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Anais FLIPA | 69 A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA NA OBRA “A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO” DE FERNANDO PESSOA Luelia Gomes Batista [email protected] Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha [email protected] RESUMO O presente trabalho tem por objetivo observar a constituição do gênero epistolar no feminino, a partir da leitura de Heroides, de Ovídio. O texto que será objeto de nossa pesquisa, “Carta da corcunda para o serralheiro”, da autoria do escritor modernista português Fernando Pessoa, insere-se nessa genealogia epistolar amorosa que remonta à tradição romana inaugurada por Ovídio. A atribuição da autoria das cartas a uma figura feminina, sendo o autor masculino, levanta importantes questões em relação à constituição do cânone português e à emergência da autoria feminina em Portugal, na medida em que assinala um lugar que deveria ser preenchido por um sujeito autoral feminino, mas se revela mais uma das máscaras pessoanas. Quanto a seus procedimentos metodológicos, esta pesquisa terá um caráter explicativo e bibliográfico. O trabalho baseou-se nos estudos dos autores Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van Raij (2000), entre outros. Palavras-chave: Tradição epistolar amorosa. Autoria feminina. Modernismo português. Fernando Pessoa. FICTION WRITTEN BY WOMEN IN THE WORK “A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO” BY FERNANDO PESSOA ABSTRACT This paper aims to observe the constitution of the female epistolary genre, from the reading of “Heroides”, by Ovid. The text which will be focused in this research, “Carta da corcunda para o serralheiro”, by the Portuguese modernist writer Fernando Pessoa, is inserted into this love epistolary genealogy which takes us back to the Roman tradition inaugurated by Ovid. The attribution of authorship of the letters to a female, being the author a male, brings up important questions about the constitution of the Portuguese canon and regarding the emergence of female authorship in Portugal, through the way it points to a place that should be filled by a female author, but, instead, is revealed to be one of Pessoas’ masks. In what concerns its methodological procedures, this research is characterized by an explicative and bibliographical approach, based on the studies of authors such as Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van Raij (2000), among others. Keywords: Love epistolary tradition. Female authorship. Portuguese modernism. Fernando Pessoa.

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A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA NA OBRA “A CARTA DA CORCUNDA

PARA O SERRALHEIRO” DE FERNANDO PESSOA

Luelia Gomes Batista [email protected]

Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha

[email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo observar a constituição do gênero epistolar

no feminino, a partir da leitura de Heroides, de Ovídio. O texto que será objeto

de nossa pesquisa, “Carta da corcunda para o serralheiro”, da autoria do escritor

modernista português Fernando Pessoa, insere-se nessa genealogia epistolar

amorosa que remonta à tradição romana inaugurada por Ovídio. A atribuição da

autoria das cartas a uma figura feminina, sendo o autor masculino, levanta

importantes questões em relação à constituição do cânone português e à

emergência da autoria feminina em Portugal, na medida em que assinala um

lugar que deveria ser preenchido por um sujeito autoral feminino, mas se revela

mais uma das máscaras pessoanas. Quanto a seus procedimentos metodológicos,

esta pesquisa terá um caráter explicativo e bibliográfico. O trabalho baseou-se

nos estudos dos autores Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van Raij

(2000), entre outros.

Palavras-chave: Tradição epistolar amorosa. Autoria feminina. Modernismo

português. Fernando Pessoa.

FICTION WRITTEN BY WOMEN IN THE WORK “A CARTA DA

CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO” BY FERNANDO PESSOA

ABSTRACT

This paper aims to observe the constitution of the female epistolary genre, from

the reading of “Heroides”, by Ovid. The text which will be focused in this

research, “Carta da corcunda para o serralheiro”, by the Portuguese modernist

writer Fernando Pessoa, is inserted into this love epistolary genealogy which

takes us back to the Roman tradition inaugurated by Ovid. The attribution of

authorship of the letters to a female, being the author a male, brings up important

questions about the constitution of the Portuguese canon and regarding the

emergence of female authorship in Portugal, through the way it points to a place

that should be filled by a female author, but, instead, is revealed to be one of

Pessoas’ masks. In what concerns its methodological procedures, this research

is characterized by an explicative and bibliographical approach, based on the

studies of authors such as Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van

Raij (2000), among others.

Keywords: Love epistolary tradition. Female authorship. Portuguese

modernism. Fernando Pessoa.

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1 INTRODUÇÃO

Estudar o passado é uma das maneiras que encontramos para tentar explicar o presente. E é isso

que buscaremos nesse trabalho, perceber como se deu a emergência da autoria feminina na

literatura portuguesa, sobretudo procurar entender por que um dos mais importantes autores do

cânone moderno ocidental, Fernando Pessoa, atribuiu a uma personagem feminina, não por

acaso uma autora, uma carta que se inscreve de pleno direito na tradição epistolar amorosa.

Analisando a narrativa histórica literária portuguesa, não há espaço para o tratamento de obras

de autoria feminina. E é justamente esse fato que nos faz procurar entender o que pode significar

um eu lírico feminino na obra de Fernando Pessoa, e o que nos diz a “Carta da Corcunda ao

serralheiro” a este respeito. Esse desejo surgiu, primeiramente, de uma afeição por este texto

que se me afigurou surpreendente, “A Carta da Corcunda para o Serralheiro”, e, segundo, pela

curiosidade em perceber a razão de Fernando Pessoa ter assinado a carta pela pena de sua única

personagem heterônima feminina, mais ainda, de ter dado voz a essa personagem, em meio a

tantos heterônimos masculinos. Esta pesquisa objetiva, ainda, refletir sobre a emergência da

literatura de autoria feminina. Quanto a seus objetivos, terá um caráter explicativo, porque

busca compreender a presença da única figura feminina na imensa galeria de heterônimos

masculinos pessoanos, a corcunda Maria José, autora de uma carta de amor para o serralheiro -

“A Carta da Corcunda para o Serralheiro”.

No primeiro capítulo, observaremos a constituição do gênero epistolar no feminino, a partir da

leitura de Heroides, de Ovídio, percebendo o momento em que se cria, na tradição epistolar,

um novo modelo da mulher mitológica, em primeira pessoa, heroínas que revelam os seus

conflitos amorosos, oscilando entre razão e paixão, amor e ódio, o desprezo e a busca. As cartas

de amor escritas por essas personagens femininas colocam em cena um sujeito de escrita

feminino, apesar de o autor empírico ser, invariavelmente, um homem que assimila, nesses

textos epistolares, a sensibilidade e a voz feminina.

No segundo capítulo, realizaremos um estudo sobre o movimento do Modernismo português e

a contribuição da revista Orpheu para o surgimento de uma literatura nova que renovaria o

panorama literário português.

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No terceiro e último capítulo, analisaremos a obra “A Carta da Corcunda para o Serralheiro”,

inserindo-a na tradição epistolar das heroínas amorosas, para perceber como, em pleno

modernismo, o gênero é capaz de se reinventar, colocando agora a questão, através de Fernando

Pessoa/Maria José, do vácuo existencial.

2 TRADIÇÃO EPISTOLAR AMOROSA: DE OVÍDIO A MARIA JOSÉ

Para realizar uma pesquisa sobre a inserção da narrativa do romance epistolar, é imprescindível

falar de Ovídio, que é considerado por muitos como uma referência na história do gênero

epistolar. Ovídio cria um novo gênero textual, levando-nos a um significado mais profundado

da carta, ao transformá-la num monólogo trágico que, para além do seu estilo informativo

clássico, apresenta-se acrescida de meditações interiores.

As Heroides são cartas amorosas escritas por quatorze mulheres da mitologia clássica, sendo

uma da mitologia grega, Safo. As cartas, com teor de súplica, eram escritas para seus amantes,

maridos, namorados, ausentes por diversas razões, nas quais pediam que regressassem.

Segundo Cleonice Van Raij:

Neste caso, as heroínas ovidianas, confrontadas continuamente com a dor, tentam convencer o

amante distante a regressar. Há aqueles que consideram que as Cartas revelam afinidades maiores

com o monólogo dramático do que com a suasória, sem que apontem, todavia, as implicações

decorrentes de tal diferença. Outros declaram que as Heróides carecem de um contexto dramático e

narrativo: não há nas Cartas um confronto de emoções e aspirações de duas pessoas que se amam

ou que estão em conflito, nem tampouco um jogo de tempo, o que descarta, seguramente, um

envolvimento com o futuro, razão por que o poema é considerado de natureza estática ou uma

repetição monótona de queixas e de dores que envolvem o mundo da mulher ovidiana. (2000, p.268)

As personagens de Ovídio trazem à tona seus sentimentos mais íntimos, revelando suas

fraquezas sentimentais, pois, ao contrário do que se poderia supor, por serem heroínas e estarem

associadas a um modelo de mulheres fortes, que nada abalava, Ovídio mostra-as em sua

humanidade, susceptíveis de serem acometidas pelas dúvidas e sofrimento das mulheres

comuns.

Assim, surge um novo modelo da mulher mitológica, agora em primeira pessoa, de heroínas

que revelam os seus conflitos amorosos. No decorrer das cartas, as heroínas oscilam entre razão

e paixão, amor e ódio, desprezo e busca. Os limites desses sentimentos a cada momento as

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tornam cada vez mais frágeis, acentuando o caráter humano das personagens femininas

ovidianas.

Através dessa breve análise diacrônica das heroínas de Ovídio, é possível identificar a

existência de um tema – a confissão de uma paixão que transtorna o sujeito feminino –, tema

esse que nos leva para a tradição dos romances epistolares, a exemplo das Cartas Portuguesas

de Sóror Mariana, oriunda de uma tradição de cartas tomadas por uma voz solista. As Cartas

Portuguesas marcaram a literatura portuguesa como um gesto de rebelião feminina, isso porque

Sóror Mariana era uma freira portuguesa de Beja, que chocou a sociedade do século XVII com

suas cartas expondo suas ardentes paixões por um oficial francês, o Conde de Chamilly.

Mariana era mulher e religiosa que viveu na pele as limitações destinadas à mulher pela igreja

e pela sociedade patriarcal. Apaixonada e abandonada, entrega-se à paixão, escrevendo cinco

cartas ao homem amado, o Conde de Chamilly, que expressavam toda ousadia de seus

sentimentos mais íntimos. Vejamos um trecho da carta ao seu amante:

Precisava, nestes deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto

excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo o quanto sofro presentemente. Mas de tal

modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e

impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. (ALCOFORADO, 1993,

p.23)

No trecho acima, retirado de uma das cartas de Mariana Alcoforado, podemos perceber a

confissão de seu caloroso amor pelo Conde de Chamilly, assim como a presença do prazer e

sofrimento vividos por Mariana, em meio a uma relação dramática, cheias de obstáculos devido

a sua condição de religiosa em regime de clausura.

Seguindo uma linha cronológica das obras significativas referentes à tradição epistolar,

partiremos agora para A Carta da Corcunda para o Serralheiro, escrita por uma personagem

ficcional da imensa galeria de personae literárias do escritor português Fernando Pessoa. A

obra não foi datada. Fernando Pessoa transforma-se agora em Maria José, o seu único

heterônimo feminino. A obra apresenta uma jovem corcunda invisível para o mundo, e

principalmente para o seu amado, que ela acompanha todos os dias da sua janela.

A Carta da corcunda para o serralheiro é inspirada nos modelos canônicos da tradição

epistolar amorosa e preserva as marcas das cartas de amor enunciadas por subjetividades

femininas, as quais se aproximam dos monólogos passionais das heroínas de Ovídio: “Senhor

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António: O senhor nunca há-de ver esta carta. Nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou

tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo

abafo” (Pessoa, 1990)

O que é interessante é que estas cartas colocam em cena um sujeito de escrita feminino, mesmo

quando o autor empírico é um homem. Para além de assimilarem uma sensibilidade feminina –

e é importante ter em conta que, de uma maneira geral, os autores homens não adotam

pseudônimos femininos -, forjam um espaço na escrita que mostra o vazio da autoria feminina.

Isto é, não se trata somente de empossar um altergo feminino, já que ao fazê-lo os autores

apontam para a inexistência de autoras mulheres, o que corresponde à tradição literária

portuguesa na época.

No próximo capítulo abordaremos o Modernismo português e sua contribuição para com a

literatura.

3MODERNISMO NA LITERATURA PORTUGUESA

O movimento artístico em Portugal denominado de Modernismo ocorreu no século XX, em

uma época marcada por contestação interna à Monarquia, depois das cedências do governo às

pressões inglesas provocadas pelo Ultimato inglês, em 1890.

Mais conhecida como arte do século XX, o Modernismo teve grande destaque nas primeiras

décadas do novecentos e foi uma época de intenso experimentalismo em torno da linguagem e

da representação, correspondendo à produção das vanguardas estéticas. Em Portugal, a

transição do regime monárquico para o regime republicano gerou um período de muita

desordem, conforme Moisés:

Perante a nova situação em que se encontra o País, logo se formam duas facções, opostas no modo

como a encaram: uma delas, satisfeita, ou conformada com a República, procura dar-lhe bases, uma

doutrina ou filosofia tipicamente portuguesa; a outra, a dos inconformados, dos insatisfeitos com o

novo estado de coisas, assume um caráter contra-revolucionário. (2001, p. 236)

Porém, o número de republicanos insatisfeitos cai gradativamente logo depois que o novo

sistema de governo é aprovado em Portugal. É nesse período que surge A Águia (1910), órgão

da “Renascença Portuguesa", liderada por Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo

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Coimbra que também apoiavam o novo estado. A revista tratava de literatura, arte, ciência,

filosofia e crítica social, e empenhava-se em prol da fundamentação e revigoramento da cultura

portuguesa. Sua segunda edição iniciou-se em 1912, e foi difundida com o intuito de ressuscitar

a pátria portuguesa, apresentando o Saudosismo como filosofia de teor nacionalista que

estabelece a saudade como atitude espiritual que definiria a alma portuguesa: “É na Saudade

revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria

Renascença, original e criadora” (MOISÉS, 2001). A saudade era vista como uma religião, uma

filosofia portuguesa. A Águia circulou até o ano de 1932.

Em 1915, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, Augusto de Montalvor, Almada

Negreiros, Rui Coelho, Tomás de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes-Rodrigues e o

brasileiro Ronald de Carvalho lançam, em Lisboa, a revista Orpheu como porta voz de seus

ideais estéticos. Fernando Pessoa foi um dos escritores que liderou o Modernismo, juntamente

com seus companheiros geracionais Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Santa Rita

Pintor, entre outros. Fernando Pessoa passou relativamente despercebido aos seus

contemporâneos, à exceção do pequeno grupo de amigos, em Lisboa, que com ele

empreenderam o projeto da revista de “Orpheu”, lançada em finais de março de 1915. Órgão

do movimento modernista em Portugal, teve apenas 2 números (e um terceiro projetado), mas

marcaria para sempre aquele grupo.

Nasce o Orpheu, cujo primeiro número, correspondente a janeiro-fevereiro-março, aparece em 1915,

sob a direção de Luís de Montalvor, para Portugal, e de Ronald de Carvalho, para o Brasil (na

verdade, a idéia surgira numa conversa entre os dois, travada no Rio de janeiro, quando o primeiro

era funcionário da Embaixada de seu País). Na “Introdução” com que abre o número inicial da

publicação, Luís de Montalvor procura fazer a profissão de fé literária de todo o grupo. Referindo-

se à revista, diz: “Puras e raras suas intenções com seu destino de Beleza é o do: - Exílio! Bem

propriamente, ORPHEU é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou

tormento.Nossa pretensão é formar um grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em

pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico

e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.” (MOISÉS, p.239, 2001)

A revista proporcionaria uma poesia alucinada, chocante que, consequentemente, provocaria a

burguesia portuguesa. Para melhor compreensão da contribuição da revista para o movimento

Modernista, abordaremos no próximo tópico um breve estudo sobre a revista de Orpheu.

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3.1 Orpheu e a Aventura da Modernidade

O Orfismo estabeleceu o primeiro movimento propriamente moderno, composto por ideias

revolucionárias, provocadas pelas novidades advindas das mudanças culturais do século XX.

O lançamento de Orpheu 1 provocou um tão grande estranhamento no público que, em pouco

tempo, se transformaria em uma imensa chacota para a imprensa da época, chegando seus

colaboradores a serem chamados de “dissimuladores de extravagâncias” e de “Poetas

paranoicos” pelo psiquiatra Júlio de Matos e o médico e escritor Júlio Dantas. Porém, nenhuma

das ofensas conseguiu calar Orpheu:

Os nossos psiquiatras estudaram psiquiatria. Estão portanto competentes para dar uma opinião sobre

assuntos psiquiátricos. Se tivessem estudado biologia, estariam competentes para darem opinião

sobre assuntos biológicos. Para dar uma opinião sobre literatura, parece, pois, que era mister que

tivessem estudado – não psiquiatria, que só habilita a opinar sobre psiquiatria – mas literatura.

(FERNANDO PESSOA,1914) 6

Na citação acima podemos ver a opinião de Fernando Pessoa sobre as ponderações feitas a

respeito da revista Orpheu, deixando claro a sua insatisfação em ser “julgado” por pessoas que

não pertenciam ao universo da literatura. O segundo número de Orpheu foi publicado no dia

28 de junho de 1915, agora com a direção de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, e não

foi muito diferente, continuou a provocar reações da imprensa.

Um dos episódios marcantes da polêmica entre a imprensa e a revista foi a publicação de um

artigo na revista A Capital referindo-se aos colaboradores de Orpheu como “inofensivos

futuristas” que tinham como desejo representar “dramas dinâmicos” nos teatros portugueses.

Os componentes de Orpheu até resistiram às provocações por um certo momento, porém, no

dia seguinte, Álvaro de Campos, o heterônimo “futurista” de Fernando Pessoa, envia uma carta

resposta ao diretor da revista. Na carta, Álvaro de Campos faz chacota dos jornalistas e dispensa

o título de futurista, citando também o acidente acontecido a Afonso Costa, que se teria jogado

da janela de um elétrico em movimento. A Capital publicou a carta com um artigo resposta,

titulando como “cérebros destrambelhados do Orpheu” e, acima de tudo, desaprovando a

“repugnante alusão ao desastre de que foi vítima o Sr. Dr. Afonso Costa”.

6 Trecho retirado do artigo “Nós, os de Orpheu”, fruto de uma parceria entre a Casa Fernando Pessoa e o Camões – Instituto da Cooperação e da língua, enquadrando-se nas celebrações dos 100 anos da revista “Orpheu”. Traça o percurso da revista e dos seus protagonistas, recorrendo, muitas vezes as falas dos próprios “Órficos”.

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Com toda repercussão, alguns colaboradores da revista Orpheu apresentaram sua discordância

em relação às palavras de Álvaro de Campos. Mário de Sá-Carneiro acrescentou, ainda, que a

revista Orpheu almejava desempenhar “uma ação exclusivamente artística”, sem nenhum tipo

de interesse em promover “qualquer opinião política ou social – definitiva e coletiva”.

O terceiro volume de Orpheu é anunciada para outubro, Fernando Pessoa e Mário de Sá

Carneiro empenham-se em procurar financiamento, na confecção de convites, e na participação

de colaboradores condizentes com a linha artística de Orpheu: “Orpheu 3 trará, também, quatro

hors-textes do mais célebre pintor avançado português – Amadeo de Souza-Cardoso. ”

(PESSOA, 1916). Em setembro, Fernando Pessoa escreveu o texto de divulgação de Orpheu 3,

porém a revista não chegou às bancas, por falta de recursos.

Após a morte de Sá-Carneiro, seu principal companheiro, Fernando Pessoa ainda mantém vivo

o desejo de publicar Orpheu 3. A revista seria publicada em 1984 a partir das provas tipográficas

que restaram sob responsabilidade do eminente estudioso português Arnaldo Saraiva. Embora

a revista não tenha seguido adiante, conseguiu conquistar seu desígnio, que era denunciar a

estagnação cultural que se vivia em Portugal na época e produzir a literatura nova que, a

exemplo da geração de 70 no século XIX, viam produzir na Europa. Conhecendo um pouco da

trajetória de Fernando de Pessoa na revista Orpheu, abordaremos, no seguinte tópico, um pouco

da vida literária de Fernando Pessoa.

3.2 Fernando Pessoa e as máscaras: fingimento poético e heteronímia

Os heterônimos são uma espécie de outro “eu” dentro do texto, só que agora esse “eu” é o autor

do texto. É possível até que os heterônimos carreguem uma identidade do “verdadeiro escritor”

ou, melhor dizendo, do seu ortônimo. Gil (1987) ressalta que o heterônimo é uma espécie de

criador, alguém que avalia as sensações, criando séries e multiplicidades. Esse fingimento

poético é, na verdade, a maneira que os escritores encontraram de transcrever aquilo que se

passa em seu psiquismo. Para Bachelard (1994), essa ação psíquica é uma descarga de energia,

assim o seu criador é capaz de incorporar ritmos e sensações irregulares.

Fernando Pessoa é a personalidade literária mais representativa do Modernismo Português e

um dos mais ilustres poetas da literatura portuguesa. Na verdade, falar de Fernando Pessoa é

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falar de, pelo menos, mais três poetas, frutos de sua partogênese literária: os heterônimos

Alberto Caeiro, o mestre, Ricardo Reis, o poeta helenista, e Álvaro de Campos, o poeta futurista

(o da segunda fase). Claro que não podemos deixar de mencionar Bernardo Soares, o semi-

heterônimo, na designação do próprio Pessoa (o ortônimo), ele mesmo inserido neste “drama

em gente”. Bernardo Soares é o autor de um livro fragmentário, O livro do Desassossego, que

foi publicado apenas em 1982.

A origem de seus heterônimos é explicada pelo próprio Fernando Pessoa na carta a Adolfo

Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935, poucos meses antes da morte do autor (em 30 de

novembro desse ano). Essa carta é, como referimos acima, geralmente considerada a certidão

de nascimento dos principais heterônimos. Nela, Fernando Pessoa refere as circunstâncias em

que surgiram, os traços físicos, as datas de nascimento, profissões e tendências literárias.

Eu vejo diante de mim, no espaço incolor, mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo

Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me

lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.

Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua

vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em

Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois,

feito o horóscopo para essa hora, está certo). (PESSOA, 1935)

Fernando Pessoa criou as datas de nascimento de cada heterônimo, atribui-lhes profissões,

personalidades distintas. Fernando Pessoa também apresenta as datas de morte de seus

heterônimos. É surpreendente o grau de mistificação da carta, que, sendo um documento

autêntico, já que se trata de uma carta endereçada a um conhecido escritor e crítico literário,

participa do conjunto de sua obra literária, tal o grau de elaboração e de coerência com seus

princípios estéticos.

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888, e faleceu, também em Lisboa, em

30 de novembro de 1935. Deixou cerca de 27 mil documentos, entre traduções, poesia, contos,

esboços de projetos e anotações, que foram aparecendo, qual truque de mágica, do mítico baú

onde, durante sua vida, o poeta foi guardando tudo o que foi escrevendo.

Alguns dados da biografia do autor ajudam a explicar certo estranhamento que a sua particular

maneira de escrever significou, num meio fechado e estagnado como o português da época. O

pai de Fernando Pessoa morre quando o autor tinha apenas cinco anos de idade e sua mãe casa,

em segundas núpcias, com um comandante português. Com cerca de sete anos, Pessoa parte

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com a nova família para Durban, na África do Sul, onde desenvolve sua formação intelectual e

literária. Toma contato com os clássicos da literatura inglesa e, só mais tarde, de regresso

definitivo a Lisboa, opta por escrever em português. Profissionalmente, o poeta exerceu

humildes funções de correspondente comercial em escritórios lisboetas, redigindo cartas

comerciais em inglês e francês. Ainda frequenta o Curso Superior de Letras, em Lisboa, que

depressa abandona.

Já em 1912, começa a colaborar, como crítico literário, na revista A Águia, órgão da Renascença

Portuguesa, com o artigo “A nova poesia Portuguesa sociologicamente considerada”, a que se

seguiriam “Reincidindo…” e “A nova poesia portuguesa no seu aspeto psicológico”. Publicou

alguma poesia em inglês, em português colaborou em diversas revistas com textos assinados

por ele próprio e por seus heterônimos mais conhecidos, mas sua obra permaneceu praticamente

inédita. Em vida, publicou apenas, em 1934, uma obra completa, Mensagem, por sugestão dos

amigos e para participar de um concurso literário.

Em seu afã de criar personalidades literárias, de se multiplicar, de se “outrar”, de se fazer outros,

talvez para preencher esse vazio terrível que o fazia temer não ser ninguém, Fernando Pessoa

criou dezenas de heterônimos que assinam textos, obras, por vezes, pequenas anotações, em

que o criador pressente uma voz, uma disposição diferente da sua. Uma delas, que surpreende

por ser, até onde se sabe, a única voz feminina no seu universo autoral, é a corcunda Maria José,

que escreve uma pungente e patética carta de amor ao serralheiro. É esta carta que será o objeto

de nossa pesquisa.

A “Carta da Corcunda para o Serralheiro” foi publicado pela primeira vez em Pessoa por conhecer,

de Teresa Rita Lopes, que considera que “a voz feminina da Carta da Corcunda para o Serralheiro,

assim mesmo intitulada, atinge o ponto máximo nessa escala da despersonalização que Pessoa

percorria em todos os sentidos, estacionando em todos os degraus. Incarna esse “ninguém” que,

na sua própria pessoa, Pessoa sofria sentir-se ser […]”. (LOPES, 1990, p.120)

Foi esta singularidade que nos fez escolher, de entre a imensa produção do genial autor

português, este texto, uma carta de amor escrita por um homem que assumiu a personalidade

feminina para retomar alguns dos tópicos das cartas das heroínas amorosas que, na tradição de

Ovídio, escrevem para falar de si, da sua paixão, para preencher o vazio da ausência do objeto

amado e para dar expressão a esse sentimento arrebatador.

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Diante de tudo que vimos apreciando, buscaremos analisar, no capítulo seguinte, as

perspectivas na ficção da autoria feminina, designadamente em A carta da corcunda ao

serralheiro.

4 A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA

Nesse capítulo, buscaremos refletir sobre a ficção da autoria feminina. Levando em

consideração as condições dadas às mulheres que se aventuraram a escrever, bem diferentes se

comparadas às dos homens. Durante muitas décadas, o ambiente público era dominado pela

supremacia masculina, o que provocou, por sua vez, na alocação da mulher ao espaço privado,

sobretudo, no ambiente doméstico.

Podemos citar o Modernismo como um exemplo nítido da exclusão da autoria feminina na

história da literatura. Uma das mais originais vozes autorais femininas da literatura portuguesa,

Florbela Espanca, publica na mesma época que os modernistas portugueses, no entanto ela não

é inserida neste movimento. Aliás, as histórias consagradas da literatura tendem a tratar sua

obra como um interregno, um caso particular, em vez de a verem como um exemplo da

produção literária da época e de abordarem a autoria feminina nos mesmos moldes da

masculina. Por isso, apesar da importância da autora na história da literatura portuguesa, o

estudo de sua obra ainda se justifica no âmbito de uma abordagem ginocrítica (CUNHA, 2015).

Ainda no Modernismo, durante a preparação do número 2 de Orpheu, Fernando Pessoa sugere

a Armando Côrtes Rodrigues que escreva em nome de uma mulher fictícia, Violante de

Cysneiros. Isto quer dizer que não existem autoras reais que colaboraram no projeto do primeiro

modernismo português, mas, por sugestão de Pessoa, o criador de múltiplas pessoalidades, cria-

se uma ficção de autoria feminina. Homens que escreviam e assinavam com nomes de mulheres,

foi um ato bastante curioso e irreverente, levando em consideração o preconceito e a não

aceitação de obras de autoria feminina.

Esta circunstância faz-nos pensar na utilização dos pseudônimos pelas mulheres autoras que

tinham necessidade de se esconder atrás de um nome masculino para conseguirem ser lidas e

socializar suas obras, eximindo-se, assim, ao estigma que a autoria feminina representava. E

isto nos leva, por outro lado, a pensar que os escritores homens não utilizam pseudônimos

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femininos. No âmbito da literatura portuguesa, se não erramos, apenas Júlio Dinis utilizou um

pseudônimo feminino, Diana de Aveleda, com os quais assinou curtas crônicas no Diário do

Porto.

Apesar de ser já reconhecido e influente, pelo menos no pequeno círculo literário de Lisboa, a

única obra de Fernando Pessoa atribuída a uma mulher, A Carta da Corcunda para o

Serralheiro, não teve o mesmo reconhecimento que as demais obras de seus heterônimos

masculinos, pelo contrário, essa obra é mesmo quase desconhecida, tendo sido revelada por

Teresa Rita Lopes, em Pessoa por conhecer I e II, obra publicada pela Editorial Estampa em

1990. Mas é bastante curioso, que a carta de Maria José só recentemente tenha sido objeto de

pesquisas. A carta da corcunda não é tão popularizada quanto a produção dos principais

heterônimos, sendo verdade que muitas outras figuras ficcionais são praticamente

desconhecidas7, talvez pelo fato de ter somente uma obra assinada, ou, podemos aventar, por

ser “mulher”.

Uma mulher que nunca existiu fisicamente, mas que por algum motivo foi escolhida como

autora de uma obra por um dos escritores mais geniais e mais intrigantes da época.

Possivelmente, o que Fernando Pessoa sempre quis foi mostrar sua personalidade “vazia”: ele,

que sempre buscava seus vários “eus” através de seus heterônimos, talvez tenha querido

mostrar, através de uma personalidade feminina, ainda para mais corcunda, isto é, deformada e

diminuída na sua possibilidade de sedução, o quanto se sentia fora da existência, assim como

acontecia com as mulheres, que viviam em seu espaço, mas parecia que não eram

verdadeiramente vistas.

Para conhecermos um pouco mais a única obra de Fernando Pessoa assinada por uma mulher,

dedicaremos o próximo tópico para uma análise da obra A carta da corcunda para o

serralheiro.

4.1“A Carta da Corcunda para o Serralheiro”

Criei em mim várias personalidades.

Crio personalidades constantemente.

7 José Cavalcanti Filho, em Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, menciona a existência de 127 heterônimos pessoanos.

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Fernando Pessoa/B.Soares

A Carta da Corcunda para o Serralheiro é inspirada nos modelos canônicos da tradição

epistolar amorosa. A epístola apresenta uma confissão de amor de uma jovem corcunda de

dezenove anos, Maria José. Correspondendo ao modelo do gênero epistolar, em que o sujeito

escreve sobre o amor mesmo sabendo que nunca será correspondido, o ato da escrita é uma

forma de manter aberto o circuito do desejo e funciona como uma espécie de gesto de catarse,

pois o sujeito amoroso acaba escrevendo mais para si do que para o outro, convertendo-se a

carta, afinal, num monólogo, um meio de vazar suas ânsias.

Maria José tem completa consciência de que sua carta nunca será lida, e seu amor nunca será

correspondido, como podemos notar no início da carta: “Senhor António: O senhor nunca há-

de ver esta carta. Nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero

escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba [...]” (Pessoa, 1990, p.1). Maria José é uma jovem

corcunda tuberculosa que passa seus dias a observar as pessoas de sua janela, vive na completa

solidão, praticamente não tem motivos para viver, mas encontrou um motivo que a faz, todos

os dias, sentar à janela, para, nem que seja por uma fração de segundos, ver o Senhor António

passar:

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor

o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o

corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também

tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém. (PESSOA, 1990, p. 1,)

Maria José se conforma em saber que jamais ganharia o amor de outra pessoa, afinal, não possui

beleza, não possui o corpo bem feito de outras mulheres, pois é corcunda. A autora da carta

ainda afirma que tem consciência de que o Senhor António jamais se importaria com a sua

existência, mas que não o procura, para evitar sofrimento: “Tenho medo de que se o senhor

soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo

antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber. ” (PESSOA, 1990, p. 1)

A corcunda observa o serralheiro da janela, mas ele não a conhece, nunca se viram, nunca

conversaram, logo, a carta é a forma encontrada para criar uma ficção que torna presente pela

escrita o objeto amado: “Apesar do seu interlocutor imediato se caracterizar pela ausência e

pela inacessibilidade, a sua presença fantasmática é, todavia, importante para ativar o desejo da

mulher apaixonada que afirma: “eu não penso senão em si”. (BESSE, 1998, p. 22)

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A carta contém os lamentos de uma jovem corcunda que nunca terá uma vida “normal”, sente-

se como um fardo para sua família, e expressa, naquela missiva destinada a nunca ser enviada,

como ela própria, que nunca será recebida, amada por ninguém, que nem a morte lhe parece

servir como um alívio para suas dores e sim para se tornar mais uma chacota em sua triste

existência. A carta atinge o paroxismo quando Maria José imagina o suicídio como um ato que,

de desesperado e trágico, se tornaria patético, vil, por expor um corpo deformado que deveria

manter-se escondido e não ser exposto aos olhares dos outros, condição existencial que era a

sua:

“Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura

teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era

ainda mais maçada para os outros [...] e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à

vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo

ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser” (PESSOA, 1990, p. 3)

De acordo com Maria Graciette Besse (1998, p. 23), “A ideia do suicídio faz parte de uma

solução interior ao sistema amoroso que, como assinala Barthes, se apresenta como uma ficção

[…]”. A possibilidade de ser está atrelada ao desejo: “Se o senhor soubesse isto tudo era capaz

de vez em quando me dizer adeus na rua”. (PESSOA, 1990, p. 03).

Maria José desdobra-se como personagem de sua própria carta (de sua desejada existência?) e,

nesse movimento encenado no ato da escrita, opera uma catarse (se não escrevo, abafo”),

chegando a ficcionalizar um romance com o serralheiro. Insistentemente se vê a si como um

outro, atitude tipicamente pessoana, cujo “eu” se desdobra num outro, se multiplica, ensaiando

outros ângulos, outras possibilidades para sua existência absurda:

— E enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? O senhor que anda de

um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o

dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e

àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá. [...]

(PESSOA, 1990, p. 4)

De acordo com Besse, a expressão do amor permite a Maria José encontrar uma saída para sua

intolerável existência:

Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no

peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo

que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir

porque eu sei que não posso esperar mais. Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha

vida. Aí tem e estou a chorar. Maria José (PESSOA, 1990, p. 4)

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A carta termina com Maria José descrevendo a triste dor de não ser ninguém, de passar seus

dias sem nenhum motivo para viver e sorrir. Despede-se do Senhor António, mesmo sabendo

que ele nunca saberá de sua existência, e menos ainda da carta, o que ela prefere, pois tem medo

de seu amor ser ridicularizado. Afinal, que chances teria uma corcunda tuberculosa que não

anda, que está com os dias contados para a morte, de viver tal amor, a não ser de se lamentar

por ser ninguém? Há uma espécie de comprazimento na autocomiseração, tópico que está

presente nos outros heterônimos, também no ortônimo, e que ecoa a sensação de “ser ninguém”,

o medo do vazio tipicamente pessoano. É ainda Fernando Pessoa- Bernardo Soares que

sentimos espreitando da janela ou da mansarda juntamente com Maria José, O medo de não ser

nada, a rasura da identidade, faz-se presente na carta: “eu não sou mulher nem homem, porque

ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão

da janela e a aborrecer tudo que me vê”. (PESSOA, 1990, p. 4)

A carta tem um tom extremamente cativante, afinal, quem não se sente tocado ao ouvir os

lamentos de uma jovem corcunda que sonha em viver um amor?. Mas Maria José sabe que

“todas as cartas de amor são ridículas”, como diria Pessoa pela voz de Álvaro de Campos. Tal

como Maria José, Fernando Pessoa parece ter renunciado ao amor, apesar de ser conhecido o

seu relacionamento com Ofélia Queirós. A correspondência amorosa, ou melhor, as cartas

escritas por Fernando Pessoa a Ofélia (vejam-se as ressonâncias literárias) estão publicadas

(2013).

De acordo com Magalhães (2008), as cartas de amor de Fernando Pessoa destinadas a Ofélia

Queirós são os únicos textos em que Fernando Pessoa possui uma relação com uma mulher real.

A autora ainda explica que em outras obras de Fernando Pessoa, existe sempre uma recusa da

mulher e um distanciamento da relação amorosa, do carnal.

Em suas obras, Fernando Pessoa costumava tratar a presença do feminino de distintas maneiras,

existindo para cada heterônimo uma maneira particular de tratar o feminino:

[...] estimulo a uma percepção mais intensa (em Caeiro), lugar de desejo contraditoriamente

construído (em Pessoa-ele-mesmo e em Soares), objeto do desejo mais ou menos sexualizado (em

poemas ingleses e em algum Álvaro de Campos), companheira silenciosa e quase metafisica (em

Ricardo Reis). (MAGALHÃES, 2008, p.39).

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Magalhães (2008) complementa que essa variação e o modo como o feminino e a sexualidade

se fazem presentes nos textos de Fernando Pessoa, como figuras ficcionais, intensificam a

“ausência da coisa”.

Vejamos o que nos diz Fernando Pessoa sobre sua personalidade poética:

O poeta central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho

continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e despersonalização do

dramaturgo. [...] Desde que o crítico fixe [...] que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave

da minha personalidade. [...] Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto

despegando-se de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto

para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse

verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me

esqueci de sentir. (PESSOA, p.3002-3003, 1986)

Fernando Pessoa escreve em nome de outros, atribuindo-lhes sentimentos alheios, tal como um

dramaturgo que criasse personagens para incorporar sensibilidades alheias e que talvez ele

nunca fosse capaz de vivenciar sendo ele mesmo, Fernando Pessoa.

Assim, Fernando Pessoa é aquele que continuamente se desdobra em outros, se multiplica, até

desaparecer como realidade empírica, sobrepondo máscaras que desorientam o leitor

empenhado em encontrar o “verdadeiro” Pessoa.

Maria José é uma dessas máscaras. Sua existência é puramente literária, tal como a das heroínas

de Ovídio. Mas é suficiente para criar um novo gênero literário, a exemplo de Ovídio, e de

provocar um grande estranhamento, como esta carta de Maria José, uma anti-heroína que glosa

a crise do sujeito da modernidade: aquele que não pode ser.

Talvez mais importante ainda é que esse gesto aponta para um vazio no lugar da voz autoral

feminina. De fato, a autora da carta, Maria José, é uma autora ficcional, uma das muitas ficções

autorais criadas por Fernando Pessoa. O que surpreende é que é uma ficção feminina, sendo o

outro exemplo do misógino grupo de Orpheu Violante de Cysneiros, heterônimo de Armando

Côrtes Rodrigues para colaborar na revista Orpheu, por sugestão do mais que suspeito Fernando

Pessoa!

Percebendo a fragmentação da autoria feminina na história da literatura portuguesa ao longo dos

séculos, Klobucka (2008) não deixa de notar que o sujeito discursivo feminino está representado

desde sua gênese: nas cantigas de amigo, em que o poeta se traveste num sujeito feminino; em

Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, novela na qual a protagonista, em registro confessional,

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conta as desventuras de seus amores; nas célebres cinco cartas de Sóror Mariana Alcoforado, cuja

autoria, hoje, é quase consensualmente atribuída a um autor, Guilleragues; e com Violante de

Cysneiros, heterônimo de Armando Côrtes Rodrigues, figura feminina criada pelo misógino grupo

de Orpheu para as duas revistas modernistas, Orpheu 1 e 2. (CUNHA, 2015, p. 34).

A literatura portuguesa tem como figuras canônicas homens, como de resto quase todas as

literaturas. Quando se considera a emergência do fenômeno “autoria feminina” em Portugal,

isso acontece relativamente tarde, sobretudo se nos reportarmos ao exemplo inglês. É claro que

as autoras vinham tentando, pelo menos desde finais do século XIX em sua atuação na

imprensa, adentrar nesse território masculino. Ora, quando analisamos a literatura portuguesa,

desde a gênese, percebemos que, desde as cantigas de amigo, que apresentam um sujeito lírico

feminino embora o autor-trovador seja um homem, esse lugar de fala já está previsto, mas não

foi preenchido por nenhuma figura real até muito tarde. Somente a partir dos anos 50 do século

XX, as escritoras portuguesas começam a ser publicadas e suas obras avaliadas em igualdade

de circunstâncias em relação aos autores.

Uma escritora como Florbela Espanca, por exemplo, que por acaso escreve no mesmo período

da geração de Orpheu, teve muitas dificuldades em ser aceita e publicada. E ainda hoje ela não

é inserida no movimento modernista. De fato, a sua obra tem características bem diferentes da

produção de seus parceiros geracionais, mas as histórias da literatura não a integram em nenhum

movimento, o que tem de nos fazer pensar.

Em relação à tradição epistolar de cartas de amor, é muito curioso que a Carta da corcunda

para o serralheiro seja caso único de um heterônimo feminino que assina um texto que integra

de pleno direito a genealogia de escritores que investem a voz feminina. As implicações desse

gesto são muito relevantes porque levantam a questão da autoria feminina. Também, e não

menos importante, faz-se uso de um gênero considerado menor para se questionar a constituição

do cânone literário português.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo, acompanhamos a tradição do romance epistolar, iniciada por Ovídio com

as Heroides, abrindo uma fresta para um novo modelo narrativo que traria a oportunidade de o

universo feminino ser retratado, no meio literário, pela voz das heroínas da mitologia que se

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revelam em suas fraquezas. Ovídio inaugura um gênero que permite questionar o cânone da

época e que lhe valeu o exílio, pois não obedecia à literatura de exaltação épica.

Obras como Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana, e a Carta da Corcunda para o Serralheiro,

de Fernando Pessoa, escritas por homens, mas trazendo na escrita autoras ajudam-nos a pensar

no epistolar como um gênero de pleno direito e na autoria feminina como uma prática de rasura,

isto é, como uma escrita que aponta o lugar de uma voz que foi silenciada a ponto de a autoria

masculina suprir essa falta. Por que falar em nome da mulher mantendo-a afastada do universo

simbólico? Trazer a sua voz não será reconhecer implicitamente que ela não pode falar por ela

própria.

De fato, lendo sobre a recepção crítica de livros de autoras oitocentistas e das primeiras décadas

em Portugal, percebe-se a dificuldade que tinham em socializar suas obras. No período do

modernismo em Portugal, o grupo de Orpheu, que não tinha em sua composição a presença de

mulheres, verifica-se que as poucas colaborações “femininas” correspondem a ficções, autoras

forjadas, a exemplo de Violante de Cysneiros e de Maria José. Portanto, elas não comparecem

como personagens, o que já acontecia na literatura desde as cantigas de amigo na Idade Média,

mas exibindo um “eu” autoral e uma sensibilidade feminina mimetizada por escritores homens.

Esse fingimento poético, ao mesmo tempo em que exclui as mulheres como escritoras reais, de

certa forma, também, contribuiu para a problematização acerca de seu lugar no machista cânone

nacional português, pois faz ver um problema – justamente o da dificuldade de sua inserção.

Notamos, assim, problemas na afirmação da autoria feminina em Portugal. Ao invés da obra de

uma mulher escritora, encontramos apenas mais uma das máscaras pessoanas, Maria José, sua

única figura heterônima feminina, mais uma de suas sondagens incessantes para encontrar um

rosto que o curasse de sentir “ser ninguém”.

REFERÊNCIAS

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plurielles.org/_uploads/pdf/17_4_6.pdf. Consulta em: 20 de maio de 2018.

CUNHA, Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Marais. Novas Cartas Portuguesas: O Gênero

Epistolar e a Releitura do Cânone Literário Português. Universidade Federal da Paraíba

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Centro de Ciências Humanas Letras e Artes Programa de Pós-graduação em Letras. João

Pessoa, 2015.

MAGALHÃES, Isabel Allegro de. “O gesto, e não as mãos”: A figuração do feminino na

obra de Fernando Pessoa: Uma gramática da mulher evanescente”. Revista

Colóquio\Letras. Ensaio, no 140\141, p.17-47, 2008.

MOISÉS, de Massaud. A Literatura Portuguesa, A Literatura Portuguesa Através dos

Textos. São Paulo: Editora Massaud Moises, 2001.

PESSOA, Fernando. Cartas a Ofélia. 1. Ed. – São Paulo,: Globo, 2013.

VAN RAIJ, Cleonice Furtado de Mendonça. Conflito discursivo nas Heróides de Ovídio.

LETRAS CLÁSSICAS, n. 4, p. 267-271, 2000. Pontifícia Universidade Católica de

Campinas, 2000.