas são progressivamente assumidas pelo hábito”

(Idem, p. 168).

E aqui encontramos, surpreendentemente, um outro tema de Bergson. Trata-se

de uma crítica direta e sem ambiguidades ao modelo ótico. A visão não seria possível

sem as sínteses passivas constituídas do hábito. Cada dispositivo de visibilidade precisa

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

das suas sínteses passivas. Não é o olho (que opera fundamentalmente como o intelecto)

o primeiro objetivo das máquinas que cristalizam o tempo, mas o corpo. Primeiro o

corpo, depois todo o resto se seguirá. A recepção dos movimentos anormais se dá

através de uma recepção tátil e o efeito de choque da sucessão das imagens

cinematográficas introduz, segundo Benjamin, um elemento tátil na própria ótica. E o

homem distraído poderá habituar-se melhor que qualquer outro6, porque é através do

corpo, e não através da inteligência, que ele assimila as novas imagens e as novas

temporalidades.

Isto que é somente anunciado no cinema, é completamente desenvolvido na

tecnologia do vídeo, e sobretudo, no computador, perante o qual se se habitua através de

uma ótica que se aproxima a uma recepção tátil, como o sabem todos aqueles que são

familiarizados com este dispositivo. O recolhimento e a contemplação são atitudes que

impedem a familiarização com as novas tecnologias, porque, como sabemos, a produção

da percepção não é um fato fundamentalmente de visão, mas de ação.

Uma das funções da arte deveria ser de tornar determinadas imagens familiares a nós,

antes ainda que as finalidades perseguidas por estas imagens se tornem conscientes. Se

esta tarefa foi parcialmente assumida pelo cinema, o mesmo não se pode dizer das

imagens-vídeo.

Benjamin define a aparência e a brincadeira como os dois lados da arte, “ligadas

uma à outra como as duas membranas do germe vegetal”. O declínio da aura é lido por

Benjamin como um enfraquecimento da aparência. Quando esta última não mais se

opõe ao real, mas torna-se somente um de seus extratos (como vimos com Nietzsche),

então “o espaço mais alargado da brincadeira se instaurou no cinema. Neste momento, a

aparência fica totalmente eclipsada em favor do momento da brincadeira” (Idem, p.

189).

Enquanto as tecnologias do tempo real e suas imagens são demonizadas, a

indústria da comunicação familiariza a humanidade do amanhã com o tempo, através do

hábito e da diversão. O que está na base dos jogos eletrônicos é a repetição automática

na distração e no entretenimento. De fato, como sabemos, a automação é uma condição

para o desenvolvimento do espírito porque, segundo Bergson, libera virtualidade e

possibilidade de escolha.

6 “O motorista, cujo pensamento está bem longe, por exemplo, quando precisa consertar seu motor, habitua-se melhor à forma moderna da garagem do que o historiador da arte, que se esforça, de fora, a fazer um exame estilístico” (BENJAMIN, op. cit., p. 183).

Maurizio Lazzarato

115

6. O choque que as imagens cinematográficas produzem pode ser relacionado com

os choques dos trabalhadores com as máquinas. Antecipando a relação godardiana entre

a rede de montagem e o dispositivo de projeção cinematográfico, Benjamin afirma:

Antes de mais nada, com relação à continuidade das imagens, devemos notar que a sucessão de imagens (que tem um papel decisivo no processo da produção), encontra o seu correspondente na película do filme, no processo que a consuma. As duas coisas aparecerem quase ao mesmo tempo. Não se pode compreender o significado social de uma independente da outra (Ibidem, p. 175).

Mas Benjamin estabelece também uma outra relação entre a produção e o

cinema: uma relação que não fica mais presa ao dispositivo tecnológico, mas à natureza

da atividade que é requerida ao espectador. A técnica do filme, como aquela do esporte,

estimula (suscita) a participação do espectador enquanto conhecedor, enquanto um

especialista. O cinema (como também a imprensa e o esporte) determina um movimento

de transformação cultural em que a diferença entre o autor e o público tende a perder o

seu caráter unilateral. Esta diferença seria “somente funcional, podendo variar em cada

caso. O leitor está pronto a se tornar escritor a qualquer momento” (Ibidem, p. 158).

Benjamin tem o mérito de relacionar a realização desta tendência às transformações do

trabalho e ao rompimento da separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.

Destas transformações e desta quebra, Benjamin antevê um exemplo decisivo na

produção cinematográfica.

Enquanto especialista em um processo de trabalho diferenciado ao extremo – mesmo no emprego mais humilde – pode a qualquer momento adquirir a qualidade de autor. O trabalho toma a palavra e a sua representação através da palavra é parte integrante do poder necessário à sua execução” (Ibidem, p. 158-159).

O fato que o trabalho se torna ativo, o seu “tomar a palavra”, requalifica

completamente o papel da arte, porque inverte as bases da divisão social das atribuições

às quais a arte é envolvida. Benjamin vê nas performances dos dadaístas um indício

muito importante na mudança de função da arte, que opõe um público distraído à

comunidade artística que contempla. “Na distração, a obra de arte provoca agitações,

emoções, impressões que são pretextos para um comportamento ativo dos sujeitos”

(Ibidem, p. 176).

A produção e a recepção não podem se dar de forma independente desta segunda

natureza, das suas formas coletivas, tecnológicas e do papel ativo que têm as massas. A

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

interatividade das tecnologias digitais desfruta comportamentos e atitudes induzidas da

mecanização da percepção coletiva. Os intelectuais de esquerda, que deveriam insistir

em uma “ontologia específica” das novas formas de percepção-produção

(reversibilidade das funções de autor e de espectador, novos processos de criação

coletiva etc.), reportam-se no melhor dos casos à arte e no pior à propaganda.

Benjamin vê no cinema o sintoma de uma transformação radical do público, que

não somente se massifica, destruindo as formas burguesas de percepção, mas adquirindo

também uma nova natureza. O público-massa, novo especialista que quer intervir

ativamente como autor, é o sujeito que se adequa não somente à percepção, mas

também ao processo de produção das obras. As grandes obras não podem mais ser consideradas como produtos individuais; elas têm se tornado produtos coletivos, tão potentes que, para assimilá-los, é necessário antes de tudo reduzi-los. No fim das contas, os métodos mecânicos de reprodução são uma técnica de redução e conseguem do homem um grau de controle tal que sem o qual não poderiam estar à sua disposição (BENJAMIN: 1982).

Formas coletivas de produção, autor coletivo, tendência à reversibilidade da

relação entre autor e público, papel ativo do espectador: esses são os desafios lançados à

arte nas novas condições de percepção. O cinema respondeu a esses desafios? Certo é

que este problema nem mesmo foi levantado pela tecnologia do vídeo.

7. Adorno diz concordar com Benjamin na questão de “defender o cinema kitsch

contra o cinema cultural”. Por outro lado, critica Benjamin por este não ter estabelecido

os dois extremos da produção cultural sob o mesmo tratamento dialético. “Os dois

levam as marcas do capitalismo. Os dois contêm elementos de mudança. Os dois são as

metades cortadas da liberdade, a qual é considerada como um todo, mas que de qualquer

forma não se obtém por uma simples adição” (BENJAMIN: 1991, 136).

Adorno, de forma geral, critica Benjamin por afirmar que este subestima a

técnica da arte autônoma e que superestima a técnica da arte dependente (comercial).

Sem entrar no mérito desta discussão, queria discutir a respeito da teoria política que se

desenvolve a partir desta análise. Segundo Adorno, Benjamin credita ao proletariado,

enquanto sujeito do cinema [Kinosubject], uma ação que pode-se cumprir somente a

partir de uma teoria dos intelectuais. Adorno refere-se diretamente à teoria leninista do

partido como intelectual coletivo, em oposição à fé cega que Benjamin coloca no

“processo de auto-constituição do proletariado dentro do processo histórico”. Parece-me

Maurizio Lazzarato

117

que Adorno tenha em mente uma concepção do intelectual como vanguarda, enquanto

Benjamin vê na produção cinematográfica uma mudança radical da figura e do papel do

intelectual. A reversibilidade das funções de autor e do público, o papel ativo deste

último etc., antecipam o processo de constituição de uma intelectualidade de massa que

o cinema tinha anunciado em sua origem e que acelera de maneira exponencial depois

de 1968, portando consigo a necessidade de se reconsiderar radicalmente as condições

do processo revolucionário, uma vez que espontaneidade, ação e consciência são

realidades que sofreram modificação após a constituição destes novos sujeitos coletivos

e da nova compenetração de percepção e trabalho.

A percepção coletiva, a percepção das massas, deve passar pela prova da

revolução. Se na publicidade a arte e a “percepção na distração” fazem suas

experiências mercantis, na revolução essas farão a experiência humana. “Se tudo se

conformasse ao capital cinematográfico, o processo pararia na alienação de si mesmo,

na alienação do artista da tela, e também na dos espectadores” (Idem, p. 158).

Toda a análise de Benjamin converge para este ponto chave: a percepção

coletiva coloca problemas que podem somente ser resolvidos de forma coletiva. A

revolução seria, deste ponto de vista, a tentativa de inervar a coletividade com os órgãos

que estas novas tecnologias de reprodução mecânica produzem. Aquilo que a arte

antecipa (“permitir as tendências sociais de se afirmarem no mundo das imagens”

(Ibidem, p. 181)), a revolução poderia realizar de forma coletiva. A qualificação deste

processo é a desintegração do proletariado enquanto “massa” e a sua constituição em

sujeito coletivo que pode estabelecer uma harmonia entre as soltas forças da tecnologia

e o homem. A tendência do indivíduo de se separar e a diferenciar-se da massa, se não

encontra sua expressão na revolução, será desfrutada, no nível das imagens, na figura da

estrela de cinema (star) e na volta das funções religiosas do cinema (o cinema cultural,

artístico). A revolução não aconteceu, e como Benjamin previu, a percepção coletiva se

realiza, então, na massa que encontra seu “olho” a partir das câmeras de Hollywood e de

Leni Rifenstahl. “Nas grandes cortes e assembleias, nas organizações guerreiras e

esportivas, que são hoje captadas pelos instrumentos de registro de vídeo, a massa se

olha nos seus próprios olhos” (Ibidem, p. 169).

8. Depois de Auschwitz, que garantiu a total mobilização da totalidade dos meios

técnicos da época, sem colocar em discussão a “propriedade”, as tendências da

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

percepção coletiva, profeticamente previstas por Benjamin no cinema, se realizam em

outro meio, a saber, a televisão. O cinema não representa mais a percepção coletiva e

qualquer discurso que não queria aceitar este desenvolvimento (contido virtualmente no

cinema) é reacionário.

A atualização das virtualidades da percepção coletiva contidas no cinema cria

uma situação completamente nova, que requer outras funções à arte e ao elemento

coletivo que deveria se apropriar das novas condições criadas pelo desenvolvimento das

tecnologias do tempo. Responder a estas novas tarefas a partir da produção e da

recepção de imagens cinematográficas é ilusório e fará somente com que seja integrado

aos dispositivos comunicativos do poder.

O cinema nos dava uma segunda natureza feita de imagens. Mas esta segunda

natureza, com suas características (o inconsciente ótico, a ubiquidade, a explosão do

mundo pela dinamite dos décimos de segundo etc.) era ainda somente representada. O

cinema nos faz ver o movimento e o tempo. E pode fazê-lo ver segundo todas as suas

sínteses porque trabalha com imagens-duração do tempo. Mas esta visão-representação

acontece sempre in um tempo diverso. O cinema, pela particularidade do seu dispositivo

tecnológico (a separação da tomada da imagem da difusão, ou também, segundo uma

indicação de Einsenstein, a separação da tomada da imagem da montagem), conserva

ainda a distinção entre o real e a imagem, entre o atual e o virtual.

A televisão, todavia, já nos faz entrar em outra dimensão na qual estas distinções

não valem mais. A razão fundamental da mudança consiste no fato que a televisão,

funcionando em tempo real, duplica o mundo com suas imagens, cobrindo-o com uma

camada de imagens-lembrança, exatamente no mesmo momento em que se produz algo.

A sua essência é ser interna ao tempo, e como vimos, sob duas formas: interna à

matéria-tempo, da qual contrai e dilata as vibrações, e interna à memória pura, no tempo

que se conserva em si mesmo, mas que se desdobra também em cada momento, no

presente que está acontecendo e que aponta para o futuro. Com a televisão, entramos no

mundo do espetáculo, na indistinção entre “coisa” e imagem, entre real e imaginário,

entre atual e virtual. Com o cinema, estávamos na dimensão do choque (no sentido que

o choque é a forma preponderante da sensação), enquanto com a televisão entramos na

dimensão do fluxo. As imagens do cinema produziram choques porque abriam o mundo

do inconsciente ótico a um espaço e a um tempo “além da vertente da nossa

experiência”, a um mundo bergsoniano feito somente de imagens, mas mantendo a

distinção entre o real e a aparência, entre o atual e o virtual. Somente a magia da sala de

Maurizio Lazzarato

119

cinema, onde se celebrava o culto deste novo mundo, nos fazia prisioneiros desta ilusão.

Já no caso do fluxo, ele nos envolve, “andamos em onda” (N.T. equivale ao “estamos

no ar” em português). Não somente as transmissões televisivas “vão em onda”, mas

todo o real, inclusive nós. As imagens não nos provocam mais choques porque não são

mais externas à nossa percepção, mas somos nós mesmos que nos tornamos imagens.

Somente a televisão pode realizar a indistinção entre o atual e o virtual, entre a coisa e a

imagem, que o cinema apenas tinha anunciado.

O cinema introduziu o movimento e o tempo na ligação das imagens, mas a

televisão é o próprio movimento da matéria-tempo (fluxo) e a sua modulação. Se o

cinema tinha generalizado o “valor de exposição” da arte, conservando, porém, ainda o

lugar público do culto, a televisão desterritorializa o lugar do culto em um “espaço

qualquer” e não há mais nenhum valor de exposição. Aquilo que é exposto é a própria

indistinção do mundo e da imagem.

A televisão requalifica na base do tempo não cronológico (como dizia Bergson)

as diferenças entre espaço e tempo, entre o público e o privado, entre o individual e o

coletivo.

Depois de Auschwitz, foi a própria televisão que destruiu o público-massa.

Socialização da percepção e individualização da recepção andam de mãos dadas. As

redes digitais levam à destruição final do público massa, já que introduzem uma

reversibilidade entre autor e público, entre produção e recepção (consumo), que torna

altamente produtivas estas funções.

A recepção acontece na distração porque efetivamente não existe mais um lugar

onde se pode contemplar, ou melhor, para dizer a mesma coisa de um outro modo, a

distração tornou-se a própria forma da percepção. Assim, o que pode ser a atenção à

imagem quando esta é indistinguível do objeto que deveria descrever?

O cinema pós 1945 representou perfeitamente (e antecipou) esta nova dimensão,

nos mostrando uma imagem direta do tempo, onde não se pode mais distinguir entre o

atual e o virtual. Mas com a televisão não se trata mais de uma representação: a própria

televisão é uma imagem direta do tempo. “A tecnologia vídeo é o tempo”. O cinema é

apenas um sintoma (importante) desta nova situação. O cinema é uma aventura da

percepção, mas a televisão é uma aventura do tempo.

9.

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

A televisão nos faz colocar o problema em outros termos: não se trata mais de

imagens que representam o mundo, mas de imagens que são constitutivas dele. A

função representativa da imagem-vídeo nos é colocada pela televisão como dispositivo

de poder.

Dessa forma, é inútil procurar as imagens e os locais onde se podem vê-las,

porque com as imagens é necessário construir situações, eventos, formas de vida.

Insistir na visibilidade (ou melhor, na não visibilidade) das imagens-vídeo é um falso

problema que nos leva sempre ao cinema. Precisamos recuperar a aventura da

percepção, que certamente foi uma experiência importante para a humanidade, mas

inseri-la nesta nova dimensão. E inseri-la significa criar algo de novo, também para o

cinema.

A imagem-vídeo é uma imagem tátil, uma imagem sobre a qual intervir, ao invés

de somente ver. As condições coletivas da percepção-recepção nos levam, segundo

Benjamin, à experiência da arquitetura, onde somos familiarizados pelo hábito,

enquanto pela experiência da pintura, somos familiarizados pela contemplação. Assim,

a propósito da televisão, poderíamos falar de uma arquitetura temporal. Como habitar o

tempo, como nos habituar às novas temporalidades e como, a partir destes novos

hábitos, construir outras dimensões espaço-temporais?

O dispositivo vídeo não serve somente para ver (como queria sua raiz

etimológica), mas para criar situações, para intervir no acontecimento. Ele precisa de

uma resposta, requer a atividade do espectador, senão, como disse um dos nossos

artistas, nem mesmo teria começado a existir. De fato, o que existiu foi a televisão e não

a tecnologia do vídeo. A passividade à qual o dispositivo de poder da televisão nos

forçou é diretamente proporcional à atividade que a ontologia da tecnologia vídeo

suscita: a imagem que está se formando, a situação que se está criando, a subjetividade

que se está criando, ou seja, em uma palavra, o tempo não cronológico. Assim, toda

essa ontologia da tecnologia do vídeo e da atividade do espectador reaparecem com o

computador e as redes digitais: da passividade à atividade, do isolamento à

hipercomunicação de todos com todos, da separação entre produção e recepção à

integração de ambas. A visibilidade da imagem é integrada na própria operação do

computador: não se é mais apenas espectador, mas agente.

10.

Maurizio Lazzarato

121

A utilização visual-passiva do espectador televisivo, a redução de todas as

virtualidades da televisão como instrumento de recepção unilateral, administram tudo

aquilo que tem de ser aludido ao regime de temporalidade que dominava o fordismo: a

subordinação do tempo-potência ao tempo-medida. É esta temporalidade que comanda a

capacidade de produzir e reproduzir o tempo real pela televisão. Toda ontologia da

tecnologia do vídeo é selecionada e subordinada ao tempo-medida e à sua organização7.

O emergir de outras temporalidades sociais (depois de 1968) colocou em evidência

outras virtualidades do dispositivo tecnológico, que se desenvolveram além da

televisão, em um outro meio: as tecnologias digitais8.

Mas continuamos a utilizar Benjamin como guia nestas passagens. Benjamin nos

diz que o cinema e o taylorismo (a rede de montagem e a rede de imagens montadas)

são quase contemporâneas. O taylorismo foi interpretado por Benjamin como um

processo que “tira” a experiência do trabalhador (o ofício, a cooperação, o poder que

sobre estes se constituía). O trabalho é reduzido a uma série de movimentos a serem

feitos segundo regras bem definidas. O trabalhador não deve agir, mas reagir. O

consumidor, representado por Benjamin através do “jogador”, é colocado nas mesmas

relações de estímulo-reação. Poder-se-ia dizer que o fordismo queria reduzir o homem

aos seus modelos senso-motores: o corpo mudo da fábrica foucaltiana9. O tipo de

atividade à qual o trabalhador é constrangido é representada por Benjamin através do

“teste” de realizar movimentos codificados sob a supervisão de um grupo de

especialistas ou de uma máquina, que os mede. O cinema é a experiência do teste que,

sempre frente a uma máquina, reproduz e mede em massa ações e comportamentos10.

Mas o trabalho fala, como diz Benjamin, e acima de tudo recusa. Recusa a

divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, rebela-se no tocante à

separação/expropriação das funções intelectuais, comunicativas, linguísticas e à sua

redução a modelos senso-motores. A recusa do trabalho é a recusa desta condição, que

7 Guattari demonstrou (através o exemplo do Concorde), a pluralidade dos componentes que entram em jogo na realização de um dispositivo tecnológico e a importância dos componentes econômicos e políticos. 8 Não se trata de uma substituição, mas sempre de uma dominação que integra os outros dispositivos tecnológicos e suas virtualidades. 9 Deleuze define, com um conceito geral, a imagem do cinema entre as duas guerras como “imagem-movimento”, “imagem-ação”. 10 Mas o cinema, como a mercadoria, apresenta um duplo caráter: “Já que é sob o controle dos dispositivos tecnológicos que a maior parte dos habitantes da cidade, nos escritórios como nas fábricas, devem abdicar, durante o dia de trabalho, a humanidade deles. À noite, essa mesma massa enche as salas de cinema para assistir à vingança que o seu ator realiza, não somente afirmando sua própria humanidade no aparelho, mas colocando este último a serviço do seu triunfo”.

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

deve ser interpretada como recusa do desdobramento do tempo “qualquer” do

capitalismo em tempo-medida e tempo-potência e como negação da subordinação do

último ao primeiro. O capital procura integrar essa recusa. O grande desenvolvimento

das redes televisivas e digitais aconteceu quando esta recusa foi inteiramente

consumada (depois de 1968), quando o tempo se liberou de toda subordinação e se

mostrou como fonte da produção enquanto tempo “qualquer”, além da separação de

tempo de trabalho e tempo de vida. Deste ponto de vista, a indistinção de atual e virtual

nos leva à indistinção e à recíproca implicação entre trabalho manual e trabalho

intelectual, entre a memória automática (senso-motora) e a memória inteligente

(trabalho intelectual) que caracteriza o pós-fordismo.

A emergência desta nova temporalidade11 requalificou, de uma nova maneira, a

indistinção entre atual e virtual (e o seu circuito) que a televisão anteriormente nos

mostrou seu funcionamento em nível social. A indistinção entre o atual e o virtual, entre

o real e o imaginário, entre a coisa e a imagem, teve o efeito, sob a regência do tempo-

medida, de impedir e neutralizar as potências (produtivas) de criação. O circuito atual-

virtual, subordinado na televisão à temporalidade fordista, tornou-se um novo

fechamento do tempo. Agora não mais como a roda perfeita do “passado absoluto”, mas

a roda encantada do girar ao infinito, do estéril reflexo da imagem e da coisa.

Mas a emergência do tempo-potência, a sua insubordinação ao tempo-medida,

rompe o encantamento deste infinito preso, quebra o cristal do reflexo contínuo do atual

e do virtual e realiza as condições para que o circuito torne-se a fonte de uma

“imprevisível criação de novidade”. Os dispositivos digitais são a tradução tecnológica

desta passagem porque tornam produtivo o circuito do atual e do virtual e constituem as

condições de saída do círculo vicioso de sua recíproca pressuposição e contemplação.

Os dispositivos digitais não se limitam a duplicar o mundo com as imagens (a

televisão), mas definem uma nova materialidade e uma nova espiritualidade através a

produção/reprodução do sensível e do inteligível. Mostram que a origem da

subjetividade e da matéria e também do fabricar e do criar estão no tempo, e que as suas

respectivas diferenças (de grau e não de natureza) são modulações, solidificações,

costumes do tempo. Redefinem, na base do “monismo temporal”, as diferenças entre

matéria e espírito, subjetivo e objetivo, tempo e espaço. Um novo poder de metamorfose

11 É evidente que esta temporalidade livre define somente um novo terreno de lutas.

Maurizio Lazzarato

123

e de criação é colocado à nossa disposição. Novas formas de subjetividade e de

materialidade são possíveis.

Que o mundo seja “tempo”, estas tecnologias o interpretam não segundo uma

uniformidade de valor, mas segundo a contínua possibilidade de criação que o

constituir-se do tempo não cronológico carrega consigo.

A sorte dos pós-modernos, o exercício ideológico deles foi o seguinte: terem

ressaltado a esterilidade do circuito atual-virtual exatamente no momento em que

começava a mostrar toda sua potência. Descoberto o espetáculo, quando estávamos

entrando em uma nova dimensão, ao invés de indicar um novo terreno de combate, as

novas correntes seduziram e fascinaram com as suas teorias a respeito do

desaparecimento do mundo. A situação, no entanto, é totalmente diversa. Não existe

mais, como no caso de Benjamin (no fordismo), um dispositivo tecnológico para a

produção coletiva e um outro dispositivo tecnológico para a percepção coletiva. Existe,

sim, somente um dispositivo (as tecnologias digitais) com as quais percebemos e

trabalhamos, e cuja matéria não é o tempo de trabalho, mas o tempo enquanto si

mesmo. Não existe mais a separação entre produção e recepção, porque o mesmo

dispositivo pode contemporaneamente fazer ambas as coisas. E também a separação

entre fabricar e criar é completamente redefinida.

Todas as qualificações da percepção coletiva que encontramos em Benjamin são

aqui atualizadas na base do tempo-potência, que lhes confere novo valor no sentido da

criação e da atividade.

Duas observações se fazem necessárias para que se eliminem as ambiguidades e

para que não pairem dúvidas sobre o nosso discurso: 1) Que não exista mais distinção

não quer dizer que tenhamos entrado no reino do “indiferenciado”, mas que temos

necessidade agora de um outro fundamento para definir as diferenças de um fundamento

temporal. Trabalho intelectual e trabalho manual, tempo de trabalho e tempo de vida,

imagem e coisa, real e imaginário, tempo e espaço, todos esses binômios não

desaparecem, mas recebem uma nova qualificação quando do emergir do tempo-

potência. É o tempo não cronológico que os distribui dentro de uma nova natureza, que

os rende reversíveis, menos rígidos, mais moduláveis; é o tempo que se mostra

diretamente como fonte, como origem das diferenças, as quais são de grau e não de

natureza, funcionais e não objetivas. A ética deveria estar na base das suas

determinações porque ela aumenta o grau de liberdade e de escolha, como vimos com

Bergson (liberação da maldita “necessidade”, que representa o trabalho, para falar em

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

termos marxianos). 2) Estamos somente descrevendo a ontologia das condições da

produção-percepção na época do general intellect. Isto não quer dizer que não possam

existir novas divisões (aliás, já são produzidas), mas que estas divisões, com uma nova

natureza, aludem à ética ou ao poder.

11. Como reconquistar a singularidade e como sair da indistinção entre atual e

virtual, da reversibilidade pós-fordista do trabalho material e do intelectual, da

reversibilidade finalizada da acumulação capitalista do tempo de trabalho e tempo de

vida? Como tornar destrutiva/criativa esta relação?

Acompanhando aquilo que temos dito até agora, o real não desapareceu, mas

tornou-se mais temporal (mais artificial); o social não é já constituído, já dado, mas

deve cada vez cristalizar-se. O real e o social devem ser cada vez inventados e criados.

As máquinas que cristalizam o tempo têm um papel estratégico, sendo um terreno de

combate fundamental porque no interior desta indeterminação, dentro deste tempo ainda

não-realizado, são elas as condições tecnológicas da co-produção do real e da

subjetividade. O real e a subjetividade encontram nas máquinas que cristalizam o tempo

um novo poder de metamorfose, de modulação, de criação. Aqui as condições da

percepção e do trabalho coletivo, nas suas trocas e pressuposições recíprocas, são as

condições da criação do mundo.

Na época do general intellect, a oposição entre a arte e o coletivo, a qual deveria

se apropriar das novas formas da percepção-trabalho para verificá-las em um processo

de criação da subjetividade e do real, parece não acontecer fortemente. A potência, que

o circuito do atual e do virtual manifesta, deve, uma vez desconexa de sua subordinação

ao tempo-medida, determinar os processos de singularização, de reterritorialização que

a economia da informação oculta. E a força de singularização das relações estéticas, que

são sempre invenções de novos mundos, podem se tornar o paradigma sobre o qual se

pode medir a nova produção. Mas estas relações devem ser verificadas e confrontadas

com as novas condições de produção da percepção coletiva e do trabalho, com sua

indistinção-reversibilidade. Confrontá-los e verifica-los nas condições coletivas da

percepção-trabalho significa criar os dispositivos que tornam possível que as instâncias

individuais ou coletivas estejam em posição de emergir como novos territórios

existenciais. “Somente o controle das relações coletivas da produção de subjetividade

permite a invenção de relações singulares”. A necessidade benjaminiana de resolver

Maurizio Lazzarato

125

coletivamente os desafios lançados pela socialização do trabalho e da percepção

reaparece nesta afirmação de Guattari. Mas aqui o “coletivo”, na medida em que se

socializa (até incluir o tempo como seu tecido constitutivo), se individualiza, se

singulariza. O público-massa é atomizado em “minorias” e não mais encontra a sua

humanidade no conceito de classe geral e totalizante.

O elemento coletivo que deveria fazer a revolução/desintegração da massa e do

público foi além dos desejos de Benjamin.

A mudança na função da arte, largamente antecipada pela tecnologia do vídeo e

consolidada com as tecnologias digitais, poderia reassumir uma outra afirmação de

Guattari, em que a arte “não deve somente contar histórias, mas criar dispositivos pelos

quais a história possa se fazer”. As práticas estéticas se tornam, assim, altamente

produtivas, como podemos verificar na economia da informação, porque aqui também a

distinção entre arte e vida, entre arte e trabalho tende a perder o seu caráter unilateral,

como previu Benjamin.

E terminamos como começamos, com o desejo nietzschiano de ver a emergência

de um novo tipo de barbárie, uma barbárie para a qual o tempo-potência abre um terreno

de ação imensurável com o tempo que se foi, tempo perdido. Nietzsche via a condição

ótima para a emergência da barbárie na crise dos regimes socialistas que se constituíram

no projeto do devir-massa, do devir-proletariado do mundo (a mesma crise dos regimes

comunistas, que caíram com o muro de Berlim). Benjamin nos diz que o tempo-

potência que estamos vivendo é uma das condições para a criação de um novo tipo de

barbárie.

Barbárie? Exatamente. Nós afirmamos desta forma para introduzir um novo tipo de barbárie. O que o bárbaro da pobreza da experiência é obrigado a fazer? A começar de novo, a começar do novo [...] não vê nada de duradouro. Mas exatamente por isso vê sempre caminhos novos [...] E já que por todos os lados vê caminhos novos, ele está sempre diante de um cruzamento. Nenhum momento pode saber o que o próximo momento tem. Destruir o existente não por amor das ruínas, mas porque a vida passa através dele (do existente)12.

A atualização da virtualidade bárbara do tempo-potência é o projeto da luta de

classe sem classe do pós-fordismo.

12 Trata-se de uma montagem de duas citações extraídas de dois relatos breves de Walter Benjamin: Der destruktive Charakter e Erfahrung und Armut [Experiência e Pobreza].

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

Maurizio Lazzarato é sociólogo francês do trabalho pós-fordista e filósofo, autor de vários livros, entre os quais As revoluções do capitalismo (traduzido pela Record, na coleção “Políticas do Império”, 2006) e O governo do homem indebitado. Tradutor: Gustavo Bissoto Gumiero – mestrando em Sociologia (IFCH - Unicamp) [email protected] | Tel: (19) 993322774 Orientador – Prof. Dr. Sílvio César Camargo Referências BACHTIN, M. Epos e romanzo. In: Problemi di teoria del romanzo. Torino: Einaudi, 1976. BENJAMIN, W. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991. ___. Petite histoire de la photographie. Paris: Essai I. Denoel, 1982. BERGSON, H. Oeuvres. Paris: PUF, 1959.

Navegações

Proteção social e trabalho no Brasil em tempos de capitalismo cognitivo

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

Introdução

Considerando a intrínseca relação entre proteção social e trabalho, este ensaio

se propõe a desenvolver uma análise da proteção social hoje no contexto brasileiro a

partir da sua vinculação com o trabalho. Tal vinculação se estabelece historicamente por

ser a necessária reprodução da força de trabalho no processo de desenvolvimento do

capitalismo, a gênese que comanda as políticas sociais, as quais exercem funções

políticas, econômicas e ideológicas para manutenção da ordem vigente. Sendo

dialeticamente contraditórias, constituindo-se em espaços e instrumentos,

simultaneamente, de proteção e controle social, as políticas sociais surgem e se

desenvolvem como decorrentes da condição de assalariamento, na qual os direitos se

circunscrevem-se no campo dos direitos do trabalho, se estabelecendo uma forte e

problemática associação entre cidadania e trabalho.

Com a crise contemporânea que se inicia nos anos 1970 e as estratégias de

reordenamento do sistema capitalista que se seguem para restauração do poder de

classe, mudanças profundas atingem o chamado mundo do trabalho, levando à

necessária, e consequente, reconfiguração da proteção social. Portanto, para uma melhor

apreensão do atual padrão de proteção requerido, das funções que as políticas sociais

vêm exercendo no presente estágio da acumulação capitalista, se considera

indispensável compreender a organização do trabalho hoje e as formas vigentes de uso e

gestão da força de trabalho, sendo este o objetivo deste ensaio que pretende refletir

sobre a relação proteção social e trabalho na contemporaneidade no contexto brasileiro,

questões que estarão sendo abordadas na primeira seção. Na segunda, o ensaio traz

alguns cenários alternativos que vem sendo alvo de debates e de instrumentos de lutas e

resistências por parte de movimentos e segmentos da sociedade (como acadêmicos,

trabalhadores, sindicalistas, formuladores de políticas públicas e ativistas) que tendem a

confrontar os processos políticos e econômicos hegemônicos.

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

129

1. A nova centralidade do trabalho e a conformação das relações de trabalho e de proteção social no contexto brasileiro

A noção de Seguridade Social, sobre a qual se alicerçou o welfare state nos

países centrais no período pós II Guerra Mundial, se funda no pensamento Keynesiano e

sua junção com o modelo produtivo fordista, na qual a inclusão nos direitos é

consequência da integração na relação salarial (COCCO, 2012), promovendo um acesso

hierarquizado à proteção social pela condição de assalariado. Sendo assim, a realização

da Seguridade Social tem por fragilidade a dependência do pleno emprego e de

contratos estáveis e permanentes de trabalho, assim como a universalização dos direitos

sociais está condicionada à universalização do direito ao trabalho. Eis aí a associação

problemática entre trabalho e cidadania, sobretudo, quando a forma salarial na

organização do trabalho hoje, apresenta-se tendente à dissolução.

O processo de restauração do capitalismo, que se inicia nos anos 1970

conduzido pelo ideário neoliberal, traz como imperativo a desoneração do capital

viabilizada através da reforma fiscal (redução de impostos sobre os rendimentos mais

altos e sobre as rendas) e trabalhista, esta última visando não somente a diminuir o

chamado “custo trabalho”, como também por introduzir os novos mecanismos políticos

de controle e subordinação dos trabalhadores, o que requer a desregulamentação do

mercado de trabalho através da flexibilização das relações de trabalho, particularmente

no que se refere à contratação, demissão e remuneração da força de trabalho, e da

reprivatização do controle do uso da mão-de-obra em detrimento do Estado e dos

sindicatos.

No Brasil, a desregulamentação do mercado de trabalho1 é conduzida

inicialmente pelo governo de Fernando Henrique Cardoso que, através da revisão na

legislação que define o contrato de trabalho por tempo determinado e da

regulamentação do trabalho a tempo parcial, ambas leis de 1998, alteram as formas de

contratação e de demissão dos trabalhadores, flexibilizando-as. A resultante desse

processo, na análise do economista Márcio Pochmann (2007), é uma intensa

flexibilização no mercado de trabalho, levando a uma pulverização de contratações,

existindo, atualmente, mais de 15 tipos de contrato, onde para cada três trabalhadores

ocupados, apenas um possui proteção legal, trabalhista, no seu contrato de trabalho.

1 Na análise de Pochmann (2007), a reforma trabalhista no Brasil foi realizada via mercado.

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

Indo nessa direção, no mesmo ano, a Lei 9.601/982 que institui o banco de

horas, vem tanto a estender a jornada e intensificar o trabalho3, como flexibilizar a

remuneração da força de trabalho, posteriormente aprofundada com a Lei 10.101/2000

que regulamenta a participação nos lucros ou resultados, instituída no inciso XI do

artigo 7º da Constituição Federal4, estabelecendo uma espécie de salários por tarefa,

uma vez que corresponde a uma remuneração com valor condicionado a metas a serem

cumpridas em determinado prazo, em que fator tempo e fator produção são

contabilizados no cálculo da remuneração (PINA, 2012). A vinculação do bônus a

metas e indicadores que levam em conta volume de produção, qualidade (redução do

retrabalho e do refugo de materiais) e absenteísmo, impõe, simultaneamente, aos

trabalhadores, a cobrança por não se afastar do trabalho e pela qualidade, sendo esta

colidente com o prazo (PINA, 2012). Cumpre salientar que o controle (coletivo e/ou

individual) e a redução do absenteísmo são um imperativo do atual modelo produtivo

em que os processos produtivos encontram-se externalizados e desterritorializados e as

empresas operam com um número ajustado de trabalhadores.

A flexibilização, operada pela desregulamentação do mercado de trabalho,

responde pela sua precarização que, por sua vez, como dito inicialmente, não cumpre

apenas com a função econômica de redução de custos para recuperação das taxas de

lucro, como também, e principalmente, por estabelecer os novos mecanismos de

controle e subordinação do trabalho, cuja centralidade encontra-se ancorada no imaterial

e no conhecimento, imaterialidade essa que se define pelo trabalho difuso cognitivo

realizado através da cooperação produtiva operada fora do espaço da empresa que além

de produzir objetos, produz informação, conhecimento, serviços, valores. Nesse

processo, o trabalho vivo se torna produtivo antes e fora da relação de capital (COCCO,

2012) e o controle sobre esse trabalho difuso e baseado no conhecimento que delega ao

trabalho uma crescente autonomia na organização da produção, mesmo que restrita, só é

possível se baseado na precariedade.

Como afirma Vercellone (2011), a precariedade é, em grande medida, “um

fator estrutural da regulação neoliberal do trabalho cognitivo, apesar de seus efeitos

2 A Lei estabelece que a jornada de trabalho diária pode ser ampliada em até duas horas, sem acréscimo no salário, ou reduzida, e, as horas a mais ou a menos trabalhadas, são computadas como positivas ou negativas no banco de horas para futura compensação, sendo que o banco de horas deve ser objeto de acordo ou convenção coletiva de trabalho entre trabalhadores e empregadores. Em 2001, a Medida Provisória 2.164-41 vem a estender o período para a compensação das horas de 120 dias para 1 ano. 3 Para um aprofundamento sobre “redução-reorganização” do tempo de trabalho, vide Pina (2012). 4 Anteriormente regulamentado pela Medida Provisória 794 de 29 de dezembro de 1994.

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

131

contraproducentes no que concerne a uma gestão eficaz da economia do conhecimento.”

(p. 133). É onde Gorz (2005) percebe a “novidade revolucionária” desse estágio da

acumulação que mais destrói do que cria valor ou, nas palavras de Cocco (2012), “o

capitalismo cognitvo não tem como reproduzir-se sem ‘estragar’ a própria mecânica de

geração de valor” (p. 43).

Assim, só é possível aplicar as atividades da economia baseada no

conhecimento a custo de insustentáveis desigualdades (VERCELLONE, 2011).

Desigualdades essas que se expressam nas formas predominantes da organização desse

trabalho difuso, ou seja, na precariedade, na informalidade, na terceirização, no qual o

trabalho se torna atividades de serviços (COCCO, 2012), e, portanto, contratado não

mais dentro da relação salarial, mas comercial, remunerado através do salário por peça,

salário por tarefa, e se descola do emprego, que, por sua vez, vira empregabilidade.

Os mecanismos de controle e subordinação do trabalho não se restringem ao

campo das relações de trabalho, se realizam também através das políticas sociais, das

funções políticas e ideológicas que exercem. Sendo assim, as reformas não alcançam só

o mercado de trabalho, a proteção social também precisa se adequar aos tempos do

capitalismo cognitivo e do trabalho reconfigurado. A atual ordem econômica mundial

impõe uma nova divisão sócio-técnica, alterando as relações entre Estado, mercado e

sociedade, exigindo um recuo do primeiro para viabilizar a mercantilização dos bens e

serviços sociais, cuja provisão havia se tornado função dos welfare states. A

“acumulação por desapropriação”, assim denominada por Harvey (2004), em curso, que

privatiza direitos comuns de propriedade (água, território etc.), que extrai dinheiro das

populações de baixa renda através das patentes de direitos (medicamentos, sementes

etc.), transforma bens fundamentais, como educação e atenção à saúde, em mercadorias,

como formas predatórias, entre tantas outras, de desapropriação como mecanismo de

acumulação de riqueza em tempos de lento crescimento econômico (HARVEY, 2004).

Assim, no Governo FHC, através da reforma do Estado, um novo marco

regulatório é instituído para viabilizar a comercialização dos bens e serviços sociais, de

um lado, e, do outro, redirecionar a ação estatal nos segmentos tidos mais vulneráveis,

“os que precisam”. Assim, a Seguridade Social, que começava a se ensaiar pela primeira

vez no país com o advento da Constituição de 1988, tem a sua materialização

comprometida pela aplicação das políticas neoliberais. Novas modalidades de gestão,

ancoradas nas parcerias público-privado, são criadas, como as Organizações Sociais

(OSs), em 1998, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), em

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

1999, as Parcerias Público Privado, em 2004, e as Fundações Estatais, em 2007, estas

duas últimas já no Governo de Luís Inácio Lula da Silva, rompendo com o princípio da

prerrogativa do Estado. Não menos sutis do que a criação dessas entidades, que

implicam na privatização da gestão/execução dos serviços sociais, em paralelo se

avança com esse processo através do incentivo à demanda pelos serviços privados,

como assistimos na previdência que, através da reforma previdenciária, particularmente

a Emenda Constitucional 41/2003, que decreta o fim da aposentadoria integral para o

serviço público, e a Emenda Constitucional 47/2005, que estabelece novas regras para a

aposentadoria integral para os ingressantes antes de 1998, culminando, em 2012, com a

Lei 12.618 que institui o Regime de Previdência Complementar aos servidores públicos

federais, converte a aposentadoria em “fundos de pensão”. Da mesma forma, a saúde se

torna “plano” e a educação vira “bolsa”.

Mercantilizados os bens e serviços sociais, o Estado deve se ater, então, aos

pobres. Pautada pela concepção difundida pelo Banco Mundial, por sua vez sustentada

no conceito de capacidade humana, a pobreza passa a ser compreendida como privação

de capacidades, que acarreta a diminuição do potencial do indivíduo em auferir renda. A

partir deste entendimento, o enfrentamento à pobreza através da intervenção do Estado

deve se dar de modo a aumentar as liberdades por meio da expansão das capacidades

humanas dos pobres (UGÁ, 2004). Esta compreensão, que passa a ser difundida depois

de 2000, denominada por Vianna (2008) de concepção liberal revisitada para distinguir

da orientação anterior, a qual ela se refere como concepção liberal por excelência, ou

seja, a corrente minimalista que conduziu as reformas nos anos 1980, passa a postular a

coexistência de políticas universais com as focalizadas, desde que as primeiras venham

a contribuir para a ampliação das oportunidades, uma vez que aqui o conceito de

igualdade se pauta não pela igualdade de resultados, mas de oportunidades. Assim,

políticas universais são aceitáveis, mas somente aquelas que “propiciam igualdade de

oportunidades para o exercício da liberdade, como educação fundamental e atenção

básica à saúde” (VIANNA, 2008, p. 135)

É assim que se observa que a educação brasileira atualmente apresenta o ensino

fundamental universalizado em termos de vagas, mas sem qualidade ou sequer

continuidade, pois, segundo o Censo 2010 do IBGE, apenas 55% dos brasileiros

completam o ensino fundamental e 35% o médio. A saúde tem nos Programas Saúde da

Família (PSF) e Agentes Comunitários (PAC) os núcleos estratégicos para sua

reorganização, em substituição à rede de atenção básica tradicional, orientados pelo

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

133

conceito do “novo universalismo”, ou seja, cobertura para todos, mas não de tudo. Tais

iniciativas promovem um reordenamento do sistema de saúde dentro da lógica da

assistencialização, aqui entendida sucintamente como práticas pautadas numa

concepção restrita de proteção focalizada nos segmentos mais pobres e vulneráveis. E as

ações “educativas” dos agentes comunitários recordam as práticas higienistas do início

do século XX, que transferiam para a população a responsabilidade por sua saúde, sem

o correspondente investimento em políticas de saneamento e urbanização

(CAVALCANTI e TEIXEIRA, 2012, p. 7 e 8). Tais práticas remetem ao aprendizado

do autocuidado com a saúde, que juntamente com o aumento da escolaridade, o acesso à

renda e ao crédito, para complementar a renda (insuficiente) do trabalho (precarizado) e,

claro, saber lidar com a renda, “constituem os ativos primordiais que equalizam os

indivíduos” (VIANNA, 2008, p. 135).

Desse modo se desenha o atual padrão de proteção social minimalista

brasileiro, no qual a proteção pela assistência social ganha centralidade, num duplo

movimento em que, simultaneamente, as mudanças nas relações de trabalho e na

legislação trabalhista, acarretam na “desproteção” pelo trabalho. Empreendedorismo e

assistencialismo condicionado, via programas de transferência de renda com

condicionalidades, estas últimas como mecanismos de

empoderamento/empresariamento, constituem-se nas chamadas políticas sociais de nova

geração (VIANNA, 2008).

Dentro dessa lógica, se percebe que o enfrentamento à pobreza e ao

desemprego tem ênfase na empregabilidade, coerente com o novo tipo de trabalho -

convertido em atividades de serviço, e de trabalhador - que se torna prestador de

serviços, empreendedor da gestão da sua força de trabalho, logo, responsável pela

manutenção da sua empregabilidade.

Para além dessa noção de empregabilidade empobrecedora, acontece que a

dimensão cognitiva e comunicativa do imaterial é exatamente o conteúdo dessa

empregabilidade, o que significa que se tornar cidadão, ter acesso a bens (telefone,

computador com internet etc.) e serviços (educação, esporte, lazer, cultura etc.), é

condição para se tornar produtivo, pois é esta bagagem cultural adquirida nas diversas

atividades humanas cotidianas fora do trabalho que permite ao trabalhador desenvolver

a sua vivacidade, sua capacidade de improvisação, de criação, de cooperação, enfim,

habilidades, conhecimentos e saberes requeridos pelo novo modelo produtivo (GORZ,

2005).

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

É neste sentido que Cocco (2012) afirma que

o capitalismo global, articulado entre finanças e redes, não é excludente, mas altamente inclusivo... o tipo de “inclusão” não depende mais do fato de ser ou não mobilizado e explorado, mas do tipo de direitos prévios aos quais teremos acesso como população em geral e não como camadas específicas de proletariado destinado a vender sua força de trabalho. (p.52)

Isso implica promover uma inversão na lógica de como se constituíram os

direitos no capitalismo industrial, em que ao invés da inserção nos direitos ser

consequência da integração na relação salarial, a cidadania se torna condição prévia

para tornar-se produtivo (COCCO, 2012). A questão é como se garantir direitos num

contexto em que os mecanismos de controle e subordinação do trabalho difuso

cognitivo se baseiam justamente na precariedade conformando um padrão de proteção

social minimalista? Na próxima seção, desenvolveremos algumas reflexões em torno

desta questão trazendo alguns cenários e perspectivas que despontam no meio do debate

acadêmico e nas agendas públicas.

2. Por uma garantia de renda existencial

Vercellone (2011) discorda da hipótese sustentada por alguns estudiosos de que

a atual crise possa levar a um novo compromisso capital/trabalho, um New Deal, capaz

de compatibilizar capitalismo cognitivo e economia do conhecimento, oferecendo, desse

modo, uma solução, simultaneamente, para os desequilíbrios inerentes à desigualdade

na distribuição de renda, à tendência ao subconsumo e à instabilidade das finanças. Para

o autor, ...um possível reforço das proteções do welfare e de novos mecanismos de

distribuição de renda que reduzam substancialmente o vínculo monetário da relação salarial levaria o capital a um risco maior: o de desestabilizar profundamente os próprios mecanismos de controle e subordinação do trabalho cognitivo baseados na precariedade (p. 142).

Como possível cenário, o autor vislumbra a perspectiva da construção de um

modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo a partir das lutas sociais “por meio

de uma longa guerra de posição” (p. 144) e que se sustentaria em dois eixos: a) da

reconquista democrática das instituições de welfare, cuja dinâmica associativa e de

auto-organização do trabalho se basearia “no primado do não mercantil e da produção

do homem pelo homem” (p. 144) e b) constituição de uma renda social garantida,

“resultante não da redistribuição, mas da afirmação do caráter cada vez mais coletivo da

produção do valor e de riqueza.” (p. 145).

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

135

Essa perspectiva, também compartilhada por autores como Antônio Negri,

Cocco, Gorz, se ancora na compreensão de que no atual modelo produtivo, baseado no

conhecimento e na produção difusa e cooperativa, a produção do valor capturado pelas

empresas, não se restringe ao que é gerado durante a jornada oficial, mas se estende pela

totalidade do tempo social através de uma atividade que guarda uma crescente dimensão

coletiva na criação de valor, originando uma diversidade de trabalhos não reconhecidos

e não remunerados, que fogem ao conceito de trabalho produtivo, que, na economia

política, é denominado como aquele que cria lucro e participa na formação de valor

(VERCELLONE, 2011).

A garantia de uma renda universal, incondicional e suficiente, seria uma

espécie de salário social como mecanismo de distribuição de uma parcela do que é

produzido coletivamente, direta ou indiretamente, cuja contribuição individual, se antes

já não era possível mensurar, hoje o é menos ainda (GORZ, 2005).

A defesa de uma renda nesses moldes emerge e vem sendo tecida e

amadurecida por diversos acadêmicos, sindicalistas, políticos, ativistas, desde o pós-

crise de 1970. Em 1984 um grupo de pesquisadores e sindicalistas ligados à

Universidade de Louvain na Bélgica apresenta uma sinopse, assinada como Coletivo

Charles Fourier, intitulada “A renda básica de cidadania” num concurso sobre o futuro

do trabalho organizado pela Fundação Rei Balduíno. O trabalho é premiado e com o

recurso ganho o grupo organiza um colóquio, realizado em 1986, em Louvain-la-Neuve,

ocasião em que deliberam pela realização de um congresso a cada dois anos, a criação

de um boletim informativo e fundam uma rede denominada BIEN (Basic Income

European Network)5 ambicionando a constituição de uma associação mais permanente,

com o objetivo de publicar ensaios e organizar encontros regulares. Em 2004, durante a

realização de um dos seus congressos internacionais ocorrido em Barcelona, ao se

constatar a progressiva participação de pessoas de países não europeus, se decide por

ampliar a rede convertendo o “E”, inicialmente de European, para Earth (terra),

passando a rede a ser denominada de Basic Income Earth Network (VAN PARIJS e

VANDERBORGHT, 2006).

Aqui no Brasil temos no senador Eduardo Suplicy um dos seus integrantes e

principal propagador da garantia da renda básica como instrumento de redistribuição do

produto social e de justiça. Inclusive, podemos também creditar a ele a introdução do

5 Em português, Rede Europeia da Renda Básica.

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

debate sobre mínimos sociais no país que emerge com a apresentação de um projeto de

lei, em 1991, que propunha uma espécie de imposto de renda negativo, sob a forma de

renda complementar, destinada às pessoas com mais de 25 anos e com renda abaixo de

um patamar. Posteriormente, ao tomar conhecimento da BIEN e nela se integrar,

Suplicy reformula sua proposta se aproximando dessa concepção de renda passando a

incorporar a defesa de uma renda universal e incondicional e que, para garantir a sua

aprovação, foi proposta ser implementada em etapas, priorizando-se as camadas mais

necessitadas da população, aprovada em 08 de janeiro de 2004, através da Lei

10.835/2004. Ironicamente, no dia seguinte, é aprovada e instituída a Lei 10.836/2004

que cria o Programa Bolsa Família, cujo desenho de transferência de renda segue outra

perspectiva afinada com as políticas neoliberais.

Em matéria recente publicada em 17/07/2014 no Uol notícias6, o senador

Suplicy, ao retornar do 15° Congresso da BIEN, divulgou que pretende a instituição de

um grupo de trabalho interministerial para propor a evolução do Bolsa Família na

Renda Básica de Cidadania em direção ao cumprimento da Lei que a instituiu no Brasil.

Desse modo, o debate em torno da garantia de uma renda, que não é recente,

nem enquanto ideia, já presente no pensamento de Thomas More no início do século

XVI, nem enquanto experiência, cuja mais antiga e famosa que se tem notícia é a do

Sistema de abonos ou Speenhamland, que prevaleceu na Inglaterra entre 1795 a 1834,

reaparece com a crise de 1970 só que com um elemento novo, A atual reivindicação de uma renda de existência não tem, por consequência, muito em comum com suas formas anteriores, que reclamam uma redistribuição socioestatal da produção de valor. A maioria de seus defensores contemporâneos refere-se à capacidade dessa reivindicação unir um vasto espectro de forças sociais em uma perspectiva anti-capitalista (GORZ, 2005, p. 72, grifo nosso).

Independente do trabalho e concebida não como um agregado de bem-estar, a

luta por uma renda básica de cidadania, ou uma renda existencial ou renda social

garantida, seja o nome que for, é transgressora da ética capitalista do trabalho e é

valorizada por aqueles que reconhecem, agora mais ainda, “numa economia que gera

cada vez mais mercadorias com cada vez menos trabalho produtivo remunerado”

(GORZ, 2005, p. 72), a impossibilidade de se garantir, pela via do emprego, da

ocupação, o direito à renda, ao pleno exercício da cidadania, ao usufruto da riqueza

socialmente produzida.

6 Disponível em file:///H:/Pesquisa/Artigo%20PBF%20deve%20se%20transformar%20em%20programa%20de%20renda%20b%C3%A1sica.htm. Data do acesso 25/07/14.

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

137

A reivindicação por sua garantia mostra-se ainda com forte potencial

aglutinador de várias lutas, desde os movimentos de proteção ambiental, de defesa da

agroecologia, da saúde, particularmente, no campo das relações saúde e trabalho, aos

sem terra, sem teto, desempregados, informais, aos usuários da assistência social, ou

seja, de diversas forças sociais progressistas na direção da ultrapassagem do próprio

capitalismo que, no seu atual estágio, conforme Gorz (2005), traz gestada uma crise

estrutural que, em determinado momento, pode transitar da crise do modelo de

acumulação para uma crise mais geral que leve à crise do próprio modo de produção.

Portanto, a luta pela distribuição de renda, desassociada da relação salarial, se

torna o terreno que estabelece a fronteira entre uma “inclusão excludente” - já que a

economia baseada no conhecimento mobiliza a todos e a todos explora e precariza,

mantendo informalizados os que assim estavam no mercado de trabalho, e, para os

inseridos na relação salarial, estende a precarização como mecanismo de gestão e uso da

força de trabalho, e uma mobilização baseada na produção de novos direitos, no âmbito

do direito do comum7 (COCCO, 2012).

Na defesa pela renda de existência, Gorz (2005) identifica duas interpretações,

por vezes, nos mesmos autores. Numa a defesa se dá a partir da concepção de trabalho e

produção de valor (social) fora da esfera mercantil e, na outra, que, contrariamente,

reivindica a remuneração do tempo livre como contribuição necessária à produtividade

do trabalho, logo, traz consigo uma armadilha, já que ao fazer a leitura de que a vida

inteira se tornou produtiva como produção de capital humano, incorporando a noção de

empregabilidade, rebaixa toda a produção de si em trabalho econômico. A Renda de Existência só tem sentido de um ‘ataque contra o valor trabalho’ (Combes e Aspe) se não exige e nem remunera nada, sua função, ao contrário, é restringir a esfera da criação de valor no sentido econômico (GORZ, 2005, p. 27).

3. Conclusão

Nas atuais formas de uso e gestão da força de trabalho, baseadas na precariedade

como forma de regulação de um trabalho que se dá antes e fora da relação de capital

com cada vez mais autonomia na organização da produção, observa-se um recuo no

campo dos direitos trabalhistas, esfera em que se circunscreveu historicamente a

cidadania. A essa desproteção pelo trabalho assiste-se o avanço da proteção assistencial

7 “O direito do comum é um novo tipo de direito: aquele que atualiza o comum como condição prévia, ou seja, aquilo que nós conseguimos produzir, inclusive graças às nossas diferenças, para continuarmos a produzir juntos.” (Cocco, 2012, p. 53).

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

que cumpre a função, juntamente com a popularização do crédito, de complementar a

renda insuficiente do trabalho e, desse modo, garantir, simultaneamente, o consumo ou

a chamada demanda efetiva, e o investimento e gestão da força de trabalho em seu

capital humano enquanto “vendedora”, “prestadora” de serviços, estando, portanto,

sempre em condições “empregáveis”.

Desse modo, as ações de geração de trabalho e renda, que visem converter o

trabalhador em empreendedor, e o assistencialismo condicionado, tornam-se os pilares

do padrão de proteção social requerido pelo atual estágio da acumulação capitalista com

ênfase na empregabilidade. Associando o desemprego tanto à ausência de informação,

quanto à inadaptação e falta de habilidades específicas dos trabalhadores,

responsabilizando os próprios desempregados pela sua situação, quando muito, ao mau

funcionamento do mercado, a solução repousa, então, nas políticas de formação, via

qualificação profissional, e informação, que aproxima o trabalhador da vaga disponível

no mercado de trabalho, via intermediação de mão-de-obra, ou lhe oferece o

microcrédito produtivo, sendo o empreendedorismo o foco destas ações. A ênfase no

empreendedorismo apresenta um duplo enfoque, pois tanto viabiliza as novas formas de

trabalho externalizadas e desterritorializadas, portanto, induzindo a flexibilização das

relações de trabalho, quando servem para prover o meio de sustento para os

trabalhadores de baixa renda.

Do mesmo modo, as condicionalidades do Programa Bolsa Família, ainda que

não voltadas diretamente para a promoção do auto-emprego, ao fomentarem a educação,

básica, e a saúde, básica, o fazem dentro da premissa da empregabilidade, de tornar

esse segmento de baixa renda empregável.

Contudo, dentro deste cenário surgem críticos que ao perceberem a

impossibilidade de se manter os tradicionais mecanismos de inclusão social pela via da

relação salarial e mesmo da sua inadequação com relação à forma como se organiza o

trabalho hoje e da necessidade de se garantir uma existência social que nem de longe se

esgota na relação ocupacional, vem ganhando cada dia mais adeptos a defesa por uma

renda suficiente, universal e incondicional com potencial de aglutinar lutas e

movimentos sociais em prol de um modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo

ao hegemônico. Tal mecanismo pode efetivamente levar a emancipação do trabalho da

esfera da produção do valor e da mais-valia, permitindo à força de trabalho recompor e

fortalecer o poder de negociação do preço e das condições de trabalho na luta contra a

precariedade. Promove também a emancipação da renda assistencial que impõe aos seus

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

139

assistidos cumprir condicionalidades e aceitar o acompanhamento familiar feito por

profissionais da assistência, com seus instrumentos “invasivos” e “autoritários” (visita

domiciliar, recadastramentos constantes, atestado de frequência escolar e caderneta de

vacinação dos filhos atualizada, assistir palestras denominadas socioeducativas etc.). No

longo prazo, o horizonte é transgredir a lógica mercantil do trabalho subordinado para

uma outra economia baseada nas formas de cooperação não mercantis.

Cecília Paiva Neto Cavalcanti é Graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social/UFRJ, mestra em Engenharia de Produção pela Coordenação de Programas em Engenharia de Produção (COPPE)/UFRJ e doutora em Serviço Social pela Escola de Serviço Social/UFRJ. Atualmente é professora associada da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estudos em Política Social na América Latina (LePSaL).

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PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

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Um, múltiplo, multiplicidade(s)1

Alain Badiou

1. Acreditávamos que tínhamos sido claros. Mas como somos interrogados

novamente sobre este ponto, reiteramos em que consiste a importância singular, para

nós, da obra de Deleuze. Ele não contribuiu em nada ao tema hegemônico do fim da

filosofia, nem à sua versão patética que o enoda ao destino do Ser, nem ainda à sua

versão benévola que o enoda à lógica do juízo. Nem hermenêutica, nem analítica: já é

demais. Por conseguinte, ele teve a empresa de corajosamente construir uma metafísica

contemporânea, e inventou para ela uma genealogia completamente original, genealogia

na qual filosofia e história da filosofia são indiscerníveis.

Ele desenvolveu, como um “caso” inaugural de sua vontade, as produções de

pensamento mais incontestáveis de nosso tempo, e de alguns outros. Fez mostrar, assim

fazendo, um discernimento e uma acuidade sem equivalentes entre os seus

contemporâneos, particularmente no que concerne à prosa, ao cinema, a certos aspectos

da ciência, e também à experimentação política. Isso porque foi um progressista, um

rebelde aposentado, um suporte irônico dos movimentos mais radicais. É também por

essa mesma razão que ele se opôs aos “novos filósofos”, permanecendo fiel à sua visão

do marxismo, não concordando em nada com a sutil restauração da moral e do “debate

democrático”. Essas são virtudes raras.

Ele foi o primeiro que entendeu perfeitamente que uma metafísica

contemporânea é necessariamente uma teoria das multiplicidades e uma apreensão das

singularidades. Enodou essa exigência àquela de uma crítica das formas mais tortuosas

da transcendência. Viu que não se poderia acabar com o que há de sempre religioso na

interpretação do sentido que impõe a univocidade do Ser. Determinou claramente que

fazer uma verdade do ser unívoco exigiria que se pensasse o advento do acontecimento.

Esse considerável programa é também o nosso. Evidentemente, pensamos que

ele não o conduziu até o fim, que o levou a uma direção oposta àquela pela qual 1 Este artigo foi inicialmente publicado em francês, sob o título Un, multiple, multiplicité(s), na revista Multitudes: revue politique, artistique, philosophique, em março de 2000. Agradecemos ao autor pela gentileza com que prontamente autorizou a presente tradução, colocando-se à disposição para eventuais dúvidas no processo de tradução e no trabalho de interpretação do texto. (N. do trad.)

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

pensamos deveria ter levado. Senão, seriamente aderiríamos aos seus conceitos e às suas

orientações de pensamento.

O litígio pode ser dito de muitas maneiras. Poder-se-ia entrar nele por questões

inéditas, por exemplo: como é possível que a política, para Deleuze, não seja um

pensamento autônomo, um lance singular no caos, diferentemente da arte, da ciência e

da filosofia? Esse ponto apenas atestaria a nossa divergência, e todo o restante viria com

ele. Contudo, o mais simples é partir do que nos separa até o ponto de nossa maior

proximidade: os requisitos de uma metafísica do múltiplo. É também aí que os nossos

críticos dão os gritos mais penetrantes. Ou antes, mais sufocantes, pois a tese de uma

quase-mística do Um permanece para eles, literamente, engasgada na garganta. Na

verdade, eles parecem ter lido os enunciados primordiais (sobre o Um, a ascese, ou a

univocidade), sem ter examinado a sua composição e a especificidade de sua colocação

à prova.

Mas eles estão realmente trabalhando com o Eterno retorno, a Relação, o

Virtual, a Dobra? Isso não é evidente. É verdade também que parecem crer, ao contrário

de seu Mestre, que se pode discutir tudo isso ignorando com soberba o pensamento de

quem eles atacam. Aí estão eles, desde logo, acuados em procedimentos de imprecisão,

tornando-se, ademais, eles mesmos superficiais e inexatos, para lembrar aquilo que os

Acadêmicos escrevem sobre as obras de Deleuze concernentes à Espinosa ou à

Nietzsche. Se nossos críticos pretendem demonstrar, como o deveriam a partir da

doutrina que herdam do discurso indireto livre, que o que dizemos sobre Deleuze é

homogênio a O ser e o acontecimento, precisaria ainda, como Deleuze pelo menos o

tenta, definir a sua especificidade. Haveria, então, um pouco mais e um pouco melhor

do que uma defesa e uma ilustração da ortodoxia textual. Aproximar-se-ia dos jogos

inerentes à tensão filosófica do final do século passado2.

Em todo caso, de nada serve argumentar contra quem quer que seja que, por

exemplo, a oposição entre o Um e o Múltiplo seja “fingida”, e opor a isso, como se se

tratasse da última verdadeira invenção da Vida, um terceiro conceito, por exemplo, o de

multiplicidades, sustentando supostamente a inconciliável “riqueza” do movimento do

pensamento, da experimentação da imanência, da qualidade do virtual ou da velocidade

infinita da intuição. Esse terrorismo vitalista, do qual Nietzsche deu a versão

2 As referências de datação ao longo do texto foram adaptadas ao momento da tradução e da publicação da versão em português. (N. do trad.)

Alain Badiou

143

santificada, e Bergson, como o nota muito justamente Guy Lardreau, a variante polida

burguesa, nós o julgamos pueril.

Antes porque ele toma por consensual a norma a que se deveria examinar e

fundar: que o movimento é superior à imobilidade, a vida ao conceito, o tempo ao

espaço, a criação ao incriado, o desejo à falta, o aberto ao fechado, a afirmação à

negação, a diferença à identidade etc. Há nessas “certezas” latentes, que organizam a

estilística metafórica e peremptória das exigências vitalistas e anticategoriais, um tipo

de demagogia especulativa, que tem por motor se endereçar, em cada caso, à sua

inquietude animal, aos seus desejos embaraçados, a tudo aquilo que corre sem direção

sobre a superfície desolada do mundo.

Em seguida e sobretudo, porque nenhuma filosofia “interessante” (para adotar a

linguagem normativa de Deleuze), por mais abruptamente conceitual e antiempirista

que seja, nunca consentiu em se estabelecer no interior das oposições categoriais

herdadas, e, nesse sentido, os filósofos vitalistas não têm nenhum tipo de especificidade

a se valorar. Platão institui um processo simultâneo do devir-múltiplo (no Teeteto) e do

Um-imóvel (no Parmênides), cuja radicalidade ainda não foi superada. O motivo pelo

qual o pensamento deve se estabelecer sempre num para além das oposições categoriais,

e traçar nelas uma diagonal sem precedente, é constitutivo da filosofia mesma. Toda a

questão é de saber qual é o custo dos operadores do traço diagonal e a que espaço

desconhecido eles convocam o pensamento.

Desse ponto de vista, falar, como eu o faço com detalhes, de um dispositivo

político, que a diagonal conceitual que ele inventa, para além da oposição categorial do

Um e do Múltiplo, está a serviço de uma intuição renovada da potência do Um – como é

manifestadamente o caso dos estoicos, de Espinosa, de Nietzsche, de Bergson e de

Deleuze –, não corresponde em nada a uma “crítica” em relação a qual seria preciso

energicamente apressar-se em “refutar” a fim de preservar não sei que ortodoxia da

invenção diagonal ela mesma. Todas essas filosofias, por meio de operações de grande

complexidade, às quais importa a cada caso fazer justiça, sustentam que a intuição

efetiva do Um (a que se pode chamar o Todo, a Substância, a Vida, o corpo sem órgãos,

ou o Caos) é aquela da potência criativa imanente ou aquela do eterno retorno da

potência diferenciante como tal. O que está jogo na filosofia é, desde então, conforme a

máxima de Espinosa, pensar adequadamente o maior número de coisas singulares

possíveis (vertendo no “empirismo” de Deleuze, nas sínteses disjuntivas ou no

“pequeno circuito”), a fim de pensar adequadamente a Substância ou o Um (vertendo no

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

“transcendental”, ou na Relação, ou no “grande circuito” de Deleuze). É na exata

medida em que há esse jogo que os dispositivos de pensamento são as filosofias. Elas

não serão apenas fenomenologias mais ou menos vividas, tampouco aquilo que é em

vão e indefinidamente recomeçado. Ao que me parece a maioria de seus discípulos quer

reduzi-las.

Se se trata de filosofia (cremos estar entre os primeiros, senão o primeiro, a ter

tratado Deleuze como filósofo), falar dela não significa repeti-la, como se se estivesse

sob o constrangimento subjetivo da lealdade ou do academicismo. Falar dela

verdadeiramente retorna como sendo avaliar, numa disposição ela mesma inventiva ou

liberada à sua própria potência, os operadores diagonais que um dispositivo metafísico

nos propõe. A questão não é, portanto, de modo algum saber se as “multiplicidades” são

tidas para além da oposição categorial do Um (como transcendência) e do Múltiplo

(como dado empírico). Não se trata aí senão de uma evidência trivial quanto ao que

constitui o projeto metafísico de Deleuze. O que se trata de avaliar, a propósito da

promessa que se vincula ao conceito de multiplicidade e que se orienta segundo uma

intuição vital do Um, segundo uma fidelidade do pensamento à “potente vida

inorgânica” ou ao impessoal, é a densidade intrínseca desse conceito e a sua aptidão

para sustentar, por um pensamento cujo próprio movimento vem de outro lugar, o

anúncio filosófico que ele carrega.

Ora, a construção desse conceito é, aos nossos olhos, marcada (é sua filiação

bergsoniana patente) por uma desconstrução prévia: aquela do conceito de conjunto. A

didática deleuziana das multiplicidades é de ponta a ponta (e sobre esse aspecto crucial

não vejo nenhuma espécie de cesura entre Diferença e repetição e os textos filosóficos

bastante detalhados que se encontram nos dois volumes sobre o cinema) uma polêmica

contra os conjuntos, exatamente como o conteúdo qualitativo da intuição de duração em

Bergson é identificável apenas a partir do descrédito que se deve dar ao valor

quantitativo puramente espacial do tempo cronológico.

A partir disso, nós gostaríamos de esboçar a demonstração de três teses:

a) O que Deleuze nomeia “conjunto”, ao que ele contrapõe o que identifica

como sendo multiplicidades, não faz senão repetir as determinações tradicionais da

multiplicidade exterior ou analítica, e ignora, de fato, a extraordinária dialética imanente

pela qual a matemática dotou esse conceito a partir do final do século XIX. Desse ponto

de vista, a construção experimental das multiplicidades é anacrônica, porque é pré-

cantoriana.

Alain Badiou

145

b) Quanto à densidade do conceito de multiplicidade, ela permanece inferior,

inclusive por suas determinações qualitativas, em relação ao conceito de Múltiplo que

se tira da história contemporânea dos conjuntos.

c) É em razão dessa decalagem (na qual um dos componentes é uma

interpretação “pobre” de Riemann) que é impossível subtrair as multiplicidades de sua

reabsorção equívoca no Um e conseguir chegar, como desdobramos o pensamento, a

uma determinação unívoca do múltiplo-sem-um.

2. O modo próprio segundo o qual a “multiplicidade” é tida para além da oposição

categorial do Um e do Múltiplo é do tipo intervalar. Queremos dizer que é o jogo em

devir de no mínimo duas figuras disjuntivas que autoriza sozinho o pensamento de uma

multiplicidade. É assim que se recusa toda transcendência, tomando experimentalmente

as coisas “pelo meio”. No entanto, vê-se facialmente que esse “meio” é, na realidade, o

meio da própria oposição categorial. Pois uma multiplicidade é, na realidade, aquilo

que, apesar de apreendido por um número, será dito conjunto e, apesar de permanecer

“aberto” à sua própria potência ou apreendido pelo Um vital, será dito multiplicidade

efetiva. Conceitualmente reconstruída, a multiplicidade está em tensão entre duas

formas do Um: aquela que enfatiza o cálculo, o número, o conjunto, e aquela que

enfatiza a vida, a criação, a diferenciação. A norma dessa tensão, que é o verdadeiro

operador conceitual, é emprestada de Bergson: a multiplicidade apreendida por um

número será dita “fechada” e apreendida pelo Um vital será dita “aberta”. Toda

multiplicidade é a efetuação conjunta do fechado e do aberto, mas seu ser-múltiplo

“verdadeiro” está do lado do aberto, igualmente como, para Bergson, o ser autêntico do

tempo está do lado da duração qualitativa ou igualmente como a essência do lance de

dados deve se buscada no único Lançar primordial, e não no resultado numérico afixado

sobre os dados imóveis.

Ora, a destinação do conjunto ao fechado e, portanto, à unidade numérica,

enfatiza um pensamento limitado de conjunto, que só permite a sua pretendida “ênfase”

pela abertura diferenciante da vida. Pois intuído, desde Cantor, como múltiplo dos

múltiplos, sem qualquer ponto de chegada senão o vazio, igualando em si mesmo o

infinito e o finito, assegurando que toda multiplicidade é imanente e homogênea, o

conjunto não saberá ser destinado nem ao número, nem ao fechado.

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

Consagramos um livro inteiro (o Número e os números) para estabelecer que

longe de o conjunto ser reduzido ao número, ele é, ao contrário do número e mesmo de

uma inumerável infinidade de tipos de números (a maioria ainda não estudados), o que

suporia, para ser apreendida pelo conceito, uma doação preliminar da ontologia dos

conjuntos. O número é uma pequena parte específica do ser-múltiplo tal como se dá a

pensar na axiomática conjuntiva, que é, na realidade, a ontologia racional mesma. É por

não querer assumir esse ponto e por manter a todo custo, contra a evidência, que todo

conjunto é um número que resulta um trecho bastante estranho3, consagrado, em O que

é a filosofia?, ao nosso livro O ser e o acontecimento. Nada mostra melhor; querer se

servir como filtro, a propósito de uma filosofia que assume Cantor em suas condições,

da lógica normativa do fechado e do aberto não produz senão opacidade.

Pois o conjunto é de maneira exemplar o que não é pensável senão quando se

coloca inteiramente de lado a oposição do fechado e do aberto, pela razão máxima de

que é apenas a partir do conceito indeterminado de conjunto que essa oposição tem um

sentido aceitável. Pode-se mesmo dizer que o conjunto é essa neutralidade-múltipla

originalmente subtraída tanto da abertura quanto do fechamento, mas que é ainda assim

capaz de sustentar essa oposição.

Sabe-se, com efeito, que a respeito de um conjunto qualquer é possível definir

numerosas topologias. Ora, o que é uma topologia? É muito precisamente a fixação de

um conceito de aberto (ou de fechado). Mas, no lugar de essa fixação confiar

empiricamente na intuição dinâmica, como no fato, com consequências paradoxais, que

enfatizamos em nosso Deleuze, da orientação vitalista, ela opera, como a falta em todo

processo fidedigno a um princípio de imanência, pela determinação de efeitos

relacionais de abertura (ou de fechamento). Substancialmente, um conceito de Aberto é

fixado assim que se tem um determinado múltiplo, residindo na intersecção de dois

elementos ou na união de tantos elementos quanto se quiser (inclusive, uma infinidade).

3 Dizemos “estranho” e não totalmente falso ou inexato. Não enfatizamos aí qualquer imprecisão, somente uma torção estranha, um ângulo de visão impraticável, que faz com que não possamos compreender do que se trata (contrariamente a nossos escritos sobre Deleuze, que os críticos declaram não compreender senão muito bem, suspeitando ser essa clareza precisamente um fato tortuoso da miraculosa e indefinida sutileza dos textos. Colocamos, com efeito, que a filosofia, certamente sob a pena da dificuldade, deve evitar toda profundidade obscura. Pois, para quem se interdita o virtual, nada é profundo). Assim, consideramos essa nota, na qual saudamos a evidente intenção amigável e atenta como uma peça enigmática (existem outras, evidentemente) do dispositivo de Deleuze concernente às multiplicidades. E nos alegramos pela ocasião que ele nos deu. Se alguém puder me esclarecer esse fragmento, e sua relação real com O ser e o acontecimento, estarei contente. É um verdadeiro convite, desprovido de toda ironia.

Alain Badiou

147

Ou ainda: a intersecção de dois abertos é um aberto e uma união qualquer de

abertos permanece aberta. Quanto ao fechado, ele nunca é mais do que o duplo do

aberto, seu complemento, seu avesso. Suas propriedades relacionais simetrizam aquelas

do aberto: a união de dois conjuntos fechados é fechada e a intersecção de tantos

fechados quanto se quiser permanece fechada. O fechado também reside, e isso segundo

outras vias imanentes para além daquelas do aberto.

É somente desse ponto do “residir”, dessa persistência do “aí” de um ser-aí

múltiplo que sustenta operativamente a sua imanência, que se esclarece uma

propriedade fundamental dos conjuntos abertos, a qual Deleuze identifica (sem razão) à

sua “ausência de partes”, e, portanto, à sua singularidade qualitativa ou intensiva. A

saber, que os “pontos” de um aberto são parcialmente inseparáveis ou indesignáveis,

porque o aberto está na vizinhança de cada um de seus pontos. Pelo que um conjunto

aberto provoca topologicamente um tipo de coalescência daquilo que o constitui.

Que o aberto reenvie a um “residir” não é nem um pouco paradoxal (há a

propósito desse reenvio fortes intuições de Heidegger). Se a abertura efetua, em sua

construção mesma, uma localização sem fora (o que reitera que o aberto “localiza”,

enquanto vizinhança, todos os seus pontos), é porque “aberto” é uma determinação

intrínseca do múltiplo, que se trata bem de uma construção imanente. Não poderia ser

diferente mesmo para Deleuze, porque é sempre a outra coisa para além de sua

efetividade que o aberto está aberto, nomeadamente à potência inorgânica, pela qual ele

é uma atualização móvel. Se não, reenviado à sua pura potência interna de localização,

ele seria, para Deleuze, um conjunto fechado. Além do mais, porque é preciso que esteja

aberto ao seu próprio ser que o aberto vitalista não é pensável, por fim, senão como

virtualidade. O aberto conjuntivo ou ontológico está ele mesmo inteiramente na

atualidade de sua própria determinação, esgotando-se aí univocamente.

Definitivamente, a construção topológica dos abertos, sobre o fundo de uma ontologia

conjuntiva, demonstra que o conjunto tomado como tal não é de maneira alguma uma

imagem do fechado, sendo indiferente à dualidade do fechado e do aberto; e que, assim

concebido, o pensamento do aberto é inteiramente fiel a um princípio de imanência e de

univocidade que detém a multiplicidade vitalista, sob a pena, tão cerrada que seja, de

apontar equivocamente para a abertura da qual ela é um modo.

3.

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

Diremos pois que a capacidade descritiva da dialética aberto/fechado, tal como

sustenta o conceito de multiplicidade(s), faz justiça ao devir, às singularidades, às

criações, à diversidade inesgotável do sensível e da vida? Que é propriamente anátema

ler aí um tipo de monotonia fenomenológica? E que nada na teoria pós-cantoriana do

múltiplo puro pode ser equivalente a essa capacidade descritiva? Que é preciso antes ver

aí uma vingança categorial da identidade sobre a diferença?

Achamos que é totalmente o contrário, pelo menos por três razões:

a) A matemática tem isto de particular, que ela é sempre mais rica em

determinações surpreendentes do que qualquer dado empírico. Do senso comum (aliás,

totalmente estranho à Deleuze) vem o tema recorrente da “pobreza abstrata” da

matemática, oposto à luminosa surpresa do “concreto”. Na realidade, a matemática

revela-se apta, simultaneamente, a dar esquemas adequados à experiência e a

decepcionar essa experiência por invenções que nenhuma intuição pode aceitar.

Tomemos um exemplo simples: a noção empírica de “atrito”, de toque

superficial, de contato quase idêntico ao não-contato, e mesmo de carícia leve, é

certamente pensada no interior daquela de tangência, de aproximação infinitesimal num

ponto, aquela que, desde os gregos, supõe um esforço ascético do pensamento em

direção ao conceito de derivada de uma função. Pode-se dizer (muito grosseiramente)

que sendo dada a curva que representa uma função, se essa função é derivável a partir

do valor de seu argumento, existirá uma tangente à curva no ponto que representa esse

valor. Pode-se, portanto, sustentar que as noções conjuntas de curvatura e de contato,

num ponto apenas dessa curvatura, circulam intuitivamente no interior dos conceitos de

função contínua (a curva) e de derivada num ponto (tangente). Esse exemplo é

escolhido a partir do que é bastante deleuziano e, aliás, bem conhecido por ele.

Curvaturas, contatos, bifurcações, linha de fuga (uma tangente toca a curva e foge para

longe dela), diferenciação, limite, são constantes em suas descrições. Mas eis que no

século XIX descobre-se que existem funções contínuas que não são deriváveis em ponto

algum. Tentem imaginar uma curva contínua tal que seja impossível uma reta a “tocar”

em um ponto... Melhor ainda: demonstra-se que essas funções, subtraídas de toda

intuição empírica, propriamente irrepresentáveis, são “mais numerosas” do que aquelas

que governam até então o pensamento matemático. Caso particular de uma lei geral: por

todo lugar onde a matemática está próxima da experiência, seguindo até o fim seu

próprio movimento, ela descobre um caso “patológico” que desafia absolutamente sua

intuição inicial, depois ela estabelece que esse patológico é a regra e que o intuitivo não

Alain Badiou

149

é senão uma exceção. Por onde se descobre que, enquanto pensamento do ser enquanto

tal, a matemática não cessa de se afastar de seu ponto de partida, este tomado como ente

local disponível ou como efetividade contingente.

Daí resulta, em particular, que a propósito das multiplicidades “rizomáticas”, as

quais servem de caso para Deleuze (a matilha, o enxame, as raízes, os entrelaçados etc.),

o recurso à teoria dos conjuntos em configurações diversas é de uma prodigalidade e de

uma complexidade incomparável, que autoriza que se apreenda o mais distante. A

construção (por exemplo) de um subconjunto genérico de um conjunto particular

ordenado não somente supera em violência, como um caso do pensamento, qualquer

que seja o esquema empírico rizomático, mas, estabelecendo o que são as condições de

uma “neutralidade” de um múltiplo de uma só vez dispersivo e coordenado, subsume,

na realidade, a ontologia desses esquemas. É por isso que, na elaboração de uma teoria

do múltiplo, a regra (platônica: que ninguém entra aqui se não for geômetra) segue, de

início, as construções conceituais matemáticas, as quais, sabemos, excedem em toda

parte qualquer que seja o caso empírico, já que é do recurso mesmo do múltiplo que se

trata. Que zona da experiência poderia conceder, outro exemplo, uma ramificação do

conceito de infinito tão densa quanto aquela que pensa os cardeais inacessíveis,

compactos, inefáveis, mensuráveis de Malho, de Ramsey, de Rowbotton, enormes, e

assim por diante? Logo, quando se fala pobremente de um percurso do pensamento

“com velocidade infinita”, perguntar-se-á: de que infinito você fala? O que é essa

unidade suposta do infinito, lá onde aprendemos que existe não apenas uma infinidade

de infinitos diferentes, mas uma hierarquia infinitamente ramificada e complexa de tipos

de infinito?

Sabemos – e fazemos isso como um elogio – que Deleuze não tem nenhum

desprezo pelos matemáticos, e que ele utiliza, como recurso do pensamento filosófico, o

cálculo diferencial ou os espaços de Riemann. Mas esses exemplos deveriam, se não

fossem retrabalhados no contexto criptodialético do fechado e do aberto, entrar em

contradição com a doutrina vitalista das multiplicidades.

Sobre esse ponto o caso de Riemann é significativo. Ele conquista Deleuze

porque complexifica de modo genial a intuição elementar do espaço e fornece uma

máquina de guerra contra a concepção unilateralmente extensiva ou estendida de tipo

cartesiana ou ainda kantiana. Riemann fala, com efeito, de espaços “multiplicadamente

estendidos”, de variedades, e antecipa a noção moderna de espaço funcional. Ele

autoriza os desenvolvimentos de Deleuze a respeito do caráter folhado do plano de

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

imanência e de uma concepção não-partitiva das localizações. É verdade que Riemann

generaliza para além de toda intuição empírica o conceito de espaço, ao menos de três

maneiras: admite a consideração de espaços de n dimensões, e não somente de no

máximo três dimensões; procura pensar as relações de posição, forma, vizinhança,

independentemente de toda métrica e, portanto, de modo “qualitativo”, sem a ajuda do

número; imagina que se possam tomar como componentes de espaços não somente os

elementos ou os pontos, mas as funções, de sorte que o espaço seria “povoado” por

variações antes que por entidades. Assim fazendo, Riemann abre um domínio imenso,

sobre o qual trabalha sem cessar, aos métodos “geométricos”. Cria, em suma, uma

geometria generalizada. Ora, o pensamento vitalista de Deleuze combina com essa

geometrização multidimensional, com essa doutrina de variações locais, com essa

orientação qualitativa de territórios.

Apenas é absolutamente claro que as antecipações fulminantes de Riemann

exigiriam, para a concretização de seu programa, um quadro de pensamento

inteiramente subtraído das limitações da intuição empírica e que a “geometria”,

portanto, tratasse de devidamente apreender não as configurações empiricamente

comprováveis, fossem elas bifurcadas ou dobradas, mas os múltiplos neutros,

desprendidos em seu ser de toda conotação espacial ou temporal, nem fechados, nem

abertos, infiguráveis, liberados de toda oposição imediata entre o quantitativo e o

qualitativo. É por isso que essas antecipações não se tornaram o corpo mesmo da

matemática moderna senão com Dedekind e Cantor, que conseguiram matematizar, sob

o nome de conjunto, o múltiplo puro, arrancado de toda figura preliminar do Um,

subtraído desse farrapo da experiência onde residem os pretensos “objetos” da

matemática (números e figuras) e a partir do qual se podem definir e estudar, inclusive

sob o nome de espaços, as configurações multidimensionais mais paradoxais. Levando

Riemann ao estatuto de paradigma anticartesiano e de pensador das multiplicidades

qualitativas, Deleuze falta com a ontologia subjacente de sua invenção, ontologia que,

por uma inconsequência marcante, ele destitui, submetendo-a à alternativa indecidível,

mas normativa, do fechado e do aberto.

Riemann não é de forma alguma uma passagem do múltiplo (oposto ao Um) às

multiplicidades. É uma passagem do que subsiste da potência empírica do Um (na

modalidade da experiência de “objetos” matemáticos) ao múltiplo-sem-um, o qual, com

efeito, pode acolher indiferentemente números, pontos, funções, figuras ou lugares, já

que não prescreve aquilo de que é composto. A potência do pensamento de Riemann é

Alain Badiou

151

de total neutralização da diferença. A interpretação de Deleuze, que vê aí uma

complexificação móvel da ideia de plano, não é inexata, mas não vai até as verdadeiras

determinações metafísicas de seu paradigma.

b) É recorrente, em Deleuze, sustentar que as multiplicidades, diferentemente

dos conjuntos, não contêm “partes”. Está claro, para nós, que a oposição que ele realiza

em relação aos conjuntos se faz sob o signo do Um. Decerto, vemos que se trata de

salvar a singularidade qualitativa e a potência vital ligada a ela, mas não cremos que se

possa consegui-lo por essa via. Para dizer a verdade, é totalmente o contrário: o excesso

imanente que “anima” um conjunto, e o fato de que o múltiplo é interiormente marcado

pela indecidibilidade, resulta diretamente que ele não apenas contém os elementos, mas

também as partes.

É um grande ponto de fraqueza para toda uma teoria de multiplicidades não

distinguir os elementos (o que o múltiplo apresenta ou compõe) de suas partes (o que é,

no múltiplo, representado por um submúltiplo). Já o enunciado de que as

multiplicidades não contêm partes não diferencia dois tipos de imanência, duas formas

fundamentais de ser-aí, que a teoria dos conjuntos destaca tão logo distingue o

pertencimento (elementar) da inclusão (partilhada). Ora, a relação entre essas duas

formas é a chave de todo pensamento do múltiplo; sua ignorância apenas pode subtrair a

filosofia de uma de suas mais exigentes condições contemporâneas.

No final do século 19, Cantor, com efeito, demonstrou que a potência do

conjunto das partes de um conjunto (e, portanto, do que é sustentado pela imanência de

tipo inclusivo) levaria necessariamente vantagem sobre a potência do conjunto ele

mesmo (e, portanto, do que é sustentado pela imanência de tipo elementar). Isso

significa que existe um excesso ontológico da representação sobre a apresentação. Há

quarenta e cinco anos, Cohen demonstrou que esse excesso seria inassimilável. Dito de

outra maneira, que nenhuma medida poderia ela mesma ser prescrita, de modo que ela

seria como um excesso errante do conjunto sobre ele mesmo. Não há que se procurar no

Todo o grande animal cósmico ou o caos, o princípio do excesso-sobre-si de um

múltiplo puro: ele é dedutível de uma in-coesão interna entre os dois tipos de imanência.

Não há que se procurar no virtual o princípio de indeterminação ou de indecidibilidade

que afeta toda atualização. É atualmente que todo múltiplo é assombrado por um

excesso de potência que ninguém pode calcular, senão, uma decisão, sempre aleatória e

dada em seus efeitos...

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

É muito certo que a experiência deve a cada vez redeterminar o excesso

imanente. Por exemplo, decidir o que está em excesso da potência do Estado (no sentido

político) sobre a apresentação comum (o pensamento das pessoas) é um componente

essencial de toda política singular: se você decide que o excesso é muito fraco, prepara

uma insurreição; se você pensa que ele é muito forte, instaura-se numa ideia de “longa

marcha” etc. Mas essas determinações singulares não revelam nada além de uma

descrição filosófica, pois elas mesmas são interiores às efetuações de verdades

(políticas, artísticas etc.). O que, ao contrário, é filosófico é afastar todo empirismo

especulativo e designar a forma dessas determinações segundo o seu fundamento

genérico: a teoria do múltiplo puro. Desse ponto de vista, os operadores “concretos” do

tipo vitalista que, finalmente, reenviam a positividade do Aberto a um criacionismo

imanente, cujo fundamento é a prodigalidade caótica do Um, são obstáculos, e não

apoios. O concreto é mais abstrato que o abstrato.

c) A riqueza do empírico é com bastante justiça tratada por Deleuze como

riqueza de problemas. Que a relação do virtual com o atual tenha como paradigma

aquele do problema e de sua solução (e não aquele do possível e de sua realização) me

parece uma das forças do método deleuziano. Mas disso resulta a falsidade de uma

máxima que, no entanto, Deleuze pratica e transmite: que se deve partir de qualquer que

seja o caso concreto, e não dos casos “importantes” ou da história do problema. Se se

tomar a noção de problema pelo seu lugar de origem, que é a matemática, vê-se

rapidamente que a consideração de um caso qualquer interdita todo o acesso aos

problemas que têm potência, àqueles cuja solução importa ao devir conjunto do

pensamento e do que ele pensa. Galois dizia que o que produzia um problema era ler

seus textos sem se dar conta de seus precedentes: é aí que residiria o jazigo dos

problemas.

Em falta com essa lógica dos precedentes, que seleciona duramente os

pensamentos produtivos, a prodigalidade do empírico se torna um tipo de peso arbitrário

e estéril. Pois se substitui o problema por uma pura e simples verificação.

Filosoficamente, a verificação é sempre possível. Fomos, em nossa juventude, dessa

escola: depois de Sartre, sabíamos transformar tudo em filosofema, segundo os

exemplos do garçom de um café, do esquiador, da lésbica e do negro, de qualquer dado

“concreto”. É para isso que poderiam servir as multiplicidades, suspendidas entre o

aberto e o fechado ou entre o virtual e o atual, da mesma maneira com que nos

servíamos daqueles exemplos para fazer frente à interioridade do em-si e do para-si. É

Alain Badiou

153

para isso, contudo, que não podem servir as multiplicidades conjuntivas, cuja regra não

é jamais descritiva, cavilhadas que são a uma axiomática delicada. Dizemos que, desde

logo, a teoria do múltiplo é tão mais fecunda em problemas que, sem autorizar descrição

alguma, ela não pode senão servir de ideia reguladora às prescrições.

4. Que diferença há, de direito, entre dizer que uma matilha de lobos e a rede

subterrânea de uma planta com tubérculos são casos de rizoma, e dizer que eles

participam um e outro da Ideia de rizoma? Que sentido é preciso empregar para que se

possa comparar à Cristo, assim como à Espinosa, Bartleby, o escrivão? Se a obra de

Foucault testemunha da Dobra entre o visível e o dizível, é no mesmo sentido com que

os filmes de Straub e de Marguerite Dura o fazem, nos quais a singularidade é definida

nos mesmos termos? O termo “folhado” designa a mesma propriedade nos espaços de

Riemann (que reportam a um plano de referência científico) e no plano de imanência

filosófico? Se falamos da monotonia da obra de Deleuze (o que seria, para nosso

espírito, um elogio bergsoniano: somente uma intuição motora, afinal de contas), é

igualmente por não termos posto frontalmente as questões mais grosseiras. Pois o nosso

campo de interpretação das inumeráveis analogias que povoam os estudos de caso de

Deleuze autorizaria que as relacionássemos à univocidade, como doação de sentido

uniformemente distribuída sobre a superfície das atualizações, na qual a mola, idêntica à

potência da substância espinosista, seria a determinação ontológica do Um-Vida.

Àqueles que, contrariamente, não querem uma postulação ontológica desse tipo e que

colocam ironicamente a pergunta: “Deleuze terá por objetivo intuir o Um?” (o que, no

entanto, bem poderia se ocupar um discípulo aficionado de Espinosa?), é preciso

questionar o estatuto que conferem a essas analogias, ainda mais ao que o Mestre diz,

desde sempre, proscrever.

Partilhamos com Deleuze a convicção (no meu entendimento, de caráter

política) que todo pensamento verdadeiro é pensamento de singularidades. Mas logo

que as multiplicidades atuais são sempre para Deleuze modalidades puramente formais4

4 A autocrítica de Deleuze concernente à doutrina dos simulacros toca, sem dúvida, na forma muito imediatamente nietzschiana do antiplatonismo em Diferença e repetição. Mas o motivo profundo que essa doutrina recobre se mantém integralmente até as últimas obras. Ele diz: a diferença dos entes atuais é modal, somente a unidade do virtual (percorrido no “grande circuito”) é integralmente real. Há dezenas de textos explícitos sobre esse ponto. Que essa unidade seja aquela da Relação, ou se se quiser, da Diferença, não faz senão acentuar o alcance ontológico da tese. Para Heidegger também o ser se diz da diferença (do ser e do ente). Mas o Esquecimento é o de pensar que apenas o ser, e não o ente, é o diferenciante dessa

UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

e que somente o Virtual dispensa univocamente o sentido, sustentamos que não há outro

recurso para pensar a singularidade senão classificar as diferentes maneiras pelas quais

uma singularidade tem de não ser ontologicamente singular. Sejam os diferentes modos

de atualização. Já é, enfim, a cruz do espinosismo, cuja teoria das “coisas singulares”

oscila entre um esquematismo de causalidade (uma coisa é um conjunto de modos

produzindo um efeito único) e um esquematismo de expressão (uma coisa testemunha

da infinita potência da substância). Assim como, a singularidade para Deleuze oscila

entre uma fenomenologia classificatória dos modos de atualização (e de virtualização) e

uma ontologia do virtual. Mantemos que a “ligação” entre essas duas abordagens não é

compatível com a univocidade, nem com a imanência. Entendemos que a partir dessa

incompatibilidade o texto esteja povoado por analogias, as quais determinam as Ideias

descritivas, cujas singularidades são os casos.

Que essas Ideias (a Dobra, o Rizoma, o Lance de dados...) visem às

configurações em devir, às diferenciações, aos vértices, aos rendilhados, às linhas de

fuga, não muda em nada a situação. Dizemos sempre que as singularidades deleuzianas

enfatizam a atualização ou a virtualização, e não a identidade ideal. Mas que um

esquema tenha por modelos descritivos apenas os devires concretos, isso não o impede

de forma alguma de ser uma Ideia, cujos modelos são isomorfos. O velho Parmênides,

lendário de Platão, “objetaria” a Sócrates que seria bastante preciso que existisse uma

Ideia de cabelo ou de lama. Resta que, sustentar que a singularidade exige, para ser

pensamento, a intuição do virtual, a qual, estamos convencidos disso, opera como diferença. Da mesma maneira, a besteira filosófica é a de acreditar que são essas diferenças atuais que, analogicamente, permitem remontar à Diferença; logo, a intuição pensante não é completa senão quando leva o seu movimento até o ponto em que ela se identifica de modo impessoal à potência diferenciante e imanente do Virtual. A essência do atual é a atualização, mas a essência da atualização é a Vida. Ora, não existe essência da Vida [da Vida (refrão)]: ela é, portanto, necessariamente o Um pré-filosófico de toda filosofia. O motivo da elevação afirmativa dos simulacros não parece, sob esse olhar e levando em conta a continuidade desse ponto essencial, mais convincente do que as formulações posteriores, pois é mais adequado do que aquele da univocidade, bem como do que aquele da crítica do “platonismo”. Deleuze jamais esteve mais a vontade quando conseguiu fusionar, num ponto, Nietzsche, Bergson e Espinosa. Esse é o caso toda vez que ele pensa a relação imanente da potência diferenciante do Um e suas expressões modais. Admiramo-nos, de passagem, o pouco caso que fazem a maior parte dos seus discípulos (com a exceção notável de Eric Alliez) com a genealogia filosófica construída por Deleuze. Encontramo-os mais embaraçados do que armados com esses constantes apelos didáticos à Nietzsche, à Bergson, à Whitehead, aos estoicos e, singularmente, à Espinosa. Sem dúvida, o que mais importa a eles é que Deleuze seja “moderno”, no sentido em que eles o entendem, e que contenha sempre uma parte obscura de anti-filosofia corrente. Sem dúvida, é essa também a razão pela qual eles “preferem” os livros escritos com Guattari, nos quais alguns toques “modernos” são perceptíveis, razão que provoca simetricamente o nosso menor interesse por esses textos. É suficiente ler o breve Foucault para constatar com que soberana intensidade Deleuze retorna intacto às suas intuições iniciais. Lembremo-nos que, aos nossos olhos, é uma das virtudes cardeais de Deleuze não ter, em seu nome próprio, utilizado quase nada de toda a tralha desconstrutivista “moderna” e de ter sido, sem o menor complexo, um metafísico (e, ainda, um físico, no sentido pré-socrático do termo).

Alain Badiou

155

transcendência (ou como lugar das Ideias descritivas), não pode senão dar ocasião, no

interior de uma virtuosidade sem cessar revisitada, a uma visão analógica e

classificatória dessa singularidade. É a razão pela qual tanto importa se mantiver firme

no múltiplo enquanto tal, composição inconsistente do múltiplo-sem-um, que identifica

a singularidade do interior, em sua estrita atualidade, tendendo o pensamento para o

ponto onde não há nenhuma diferença entre a diferença e a identidade. E onde, por

conseguinte, há a singularidade dos que são indiferentes em relação a ele, a diferença e

a identidade.

Resumamos. A tentativa de subversão da transcendência “vertical” do Um pelo

jogo do fechado e do aberto, o qual distribui a multiplicidade no intervalo móvel de um

conjunto (inerte) e de uma multiplicidade efetiva (linha de fuga), produz uma

transcendência virtual “horizontal”, que desconhece o recurso intrínseco do múltiplo,

supõe a potência caótica do Um e relaciona analogicamente os modos de atualização lá

onde seria preciso apreender a singularidade. O resultado disso é o que chamaremos de

mística natural. Para acabar com a transcendência, é preciso manter o fio do múltiplo-

sem-um, insensível a todo jogo do aberto e do fechado, anulando todo abismo entre o

finito e o infinito, puramente atual, assombrado pelo excesso interior de suas partes e no

qual a singularidade unívoca é ontologicamente nomeável apenas por um gráfico

subtraído da poetização da linguagem natural. A única potência que pode concordar

com aquela do ser é a potência da letra. Pode-se, então, esperar resolver o problema

próprio da filosofia contemporânea: o que é, de direito, uma singularidade universal?

Alain Badiou é filósofo, escritor, militante e professor emérito da École Normale Supérieure, na qual fundou o Centre International d’Étude de la Philosophie Française Contemporaine. É autor de diversos livros, entre eles: O ser e o acontecimento (1988, trad. brasileira, Ed. UFRJ/Zahar, 1996), Manifesto pela filosofia (1989, trad. brasileira, Aoutra, 1991), O número e os números (1990), Deleuze, o clamor do ser (1997, trad. brasileira, Zahar, 1997), Lógicas dos mundos (2006), A hipótese comunista (2009, trad. brasileira, Boitempo, 2012). Tradutor: Luiz Paulo Leitão Martins é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]

Implementação do Conselho da Igualdade Racial em Teófilo Otoni-MG/BR: uma luta também do serviço social Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo fazer um breve resgate da trajetória do

Movimento Negro, pontuando as conquistas e desafios encontrados nessa caminhada

histórica. Após essa viagem ao passado será discutido o reflexo do Movimento Negro

na cidade de Teófilo Otoni-MG, destacando o processo de construção do Conselho da

Igualdade Racial na cidade e a importância do engajamento político do Serviço Social

nessa luta junto aos grupos que apoiam e defendem essa bandeira.

A metodologia utilizada para a realização da pesquisa que formou a base deste

artigo esteve ancorada na realização de entrevistas em profundidade, com agentes

sociais que se autoidentificam como negros e que atuaram de forma coordenada na

criação do Conselho da Igualdade Racial local.

De inicio é importante demarcar a existência de movimentos de resistência à

escravidão já no período pré-abolição, como foi o caso da quilombagem (movimento

organizado e dirigido pelos escravos), resultando em insurreições, tal como a Revolta

dos Malês em 1835, e na constituição dos quilombos, conforme denomina Clóvis

Moura (2004). Todos estes movimentos foram reprimidos à força.

No período pós-abolição, já no século XX, após a Revolta da Chibata em 1910,

os movimentos de protesto negros emergem dos clubes recreativos e desportivos, das

associações beneficentes negras, da Imprensa Negra (O Getulino; O Progresso, O

Clarim da Alvorada; A Voz da Raça; Alvorada; O Novo Horizonte, entre outros),

atuando na denúncia da discriminação racial e dos males por esta causados, bem como

na promoção da educação da população negra.

De 1931 a 1937, a Frente Negra Brasileira (FNB), associação de caráter

político, recreativo e beneficente, diante do não compromisso do Estado brasileiro,

elaborou uma “proposta ousada de educação”, visando “agrupar, educar e orientar”,

tanto alunos negros quanto não-negros, de ambos os sexos. Essa proposta não se

restringiu apenas à escolarização, mas também buscou a formação política de futuras

lideranças; criou escolas e cursos de alfabetização de crianças, jovens e adultos. Em

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

157

1936, transformou-se em partido político, no entanto foi extinta em 1937, no momento

em que o golpe do Estado Novo, promovido por Getúlio Vargas colocou na ilegalidade

todos os partidos políticos. Embora a ditadura Vargas (1937 a 1945) tenha imposto o

silêncio às organizações negras, elas não desapareceram por completo.

Além disto, foi durante o primeiro período Vargas que o país passa a caminhar

na direção da construção de uma identidade nacional, o que ainda não se iniciara

durante a chamada Primeira República. Neste ponto as obras do sociólogo

pernambucano Gilberto Freyre foram fundamentais (principalmente Casa Grande &

Senzala – de 1933 – e Sobrados e Mucambos – de 1936). Freyre constrói, através

destas, a tese da “mestiçagem”, que tem como aspecto fundamental o fato de realizar

uma interpretação da ordem racial brasileira a partir de elementos que se desenrolam no

âmbito das relações privadas entre os membros da sociedade nacional.

O argumento de Freyre é que os aspectos capazes de gerar integração racial e

práticas democráticas podem ser encontrados nas representações, nos comportamentos e

nas atitudes dos atores sociais. A origem deste fenômeno estaria na forma da

colonização brasileira, realizada por homens que chegavam aqui sem suas famílias e

que estabeleciam relações sexuais e também conjugais com índias e negras. Produto de

uma sociedade também miscigenada – por conta dos séculos de dominação mulçumana

na Península Ibérica – os portugueses teriam criado na colônia um amalgama entre os

grupos de cor ou raça e constituído uma esfera privada democrática.

Derivaria daí a baixa presença entre nós de uma legislação relativa à raça no

pós-abolição (fenômeno inverso ao ocorrido nos Estados Unidos, por exemplo). Por sua

vez, a valorização da cultura mestiça brasileira teria ganhado força a partir dos anos

1930. Mas, tal valorização cultural, operava no campo próximo aos elementos, que

recentemente a teoria social tem denominado como reconhecimento (Taylor, 1998), sem

se voltar para iniciativas públicas no campo da redistribuição material (Fraser, 2010),

que pudessem promover a equalização das posições de brancos e negros em sociedade.

Mais à frente, já na ditadura militar que perdurou durante as décadas de 60, 70

e 80, o tema relativo às relações raciais, além de outros, se torna uma “questão de

segurança nacional”, em especial no período que compreende os anos de 1965 até o

final da década de 1970. Neste período, a ideia de democracia racial é disseminada e

trabalhada no sentido de, por um lado, ocultar a existência de divisões raciais e, por

outro, afirmar a unidade e a homogeneidade nacional.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Com a gradativa abertura política no pós-1979, os movimentos sociais

ressurgem e, entre eles, aparece o Movimento Negro Unificado (MNU), que passa a

exercer um forte impacto no processo de conscientização da população negra quanto à

discriminação e desigualdade raciais no Brasil, e na organização de seus membros para

a luta contra o racismo. O MNU trará para a pauta dos movimentos sociais uma extensa

agenda de demandas, denúncias e reivindicações.

Nesta direção, foi organizada a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o

Racismo, Pela Cidadania e a Vida, em homenagem aos 300 anos de morte de Zumbi.

Esta saiu às ruas de Brasília no dia 20 de novembro de 1995, em direção ao Congresso

Nacional, reivindicando ao então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,

medidas concretas de combate à desigualdade racial. No entanto, nada foi efetivamente

realizado pelo governo federal.

Em 2001, cinco anos após a primeira Marcha Zumbi dos Palmares, ocorreu a

III Conferência Internacional contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e

Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul.

Esta conferência pretendeu fazer um balanço dos progressos alcançados no

combate ao racismo desde a adoção da declaração Universal dos Direitos Humanos em

1948, além de estimular a formulação de medidas de combate ao racismo em nível

internacional, nacional e regional. As conferências preparatórias para Durban ocorreram

tanto no âmbito nacional (em quase todos os estados brasileiros) quanto no

internacional e delas participaram líderes do governo, acadêmicos e, especialmente,

ativistas do movimento negro brasileiro, unidos em torno de um único objetivo: o

combate à discriminação racial e à desigualdade, e a promoção da igualdade via

políticas afirmativas. Para a Conferência de Durban seguiu uma delegação do governo

brasileiro, constituída pelo Ministro da Justiça, pelo Secretário Nacional de Direitos

Humanos e por vários deputados federais, autoridades locais e componentes do Comitê

Nacional sobre Raça e Discriminação Racial, além de membros do movimento negro.

O relatório oficial do governo brasileiro, apresentado em Durban, constituiu-se

de vinte e três propostas destinadas à promoção da população negra, entre elas: [...] medidas reparatórias às vítimas do racismo nas áreas de educação e

trabalho; titulação das terras quilombolas; política agrícola e

desenvolvimento das comunidades negras rurais; fundo de reparação social

para financiar políticas inclusivas, em especial, na educação, cotas para o

acesso de negros às universidades públicas. Desta forma, o Brasil se

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

159

compromete a implementar políticas de ação afirmativa (SILVA, p. 67, 2008;

HERINGER, 2003).

Das vinte e três propostas apresentadas, poucas foram efetivamente

implantadas nos anos seguintes, em especial a adoção de cotas raciais para ingresso em

instituições federais de ensino (consolidada na Lei n.º 12.711 de 2012) e a ampliação do

rol de comunidades negras que poderiam demandar a titulação de seus territórios

enquanto quilombolas (através do Decreto n.º 4.887/2003).

2. O processo de construção do Conselho da Igualdade Racial

Teófilo Otoni é uma cidade localizada no nordeste do Estado de Minas Gerais,

no Vale do Mucuri. Contém três comunidades remanescentes de quilombo, que se

denominam: Cama Alta, Córrego Novo e São Julião. Comunidades essas com pouca ou

nenhuma organização social. Sua população tem uma grande representatividade de

negros, que em sua maioria são agricultores familiares. É nesse espaço geográfico que

se encontram pessoas distintas, com um ponto em comum: se identificam como negros

e tem como objetivo a igualdade racial.

Foi através de um evento voltado para a História e cultura da África e afro-

brasileira, promovido pelo Núcleo de estudos afro-brasileiros (NEAB), da Universidade

Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) em março de 2010, que essas

pessoas se encontraram. Neste momento, perceberam que suas lutas locais eram parte de

processos coletivos. A partir disto resolveram somar forças e começaram a trabalhar

juntos. A idéia da construção do Conselho da Igualdade Racial já estava plantada há

alguns anos, e vinha sendo discutida. Mas, após a realização do referido evento, amplia-

se o debate e o NEAB/UFVJM e outros atores sociais passam a somar forças, junto ao

movimento.

Para a composição deste artigo realizamos quatro entrevistas em profundidade

com representantes do Conselho da Igualdade Racial, sendo três membros da sociedade

civil e um da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Vale destacar que um dos entrevistados da sociedade civil é membro da Associação

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Bahiminas.1 Nosso objetivo foi compreender se havia em Teófilo Otoni uma estrutura

de mobilização passível de ser nomeada como Movimento Negro e, caso esta ainda não

existisse, se o Conselho poderia ter algum impacto na formação deste.

De início devemos ressaltar que os entrevistados apontam não haver um

Movimento Negro na cidade, no entanto, todos apostam na possibilidade de criação

deste.

Quanto a um possível impacto do Conselho na formação do Movimento Negro

de Teófilo Otoni, os entrevistados são otimistas e todos indicam que esta relação seria

possível. Porém destacam que não será um processo fácil: “A criação e atuação dos

Conselheiros do Conselho da Igualdade Racial poderá ser um dos caminhos para

fortalecer laços e para iniciar um possível movimento negro mais articulado... Mesmo

que com muita dificuldade” (Representante da Bahiminas).

No que diz respeito aos mecanismos que impossibilitaram, ou continuam

impossibilitando a formação de um Movimento Negro na cidade, todos alegam que para

a formação deste é preciso haver inicialmente uma identificação maior da população

negra local com a própria noção de negritude, ou seja, é preciso que se dissemine um

sentimento de pertencimento, de identificação com a luta pela igualdade racial. Uma das

representantes da sociedade civil destaca: “No Brasil ser negro é tornar-se negro, o

conhecimento e o pertencimento dessa questão nos ajuda a superar e na cidade de

Teófilo Otoni falta isso ao negro”.

Os entrevistados, ao serem questionados sobre a relação do Estado com o

Movimento Negro, apontaram: Na verdade não existem espaços dados a nenhum movimento, seja ele negro

ou não, na verdade, o movimento negro e ativistas intelectuais conquistaram

espaços no governo. E como o último governo se mostrou mais sensível e

mais aberto a dialogar, o movimento negro conseguiu concretizar pontos de

reivindicações, embora muitos ainda em curso (Representante da Bahiminas).

Uma maior inserção do Movimento Negro e suas demandas no aparelho

estatal ocorreram nos últimos oito anos do governo “Lula”, com a criação da

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR e

1 Associação composta por ex-funcionários que trabalhavam na linha férrea que ligava Bahia a Minas Gerais. Criada em 1997 com o intuito atender as necessidades das famílias vinculadas a ferrovia, além buscar preservar a memória da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas. Conforme relatou a presidente da associação.

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

161

da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade -

SECAD (Representante da Sociedade Civil)

Refletindo sobre a política do governo local contra o racismo, os entrevistados

relatam que algumas medidas vêm sendo verificadas no nível mais amplo, mas que, em

relação ao município de Teófilo Otoni, não há nada constituído em âmbito de política

municipal. A representante da UFVJM relata: No primeiro mandato (2003-2006) do governo “Lula” é sancionada a Lei

10639, em janeiro de 2003, que torna obrigatória a História e Cultura da

África e Afro-brasileira no ensino fundamental e médio das redes pública e

privada de ensino, e criada, em março do mesmo ano, a Secretaria Especial

de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Até o final do

segundo mandato (2007-2010) deste governo, algumas das políticas

propostas para a população negra foram implementadas no âmbito dos

diversos ministérios (Mistério da Educação, do Desenvolvimento Agrário, do

Desenvolvimento Social, da Saúde, etc.). De acordo com o Movimento

Negro Unificado, embora este tipo de política tenha avançado no governo

“Lula”, ficaram algumas lacunas, em especial no que diz respeito à titulação

das terras quilombolas, haja vista que das 1527 comunidades certificadas pela

Fundação Palmares desde 2003 apenas 126 conquistaram o título, menos de

10%, e à promulgação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 20 de

julho de 2010). Ele vem garantir à população negra a igualdade de

oportunidades no acesso à saúde, educação, cultura e lazer, à terra, à moradia

adequada, liberdade no exercício de cultos religiosos de matriz afro-

brasileira, ao trabalho e aos meios de comunicação.

No que tange às principais bandeiras e desafios do Movimento Negro

atualmente, os entrevistados foram bem objetivos, todos pontuando que o maior

objetivo é combater o racismo e a falsidade da noção de democracia racial, e conseguir

estabelecer e manter um diálogo com o Estado, de modo que isso venha fazer valer e

garantir algumas demandas que já se tornaram letra da Lei, mas que efetivamente ainda

não foram implantadas ou geraram efeitos.

O posicionamento dos entrevistados sobre as políticas de ação afirmativa é

unânime. Todos se referem a estas como ações compensatórias, como argumenta uma

dos entrevistados: “Políticas públicas compensatórias voltadas para reverter às

tendências históricas que conferiram a grupos sociais uma posição de desvantagens

particularmente nas áreas da educação e do trabalho (Representante da Sociedade

Civil)”. O posicionamento da representante da Bahiminas não é diferente: “Política de

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

ação afirmativa é a política de inclusão de um grupo que há muito tempo se encontra

esquecido. Programas entre diferentes grupos sociais.”

Sabemos que a discussão relativa à necessidade, à validade e mesmo à

operacionalidade da política de cotas divide opiniões, mas entre nossos entrevistados o

posicionamento é favoravelmente unânime. Ao serem questionados se a separação de

cotas para negros constitui ou não discriminação, os entrevistados apresentaram os

seguintes posicionamentos: “É uma discriminação, mas positiva, pois busca tornar

viável a igualdade (Representante da Sociedade Civil)”. Enquanto os outros três

entrevistados destacam que as cotas não são discriminação, se as tomarmos como

alternativa para minimizar a desigualdade de oportunidades entre negros e brancos,

decorrente do processo histórico de escravização e de não inserção da população negra

na “sociedade de classes” no pós-abolição.

Para buscar analisar mais detalhadamente a relação entre os movimentos

sociais e o Conselho da Igualdade Racial, foi realizada a seguinte pergunta: o Conselho

da igualdade racial é movimento social?2 Dos entrevistados, 03 pessoas responderam

que Conselho é um movimento social, onde uma dessas pessoas destaca: Bem, a proposta de criação do Conselho de igualdade Racial aqui em Teófilo

Otoni pode ser considerada como um movimento negro, mas de poucos

negros, pois não existe na região um “movimento negro”. A proposta, que

acreditam ser ele o primeiro espaço/tempo da história da cidade, que poderia

se pensar em políticas públicas mais sistematizadas para os grupos

considerados “minorias” no âmbito municipal (Representante da Bahiminas).

Entre os pesquisados, apenas um discorda de tal afirmação e alega que Conselho

não é movimento social. Para justificar sua posição faz a seguinte reflexão: Os Conselhos, de um modo geral, representam uma conquista dos

movimentos sociais, a partir de suas demandas específicas, no contexto do

processo de redemocratização do país. Como órgãos gestores e paritários, os

Conselhos se institucionalizam, tal como previsto na Constituição Federal de

1988, e assumem o papel de mediadores entre a sociedade civil e o Estado.

Logo, a criação dos Conselhos e efetividade de suas ações depende

2 Neste artigo, entendemos por movimento social: "[...] ações sociopolíticas construídas por atores coletivos de diferentes classes sociais, numa conjuntura específica de relações de força na sociedade civil (GROSS, 2004, apud, GOHN, 1997, p.78)". Segundo a autora, as ações se desenvolvem em um processo de criação de identidades em espaços coletivos não institucionalizados, gerando transformações na sociedade, seja de caráter conservador ou progressista.

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

163

fundamentalmente da organização e pressão dos movimentos sociais. Sendo

assim, os Conselhos de Promoção da Igualdade Racial existentes em muitos

dos municípios dos diversos Estados brasileiros, são demandas dos seus

respectivos movimentos negros, no sentido de fazer valer o diálogo entre seus

representantes, enquanto sociedade civil, e o poder público local, e,

consequentemente, implementar políticas públicas de combate à

discriminação racial e assim promover a “igualdade” de oportunidades de

acesso à saúde, educação, emprego, e outros. Entre negros e brancos

(Representante da UFVJM).

Nas entrevistas os participantes afirmaram que o Conselho não está ainda

operante, e que o mesmo não surge como uma demanda do(s) movimento(s) negro(s)

local, pois este não existe formalmente. Mas a partir da alteração de Lei aprovada na

Câmara Municipal por um de seus vereadores e por uma Comissão composta por

representantes do poder público local, da UFVJ (enquanto instituição governamental

federal, participando através de seu Núcleo de Estudos Afrobrasileiro) e de membros da

sociedade civil, a perspectiva é de consolidação do Conselho em curto prazo.

3. Movimento Negro: uma luta constante

O Movimento negro pode ser caracterizado como uma organização de pessoas

que lutam para a efetivação dos direitos, respaldados tanto na centralidade da cultura,

como no próprio aparato legal brasileiro. São grupos unidos com o objetivo de trabalhar

contra a discriminação racial na sociedade e contra o preconceito no mercado de

trabalho; e buscam a efetuação de uma sociedade que reconheça a população negra

enquanto cidadãos históricos e onde haja garantias de uma vida igualitária com acesso a

educação, à política e pela valorização da sua cultura.

Como pode ser observado, nos escritos de Domingues (2007), por volta de

1889, um ano após a abolição da escravatura, e com a proclamação da república, a

população negra recém-liberta se mantinha à margem da sociedade, pois com a política

de subsídio à imigração européia (prática estatal diretamente ancorada na perspectiva de

branquear a população brasileira), não havia lugar para a mão de obra negra.

Este processo de segregação não oficial, mas com efeitos práticos evidentes

foi a somente o primeiro passo para a construção de uma ordem racial muito especifica,

contra a qual os movimentos negros vêm lutando.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Na história brasileira podemos observar que os movimentos negros foram se

dividido em fases. Na primeira fase (1889-1937), em muitos estados da federação, os

negros se uniram e a partir dessa articulação foram criados grêmios, clubes ou

associações negras, que organizavam palestras, atos públicos e publicações de jornais.

Estes retratavam as diversas mazelas que afetavam a população negra no trabalho, na

habitação, na educação e na saúde. Já no ano de 1936, parte do movimento se organizou

em partido político que pretendia participar das eleições. Porém os anos de 1937-1945,

palco da ditadura do Estado Novo, foram marcados por grande repressão política que

inviabilizou qualquer ação dos movimentos sociais em geral e chegou mesmo a cercear

a participação política no país.

Com a queda de Vargas em 1945, os movimentos negros se reorganizaram,

surgindo assim uma segunda fase situada entre 1945 e 1964. Nesta, há um

direcionamento para o teatro e para imprensa. As ações desenvolvidas visavam à

sensibilização da população branca para os problemas enfrentados pelos negros no país

e defendiam também os direitos civis dos negros enquanto direitos humanos. No bojo

destas ações, foi no ano de 1951, quando o Brasil instituiu sua primeira Lei

Antidiscriminatória. Trata-se da Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51 de 3 de julho de

1951) que prevê punições em caso de discriminação ou preconceito racial. Esta lei teve

como evento detonador um escândalo envolvendo uma bailarina norte-americana,

impedida de se hospedar em um hotel em São Paulo.

Com o golpe militar em 1964, os movimentos negros foram novamente

impedidos de participar da vida pública nacional. Assim teremos, de 1964 até o inicio

do processo de redemocratização, um período de recrudescimento do conjunto dos

movimento sociais. Somente a partir de 1978, quando começaria uma terceira fase do

movimento (fase esta que se estenderia os dias de hoje) os movimentos negros voltam a

participar de manifestações públicas e acessar a imprensa. Temos neste período a

entrada de militantes negros nos partidos de esquerda e a formação de comitês de base e

mesmo de movimentos de âmbito nacional.

No ano de 2003 o movimento negro teve uma grande conquista que foi a

aprovação da Lei nº. 10.639, no Congresso Nacional. Essa lei tem como princípio

alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e tornar obrigatório o ensino de

história e cultura da áfrica e das populações negras brasileiras nas escolas de ensino

fundamental e médio de todo o país. De acordo com Plano Nacional de Implementação

das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnicorraciais e para

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

165

o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2012), muitos sistemas de

ensino municipais, estaduais e mesmo privados ainda não adaptaram ou inseriram em

suas grades curriculares estes conteúdos, devido os problemas relativos a formação de

professores e a conscientização a respeito da importância nova temática.

Outra conquista do movimento negro, foi a criação do Estatuto da Igualdade

Racial, sancionado em julho de 2010 através da Lei 12.288. O Estatuto da Igualdade

Racial estabelece diretrizes para a implementação de políticas públicas de promoção da

igualdade de direitos para o enfrentamento da discriminação racial que atinge a

população negra. Essa é uma grande conquista, mas vale ressaltar que a luta não acaba,

pois a mesma continua para a efetivação e aprimoramento dessas políticas.

Considerações finais Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), o município de Teófilo Otoni, possui 26,57% da sua população auto-

classificada como branca, 61,06% como parda; 0,86 como amarela; 0,15 % como

indígena e 11,36% como preta. Como podemos observar, Teófilo Otoni agrega uma

proporção significativa de população afrodescendente, com um total de

aproximadamente 72% de negros (considerando a soma dos autodeclarados pardos e

dos autodeclarados pretos); além de abrigar quatro comunidades remanescente de

quilombo (sendo três rurais e uma urbana). No entanto, mesmo com este número

relevante de população negra, e contendo no seu território comunidades cujo processo

histórico está ligado a antepassados negros, o município não possui até o momento

nenhum movimento negro consolidado. Isso pode se dar por vários motivos que não se

excluem e podem até mesmo se complementar, tais como: falta de articulação entre os

que defendem a causa, a ausência de identidade negra e diversas limitações políticas e

culturais da região.

Conforme foi visto, há possibilidades da criação de um movimento negro na

cidade de Teófilo Otoni, entretanto acredita-se que o maior desafio é a articulação

daqueles que, negros ou não-negros, assumem uma postura anti-racista. Reunir pessoas

que, segundo Safira (1991), carreguem o germe da insatisfação. Só assim, será possível

mobilizar uma ação coletiva, de caráter contestador, articulando a criação de possível

movimento de abrangência sociopolítica.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Em âmbito nacional as políticas voltadas para as relações raciais implementadas

pelo Estado brasileiro são, em geral, paliativas, e muitas vezes reforçam uma lógica

individualista e descontextualizada. Porém, ao mesmo tempo, sempre reafirmam as

conquistas do movimento negro que somente após muita luta política consegue impor,

na agenda pública, elementos que garantem algum grau de igualdade para esta

população. Hoje, o grande desafio é colocar em prática essas políticas, como a Lei

10639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura da África e

Afrobrasileira, a titulação de terras dos quilombolas (prevista no artigo 69 dos Atos das

Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988), e o Estatuto da

Igualdade Racial. Leis essas também citadas nas entrevistas.

Voltando para a cidade de Teófilo Otoni, das quatro comunidades quilombolas

existentes em seu território, apenas uma possui a titulação de seu território ancestral.

Tais comunidades, após autorreconhecerem como quilombolas, começam a enfrentar o

jogo burocrático e a procrastinação legal seja para obter o reconhecimento oficial, seja

para alcançar a titulação territorial.

Diante de um quadro repleto de desigualdades e de grandes desafios para a

efetivação de direitos, vale destacar a existência da Universidade Federal dos Vales do

Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), fundada em 06 de setembro de 2005 com um

campus avançado em Teófilo Otoni, que integrou a Fafeid – Faculdades Federais

Integradas de Diamantina, fundada em outubro de 2002, que por sua vez foi resultante

da Faculdade Federal de Odontologia de Diamantina (Fafeod) fundada em 17 de

dezembro de 1960, pelo então presidente Juscelino Kubitschek. A UFVJM, através do

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/UFVJM criado em 2007, vem discutindo e

debatendo o racismo e seus reflexos na região. Além de estudar a realidade das

comunidades quilombolas locais. Em 2012, após a emissão da Lei 12.711/2012, que

regulamenta a reserva de vagas para a população negra nas instituições federais de

ensino, a UFVJM iniciou a implantação de um sistema de cotas raciais para ingresso do

corpo discente, uma vitória para Teófilo Otoni e toda a sua população negra.

As lutas por ação afirmativa são contínuas e árduas, mas aos poucos estas

políticas estão sendo colocadas em prática. As políticas afirmativas poderão levar as

gerações futuras a uma sociedade em que as oportunidades entre negros e brancos sejam

mais igualitárias.

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

167

No que tange aos agentes sociais entrevistados, constata-se que estes trabalham

com a perspectiva de criar o Conselho da Igualdade Racial na cidade de Teófilo Otoni,

mesmo com desafios e impedimentos colocados pelo poder político local.

Por fim, faz-se necessário esboçar algumas considerações sobre o Serviço

Social e sua relação com as questões raciais, pois ainda são restritos os estudos

realizados acerca dessa temática no interior dos cursos de Serviço Social, conforme

pode ser observado nos planos de ensino de algumas instituições federais.3 Este dado

inviabiliza a realização de um diálogo aprofundado com as categorias analíticas

defendidas pelo Projeto Ético-Político-Pedagógico da profissão, em especial no que se

refere às políticas de ação afirmativa e à assessoria aos movimentos sociais negros e

quilombolas.

Seria fundamental a realização de pesquisas sobre questão racial e movimento

negro no âmbito da formação em Serviço Social. Uma vez que, estudos nessa temática

se relacionam com as atribuições privativas do assistente social, podendo auxiliar, entre

outros elementos, na elaboração de políticas públicas conectadas com as demandas

deste segmento que se encontra sobrerrepresentado entre a parcela mais vulnerabilizada

da população nacional.

Conforme podemos observar na Lei 8.662, que regulamenta o exercício

profissional do assistente social, em seu artigo 4º afirma que é competência deste

profissional: elaborar, implementar, executar e avaliar projetos, programas e políticas

sociais; orientar e encaminhar providências a indivíduos; prestar assessoria aos

movimentos sociais entre outras tantas coisas. Ressalto tais atribuições para dar ênfase à

relevância de estudos que retratem o problema do negro no interior da formação em

Serviço Social.

As políticas sociais constituem o alicerce da profissão do assistente social,

sendo assim ressalta-se que as diversas expressões da questão social se manifestam nas

cidades e também no campo, como é o caso das comunidades remanescentes de

quilombo, das mulheres negras, da população negra em geral. Exatamente por isso, são

necessárias investigações que se aprofundem nesta realidade e insiram no cotidiano

profissional do assistente social a necessidade de pesquisar, elaborar projetos e

programas sobre grupos étnico-raciais, que desmistifique a falsa noção de que somos 3 Para a realização dessa consideração foi feito um levantamento via internet do plano de ensino de algumas instituições federais, como a UFVJM, UFRB, UFF e UFES. No interior dos cursos de Serviço Social oferecidos por essas instituições não há nenhuma disciplina obrigatória que discuta a questão racial e seus rebatimentos no contexto social como um dos reflexos da questão social.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

um Brasil sem preconceito, sem exclusão racial. Esta inserção contribuiria com a

reivindicação de direitos e para o processo de formação política emancipadora, justa e

igualitária.

Destaco, por fim, que o próprio Projeto Ético Político do Serviço Social tem

como princípio o reconhecimento da liberdade como valor central da profissão,

buscando eliminar qualquer forma de preconceito e de discriminação, de forma a

ampliar e consolidar a cidadania e a democracia. Esses princípios vão de encontro com

a questão racial, assim como com as diversas mazelas sociais expressas no interior das

comunidades rurais negras, reafirmando a importância e a necessidade de ações

interventivas do assistente social junto aos reflexos da questão social no espaço

socioeconômico rural.

Sidimara Cristina de Souza é Assistente Social, discente do Programa de Pós-Graduação em Política Social na Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] André Augusto Pereira Brandão é Sociólogo, doutor em Ciências Sociais e docente da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] Referências ALBERTI, Verena. ARAUJO, Amilcar : Movimento negro e “democracia racial” no Brasil: entrevistas com lideranças do movimento negro, disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/1504.pdf. Acessado dia 17 de abril de 2011 ás 14:00 horas. AMMANN, Safira Bezerra. Movimento popular de bairro, de frente para o Estado em busca do parlamento. São Paulo: Cortez, 1991. ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru (SP): EDUSC, 1998. BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/planonacional_10.6391-1.pdf. Acessado em 27 de setembro de 2012 ás 20h56min. Capacitação em Serviço Social e política social: Módulo 2. Brasília: CEAD, 1999.

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

169

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Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma democracia por vir1 Germano Nogueira Prado Mais que um raio em céu azul, as jornadas de junho(-outubro) de 2013 foram um

terremoto2 que, preparado silenciosamente nas profundezas por uma miríade de lutas de

base, abalou desde baixo o cenário seguro e de consensos mais ou menos tácitos e

consolidados da política eleitoral do Brasil Maior. Como um autêntico evento (político),

no sentido de Badiou, elas parecem ter produzido (mais de) uma ruptura ou rearranjo

nas coordenadas da situação; como um ato, no sentido de Zizek, elas parecem ter

introduzido no horizonte do possível (o que se julgava até então) impossível; no

horizonte do pensável, o (considerado até aqui) impensável.

Para nós, pensar (politicamente) o que foi aberto por esse sismo não equivale

simplesmente a formular teorias atestando se e em que medida “de fato” ele aconteceu,

mas, em verdade, consiste em apostar na declaração de que “algo aconteceu” e

experimentar práticas (inclusive “teóricas”, como a em que trabalhamos nesse

momento) que iluminem, descubram, desenvolvam e/ou criem as possibilidades aí

(apenas) vislumbradas. Nesse sentido, investigar um evento seria não (apenas ou

sobretudo) verificar “se é o caso” que ele aconteceu, mas reivindicá-lo como um ter tido

lugar de possibilidades que podem ser reativadas com vistas ao porvir – e, do ponto de

vista do evento (passado), o presente é sempre já um seu possível porvir.

Um dos aspectos desse abalo, desse deslocamento do terreno político ganhou

voz na expressão “crise da representação”. Trata-se de uma expressão equívoca ou,

antes, prenhe de sentidos. Como aposta, o presente trabalho – e o (meu) trabalho (no)

presente – é uma tentativa bastante franciscana de cartografar alguns desses sentidos.

Em um primeiro momento, pode-se entender por “crise da representação” a

desconfiança e a crítica mais ou menos desenvolvida e elaborada àqueles que

desempenham o papel de representantes na democracia parlamentar das sociedades

contemporâneas. Trata-se de uma crítica que se dirige à pessoa (pública e, não raro,

também à privada) do representante. Não entra em jogo aí – ou entra apenas

1 Texto-base da apresentação feita no dia 08.08.14, na mesa de encerramento do “X Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ – Jornadas de Junho”. 2 Cf. o Prefácio de Raquel Rolnik para a coletânea Cidades Rebeldes (São Paulo, Boitempo: 2013)

Germano Nogueira Prado

171

secundariamente – a crítica aos partidos como mecanismo envolvido em e na maioria

das vezes necessário à eleição dos representantes das várias esferas, bem como

tampouco ao sistema representativo como tal. “O sistema”, por sinal, quando aparece,

tende a ser compreendido como o agente anônimo ou o horizonte inelutável da

corrupção, no qual quase que irremediavelmente “todos os políticos são corruptos” – o

que serve menos para desculpar “os políticos”, que seguiriam criticáveis, do que para

alimentar o cinismo dos críticos que afirmam sem pudor que “se eles [críticos]

estivessem lá, fariam o mesmo.” Talvez não seja demais sublinhar que, nessa

perspectiva, a “crítica” ao sistema corrupto raramente se estende até os interesses

econômicos corruptores.

Esse primeiro nível em geral se articula e se confunde com o que poderíamos

distinguir analiticamente como um segundo nível, a saber, uma aversão genérica aos

partidos, que costuma ser acompanhada, aliás, de uma aversão a ou pelo menos de uma

desconfiança de outras organizações dos trabalhadores (como sindicatos, por ex.) e

movimentos sociais e populares (como os movimentos por terra e moradia, por ex.).

Reduzindo a política aos políticos profissionais, aos partidos e às eleições, a

combinação desses dois níveis costuma aparecer como uma rejeição da política como

um todo.

Em todo caso, esses dois primeiros níveis constituem uma espécie de senso

comum político mais ou menos difuso em diversas classes sociais ou, se quisermos, a

configuração mais ou menos dominante da opinião pública, criada e/ou fomentada pela

mídia empresarial(-militar) – opinião que pauta ainda em grande medida os facebooks e

twitters da vida. Ela se fez presente nas ruas em junho quando das maiores

manifestações (nos dias 17 e 20).

Nessas ocasiões, à pauta inicial contra o aumento da passagem (ocasião

“metonímica” para pautar a melhora do transporte público, reivindicar a efetivação do

direito de ir e vir e do direito à cidade) e a outras pautas que foram surgindo quando do

crescimento dos protestos, somaram-se a pautas como a do combate à corrupção, em

geral no sentido de uma moralização da política concentrada na exclusão de figuras

eticamente nefastas e partidos-quadrilha (em especial os tradicionalmente identificados

com a esquerda). Enrolados em bandeiras do Brasil, entoando o hino nacional, muitos

foram às ruas para protestar “contra tudo que está aí” – opondo o “povo brasileiro” aos

políticos e à política. Essa oposição assumiu ares de fascismo não só por acenar à

contraposição da unidade substancial de um povo a um inimigo a ser eliminado, mas

FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

também pelas “passagens ao ato” com a (tentativa de) expulsão violenta de militantes de

partidos políticos e a destruição de suas bandeiras (sejam os agentes dessa violência

“cidadãos revoltados” ou policiais infiltrados). Obviamente, nem todos os que

compartilham de uma postura “antipolítica” e até mesmo de certo nacionalismo estão

implicados em posturas fascistas e/ou de violência. Pelo contrário: a recusa genérica à

política e a aceitação genérica (e ainda assim perigosa) do nacionalismo vem muitas

vezes acompanhada de uma igualmente genérica repulsa a “toda forma de violência” –

subentende-se: nas manifestações, nas partes mais ricas e no centro das cidades;; “todas

as formas de violência” não sistêmica e não normalizada (e por isso invisível), contra

negras, pobres, presidiários, etc.

Não por acaso, foi mais ou menos nesse mesmo momento que a mídia

empresarial(-militar) passou de uma mera criminalização das manifestações para um

apoio seletivo, construído a partir da distinção entre “manifestantes pacíficos” e

“vândalos”. No mesmo movimento, a mídia tentou pautar ou, ao menos, sequestrar a

pauta do movimento, diluindo-a em reivindicações genéricas e/ou reacionárias – o que

não equivale à afirmação de que foi ela a causa da ocupação das ruas por esse tipo de

pauta; foi, antes, a ocupação mesma das ruas que parece condicionar a mudança de

estratégia da mídia.

Tanto quanto posso ver, nesses dois primeiros momentos teríamos no máximo

uma espécie de sintoma negativo da “crise da representação”, que joga fora o bebê (a

política) junto com a água do banho (o sistema representativo e, sobretudo, os

representantes que o personificam) e não parece capaz de propor alternativas – isso se

não considerarmos uma alternativa a mera ocupação “espontânea” das ruas ou a

considerarmos no máximo uma alternativa condicionada ao(s) sentido(s) (não fascistas,

não nacionalistas) dessa ocupação. Ao concentrar-se no negativo ou, ao menos, na “má”

negatividade, na negatividade “passiva” do “não tem jeito, sempre foi assim, etc.”, essa

postura acaba por reforçar o caldo de descrédito da política que tem sido cozido e

recozido pela opinião pública, isto é, pela opinião hegemonicamente empresarial(-

militar), ao menos desde a ditadura – o que tende a levar a mais desmobilização popular

e a entraves no aprofundamento da democracia. Todxs sabemos para quem vão os

dividendos da venda desse caldo.

Bem entendido, isso não significa, por outro lado, que a mera mobilização seria

o caminho para o aprofundamento da democracia: pois, como já foi sublinhado mais de

uma vez, sabemos pela história o perigo que se corre se tal mobilização se dá em

Germano Nogueira Prado

173

direção à unidade homogênea de um povo, que aplaina e/ou elimina as diferenças (e os

diferentes) e se ancora, de um lado, na eleição de um inimigo comum e, de outro, na

pessoa de um líder.

Mas a coisa não parou e não para por aí. É obviamente injusto com as jornadas

de junho reduzi-las a uma mobilização repentina e espontânea do povo como unidade

substancial que elege como inimigo os políticos, “contra tudo que está aí”, mobilização

que, além disso, teria um alcance político limitado e notas de fascismo (notas que, por

sinal, chegaram a ser acentuadas, de maneira assaz oportunista, pela “esquerda” no

poder). O que parece ter surpreendido o poder constituído (a mídia aí incluída), de um

lado, e militantes há mais tempo na rua3, por outro, foi não só o crescimento

exponencial das manifestações, mas também a pluralidade de pautas, pessoas e grupos

que, nesse crescimento, se juntaram a elas de maneira horizontal, sem que se pudesse

dizer que os atos eram liderados ou dirigidos por partidos, sindicatos ou mesmo

movimentos sociais.

Como bem notou Rodrigo Nunes, as jornadas de junho são um caso de

“movimento de massa sem organizações de massa”4 – movimento que não pode ser

reduzido nem a uma massa informe e homogênea (próxima a um povo como unidade

substancial, um Um que dissolve o múltiplo) nem a um conjunto de indivíduos

atomizados que se articulam de maneira horizontal e por laços “fracos”, “de ocasião”,

sem nenhuma organização mais duradoura, via facebook ou twitter. Muito antes, parece

que cabe utilizar um modelo de rede para analisá-las. Segundo esse modelo, as

mobilizações se adensariam em certos nós (comitês, redes, assembleias, movimentos,

núcleos, frentes, coletivos e mesmo, a certa altura, sindicatos e partidos) que não

chegariam a dirigir ou comandar de maneira hegemônica os protestos, mas que

formariam zonas de laços mais fortes que “contagiariam” uma “cauda longa” de laços

mais fracos, de indivíduos não ligados a nenhuma dessas organizações. Nesse modelo, o

“limiar de participação” entre a presença ocasional em protestos e o engajamento

efetivo seria mais tênue, de modo que a criação de laços mais fortes quando da

passagem das redes sociais as ruas seria facilitada. As “lideranças” aí seriam, sobretudo,

“lideranças imanentes” que surgiriam de maneira mais ou menos espontânea em ou

outro momento. E talvez seja o caso de falar não exatamente de “lideranças”, mas do

3 Cf., entre outros, o testemunho de Bruno Cava no seu livro A multidão foi ao deserto. 4 Diferenciação interna, intensidade de laço, contágio, cauda longa, limiar de participação, liderança distribuída, direção imanente, direcionalidade. Cf. http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3036

FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

protagonismo temporário e distribuído de certos grupos, de certas “minorias mais

ativas”, de modo que horizontalidade não se confunde com um plano homogêneo e

absolutamente igual, nem tampouco com o mercado de troca, a preços iguais, de

opiniões qualitativamente equivalentes.

Assim, embora o movimento se faça um, essa unidade é internamente

diferenciada, de modo que a diferença conta, sim. Talvez pudéssemos arriscar dizer que

a unidade das manifestações, sobretudo na medida em que se compreende a partir de

um viés classista, de esquerda, estaria justamente nesse organizar-se de modo a contar

com a diferença. Por outra: o comum produzido pelas lutas de junho é o da experiência

de uma outra organização das lutas e, quiçá, da comunidade como um todo – dessa

maneira, uma forma de organização em que todxs e cada umx respondem, sem a

mediação de representantes, pelos caminhos da comunidade. Nesse sentido, o “contar

com a diferença”, na medida em que abre espaço para uma diferença qualquer – a rigor,

uma singularidade qualquer – é indiferente às diferenças – e, assim, aponta para a

constituição de um modo de organização da comunidade que seria ancorado nessa “zona

de indeterminação”5 que, nos interstícios das identidades particulares6, constituiria todxs

e cada sujeito político (numa democracia que faz jus a seu nome) como universal na

medida em que (igualmente sob a condição de) singular. Por tudo isso, aliás, há quem

prefira tomar as jornadas não como uma revolta do povo (conceito que costuma

designar, mas não só, a unidade em cuja “vontade” se ancora a legitimidade do Estado),

mas um levante da multidão, compreendendo esse conceito como o de um “Um que é

Múltiplo”, o um que articula em si singularidades, as quais não se confundem com o

indivíduo, na medida em que podem ser suprapessoais (assembleias, coletivos, etc.) e

infrapessoais (uma conversa, um meme, etc.).

Nesse sentido, as jornadas de junho deslocaram o terreno político não só por

fazer emergir expressamente a questão da “crise da representação” em sua face negativa

e não raro reacionária ou, pelo menos, “antipolítica”, mas também – e aqui já

alcançamos outro nível de análise – por reativar no horizonte do possível e do pensável

uma proposta para esse impasse: a velha e boa ideia de democracia direta, sob novas

formas e condições materiais (proporcionadas, em certa medida, pelas mídias

alternativas e redes sociais, sobretudo aquelas que vêm nascendo por fora dos

oligopólios controlados por grandes capitais e do consequente potencial de controle daí

5 Cf. SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome, p. 34 ss, p 67 ss 6 Cf. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe.

Germano Nogueira Prado

175

decorrente). É sintomático que, mal ou bem (ou mal ou mal), isso apareça em várias

organizações tradicionais de esquerda: subtraído o cálculo eleitoral, mais de uma

declaração de membros de partidos de esquerda e mais de uma campanha tem como

eixo a leitura de que as jornadas clamam por democracia direta e participação popular7;

mesmo o PT no governo fez, ou vem tentando fazer, um movimento nesse sentido, com

o decreto que implementa a Política Nacional de Participação Social, amplamente

criticado por setores mais à direita – e por mais que isso seja uma piada ruim (ou de

mau gosto), é no mínimo curioso (ou irônico) que um governo, mesmo de esquerda,

tente instaurar a participação social através de um decreto...

Brincadeiras à parte, o fato é que essas atitudes testemunham a tentativa por

parte do Estado e dos partidos de se apropriar de e/ou de responder às demandas e

desejos que emergiram nas ruas de junho. Resta saber se as estruturas hierarquizadas e

ainda bastante ligadas à direção por lideranças pessoais, à noção de vanguarda e de

“quadros” específicos que tomariam a frente do processo político e revolucionário; resta

saber, enfim, se o Estado e a forma-partido, se o horizonte da política representativa

pode ir ao encontro dessas demandas e desejos e das formas de subjetividade e vida que

aparecem aí e manterem algo do horizonte da representação – ou se ir ao encontro de

verdade dessas formas, ao tentar realmente atender a essas demandas e desejos eles não

estariam fadados a uma autossabotagem e, no limite, à autodissolução.

Nesse sentido, mais sintomático (e mais emblemático) do modo como a “crise da

representação” emergiu nas ruas de junho de 2013 – como reinscrição e criação de

mecanismos de participação e democracia diretas à margem do Estado, mas em luta

com e contra ele pela ampliação de direitos (entre eles o direito mesmo à manifestação e

à participação política) –, mais sintomático e mais emblemático, digo, é o fato de que o

princípio das jornadas está ligado ao Movimento Passe Livre, que surge como: “...um

movimento social de transportes autônomo, horizontal e apartidário, cujos coletivos

locais, federados, não se submetem a qualquer organização central. Sua política é

deliberada de baixo, por todos, em espaços que não possuem dirigentes, nem respondem

a qualquer instância externa superior.”8

7 A bem dizer, Safatle, hoje no PSOL, já havia apontado para algo do gênero antes das manifestações quando, em A esquerda que não teme dizer seu nome, de 2012, coloca entre os princípios inegociáveis do “tipo” de esquerda que comparece no título do livro a “soberania popular” e argumenta que esta soberania se exerce propriamente com a construção de mecanismos de participação direta de todxs nas decisões políticas (p. 38 ss.) 8 Cidades rebeldes.

FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

Na mesma perspectiva, talvez pudéssemos arriscar dizer que, para além da

proteção com relação às forças do Estado (mutatis mutandi, usada também pelo braço

que visa garantir que este tenha o monopólio da violência “legal”, a polícia), as

máscaras e os dispositivos de anonimato onipresentes nas jornadas de junho são

emblemas de uma democracia compreendida radicalmente como uma forma de

organização de e para todxs e para ninguém – e que o avesso perverso disso é a ânsia da

mídia empresarial(-militar) e do aparelho estatal de “identificar” líderes e imolá-los em

praça pública, a título de bode expiatório e mecanismo de desmobilização popular. Mas

não se trataria aqui, ao que tudo indica, da mesma impessoalidade vazia da função,

presente em toda burocracia estatal; nesse sentido, talvez pudéssemos arriscar ainda um

(último) passo – ou antes, um salto –, que nos daria, quiçá, um vislumbre da “forma de

subjetividade” que me parece estar articulada com uma ideia de democracia tal como a

esboçada em mais de um momento desde as jornadas de junho – trata-se de uma forma

que gostaria de designar – e já o fiz algumas vezes mais acima – “singularidade”9.

De acordo com uma visão comum, a democracia é o “governo/poder do povo” e,

como somos todos povo, é o governo/poder de todos. A história nos mostra que é

perigoso compreender “povo” como um todo homogêneo e a ser conduzido por um

porta-voz da sua vontade única. A emergência de regimes totalitários no século XX

mostrou que isso leva à tentativa de eliminação violenta de quem aquela vontade não

compreende como (devendo ser) parte do todo – os outros ou as (ditas) “minorias”

(judeus, deficientes, ciganos, etc.). Por outro lado, as lutas por direitos promovidas por

esses outros, esses diferentes – negros, mulheres, homossexuais etc. – contra a

hegemonia de certa identidade dominante e normativa – para muitos, o homem adulto

heterossexual branco (cristão ocidental) – mostraram ainda mais claramente o quanto há

de violento também em sociedades (autoproclamadas) democráticas: o quanto o todo

forja uma identidade que esmaga o que, em relação a esta, se mostra diferente – e o faz,

sobretudo, pela privação de direitos. Nesse sentido, a luta dessas “minorias” (e

deixemos de lado o quanto pode haver de discurso da identidade hegemônica nessa

expressão) se estruturou, em linhas gerais, na constituição de identidades contra-

hegemônicas (movimento feminista, movimento negro, movimento GLBTT) que

reivindicavam a ampliação e efetivação de direitos. A esse quadro, pode-se acrescentar 9 Para o mesmo argumento que aparece em seguida, mas introduzido desde outra perspectiva, cf. os artigos “Democracia, diálogo, violência: notas de uma política da singularidade” (publicado em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3044) e “Notas de uma pedagogia da singularidade” (no prelo).

Germano Nogueira Prado

177

ainda a luta por direitos sociais e pela justiça social, que visa à inclusão daqueles que

estão separados dos que são “mais iguais que os outros” por outras barreiras de

diferenciação – a desigualdade social (a essa altura, à identidade de “homem branco,

etc.”, deveríamos acrescentar algo como “capitalista” ou “de classe média” ou

“burguês” ou...).

Assim, algo fundamental vem à tona nessas lutas: o fato de que aquele “todos”

da democracia é composto por inúmeras diferenças e desigualdades. E se, por um lado,

é desejável que estas, as desigualdades, sejam eliminadas, sejam elas de direitos ou

desigualdades socioeconômicas – é verdade que, por outro lado, a eliminação das

desigualdades está a serviço justamente da promoção das ou, ao menos, do dar espaço

àquelas diferenças (de sexo, de cor, de gênero, de orientação sexual, de culto, de

cultura). Assim, se a democracia é mesmo o governo de todos, são esses os “todos” que,

igualmente, mas em sua (possível) diferença10, tem que ter voz no diálogo que ela é.

Mais, ainda: se é verdade que a (auto-)afirmação dos diferentes enquanto

diferentes é estruturada como contra-identidade, e mesmo que este tipo de afirmação

seja estrategicamente fundamental para a luta contra uma identidade hegemônica, talvez

seja preciso cumprir mais um passo para além da lógica de identidade e diferença (ao

menos no que se refere à diferença que se define por uma identidade constituída). E esse

passo é justo o de uma “política da singularidade”, isto é: a ideia de que, radicalmente

compreendida e exercida, a democracia “serve para” criar o âmbito ou os âmbitos em

que a vida de todos e de cada um possa se realizar livremente em sua singularidade. Em

sua singularidade, isto é: em suas múltiplas e sempre imprevisíveis (e em última

instância incompreensíveis) possibilidades. A tais possibilidades, a tal singularidade são

possíveis, claro, múltiplas identidades e diferenças – mas ela(s) não se reduz(em) a

estas. A singularidade se define justamente por ser o que escapa à definição e, assim, é

puro possível. O seu signo talvez seja justo o poder de surpreender – o que é também a

possibilidade de não surpreender (o que, dependendo do que se espera, pode ser ainda

mais surpreendente...).

O tratamento da singularidade aqui só pode ser sumário. A singularidade é o

fundamento da democracia justamente porque aquilo em que todos (nós) nos

encontramos é justamente a singularidade – é nela que se pode encontrar, nesse sentido,

uma universalidade (concreta). Todos e cada um de nós é singular ou, antes, vive

10 Cf. BAKUNIN, M. “A educação integral”.

FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

singularmente. Pois “singularidade” é uma propriedade não (primordialmente) de

indivíduos, mas da vida ou, antes, dos âmbitos em que se dá vida: uma comunidade, um

grupo de amigos, uma conversa, uma sala de aula, bem como nesse conjunto de relações

consigo, com o próximo e com o diverso que cada um chama de “minha vida”. Como

fundamento da democracia e da vida de todos e de cada um (a rigor, fundamento da

democracia porque fundamento da vida de todos e cada um), a singularidade é o

passado da democracia, na medida em que aquilo que, em sua ideia, esta sempre já

pressupõe para vir a ser (o que é).

Mas, ao mesmo tempo, a singularidade é o sentido da democracia e, nessa

medida, o seu futuro. Pois ser singular é o poder ser de múltiplas maneiras de cada um,

de cada âmbito em que se dá vida. Esse caráter de possibilidade é o que dá a dimensão

de impossível fechamento (pleno) da vida enquanto tal e, assim, sua dimensão de

“eterno” porvir. Em correspondência a isso, a democracia é ela mesma sempre porvir:

nunca está acabada; é sempre, como a vida mesma pela qual ela se rege, uma tarefa,

algo por cujos sentidos a cada vez respondemos, ainda que não esteja sempre (se é que

está alguma vez) sujeita, como tal, à “vontade” de alguém. Os discursos que preferem

“construção da democracia” e/ou “democratização” ao substantivo “democracia” talvez

vislumbrem algo dessa dimensão.

Mesmo na nossa “democracia racionada”, para me apropriar de uma expressão

de Marighella11, talvez um sinal do caráter de abertura de uma democracia enraizada na

singularidade possa ser visto no fato de que, ao menos quanto ao princípio, o poder é

um lugar (de representação) aberto, vazio, que é de todos e de cada um, mas de

ninguém desde sempre e sempre determinado (em contraste com a monarquia, por

exemplo) – bem como na constatação, solidária a esta, de que um dos problemas está

justo no fato de que tal princípio não tem efetividade: são bem determinadas as

características que identificam o campo dos possíveis “representantes” de todos, à

diferença dos que não podem sê-lo. Assim, talvez o que “crise da representação” que

veio à tona nas ruas do Brasil e do mundo nos últimos tempos12 indique com clareza é

que o problema não está no campo dos representantes, que deveria ser mudado,

11 Cf.; http://www.viomundo.com.br/politica/lincoln-secco-e-o-risco-da-democracia-racionada.html 12 Os exemplos são abundantes: a recusa da presença de emblemas de partidos nas manifestações de 2013; o surgimento e a expansão, no bojo destas, dos mais diversos coletivos e assembleias horizontais e autogestionários; a greve dos garis e dos rodoviários no Rio de Janeiro, construídas à revelia dos sindicatos e contra a peleguice destes; a enorme abstenção nas eleições europeias de 2014, etc. E em tudo isso, a incapacidade da política partidária de produzir um emblema que “represente” as ruas, que “canalize” as suas demandas.

Germano Nogueira Prado

179

reestruturado e/ou ampliado, mas no conceito mesmo de representação, na diferença (na

desigualdade?) que este instaura e/ou pressupõe no “todos” que perfaz a democracia

enquanto tal, isto é, em sua ideia. Daí uma democracia direta poder ser, com pleno

direito, uma democracia radical, porque fincada na raiz mesma da democracia: o fato de

todos sermos igualmente (sob a condição de) singulares. Seja como for, o caráter aberto

da democracia, que provém do singular e caminha para este, o seu caráter de tarefa

parece indicar que, a rigor, ela nunca acaba de ser inventada13.

Creio que algo do gênero emergiu nas jornadas de junho: no comum das formas

de organização horizontal e de democracia direta o que se ensaia é uma comunidade em

que a singularidade tenha livre trânsito. Paradoxalmente, justo aí parece que a

democracia tende a ser não ligada a outro nome próprio – menos ainda a um ou outro

líder – , mas a construção do lugar comum de todxs e de cada um, para todxs e para

ninguém – ou, antes, para falar mais uma vez com Agamben, o lugar comum de uma

singularidade qualquer14.

13 O que, considerando a capacidade de se autoinventar do capitalismo e a sua construção e reconstrução de identidades, sua capacidade de desterritorialização e reterritorialização, parece colocar a democracia em uma espécie de (perigosa) “homologia”, de uma espécie de (perversa) “semelhança formal” com o capitalismo – diante da qual talvez seja preciso insistir nos vetores inversos que “governariam” cada um desses sistemas (universalidade abstrata do capital X universalidade concreta do singular...). O que, claro, talvez não baste para pensar a relação entre um e outra. Em todo caso, essa relação não cheira à velha ideia marxista, retomada por Negri, de que o capitalismo engendra em si seu fim quando produz o comum da cooperação ((do capital) cognitiva(o)) que acaba por “dispensar” a figura do capitalista? 14 Ver A comunidade que vem (Belo Horizonte: Autêntica, 2013)

Resenhas

Murilo Duarte Costa Corrêa

181

Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia Andityas Soares de Moura Costa Matos Belo Horizonte: Via Vérita, 2014. Elogio do intempestivo Murilo Duarte Costa Corrêa

“Filosofia Radical e Utopia”, de

Andityas Soares de Moura Costa Matos,

é talvez o primeiro livro de filosofia

política escrito por um jurista há muito

tempo no Brasil. A filosofia que esse

texto seminal propõe é simultaneamente

radical e utópica porque, à sombra de

um só gesto, esboça tanto os elementos

de recusa quanto os signos

genuinamente positivos de uma outra

filosofia do direito, pensada a partir de

seus vetores políticos e das formas de

vida que estes engendram. O amplo

campo de jogo conceitual que Andityas

mobiliza, junto à notável plêiade de

leituras a cada vez cerzidas, forjadas e

articuladas, tensiona uma linha de

ruptura em direção ao Fora e, a um só

tempo, manifesta o desejo candente de

rasurar de maneira indelével os

referenciais cômodos que constituem o

senso comum jusfilosófico brasileiro.

O texto assume o corajoso

projeto de constituir uma filosofia de

ruptura no interior dos quadros

universitários. Eis o que faz deste livro

mais que uma vibrante experiência de

tessitura de horizontes pré, anti e

metaconceituais, mas o movimento

constituinte de um gesto filosófico

original. A filosofia jurídica brasileira, a

exemplo da filosofia do direito cosidetta

universal (anglo-saxônica e europeia

continental), permaneceu por muito

tempo presa das reduções

epistemológicas que a consideravam ora

como um apêndice da Teoria Geral do

Direito, ora como um departamento de

discussões metafísicas especializadas de

Teoria da Justiça; agora, encontra em

“Filosofia Radical e Utopia” uma

proposta amadurada, embora sempre e

já a caminho, de ler a ontologia dos

fenômenos jurídicos sob a chave de sua

constitutividade inerentemente política.

Se boa parte da tradição

metafísica contemporânea ocupa-se do

missing link entre ontologia e política, o

advento de uma Filosofia Radical não se

furta a reconhecer e a assumir em

termos contrahegelianos, antidialéticos

e pós-marxistas a precisa tarefa de seu

tempo: pensar, nas fendas de um

horizonte temporal irreconciliavelmente

fraturado, uma filosofia radicalmente

atrelada ao “tempo-de-agora”, mas que

não deixa de nutrir-se das cinzas da

memória imensa e extemporânea das

ELOGIO DO INTEMPESTIVO

lutas, nem ignora a tarefa de constituir-

se na indeterminação e na virtù de uma

filosofia que vem.

Toda a multiplicidade de que o

livro se compõe pontilhada por ensaios

relativamente autônomos entre si e

povoada por categorias multitudinárias,

move-se em um solo unívoco de

sentido: o questionamento aberto e

radical das estruturas ocidentais

modernas de pensamento. Se, como

quisera Giorgio Agamben (2008 : 111),

“toda cultura é uma experiência do

tempo, e uma nova cultura não é

possível sem uma transformação desta

experiência”, é através das potências

revolucionárias da recusa que as

relações duracionais e políticas

impostas pelo trabalho, pelo espetáculo

e pela especulação podem ser

transformadas. Grande linha de fuga no

imenso quadro dissolvido do Sein und

Sollen (Ser e Dever-Ser), a utopia não

assinala o lugar do sonho ou do

possível, sem relação com o real; antes,

define os múltiplos campos diferenciais

em que o por vir – como uma “memória

que nunca foi presente”, na feliz

expressão de David Lapoujade –

irrompe na atualidade sob o signo

ingovernável do intempestivo.

A dialética é, sobretudo, um

modo de se relacionar com a

temporalidade e com os eventos que

nela se produzem. Não é possível

descentrar essa lógica na direção da

imanência, da singularidade e da

diferença penetradas de multiplicidades

senão por meio de um gesto negativo

inaugural que recusa os efeitos

metafísicos unificadores e totalizantes

da Aufhebung hegeliana. Henri Bergson,

e mais tarde Gilles Deleuze, criticaram

a dialética por não enxergarem nela

mais do que um falso movimento

(Deleuze 1966 : 44; Hardt 1996 : 39 ). É

contra as pretensões de concretude

pressupostas por este falso movimento

que uma Filosofia Radical se erige, em

função dos movimentos reais e de sua

pluralidade desconcertante de

racionalidades/irracionalidades.

Ocupações, manifestações, ações

diretas, greves gerais, desobediência

civil e toda forma encarnada de recusa

do sequestro das potências constituem o

corpo teso, mas jamais o fundo, capaz

de abrigar multidões e efetuar a lógica

do acontecimento que uma Filosofia

Radical deve produzir como

antidialética.

É da emergência das ações de

contestação e das contracondutas que se

deduz que uma Filosofia Radical “só

pode viver na dimensão da utopia”

(Matos 2014 : 64). Entretanto, jamais

poderemos compreendê-la, a contrapelo

de seu significado etimológico, como o

Murilo Duarte Costa Corrêa

183

lugar tão obscuro quanto para sempre

aberto, penetrado de perigos e de

promessas, sem operar reversões na

própria ontologia;; é preciso “pensar a

negação com a mesma dignidade

ontológica reservada à afirmação”

(Matos 2014 : 69), deslocando o

referencial aristotélico da concepção de

potência. Ponto luminoso em que a

potência de não, de Agamben, encontra

um Marx antidialético e um Debord

ontólogo, assume e rasura as ilusões do

tempo-de-agora, rejeita as “razões da

crise” e suas medidas opressoras

travestidas pela necessidade, exerce

uma função contraideológica e, a um só

tempo, capaz de gerar anticampos: esses

“lugares físicos e reais” que reúnem “os

não-lugares da impossibilidade”, os

excessos de sentido que convocam a

outros mundos monstruosos e possíveis

suturados pelos modos de vida para a

servidão e o capital. O anticampo é uma

geografia da revolta traçada em

oposição ao capital, mas também

voltada contra as armadilhas do

marxismo progressista, incapaz de

pensar a revolução exceto sob o tecido

cerrado das teleologias histórico-

dialéticas – unificação conservadora

superior que a Filosofia Radical rejeita

por princípio.

É no seio dos anticampos que se

avaliam os potenciais de transformação

das novas formas de imaginação social

e política para além do Estado e dos

modos de vida para o trabalho, o

espetáculo, a especulação. O

endividado, o midiatizado, o

securitizado e o representado encarnam

as formações subjetivas efeitos da

reprodução em bloco dos referenciais

políticos, sociais, econômicos e

ideológicos operados pela nova

temporalidade que o espetáculo

implicaria, segundo a chave ontológico-

política segundo a qual Andityas relê as

principais teses de Debord.

O que nos impede de

compreender adequadamente as ilusões

que emanam dos centros difusos de

poder? Nada como um puro efeito

ideológico, nem uma falsa consciência

geral, mas os efeitos políticos de uma

ontologia curto-circuitados com os

efeitos ônticos de uma política; isto é, o

fato de nos encontrarmos presos ao

“circuito que unifica repartição social,

trabalho e violência” (Matos 2014 :

122), na medida em que permanecemos

expostos à temporalidade do espetáculo

contínuo, permanente e irreflexivo. Não

se trata de um tempo circular ou linear,

mas progressivo, sem início ou fim,

cujo desenrolar permanece

integralmente condicionado pelo poder

do capital, que dispõe de uma infinita

capacidade de reconfigurar e modular o

ELOGIO DO INTEMPESTIVO

passado e fechar qualquer possibilidade

de tempo futuro em um presente de

repetição nua: “resta apenas um tempo

presente amorfo e artificialmente

estendido diante de si mesmo [...]”

(Matos 2014 : 152).

Eis o que explica por que as

novas dinâmicas das manifestações e

protestos populares foram capazes de

abrir anticampos em espaços e por

durações limitadas, mas os eventos

foram logo reconfigurados e

desacreditados pelas massmedia. Sob

esse aspecto, uma das teses encriptadas

em “Filosofia Radical e Utopia” poderia

ser enunciada diretamente: Toda

metafísica é uma política. O que a

temporalidade do espetáculo dá a ver é

que as capacidades de sequestrar,

modular e controlar a temporalidade dos

eventos surgem como instrumentos

definidores de um “tempo-de-agora”

contra o qual resistir, pensar e lutar.

Todavia, não é possível resistir ou lutar

de modo eficaz sem pensá-lo – nem

coagido por sua lógica insidiosa.

O que a Filosofia Radical recusa,

em cada um de seus aspectos, é a lógica

intrassistêmica. Nesse sentido, ela se

aproxima de um pensamento do Fora

absoluto, segundo o qual mesmo os

direitos humanos e fundamentais

garantidos em documentos formais

serviriam mais à mistificação, enodada

a um processo irrepetível de afirmação

político-econômica burguesa, que à

liberação de contingentes oprimidos

pelas múltiplas formas de violência

sistêmica. Não se poderia fazer uma

revolução anticapitalista nos moldes das

revoluções burguesas. Seria preciso

inventar um anticampo como

singularidade absolutamente nova,

produzir em comum “o verdadeiro

estado de exceção”, a que Benjamin

aludia em suas Teses sobre o conceito

de história.

Porém, o que podemos encontrar

do outro lado? Em que consiste o lugar

da utopia que o tempo presente marca

com o signo ilusório do impossível – e

que maio de 68 já havia desafiado com

seu “Soyez réalistes! Demandez

l'impossible!”? A possibilidade de

constituição de uma comunidade

humanas sem divisões entre oprimidos e

opressores. Uma nova configuração

para o princípio de imanência do poder

no corpo social, que Clastres havia

descoberto nas sociedades primitivas,

cuja única lei constitui a própria

ontologia do ser social selvagem: não

cair de amores pelo poder, nem se tornar

presa de seus apelos. Assim como entre

os índios, cuja antropologia política

antimoderna Clastres soube

compreender com precedência, e que

Deleuze e Guattari estenderiam pouco

Murilo Duarte Costa Corrêa

185

tempo depois, uma pulsão igualitária e

anárquica percorre a totalidade do corpo

social de uma comunidade que vem.

No entanto, torna-se impossível

estimar o plural de que esse devir é feito

sem conjurar os referenciais estatalistas

que interditam a política e as vias ativas

e passivas de uma violência criadora.

Eis o que Clastres havia percebido:

muito antes de incorporar-se aos

aparelhos militares de Estado, a

máquina de guerra primitiva voltava-se

contra a própria formação do Estado,

cuja emergência política assinalava

virtualmente o aparecimento – contínuo

apenas no imaginário etnológico

impreciso da modernidade ocidental –

das sociedades divididas entre

governantes e governados, opressores e

oprimidos. Disso, derivam duas

distensões capitais: (1) ao contrário do

que afirmaram Marx e Engels, a

dominação econômica não precede a

dominação política – nenhum homem

seria obrigado a trabalhar mais do que o

necessário para bem viver senão por um

efeito de poder e de sujeição – o que

implica que o Estado não é um efeito da

dominação econômica, mas que a

dominação econômica e o próprio

advento do Estado são efeitos da gênese

da hierarquia; (2) o monopólio estatal

da violência, celebrado como marco

inaugural das civilizações ocidentais

modernas, não é apenas um instrumento

de conservação da ordem jurídico-

política. Seu advento assinala o “mau

encontro” absoluto, o instante em que o

poder abandona a imanência do corpo

social e constitui um poder separado e

uma sociedade dividida. A violência e o

poder que transcendem o corpo social

constituem a origem da divisão entre

senhores e escravos.

Se os modernos idealizaram o

Estado como o agente monopolista de

uma violência sagrada – subtraída ao

uso comum dos homens, segundo uma

inventiva definição de Agamben –, uma

Filosofia Radical assume a tarefa

contramoderna de dessacralizar a

violência e inventar para ela um uso

comum, inapropriável e novo. Assim

como a política já não pode ser

confinada ao Estado, tampouco “as

violências” poderiam sê-lo.

Não se trata de fazer da

violência a dimensão privilegiada da

política, nem de descurar do Direito e

da lei, mas de perceber, como Andityas

registra, que “o direito não está na lei,

mas em alguma dimensão que a

antecede e a suspende […]. O segredo

do nómos passa pela violência que os

juristas contemporâneos cinicamente

tentam esconder sob as formas e os ritos

de uma racionalidade comunicativa já

esgotada” (Matos 2014 : 261).

ELOGIO DO INTEMPESTIVO

Descrever que a condição

contemporânea de exercício de poder

consiste em um “estado de exceção

como paradigma de governo” significa

precisamente que a força da lei

denodou-se de sua forma; que esta força

informe produz efeitos normativos

puros. A outra lei funda-se na

imanência radical do poder ao corpo

social, na pulsão igualitária utópica e na

intempestiva guerra declarada contra as

divisões que interdita, por meio de um

gesto unívoco, o desejo de poder e a

servidão voluntária. Limiar em que

Clastres encontra Agamben; em que a

lei da selva é lançada no ecúmeno e no

por vir que os limiares de positividade

de uma potência de não descerra: “A

marca sobre o corpo, igual sobre todos

os corpos, enuncia: 'Tu não terás o

desejo de poder, nem desejarás ser

submisso'”. Elogio da imanência

intempestiva do desejo: única lei do

mundo.

Murilo Duarte Costa Corrêa é doutor (USP) e mestre (UFSC) em filosofia e teoria geral do direito. Professor de filosofia política de Direito da UEPG. Autor de “Direito e ruptura: ensaios para uma filosofia do direito na imanência” (Juruá, 2013) e de “Filosofia Black Bloc”, no prelo. Referências

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Bruno Cava

187

Korpobraz; por uma política dos corpos. Giuseppe Cocco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. A terceira estética de Glauber Rocha Bruno Cava Pobreza e subdesenvolvimento

Sob um olhar paternalista, os

pobres são tratados como oprimidos que

dependem de uma instância externa para

se organizar e lutar por direitos. Uma

versão à esquerda desse paternalismo

consiste em rebaixar os pobres na mesma

medida em que os elogia. Trata-se de

uma postura ambígua que, se de um lado

festeja a massa alegre e cheia de vida, de

outra a confina num mundo simplório.

Para Giuseppe, na esteira de

Glauber Rocha, é preciso romper com

essa concepção redutora do pobre e

resgatá-lo como sujeito político. Para

eles, o pobre não é povão. Os pobres não

constituem uma categoria sociológica,

em oposição às elites e sob a

intermediação de interesses por uma

classe média inexoravelmente

inautêntica.

É preciso romper com a tradição

que, de Gramsci às esquerdas da

América Latina, fomenta uma

consciência nacional-popular com

pretensões de galgar o poder, mas que

vincula sua trajetória à adesão das

massas conscientes de sua missão

histórica. O pobre aí não passa de

matéria bruta que, no seio do trabalho de

base, ganha contornos de classe para

empreender a luta contra a burguesia.

O pensamento de

Giuseppe/Glauber não separa a pobreza

da questão do subdesenvolvimento. O

pobre é, imediatamente, o

subdesenvolvido. Nisso, seguem a trilha

de Oswald de Andrade, cuja

antropofagia significava, antes de

qualquer coisa, reconhecer a dimensão

positiva do pobre. Em vez dos modelos

europeístas do desenvolvimento, é sair

do subdesenvolvimento pela via do

próprio subdesenvolvimento, sua

riqueza, sua positividade.

Existe uma estranha afinidade de

fundo entre quem, à esquerda, enfrenta o

subdesenvolvimento com as várias

pedagogias da conscientização, e quem

atribui cabalmente ao pobre o caráter de

vergonha nacional. A mente colonizada

tenta expulsar o subdesenvolvimento

pela porta, mas ele retorna pela janela e,

uma vez infiltrado na má consciência,

leva o subdesenvolvido a cobiçar os

limites inferiores da cultura do

colonizador, em papel de coadjuvância

— que é o máximo que ele vai ter em

termos de reconhecimento pelos

senhores que escolheu para si.

A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

A potência dos pobres

Assumir a dimensão positiva da

pobreza, da dor, da fome significa

cultivar as insuficiências e esforços, para

deles fazer uma força motriz de recriação

do sensível. Isto conduz para além do

desenvolvimento e seus modelos.

Nenhuma concessão, aqui, a fatalismos

que se resumem a explicar a pobreza por

meio das suas privações, tomando assim

a falta por natureza e, portanto, destino.

Existe uma potência do

subdesenvolvido.

A estética na condição do

subdesenvolvimento não pode coadunar

com exotismos que enxergam sujeitos

fabulosos entre os pobres enquanto os

apartam da capacidade de abstração.

Desrespeitosa a diretriz de “estar com o

povo, minha arte comunica”, tanto

quanto qualquer tendência comercial de

“atingir o público”. Tão adequada ao

primarismo preguiçoso que costuma se

esconder nas saias da falsa generosidade,

ao pretender “falar coisas simples que o

povo entenda”. Daí o combate do

cineasta baiano contra a chanchada, que

acha genial a desgraça e morre de rir da

miséria, mas também contra o realismo

socialista, arte comandada por burocratas

de partido.

Com Glauber e Giuseppe, o

problema da comunicação precisa ser

substituído pelo problema da criação,

que cria o público de que precisa. Criar é

revolucionar, autodotar-se das

ferramentas e condições com o que se

poderá subverter o pântano apassivador

em que a libertação está de antemão

frustrada. Precisa-se de um salto

qualitativo, um gesto de convocação que

abre as cortinas para o teatro da grande

política.

Disso decorrem três estéticas, três

inquietações materiais de um tempo de

luta que pontuam o percurso de Glauber

Rocha, inquietações que anseiam por

dilacerar expressão e conteúdo.

A primeira estética: eztetyka da fome

A fome aqui é o expressivo dado

positivo, retomado do tema oswaldiano

da devoração. Manifesto escrito em

1965, sob o rugido do alastramento de

guerrilhas, a resistência argelina, o

imediato pós-golpe no Brasil, os ventos

das revoluções globais.

A eztetyka da fome transpõe à

criação o esquema estrutural da obra de

Franz Fanon, o teórico das lutas

anticoloniais. Essa é sua premência e sua

intempestividade, mas também será sua

limitação.

Bruno Cava

189

A saída da primeira estética é a

violência do subdesenvolvido. A

violência do oprimido guarda assimetria

em relação a do colonizador. Além de

condição material, a miséria penetra no

espírito e intoxica o colonizado do

veneno da impotência. A fome produz

fraqueza e delírios. É pela violência,

somente, que a grande saúde reanima o

corpo dos pobres, reunindo-os na luta.

Daí, em Deus e o diabo na terra

do Sol (1964), os revolucionários

primitivos sob a liderança cangaceira de

Corisco. Quem não aspira à violência,

condena-se como Paulo Martins, de

Terra em transe (1967), a oscilar entre

uma burguesia indolente e o populismo

rasteiro da esquerda partidária, ao final

sozinho de fuzil na mão.

Em termos estéticos, o lance é

violentar, por meio do horror, do grito,

da feiura, a sensibilidade forjada pela

cultura desenvolvida: sejam aqueles que

saboreiam a miséria como dado formal,

sejam os que a instrumentalizam para

seus projetos socialistas de poder.

Por isso, o povão, à esquerda ou

direita, é criação da burguesia e deve ser

incessantemente profanado enquanto

depósito de esperança. Isso Glauber sabe

fazer, em sucessivas e dolorosas

provocações pelo que jamais ele seria

perdoado.

A segunda estética: eztetyka do sonho

As guerrilhas foram esmagadas,

Brasil vive Médici e o mundo das lutas

padece o refluxo de maio de 1968, além

da morte de Hendrix. Legitimar a

violência que nasce da pobreza não

desencadeou as forças revolucionárias

que ela abriga, perdendo-se num

esquematismo sem corpo. Assim como

não há conteúdo revolucionário sem

estética revolucionária, a insuficiência

política ressoa num esgotamento

estético. A geração faz uma virada.

Em 1971, Glauber lança o

manifesto da segunda estética, em

resposta à recepção do filme Dragão da

maldade contra o santo guerreiro (1969).

A preocupação, agora, é sondar o

subsolo mítico do inconsciente

subdesenvolvido. Se os primeiros filmes

ainda estão assentados sobre uma

didática e uma épica, explicação e

estímulo, Brecht e Eisenstein; nos anos

70 o cineasta se desvencilha

sucessivamente da dialética histórica,

mais interessado em ir diretamente ao

manancial afro-indígena-brasílico.

Nenhuma pedagogia, por favor.

Momento em que Glauber faz a digestão

do furacão tropicalista que acabara de

passar. Em Vento do leste (Godard,

1969), entre o caminho das vanguardas

europeias e a construção do divino &

A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

maravilhoso cinema do terceiro mundo,

Glauber escolherá o último. A razão que

conhecemos é burguesa e ela fala mais

alto no estado. A saída da segunda

estética é o inconsciente. O conteúdo

procura assim a energia subversiva, a

afirmação do Outro em relação à

racionalidade moderna.

Fanon é deixado de lado. O

escritor antilhano repudiava o lado

místico da África por considerar que

danças e rituais desperdiçavam

importantes energias revolucionárias. Já

o baiano, ao contrário, prefere a

macumba ao panfleto e vê a razão de

esquerda herdeira da razão das

revoluções burguesas.

É por isso que Glauber, ao

conhecer a Teologia da Libertação, não

vai interpretá-la como uma conversão de

uma fração do cristianismo ao marxismo,

mas uma sincretização mística do

próprio marxismo. A TL significa antes

uma potenciação dos socialistas graças à

matriz afro-índio-brasílica do

cristianismo, do que dos cristãos pela via

do socialismo.

A estética revolucionária,

portanto, só pode ser antirrealista,

inclusive antineorrealismo e o nacional-

popular à italiana. Tal nova atitude de

ruptura transborda nos filmes Leão de

sete cabeças e Cabeças cortadas (ambos

de 1970). A referência não é mais

Rosselini, mas Buñuel; não mais Brecht,

mas Artaud. E novamente Oswald.

A terceira estética: eztetyka do êxodo

No último capítulo de

KorpoBraz, Giuseppe revolve os escritos

de Glauber perto da morte do cineasta,

em 1981, para assinalar uma terceira

estética ou “terceyro modelo”, “terceira

força: imagens e sons do povo”, nas

palavras do diretor. A longa ressaca da

década de 1970 implodiu o imaginário

revolucionário e a reestruturação do pós-

fordismo parece empurrar o horizonte de

lutas até o inefável.

De volta ao Brasil, Glauber

parece exilado em seu próprio país. Por

um lado, apartado de condições materiais

de produção, por outro, execrado pelas

esquerdas sobreviventes como maldito

irresponsável.

É nessa situação de total

precariedade quando emerge Idade da

Terra (1980), o último filme. Próximo do

muralismo, num encadeamento veloz de

temas, Idade da Terra encerra um brutal

esforço de metabolização.

“Síntese”, sobretudo, da máxima

contradição entre a gradiosidade de um

projeto, repleto de amplas panorâmicas

em Cinemascope, e a dissonância de sua

execução precária. O que aliás

acompanhou toda a cinematografia de

Bruno Cava

191

Glauber, na contingência de atuar

simultaneamente como diretor, produtor,

publicitário, crítico de si mesmo, tudo.

Depois do cristo anárquico de

Buñuel e do materialista de Pasolini,

Idade da Terra é protagonizado por

quatro cristos (negro, índio, europeu e

guerrilheiro) e um diabo (Brahms, o

imperialista). Nenhum resquício de

pedagogia das massas ou fábulas de

consciência, apenas a abertura do leque

de intensidades, que saltam das

paisagens monumentais e frustram

sentidos lineares. O mito de Cristo,

miscigenado pelas raízes afro-índio-

brasílicas, proporciona a energia vital

para, uma vez mais, recompor o sensível

das lutas de seu tempo.

Entre birita, pó, carnaval, torre de

televisão, o vasto Planalto Central, o

desfile de corpos selvagens, minoritários,

infartados, operários, utópicos. A

“síntese neobarroca” querida por

Glauber se mostra, afinal, um grande

afresco da brasilidade menor que se

recompunha na virada para os anos 80,

limiar da crise da ditadura e da aparição

de novos movimentos de lutas.

Giuseppe enxerga, neste último

Glauber, a terceira estética. O momento

em que as forças emergentes se

reconfiguram e escapam das formas

nacionalistas e autoritárias. Não mais a

libertação pela violência do

subdesenvolvido, em Fanon; nem a

libertação do inconsciente impregnado

nas formas culturais do colonizador, num

movimento de dessublimação do tipo

freudiano-marcusiano.

A libertação do corpo

subdesenvolvido começa a dar-se na

potência de arranjos sincréticos de alta

intensidade. Recompõe-se na potência

das culturas de resistência, lutas

indígenas, raciais, das mulheres, de um

sindicalismo de novo tipo.

Marcantes na vida cultural desse

período, além de Idade da Terra, o

trabalho de copesquisa de um Eder

Sader, ou então a passagem avassaladora

de Felix Guattari com Suely Rolnik

pelos novos coletivos, em 1982, numa

história até hoje subestimada.

Devir-brasil

No percurso glauberiano, da

primeira à terceira estética, de Deus e o

diabo à Idade da Terra, a fragmentação

do Brasil é exponencial, resultado das

miscigenações cruzadas. Estamos longe

da literatura de formação nacional ou de

um Gilberto Freyre, já que a síntese não

admite uma substância propriamente

brasileira, por exemplo, a democracia

racial. Admite, isso sim, o que Giuseppe

chama de devir-Brasil, que

imediatamente se contrapõe aos projetos

A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

neocoloniais de país, à esquerda ou

direita.

No devir-brasil, a mestiçagem

não forma um corpo da nação, como

desejado pelos ideólogos do povo. O

povo está molecularizado em

microforças minoritárias, engendradas

dos fluxos do Atlântico, da afrodiáspora,

dos devires indígenas e dos imigrantes

europeus, das tradições caboclas, da

cristianização descontrolada. Nesse

processo, a classe trabalhadora primeiro

virou suco e depois gás, proletariado

nômade.

O capital vem atrás, para capturar

a fuga, perseguindo-lhe as linhas de

fragmentação. O salário moleculariza-se

em relações de serviço, flexíveis,

enquanto a metrópole se torna a nova

fábrica, numa difusão generalizada de

circuitos produtivos e circulatórios. Essa

mutação qualitativa força as tecnologias

de controle a funcionar no aberto, em

variação contínua.

As sociedades de controle, de que

fala Gilles Deleuze, passam a funcionar

por meio da empresa, das finanças e da

publicidade, formas moduladas de

controle que operam com distribuições

esparsas, moleculares, ordenando nuvens

estatísticas. Tudo isso que, no Brasil,

transformou o país nas décadas

seguintes.

Mas KorpoBraz contrapõe-se

escapando. A saída da terceira estética,

nem violência nem sonho, é a fuga.

Menos fugir da pobreza, do que “fazer a

pobreza fugir”, nos termos de Rociclei

Silva, citado por Giuseppe.

Quando a violência direta é

capturada numa dialética estrutural, num

jogo estéril entre imperialismos (tema do

Império); quando o capitalismo monta

seu cativeiro de sonhos incorporando-os

à dinâmica do consumo (tema do

Controle); a terceira estética vai ao

deserto para recompor-se com seus mil

cristos entre carne e libertação. Não é

mais possível projetar o êxodo num lugar

mítico: é corpo de imediata presença,

como queria Glauber.

Bruno Cava é autor de “A multidão foi ao deserto” (2013), escritor e pesquisador associado à rede Universidade Nômade, bloga no quadradodosloucos.com.br

Resumos

RESUMOS

PODEMOS, ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA: NEGRI OU LACLAU? Bruno Cava RESUMO: O artigo desenvolve uma análise situada da experiência de formação do partido Podemos no âmbito da Espanha pós-Movimento do 15 de Maio. A análise material procede das relações de força conforme duas configurações possíveis do enjeu: de um lado, a quadratura populista, a partir dos conceitos do teórico pós-marxista argentino Ernesto Laclau; de outro lado, a tomada do efeito-Podemos por meio das teorias pós-estruturalistas da multidão, de Toni Negri e Michael Hardt. Trata-se, assim, de tomar o Podemos para além da interpretação populista-hegemonista, de chave laclauliana em termos de teoria do discurso, para avançar numa concepção imanente do fenômeno. Pensa-se, dessa maneira, num Podemos além Podemos, como continuação do processo de lutas do 15M noutra realidade histórico-política, em que ele reabre os desafios e repõe os problemas do poder constituinte. PALAVRAS-CHAVE: 1. Teoria da multidão. 2. Ernesto Laclau. 3. Antonio Negri. ABSTRACT: The article develops an analysis located the party training experience we can within the Spain post-Movement 15 May. Material analysis proceeds of power relationships as two possible configurations of enjeu: on the one hand, the populist square , from the concepts of the Argentine post- Marxist theorist Ernesto Laclau ; on the other hand , the taking of the effect we can through poststructuralist theories of the multitude, Toni Negri and Michael Hardt. We are thus taking the Can beyond the populist - hegemonic interpretation of laclauliana key in terms of the theory of discourse, to advance an immanent conception of the phenomenon. It is thought that way , in addition We can We can , as a continuation of the process of 15M struggling in another historical- political reality, as it reopens the challenges and restores the constituent power problems. KEYWORDS: 1. Multitude theory. 2. Ernesto Laclau. 3. Antonio Negri.

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E A REPÚBLICA PLURINACIONAL DA ESPANHA

Salvador Schavelzon RESUMO: Neste trabalho ensaiamos uma aproximação ao projeto político Podemos, aparecido na Espanha em 2014, com os processos políticos “progressistas” da América do Sul, iniciados nos anos 2000. Avaliamos o desenvolvimento de uma proposta com ênfase na política social e o Estado, que da conta de um imaginário político-discursivo compartilhado entre as experiências mencionadas. Tentamos identificar este lugar político que busca construir uma ferramenta eleitoral que abra uma nova fase política visando uma saída da austeridade e do neoliberalismo se afastando, ao mesmo tempo, de uma política que podemos identificar com as ruas; com projetos de autodeterminação, autonomia e comunidade; com redes e horizontalidade para a gestão do comum. Sugerimos que o processo constituinte boliviano (2006-2009) tem especial interesse para uma caracterização do projeto político em questão, como aparece claramente quando consideramos a recuperação do conceito de plurinacionalidade na Espanha, como forma de lidar com reivindicações locais de soberania, desde um olhar que prioriza a coesão nacional e um projeto centralista de mudança.

PALAVRAS-CHAVE: 1. América do Sul. 2. Bem viver. 3. Plurinacionalidade. 4. Podemos.

ABSTRACT: In this work we make an approach to the political project Podemos, appeared in Spain in 2014, with the political "progressive" processes in South America,

RESUMOS

195

started in the 2000s. We evaluate the development of a proposal with an emphasis on social policy and focus on the state that account of a political and discursive imaginary shared between the mentioned experiences. We try to identify this political place that seeks to build an electoral tool that opens a new political phase aiming an output of austerity and neoliberalism in a way, at the same time, distant to other political views that we can identify with the streets; self-determination, autonomy and community; with networks and horizontalism for the organization of the common. We suggest that the Bolivian Constituent process (2006-2009) is of special interest for a characterization of the political project in question, as it appears clearly when we consider the recovery of the concept of Plurinacionality in Spain as a way of dealing with local sovereignty claims, from a look that gives priority to national cohesion and a centralized project of change.

KEYWORDS: 1. South America. 2. Buen vivir. 3. Plurinationality. 4. Podemos.

PODEMOS ALÉM PODEMOS, POR UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri RESUMO: O pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sánchez Cedillo e o filósofo italiano Antonio Negri publicaram, entre fevereiro e abril de 2015, uma série de quatro artigos sobre as coordenadas em que se inscreve a experiência do Podemos na Espanha e da Syriza, na Grécia, cada artigo abordando o problema de um ângulo diferente. A seguir, estão os quatro artigos traduzidos dos originais espanhóis ao português, pela Universidade Nômade.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Podemos. 2. Syriza. 3. Antonio Negri.

ABSTRACT: The researcher and Spanish translator Raúl Sánchez Cedillo and the Italian philosopher Antonio Negri published between February and April 2015, a series of four articles on the coordinates which is part of the experience we in Spain and Syriza in Greece, each article addressing the problem from a different angle. Following are the four articles translated from the Spanish original to the Portuguese, by the Universidade Nomade.

KEYWORDS: 1. Podemos. 2. Syriza. 3. Antonio Negri. FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

Márcio Tascheto da Silva RESUMO: O artigo intenciona debater a produção de imagens sobre a cidade a partir da propaganda do automóvel Citroen C4 lounge, realizada na cidade de Porto de Alegre/RS. Para tanto, desenvolve a problematização da desertificação da cidade como um sintoma do declínio do espaço publico em quatro figuras subjetivas da crise: o endividado, o midiatizado, o securitizado e o representado. O esquadrinhamento do espaço urbano corresponde ao esquadrinhamento da subjetividade, constituindo uma séria de linhas de segmentação que privilegiam os espaços privados em detrimento dos espaços públicos, desencadeando uma micropolítica das inseguranças cotidianas. Nesse sentido, aciona toda uma administração dos medos que direciona para soluções pelo viés do consumo, imputando ao individuo mecanismos de culpabilização e circunscrição das possibilidades de enfrentamento aos problemas urbanos em alternativas segregacionistas e de negação da cidade. Em cotejo a essa tendência é

RESUMOS

relatada a experiência com etnografia de rua e seus desdobramentos para a produção de imagens outras sobre a cidade.

PALAVRAS CHAVE: 1. Medo. 2. Cidade. 3. Publicidade. 4. Segurança. 5. Etnografia de rua. ABSTRACT: The article intends to discuss the production of images of the city from the Automobile Advertising Citroen C4 lounge, held in Porto Alegre / RS. To this end, develops questioning the city of desertification as a symptom of the public space decline in four subjective figures of the crisis: the debt, the mediatized, securitized and represented. The scrutinizing of urban space corresponds to rummage subjectivity, constituting a serious segmentation lines that favor the private spaces to the detriment of public spaces, triggering a micro of everyday insecurities. In this sense, it triggers a whole administration fears that directs solutions to the bias of consumption, imputing to the individual mechanisms of blame and division of coping possibilities to urban problems segregationist alternatives and denial of the city. In collating this trend is reported the experience with street ethnography and its consequences for the production of other images of the city. KEYWORDS: 1. Fear . 2. City . 3. Advertising . 4. Security . 5. Street Ethnography.

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

Maurizio Lazzarato RESUMO: Este é o capítulo conclusivo denominado “Benjamin e a percepção coletiva” do livro “Videofilosofia” de Maurizio Lazzarato, publicado em 1996. Nesta obra, Lazzarato liga de forma inédita e original as obras de Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin, Henri Bergson e Friedrich Nietzsche no intuito de apreender as particularidades do capitalismo pós 1968, principalmente com relação à ontologia do tempo. Para ele, a força do capitalismo residiria na subordinação do tempo-potência em tempo-medida, inversão essa operada pelo capitalismo através de vários mecanismos. As tecnologias digitais seriam, pois, os dispositivos mais atuais, pujantes e emblemáticos do capitalismo contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Capitalismo; 2. Percepção coletiva; 3. Pós-fordismo; 4. Tempo-potência

ABSTRACT: This is the concluding chapter called "Benjamin and the collective perception " of " Videofilosofia " Maurizio Lazzarato , published in 1996. In this work , Lazzarato alloy unprecedented and original way the works of Walter Benjamin , Mikhail Bakhtin , Henri Bergson and Friedrich Nietzsche in order to grasp the peculiarities of capitalism after 1968 , especially in relation to the time ontology. For him, capitalism's strength lie in tying time - power on - time measure, this reversal operated by capitalism through various mechanisms . Digital technologies would thus be the most current devices , mighty and emblematic of contemporary capitalism .

KEYWORDS: 1. Capitalism ; 2. collective perception; 3. Post -Fordism ; 4. Time – Power.

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

RESUMOS

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RESUMO: O ensaio trata da proteção social na contemporaneidade, abordada a partir da sua vinculação estreita com o trabalho, buscando identificar como se conforma esta relação hoje a partir das mudanças no modelo produtivo e de acumulação e seus impactos nas formas e relações de trabalho e no padrão vigente de política social no contexto brasileiro. Apresenta ainda a proposta de constituição de uma renda existencial, defendida por diversos segmentos sociais, e com potencial aglutinador de lutas, como modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo ao hegemônico.

PALAVRAS-CHAVE: trabalho; proteção social; renda de existência.

ABSTRACT: This article is about the social protection in contemporary times, through from its close linking with work, trying to identify how this relationship conforms today through changes in the production and accumulation’s model and its impact on relationships and forms of work and the standard current of social policy in the Brazilian context. It also presents a proposal for the establishment of an existential income, supported by various social groups, and with potential to unify various struggles, as a model of society and development’s model alternative.

KEYMORDS: work; social protection; existential income.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR: UMA LUTA TAMBÉM DO SERVIÇO SOCIAL Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

RESUMO: O trabalho apresentado tem como objetivo fazer um breve resgate da trajetória do Movimento Negro, pontuando as conquistas e desafios encontrados nessa caminhada histórica. Após essa viagem ao passado será discutido o reflexo do Movimento Negro na cidade de Teófilo Otoni-MG/BR, destacando o processo de construção do Conselho da Igualdade Racial na cidade e a importância do engajamento político do Serviço nessa luta junto aos grupos que apóiam e defendem tal bandeira.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Movimento Negro. 2. Teófilo Otoni. 3. Conselho. 4. Participação Política

ABSTRACT: The presented work aims to briefly rescue the trajectory of the Black Movement , highlighting the achievements and challenges encountered in this historic walk . After this trip to the past discussed the reflection of the black movement in the city of Teófilo Otoni - MG / BR , highlighting the construction process of the Council for Racial Equality in the city and the importance of political engagement in this struggle together to service groups that support and defend such a flag.

KEYWORDS: 1. Black Movement. 2. Theophilus Otoni. 3. Council. 4. Political Participation