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Capítulo 2

DA FUNÇÃO NOTARIAL

Sumário: Seção 1. Conceito, natureza e características: 1. Introdução ao tema da função notarial – 2. Âmbito de atuação Seção 2. Natureza jurídica da função notarial: 1. Função bifronte – 2. Teorias sobre a natureza jurídica – 3. Teoria funcio-narista ou da função administrativa – 4. Teoria da função profissional – 5. Teoria autonomista – 6. Teoria eclética ou combinada – 7. A função notarial como ato de jurisdição voluntária – 8. Nossa posição Seção 3. Utilidade da função notarial: 1. A utilidade da função notarial – 2. Função notarial e justiça preventiva – 3. Função notarial e segurança das relações contratuais Seção 4. Função notarial e fiscalização pelo Judiciário: 1. Tipos de função: certificadora e legitimadora – 48. Fiscalização e regulamentação da função notarial.

Seção 1. Conceito, natureza e características

1. INTRODUÇÃO AO TEMA DA FUNÇÃO NOTARIAL

Não obstante se tratar de uma profissão milenar, o notário e a função por ele exercida são praticamente desconhecidos do público em geral, e mesmo de outros profissionais do direito que, não raro, confundem a atividade notarial com a de registros e revelam profundo desconhecimento sobre a natureza des-sa profissão e da função notarial. Isso ocorre ainda com maior frequência em nosso país devido à inexistência da disciplina alusiva ao direito notarial e direito registral em nossas faculdades de direito. Somente recentemente têm surgido cursos acadêmicos de Pós-Graduação sobre o tema..

Ao passo que em outros países, como na França, na Espanha, na Itália e na Alemanha, as leis que disciplinam a atividade notarial foram editadas de forma detalhada há mais de um século, e originaram volumosos regulamentos nota-riais, no nosso país o estatuto dos notários e registradores foi publicado apenas em 1994 e os regulamentos notariais e registrais são de índole administrativa e local. A legislação anterior (Ordenações Filipinas e Lei de 11.10.1827 etc.) apenas se referia à fixação dos notários nos municípios e à criação e provimento dos ofícios por pessoas idôneas e a título de propriedade vitalícia.

Tais fatos, obviamente, dificultaram e retardaram o surgimento de uma doutrina especializada na disciplina em tela, o que repercutiu em nossa juris-

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prudência. Nos países de tradição civilista, a existência de leis remontando ao final do século XIX, ou início do século XX – que preveem um número limitado de notários (numerus clausus), estabelecem métodos sérios de seleção desses profissionais e disciplinam uma rigorosa deontologia – originou uma classe de juristas especializados e muito bem preparados acadêmica e intelectualmente.

A existência desse corpo de juristas especializados, organizados em colégios notariais, possibilitou o surgimento de institutos de estudos, a realização de cursos, congressos e seminários, o que, obviamente, acabou por criar um clima intelectual e de estudos propício ao surgimento de uma doutrina profunda e especializada sobre temas afetos à atividade notarial.

Esse caminho apenas agora começa a ser traçado em nosso país, com o advento da Lei 8.935/1994 e a realização de rigorosos concursos de seleção de notários e registradores, conforme comando constitucional contido no art. 236, § 2º, da Constituição de 1988.

Daí o desconhecimento do direito e do instituto notarial por parte da jurisprudência, inclusive nos tribunais superiores, que gera confusão, dúvida e contradição nos entendimentos e concepções relativas à matéria. A começar pela própria concepção da atividade do notário. Em algumas decisões, afirma-se que o notário presta um “serviço público”, da mesma forma que os concessio-nários e permissionários, e por isso incorre, como estas pessoas jurídicas, na responsabilidade objetiva. Afinal, o notário exerce uma “função pública” ou presta “um serviço público”?

O termo “função” por si só é ambíguo e geralmente é empregado na doutrina com duas acepções: como uma espécie de poder e como espécie de atividade. De acordo com a doutrina baseada em SANTI ROMANO,1 função pública é a potestade exercitada não por um interesse próprio, ou ao menos exclusivamente próprio, mas por um interesse alheio ou um interesse objetivo. Por sua vez, DROMI define função como atividade, ao afirmar que as funções do poder são as formas diversas sob as quais se manifesta a atividade dominante do Estado, os diversos modos de exercício da atividade estatal.2 De acordo com esta última corrente, o conceito de função se refere à forma e aos meios da ati-vidade do Estado. As funções constituem a forma de exercício das atribuições.

Logo, o notário exerce uma função e não meramente um serviço, que pressupõe uma atividade material e não um poder estatal ou uma forma de exercício das atribuições. De acordo com a concepção de função como poder, o notário exerce uma potestade que é a fé pública no interesse das relações jurídico-privada dos seus clientes ou mesmo de toda a sociedade, já que a

1 V. ROMANI, Santi. Corso di diritto amministrativo. Padova: CEDAM.2 V. Derecho Administrativo. p. 97 e ss.

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Cap. 2 • DA FUNÇÃO NOTARIAL 101

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segurança jurídica e a prevenção de litígios, finalidades de tal atuação, cons-tituem interesses públicos.

No que tange à natureza ou classificação da função estatal exercida pelo notário, apenas pode ser obtida por generalização metódica e não por simples exame da Constituição, uma vez que a ideia de separação de funções difere daquela da simples repartição de atribuições. Para CANOTILHO, a separação das funções apenas pode ser obtida pelo esforço científico de isolar os tipos ou formas de atividade jurídica do Estado.

Para obter a qualificação da função, a doutrina utiliza três critérios: o nega-tivo, o subjetivo e o objetivo. O primeiro deles tem duvidosa validade científica, uma vez que procede à definição por exclusão. No plano da teoria das funções, esse critério é utilizado para a explicação da função administrativa, já que as demais funções do Estado (legislativa e judicial) é pressuposta.

OTTO MAYER, por exemplo, define de modo positivo a legislação e a justiça. Segundo esse autor, legislação é o estabelecimento de regras de direito por parte do poder soberano por meio do concurso do corpo representativo da nação. Justiça, por sua vez, é a atividade do poder público destinada à manutenção da ordem jurídica pertencente aos tribunais (jurisdição civil e penal), a atuação do Ministério Público e toda a atividade dos agentes de execução judicial que sirvam à manutenção da ordem jurídica. Portanto, as funções do Legislativo e do Judiciário são caracterizadas pela reunião de dois elementos. No caso do primeiro poder, a edição de regras de direito e a autoridade competente segun-do a Constituição (parlamento). No caso do Judiciário, a aplicação da norma abstrata a um caso concreto pelos Tribunais, auxiliados pelo Ministério Público e outros agentes de execução judicial. Faltando um dos dois elementos. Sempre que faltar um desses elementos, a função cai na esfera da Administração. Con-sequentemente, esta última noção é delimitada negativamente: administração deve ser toda atividade do Estado que não é legislação nem justiça.3

O critério cientificamente mais correto é o objetivo material, pois “interroga nas características que definem a natureza intrínseca da função pública e não no órgão atuante o substrato invariável que a particulariza.4. De acordo com tal critério, será administrativo, legislativo ou judicial o ato que apresentar em si mesmo o conteúdo essencial da atividade respectiva, pouco importando a natureza do órgão ou poder que o edita (Executivo, Legislativo ou Judiciário).

Sintetizando a posição da doutrina que adota o critério objetivo, podemos afirmar que a função legislativa é caracterizada pela criação de normas gerais

3 Le Droit Administratif Allemand, Paris, Ed. Briére, 1903, p. 31 e ss.4 Paulo Modesto, Função administrativa, Revista Eletrônica de Direito Público, n. 5, jan.-mar. 2006, p. 10.

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de conduta, imperativas para todos os habitantes. A função judicial se distingue pela decisão imperativa de contendas entre as partes, determinando o direito aplicável. Finalmente, a função administrativa consiste na realização de algo concreto em casos individuais.

De acordo com essa definição de função estatal baseada na clássica teoria das funções decorrentes da tripartição de poderes, conclui-se que o notário exerce uma função pública administrativa, quando consideramos apenas essa ampla classificação baseada nos poderes do Estado. De fato, o notário dá forma jurídica à vontade das partes, intervém em atos e negócios jurídicos que as partes devam ou queiram dar forma jurídica e certifica fatos (art. 6º da Lei 8.935/1994). O exercício de tais atribuições é realizado em casos individuais. Nelas, não se vislumbra a criação de normas gerais de conduta (função legislativa), tampouco decisão de litígios individuais (função judicial).

Contudo, o que importa, nesse momento, é deixar claro que função não se confunde com serviço. Na técnica do direito contratual, o notário exerce uma função estatal (função de fé pública). Conforme ensina BANDEIRA DE MELLO: “Serviço público, em sentido técnico-jurídico, é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestada pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios do sistema normativo”.5

A atividade notarial não oferece uma utilidade ou comodidade material que é aproveitada diretamente pelos usuários. A relação entre o notário e o seu cliente não é regida pelo direito público, ao contrário do vínculo entre o notário e o Estado, mas sim pelo direito privado (tem natureza contratual). Finalmente, o tabelião não atua com prerrogativas de supremacia, tampouco pode sujeitar o interesse da parte ao interesse do Estado ou de quem quer que seja, já que ele deve se pautar pela independência e pela neutralidade.

Na verdade, o notário não realiza um “serviço”, mas exerce uma “função” ou “atividade”. No sentido técnico, o termo “serviço notarial” corresponde à sede ou ao domicílio onde esse profissional realiza cotidianamente suas atividades, isto é, exerce as atribuições e competências que a lei lhe atribui, conforme se conclui do disposto nas normas dos arts. 1º e 4º da Lei 8.935/1994, entre outros dispositivos

Quanto à natureza da função notarial, veremos oportunamente que existem teorias de matizes diversas e que os atos por ele realizados não são verdadeira-mente atos administrativos. Isso porque além de exercer uma função estatal, o

5 BANDEIRA DE MELLO, C.A. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 434.

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Cap. 2 • DA FUNÇÃO NOTARIAL 103

PARTE I • O NOTÁRIO E A FUNÇÃO NOTARIAL

notário é também um profissional do direito que age sob iniciativa privada, o que confere à função ou atividade notarial uma natureza peculiar.

2. ÂMBITO DE ATUAÇÃO

O notário atua no âmbito do direito privado, devendo intervir nos atos e negócios jurídicos para lhes conferir segurança, validade e eficácia jurídica. A segurança dos negócios jurídicos é obtida não apenas pela formalização da vontade das partes, adaptando-a e conformando-a aos preceitos legais aplicáveis, mas também pelo dever de imparcialidade e de assessoria jurídica. Como profis-sional independente e imparcial, o tabelião não pode defender os interesses de nenhuma das partes e sim atuar de forma a diluir as desigualdades econômicas, sociais e jurídicas dos contratantes, velando para que os interesses egoísticos de algum deles não se sobreponham ao legítimo interesse da parte contrária.

Como será visto no decorrer deste trabalho, a lei atribui ao tabelião as atribuições de certificar fatos e de intervir nos atos e negócios jurídicos que as partes devam ou queiram dar forma solene, isto é, legitimar os negócios jurídicos que adotem a forma solene da escritura pública. Para tanto, ele deve receber e aconselhar os interessados quanto às opções legais para se obter o bem da vida desejado, assim como sobre os efeitos e consequências jurídicas de cada opção disciplinada no ordenamento legal.

A função de certificação ou atestação decorre da fé pública que é delegada ao notário pelo Estado: conforme vimos, o notário ou tabelião é um particular que exerce uma função pública, é um agente público ou estatal em sentido indireto, porque não integra a estrutura hierárquica de qualquer dos poderes estatais.

Nesse sentido, o notário atua no âmbito da denominada justiça preventiva, porque sua intervenção nos negócios jurídicos particulares, como veremos com maior profundidade, tem por finalidade evitar ou diminuir a probabilidade de litígios futuros por possíveis questões derivadas do cumprimento e execução do contrato ou ato jurídico documentado.

Atualmente, no âmbito da tendência internacional de desjurisdicialização de determinadas matérias que não envolvam decisão de litígios, várias atribuições de jurisdição voluntária estão sendo repassadas ao notário, em concorrência com o juiz. Nesse contexto, podemos citar a separação, o divórcio e o inven-tário e a partilha administrativos, que podem ser feitos com a intervenção do notário sempre que houver acordo entre as partes – devidamente assistidas por advogado – e que não houver interesses de incapazes em jogo, além de outros requisitos que serão oportunamente analisados.

O notário é autorizado a exercer sua competência sem a necessidade de munir-se de procuração, já que não se trata de um profissional que assiste à parte, como é o caso do advogado: o notário intervém nos atos e negócios jurí-

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dicos por força da lei ou da vontade das partes, para conferir a esses atos efeitos probatórios e de oponibilidade erga omnis, que são próprios do documento público notarial. Com efeito, o ato notarial é um ato público que estabelece uma presunção de veracidade e autenticidade que apenas pode ser impugnada por ação judicial de falsidade.

Além dos atos elencados no art. 7º do diploma legal supracitado, o notá-rio possui outras atribuições, como o dever de aconselhamento e assessoria às partes, o controle da legalidade de atos e negócios particulares, a conservação e publicidade de documentos, a faculdade de realizar as diligências que forem necessárias para o cumprimento de sua missão e a obrigação de cooperar com as autoridades públicas, notadamente por meio de remessa de dados sobre os atos nos quais intervém para fins de formulação de políticas públicas, fiscalização tributária e combate ao delito de lavagem de dinheiro.

Conforme se percebe, a função notarial é ampla e complexa, comportando uma série de poderes/deveres, tais como: indagar pessoalmente a vontade das partes; sugerir o ato mais idôneo e mais econômico para a aquisição do bem da vida desejado por elas; reportar constantemente a vontade da parte e o ato ou contrato à norma legal, ao bom costume e à ordem pública (qualificação notarial); atender prioritariamente aos requisitos das autoridades judiciais e administrativas e fornecer as informações demandas por lei.

A necessidade de adaptar a vontade e o contrato dos particulares à vontade da lei exige do notário, de acordo com a melhor doutrina, uma atuação de ju-rista, cabendo-lhe interpretar a norma jurídica para adaptá-la à nova realidade social e econômica, notadamente nas hipóteses de omissão ou contradição do ordenamento jurídico, o que, não raro, se verifica na atuação de qualquer ope-rador do direito. Essa função, que se distingue da mera certificação de fatos, é uma característica peculiar do notário do tipo latino, que exerce, assim, uma importante missão de criador do direito.

De fato, como se constata do disposto no art. 6º da Lei 8.936/1994, que trata da competência material do notário, esse profissional exerce uma função de adaptação do ordenamento jurídico à necessidade sempre nova e mutável da vida e essa adequação deve se operar à luz da ordem jurídica. Ao formalizar juridicamente a vontade da parte, o notário, como autor do documento notarial, cria uma regra jurídica nova destinada a regular a relação entre os particulares da qual resultam direitos e obrigações recíprocos. A intervenção notarial garante ainda a autenticidade do ato ou negócio jurídico em decorrência da fé pública que lhe é delegada pelo Estado.

Na escritura pública, que é o documento notarial mais completo, coexistem ambas as funções: a certificadora e a legitimadora. Nesse instrumento, além de autenticar os fatos que ocorrem na sua presença e que observa por seus sentidos

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Cap. 2 • DA FUNÇÃO NOTARIAL 105

PARTE I • O NOTÁRIO E A FUNÇÃO NOTARIAL

(v.g. presença, identidade e capacidade das partes e demais comparecentes), o notário dá forma jurídica à vontade declarada.

No entanto, por mais ampla que seja a função notarial, suas atribuições não podem ultrapassar os limites previstos e estabelecidos pela legislação. Esta-belecer os limites exatos de confinamento da função é um problema de direito positivo e diz respeito, mais exatamente, ao tema das competências material (funcional) e territorial do tabelião, que serão analisadas posteriormente. Antes, vamos examinar a questão da natureza jurídica da função notarial para melhor compreendermos no que ela consiste.

Seção 2. Natureza jurídica da função notarial

1. FUNÇÃO BIFRONTE

O notário exerce uma função bifronte: ainda que exerça uma função pública independente (não está sujeito à subordinação de qualquer autorida-de e ingerências externas), não há como negar que se trata de uma profissão técnico-jurídica.

Esse profissional do direito não é um mero redator de documentos, tam-pouco simplesmente confere fé pública aos atos e negócios jurídicos nos quais intervém, mas é também um assessor imparcial daqueles que reclamam seu ministério. Deve aconselhar as partes no que tange aos meios jurídicos mais adequados para que obtenham o bem da vida desejado, nos termos da lei em vigor e que implique menores custos financeiros. Sua intervenção busca garantir que as declarações de vontade das partes sejam válidas, eficazes e permaneçam de forma perene na memória humana (mediante a conservação dos instrumentos originais em seus livros).

Dada a imparcialidade, independência e dever de sigilo, a função notarial é essencial para a garantia de aspectos essenciais da liberdade individual, que se expressam, por exemplo, na liberdade contratual, na liberdade de testar e na livre orientação de sua vida familiar e conjugal; e ainda nas questões pessoais e familiares.

Tais características da função notarial, por si sós, explicam a longevidade dessa profissão jurídica, presente desde os primórdios da civilização, conforme testemunham documentos e bens arqueológicos do Antigo Egito e de outras antigas nações.

A função do notário varia de acordo com o país e suas tradições jurídicas e políticas. Nos países anglo-saxões, o notário é um profissional do direito com limitadas atribuições. Em outros países, como Cuba, Venezuela e, até recen-

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temente, Portugal, os notários são considerados funcionários públicos, com variados matizes. Na maior parte dos países europeus, da América Latina e da Ásia, adota-se o chamado regime latino, em que o notário é considerado um profissional do direito que exerce uma função pública.

2. TEORIAS SOBRE A NATUREZA JURÍDICA

Com base nessas diferentes realidades, podemos citar quatro principais teorias sobre a natureza jurídica da função notarial. De acordo com tais teorias, a função notarial teria natureza: a) funcionarista ou administrativa; b) profes-sionalista; c) autonomista; e d) eclética ou combinada.

3. TEORIA FUNCIONARISTA OU DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

De acordo com a teoria denominada funcionarista, o notário exerce uma função púbica de caráter complexo, em nome do Estado, com uma posição especial dentro da organização administrativa e jurídica, mas sempre como funcionário público. Para os defensores dessa corrente, o serviço notarial tem natureza pública: o notário é um órgão do serviço estatal, uma espécie de funcio-nário público. Enquanto a função jurisdicional supõe a solução de uma questão de direito com força de “verdade legal”, a função administrativa é a realização de uma atividade do Estado conforme as normas em vigor.

Assim, concluem os autores administrativistas, a função notarial, por não ter por objeto o exame de pretensões, é uma verdadeira função administrativa, já que se trata da realização concreta pelo Estado de uma finalidade pública. Em outras palavras, estaríamos diante de uma atividade administrativa, por se tratar de uma função pública consistente em dar forma de ser ou valer a negócios jurídicos, conferindo-lhes fé pública.

Nos países em que o notário não é considerado por lei como integrante do funcionalismo público, essa teoria é fortemente criticada. A doutrina ma-joritária considera que a função notarial não tem natureza administrativa. A função notarial evidentemente tem uma utilidade e uma finalidade pública, mas isso não significa que se trate de uma atividade administrativa de um serviço público típico, já que o notário ou tabelião trata de matérias relativas ao direito privado e os atos por ele praticados não podem ser anulados pela Administração. Ainda que eivada de nulidade ou acometida de falsidade, a escritura pública e demais documentos notariais somente podem ser impugnados e anulados por meio de ação judicial.

No Brasil, o notário não está integrado ao quadro do funcionalismo pú-blico, tampouco está sujeito a algum regime de sujeição hierárquica, embora a atividade notarial se encontre sob o poder fiscalizatório do Judiciário. O vín-

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Cap. 2 • DA FUNÇÃO NOTARIAL 107

PARTE I • O NOTÁRIO E A FUNÇÃO NOTARIAL

culo jurídico que une o notário ao Estado, de fato, é disciplinado pelo direito administrativo: além da fiscalização do Poder Judiciário, o ingresso na função se dá por concurso público e a ele se aplicam sanções do direito administrativo (repreensão, multa, suspensão por 90 dias, perda da delegação), mediante o competente processo administrativo.

No entanto, o ato notarial não é um ato administrativo, não se submete ao direito administrativo e sim ao direito privado, pois se destina a conferir validade e eficácia a determinados negócios jurídicos, além de autenticar fatos e pré-constituir provas.

Em outras palavras, a atividade notarial não é abrangida pela definição de “administração pública”, tal como apresentada por PAULO MODESTO: “A administração pública (...) pode e deve ser conceituada como a atividade subalterna e instrumental exercitada pelo Estado (ou por quem lhe faça as vezes), expressiva do poder público, realizada sob a lei ou para dar aplicação estritamente vinculada à norma constitucional, como atividade emanadora de atos complementares dos atos de produção jurídica primários ou originários, sujeita à dupla sindicabilidade jurídica e dirigida à concretização das finalidades estabelecidas no sistema do direito positivo”.6

Dentre as atribuições que a lei confere ao notário (arts. 6º e 7º, LNR), não se encontra a atividade emanadora de atos complementares dos atos de produção jurídica primários. O tabelião não edita atos administrativos, tampouco regu-lamenta a norma legal, mas cinge-se à sua observância ao dar forma jurídica à vontade declarada pelas partes. Também não se verifica a presença do elemento da dupla sindicabilidade jurídica, pois os atos de sua competência não estão sujeitos a dois tipos de controle jurídico: o jurisdicional e o administrativo. A fé pública dos documentos notariais somente pode ser impugnada na via ju-risdicional e jamais na esfera administrativa, conforme se conclui do disposto no art. 19 da Constituição: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: recusar fé aos documentos públicos”.

Destarte, o labor técnico-profissional do notário sofre apenas o controle jurídico efetuado por meio da jurisdição e nenhum “controle jurídico” autônomo por parte da Administração. A fiscalização dos atos notariais que a Constituição atribui ao Judiciário (art. 236, § 1º) não constitui um controle jurídico, mas sim disciplinar e deontológico. Vale dizer, o Judiciário – no exercício do poder de fiscalização da atividade notarial – não pode cassar, revogar ou modificar o documento notarial. Este somente pode ser modificado por iniciativa das pró-prias partes (v.g. escritura de rerratificação) ou anulado por processo judicial.

6 MODESTO, Paulo. Função administrativa. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 221 e ss.

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