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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE- CCS INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira Rodrigo Costa do Nascimento Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE- CCS

INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

Loucura e Cidadania:

Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica

Brasileira

Rodrigo Costa do Nascimento

Rio de Janeiro

2009

Rodrigo Costa do Nascimento

Loucura e Cidadania:

Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva

Orientador: Prof. Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira

Rio de Janeiro

2009

N244 Nascimento, Rodrigo Costa do.

Loucura e cidadania: avanços e impasses da reforma psiquiátrica brasileira / Rodrigo Costa do Nascimento. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2009. 101 f.; 30 cm. Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira Dissertação (Mestrado)-UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2009. Referências: f. 95-101. 1. Saúde mental. 2. Direitos humanos. 3. Reforma psiquiátrica . 4. Cidadania. I. Ferreira, Arthur Arruda Leal. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título.

CDD 616.8

Rodrigo Costa do Nascimento

Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva

Aprovada em

___________________________________________________________ Arthur Arruda Ferreira Leal - Orientador Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________________ Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________________ Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho

Universidade Federal do Rio de Janeiro

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai, Jorge, e minha mãe, Madair, pela paciência, apoio e confiança, apesar

das minhas loucuras...

À minha mulher, Amana, pelo amor e pela companhia certa, pelo cotidiano das

conversas, dicas, pequenas tarefas e socorros.

À minha irmã Georgia, pela prontidão e conhecimentos de informática.

À Raquel, pela amizade, apoio, compreensão e pela perspectiva da militância em

Direitos Humanos.

Ao meu orientador pela tranqüilidade e disponibilidade, me acalmando e

reanimando nos momentos de incerteza e caos.

À Heliana Conde, pelas derivas e digressões.

À banca examinadora, compreensiva apesar das dificuldades e imprevistos.

Aos ‘Cancioneiros do IPUB’, pelo aprendizado festivo regado a rock’n’roll.

À Pedro (Dropê) e Douglas, pelo grupo de estudos e pelas loucuras compartilhadas

que acabaram por impulsionar esse ciclo de vida que se materializa hoje nesse presente

trabalho.

NASCIMENTO, Rodrigo Costa do. Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)- Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

RESUMO

O presente trabalho analisa e discute o papel desempenhado pelo conceito de cidadania no

processo da reforma psiquiátrica brasileira a partir da articulação existente entre este

conceito e os novos dispositivos legais e assistenciais dos serviços e ações empreendidas no

campo da saúde mental. Para isso, procura-se evidenciar as principais tendências e

movimentos que forjaram as condições de possibilidade sociais e políticas de emergência e

presentificação do conceito de cidadania como elemento central da legislação e das

políticas públicas voltadas para a organização e estruturação da assistência psiquiátrica

brasileira. Assim, a estratégia metodológica adotada se desenvolve no sentido de realizar

uma contra-história, onde a leitura dos diversos estudos e publicações que discorrem sobre

a história do movimento da reforma psiquiátrica brasileira sustenta a indicação dos pontos

de análise e discussão, tais como a forma como a perspectiva dos direitos humanos e sua

fundamentação universalista incide no arcabouço jurídico-político e técnico assistencial

relacionado ao louco e à psiquiatria de modo geral, redimensionando as bases normativas

da relação estabelecida entre cidadania e loucura, gerando uma forma específica de

exercício e garantia dos direitos, aqui denominada como uma espécie de ‘cidadania café-

com-leite’. Desse modo, embora reconheça no louco a condição de sujeito de direito, novas

formas de tutela são desenvolvidas por conta da especificidade de suas demandas e

reivindicações e do sujeito coletivo que agencia essas transformações – o usuário de

serviços de saúde mental ou portador de transtornos mentais – manter-se vinculado ao

enunciado da doença mental.

PALAVRAS-CHAVE: CIDADANIA, REFORMA PSIQUIÁTRICA, DIREITOS HUMANOS

NASCIMENTO, Rodrigo Costa do. Madness and Citizenship: Advances and Problems of the Brazilian Psychiatric Reform. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

ABSTRACT

The present work analyzes and discusses the role played by the concept of citizenship

during the process of the Brazilian psychiatric reform, considering the connections between

this concept and the new legal and assistential aspects of the services and actions developed

in the mental health field. We intended to evidence the principal tendencies and movements

that built the social and political conditions of possibility for the emergence of the concept

of citizenship as a central element for the public policy that organize and structure the

Brazilian psychiatric assistance. In order to do so, our methodology was developed to tell a

counter-history of the movement, where the readings of the different studies and

publications about this process sustains the indication of the topics for analysis and

discussion, as, for example, the way that the perspective of human rights and its

Universalist background influences the juridical policies and the assistential techniques

related to the mentally ill and to the Psychiatry, in general. This resized the normative basis

for the relation established between citizenship and mental illness, creating a new specific

form of practice of the rights, which here we named as a “café au lait citizenship”. So,

although the mentally ill have their condition of subjects of rights recognized, new forms of

custody are developed because of the specificity of their demands and claims, and also

because of the collective subject that drives those changes – clients of the mental health

services or mentally ill people – are still attached to the idea of mental illness.

KEY-WORDS: CITIZENSHIP, PSYCHIATRIC REFORM, HUMAN RIGHTS

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 9

2. RELAÇÕES ENTRE CIDADANIA, LOUCURA E A

CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO

21

2.1 O SURGIMENTO DA CIDADANIA MODERNA 21

2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO 24

3. DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E REFORMA

PSIQUIÁTRICA

31

3.1 PÓS-GUERRA, DIREITOS HUMANOS E UMA NOVA NOÇÃO DE

CIDADANIA

31

3.2 OS MOVIMENTOS DE REFORMA PSIQUIÁTRICA 42

3.3 O MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA 45

4. LOUCURA E CIDADANIA: ALIANÇAS, NÓS E PONTOS CEGOS 61

4.1 O UNIVERSAL “CAFÉ-COM-LEITE” 61

4.2 OS NOVOS DIREITOS DOS NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS 69

4.2.1 A Lei Federal 10.216 de 2001 69

4.2.2. Novos direitos, programas e ações afirmativas 75

4.3 A JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO 77

4.4 OS ANTECEDENTES E RISCOS DOS NOVOS SERVIÇOS 80

5. CONCLUSÃO 87

6. REFERÊNCIAS 95

9

1. INTRODUÇÃO

Sem dúvida, um dos acontecimentos mais marcantes do século XX diz respeito aos

horrores do holocausto e às atrocidades cometidas nos campos de concentração nazistas,

onde prisioneiros de guerra e imensas populações de origens culturais e características

específicas – judeus, homossexuais, ciganos e negros – foram seguidamente submetidas a

maus tratos, torturas e toda sorte de atos de extrema violência. Atos que compreendiam

desde a realização de experiências científicas com seres humanos – tomados como cobaias,

na medida em que eram considerados menos humanos – resultando em mutilações,

deformações e mortes, até a execução de assassinatos em massa com a utilização de

técnicas letais variadas. E na base desse genocídio, o ideal nazi-fascista, com pressupostos

eugênicos de dominação e hierarquização da vida humana, com a adjacente eliminação da

diferença ou, segundo seu prisma, das raças ditas inferiores, fracas, sem valor.

A então derrota militar para os países aliados, e a própria forma como a segunda

guerra mundial encontrou seu desfecho, com o lançamento das bombas atômicas e a

aniquilação total das cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaki, geraram uma profunda

discussão acerca da reorganização da vida em sociedade e a criação de leis e parâmetros em

escala planetária que impedissem a repetição dessa tragédia e preservassem as gerações

futuras desse flagelo. Urgia, dos escombros das batalhas, a formulação e implementação de

um sistema normativo internacional e a construção de uma base jurídica e política

consensuada que regulamentasse e evitasse possíveis conflitos futuros de magnitude

semelhante, cuja desenrolar pudesse descambar novamente para uma situação absurda e

inaceitável como essa.

Quando a opinião pública mundial tomou conhecimento das atrocidades praticadas

pelos regimes totalitários, difundiu-se um sentimento de revolta e a convicção de que

qualquer forma de destruição deliberada de um grupo étnico, racial ou religioso, promovida

por autoridades através de instituições governamentais na forma de uma política estatal,

“constituía um crime cuja gravidade superava em muito o elenco tipológico dos delitos

definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violações tradicionais dos princípios do

direito internacional” (COMPARATO, 2001).

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Emerge assim, amplificada por esse clamor popular, a necessidade de reconstrução

do valor dos direitos humanos, tomados como paradigma e referencial ético para orientar e

subsidiar a nova ordem social que se anunciava e impunha.

Dentro dessa perspectiva, reivindicada pelas circunstâncias ditadas por esse

acontecimento e liderada politicamente pelas nações vencedoras da Segunda Guerra

Mundial, se empreende a fundação da Organização das Nações Unidas em 1945 e a

releitura contemporânea do conceito de cidadania e direitos humanos, inicialmente

propostos em 1798, pela Revolução Francesa, na Declaração Universal dos Direitos do

Homem e do Cidadão, e agora atualizada e repactuada na Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948 (PIOVESAN, 2008). Concepção refundada dos direitos

humanos fundamentais, marcada pela afirmação da universalidade e indivisibilidade desses

direitos, tendo como meta principal elevar a condição de pessoa humana como único e

exclusivo requisito para a titularidade da cidadania nas diversas dimensões existentes dos

direitos – civis, políticos, sociais, dentre outras.

Além disso, a denúncia das torturas e atrocidades praticadas nos campos de

concentração, paradigma organizacional dos regimes totalitários (LAFER, 2003),

impulsionaram o questionamento de uma série de instituições moldadas e criadas na aurora

da modernidade, agora comparadas aos mesmos campos de concentração que tanto

envergonharam e mancharam o mundo de sangue e horror.

Dentre esses levantes e questionamentos, estão incluídos os movimentos de reforma

psiquiátrica desenvolvidos ao redor do mundo, que reconfiguraram o modo como se

percebe e articula o saber e prática psiquiátrica. Movimentos estes que se caracterizaram,

de modo geral, por severas críticas e denúncias das improbidades, abusos e contradições

relacionadas ao saber psiquiátrico tradicional e seus correlativos dispositivos disciplinares,

com uma ênfase especial contra os asilos e manicômios, encontrando respaldo e coerência

num mundo marcado pelos horrores da guerra.

Amarante (1995a), seguindo periodização e definição proposta por Birman & Costa

(1994), aponta como os principais movimentos de reforma psiquiátrica: as comunidades

terapêuticas e a psicoterapia institucional, representando críticas que se restringiram a uma

reforma do âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria comunitária ou preventiva

11

enquanto uma forma de ampliar e superar as reformulações restritas ao espaço asilar; e, por

fim, a antipsiquiatria, as experiências de Franco Basaglia e a Psiquiatria Democrática

Italiana, como iniciativas que procuraram romper com esses movimentos acima, trazendo

em seu bojo articulações e críticas de cunho social, político e cultural acerca dos

dispositivos institucionais do aparato médico-psiquiátrico, questionando a própria

legitimidade dos seus principais axiomas.

Esse conjunto de movimentos e críticas gerou um extenso campo problemático de

disputas e embates sociais, políticos e epistemológicos, difundindo-se ao redor do mundo e

fundando novos olhares e novos modos de atuação a partir de seu ideário, em cujo escopo

fundamental está uma série de proposições alternativas ao modelo asilar tradicional – cujo

conteúdo se compõe basicamente de propostas de desospitalização e desinstitucionalização

do doente mental.

Desse modo, as diversas proposições concernentes a esse paradigma giravam em

torno da elaboração, produção e implementação de novos modelos e modalidades de

tratamento e abordagem da questão da loucura, ampliando o debate para além dos

tradicionais postulados pertinentes aos axiomas psiquiátricos. Em suas produções e

experiências, procuravam construir um novo olhar para a doença mental, “deslocando-a de

um quadro nosográfico individualizado para a multiplicidade de conexões que a

constituíam: conexões históricas, políticas, familiares, sociais, afetivas, orgânicas”

(SANTOS, 2003, p.118).

Essa ampliação possibilitou que outros saberes, tais como a sociologia, a

antropologia, o direito, fossem progressivamente ganhando espaço e destaque na discussão,

criação e definição de conceitos e premissas que passaram a fundamentar e orientar a

formulação e a execução de políticas públicas, o desenvolvimento de novas técnicas

terapêuticas e a produção científica relacionada ao tema.

No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que é deflagrado, principalmente,

em fins da década de 1970, tendo como fundamentos uma crítica conjuntural ao subsistema

nacional de saúde mental, aliada a uma crítica estrutural ao saber e às instituições

psiquiátricas clássicas, dentro de toda uma movimentação de transformações político-

sociais que caracterizaram a conjuntura de redemocratização (AMARANTE, 1995a). Desse

12

modo, é um processo que se desenvolve em paralelo às mudanças efetuadas no panorama

econômico, político e cultural do país, em um contexto de reivindicações por mudanças

políticas concretas e de proliferação de movimentos sociais.

No caso brasileiro, assim como ao redor do mundo, essas novas perspectivas,

problematizações, questionamentos e objetos de análise subsidiaram a construção de um

novo continente de saberes e práticas sociais e discursivas que passou a legislar, delimitar e

definir múltiplas concepções, iniciativas, ações e reordenamentos da rede de serviços de

saúde mental. Neste contexto, dentre os diversos conceitos trabalhados, emerge

predominantemente a noção de cidadania como elemento central das ações empreendidas

pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira.

Grosso modo, podemos apontar três momentos fundamentais do processo de

reforma, ou, melhor dizendo, três trajetórias, no sentido de “percursos, caminhos que,

muitas vezes, se entrecruzam, se sobrepõem” (AMARANTE, 1995a) sem que configurem

uma periodização estanque nem uma gradação evolutiva, tal como os termos etapas ou

conjunturas poderiam indicar.

Em um primeiro momento, a “trajetória alternativa”, durante os últimos anos da

década de 1970, com uma intensa produção de ações libertárias com relação aos chamados

doentes mentais (NICÁCIO, 2003). Esse momento, especialmente marcado pela conjuntura

de redemocratização do país e da afirmação dos direitos humanos universais, desenvolveu-

se em consonância com as principais transformações da psiquiatria desenvolvidas nos

Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália, e pelos movimentos na área da saúde, onde a

construção do pensamento crítico teve como base conceitual, sobretudo, as obras de

Foucault, Goffman, Castel e Basaglia, dentre outros.

Emerge desse contexto, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM),

apresentando denúncias e acusações direcionadas ao sistema nacional de assistência

psiquiátrica gerido pelo governo militar, tais como maus tratos, diversos, negligências e

mesmo a prática de torturas no interior dos estabelecimentos hospitalares, além da

ocorrência de fraudes e outras formas de corrupção (AMARANTE, 1995a).

Nesse momento inicial, ancorado por uma crítica e uma efervescência política

diretamente ligada ao questionamento de toda forma de repressão e autoritarismo, e

13

motivada por uma reverberação contundente de suas denúncias em veículos de

comunicação e na opinião pública em geral, o movimento de reforma adotou uma postura

francamente aguerrida e radical, questionando os alicerces que sustentavam o próprio

paradigma psiquiátrico como um todo.

No início dos anos 1980, se empreendeu um novo momento, a chamada “trajetória

sanitarista”, desenvolvida até a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em

1987. Ao longo desse período, observamos uma tendência institucionalizante, com a

adoção de uma estratégia de ocupação da burocracia estatal no que se refere aos projetos de

transformação assistencial.

Principalmente por conta da influência e união com o movimento sanitarista – como

indica o próprio nome conferido a esta trajetória – cujo caráter reivindicatório preconizava

a ocupação dos espaços públicos de gestão, suas críticas e propostas se voltaram

prioritariamente para a reestruturação da assistência psiquiátrica prestada, sendo balizadas

por razões de ordem técnica. Estavam, portanto, alinhadas às propostas de releitura do

conceito de cidadania empreendido no contexto nacional dessa época, onde se reivindicava

a proteção social como um dever do Estado e da sociedade como um todo, com a defesa da

universalidade do acesso a serviços de qualidade que garantissem efetivamente o usufruto

pleno dos direitos concernentes à população brasileira. E dentre eles, o direito à saúde

mental.

Desse modo, as propostas desse período se ancoraram mais fortemente em razões de

ordem política, econômica e operacional, vinculadas ao campo da saúde em geral,

agregando as especificidades relacionadas à assistência psiquiátrica. Construiu-se assim

uma nova racionalidade assistencial, onde o modelo asilar passou a ser representado como

um modelo superado, cronificador e inadequado do ponto de vista terapêutico, além de

dispendioso e apresentando distorções em relação ao projeto político nacional que então se

delineava.

Nesse contexto, realizou-se o II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental em

São Paulo, onde se delineou o início de uma nova direção para o movimento, a partir da

explicitação de um novo campo ético-político como base para o projeto de transformação

da atenção psiquiátrica: o direito de cidadania das pessoas com transtornos mentais

14

(LANCETTI, 1987). Com essa proposição, iniciava-se, naquele período, uma profunda

mudança de ótica na forma de compreender a relação entre loucura, direitos e tutela, que

será aprofundada e problematizada nos anos posteriores, engendrando mudanças

significativas nas dimensões assistencial, jurídica e sociocultural. (NICÁCIO, 2003)

Deu-se início, desde então aos dias de hoje, à “trajetória da desinstitucionalização

ou da desconstrução/invenção” (AMARANTE, 1995a, p.93), quando o processo de reforma

psiquiátrica brasileira procura produzir uma ruptura com os marcos conceituais e com as

estratégias políticas e operativas desenvolvidas e se direciona para a construção de novos

aparatos e novas abordagens dos corpos técnicos e assistenciais que sejam orientados pela

premissa fundamental do respeito à cidadania do doente mental.

Assim, levantando a bandeira ‘Por uma Sociedade sem Manicômios’, o movimento

de reforma passou a se orientar na direção dos objetivos e mudanças propostas por Basaglia

e pela Psiquiatria Democrática Italiana, segundo uma forte negação do modelo de

assistência psiquiátrica tradicional, “incluindo nesta recusa tanto o velho asilo, quanto

novas tutelas sem grades aparentes” (RODRIGUES, 2003, p.45).

Para entendermos melhor esse momento, e a direção tomada pelo movimento de

reforma psiquiátrica, é primordial o entendimento do conceito de processo social complexo,

utilizado por Rotelli, Leonardis & Mauri (2001) para caracterizar a desinstitucionalização

italiana – modelo notoriamente adotado pelo movimento brasileiro – e diferenciá-la da

ocorrida na Europa e nos Estados Unidos que, para ele, reduziu-se, segundo o autor, a uma

mera desospitalização, motivada exclusivamente pela necessidade de racionalização

financeira e administrativa.

Para esses autores, o trabalho de desinstitucionalização psiquiátrica tornou-se, na

Itália, um processo social complexo voltado para a mobilização dos sujeitos sociais

envolvidos, a transformação das relações de poder entre os pacientes e as instituições, a

produção de novas estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no

Hospital Psiquiátrico (ROTELLI, LEONARDIS & MAURI, 2001, p. 18).

Trocando em miúdos, Amarante (1999) define o conceito de processo social

complexo como um movimento amplo composto de fatores inter-relacionados, onde

podemos destacar quatro campos fundamentais: um campo teórico-conceitual ou

15

epistemológico, empreendendo o trabalho de desconstrução e reconstrução dos principais

conceitos fundantes da psiquiatria, tais como doença mental, alienação, saúde mental,

dentre outros; um campo técnico-assistencial, onde se busca a construção de uma rede de

novos serviços, substitutivos ao modelo terapêutico tradicional; um campo jurídico-

político, voltado para a revisão das legislações existentes, no que estão relacionadas à

questão psiquiátrica; e um campo sócio-cultural, onde se procura operar uma transformação

do imaginário social da loucura.

Embora a palavra ‘reforma’, de certo modo, não contemple a amplitude almejada

por este processo social complexo – podendo ser associada a mudanças meramente

superficiais – segundo seus proponentes, pretende-se, de modo geral, desinstitucionalizar o

paradigma psiquiátrico, ou seja, reconstruir a complexidade do objeto trabalhado,

desmontando o conceito de doença, retomando o contato com a existência e o sofrimento

do sujeito e sua ligação com o corpo social, não mais para curar, mas para a produção de

vida, de outros variados sentidos, de sociabilidade e de espaços coletivos de convivência

(YASUI, 2006).

Assim, o termo desinstitucionalização aponta para a superação da idéia de um

reformismo simplista, restrito a uma mudança técnica ou administrativa, voltado para uma

mera desospitalização, descortinando um novo e extenso campo de possibilidades e

trazendo consigo diversos novos desafios éticos, teóricos, sociais, institucionais e jurídicos.

Desafios estes que vêm gerado uma série de respostas, avanços e impasses, além de

inúmeras contradições concernentes tanto ao seu campo específico, quanto ao contexto

macro-político nacional, profundamente alterado pela implementação, em meados da

década de 1990, de reformas estruturais de cunho neoliberal.

No entanto, apesar desses avanços, uma questão, central no presente trabalho, se

instala quando pensamos esse processo e nos debruçamos sobre os marcos conceituais e

teóricos que fundamentam as práticas atuais, em especial, a articulação do conceito de

cidadania com esse processo de reforma psiquiátrica brasileira. Articulação esta que traz

em seu âmago a aposta de uma positivação do louco enquanto cidadão e sujeito de direitos,

para além da negatividade imanente ao conceito de doença mental e a imagem de um

indivíduo desprovido das características humanas mais essenciais – sua razão e sua vontade

16

– e por isso excluído da sociedade. Em outros termos, a construção de um outro lugar social

para a loucura (BIRMAN, 1992).

Sem dúvida, na medida em que uma série de direitos de cidadania foram

incorporados ao arcabouço jurídico relacionado à loucura– especialmente a possibilidade de

livre circulação pela cidade – os avanços alcançados pelo processo de reforma alteraram

profundamente o aparato terapêutico e o modelo assistencial psiquiátrico.

Houve o notório desenvolvimento de um processo de substituição gradativa do tipo

de assistência psiquiátrica baseada na internação por outros modelos, caracterizados por

serviços abertos, tais como os CAPS e as residências terapêuticas. O projeto de lei 3.657,

apresentado em 1989, após quase doze anos de tramitação no Congresso Nacional, foi

finalmente aprovado em abril de 2001, dando origem à lei 10.216, cujo conteúdo limita e

submete ao Ministério Público grande parte dos procedimentos relacionados às internações

psiquiátricas.

Porém, dada a normatividade imanente ao conceito de cidadania vivenciado nos

dias de hoje, essa articulação produziu, em suas limitações e contradições, um lugar social

ainda diminuído, e de certa forma, menorizado. Uma cidadania que poderíamos, lançando

mão de uma expressão popular, denominar como uma cidadania ‘café-com-leite’1, especial,

onde viceja ainda a noção de ausência de obra, matriz da incapacidade, da periculosidade,

da irresponsabilidade e de outros aspectos estigmatizantes com que se molda e delineia a

loucura. Uma forma de cidadania, de certo modo, excessivamente passiva e entremeada

com benefícios especiais.

Alguns autores já apontaram para novos problemas relacionados a esse processo

descrito acima como a atenuação do processo de desinstitucionalização que assume ares

reinstitucionalizantes (RODRIGUES, 2003), ou, nas palavras de Amarante uma

“capsização” da reforma onde “se está reduzindo todo o processo social complexo de

reforma psiquiátrica a uma reorganização administrativa e tecnocrática de serviços”

(AMARANTE, 2003, p.62-63). Assim, o que inicialmente pretendia transformar

1 Segundo o Wikipedia: “O café-com-leite também serve de expressão lingüística, uma gíria. É usado para designar a pessoa que participa de uma ação com neutralidade (não pode dar conselho e não pode ser aconselhado), somente participando”.

17

radicalmente a relação entre sociedade e loucura, hoje, ao que parece se direciona para uma

clínica modernizada e uma psiquiatria renovada, redimensionada institucionalmente

segundo os parâmetros éticos e morais da atualidade.

Assim, com o intuito de promover a análise e discussão do papel desempenhado

pelo conceito de cidadania no processo de reforma psiquiátrica brasileira, o objeto do

presente trabalho diz respeito à articulação existente entre este conceito – cidadania – e os

novos dispositivos legais e assistenciais dos serviços e ações empreendidas no campo da

saúde mental.

Para construir as bases de entendimento e análise desse processo, iremos remontar a

esse percurso brevemente apresentado acima, buscando, ao mergulhar nos contextos

históricos de cada trajetória apresentada, delinear por trás dos grandes marcos e

acontecimentos que modularam esse processo quais motivações impulsionaram suas

transformações e inovações, suas escolhas e rumos.

Desse modo, procura-se vislumbrar os indícios de porquê e como a articulação com

o conceito de cidadania pôde por um lado, produzir rupturas e avanços indiscutíveis no que

se refere à forma como se trata e pensa a loucura ao longo do tempo, e de outro, criar

impasses e perpetuar certas visões naturalizadas e cristalizadas, erigindo barreiras

aparentemente intransponíveis.

Adotaremos para a análise pretendida no presente trabalho uma perspectiva de

inspiração genealógica, que se desenvolve aqui na forma de uma contra-história. A

genealogia foi inicialmente proposta por Nietzsche, que a empregou no esforço de

desconstrução dos valores da moral e da verdade, tidas então como “verdades

transcendentes que se impunham ao mundo sensível como superiores a este” (MARTINS,

2004). Para ele, essa transcendência atribuída a esses conceitos ocultava aspectos como o

egoísmo, a culpa e de modo geral as disputas políticas que os engendravam e, desse modo,

modulavam formas de dominação.

Desse modo, ao recusar a leitura de formas essenciais, esse método procura

demonstrar o caráter histórico, contextual e mesmo ficcional dessas construções, partindo

da premissa de são regidas pelos valores vigentes na sua época.

18

Partindo da perspectiva foucaultiana, que concebe a formação dos objetos como

uma ação própria da história em seu caráter fortuito e acidental, forjando nessa operação

uma natureza transcendente e essencial para esses objetos, a genealogia se configura como

um exercício de “desconstrução destas ficções de verdades, de propiciar colocar a nu a

construção do que hoje aparece como natural e inevitável” (MARTINS, 2004, 954). Busca-

se assim apontar os aspectos cristalizadores e perpetuadores das assimetrias e relações de

força que motivam a construção desses objetos e concernem à vida e dos embates próprios

das diversas arenas e campos da existência concreta.

Desse modo, ao nos lançarmos para uma investigação do passado, procuramos

identificar a política da verdade em jogo para cada recorte e contexto estudado, procurando

discernir “o conjunto de procedimentos regrados para a produção, a distribuição e a

circulação de enunciados aos quais se atribui efeitos específicos de poder: o poder de serem

aceitos como verdadeiros” (BRUNI, 1989, p.203).

Ao adotarmos uma estratégia metodológica no sentido de um contra-história, em um

primeiro momento, apresentaremos a história da reforma psiquiátrica tal como é contada

em diversos estudos e publicações que, por seus autores serem, eles mesmo, atores sociais

envolvidos no processo da reforma, assume a feição de relatos históricos ‘oficiais’. Desse

modo, procuraremos apontar novas perspectivas e olhares acerca da reforma psiquiátrica

brasileira através da problematização de alguns elementos desses relatos e sua constante

interação com as vicissitudes e teorias relacionadas ao conceito de cidadania.

Noutras palavras, ao investigarmos o passado recente da reforma psiquiátrica

brasileira e a articulação forjada com o conceito de cidadania, procuraremos indicar o jogo

de forças de transformação e inércia atuantes nesse processo. Do mesmo modo, podemos

perceber como os argumentos e proposições se moldaram em consonância com as formas

de entendimento e com os valores de cada época, assim como os acontecimentos que foram

relevantes nesse itinerário.

Aliás, vale aqui uma breve consideração acerca da forma como o conceito de

acontecimento é aqui adotado, assim como quais dos inúmeros acontecimentos ocorridos

no período serão analisados como diretamente implicados no processo estudado.

19

Lançando mão de uma metáfora trivial, podemos aproximar o conceito de

acontecimento como eventos que, enredados na trama histórica, funcionam como pedras

atiradas na superfície de um lago, onde as ondulações produzidas nessa superfície seriam

tais como as transformações impulsionadas nos diferentes contextos sociais, políticos e

históricos da vida dos homens. Eventos concatenados pelas próprias relações existentes e

reconfigurados segundo a ação de encontros fortuitos do cotidiano, que potencializam a

criação de novos sentidos e novas leituras das diversas dimensões da vida e dos homens.

Dentre esses eventos, a Revolução Francesa do século XVIII é apresentada, no

primeiro capítulo, como marco fundamental da constituição do paradigma psiquiátrico e da

construção do dispositivo asilar como principal instrumento do saber e prática psiquiátrica,

calcado numa condição negativa de cidadania e no enunciado da doença mental.

Posteriormente, já no século XX, analisaremos, no segundo capítulo, como a

eclosão da Segunda Guerra Mundial e os horrores do holocausto se configurou como

mobilizadores de diversas críticas e releituras do conceito de cidadania e dos direitos

humanos. Ainda nesse capítulo, no que se refere ao contexto nacional, veremos como o

movimento de redemocratização possibilitou o surgimento do movimento de reforma

psiquiátrica brasileira, assim como as suas diferentes trajetórias – alternativa, sanitarista e

da desinstitucionalização. Desse modo, procura-se reconstituir o processo que forjou a

articulação com o conceito de cidadania, agenciando as transformações operadas, com

ênfase para a formação e difusão de novos serviços e da revisão legislativa realizada.

Já no terceiro capítulo, a partir do levantamento de três pontos específicos de análise

– a questão da universalidade, a tendência de judicialização das relações sociais e os

antecedentes e riscos relativos aos novos serviços em saúde metal – realizaremos a

problematização do processo de reforma tal como se apresenta nos relatos históricos sobre

o período, assim como a forma como se desenvolveu a convergência entre loucura e

cidadania nos seus novos marcos legais e assistenciais.

Por fim, a título de conclusão, analisaremos os avanços e impasses encontrados no

processo de reforma psiquiátrica brasileira a partir da articulação desta com o conceito de

cidadania, demonstrando, enquanto hipótese central do presente trabalho, que os problemas

enfrentados pelo movimento estão diretamente relacionados a essa mesma articulação. Isso

20

por conta da união entre um conceito com uma grande dimensão positiva, tal como o é a

cidadania, e a loucura, presa ainda nas teias do enunciado da doença mental, agora

redimensionada em sofrimento psíquico e existencial, mas, ainda assim,

predominantemente negativa e tutelada pelo saber e prática psiquiátricos.

Assim, se por um lado a aliança entre cidadania e loucura trouxe uma força

libertária incontestável, por outro, evidencia uma carga normativa e jurídica

excessivamente passiva, voltada para o desenvolvimento de ações afirmativas e calcada

numa abordagem negativa – da falta, deficiência ou incapacidade, o que acaba por limitar e

refrear o ímpeto transformador original.

Vale ressaltar ainda que ao longo de toda a dissertação essa relação será discutida,

de maneira que possamos perceber as múltiplas possibilidades de conexão existentes na

história dos conceitos de loucura e cidadania, desnudando ainda os acontecimentos que

produziram, em diferentes contextos, diferentes formas de articulação.

21

2. RELAÇÕES ENTRE CIDADANIA, LOUCURA E A CONSTITUIÇÃO DO

SABER PSIQUIÁTRICO

Para renascer, e às vezes para nascer,

é preciso morrer, e ele começou morrendo

(Moacyr Scliar, 2005)

2.1 O SURGIMENTO DA CIDADANIA MODERNA

Um primeiro aspecto a ser analisado quando pensamos nas relações existentes entre

o conceito de cidadania e a loucura diz respeito ao caráter histórico destes conceitos, e em

particular da cidadania, regido principalmente pelo princípio universalista que

fundamentava os ideais revolucionários da França do século XVIII – liberdade, igualdade e

fraternidade.

De modo geral, embora a discussão em torno da temática da cidadania

inevitavelmente trate de alguns elementos similares, como participação política, a questão

da liberdade, a condição de igualdade entre os homens e a disposição e distribuição de uma

série de direitos e deveres que apontam para uma característica intrínseca à civilização

ocidental como um todo, em cada época houve a produção peculiar de práticas, reflexões e

discursos muito distintos sobre esse conceito.

Portanto, não podemos abordar o conceito de cidadania como se encerrasse uma

definição fechada em si, mas sim como um conceito histórico, que varia de sentido no

tempo e no espaço não somente pelas regras que apontam quem é ou não titular da

cidadania, mas, sobretudo, pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em

cada contexto sócio-político, histórico e cultural a que estão intrinsecamente imbricados.

Todavia, não obstante a inadequação de uma perspectiva linear de análise desse

percurso, para alguns autores, como Jaime Pinsky (2005), ainda que não se possa pensar a

cidadania segundo uma seqüência evolutiva única, de cunho determinista e necessário,

podemos entrever um processo que evolui historicamente segundo uma perspectiva inicial

de ausência de direitos para sua ampliação.

Dito isto, passemos então a rever brevemente algumas vicissitudes e transformações

operadas sobre a forma de conceituação da cidadania através de distintas culturas e

contextos sócio-históricos.

22

O debate em torno das formas e conceituações relacionadas com a cidadania – assim

como o próprio termo – remonta à Antiguidade Clássica, na Roma e Grécia antigas. De

acordo com Roberto DaMatta (1992), a palavra portuguesa ‘cidadania’ deriva do vocábulo

latino ‘civitas’, origem etimológica ainda dos vocábulos ‘cidade’ e ‘civil’, que encontra

como sinônimo grego a ‘polis’.

Podemos apontar a democracia grega como o berço do conceito de cidadania. É na

Grécia Antiga que, pela primeira vez, se pensa na possibilidade da construção de uma

sociedade formada por homens livres e iguais. Entretanto, apesar desse pretenso ideal

igualitário, na vida pública da ‘polis’ grega o conceito de cidadão estava condicionado a

uma visão muito peculiar do ser humano, onde a noção de homens livres excluía de seu

escopo crianças, mulheres, povos bárbaros e escravos. Diante disso, podemos afirmar que o

conceito de cidadania grego era regrado por uma lógica excludente, sendo mais

devidamente relacionado ao usufruto e vivência de poucos do que, visto pelos olhos do

presente, podemos denominar como privilégios de uma minoria.

A análise da cidadania tal como é pensada nos dias atuais está diretamente ligada à

gênese moderna do conceito, cujo marco fundamental remonta às Revoluções Burguesas

dos séculos XVII e XVIII, que culminaram com a Declaração de Independência dos

Estados Unidos da América e, em particular, à Revolução Francesa, lançando as bases para

a compreensão da questão da liberdade individual e da igualdade entre os homens. Esses

eventos romperam o princípio de legitimidade vigente até então, o qual estava baseado na

noção de deveres dos súditos, passando a estruturá-los a partir do que se convencionou

chamar como direitos do cidadão (PINSKY, 2005).

Esse processo de lutas e revoluções é caracterizado basicamente como uma

oposição às normas difusas, indiscriminadas e arbitrárias da sociedade feudal (MANZINI-

COVRE, 1991). A crise do sistema feudal, a decadência da noção de predestinação

concernente à milenar percepção teológica alimentada pela Igreja Católica Romana e o

questionamento da legitimidade de uma sociedade cuja hierarquia era fundada a partir de

privilégios de nascença impulsionaram uma série de críticas, conflitos e insurreições

(MONDAINI, 2005).

O processo de expansão marítima e a estrutura mercantilista forjaram o surgimento

de uma burguesia economicamente poderosa. A proliferação de medidas monárquicas

23

como a ampliação dos rendimentos advindos da tributação feudal e a criação de novos

impostos e monopólios contribuíram para um ambiente de extrema insatisfação, crescente e

generalizada. O modo de vida aristocrático, marcado pela exaltação do ócio, passou a

incomodar profundamente aqueles que começaram a experimentar um sentimento de

coerção e um engessamento da liberdade, impostos pelas teorias religiosas e filosóficas que

defendiam a existência de uma predestinação divina.

Além disso, o desenvolvimento do saber científico e sua força crítica, aliados a uma

nova ética religiosa disseminada pelo movimento da Reforma Protestante, começam a

inviabilizar uma continuidade absoluta da maneira transcendente de explicar o mundo, o

homem e a história. Novos pressupostos filosóficos passaram ainda a desenvolver a visão

do homem como sujeito do seu destino e não mais como mero objeto de uma razão divina

exterior. Naquele momento, uma consciência histórica foi sendo construída sem ser

exclusiva da intelectualidade e dos grandes pensadores, “mas também da classe ascendente,

a burguesia, que percebe sua importância nas transformações sociopolíticas, econômicas e

mesmo culturais que estão sucedendo” (ODALIA, 2005, p.160).

Todo esse panorama impulsionou a deflagração de uma série de sangrentos e

acirrados conflitos sociais. A burguesia e o povo em geral se unem na luta contra o poder

real, a nobreza e o clero, numa irrupção de processos revolucionários ambientados

principalmente na Europa e na América do Norte. Por meio desses movimentos, promoveu-

se uma ruptura com a tradicional organização social e política próprio das sociedades

feudais, iniciando-se a construção de uma nova estrutura de sociedade.

A eventual vitória e tomada do poder dessa burguesia revolucionária instituiu um

modelo universal de direitos do homem, baseado nos conceitos de liberdade, igualdade e

fraternidade, a partir do qual a condição de cidadania passou a ser reconhecida social e

politicamente, sendo representada em termos de igualdade perante a lei.

Assim, surgia daí a conceituação de um Estado de Direito, de cunho liberal, regido

por uma contratualidade consensual balizada por documentos e leis, nos quais são

regulamentados e constituídos, aos indivíduos dotados de racionalidade, certo número de

direitos naturais, como o direito à vida, à liberdade e a posse de bens (MONDAINI, 2005).

Desse modo, é na de passagem do feudalismo para a formação dos Estados-nação

que observamos o surgimento da cidadania moderna. Conforme Monteiro (2006, p.26),

24

Esse surgimento ocorreu através de um processo duplo, de fusão e separação (...) geográfica - com a própria formação dos Estados-nação - e a separação funcional - com a criação de instituições independentes, como tribunais e parlamentos. Esse duplo processo acarretou como conseqüência, que cada uma destas instituições passassem a seguir um caminho com princípios próprios,e estas passaram a ter um caráter nacional e especializado, não mais restrito e ligado de forma mais íntima à vida dos grupos sociais de caráter local.

Grosso modo, é justamente esse específico contexto histórico, de profundas

transformações e efervescência, que produzirá os meios e condições de possibilidade para a

concatenação e articulação da loucura com o enunciado da enfermidade mental e a

construção do saber e prática psiquiátricos.

2.2. A CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO

O século XVIII, a partir das inúmeras transformações vivenciadas na Europa e no

mundo em geral, tornou a preocupação com as condições de vida e saúde uma questão de

teor estratégico para o desenvolvimento das nações e o acúmulo de riquezas. Preocupação

esta que repercutiu, notável e especialmente, na forma como era estruturada a assistência

fornecida à – recém definida conceitualmente – população.

O ideal moderno de uma sociedade absolutamente racional, protagonista desse

processo de transformações e ebulição social, inscreveu a medicina em um lugar

estratégico, constituindo-se, segundo Birman (1992, p.80), como

(...) o campo de saber que poderia, pela transformação racional das regularidades da natureza, possibilitar a constituição de corpos saudáveis e instituir as condições higiênicas no espaço social [...], de maneira que promovendo a maior riqueza das nações pela mediação da produção da saúde, poderia organizar também as condições mais eficazes de sociabilidade que possibilitariam o exercício pleno da cidadania.

Essas reconfigurações, da sociedade como um todo e do papel social desempenhado

pela medicina, impulsionaram um movimento de reforma dos hospitais, que deveriam se

reorganizar com vistas a passar de lugar de hospedagem, depósito e espera da morte para o

lugar de cessação de doenças, assumindo agora um caráter prioritariamente médico e

terapêutico.

Até então, o hospital se constituía essencialmente como uma instituição de caridade

que tinha como função principal a prestação de assistência aos pobres. Seu objetivo não era

proporcionar a cura, mas, antes, oferecer um ambiente acolhedor para os que aguardavam a

25

morte. Além disso, o médico não era um personagem constante no cenário do hospital. Pelo

contrário, suas visitas eram raras e limitadas.

Segundo Robert Castel (1978), o hospital se constituía ainda como uma espécie de

solução imposta às pessoas que apresentavam costumes e comportamentos percebidos

como inadequados, em um estado de ruptura com a integração social. Na França, as ordens

de internações – lettre-de-cachet – eram estabelecidas pela autoridade real, determinando o

recolhimento em casas de correção ou em hospitais gerais. Esses estabelecimentos

funcionavam como instituições voltadas para a reclusão e abrigo daqueles indivíduos que,

de algum modo, perturbavam a ordem social – loucos, prostitutas, libertinos, doentes,

pobres, ociosos, etc. Conforme o autor, as internações efetuadas nesses estabelecimentos

hospitalares não eram propriamente determinadas pela ocorrência ou irrupção de alguma

doença, mas, sim, por uma prerrogativa moral que justificava a realização dessas

intervenções com o intuito de exercer um controle efetivo sobre a população.

O processo de reestruturação do dispositivo hospitalar em geral foi implementado

na França no final do século XVIII. Em meados de 1780, atendendo à solicitação da

Academia de Ciências, Tenon realizou uma série de viagens-inquérito, desenvolvendo

descrições funcionais dos hospitais visitados. Essas visitas e esse estudo como um todo

tinham como objetivo a coleta de informações para implementação da reestruturação do

Hospital Geral de Paris (FOUCAULT, 2000).

Assim, foram vistoriados e analisados nessas visitas fatores como o número de

doentes, sua localização no espaço hospitalar, a forma de tratamento dispensado, a

dimensão das salas, as taxas de mortalidade e de cura, a rotina das pessoas que ali

trabalhavam e seus hábitos, o percurso realizado pelo material utilizado (roupas, panos,

lençóis), etc. Desta forma, pôde se desenvolver e consolidar um novo olhar sobre o

hospital, atentando para os seus efeitos nocivos e para a cura que deveria proporcionar.

Conforme Foucault (op.cit.), essa reorganização do hospital que possibilitou a sua

medicalização, ocorreu graças ao desenvolvimento de uma tecnologia política específica, a

disciplina. Este conjunto de técnicas e procedimentos caracterizava-se por uma arte de

distribuição espacial dos indivíduos, onde os corpos devem ocupar um espaço previamente

individualizado e classificado; pelo controle exercido sobre o desenvolvimento de uma

ação e não sobre o seu resultado; por uma técnica de poder que requer uma vigilância

26

permanente e constante dos indivíduos; e por um registro contínuo e minucioso de tudo o

que ocorre na instituição.

Neste momento, a prática médica passava, também, por uma série de

transformações. Inicialmente, a reforma e reestruturação dos hospitais eram voltadas para a

anulação de seus efeitos negativos ao ambiente, pois, segundo o modelo das ciências

naturais, a doença era entendida como um fenômeno natural, resultado de uma ação direta

do meio sobre o indivíduo. Diante disso, a intervenção médica deveria ser dirigida para o

meio que circunda e difunde a doença.

Para obter o desejado conhecimento sobre a doença, o médico lançava mão do

modelo epistemológico da botânica, das ciências naturais, conhecido como o método

classificatório de Lineu. Conforme Britto (2004), o emprego deste método de conhecimento

das ciências naturais relacionava-se diretamente com a garantia à medicina de um estatuto

de ciência racional. O método naturalista baseava-se, essencialmente, na observação e na

análise do fenômeno estudado, consistindo em observar, descrever, comparar e classificar

os seus objetos de estudo.

Dentro desse modelo, destacou-se a utilização de alguns princípios, dentre eles, o

isolamento, que significava retirar, separar o que se quer conhecer do meio que pudesse

interferir na sua observação, e o afastamento, que propiciava a separação dos objetos de

conhecimento e seu posterior agrupamento de acordo com as características encontradas,

formando uma classificação.

Desta forma, a presença do médico no hospital, permitiu que as doenças fossem

isoladas, separadas e observadas minuciosamente em seus sinais externos, possibilitando

sua classificação. O hospital passou a ocupar um lugar privilegiado de aprendizado, de

produção e de transmissão de saber, tornando-se ponto central para o estabelecimento e

desenvolvimento de uma medicina clínica que iniciou sua atuação. A organização

hospitalar passou a ser responsabilidade médica e o hospital redimensionado como local de

cura assume o caráter de uma instituição médica por excelência, lugar privilegiado para a

produção e o exercício do saber médico.

Esse processo de reestruturação do dispositivo hospitalar, de certa forma, indicava a

possibilidade de se repensar e reorganizar o espaço destinado aos loucos, sintonizando esse

espaço e a própria abordagem efetuada sobre essa parcela excluída da população com o

27

projeto revolucionário de uma sociedade contratual e da nascente conceituação da

cidadania moderna. Esses movimentos e transformações, associados ao contexto turbulento

e inovador da época, acabaram por criar as condições possíveis para a consolidação de um

olhar médico sobre a loucura.

A constituição da psiquiatria enquanto especialidade médica ocorreu,

principalmente, com Pinel no final do século XVIII. Desde então, conforme Britto (2004), a

loucura ganhou estatuto de doença mental e a internação psiquiátrica passou a ser

considerada como principal estratégia de tratamento.

Em 1793, Pinel foi nomeado médico-chefe do hospital de Bicêtre, sobre o qual, nos

anos seguintes, operou uma verdadeira reforma, em consonância com o movimento de

reestruturação dos hospitais franceses. Seu mítico gesto de desacorrentar os loucos tornou-

se um símbolo da criação da psiquiatria e da libertação da loucura, que passou a ser

encerrada na figura da enfermidade mental.

A loucura passou a ser considerada, percebida e definida como doença mental, ou

melhor, dizendo, alienação mental, a saber, um estado no qual se considera que a pessoa

tenha um distúrbio na razão, e, a partir dele, perca o principal elemento de sua constituição

humana. Quando acometida pela alienação, a pessoa tem sua capacidade de julgamento

afetada, estando fora de si, o que acaba por comprometer ainda sua integração social.

Para Pinel, no entanto, seria possível restituir a razão do alienado por meio de um

tratamento moral realizado no interior do asilo. Esse tratamento preconizava o isolamento

do meio social que, segundo a conceituação elaborada, era um fator promotor dessa

alienação e a convivência com uma ordem asilar que consistia na reaprendizagem de

normas, regras e rotinas, determinando de forma rigorosa os lugares de cada um e o

estabelecimento de uma relação de autoridade entre médico e doente.

O asilo passou a ser considerado o local privilegiado para a realização do tratamento

aos loucos, pois detinha os elementos necessários para essa empresa. No asilo, o alienista

obtinha as condições propícias para realizar o isolamento da doença e do doente, observar o

desenvolvimento da doença e, então, classificá-la.

Por um lado, ao analisarmos esse processo de constituição do paradigma

psiquiátrico, a nova conceituação conferida ao processo de seqüestração dos indivíduos

28

loucos somente se tornou possível diante da anterioridade dessa ação excludente e da

existência prévia de uma população asilada.

Nesse sentido, conforme Machado (1981, p.76),

Medicalização da loucura não significa, neste momento anunciador de tão importantes transformações, importação da teoria médica da loucura no espaço do internamento; significa, antes de tudo, a reestruturação interna das instituições de reclusão do louco que, paulatinamente, por um efeito próprio à reorganização de seu espaço, vai lhes dar uma significação intrinsecamente médica de agente terapêutico.

Por outro lado, para alguns autores, o tratamento moral e o processo de sequestração

dos loucos forjaram uma vocação ou dimensão inclusiva da psiquiatria onde, conforme

Bezerra Jr. (1992, p.120),

(...) ao invés de signo da exclusão, o asilo refletiria a utopia igualitária dos revolucionários e a noção disseminada entre eles de que a sociedade e o ambiente modelam o homem. Daí a necessidade de espaços onde ‘as paredes fossem terapêuticas’ (Esquirol) e onde a hierarquia, a arquitetura e a disciplina pudessem servir ao objetivo de resgatar para uma igualdade de fato aqueles que somente a possuíam como direito.

A partir dessa contradição fundamental, segundo Joel Birman, em um artigo

denominado “A cidadania tresloucada” de 1992, podemos dizer que a constituição do

paradigma psiquiátrico está fundada sobre um paradoxo estrutural. Por conta de sua

alienação fundamental e sua condição enferma, o louco não era reconhecido como “um ser

inscrito nos universos da razão e da vontade, não podendo conseqüentemente ser

representado como um sujeito do contrato social” (BIRMAN, 1992, p. 74).

Ao mesmo tempo, segundo a nova ordem social balizada pelos ideais

revolucionários franceses, sua caracterização patológica indicava a necessidade e, mesmo, a

possibilidade de se promover a devida restauração de sua razão e a correlativa restituição de

sua condição de sujeito através das práticas disciplinares componentes do tratamento moral

proposto por Pinel. Assim, o louco era submetido a um seqüestro asilar justificado por

finalidades terapêuticas, e obrigado a um processo de desalienação e recuperação de sua

condição de sujeito do contrato social.

Conforme Amarante (1995b, p. 491),

(...) o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena, portanto, da liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o pré-requisito da cidadania. E se

29

não era livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por meio do tratamento moral, restituir-lhes a Razão, portanto, a Liberdade. No contexto da Revolução Francesa, com o lema ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’, o alienismo veio sugerir uma possível solução para a condição civil e política dos alienados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania, mas que, também, para não contradizer aqueles mesmos lemas, não poderiam ser simplesmente excluídos. O asilo tornou-se então o espaço da cura da Razão e da Liberdade, da condição precípua do alienado tornar-se sujeito de direito.

Dentro desse contexto, o poder do médico se efetivava enquanto um princípio

absoluto de dominação e tutela que somente se anularia com a reconquista da autonomia

racional pelo louco. Reconquista essa que dependeria exclusivamente desse mesmo poder

médico para ser reconhecida. Funda-se, dessa forma, o que Foucault (2000, p.127) chamou

de “o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura”, materializado na configuração de

um monopólio de competência da psiquiatria sobre os processos de tutela e tratamento,

além da conceituação e indicação do que poderia ser ou não considerado um quadro

patológico.

Desse modo, a constituição do paradigma psiquiátrico consiste numa dupla

operação de silenciamento da loucura: do corpo social, num primeiro momento, a partir da

sequestração asilar; e, posteriormente, do corpo doente, por uma série de coerções físicas e

morais componentes do tratamento moral a que os loucos eram submetidos.

Dessa forma, ao louco não havia o reconhecimento de nenhum saber, sendo, pelo

contrário, estruturado segundo um índice negativo de cidadania e existência. Ao indivíduo

alienado restava a reconstituição de sua positividade segundo uma série de coerções e

constrangimentos que produziriam – ou o reconduziriam – a sua condição humana

condizente com critérios de ordem estritamente racional.

Essa manobra, que repousa na negação da ‘humanidade’ da loucura, legitimava e

reconfigurava o processo de reclusão e exclusão do louco empreendido desde os tempos da

nobreza, em defesa agora de uma nova ordem social, de cunho liberal, contratualista e

racionalizada, instituindo e aprisionando a loucura em um status diferenciado, desprovido

de todos os direitos relacionados ao conceito de cidadania (CASTEL, 1978).

Portanto, a loucura constituía uma forma completamente desprovida de direitos,

configurada pelo que Birman (1992) chamou de “condição negativa de cidadania”. O

estado de alienação mental subentendia a perda da razão e da liberdade, pressupostos do

30

conceito de cidadania liberal então nascente. Na medida em que o tratamento moral

representava a possibilidade de cura do alienado por meio da restituição da razão e

liberdade como efeito direto de um trabalho de reeducação do alienado – segundo um

conjunto de técnicas batizado por Birman (1992) como pedagogia da sociabilidade – a

dimensão inclusiva do aparato psiquiátrico como uma única e reles possibilidade de

reintegração social desses indivíduos doentes, residia na produção de um indivíduo

docilizado, regrado, obediente, disciplinado.

O isolamento se caracterizou como o principal modo de observação dos fenômenos

da loucura, proporcionando condições ótimas para o desenvolvimento da estratégia

metodológica empírico-indutiva e da constituição do paradigma psiquiátrico, tanto do ponto

de vista nosográfico, quanto em suas novas pretensões terapêuticas.

O asilo se constituiu numa espécie de ‘laboratório’, onde se encontravam as

circunstâncias e condições ideais para a observação e generalização dos fatos e fenômenos

relacionados à loucura, mediante uma manipulação radical do meio referido ao espaço

asilar e a objetivação do indivíduo louco como objeto de análise, estudo, classificação e

intervenção corretiva.

31

3. DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA

3.1. PÓS-GUERRA, DIREITOS HUMANOS E UMA NOVA NOÇÃO DE CIDADANIA

Ainda que nosso foco volte-se agora basicamente para o momento pós-segunda

guerra mundial, ou seja, entre 1945 e a década de 1950, devemos antes fazer algumas

considerações sobre a forma com que se revestia e vivenciava o conceito de cidadania ao

longo do período precedente. Considerações estas, que se fazem necessárias, sobretudo para

a compreensão da magnitude e configuração do processo de transformação efetuado, assim

como para ressaltar a relevância dos elementos redimensionados nesse processo.

Apesar do caráter universal preconizado formalmente em documentos importantes

dos séculos XVIII e XIX, a recém instaurada cidadania moderna regia-se ainda por uma

lógica de funcionamento contraditório e, em muitos aspectos, extremamente excludente.

Podemos inclusive dizer que justamente por não funcionar de fato segundo uma dimensão

inclusiva universal – inegavelmente presente na sua definição geral, mas abstrata, vaga e

sujeita a distorções e múltiplas capturas – é que o conceito sofreu uma série de releituras e

ressignificações, motivadas, em sua maioria, pela ocorrência e irrupção de inúmeras lutas e

movimentos de cunho emancipatório que reivindicavam a ampliação e universalização dos

direitos concernentes ao exercício e reconhecimento da cidadania em sua plenitude.

Desse modo, apesar de instituir um documento de teor universal – a Declaração

Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 – na então recente Constituição

Francesa foram criadas formas de hierarquização e diferenciação social como critérios para

reconhecimento ou não da condição de cidadania e do correlato usufruto e garantia dos

direitos a ela atrelados.

Conforme Bresciani (1992, p. 194),

Ser proprietário de bens e livre das mazelas do trabalho cotidiano constituíram as para que um homem ascendesse à condição de cidadania e nela fosse reconhecido por seus iguais. Essa afirmação fundante da sociedade moderna (...) foi questionada pelos revolucionários franceses e pelos radicais ingleses no final do século XVIII. Contudo, a não ser por momentos efêmeros, essa concepção restritiva continuou a regular as representações diferenciadas dos direitos civis e dos direitos políticos.

Neste sentido, o direito à representação política foi configurado como um direito

exclusivo dos indivíduos que porventura detivessem a condição de proprietários, deixando

32

de fora dos limites e formas de reconhecimento desse direito as mulheres e outros sujeitos,

como escravos e pobres em geral. Aliás, a própria existência e legitimação da escravidão

demonstra o quão contraditório pode ser representado o conceito de cidadania vigente nesse

período histórico. Diante desse paradoxo e dessa manobra da burguesia, “a cidadania

deixou de ser um símbolo da igualdade de todos e a derrubada dos privilégios da nobreza

deu lugar ao aparecimento de uma nova classe de privilegiados” (DALLARI, 1998, p.12).

No entanto, o processo histórico de lutas em torno da ampliação dos direitos

concernentes à noção de cidadania não cessou e até os dias de hoje ainda se faz presente.

Entendendo a cidadania como um conjunto padronizado de direitos que obtém diferentes

formas e sentidos mediante as características de cada contexto histórico específico, as

dimensões formais e práticas da cidadania sofreram variadas transformações e vicissitudes,

as quais foram analisadas sob diferentes prismas por diversos estudiosos.

Um dos autores mais importantes para compreensão do processo histórico de

construção do conceito de cidadania na modernidade, T. H. Marshall, na sua obra clássica

denominada “Cidadania, Classe Social e Status” de 1967, apresenta uma concepção de

cidadania dividida em três partes ou elementos: os direitos civis, políticos e sociais.

O elemento civil, ou direitos civis, dizem respeito aos direitos relacionados com a

liberdade individual e a igualdade perante a lei, ou seja, mais especificamente, liberdade de

ir e vir, liberdade de expressão, imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade privada,

de estabelecer contratos e o direito à justiça.

O elemento político, ou direitos políticos, referem-se à participação no exercício do

poder político, seja como integrante de uma organização investida de autoridade política,

seja como eleitor.

O elemento social se refere a “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-

estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e

levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”

(MARSHALL, 1967, p.63).

Segundo essa perspectiva, a cidadania em sua configuração moderna e burguesa se

desenvolveu a partir da assimilação progressiva desses três tipos de direitos, obedecendo,

necessariamente, a um movimento de luta, reivindicação, conquista, assimilação,

incorporação e proteção legal de cada elemento.

33

Conforme Carvalho (2002 apud OLIVEIRA E ALESSI, 2005, p.193),

A classificação das dimensões de cidadania proposta por Marshall, que se tornou clássica e que teve por base a história da Inglaterra, pressupõe uma evolução linear, em forma de pirâmide em que, a partir da base, inicialmente surgem os direitos civis, em seguida os direitos políticos e, por último, os direitos sociais.

Segundo esse viés, o século XVIII assistiu, portanto, ao desenvolvimento dos

direitos civis, o século XIX, dos direitos políticos, e o século XX se configurou,

especialmente, como palco de lutas em torno dos direitos sociais.

Para Marshall, a cidadania corresponde a um status concedido aos membros

considerados integrais de uma comunidade a qual fazem parte, na qual e pela qual serão

delimitados os alcances e limitações desse status. Dessa maneira, todos aqueles que

possuem esse status são considerados livres e iguais no que tange ao respeito aos direitos e

obrigações a ele vinculados, não existindo nenhum princípio universal que delibere

antecipadamente quais serão esses direitos e obrigações. Cada comunidade, portanto, é que,

conforme seu contexto sócio-político e histórico particular, descreve e pontua os limites

desse exercício e desse reconhecimento.

Desse modo, a história dos direitos civis em seu período de formação se caracteriza

basicamente pela adição gradativa de novos direitos a um status já existente enquanto

medida efetiva de igualdade.

No entanto, esse status de cidadania dizia respeito exclusivamente aos homens

adultos, não incluindo as mulheres e outros estratos populacionais. Além disso, os direitos

relacionados ao exercício e à representação política estavam intrinsecamente ligados à

condição de ‘proprietário’, sendo seu reconhecimento delimitado por um substrato

econômico.

Para Marshall, o desenvolvimento e a ampliação da fruição dos direitos políticos se

deveram à incorporação do status de cidadania ao corpo social como um todo, sendo um

produto derivado da efetivação dos direitos individuais e à liberdade e igualdade

concernentes ao reconhecimento desses direitos civis.

Assim, segundo Marshall (1967, p.69),

34

A história dos direitos políticos difere tanto no tempo como no caráter. O período de formação começou, como afirmei, no início do século XIX, quando os direitos civis ligados ao status de liberdade já haviam conquistado substância suficiente para justificar que se fale de um status geral de cidadania. E, quando começou, consistiu não na criação de novos direitos para enriquecer o status já gozado por todos, mas na doação de velhos direitos a novos setores da população.

Dessa maneira, com a expansão dos direitos políticos, novos segmentos

populacionais passam a ter mais força em suas reivindicações, fortalecendo lutas em torno

dos direitos sociais como meio de construção de uma garantia de igualdade social na forma

de um padrão mínimo de bem-estar econômico e social. Direito à educação, à saúde, à

moradia, ao lazer, dentre outros, são pleiteados pelos setores mais desfavorecidos e por uma

classe trabalhadora organizada.

Seguindo raciocínio desenvolvido por José Murilo de Carvalho (2001) esse caminho

descrito por Marshall não se restringe a um viés meramente cronológico, mas antes

pretende indicar uma lógica de evolução dos direitos e da cidadania. E aí reside, talvez sua

principal limitação.

Para Carvalho, os caminhos para formação da cidadania são distintos, nem sempre

seguindo uma seqüência linear, reta, uniforme, comportando nesses trajetos inumeráveis

desvios, retrocessos, peculiaridades e distinções intrinsecamente relacionados aos

acontecimentos que moldam a história específica de cada Estado-nação. A conformação

social e política de um dado país irá incidir diretamente na forma e no modelo de cidadania

pensado e experimentado por seus integrantes, de maneira que “quando falamos de um

cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando

exatamente a mesma coisa” (CARVALHO, 2001, p.12).

Desse modo, a construção da cidadania diz respeito diretamente às relações

específicas travadas entre as pessoas com o Estado e com a nação, e as pessoas se tornavam

cidadãs na medida em que se sentiam integrando e fazendo parte especificamente de uma

nação e de um Estado.

Dentro dessa perspectiva, Marco Mondaini (2005) nos indica uma ordem seqüencial

que obedece, em termos gerais, à lógica evolutiva proposta por Marshall, onde diferentes

formas de Estado foram se constituindo ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, indicando

diferentes formas de relação dinâmica entre cidadãos, sociedade e aparelho estatal.

35

Em primeiro lugar assistimos à configuração de um Estado liberal, voltado para a

garantia da liberdade civil dos indivíduos e no princípio fundamental da não-interferência

na sua vida privada. Em segundo lugar, o Estado democrático, instrumento voltado para a

realização da igualdade política entre os indivíduos, incentivando, regulamentando e

estendendo as formas legítimas de participação de todos no jogo político. Em terceiro lugar,

o Estado do bem-estar social, voltado para a efetivação da igualdade social entre os

indivíduos, administrando e distribuindo de maneira eqüitativa os recursos materiais, de

maneira a aliviar os obstáculos impostos pelas distâncias econômicas existentes na

sociedade.

No entanto, o mais contundente redimensionamento efetuado sobre o conceito de

cidadania ocorreu em meados do século XX, mais especificamente, no período pós-segunda

guerra mundial. Esse processo foi desencadeado principalmente em resposta aos regimes

totalitários que proliferaram no início do século e, mais especificamente, aos horrores e às

atrocidades cometidas pelo regime nazista. Os Estados totalitários se caracterizaram

basicamente pela supressão das instituições democráticas, fechamento dos sindicatos e

outras instâncias similares de participação política, censura dos meios de comunicação,

proibição de outros partidos políticos e perseguição generalizada aos opositores do regime.

No nazismo, devido ao ideal eugênico que preconizava a superioridade da raça ariana,

ainda assistimos a perseguição de outros grupos minoritários específicos, em especial os

judeus, ciganos e homossexuais.

Em face deste verdadeiro regime de terror então desenvolvido, no qual imperava a

lógica da tirania e do extermínio de determinadas pessoas, então consideradas descartáveis

e inferiores, o totalitarismo nazi-fascista promoveu um verdadeiro massacre, promovendo a

tortura e a disseminação de maus tratos, a realização de diversos experimentos com cobaias

humanas e produzindo a morte de milhares de pessoas em seus campos de concentração e

extermínio, ao que se convencionou chamar de holocausto.

Além disso, o próprio desfecho desse conflito bélico mundial, com o lançamento de

bombas atômicas e a destruição completa das cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaki

lançaram um alerta mundial para o poder de destruição alcançado pelo homem.

Segundo Comparato (2001),

36

Ao final da 2ª Guerra Mundial, quando a opinião pública começou a tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos regimes totalitários, europeus ou asiáticos, firmou-se a convicção de que a destruição deliberada de um grupo étnico, racial ou religioso, promovida por autoridades governamentais como política estatal, constituía um crime, cuja gravidade superava em muito o elenco tipológico dos delitos definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violações tradicionais dos princípios do direito internacional.

Assim, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, e da intensa comoção e

mobilização da opinião pública, emerge a necessidade de adoção de um referencial ético

internacional capaz de erigir barreiras, constrangimentos e limites legais que impedissem,

ou, ao menos, minimizassem a repetição daqueles acontecimentos brutais. Dentro dessa

perspectiva, a reconstrução do valor dos direitos humanos é adotada como uma ação capaz

de criar as bases normativas para a regulação das relações internacionais, estabelecendo

orientações e normas supranacionais que pudessem exercer algum controle ou

gerenciamento de possíveis conflitos vindouros, assim como impedir o surgimento ou

perpetuação de regimes totalitários.

O então chamado “Direito Internacional dos Direitos Humanos” emerge, assim, em

meados do século XX, como decorrência direta da Segunda Guerra Mundial e das

atrocidades praticadas pelos regimes totalitários – e em especial, o nazismo da era Hitler – e

à crença de que parte desses horrores poderiam ser prevenidos com a construção e

efetivação de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos.

Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirma Richard B. Bilder,

citado por Piovesan (2008, p.20),

O movimento do direito internacional dos direitos humanos é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos e instituições desenvolvidas para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres humanos têm direitos e liberdades fundamentais que lhe são inerentes tenha há muito tempo surgido no pensamento humano, a concepção de que os direitos humanos são objeto próprio de uma regulação internacional, por sua vez, é bastante recente. (...) Muitos dos direitos que hoje constam do “Direito Internacional dos Direitos Humanos” surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do holocausto e de outras violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as nações do mundo decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organizações das Nações Unidas.

37

Dentro desse bojo, em um processo liderado pelas nações aliadas, vencedoras da

segunda guerra mundial, é fundada a Organização das Nações Unidas (ONU) e assinada a

Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948. A partir desse

documento, se introduz no contexto mundial a concepção contemporânea dos direitos

humanos, marcada pela reconfiguração do conceito de universalidade e pela inédita

proposição de uma indivisibilidade do conjunto de direitos relacionados ao conceito de

cidadania.

A universalidade proposta diz respeito à extensão universal dos direitos humanos

sob a crença de que a condição de pessoa humana deva ser considerada como único

requisito para sua titularidade, considerando “o ser humano como um ser essencialmente

moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição

humana” (PIOVESAN, 2008, p.21).

Já a noção de indivisibilidade deriva porquanto a garantia dos direitos civis e

políticos passa a ser pensada como condição primordial para a observância e fruição dos

direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Desse modo, quando um desses

direitos é violado, por conseguinte, os demais também o são. Os direitos humanos, segundo

essa perspectiva, passam a compor uma unidade indivisível, interdependente e inter-

relacionada, diante da conjugação do catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo

de direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN, 2008).

A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e da concepção

contemporânea de direitos humanos introduzida por este documento, começa a se

desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros

tratados internacionais voltados para a proteção dos ditos direitos fundamentais. Os

instrumentos internacionais de proteção invocam um consenso internacional acerca de

temas centrais aos direitos humanos, refletindo, sobretudo, uma mesma consciência ética

contemporânea compartilhada pelos Estados signatários.

Essa concepção inovadora acaba por produzir uma revisão da noção tradicional de

soberania absoluta do Estado, cujo conteúdo e alcance, em tese, passam a sofrer um

processo de relativização, na medida em que são admitidas e indicadas diversas formas de

intervenções no plano nacional, tendo como finalidade e justificativa a proteção dos direitos

humanos. Ou seja, são criadas e instituídas algumas formas de monitoramento e

38

responsabilização internacional dessas nações, quando porventura se julgue que os direitos

humanos foram violados. Além disso, essa nova disposição legal internacional aponta para

a idéia de que o indivíduo deva ter uma série de direitos garantidos e protegidos na esfera

internacional, na condição de Sujeito de Direitos (PIOVESAN, 2008).

Ao lado desse sistema normativo global, vão se desenvolvendo sistemas normativos

regionais de proteção dos direitos – particularmente na Europa, América e África – os quais

buscam efetivar os direitos humanos no plano regional. Desse modo procura-se consolidar

a convivência e complementaridade do sistema global com instrumentos dos sistemas

regionais, cabendo, portanto, ao indivíduo que sofreu violação de direito a escolha do

aparato protetivo mais favorável e acessível.

No que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de proteção

dos direitos humanos, podemos dizer que somente a partir do processo de democratização

do país, deflagrado em 1985, é que o Estado brasileiro passou a ratificar relevantes tratados

internacionais de direitos humanos.

Aliás, de modo geral, podemos inclusive apontar no caso brasileiro algumas

particularidades que indicam uma construção histórica peculiar no que concerne ao

conceito de cidadania. Seguindo o caminho descrito por Britto (2004), podemos, ainda que

superficialmente, perceber no Brasil uma tendência, apontada por Carvalho (2001), inversa

a traçada por Marshall para a experiência inglesa de formação e constituição do conceito de

cidadania.

No caso brasileiro, os direitos sociais tiveram, em linhas gerais, uma maior ênfase,

sendo inicialmente implantados em um contexto de pequena expressão e legitimidade dos

direitos políticos e de um exercício reduzido e limitado dos direitos civis. Embora esse

mesmo autor considere que não há uma única via de construção do processo de cidadania,

nem que essa trajetória brasileira possa ser assim tão simplificada, essa inversão resultou

em diferenças qualitativas importantes na concepção e no exercício nacional da cidadania.

No período compreendido entre os anos de 1889 e 1930, durante a Primeira

República, houve a conquista e produção de importantes transformações na sociedade

brasileira, tais como a abolição da escravidão e a instauração do mercado livre de trabalho.

Os direitos políticos foram ampliados pela Constituição de 1891, com a concessão do

direito de voto a todos, com exceção dos analfabetos, mulheres e soldados. Houve ainda,

39

nesse período, a promulgação de uma série de leis relacionadas à questão trabalhista e à

questão social, que envolveram a participação do Estado. Em 1916 assistiu-se à

promulgação do Código Civil que, segundo Dallari (1987) se apresentou como uma lei de

extrema importância, construída segundo valores burgueses, acabando por, na prática, se

configurar e funcionar como uma constituição.

Posteriormente, o período compreendido entre os anos de 1930 a 1964, teve como

característica principal à expansão e ampliação dos direitos sociais mediante uma maior

intervenção estatal no contexto social, político e econômico de então. As leis sociais

referentes, basicamente, aos direitos dos trabalhadores foram outorgadas pelo Estado que,

assim, procurou regulamentar, delimitar e estabelecer as bases e condições de

funcionamento e contrato da força de trabalho. Diante dessa perspectiva, os direitos do

cidadão foram organizados e regidos por meio de postulados contidos nas legislações

previdenciária, sindical e trabalhista.

Um aspecto interessante a ser assinalado é que o reconhecimento da cidadania

esteve, por muitos anos, diretamente relacionado ao pertencimento a uma categoria

profissional regulamentada em lei, fazendo com que grande parte da população

permanecesse excluída de tal condição. Dessa forma, diversos trabalhadores que exerciam

atividades não reconhecidas em lei não eram considerados cidadãos, não tendo, por conta

disso, acesso aos benefícios deliberados por essas legislações.

Esse modelo de cidadania vinculado ao trabalho é o conceito chave para se

compreender a política econômica e social desenvolvida no país a partir de 1930. Em 1932,

foi instituída a carteira de trabalho, que se tornou o documento oficial de reconhecimento

do cidadão, funcionando, conforme Santos (1979), como uma espécie de ‘certidão de

nascimento cívico’.

Para Santos (1979, p.75), a noção de cidadania no Brasil desse período pode ser

compreendida a partir do conceito de “cidadania regulada”:

Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. (...) são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações (...) e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões.(...) A cidadania está embutida na profissão e os

40

direitos dos cidadãos restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei.

Esta forma de reconhecimento e concepção do conceito de cidadania e a legislação

correspondente produziram desigualdades entre os diversos setores e membros da

população: a separação entre os indivíduos considerados profissionais, com profissão

regulamentada, e os não profissionais, categoria composta por grande parte de

trabalhadores brasileiros sem profissão reconhecida em lei. Mesmo dentro da categoria dos

profissionais, pode-se observar a existência de desigualdades referentes à remuneração dos

trabalhadores, à contribuição previdenciária e ao acesso aos benefícios concedidos. Além

disso, como nos mostra Carvalho (2001, p.223), “os benefícios sociais não eram trados

como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo”.

Em 1934, uma nova constituição promoveu alguns avanços, tal como o direito de

voto estendido às mulheres. O Estado passou a assumir as funções de regulamentação e

parte do financiamento dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, desenvolvendo a

previdência social e elevando sua participação em questões relacionadas com a saúde da

população.

Entre os anos de 1945 a 1964 foi restabelecido o sistema democrático. Houve a

restituição de direitos políticos e civis, assim como a reorganização de partidos políticos e a

ampliação dos direito políticos – basicamente o direito de votar – a toda a população

alfabetizada.

Em 1964, com o Golpe Militar, as ações governamentais passaram a ser realizadas

por meio de Atos Institucionais e Leis Complementares. Foi decretado o recesso do

Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. O Poder

Executivo passou a dominar outras esferas e funções anteriormente relacionadas a outros

poderes. Como conseqüência disso, os partidos políticos foram extintos, os sindicatos

foram fechados, os meios de comunicação passaram a ser controlados, pessoas foram

perseguidas, exiladas, configurando-se um quadro de extrema repressão e coerção,

extremamente violenta, dos indivíduos.

Para Scherer (apud MEDEIROS & GUIMARÃES, 2002, p. 574),

O regime militar caracterizou-se pelo alijamento da sociedade civil, que passa a ser considerada perigosa aos interesses do bloco no poder e, por isso, tutelada e vigiada

41

pelo Estado. Assim, a ditadura suprime drasticamente a escassa cidadania conquistada pela classe trabalhadora antes de 1964.

Nesse período, assistimos a uma marcante expansão dos direitos sociais devido a

uma proposta de desenvolvimento e segurança nacionais, onde se ampliou a cobertura da

previdência social e da assistência médica por meio da criação do Instituto Nacional de

Previdência Social.

No final dos anos 1970, período em que o regime militar começou a declinar, houve

a organização e eclosão de diversos movimentos sociais. A revogação do AI-5, a reabertura

dos partidos políticos, a anistia política, dentre outros fatores, contribuíram para o

crescimento da participação popular e para a deflagração de uma intensa movimentação

sócio-política voltada para a reconstrução nacional e para o processo de redemocratização.

Medeiros e Guimarães (2002, p. 574), destacam ainda que:

A emergência de uns e o fortalecimento de outros movimentos se dão a partir de 1976/1977 e apontam na perspectiva de ampliação da cidadania: a luta pelo direito de posse de terra, pela igualdade entre homem/mulher, contra a discriminação racial, por direito à creche, pela terra e reservas indígenas, pelo direito de se exprimir social e politicamente, por uma sociedade sem manicômio e por participação nas decisões do poder, entre outras questões.

Estes movimentos sociais desempenharam um papel fundamental na reconquista da

democracia e na reafirmação dos direitos sociais, civis e políticos. A elaboração e

promulgação da Constituição de 1988, denominada constituição cidadã porquanto

promoveu a ampliação dos mecanismos de exercício, garantia e proteção aos direitos de

cidadania de toda a população brasileira, figura como um marco desse panorama de lutas e

movimentos sociais, consolidando o processo de redemocratização.

A partir da Constituição de 1988 é que se intensifica a interação e a conjugação do

Direito internacional e do Direito interno, fortalecendo o sistema de proteção dos direitos

fundamentais, segundo o princípio da primazia dos direitos humanos. As inovações

introduzidas pela Carta de 1988 — especialmente no que tange ao primado da prevalência

dos direitos humanos, como princípio orientador das relações internacionais — foram sem

dúvida fundamentais para a ratificação de importantes instrumentos de proteção dos

direitos humanos.

42

Além das inovações constitucionais, como importante fator para a ratificação desses

tratados internacionais, acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro de reorganizar sua

agenda internacional, de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes

do processo de democratização. Este esforço se conjuga com o objetivo de compor uma

imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador

e garantidor dos direitos humanos.

Logo, é destacável a relação entre o processo de democratização no Brasil e o

processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos

humanos. Além disso, se por um lado, o processo de democratização permitiu a ratificação

de relevantes tratados de direitos humanos, por outro, essa ratificação contribuiu do mesmo

modo para o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e da

consolidação do universo de direitos por ele assegurado.

3.2. OS MOVIMENTOS DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

No período compreendido entre o término da 2ª Guerra Mundial e o final da década

de 1970, diversos movimentos e tentativas de reforma das instituições psiquiátricas foram

desenvolvidos, tendo como mote central desde uma dinamização da estrutura asilar, a

experimentação de novas modalidades e condições de tratamento que proporcionassem uma

maior eficácia na recuperação dos doentes, até o questionamento mais radical do hospital

psiquiátrico e do saber médico como um todo.

Motivados em grande parte por uma repulsa generalizada contra toda forma de

equipamento institucional que se assemelhasse aos temíveis campos de concentração em

sua lógica operacional centrada no confinamento, na segregação de grupos sociais

específicos e na utilização de práticas a partir de então percebidas como violentas, o asilo

psiquiátrico passa a ser alvo de críticas advindas tanto do próprio campo teórico, quanto de

outros saberes.

Ao mesmo tempo em que algumas dessas críticas denunciavam o alinhamento do

dispositivo asilar com o que se passou a denominar ‘instituições totais’ (GOFFMAN,

1987), por conta de sua estrutura fechada que se assemelhava aos campos de concentração

nazistas, de modo geral, se construiu um consenso acerca da necessidade de uma

reformulação do aparato psiquiátrico, na medida em que o dispositivo asilar não estava

43

cumprindo a sua função de recuperação dos doentes. Muito pelo contrário, longe de se

configurar como um espaço efetivamente terapêutico, o modelo institucional do asilo

psiquiátrico estava sendo justamente responsabilizado pelo agravamento e cronificação das

doenças mentais.

Nesse ínterim, podemos indicar alguns movimentos relevantes para esse processo de

reforma psiquiátrica ao redor do mundo, a saber: Comunidade Terapêutica, Psicoterapia

Institucional, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Comunitária, Antipsiquiatria e Psiquiatria

Democrática Italiana.

As reivindicações e proposições desses diversos movimentos variavam entre

aqueles que procuraram transformar o ambiente hospitalar e o tratamento realizado no

mesmo, outros que tinham como objetivo transferir o local de tratamento e intervenção para

o interior da comunidade e ainda aqueles que intentavam transformar radicalmente as

concepções acerca da loucura.

Grosso modo, podemos fazer a seguinte caracterização desses movimentos

supracitados, agrupando-os conforme divisão apresentada por Amarante (1995a), seguindo

definição proposta por Birman & Costa (1994):

a) Comunidade Terapêutica (Inglaterra) e Psicoterapia Institucional (França).

Ambas correntes reformistas voltavam-se para a recuperação do caráter terapêutico

do hospital psiquiátrico. Pode-se definir a ‘Comunidade Terapêutica’ como uma proposta

de reforma institucional caracterizada pela adoção de medidas administrativas,

democráticas, participativas e coletivas, as quais tinham como objetivo central a

transformação da dinâmica institucional asilar. Procurava ainda chamar a atenção da

sociedade para as péssimas condições vivenciadas pelos pacientes internados nos hospitais

psiquiátricos. A Psicoterapia Institucional considerava que a instituição hospitalar

apresentava características doentias que deveriam ser tratadas para que se desenvolvesse

efetivamente a sua função terapêutica.

b) Psiquiatria de Setor (França) e Psiquiatria Comunitária (EUA).

Estes movimentos propuseram o deslocamento do tratamento para a comunidade. A

psiquiatria de setor, anterior à psicoterapia institucional, apresentou-se como um

movimento de contestação da psiquiatria asilar, desenvolvido no período pós-guerra, na

França. Foi considerado como a matriz da política psiquiátrica francesa desde a década de

44

1960, consistindo basicamente na transferência do atendimento para a comunidade. Já a

Psiquiatria Comunitária surgiu nos Estados Unidos em meio ao contexto da crise do

organicismo mecanicista e desenvolveu-se no cruzamento entre as proposições da

psiquiatria de setor e da socioterapia inglesa. Esse movimento representou a delimitação de

um novo campo de atuação para a psiquiatria, no qual se delineava um novo objeto, a saúde

mental. Sendo também chamada de psiquiatria preventiva, esse enfoque comunitário

procurava estabelecer uma estratégia de intervenção nas causas das doenças mentais,

preconizando a prevenção dessas doenças e a promoção da saúde mental.

c) A Antipsiquiatria (Inglaterra) e a Psiquiatria Democrática Italiana (Itália).

Esses movimentos formularam uma crítica radical à psiquiatria enquanto saber e

prática. A Antipsiquiatria foi desenvolvida inicialmente na Inglaterra na década de 1960 a

partir de um grupo de psiquiatras, dos quais destacam-se Ronald Laing e David Cooper.

Apresentava como principais referências teóricas a Fenomenologia, o Existencialismo, a

obra inicial de Foucault, algumas correntes da sociologia – notadamente, Goffman – e

psiquiatria norte-americanas, a Psicanálise e o Marxismo. Questionou contundentemente o

processo de naturalização da loucura enquanto doença mental. Dessa forma, pretendia

romper com o modelo assistencial vigente e destituir o valor hegemônico do saber

psiquiátrico com relação à loucura. A antipsiquiatria denunciou a cronificação e o caráter

reprodutor das doenças mentais exercido pelo hospital psiquiátrico, procurando estabelecer

formas de diálogo entre loucura e razão, percebendo a loucura como um fenômeno das

relações humanas: a loucura estaria entre os homens e, não, dentro deles. Este movimento

iniciou um processo de ruptura com o saber psiquiátrico moderno.

A Psiquiatria Democrática Italiana foi desenvolvida principalmente por Franco

Basaglia e realizou uma crítica radical ao saber psiquiátrico afirmando a urgência da

revisão das relações sociais a partir das quais o saber médico fundava sua práxis. Em 1971,

Basaglia foi para Trieste onde iniciou a construção e constituição de novas formas de

entender, lidar e tratar a loucura, contra a utilização e perpetuação do aparato manicomial.

Essa empreitada se baseava em uma análise crítica da sociedade e da forma pela qual esta

se relacionava com o sofrimento e a diferença. Basaglia não empreendeu propriamente uma

negação da instituição psiquiátrica e da doença mental, mas sim uma negação do poder que

a sociedade conferia à psiquiatria para que esta isolasse, excluísse e anulasse aqueles

45

indivíduos que se encontravam fora dos limites propostas para a normalidade social. O

trabalho realizado em Trieste acenou para a possibilidade da constituição de uma outra rede

de atenção, capaz de oferecer e produzir novas formas de sociabilidade e subjetividade para

os que se utilizam da assistência psiquiátrica. Essa experiência terminou por preconizar a

destruição do manicômio, o fim da violência e da substituição do dispositivo asilar,

rompendo com as formas instituídas do saber psiquiátrico tradicional.

3.3. O MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

Para uma análise e compreensão do contexto histórico e político do processo de

formação e desenvolvimento da reforma psiquiátrica brasileira, devemos, inicialmente,

elucidar o panorama político e algumas transformações sociais efetuadas no país.

Neste sentido, conforme Amarante (1995a, p.87), a reforma psiquiátrica é um

processo que surge no Brasil, principalmente, em fins da década de 1970, tendo como

fundamentos uma crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, aliada a uma

crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, dentro de toda uma

movimentação de transformações político-sociais que caracterizaram a conjuntura de

redemocratização.

Desse modo, podemos afirmar que o movimento brasileiro de Reforma Psiquiátrica

se desenvolveu e encontrou eco e força no bojo de um processo mais amplo de discussões,

debates e ações políticas voltadas para a redemocratização do país, reivindicando a

conquista e expansão de direitos e uma mudança da relação entre Estado e sociedade civil,

contribuindo para a construção de um projeto político de transformação que se consolidou

como política oficial do Ministério da Saúde ao longo dos anos noventa.

A Reforma Psiquiátrica constituiu-se, de maneira ampla, complexa e autêntica,

como um dos mais atuantes e importantes movimentos sociais brasileiros, na medida em

que seus integrantes e proponentes se configuravam como “‘novos’ sujeitos coletivos no

cenário político em distintas e diferenciadas arenas e espaços que não aqueles

tradicionalmente definidos pela concepção clássica da democracia”, expressando “sintomas

de conflitos presentes na própria sociedade na medida em que se caracterizam por um forte

traço reivindicativo na luta por conquistas na efetivação de demandas sociais” (COHN,

46

2003, p. 11). Para isso, desenvolveu-se implicando centenas de atores no processo de

desconstrução crítica do manicômio, de rupturas conceituais e da invenção de novas

propostas e modelos assistenciais, articulando-se com outros espaços e movimentos para a

sua concretização.

Para efeito de análise histórica do desenvolvimento da reforma psiquiátrica

brasileira, trabalharemos aqui com o conceito de trajetória – já devidamente explicitado no

capítulo introdutório do presente trabalho – apontando a existência de três momentos

característicos desse processo efetuado: uma “trajetória alternativa”, durante os últimos

anos da década de 1970; uma “trajetória sanitarista”, que se desenvolveu a partir do início

dos anos 1980 até a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental, e uma

“trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção” (AMARANTE, 1995a,

p. 93).

Dito isso, a partir desse referencial teórico-metodológico, apresentaremos uma

síntese das expressões fundamentais de cada trajetória, explicitando seus marcos históricos

‘oficiais’ e os momentos significativos desses percursos de transformação e, em particular,

o quadro teórico-conceitual desenvolvido, indicando em linhas gerais as suas principais

contradições e os diferentes modelos de atenção psiquiátrica e de saúde mental presentes

em cada uma delas.

A trajetória inicial, denominada “alternativa”, caracterizou-se especialmente pela

conjuntura de democratização do país e pela afirmação de direitos humanos universais

(Nicácio, 2003). Segundo Fernando Tenório (2002), desde 1978, tanto a questão da reforma

psiquiátrica brasileira quanto a da assistência à população e a humanização dos serviços já

permeavam as discussões realizadas entre os trabalhadores das unidades de saúde. Esses

debates vieram a culminar num momento conhecido por ‘crise da DINSAM’ (Divisão

Nacional de Saúde Mental) – órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação

das políticas públicas deste subsetor – quando os seus técnicos e demais profissionais da

área passaram a denunciar inúmeras irregularidades e deficiências dos serviços tais como a

falta de mão de obra, a precariedade das condições de trabalho e da assistência prestada,

além de apresentarem críticas relacionadas à cronificação do manicômio e uso do

eletrochoque. Dessa forma, reivindicaram da DINSAM um esforço no sentido da

47

substituição do modelo assistencial, custodial e segregador, por um modelo mais

abrangente de recuperação e ressocialização do usuário dos serviços de saúde mental.

Essa crise, deflagrada a partir da denúncia realizada por três médicos bolsistas do

CPPII (Centro Psiquiátrico Pedro II) mediante registro no livro de ocorrências do plantão

do pronto-socorro das irregularidades da unidade hospitalar, trazendo à tona e a público a

situação trágica e precária existente naquele hospital, culmina na criação do MTSM

(Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental), cujo objetivo era a constituição de um

espaço de luta não institucional.

Segundo Amarante (1995a, p.52), o MTSM configurou-se “em um locus de debate e

encaminhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina

informações, organiza encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem

como entidades e setores mais amplos da sociedade”. Esse movimento, através de diversos

protestos e pressões junto aos órgãos oficiais configurou-se como um novo ator, surgido no

final da década de 1970, que desempenhou durante um longo período o papel principal do

processo de reforma, tanto no que concerne ao aspecto teórico, quanto no que se refere à

organização de novas práticas mais condizentes com o contexto de reformas psiquiátricas

em andamento em todo o mundo.

Dentre as suas ações, o MTSM promoveu um amplo debate público sobre a questão

psiquiátrica, denunciando contundentemente a precariedade e as condições desumanas

vivenciadas no interior dos manicômios, a cronificação dos doentes mentais, as péssimas

condições de trabalho dos profissionais e a mercantilização da loucura caracterizada

basicamente pela privatização da assistência psiquiátrica efetuada por parte da Previdência

Social (NICÁCIO, 2003).

As práticas violentas e degradantes disseminadas no interior das instituições

psiquiátricas foram apresentadas à sociedade civil, sendo veiculadas pelos meios de

comunicação cenas que denunciavam as péssimas condições dos grandes manicômios

brasileiros, tais como o Juqueri, no Estado de São Paulo, a Colônia Juliano Moreira, no

Estado do Rio de Janeiro, e o Hospital de Barbacena, no Estado de Minas Gerais. Essas

denúncias engendraram uma ampla mobilização em prol da humanização dos hospitais

psiquiátricos, públicos e privados, alguns dos quais largamente identificados como

similares aos campos de concentração (VASCONCELOS, 2004).

48

Esse período foi marcado ainda por profundos questionamentos acerca dos saberes e

das práticas psiquiátricas, fundamentando a construção do pensamento crítico, a partir,

sobretudo, do contato com as obras de Foucault, Goffman, Castel e Basaglia. Em 1978, a

visita de alguns desses autores ao Rio de Janeiro propiciou a criação de um intercâmbio

com a ‘Rede de Alternativas à Psiquiatria’, movimento internacional de crítica às

instituições psiquiátricas, fundado em 1975 em Bruxelas (NICÁCIO, 2003).

Um dos momentos mais significativos desse período diz respeito à vinda de Franco

Basaglia ao Brasil no ano de 1979. Essa visita, que fora organizada pela Associação

Mineira de Psiquiatria, pelo Instituto de Psiquiatria Social de Diadema e pela Sociedade de

Psicodrama de São Paulo, possibilitou a realização de intensos debates, conferências

abertas ao público, e diversos eventos realizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais.

Nessas conferências, Basaglia apresentou a Lei 180, promulgada na Itália em 1978,

produto direto do movimento de transformação da psiquiatria efetuada naquele país, ao

mesmo tempo em que demarcava o significado, os avanços alcançados, as proposições e os

limites dessa nova legislação em vigor. Narrou ainda as experiências realizadas em Gorizia

e Trieste, expondo sua visão acerca da função social da psiquiatria articulada à

racionalidade da organização social, de suas estruturas de poder e das instituições. Desse

modo, desenvolveu uma forma inovadora de tratar e pensar a questão psiquiátrica,

afirmando o caráter fundamental da superação do dispositivo manicomial, questionando o

papel dos técnicos enquanto delegados da ordem social e agentes da exclusão, incentivando

ainda a produção de novos modos de lidar com a experiência da loucura (NICÁCIO, 2003).

Durante sua permanência em Minas Gerais, Basaglia, visitou vários hospitais

psiquiátricos e, particularmente impressionado com as condições encontradas no

manicômio de Barbacena, denunciou à imprensa a situação de violência sob a qual se

encontravam submetidas as pessoas internadas, fato que se constituía em uma grave

violação dos direitos humanos. Essas denúncias produziram uma grande repercussão na

mídia e junto à opinião pública, intensificando as discussões, potencializando e ampliando

o processo de mobilização e a participação de trabalhadores e de outras instituições.

Segundo Nicácio (2003, p.39)

49

As chamadas “conferências brasileiras” de Basaglia indicaram um caminho que, pela primeira vez, não era o da modernização ou de aggiornamento da psiquiatria (NICÁCIO et al., 2000). Os debates sobre a assistência psiquiátrica romperam os limites do espaço técnico e configuraram a questão da loucura e das instituições psiquiátricas como uma questão social.

Desse modo, esse período foi especialmente marcado por uma forte adesão e

sensibilização da opinião pública com a difusão de denúncias e cenas chocantes do interior

dos asilos pelos principais meios de comunicação do país. Prova disso foi a produção do

primeiro documentário brasileiro sobre os asilos psiquiátricos, “Em nome da Razão”, do

cineasta Helvécio Ratton, apresentado em novembro de 1979, no III Congresso Mineiro de

Psiquiatria.

O segundo momento do processo da reforma psiquiátrica brasileira, a chamada

“trajetória sanitarista”, surge a partir da década de 1980. Uma característica marcante desse

período diz respeito à presença de atores dos setores progressistas no aparelho do Estado,

não apenas da área de saúde mental, mas, também, do campo global da saúde.

O período compreendido entre o final da década de 1970 e o início da década de

1980, no contexto geral brasileiro, despontou como uma época de inúmeras e profundas

transformações, cujas mudanças vieram determinar os rumos das políticas públicas de

saúde. Por conta dessas transformações, a assistência oferecida à população nos serviços de

saúde foi em certo ponto deteriorando-se. Isso porque, embora se tratasse de uma época

marcada por notáveis avanços tecnológicos, ao mesmo tempo os programas sociais e de

saúde sofreram cortes progressivos que afetaram diretamente as condições de saúde da

grande massa da população brasileira.

No que diz respeito ao setor de saúde mental, o quadro existente não diferia desse

relatado acima. Como vimos acima, o modelo hospitalocêntrico de asilos e colônias era

predominante e a assistência prestada, principalmente pela rede privada, cuja principal

fonte de financiamento se caracterizava por repasses efetuados pelo Estado, constituindo

uma situação de mercantilização da loucura.

Diante desse quadro de falência do modelo assistencial, assistiu-se a uma perda

gradativa tanto da resolutividade, quanto da eficiência e da qualidade dos serviços

prestados pela previdência social, tendo como resultado a elaboração das primeiras

50

tentativas direcionadas no sentido de alterar a precariedade do quadro vigente da saúde no

Brasil.

Ao lado dessa precária situação da saúde, nessa mesma época, o país apresentava

intensos movimentos de crítica e de forte resistência ao regime ditatorial em que se

encontrava mergulhado. Foi justamente contra este estado autoritário que se dirigiram as

formulações críticas de vários setores da sociedade. Um movimento de destaque foi o

movimento pela Reforma Sanitária – de onde, aliás, deriva a denominação ‘trajetória

sanitarista’ – que objetivava produzir uma reforma nas políticas e práticas de saúde que

vigoravam no país, tendo em vista a possibilidade de obtenção efetiva da assistência e dos

serviços relacionados à saúde por toda a população brasileira.

Segundo Yasui (2006, p.25), a Reforma Sanitária se constituía

fundamentalmente como um processo político, entendido como possibilidade emancipatória na construção da polis, da esfera pública, dos bens comuns. Processo que implicava em produção intelectual crítica, práticas e ações alternativas ao modelo hegemônico, militância cotidiana, ocupação de espaços institucionais, articulações com outros setores da sociedade, ocupação de espaços no interior do aparato estatal, avanços e recuos. Um processo político colocando em cena e em pauta a relação entre Estado e sociedade civil. A Reforma Sanitária se constituiu tensionando criticamente os termos desta relação.

Desse modo, incidindo diretamente no âmbito das políticas públicas de saúde,

observam-se algumas propostas de mudança no sistema de assistência. No início dos anos

1980, uma nova modalidade de convênio denominada ‘co-gestão’, prevê a colaboração do

Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) no custeio, planejamento e

avaliação das unidades hospitalares do Ministério da Saúde (MS). Dessa forma o MPAS

deixa de comprar serviços do MS, segundo os mesmos moldes realizados com o setor

privado, passando a participar da administração global do projeto institucional da unidade

co-gerida. Assim, neste contexto, no ano de 1981, foi criado o CONASP (Conselho

Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária), órgão que contava com a

participação não paritária de representantes governamentais, patronais, universitários, da

área médica e dos trabalhadores. O CONASP tinha como objetivos propor normas mais

adequadas para a prestação da assistência à saúde da população, para a alocação de recursos

financeiros e também buscava propor medidas de avaliação e de controle do sistema de

assistência médica. Segundo Amarante (1995, p. 66), “o CONASP apresenta um plano

51

geral para a saúde previdenciária, um para a saúde oral e um outro para a assistência

psiquiátrica”. Para tanto o CONASP lançou o ‘Plano de Reorientação da Assistência à

Saúde’, no âmbito da Previdência Social, objetivando uma melhoria da qualidade da

assistência prestada e também a humanização dos atendimentos e um maior acesso das

populações rurais e urbanas aos serviços de saúde. Priorizava, dessa maneira, ações básicas

de saúde, com uma ênfase direcionada ao atendimento ambulatorial. Além disso, buscava

utilizar a capacidade ociosa do setor público, evitando, dessa forma, a contratação dos

serviços privados.

A criação do CONASP e a posterior e conseqüente promulgação do seu ‘plano’,

podem ser aqui entendidas como uma ampliação a nível nacional tanto da experiência

desenvolvida a partir da co-gestão como também algumas experiências localizadas em

municípios ou regiões centradas nos princípios da integração, hierarquização,

regionalização e descentralização do sistema de saúde e da rede assistencial, visando sua

unificação.

O plano para a assistência psiquiátrica data de agosto de 1982, ficando conhecido

como ‘plano do CONASP’. Como derivação deste plano, neste mesmo ano, foi aprovado o

Programa de Reorientação Psiquiátrica Previdenciária, que tinha como objetivos a reforma

da assistência psiquiátrica no país, a melhoria das condições de internação, o

desenvolvimento de uma rede ambulatorial e a incrementação de novas formas

intermediárias de assistência psiquiátrica (hospital-dia, hospital-noite, pensão protegida,

etc.). Em 1983 foram implementados pelo CONASP dois grandes projetos: o programa de

racionalização das contas hospitalares, com a introdução da Autorização de Internação

Hospitalar (AIH) e o programa de Ações Integradas de Saúde (AIS). Segundo afirma

Amarante (1995, p. 92), “o plano do CONASP desdobra-se nas Ações Integradas em

Saúde, em 1985, que constituem os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde

(SUDS), preparando o terreno para a confecção do Sistema Único de Saúde (SUS) hoje

impresso na Constituição”. Neste mesmo ano, na área de saúde mental, estas mesmas

diretrizes passam a nortear a prática da DINSAM.

Dentro desse movimento de críticas e contestações, e mesmo com o confronto e

embate de forças entre o MTSM e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em 1986

52

ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde, onde foram definidas as bases do projeto de

Reforma Sanitária Brasileira, tendo, pela primeira vez, a convocação de entidades

representativas da sociedade civil nos debates, com uma participação efetiva na discussão

dos programas do governo, assim como na formulação das políticas públicas de saúde.

A partir de uma estratégia voltada para a ocupação da burocracia estatal, foram

realizadas algumas iniciativas de mudança na assistência psiquiátrica em alguns Estados,

sendo em geral programas coordenados por integrantes do MTSM. As políticas desse

período buscaram formular e operar modelos e propostas progressistas de intervenção, com

ênfase nas orientações de cunho preventivistas e comunitárias, difundidas então pela

Organização Panamericana da Saúde - OPAS.

No Estado de São Paulo, as diretrizes da política de saúde mental implementada no

período compreendido entre os anos de 1982 a 1986 preconizavam a construção de uma

rede de atenção em saúde mental que pudesse significar uma alternativa ao modelo asilar

vigente. Seguindo essa orientação, foram priorizadas a criação de serviços extra-

hospitalares, a configuração e adoção de equipes multiprofissionais e, em particular, a

ampliação e o redimensionamento dos serviços ambulatoriais voltados para a saúde mental

(Nicácio, 2003).

Ao longo do processo de implementação dessa política, foram desenvolvidas várias

experiências voltadas basicamente para a inserção das pessoas diagnosticadas com

transtornos mentais graves no atendimento ambulatorial, para a diversificação dos

atendimentos e para a redução do tempo de internação hospitalar. Por outro lado,

emergiram diversos conflitos e contradições, dentre os quais podemos indicar aqueles

relativos à prática assistencial, à formação dos profissionais, às finalidades da própria

proposta e ao contexto no qual se inscrevia (op.cit.).

A posterior análise dessas experiências e dos limites e impasses encontrados nesse

esforço para se solidificar e concretizar uma alternativa real ao asilamento psiquiátrico

constituiu a base fundamental para a reflexão crítica da política de saúde mental no Estado

de São Paulo e do modelo assistencial proposto, gerando uma série de debates organizados

por integrantes do Movimento, então reunidos na Plenária de Trabalhadores em Saúde

Mental (op. cit.).

53

Em 1987, em um cenário marcado por um conjunto de embates e disputas, foi

convocada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, estruturada segundo três temas

centrais: “Economia, Sociedade e Estado: impactos sobre a saúde e doença mental; reforma

sanitária e reorganização da assistência à saúde mental; e cidadania e doença mental:

direitos, deveres e legislação do doente mental” (BRASIL, 1988).

Desde o processo de convocação e ao longo da realização dessa Conferência foram

especialmente marcantes os diversos conflitos evidenciados entre os participantes,

revelando a presença de posições diferentes. Essas divergências evidenciaram-se tanto na

própria coordenação do processo da Conferência quanto com relação ao projeto pretendido

para a mudança da assistência psiquiátrica (Amarante, 1995a). Dentre as recomendações

apresentadas no Relatório Final da I Conferência podemos ressaltar: “a prioridade da

participação da população no planejamento e na implementação dos programas de saúde

mental e a necessidade de construção de serviços extra-hospitalares” (BRASIL, 1988).

Parte do MTSM desenvolve uma crítica aguda à burocratização efetuada na

trajetória sanitarista, quando o movimento priorizou desenvolver suas proposições do

interior do aparelho de Estado e centrava suas ações e esforços no sentido de obter um

maior controle e humanização dos hospitais psiquiátricos, assim como com a difusão de

serviços ambulatoriais. Além disso, dentre as principais críticas e limitações do modelo

sanitarista em relação com a reforma psiquiátrica desenvolvida, podemos indicar, conforme

Vasconcelos (2004) a percepção do seu caráter excessivamente

estrutural, na medida que centra as possibilidades de mudança apenas nas macro-estruturas econômica, institucional e política do campo em foco, sem interferir no próprio processo interno de produção dos serviços, ou no ato de saúde propriamente dito; tecnicista/burocrática, como se os diferentes técnicos e instrumentos de planejamento, vigilância epidemiológica, sistema de referência e contra-referência, fossem suficientes para implementar e garantir a mudança; fordista, ou seja, visando uma produção em massa de serviços de forma padronizada, não flexível e não preocupada com as especificidades dos diversos grupos da clientela dos serviços e com a dimensão de singularidade humana do sofrimento psíquico.

Além disso, as experiências de transformação da assistência psiquiátrica, com uma

ênfase particular na atenção ambulatorial e nos hospitais psiquiátricos, desenvolvidas na

década de 1980, produziram um conjunto de contradições que expressavam a distância

entre os princípios norteadores adotados e as práticas concretas. Surgem propostas de

redirecionamento e criação de novos dispositivos e modalidades de atendimento, cujas

54

bases teóricas tornam necessário a invenção de novas formas de responder a estas questões.

A reforma psiquiátrica passa a ter como objetivo a procura por um meio de aproximar-se e

ir de encontro às pessoas e às comunidades, enquanto a “tradição sanitarista fala muito

pouco sobre pessoas e muito de números, de populações, sem conseguir escutar as diversas

singularidades a respeito do sujeito que sofre” (AMARANTE, 1995a, p.94).

Diante disso, essa ala propõe uma revisão dos objetivos estratégicos, e se re-molda

segundo uma clara inspiração no modelo proposto por Basaglia e pelo movimento da

Psiquiatria Democrática Italiana, apontando como interesse central das ações desenvolvidas

a ruptura radical com o dispositivo asilar como dispositivo terapêutico, lutando pela

implantação de serviços que fossem efetivamente substitutivos ao hospital psiquiátrico.

Desse modo, esse campo conflituoso das diversas reflexões presentes na

demarcação do final do período da ‘trajetória sanitarista’ foi, ao mesmo tempo, o terreno de

construção do início da chamada ‘trajetória da desinstitucionalização’. As contradições

evidenciadas pelas experiências que pretendiam constituir alternativas ao modelo

hegemônico clássico da psiquiatria apontavam ainda para uma crítica ao modelo

preventivista-comunitário, um marco teórico que fundamentava as proposições de reforma

em sua aspiração sanitarista.

Segundo Amarante, (1995b, p. 493-494)

Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização é este processo, não apenas técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. De uma prática que reconhece, inclusive, o direito das pessoas mentalmente enfermas em terem um tratamento efetivo, em receberem um cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não um cativeiro. Sendo uma questão de base ética, o futuro da reforma psiquiátrica não está apenas no sucesso terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos serviços, mas na escolha da sociedade brasileira, da forma como vai lidar com os seus diferentes, com suas minorias, com os sujeitos em desvantagem social.

55

Desse modo, a crítica ao saber psiquiátrico se voltou para o conjunto das questões

sociais, tendo como eixo condutor os temas da exclusão social e a cidadania. Fortemente

calcadas no marco teórico-conceitual concernente à noção de desinstitucionalização, as

discussões realizadas neste período apontaram para uma ruptura com as trajetórias até então

desenvolvidas. Foram assim delineadas novas idéias e pressupostos tais como a

desconstrução do manicômio, a construção da cidadania e o direito à diversidade.

O manicômio passou a ser pensado como uma lógica que transcende o próprio

hospital, uma maneira específica de definição e compreensão da loucura. Segundo esse

prisma, urgia a construção de um processo de transformação radical das instituições

psiquiátricas e do rompimento com a leitura reducionista geralmente adotada na análise da

loucura e da doença mental.

A Reforma Psiquiátrica começa a se articular na forma de um processo social

complexo, conceito formulado por Rotelli, Leonardis & Mauri (2001), e utilizado para

caracterizar a desinstitucionalização italiana em oposição aos processos desenvolvidos em

outros países da Europa e nos Estados Unidos, os quais, segundo ele, acabaram reduzindo-

se a uma mera desospitalização, motivada basicamente por uma necessidade de

racionalização financeira e administrativa. Processo social complexo que abrange quatro

dimensões essenciais: dimensão teórico-conceitual ou epistemológica, técnico-assistencial,

jurídico-política e sócio-cultural, que se articulam visando reconstruir a complexidade do

objeto, desmontar o conceito de doença, retomar o contato com a existência e o sofrimento

do sujeito e sua ligação com o corpo social, não mais para curar, mas para a produção de

vida, de sentidos, de sociabilidade e de espaços coletivos de convivência.

Desse modo, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em

1987, conforme Amarante (1995a, p. 93-94)

marca o fim da trajetória sanitarista e o início de uma outra: a trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção. Aqui é tomada a decisão de realizar o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, em dezembro do mesmo ano, quando é construído o lema ‘por uma sociedade sem manicômios’. É nesta trajetória que surge o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo, que é feita a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, com a posterior criação de Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) ou que surge o Projeto de Lei 3.657/89. Nesta trajetória, passa-se a construir um novo projeto de saúde mental para o País.

56

O II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, em

dezembro de 1987, figura como um evento marcante nesse processo de reformulação dos

rumos tomados pelo movimento, contando com a presença de lideranças municipais,

técnicos, usuários, familiares, estudantes e muitas outras pessoas, em um clima de muita

vitalidade e participação. Esse evento marca o início de uma nova discussão e da

explicitação de um campo ético-político específico para o projeto de transformação da

atenção psiquiátrica, voltada especialmente para os direitos de cidadania das pessoas com

transtornos mentais Com essa proposição, iniciava-se, naquele período, uma profunda

mudança na forma de compreender a relação entre loucura, direitos e tutela, cujo conteúdo

será aprofundado e problematizado nos anos posteriores, promovendo mudanças

significativas nas dimensões assistencial, jurídica e sociocultural.

Seu encerramento foi marcado por uma passeata pelas ruas de Bauru, onde mais de

trezentas pessoas reivindicaram a extinção dos manicômios. O Manifesto de Bauru,

documento aprovado na plenária e distribuído no dia da passeata, registrou o nascimento de

um novo movimento: o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, cujas idéias foram

assim expressas:

Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos. O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada. O Manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de menores, nos cárceres, a discriminação contra os negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos, à saúde, justiça e melhores condições de vida (Manifesto de Bauru apud Conselho Regional de Psicologia, 1997, p.93)

A partir deste evento, este nascente movimento, que representa, em linhas gerais, a

face mais politicamente ativa da Reforma Psiquiátrica, difundiu-se nacionalmente,

organizando-se em vários estados.

Segundo Yasui (2006, p.40)

57

Uma importante característica desse movimento é a de existir como um movimento, sem se tornar uma instituição, não há uma sede, ficha de inscrição ou rituais de filiação. Existe como uma utopia ativa, prenha de desejos e ideais de transformação, e como materialidade na prática cotidiana de profissionais, familiares, usuários e tantos outros que se identificam com seu ideário. É, fundamentalmente, um dispositivo social que congrega e articula pessoas, trabalhos, lugares.

Ainda no final dos anos oitenta, vemos surgir um novo e importante ator na

construção de novas possibilidades de atenção e cuidados e na luta pela transformação da

assistência em saúde mental: as associações de usuários e familiares. Além da pioneira

SOSINTRA do Rio de Janeiro, criada em 1978, e do Grupo Loucos Pela Vida do Juqueri,

foram organizadas a Associação Franco Basaglia - SP, a Associação Franco Rotelli -

Santos, o SOS Saúde Mental, dentre outras.

Vemos a difusão de novas estratégias de ação, com um viés cultural distinto, voltada

para a organização de festas e eventos sociais e políticos nas comunidades, construindo

uma possibilidade de diálogo até então inédita, em grande parte por conta da participação

majoritária de trabalhadores, técnicos e técnicas em saúde mental.

No final dos anos 1980, o Brasil vivia um novo panorama, bem diferente daquele

vivenciado na década de 1970. A eleição direta para presidência da República, uma nova

Constituição, a perspectiva e uma viabilidade palpável de construção de uma nação mais

soberana e democrática. No campo da saúde, a mobilização existente mantinha-se em torno

do processo de institucionalização da Reforma Sanitária. No campo da saúde mental, de

uma situação inicial em que havia apenas o modelo do hospital psiquiátrico como

dispositivo de cuidado e assistência, encontramos no raiar dos anos 1990 o

desenvolvimento de algumas importantes experiências municipais. Essas experiências

denotavam duas características marcantes do movimento de reforma psiquiátrica brasileiro

de até então, com a ocupação dos espaços de decisão e de poder do aparelho estatal abrindo

a possibilidade, sustentada politicamente, da produção de um processo de transformação

radical da assistência em saúde mental.

Assim, são desenvolvidas as primeiras experiências municipais inovadoras no

sentido da constituição de uma nova rede de cuidados em saúde mental. Dentre essas, o

principal exemplo diz respeito ao Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) experiência

iniciada em 1989 em Santos, no Estado de São Paulo, que se constituiu em “um serviço

58

comunitário de portas abertas durante 24 horas por dia, 7 dias por semana, capaz de atender

a praticamente todo o tipo de demanda de cuidado em saúde mental, incluindo uma

estrutura de alguns poucos leitos” (Vasconcellos, 2004). Podemos citar também

experiências desenvolvidas na capital de São Paulo como a constituição dos Centros de

Convivência e, principalmente, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Assistimos ainda em 1989, em grande parte impulsionada junto à opinião pública

pela intervenção efetuada na Casa Anchieta em Santos, ao lançamento do Projeto de Lei

Paulo Delgado, propondo a extinção e a substituição progressiva dos serviços do tipo

manicomial; a realização da Conferência de Caracas de 1990, onde se articulou um

consenso entre os governos latino-americanos em torno da nova plataforma política da

reforma psiquiátrica; e o amplo processo de discussão da nova estratégia a nível municipal,

estadual e federal no país, culminando na II Conferência Nacional de Saúde Mental, em

dezembro de 1992, considerada um marco na história da psiquiatria brasileira.

Esse momento constituiu-se em um momento político favorável para a

implementação das proposições concernentes ao processo de reforma desejado, contanto

com um movimento forte e organizado nacionalmente – representado pelo Movimento da

Luta Antimanicomial, com a ampliação da organização e da participação de associações de

usuários e familiares, o início das transformações na legislação federal, a criação de leis em

vários estados e municípios2 e o início de um processo de institucionalização da Reforma

Psiquiátrica (Yasui, 2006).

2 Conforme Britto (2003, p.91), “Convém destacar que, durante o período de tramitação do PL, alguns estados brasileiros aprovaram leis baseadas nas propostas do projeto do deputado Paulo Delgado, são eles:· Ceará – Lei 12.151 de 29/07/93; Dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória e dá outras providências. · Distrito Federal – Lei 975 de 02/12/95. Fixa diretrizes para a atenção à saúde mental no Distrito Federal e dá outras providências. · Espírito Santo – Lei 5.267 de 07/08/92. Dispõe sobre direitos fundamentais das pessoas consideradas doentes mentais e dá outras providências. · Minas Gerais – Lei 11.802 de 18/01/95. Dispõe sobre a promoção de saúde e da reintegração social do portador de sofrimento mental; determina a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes; regulamenta as internações, especialmente as involuntárias, e dá outras providências. · Paraná – Lei 11.189 de 09/11/95. Dispõe sobre as condições para internações em hospitais psiquiátricos e estabelecimentos similares de cuidados com transtornos mentais. · Pernambuco – Lei 11.064 de 16/05/94. Dispõe sobre a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral à saúde mental, regulamenta a internação psiquiátrica involuntária e dá outras providências. · Rio Grande do Sul – Lei 9.716 de 07/08/92. Dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determina a

59

No governo Collor, apesar do seu conservadorismo, assistimos a uma reocupação

dos espaços políticos por parte do movimento de reforma, em torno da Coordenação de

Saúde Mental ao nível do Ministério da Saúde. Desse modo, até pelo menos 1996, vemos

se desenvolverem uma série iniciativas políticas formais, com o lançamento de portarias

ministeriais a partir de 1991/1992. Estas estabeleceram a normatização e o financiamento,

antes restrito aos hospitais psiquiátricos convencionais, para os novos serviços de saúde

mental, particularmente os de atenção psicossocial.

São desenvolvidos projetos e serviços comunitários como os lares abrigados e

residências terapêuticas e o país desenvolve um processo de desospitalização, denominada

por Vasconcelos (2004) de “desospitalização saneadora” com uma redução significativa do

número de leitos em hospitais privados e principalmente públicos.

Paralelamente ao processo de desospitalização, conforme Vasconcelos (1999), mais

de 2000 leitos psiquiátricos em hospitais gerais e cerca de 200 serviços de atenção

psicossocial (hospitais-dia, CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, e NAPS – Núcleos de

Atenção Psicossocial) foram abertos, em todo o país, demonstrando haver um processo de

substituição gradativa do tipo de assistência psiquiátrica baseada na internação por outros

modelos, caracterizados por serviços abertos, de acordo, portanto, com um novo modelo de

atenção. Procurava-se, com essa nova estrutura de tratamento e com o modelo ambulatorial

reconfigurado, estender a rede assistencial para além dos limites e moldes do hospital

psiquiátrico, fomentando a participação comunitária e da sociedade civil organizada como

instrumentos de reabsorção e ressimbolização do indivíduo portador de transtornos mentais.

Com isso, inaugurou-se uma nova configuração da assistência psiquiátrica, tanto no

que concerne ao funcionamento dos novos dispositivos, quanto do aperfeiçoamento da rede

de cuidados, levando-se em conta o seu aspecto territorial e o fato do atendimento

ambulatorial ter se ampliado, sendo agora transformado no objeto primeiro de intervenção.

substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental, determina regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações psiquiátricas compulsórias e dá outras providências

60

Assim, ao longo desses anos (1989 aos dias atuais), podemos apontar uma série de

transformações ocorridas, diretamente relacionadas com a articulação e a luta pelos direitos

de cidadania do louco, tendo como modelo o processo de desinstitucionalização. Dentre

estas, as mais notáveis e consolidadas dizem respeito aos campos técnico-assistencial e

jurídico-político.

A lei 10.216 é finalmente aprovada em abril de 2001, inaugurando uma nova

orientação do modelo de atenção adotado pela assistência psiquiátrica brasileira, orientada

para a progressiva extinção da instituição manicomial e sua substituição por outras formas,

limitando as internações, submetendo-as ao Ministério Público, e procurando traçar um

novo modelo de atenção psiquiátrica. Na sua definição dos direitos da pessoa portadora de

transtorno mental, diz, no item IX do parágrafo único do artigo 2°, que a pessoa assistida

deve ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Segundo Pedro Gabriel Delgado (2001, p.284),

o texto aprovado constitui o resultado final de um longo ciclo de debates no Congresso, especialmente no Senado, onde várias redações substitutivas foram apresentadas. Ficou mantida a diretriz geral de reorientação do modelo de saúde pública neste subsetor, com substituição progressiva do aparato hospitalocêntrico.

Assim, a grande conquista na aprovação desta lei se refere à assunção do

pressuposto ético de que o doente mental é um cidadão, devendo ser tratado como tal,

sendo destacado, com este princípio fundamental, os direitos do paciente psiquiátrico.

Desse modo, podemos apontar a existência de um rico aparato jurídico, ético e

científico que impulsiona as ações de saúde mental na comunidade. O campo para a

discussão e reflexão sobre o tema está aberto e o processo de reforma se mantém. A política

para a área está em constante transformação quer seja no campo dos saberes, das práticas,

da cultura e no campo jurídico.

Desse modo, em linhas gerais, esse terceiro momento da reforma psiquiátrica

brasileira, ou trajetória da desinstitucionalização tem ainda como grande mérito a

compreensão da cidadania para além de um mero atributo formal, apontando para um

projeto aberto que é e deve continuar sendo construído cotidianamente.

61

4. LOUCURA E CIDADANIA: ALIANÇAS, NÓS E PONTOS CEGOS

Como está descrito no capítulo introdutório do presente trabalho, nossa intenção

primordial reside na problematização das ditas histórias oficiais da cidadania, dos direitos

humanos e da reforma psiquiátrica brasileira, a fim de apontar possíveis impasses e

rachaduras nessas formas relativamente consolidadas de contar e encadear os diversos

acontecimentos vividos. Urge aqui, portanto, para que efetivamente se crie algo novo, a

reestruturação dos seus componentes e conceitos mais caros para que daí se extraia alguma

raridade – na forma de um outro olhar ou perspectiva.

Para essa desconstrução pretendida, desenvolveremos agora três pontos de análise

do material histórico descrito: a conjuração forjada entre cidadania e direitos humanos,

especialmente no que tange ao princípio da universalidade e à forma como o louco se

enreda nessa trama como um novo sujeito de direitos; a tendência observada nos últimos

anos no sentido da judicialização das relações sociais e o processo de distensão das

atribuições do poder judiciário e, em especial, do Ministério Público; e, por fim, os novos

serviços extra-hospitalares e o risco da transposição e criação de “novas tutelas sem grades

aparentes” (RODRIGUES, 2003, p. 45).

4.1. O UNIVERSAL “CAFÉ-COM-LEITE”

Como vimos nos capítulos anteriores, o conceito de cidadania, apesar de sua

institucionalização formal em leis e documentos normativos, não se constitui

necessariamente em um conceito substancialmente estático, fechado, sendo, ao contrário,

produzido, vivenciado e modificado segundo características específicas de cada contexto

histórico.

A partir do final do século XIX, diversos acontecimentos produziram um processo

de renegociação da relação entre Estado e sociedade civil, com implicações profundas para

o significado da cidadania e os processos de inclusão e exclusão na ordem dos direitos e

deveres. Assim, as relações entre Estado e sociedade foram se modificando e formando

diferentes tipos de cidadania nos diversos espaços geográficos.

Para Vieira (1997, p. 22, apud BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p.29) o

conceito de cidadania, mais especificamente tomado “enquanto direito a ter direitos,

62

historicamente tem assumido variadas interpretações, em função dos diferentes contextos

culturais”. E é justamente essa dimensão do conceito de cidadania em sua relação com os

diversos direitos e diversos contextos culturais que nos indica um primeiro ponto a ser

problematizado acerca da noção contemporânea deste conceito quando definido segundo o

prisma dos direitos humanos – sua universalidade.

A partir do processo desencadeado, em primeiro lugar, nas revoluções burguesas do

século XVIII, com ênfase para a revolução francesa, até o movimento de reafirmação e

redimensionamento dos conceitos de cidadania e direitos humanos desenvolvido no período

após a segunda guerra mundial, quando uma série de direitos – denominados direitos

humanos fundamentais – são tomados como um dever universal para toda a humanidade e,

mais especificamente aos governos dos Estados-nações.

Em certa medida, esse processo instaura um conjunto de questionamentos acerca do

papel exercido pelas soberanias nacionais, fazendo com que as identidades nacionais sejam

constrangidas por pressões e movimentos de alcance internacionais, segundo a proposição

de uma identidade humana global. Esse movimento deriva diretamente dessa nova política

forjada desde o pós-guerra que considera a existência de um “sujeito humano universal

como um sujeito da doutrina de direitos humanos universais” (MONTEIRO, 2006, p.31).

Diversas críticas podem ser formuladas com respeito a essa suposta universalidade,

inicialmente conceituada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,

sendo legitimada e alçada ao estatuto de ideal, a ponto de influenciar constituições como as

francesas de 1793, 1795, 1848 e 1946 e a Declaração Universal adotada pela ONU

(Organização das Nações Unidas) em 1948. Críticas que vão desde o etnocentrismo

vinculado a sua definição – marcadamente ocidental e imperativamente imposta para todos

os povos do mundo, independente das diferentes culturas existentes – até o caráter caótico

da fabricação do próprio texto da Declaração Universal de 1948 e do consenso sobre o

tema3, realizados mediante uma concatenação confusa de “projetos múltiplos, e até mesmo

3 Como exemplo, conforme Alves (2008, p. 2-3), “Controvertido, na qualidade de direito humano fundamental, o direito à propriedade, ‘só ou em sociedade com outros’, registrado no Artigo 17, desagradava sobretudo aos países socialistas, enquanto os direitos econômicos e sociais não se adequavam à ortodoxia liberal capitalista. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, sobretudo no casamento (Artigo 16), assim como a proibição de castigo cruel (Artigo 5º) causavam, por sua vez, dificuldades a países muçulmanos de legislação não-secular. Nenhum dos dispositivos chegava, contudo, ofender as tradições de qualquer cultura ou sistema sócio-político. Ainda assim a Declaração de Direitos Humanos foi submetido a voto, na

63

inconciliáveis, (...) objeto de intermináveis negociações e compromissos, (...) associação de

fragmentos colhidos de diversos lados, (...) reconhecida e aprovada por seus próprios

autores como uma obra ‘não terminada’” (JULLIEN, 2008).

No entanto, apesar desse caráter confuso, do fato de que nem mesmo os seus

Estados redatores tenham se disposto a cumpri-la imediata e efetivamente, além de outras

dificuldades encontradas nesse processo, podemos dizer que a Declaração de 1948 –

“simples peça de soft law, na terminologia anglo-saxã” (ALVES, 2008) – alcançou ampla

repercussão mundial.

O passo mais significativo no sentido de uma universalização formal da Declaração

de 1948 foi dado na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em

junho de 1993.

Segundo Alves, (2008)

Maior conclave internacional jamais reunido até então para tratar da matéria, congregando representantes de todas as grandes culturas, religiões e sistemas sócio-políticos, com delegações de todos os países (mais de 170) de um mundo já praticamente sem colônias, a Conferência de Viena adotou por consenso – portanto, sem votação e sem reservas – seu documento final: a Declaração e Programa de Ação de Viena. Este afirma, sem ambigüidades no Artigo 1º: “A natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”.

Contudo, apesar dessa formalização e dos avanços contabilizados dentro dessa

agenda política, por assim dizer, internacional, podemos apontar, dentro do campo do

Direito, duas concepções distintas acerca da universalidade desses direitos do homem que

vão influenciar e mesmo se mesclar nos documentos e teorizações ligadas ao tema.

A concepção jus-naturalista, de onde deriva o artigo primeiro da Declaração

Universal dos Direitos do Homem da ONU de 1948, “todos os homens nascem livres e

iguais em dignidade e direitos”, exprime uma concepção ideal, fixa e imutável do direito,

independente dos movimentos e contextos sociais, e mesmo dos valores que cada momento

histórico inscreveu em sua conceituação.

Já a concepção positivista se caracterizaria por sua particularização no espaço e no

tempo, estando na base da constituição do Estado moderno, onde o Direito passa a figurar

como um instrumento de controle, ordenamento e gestão governamental, sendo

Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, e aprovada por quarenta e seis a zero, mas com oito abstenções (África do Sul, Arábia Saudita e os países do bloco socialista)”.

64

influenciado pelos processos de secularização, sistematização, positivação e historicização.

O Direito, na concepção positivista, é concebido como um produto da História,

teleologicamente pensada como progresso.

Apesar dos evidentes distanciamentos, e apesar da posição jus-naturalista ser

usualmente tomada como anterior à positivista, articulando-se a ela enquanto um

fundamento essencial, as duas concepções possuem em comum a adoção de uma

perspectiva transcendental de análise e a cristalização de noções fechadas acerca do

‘homem’ e dos ‘direitos’, sendo ambas vinculadas à crença de uma natureza humana, ora

dada de antemão ao nascermos, ora construída e positivada ao longo da história e do

progresso científico alcançado particularmente em cada contexto sócio-político.

Desse modo, conforme Chauí (1995 apud VIEIRA, 2008), “podemos dizer que

tanto a crença em uma positividade do dado quanto no caráter absoluto e imóvel da idéia

fazem com que ambas concepções – positivista e naturalista – percam o movimento que

cristaliza os dados em conceitos e as idéias em instituições”.

No entanto, no caso de abrirmos mão desse caráter absoluto que caracteriza as

concepções usuais dos direitos do homem e passarmos a lidar com esse conceito na forma

de um projeto em aberto, vivo, em constante movimento, podemos descortinar o que, a

nosso ver, melhor explicita uma capacidade universalizante dos direitos humanos, distinta

dos transcendentalismos positivista e jus-naturalista que sustentam a formalização e

institucionalização de suas proposições em leis e normas.

Para isso, lançaremos mão do artigo de François Jullien, publicado em 2008 na

revista ‘Le Monde Diplomattique’, onde nos são apresentadas duas formas de lidarmos com

a questão dos direitos do homem – como um conceito de caráter ‘universalizável’ ou

‘universalizante’.

A dimensão universalizável dos direitos humanos diz respeito a sua pretensão por

encerrar um enunciado de verdade, a sua busca e reclame por uma qualidade de universal

capaz de ser aplicada a todo e qualquer ser humano, independente das diferenças culturais

vivenciadas. Já o seu caráter universalizante decorreria não propriamente de uma

formulação de ordem teórica, mas, antes, de ordem prática, operatória, donde o universal

emanaria como efeito dessa ação.

65

De certo modo o autor identifica no conceito de direitos humanos universais, tal

como é usualmente pensado e operado nos dias de hoje, uma maior aproximação do caráter

universalizante com a função reivindicatória, de protesto e luta. Isso decorre, por um lado,

devido ao caráter universalizável que geralmente está vinculado ao seu conteúdo positivo –

“por seu mito do indivíduo, por sua construção da ‘felicidade’ como fim último, por seu

pressuposto de ensinar universalmente o significado da vida, exigindo que sua ética seja

preferida a qualquer outra” (JULLIEN, 2008) – e, por outro, porquanto em seu aspecto

negativo e reivindicatório, eles se constituem em um instrumento insurrecional

incomparável, “para dizer não e protestar, para opor-se ao inaceitável, marcar uma

resistência” (op.cit.)

Ainda segundo Jullien (2008),

essa função negativa, insurrecional, prevalece sobre a dimensão positiva da noção e alcança a utilidade mais geral que a vocação do universal possui: a de reabrir uma brecha na totalidade satisfeita, reacendendo nela a aspiração. Nem todos os que invocam os direitos do homem aderem à ideologia ocidental – às vezes nem mesmo a conhecem –, mas encontram neles o último argumento, o instrumento incansavelmente retomado de mão em mão e disponível para toda causa por vir.

Desse modo, ao invés de imputar nos direitos do homem uma universalidade que

supostamente existiria de antemão, o caráter universalizante aponta para uma dimensão do

universal que se encontra em curso, em um processo que não está acabado. Essa noção, ao

invés de tratar os direitos do homem como uma propriedade ou qualidade passivamente

possuída, os concatena como fator, agente e promotor, vetor do universal, abrindo mão de

qualquer referência ou dependência de alguma representação instituída externamente às

lutas que continuamente os constituem.

Segundo essa perspectiva, podemos também pensar o processo de construção da

cidadania. Turner (1993), por exemplo, a partir da crítica à visão legal e normativa

apresentada por Marshall de cidadania – considerada etnocêntrica e apolítica em seu caráter

seqüencial que nos induz a conceber um processo evolutivo pacífico, consensual e linear –

procura definir a cidadania de uma forma inovadora, atribuindo a responsabilidade pela

expansão e ampliação dos direitos às diversas frentes de luta encampadas pelos

movimentos sociais (verde e de mulheres, movimento negro na América do Norte, direitos

relativos às vítimas da AIDS e aos homossexuais, etc.).

66

Para Turner, a cidadania corresponderia a um conjunto de práticas jurídicas,

políticas, econômicas e culturais que fazem com que uma pessoa seja considerada como um

membro efetivo da sociedade, tendo como parâmetro e conseqüência o dimensionamento

do fluxo de recursos sociais disponibilizados para os indivíduos e os diferentes grupos

delineados por meio e na relação com esse fluxo. Concebida como um conjunto de práticas,

essa definição aborda a cidadania como produto direto de lutas políticas, da distribuição

desigual de recursos e como parte de uma dinâmica histórica.

Nessa definição, Turner diferencia a relação e a forma de vivência desses direitos

segundo os conceitos de cidadania ativa e passiva, relacionados à forma como os direitos e

deveres são distribuídos entre os diferentes setores da sociedade, a partir dos modos de

participação vivenciados e da sua dimensão cultural, enfocando a cidadania com uma

ênfase marcante em sua dimensão política.

Retomando o caminho traçado até aqui, podemos dizer que a existência da

cidadania está diretamente encarnada na figura individual do cidadão. Este realiza essa

existência, na medida mesma em que todo o arcabouço legal e jurídico relacionado a esse

status lhe confere uma identidade, que o inscreve na esfera pública.

Enquanto função identificatória, a princípio, a cidadania tem como pressuposto a

existência da igualdade e da diferença e, por conseguinte, evidencia ainda as condições para

as circunstâncias de privação e os próprios limites dos direitos.

Conforme Ferreira (2000, p. 20 apud MONTEIRO, 2006, p.18), “a cidadania faz a

mediação das relações entre os indivíduos identificados, ‘presentificados’ como cidadãos

frente ao Estado, os que se incluem na ordem dos direitos e deveres; ao fazer isto, também

identifica os que estão excluídos dessa ordem, os não-cidadãos”.

Ao longo do tempo, conforme já exposto acima, podemos perceber um movimento

de ampliação dos direitos concernentes ao conceito de cidadania, onde o efeito

universalizante se presentifica no sentido de uma inclusão progressiva de toda a população

existente numa mesma ordem de direitos e deveres, buscando equalizar as diferenças

existentes a partir de uma crescente apropriação normativa regida pelo potencial integrador

do princípio da igualdade perante a lei. E o grande desafio que nos é posto atualmente se

refere ao esforço por desenvolver a equalização da diferença sem que com isso se promova

uma homogeneização da diferença.

67

Como instrumento para entendermos essa tendência observada no contexto mundial

e brasileiro, Benevides (1994), a exemplo de Turner (1993), desenvolve a noção de

cidadania ativa e passiva, calcada na abordagem do cidadão como titular, ainda que

parcialmente, de uma função ou poder público. Segundo essa visão, é a partir de uma dupla

ação política, dos cidadãos e do Estado, que a equalização da diferença se efetua no sentido

da universalização dos direitos.

Dentro dessa perspectiva, a cidadania passiva diz respeito aos direitos e benefícios

outorgados pelo Estado, segundo a autora, trazendo consigo a idéia moral do favor e da

tutela. Já a cidadania ativa institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas,

sobretudo como fundamentalmente criador de direitos para abrir novos espaços de

participação política. A efetivação da cidadania ativa implica na ampliação de direitos

políticos para a participação direta dos cidadãos no processo de decisões de interesse

público (BENEVIDES, 1994, p. 9). Assim, a cidadania está diretamente ligada à

possibilidade de participação direta na formulação e proposição de políticas públicas e na

construção e conformação dos diversos direitos e deveres, afirmando a soberania popular

como elemento essencial desse processo.

Até por conta da tradição brasileira de governos populistas e políticas de cunho

predominantemente assistencialista, a idéia moral do favor e da tutela prevalecem sobre a

noção de conquistas sociais, mais coadunadas com a perspectiva de uma cidadania ativa,

onde os direitos e benefícios outorgados pelo Estado dizem respeito a proposições e

plataformas advindas de lutas disseminadas no tecido social, representadas pelas diversas

minorias citadas acima.

Hoje em dia, segundo essa confusão gerada por pontos de vista em disputa, o

governo brasileiro procura, através das chamadas ‘ações afirmativas’, intervir na sociedade

de modo a garantir uma mínima igualdade social, equalizando as diferentes condições para

o acesso aos direitos previstos constitucionalmente. Assim, o reconhecimento da dimensão

universal da cidadania se presentifica dialeticamente na capacidade associativa e

insurrecional de grupos específicos – cidadania ativa – e na forma de intervenções estatais

– cidadania passiva –, realizadas muitas vezes em parceria com a sociedade civil, que

procuram conceder aos menos favorecidos possibilidades de construção do que se entende

68

por uma vida digna, caracterizada basicamente por valores como a liberdade, a

independência e a autonomia.

Dentro do contexto específico da reforma psiquiátrica, podemos apontar como um

documento de luta e reivindicação a ‘Carta de Direitos dos Usuários e Familiares de

Serviços de Saúde Mental’, elaborada pelos participantes do III Encontro Nacional dos

Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, realizado em Santos/SP, em Dezembro de

1993.

Em linhas gerais, o documento procura afirmar a universalidade dos direitos

fundamentais, garantindo ao usuário o direito de “ser tratado e ouvido como pessoa

humana, com direitos civis, políticos e sociais como qualquer cidadão”. Traz uma

importante consideração acerca do termo usuário, querendo demarcar o campo em que são

formulados os direitos e reivindicações propostas, na forma de um sujeito coletivo que

pretende ser reconhecido em sua especificidade e diferença, muito embora não seja

redutível a essa condição específica.

Contudo, embora tratem de aspectos variados remetidos à noção de uma vida plena

e multifacetada, discorrendo sobre a integralidade das ações que devem ser dirigidas a

todos os aspectos existenciais da vida desses sujeitos, as suas reivindicações e as temáticas

trabalhadas pelo documento se circunscrevem e delimitam no que tange aos direitos

relacionados à vivência junto aos serviços de assistência psiquiátrica, às políticas públicas

voltas para esse público específico e à regulação das formas de tratamento dispensadas, tais

como o direito de escolha dos serviços e profissionais de sua preferência e o direito de ser

devidamente informado e consultado no que se refere à participação nas decisões

terapêuticas e na fiscalização dos serviços prestados.

Sem dúvida, esse documento evidencia um alto grau de articulação, maturidade

política, engajamento e adesão às reivindicações que ao longo do tempo foram construídas

pelo processo de reforma como um todo. No entanto, a nosso ver, o mesmo fator que

possibilita a unidade e força desse documento e desta luta acaba, por outro lado, por

reforçar uma condição específica e, em determinados aspectos, menorizada no que tange

aos direitos e à noção de uma cidadania plena.

Ao se lidar com a diferença e especificidade deste sujeito coletivo em particular, a

sua condição desigual acaba por delinear uma aura excessivamente passiva, revestida de

69

imagens ligadas às noções de deficiência e desvantagem social em relação aos demais

membros da sociedade, o que gera uma proliferação de ações afirmativas e benefícios

especiais concedidos por parte do Estado. Assim, a afirmação dos direitos universais inclui

o louco, mas não elimina um viés negativo ou uma condição menorizada, estigmatizante,

por conta da articulação desses direitos com o enunciado da doença mental.

Essa hipótese formulada acima fica patente quando analisamos as formas como as

portarias e leis conformam a situação do louco ou, segundo sua própria terminologia, do

portador de transtorno mental.

4.2. OS NOVOS DIREITOS DOS NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS

Podemos estruturar a legislação e os novos serviços relacionados à assistência

psiquiátrica agrupando-os segundo o campo específico de cada direito contemplado. Para

essa exposição, exporemos inicialmente uma análise da lei 10.216/01 e, posteriormente,

algumas portarias e programas relacionados à saúde mental.

4.2.1. A Lei Federal 10.216 de 2001

Um primeiro aspecto a ser analisado com relação ao processo de lançamento,

tramitação e aprovação dessa lei, diz respeito à defasagem ou apaziguamento imposto por

uma série de negociações legislativas e pelas pressões políticas exercidas por forças

opositoras dessa proposta – ao que Rodrigues (2003, p. 57) nomeia como um “árduo

processo de anti-luta manicomial”, presente até os dias de hoje, mas que entre os anos de

1989 e 2001 demonstraram sua força e poder de persuasão parlamentar ao reduzir o ímpeto

transformador e mesmo a magnitude da proposta inicial do projeto de lei 3.657/89,

imputando um caráter tímido ao texto final da lei 10.216/01.

Inicialmente, o objetivo central do projeto de lei do deputado Paulo Delgado era a

extinção progressiva dos manicômios, ou seja, a extinção das instituições de internação

psiquiátrica especializada. No entanto, ao longo do tempo de tramitação parlamentar, esse

ponto foi praticamente alijado do texto a lei, não sendo sequer mencionado no substitutivo

encaminhado senador Sebastião Rocha.

A lei federal 10.216/01 se articula em dois grandes eixos: a questão da proteção

social e o redirecionamento do modelo assistencial. Diferentemente do que almejava o

70

projeto de lei, a lei 10.216/01 mantém e legitima o dispositivo hospitalar, sendo fortemente

voltada para a reestruturação da assistência psiquiátrica com a regulação no uso e no

funcionamento desse modelo terapêutico. Busca-se, em linhas gerais, com uma maior

ênfase, a humanização dos serviços prestados, o reconhecimento dos direitos e da cidadania

dos sujeitos portadores de transtorno mental4, assim como as obrigações do Estado para

com eles.

Esta lei é composta por 13 artigos que são divididos segundo o seguinte

ordenamento: Art. 1º e 2º - apresentam os direitos das pessoas portadores de transtorno

mental; Art. 3º - estabelece as responsabilidades concernentes ao Estado; Art. 4º ao 10º -

definem, disciplinam e regulamentam os tipos de internação psiquiátrica; Art. 11 - trata das

pesquisas científicas que venham a envolver pacientes/usuários de serviços de saúde

mental; Art. 12 - cria uma Comissão Nacional para o acompanhamento da implementação

da lei; Art. 13 – faz vigorar a lei a partir da data de sua publicação.

O artigo 1º, claramente voltado para o pressuposto da universalidade dos direitos e

para a condição de igualdade perante a lei, estabelece que a proteção e os direitos dos

portadores de transtorno mental são assegurados a todos sem a existência de qualquer

forma de discriminação.

O artigo 2º determina que nos atendimentos em saúde mental as pessoas devem ser

informadas dos direitos estabelecidos para os portadores de transtorno mental, enumerados

e estabelecidos em seu parágrafo único. Os nove itens componentes desse deste parágrafo

indicam uma série de direitos que se referem especificamente às condições de realização

desses atendimentos.

Para Amarante & Yasui (2003, p.09),

uma leitura mais atenta nos permite perceber que alguns itens são quase redundantes e lá estão como garantia de que as cotidianas violências submetidas àqueles pacientes não mais se repitam. (...) na história daquilo que se convencionava chamar de tratamento psiquiátrico, eram rotina para os pacientes: serem submetidos a abusos, explorações, não ter direito ao sigilo de suas informações e serem submetidos a condutas terapêuticas violentas tais como ECT (eletroconvulsoterapia, conhecida como eletrochoque), lobotomia, etc.

4 A expressão ‘portador de transtorno mental’ que figura em seu título e é adotada atualmente pela psiquiatria nos indica uma mudança inovadora no que tange à nomenclatura utilizada para se definir a condição da pessoa que necessita de cuidados em saúde mental.

71

O artigo 3º trata da responsabilidade do Estado no que se refere ao desenvolvimento

da política de saúde mental, na assistência e na promoção de ações. Vale ressaltar aqui que

essas ações e políticas devem contar “com a devida participação da sociedade e da família”,

o que, por um lado, pode ser percebido como um reflexo direto da forma como a nossa

Constituição Federal privilegia e legitima a participação social e política como fator

imprescindível para a formulação das políticas públicas e a garantia dos direitos de

cidadania. Por outro lado, dada a imprecisão desta “devida participação” e do foco no

atendimento prestado, não se pode delimitar de antemão, propriamente, que forma de

parceria se pretende estabelecer entre Estado, sociedade e familiares dos sujeitos portadores

de transtorno mental. Essa imprecisão permite a proliferação de formas de compreensão e

práticas variadas, o que acaba por criar um campo aberto de incidência política, podendo

ser ocupado de múltiplas maneiras.

O artigo 4º estabelece um limite para a ocorrência da internação, cuja indicação fica

condicionada pela circunstância do esgotamento ou insuficiência dos recursos extra-

hospitalares, não havendo, no entanto, uma definição para o que deva ser considerado como

insuficiente. Os parágrafos deste artigo regulamentam a internação e estabelecem que o

tratamento deve ter como finalidade permanente a reinserção social do paciente e a oferta

de uma assistência integral, com a abordagem terapêutica sendo efetuada a partir da atuação

de uma equipe multidisciplinar.

Essa limitação pode, ao invés de diminuir os índices de internação e hospitalização,

funcionar como um incentivo ao acionamento desse dispositivo, uma vez que não existe

uma rede assistencial extra-hospitalar tão abrangente no país.

De certo modo, essa brecha para a internação explica em parte a tendência apontada

por alguns autores de capsização da reforma psiquiátrica, uma vez que, conforme está

disposto na lei, em tese, a expansão e consolidação da rede de serviços extra-hospitalares

poderia servir como um argumento no sentido de evitar novas internações.

Contudo, ademais, conforme Britto (2003, p.94)

Embora no parágrafo 3º a lei proíba a internação em instituições com características asilares – definidas como aquelas que não apresentam os recursos explicitados no parágrafo 2º e que também não respeitam os direitos enumerados no artigo 2º -, os demais itens que constituem o artigo permitem que o hospital psiquiátrico exista enquanto recurso de tratamento a ser utilizado.

72

O artigo 5º discorre sobre a situação dos pacientes internados por longo tempo, que

por conta disso apresentam uma situação de grave dependência institucional. Segundo essa

abordagem, esses sujeitos devem ser “objeto de política específica de alta planejada e

reabilitação psicossocial assistida”, demonstrando, em certa medida, uma preocupação ou

tendência, ainda que contraditória, no sentido de superar o modelo manicomial e focar a

assistência psiquiátrica como um todo, incluindo aí o dispositivo hospitalar, no sentido da

reinserção social dos pacientes.

O artigo 6º define a internação como um ato médico, onde seu laudo se configura

como o instrumento primordial para efetuação de uma internação psiquiátrica, a qual é

tipificada, em seu parágrafo único em internação psiquiátrica voluntária (IPV), involuntária

(IPI) e compulsória.

O artigo 7º regulamenta a internação voluntária, estabelecendo que esta se efetue a

partir de uma declaração escrita, assinada pelo paciente, afirmando seu consentimento para

este tipo de tratamento. Seu parágrafo único determina que a IPV se encerre a partir de uma

solicitação por escrito do paciente ou segundo determinação médica.

Apesar desta medida significar uma importante inovação, estabelecendo o poder do

próprio paciente em requerer sua alta, não há propriamente uma referência para possíveis

condições que impeçam a cessação da IPV, nem tampouco sobre as conseqüências cabíveis

para o hospital que não cumprir apropriadamente a determinação da lei, que se torna vaga e

sujeita a distorções no cotidiano dos hospitais.

O artigo 8º determina que as internações voluntárias e involuntárias somente devam

ser autorizadas por médicos que sejam devidamente registrados no CRM do estado onde se

localize o estabelecimento onde se efetuará a internação. O parágrafo 1º estipula que a

internação involuntária e sua respectiva alta devem ser comunicadas ao Ministério Público

Estadual em no máximo setenta e duas horas. Dessa forma, há a introdução inovadora do

Ministério Público Estadual na intermediação da relação da medicina com o Estado.

Conforme Britto (2003, p.95)

Este é um ponto que se manteve comum entre o PL 3.657/89 e o texto final aprovado. No PL o artigo 3º determinava a comunicação da chamada internação compulsória à autoridade judiciária local ou à Defensoria Pública. O propósito desta medida era verificar a legalidade da internação, fiscalizar os estabelecimentos psiquiátricos e zelar pelos direitos do cidadão internado. Embora a lei atual mantenha a comunicação das IPIs a uma autoridade pública, ela não define o

73

objetivo de tal procedimento. Da mesma forma a lei não menciona as conseqüências do descumprimento desta medida para o hospital.

O parágrafo 2º deste artigo discorre sobre o término da IPI, podendo ocorrer a partir

de uma da solicitação do familiar ou responsável legal, ou quando determinada pelo

médico. Dessa forma, na IPI, o paciente não é consultado e não participa de importantes

decisões relacionadas ao seu tratamento.

O artigo 9º delibera sobre a internação compulsória, em geral determinada pelo

poder judiciário. O artigo 10º determina o prazo de vinte e quatro horas para a comunicação

aos familiares ou representantes legais, assim como à vigilância sanitária, das evasões,

transferências, intercorrências clínicas graves e falecimentos de pacientes.

Apesar desse artigo tratar de procedimentos que deveriam ser usualmente

desempenhados pelos hospitais psiquiátricos, segundo Amarante & Yasui (2003, p. 10) “o

aqui disposto é mais bem compreendido se considerarmos a triste e absurda realidade de

que essa comunicação não era feita pelos hospitais psiquiátricos”.

De modo geral, podemos afirmar que a transformação social pretendida pelo PL não

foi mantida, na medida mesmo em que praticamente nenhum artigo componente desta lei

aborda diretamente a questão do modelo assistencial nem sequer menciona a constituição

de serviços substitutivos em detrimento ao modelo asilar. A lei mantém de certo modo uma

estrutura hospitalocêntrica em suas deliberações e determinações, onde encontramos apenas

a indicação da integralidade proporcionada pela atuação de uma equipe multidisciplinar

(art. 4º § 2º) e a preferência que deve ser observada para os serviços comunitários de saúde

mental (art. 2º- IX), não havendo uma definição do que efetivamente se entenda por um

serviço comunitário.

Ademais, muito embora possamos formular diversas críticas ao seu texto e sua

tramitação parlamentar, esta lei representa indubitavelmente um avanço para o processo de

reforma psiquiátrica e para a transformação do modelo de assistência em saúde mental na

medida em que, confrontada com a agenda política desse movimento, torna explícitos

alguns direitos concernentes ao portador de transtorno mental, além de diferenciar e

regulamentar a realização de internações psiquiátricas.

74

A Lei 10.216/01, em consonância com uma tendência já apontada anteriormente,

coloca em ação um dispositivo de segurança e proteção dos direitos do portador de

transtornos mentais, onde o Ministério Público Estadual assume uma função reguladora.

Posteriormente, com o objetivo de regulamentar a internação psiquiátrica

involuntária, foi promulgada em 2002 a Portaria n° 2.391/GM que

regulamenta o controle das internações psiquiátricas involuntárias (IPI) e voluntárias (IPV) de acordo com o disposto na Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, e os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério Público pelos estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do SUS (Brasil, 2002).

Como pontos principais da portaria, podemos destacar: determina que a internação

psiquiátrica deva ser adotada como último recurso de tratamento e durar o mínimo possível;

estabelece quatro modalidades de internação, incluindo, para além das já definidas pela lei

10.216/01 a modalidade ‘internação psiquiátrica voluntária que se torna involuntária’; o

prazo de 72 para horas para a notificação das internações psiquiátricas involuntárias (Arts.

4º e 5°) e voluntárias que se tornam involuntárias (Art. 6º) ao Ministério Público Estadual,

assim como a comunicação da alta hospitalar, relacionada à internação psiquiátrica

involuntária; a elaboração de um modelo de formulário próprio – Termo de Comunicação

de Internação Involuntária; o estabelecimento do papel do Ministério Público quanto ao

registro das notificações das internações psiquiátricas involuntárias e voluntárias que se

tornam involuntárias, para que possa ser realizado o controle e o acompanhamento das

mesmas até o momento da alta (Art. 6), podendo requerer maiores informações sobre o

laudo médico, autorizar novos exames realizados por diferentes profissionais e entrevistar

aqueles que achar conveniente - paciente, familiares, etc. (Art.11); o estabelecimento de

solicitação à pessoa que se interna voluntariamente de estar de acordo com o documento

intitulado ‘Termo de Consentimento Livre e Esclarecido’, o qual deverá permanecer sob os

cuidados do serviço que realiza a internação (Art. 9°); a constituição de uma Comissão

Revisora das Internações Psiquiátricas Involuntárias (Art.10) que realizará a revisão das

internações psiquiátricas involuntárias, podendo através de laudo, confirmar ou suspender

tal tratamento (Art.12).

De modo geral, portanto, são reconhecidas algumas reivindicações do movimento,

principalmente no que tange à intervenção e poder decisório dos usuários, ainda que,

sombria e inelutavelmente, o poder médico ainda arbitre sobre as ditas faculdades mentais e

75

a capacidade de entendimento da situação por parte do paciente psiquiátrico. Ademais,

essas medidas recolocam a questão da capacidade civil e atualizam o conceito de

“intervalos lúcidos” (DELGADO, 1992, p. 124), da psiquiatria forense. Ainda que não o

cite propriamente, podemos perceber essa atualização do conceito na medida em que se

entrevê que o poder decisório do portador de transtornos mentais depende, em última

instância, da constatação médica dessa lucidez para que efetivamente se realize.

4.2.2. Novos direitos, programas e ações afirmativas

Uma série de programas de governo, segundo o prisma das ações afirmativas, foram

criados como meio de equalizar as condições de usufruto dos direitos de cidadania por parte

dos sujeitos portadores de transtornos mentais. Muitos desses programas apresentam traços

característicos do que poderíamos chamar de ‘tutelas temporárias’, uma vez que pretendem

fazer a ponte entre uma vida social autônoma e independente aos que, a princípio,

necessitam de cuidados especiais.

a) Direito ao convívio social e familiar

Partindo de uma premissa exposta no artigo 5º da lei 10.216/01, o Programa ‘De

volta para casa’, regulamentado pela lei 10.708/03 e Portaria GM 2077/03, se volta para um

auxílio-reabilitação psicossocial dos pacientes institucionalizados, egressos de hospitais

psiquiátricos, tendo permanecido internados por período igual ou superior a dois anos.

Procura contemplar os direitos à liberdade de ir e vir e de integração ao meio social e

consiste num benefício pecuniário mensal concedido por um prazo inicial de um ano,

podendo ser renovado.

b) Direito à moradia

O direito à moradia, reconhecido como constitucionalmente como uma categoria de

direito fundamental, garante a o seu titular – o cidadão brasileiro – a possibilidade de exigir

do Estado uma ação positiva no sentido de garantir o gozo deste bem juridicamente

assegurado. Figura ainda, no âmbito das políticas públicas em saúde mental, uma condição

fundamental para a garantia de uma condição digna de reabilitação psicossocial,

significando um local de referência e proteção social.

Com esse fim, foram criados os serviços de residência terapêutica ou lares

abrigados que consistem em moradias de natureza pública, financiadas pelo governo federal

76

e voltadas para o acolhimento e reinserção social de pessoas com transtornos mentais

egressas de hospitais psiquiátricos, usuários de CAPS ou outros serviços de saúde mental

que não possuam um suporte familiar e social, além de moradores de rua que integrem

projetos terapêuticos.

Regulamentados basicamente pelo Art. 5º da lei 10.216/01, pelas Portarias GM

106/00 e 1220/00, consistem em espaços coletivos de moradia, amparados por um ou mais

profissionais desempenhando a função de ‘cuidador’, divididos em duas modalidades

configuradas segundo a maior ou menor autonomia dos seus moradores, no que tange ao

cuidado e higiene pessoal, capacidade de organizar-se para tomar os medicamentos,

guardar e conservar seus pertences pessoais, gerir a casa, pagar contas, e outros afazeres,

assim como na relação com outros moradores.

c) Direito à educação

O direito à educação se efetua basicamente de quatro formas: na rede regular de

ensino, por meio da educação especial, por meio da oferta de classe hospitalar e

atendimento pedagógico domiciliar ou através de oficinas terapêuticas de alfabetização. Na

medida em que a educação se constitui como um imprescindível instrumento de inclusão

social e superação das desigualdades, os projetos terapêuticos individuais devem ser

permeados pelo asseguramento desse direito, com uma atenção especial para o retorno ou

permanência em atividades escolares.

Preferencialmente, o acesso da educação deve ser realizado na rede regular de

ensino. As outras modalidades de acesso vão variar de acordo com o desempenho e a

situação específica vivenciada por cada pessoa. Desse modo, urge às escolas se adequarem

para garantir o acesso desses alunos, reconhecidos como cidadãos com necessidades

educacionais especiais.

d) Direito ao Trabalho

Apesar de não estar expresso na Constituição Federal, o direito ao trabalho figura

como um dos direitos sociais mais elementares para uma existência digna e para o

reconhecimento e inserção social.

A longa permanência em hospitais psiquiátricos e mesmo a própria possibilidade de

uma aposentadoria por incapacidade ou invalidez relacionada à observância de um

transtorno mental tido como impedimento para o desempenho das funções profissionais,

77

acabam por gerar uma série de dificuldades na relação desses sujeitos com o mercado de

trabalho.

A reabilitação psicossocial por meio do trabalho figura como um dos pilares

fundamentais da Reforma Psiquiátrica Brasileira e tem dois campos distintos de atuação: a

realização de capacitação profissional por meio de oficinas terapêuticas e a formação de

cooperativas sociais ou empresas sociais, que apresentam a solidariedade e o próprio fim

terapêutico como valor agregado.

e) Direito ao Benefício da Prestação Continuada

Trata-se de um benefício pecuniário concedido por uma ação nacional do campo da

assistência social que objetiva auxiliar grupos de pessoas que são consideradas como

socialmente desamparadas, tais como idosos, pessoas com deficiência, com transtornos

mentais e doenças graves.

Assim, de maneira geral, podemos perceber nesse arcabouço jurídico a forma como

o conceito de universalidade proporcionou, por um lado, o reconhecimento dos direitos de

cidadania do louco, mas, por outro, reforça um caráter e condição negativa, faltante,

deficiente, a partir do conceito das necessidades especiais e das novas formas de tutela e

gestão da vida desses novos cidadãos, produzindo quase-sujeitos. Justamente por essa

peculiaridade que caracteriza sua cidadania é que a denominamos ‘café-com-leite’, no

sentido de denunciar a forma como a loucura é inserida nas formas atuais de conceituação e

exercício da cidadania.

4.3. A JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO

Podemos perceber uma tendência mundial, especialmente a partir dos anos de 1970,

no sentido de uma presença cada vez maior do poder judiciário de modo geral ocupando

lugares tradicionalmente reservados às instituições especializadas da política e de auto-

regulação societária. Essa percepção, ao invés de indicar possíveis ambições de poder por

parte do judiciário, aponta para outros processos mais complexos.

Grosso modo, esses processos, advindos de múltiplas instâncias, ganham força a

partir das transformações presentes desde o período pós-segunda guerra mundial. Em

primeiro lugar, podemos apontar o próprio desfecho dessa guerra, com a formação do

Tribunal de Nuremberg, convocado para o julgamento dos crimes contra a humanidade

78

praticados pelos dirigentes nazistas, possibilitando assim a penalização de agentes estatais

que cometam violações dos direitos humanos então rediscutidos e reinstitucionalizados,

submetendo o poder soberano nacional a um direito de foro internacional.

Além disso, da guerra igualmente veio a motivação – de importância crucial para a

forma como se constituíram esses processos – para que as constituições e legislações dos

diversos países signatários dos documentos de caráter internacional trouxessem em seu

corpo um conjunto de normas e valores fundamentais que pudessem exercer algum controle

e regulação do poder soberano de cada Estado-nação.

Desse modo, segundo (VIANNA, BURGOS E SALLES, 2007, p.40), o chamado

constitucionalismo democrático reclamava por um

poder judiciário dotado da capacidade de exercer jurisdição sobre a legislação produzida pelo poder soberano. E, na esteira da guerra, o Welfare State, com suas ambições de organizar o capitalismo e introduzir relações de harmonia entre as classes sociais, com suas fortes repercussões no sentido de trazer o direito para o centro da vida social.

Essa tendência promoveu uma verdadeira invasão do direito sobre o social,

avançando na regulação dos setores mais vulneráveis, em um processo em que podemos

apontar uma substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente

republicanos pelo poder judiciário, procurando garantir direitos e dar cobertura a grupos

sociais distintos tais como a criança e o adolescente, o idoso e os portadores de deficiência

física, os loucos, dentre outros. O juiz passa assim a assumir o papel de protagonista direto

da questão social. O cidadão, individualmente, e essas minorias ou coletividades

organizadas que se arregimentam e configuram, em suas lutas e reivindicações comuns e

difusas, em novos sujeitos de direitos passam então a mobilizar o arsenal de recursos criado

pelos legisladores a fim de conseguir vias alternativas para a defesa e eventuais conquistas

de uma série de direitos.

Segundo essa perspectiva, quando o Brasil se redemocratiza, após duas décadas de

ditadura militar e depois de percorrer um longo processo de transição, os constituintes de

1986 reformam a tradição republicana brasileira, sob o impulso da sociedade civil e dos

movimentos sociais.

Nesse sentido, a Constituição Brasileira de 1988 expurgou os elementos autoritários

presentes naquela tradição, afirmando os princípios e as instituições do liberalismo político,

revitalizando os direitos civis da cidadania, concedendo configuração institucional à

79

democracia política e instituindo novos mecanismos necessários para uma gestão pública

mais eficiente. Por outro lado, ampliou consideravelmente a presença da representação

funcional, recriou o Ministério Público e “consagrou o instituto das Ações Civis Públicas e

o tema do acesso à Justiça; e, sobretudo, admitiu a sociedade civil organizada na

comunidade dos intérpretes da Constituição” (VIANNA, BURGOS E SALLES, 2007,

p.42), fortalecendo e demarcando um papel preponderante para a participação social e

política da população brasileira.

Deste modo, de acordo com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público é

“instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a

defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis”. A Constituição estabeleceu o Ministério Público como órgão autônomo de

efetivação dos direitos do cidadão, e para isso, possui a característica de ser independente

aos poderes legislativo, executivo e judiciário.

Esta condição de independência e autonomia se configura como de suma

importância para o desempenho de suas funções reguladoras, uma vez que dentre essas

funções está a fiscalização das ações ou omissões dos órgãos governamentais ou poderes

públicos que ferem os direitos constitucionais.

Dentre seus procedimentos, na defesa dos interesses sociais e individuais

indisponíveis, na mediação de conflitos e na garantia dos direitos dos cidadãos, e mais

especificamente, dos portadores de transtornos mentais, o Ministério Público, de acordo

com a Constituição Federal e com as leis que o organizam, teria o

poder de requisição de informações e documentos (mesmo os de caráter sigiloso, como o prontuário médico); o poder de notificar pessoas para comparecerem a fim de serem ouvidas, sob pena de condução coercitiva; o poder de recomendar a prática de determinados atos; o poder de fiscalizar locais de internação coletiva, como hospitais e asilos, tendo livre acesso a todas dependências, etc.”. Além destes procedimentos, com a finalidade de evitar uma ação ou um processo judicial, o Ministério Público pode admitir o recebimento de um Termo de Ajustamento de Conduta, que atua como um acordo para a reparação de alguma irregularidade. (BRITTO, 2006, p. 104).

Especificamente no campo da saúde mental, o Ministério Público atuava

basicamente junto aos processos de interdição, realizando a fiscalização do processo, do

curador e na promoção da interdição. A partir da Lei 10.216/01, sua atuação foi aumentada.

80

A Constituição Federal determina que a privação da liberdade ou de bens seja

devidamente efetuada mediante a realização de um processo legal. Desse modo, na medida

em que na haja propriamente um crime que justifique a privação da liberdade efetuada

numa internação involuntária, esta se configuraria, a princípio, como uma desobediência à

Constituição. Contudo, a justificativa médica deste ato acaba por se fazer valer porquanto

se dirige para outros direitos essenciais também presentes no que determina o texto

constitucional, tais como o direito à vida, à saúde e à dignidade. Desse modo, este ato

médico, logo revestido de uma finalidade terapêutica, relaciona-se ao cumprimento desses

direitos, embora promova o recolhimento e a privação de liberdade dessas pessoas.

Ainda segundo Britto (2006, p.106),

a Lei 10.216/01, ao explicitar em seu texto a participação de uma instituição de Direito, o Ministério Público, contribui para que as pessoas com transtorno mental tornem-se cientes de seus direitos e tenham um órgão ao qual recorrer caso sintam-se lesionadas em seus direitos e em sua condição de cidadão.

Assim, apesar do Ministério Público atuar na fiscalização e regulação desses atos,

não lhe cabe propriamente atuar como um revisor do ato médico. A decisão pela forma de

tratamento continua restrita ao conhecimento médico, ou ainda, a decisão de uma equipe

multiprofissional. Ao Ministério Público caberia, portanto, monitorar a política de saúde

mental como um todo, no funcionamento dos hospitais e serviços extra-hospitalares, na

forma como os recursos destinados à saúde mental vêm sendo utilizados, como os

familiares e curadores estão tratando de seus familiares e interditados, visando muito mais

um controle desses serviços, evitando irregularidades e/ou ilegalidades que porventura

possam estar ocorrendo, zelando pela qualidade da assistência prestada e na oferta de um

tratamento digno, respeitando os direitos fundamentais da população.

4.4. OS ANTECEDENTES E RISCOS DOS NOVOS SERVIÇOS

No que tange à reforma psiquiátrica, no Brasil e no mundo, algumas considerações

devem ser colocadas antes de enveredarmos no próximo momento anunciado: a “trajetória

da desinstitucionalização ou desconstrução/invenção” (Amarante, 1995a).

Voltando ainda para o período pós-guerra, e aprofundando uma discussão e

descrição já superficialmente realizada no capítulo anterior, vemos despontar uma série de

movimentos de reforma, os quais vicejaram com maior ou menor força e amplitude. Os que

81

obtiveram maior dose de sucesso, a nosso ver, o obtiveram por conta de sua adequação

tanto com alguns valores morais e éticos vigentes na época – marcada pela crítica ao

totalitarismo e pelo temor de experiências-limite tais como o nazismo, no mundo, e a

ditadura militar, no Brasil – quanto a determinadas estruturas político-administrativos de

governo vigentes e da luta empreendida por uma série de movimentos sociais pela

universalização do acesso e pela efetivação dos direitos.

Desse modo, junto com uma crítica ampliada a todo modelo institucional que se

assemelhe com os campos de concentração e extermínio, assim como dos maus-tratos e da

tortura com que foram submetidos prisioneiros de guerra e opositores de regimes

ditatoriais, o tratamento asilar, fortemente caracterizado pelo desrespeito aos direitos

humanos e o isolamento da comunidade, passa a ser percebido, por grande parte da opinião

pública e dentre alguns setores progressistas no âmbito do saber psiquiátrico, como um

dispositivo eticamente condenável, ineficiente e anacrônico.

O século XX, especialmente dentro da área da saúde, se configurou, por uma série

de fatores, como um palco privilegiado para a assunção de modelos de atenção centrados na

vivência em comunidade. Em parte por posições políticas e motivações econômicas, em

parte por conta de articulações e disputas internas da comunidade científica, conceitos

como a prevenção da doença, a promoção da saúde, a descentralização político-

administrativa, o envolvimento da população e um enfoque comunitário em relação às suas

ações, começaram a ganhar força e a se difundirem mundialmente.

Vemos desenvolverem-se, nesse bojo, projetos como os da Medicina Preventiva,

Medicina e Psiquiatria Comunitária, dentre outros. Esses movimentos foram marcados por

tentativas de integração da dimensão social, tidas como presentes na produção das

enfermidades, e que vinham sendo excluídas da ação médica. Difunde-se, entre seus

principais axiomas, a concepção do indivíduo como uma “totalidade biopsicossocial

irredutível a um conjunto de estruturas e funções orgânicas” (REINALDO, 2008, p.174).

Além disso, durante e após a Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, entre

os anos 1940 e 1950, o grande número de jovens soldados que retornavam da guerra com

graves sintomas psiquiátricos contribuiu para impulsionar o desenvolvimento dos

pressupostos de uma psiquiatria comunitária.

82

As autoridades norte-americanas de saúde passaram a encarar a doença mental

como um problema social grave, que assumia uma maior proporção e significação diante da

necessidade de devolver os jovens soldados aos campos de batalha o mais depressa e

agilmente possível (REINALDO, 2008). Desse modo, diante da alta demanda apresentada e

da ineficiência e baixa resolutividade verificada no espaço asilar e hospitalar para esses

problemas, aliados ao alto custo e à necessidade de uma resposta rápida dos serviços de

saúde, novos dispositivos de assistência psiquiátrica são desenvolvidos e implementados

segundo uma linha político-conceitual que postula a concepção de saúde mental.

No entanto, a concepção de psiquiatria comunitária não era clara, mesmo entre

profissionais que assim se intitulavam, basicamente por conta de uma dificuldade na

conceituação de uma saúde mental comunitária, em oposição à psiquiatria hospitalar, assim

como no que se refere tanto ao entendimento do que vem exatamente a ser comunidade,

quanto em relação aos limites dessa proposta.

Nos Estados Unidos, após a guerra, os hospitais gerais passaram a aceitar pacientes

psiquiátricos, o que viabilizava, em certa medida, sua permanência nas comunidades de

origem. Apesar desses avanços registrados nos anos 1950, os hospitais psiquiátricos dos

norte-americanos contabilizavam cerca de meio milhão de pacientes internados. Além

disso, as condições precárias de assistência a essa população eram constantes alvos de

denúncias, protestos e críticas por parte da opinião pública.

Segundo Reinaldo (2008, p.174),

Em decorrência dessas pressões, o Congresso Americano, em 1955, criou uma Comissão de Enfermidade e Saúde Mental, que, entre os anos de 1955 e 1963, avaliou, discutiu e criou as bases políticas e jurídicas para transformar a assistência psiquiátrica. A Comissão apresentou, em 1961, um relatório intitulado Action for Mental Health que recomendava que fossem criadas bases de assistência comunitária, leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Os grandes hospitais psiquiátricos deveriam ter seus leitos reduzidos, e outros não poderiam ser criados. O espaço de ação da psiquiatria deveria ser expandido e incorporado à comunidade como campo de atuação.

A partir de 1990, com a realização da Conferência de Caracas e a confecção de sua

declaração notadamente marcada pela doutrina dos direitos humanos, esse movimento

ganhou força e reconhecimento político, impulsionando uma série de mudanças em relação

às políticas públicas de saúde mental caracterizadas pela reestruturação da assistência

psiquiátrica, por uma racionalidade técnica mais eficiente e uma melhor aplicação dos

83

recursos financeiros e pelo desenvolvimento de novos serviços integrados à atenção básica.

A ênfase se voltava para o desenvolvimento de dispositivos comunitários visando o

tratamento precoce, contínuo e eficiente da enfermidade mental, desenvolvendo ainda as

noções de reabilitação psicossocial e de reinserção social do usuário da saúde mental.

A princípio, foram propostos alguns serviços intermediários, tais como pequenos

hospitais e clínicas para tratamento de alguns transtornos comportamentais ditos menores,

mas que acabaram por reproduzir o modelo do macro-hospital. O tratamento estava

centrado na figura do médico e na terapia farmacológica que, aliás, tem assumido nas

últimas décadas uma posição hegemônica, “presente desde pelo menos o final dos anos

1950 no campo da psiquiatria, como a terapêutica por excelência dos distúrbios mentais”

(RUSSO, 2006, p. 474-475).

No entanto, com a expansão dos programas de saúde mental comunitária se

empreendeu uma mudança conceitual e prática em relação aos tratamentos efetuados.

Além de focar a saúde mental, esses programas se propunham desenvolver ações

sociais e promover a qualidade de vida da comunidade. Novos profissionais são

incorporados às equipes, no sentido de consolidar a idéia de um ser biopsicossocial, o qual

deve ser acompanhado de diferentes formas e por diversos saberes.

Do mesmo modo, em todas as experiências realizadas em consonância com os

princípios da psiquiatria comunitária, existem determinados consensos acerca do que vem

ou não a ser o melhor para o paciente. Por exemplo, a noção de que o sujeito, mesmo

estando doente, pode elaborar melhor seus projetos de vida na comunidade, “partindo do

princípio de que a comunidade é o seu ambiente familiar e que a vida nesse ambiente é um

constituinte indispensável para o processo de saúde do sujeito” (REINALDO, 2008, p.176).

Noção esta que se fundamenta na idéia de que o sujeito doente tem maiores probabilidades

“de alcançar sua normalidade se viver e for tratado em um ambiente [...] o mais parecido

possível a seu lugar de origem” (op.cit., p.177).

Desse modo, a psiquiatria comunitária baseia seus pressupostos na idéia de que a

comunidade se configura em um ambiente onde existam as condições fundamentais para o

seu processo de recuperação. Além disso, por outro lado, acredita-se numa maior

probabilidade de diagnóstico e tratamento precoce de possíveis transtornos

84

comportamentais, favorecendo o controle social na medida em que produz uma população

informada acerca dos distúrbios e dos encaminhamentos adequados.

Conforme Reinaldo (op.cit., p.175), foram formuladas uma série de recomendações

e características primordiais para a prática de saúde mental na atenção básica, dentre elas:

estar associada às demais ações da atenção básica; assegurar o bem estar da comunidade e do indivíduo; privilegiar as ações preventivas, individuais e coletivas; alocar os programas de saúde mental em diferentes serviços de atenção básica, formando uma rede de suporte e cuidados; realizar ações diretas e indiretas; utilizar novas estratégias de abordagem em saúde; ter governabilidade; agregar profissionais com diferentes formações, implicar a comunidade e, por fim, considerar as características da comunidade.

Entretanto, apesar das mudanças efetuadas no enfoque da atenção psiquiátrica, a

psiquiatria comunitária apresentava ainda uma atuação centrada no binômio saúde-doença.

Desse modo, na medida em que a psiquiatria comunitária é uma disciplina médica que

incorpora conceitos oriundos da saúde pública e postula a reorganização dos serviços de

assistência psiquiátrica e social, apesar de estar inserida na comunidade, de modo geral, ela

não rompe necessariamente com os encaminhamentos realizados para o hospital

psiquiátrico.

Apesar da forte crítica ao modelo hospitalocêntrico, uma mera reestruturação dos

equipamentos e serviços de saúde mental pode manter ainda como referência final de

tratamento o hospital psiquiátrico, geralmente justificadas por limitações de ordem técnica,

tais como o esgotamento dos recursos terapêuticos disponíveis.

Além disso, grosso modo, o mandato social atribuído à psiquiatria comunitária,

enquanto programas de governo ligados a políticas públicas de saúde mental, se expressa

em uma ação de cuidados terapêuticos em psiquiatria e saúde mental, dirigida a uma

comunidade geograficamente limitada, definida mediante características sociais e

demográficas específicas. Logo, existe obviamente uma função social relacionada à ordem

social e, por extensão, à vigilância desta comunidade, à detecção e ao controle precoce de

fatores de risco que porventura possam causar sofrimento mental, além do

acompanhamento dos pacientes sabidamente em sofrimento, estando submetidos ou não a

tratamento medicamentos.

No Brasil, apenas na década de 1970 assistimos a incorporação da designação

biopsicossocial, característica das práticas de saúde e de saúde mental comunitária

85

fortemente ancorada nas proposições do que viria a ser o movimento pela reforma sanitária

– e, até certo ponto, do próprio movimento de reforma psiquiátrica – onde os conceitos e

práticas relacionadas à medicina comunitária passam então a exercer forte influência junto

à burocracia estatal ligada ao setor saúde em geral e à própria comunidade científica.

Contudo, em ambos movimentos problematizaram as bases teóricas e conceituais

dessa perspectiva preventivista e comunitária, avançando para posições e implicações

distintas. Na Reforma Sanitária, a análise crítica da medicina preventiva avançou para uma

discussão sobre a Saúde Coletiva, redefinindo as suas noções fundamentais, como o

processo saúde-doença, a história natural das doenças, o princípio da causalidade, a clínica

médica, dentre outros aspectos, com fortes conseqüências técnicas, assistenciais, políticas,

ideológicas e culturais. E no processo da Reforma Psiquiátrica as críticas sobre as reformas

da psiquiatria e sobre a psiquiatria preventiva avançaram, também, para um questionamento

dos conceitos fundantes da psiquiatria, de suas instituições e dispositivos, de sua função

ideológica de controle.

Talvez a principal crítica efetuada ao avanço da perspectiva preventivista e sua

influência na reforma psiquiátrica brasileira seja essa dimensão de controle e vigilância

efetuados a partir de seus dispositivos, o que aponta para uma possível mudança estratégica

e atualização do controle social do qual a psiquiatria se constitui num dos mais evidentes e

fortes mandatários.

Conforme Yasui (2003, p.91), a

psiquiatria preventiva norte-americana que nos anos 60 do século XX, sem a conotação eugênica, mas com forte viés de controle, toma a sociedade como seu lócus privilegiado objetivando a prevenção da doença mental por meio da detecção dos comportamentos desviantes e de risco. A psiquiatria na sua relação com a sociedade sempre foi o mais bem acabado exemplo do dispositivo da sociedade disciplinar que investe na normalização dos corpos, como afirma Foucault (1979, 1983) e, posteriormente como acrescenta Deleuze (1992), da sociedade de controle: do corpo dócil ao corpo útil, cúmplice, aparentemente participativo, consumidor. Se nos colocamos na perspectiva de uma ruptura com esta racionalidade que determina o lugar do cuidado da loucura como o do isolamento, da exclusão, da disciplinarização e também como dispositivo que penetra na sociedade como estratégia de controle, vigilância, domesticação, devemos estar atentos sobre as relações entre a produção de cuidado e o território no qual se inscreve o serviço.

Essas críticas e reformulações evidenciam os riscos e as profundas repercussões

existentes na construção de novos serviços e novos modelos de atenção, tanto na prática

86

diária do cuidado e da assistência, quanto também para a escolha de estratégias distintas

condizentes com a especificidade da luta e do processo de reforma como um todo.

Assim, apesar de uma predominância no caso brasileiro de uma influência

basagliana, com o movimento de reforma apresentando uma inspiração francamente

inclinada para o processo de desinstitucionalização italiana, esses antecedentes históricos

dos dispositivos de base comunitária devem ser sempre lembrados. Quanto mais num

momento em que autores notoriamente envolvidos com tema da reforma, como Amarante

(2003) e Rodrigues (2003), denunciam um abrandamento da crítica aos dispositivos

manicomiais e do processo de reforma como um todo, com a redução do processo social

complexo a uma reinstitucionalização da psiquiatria, modernizando-a e renovando-a através

da implantação dos novos serviços.

Assim, ainda que esses novos serviços assumam uma lógica diferente da perspectiva

da psiquiatria preventiva e comunitária ao serem integrados em um movimento de

desinstitucionalização de inspiração basagliana, não podemos negar o seu potencial de

controle e esquadrinhamento da loucura em seu contato com o tecido urbano.

87

5. CONCLUSÃO

Alguém se inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou: – Como é que está cidadão? Dá para agüentar, cidadão?

Isso ele não sabia. Nem tinha importância. Agora sabia quem era.

Era um cidadão... (Moacyr Scliar, 2005)

Existem várias formas de se contar uma história. E até quando um mesmo evento é

presenciado por mais de uma pessoa, estas, ao explanarem seus testemunhos o fazem de

maneiras distintas, obedecendo a estilos e pontos de vista pessoais que, apesar de

inevitavelmente trazerem um corolário de pontos comuns na descrição do ocorrido, alteram

e influenciam sobremaneira a leitura das cenas compartilhadas. Cada observador colore a

sua narrativa com tons e nuances próprias, estendendo determinado ponto, encolhendo

outro, ignorando ou achando irrelevante o que na narrativa vizinha se avoluma e assume

uma centralidade na discussão. Assim, cada narrativa se faz de tal forma singular que não

podemos dizer que o seu somatório permita uma visão mais correta ou que esgote as

possibilidades de leitura dos acontecimentos, por assim dizer, historicizados.

Assim, mesmo quando pretendemos construir uma História e englobar com um

furor enciclopédico a leitura de documentos, textos, entrevistas, ou mesmo as lembranças

vivenciadas do que narramos, inelutavelmente tingiremos nossa descrição com uma

aquarela peculiar. Mesmo na busca de uma pretensa neutralidade científica que porventura

possa construir o mais objetivo e imparcial dos textos, sempre haverá uma dimensão

ficcional impressa, menos por uma autoria propriamente dita e mais por valores e formas de

argumentação e leitura próprias do tempo e do contexto em que a obra se situa e

desenvolve.

Quando nos debruçamos sobre os estudos e publicações que discorrem sobre o que a

história do movimento de reforma psiquiátrica brasileiro, nos deparamos com esse quadro

esboçado acima. Essas histórias, apesar de trazerem um corpo comum de circunstâncias e

interpretações dos marcos e enredos políticos e sociais subjacentes, trazem a marca dos

seus narradores e do contexto em que foram escritos, seus anseios, suas urgências, seus

enfoques e perspectivas mais caras, suas vinculações e pertencimentos, numa palavra, sua

implicação.

88

De modo geral, conforme anunciado na introdução e apresentado no segundo

capítulo do presente trabalho, existem o que podemos chamar de relatos históricos oficiais

da reforma psiquiátrica brasileira. Seus principais narradores são, eles mesmos,

personagens, protagonistas desse processo descrito e analisado. Aliás, diante disso,

podemos dizer que seus próprios relatos se constituem em instrumentos políticos de luta e

afirmação de suas proposições e reivindicações. Narrativas e discursos que se apropriam

dos percursos e acontecimentos vividos para consolidar os avanços obtidos e impulsionar

novas transformações, mantendo acesa a chama insurrecional do movimento, seu projeto e

sua agenda política.

Dentre os textos pesquisados – livros, artigos, dissertações e teses – podemos

perceber uma mesma estrutura rondando os eventos concatenados, organizados segundo o

modelo das trajetórias, momentos ou percursos da reforma. Do mesmo modo, a descrição

dessas trajetórias não escapa de uma tentação ‘periodicizante’, e acaba por delinear

justamente aquilo que se pretende escapar com essa estrutura de análise: as trajetórias

indicam diferentes etapas, enlaçadas num processo de cunho evolutivo, seqüencial,

progressivo e linear. Suas rupturas se fundem sem que fiquem cicatrizes capazes de apontar

propriamente seu caráter disruptivo.

Grosso modo, podemos dizer o mesmo acerca dos relatos referentes ao conceito de

cidadania. Talvez por conta de tratarem as vicissitudes desses conceitos na forma de

projetos políticos específicos, com características teleológicas, as histórias da reforma

acabam se emoldurando tal como a teoria marshalliana da cidadania, geracional, linear e

progressiva. De uma brandura e brancura não condizente com a arena dessas lutas.

Afora uma dificuldade em transmitir através de palavras a atmosfera das batalhas,

podemos entrever aspectos que indicam ou forjam uma semelhança entre os relatos

históricos acerca desses conceitos. Ambos se apresentam como projetos abertos, em

construção, compartilhando cronologicamente um mesmo ‘era uma vez’ e em busca de um

‘foram felizes para sempre’.

Assim, por um lado, poderíamos supor uma deficiência do texto, uma incapacidade

dos autores em transmitir a profundidade e sutileza das rupturas descritas. Por outro, e é por

onde prefiro caminhar e se espraia a tese central do presente trabalho, essa linearidade é

reflexo – e reforça – elementos intrínsecos a cada projeto e conceito em particular: a noção

89

de direitos, no caso da cidadania, e o enunciado da doença mental, no que tange aos

movimentos de reforma psiquiátrica.

A articulação entre cidadania e loucura, ou, melhor dizendo, entre a cidadania

moderna e a doença mental, como vimos, é antiga. Ambos os conceitos compartilham de

uma mesma aurora. Do mesmo modo, os dois projetos interagem, se influenciam e se

constrangem.

É nos momentos de ebulição social, nos períodos ditos revolucionários, que as

maiores transformações são impulsionadas. Seja na Revolução Francesa, ou em momentos

como o pós-guerra e suas críticas ao totalitarismo ou maio de 1968, observa-se uma difusão

pública de protestos, manifestações, um sentimento de revolta e um desejo de mudança

compartilhado por um coletivo insurgente.

Ao lançarmos nosso olhar para esses acontecimentos e as ondas geradas pela pedra

quando atinge a superfície desse ‘lago social’, agitando-a, podemos perceber a eclosão de

uma potência criadora que se abranda na medida mesma em que se reinstitucionaliza – e a

superfície do espelho d’água se amansa novamente.

Assim, quando o movimento que gera ao redor do mundo o que chamamos de

doutrina dos direitos humanos incide sobre o conceito de cidadania e seu exercício, é

também quando o olhar sobre a forma como a loucura é abordada e tratada se reconfigura.

É contra um mesmo incômodo que a psiquiatria e a política se transformam, assim como

diversos outros campos e dimensões da existência humana.

No Brasil, a perspectiva dos direitos humanos incide no arcabouço jurídico e

assistencial relacionado ao louco e à psiquiatria – campo específico focalizado pela análise

empreendida no presente trabalho – redimensiona a relação entre cidadania e loucura,

gerando uma forma específica de exercício e garantia dos direitos, aqui denominada como

uma espécie de ‘cidadania café-com-leite’.

Esse conceito diz respeito a forma como se articulam e apresentam o conjunto de

direitos, leis e a política pública relacionada à saúde mental. Apesar de indubitavelmente

reconhecer no louco a condição de sujeitos de direitos, por conta de sua especificidade

enquanto sujeito coletivo – usuário de serviços de saúde mental ou portador de transtornos

mentais – esse reconhecimento traz consigo uma visão estigmatizada e estigmatizante

desses sujeitos. Mesmo quando, nos documentos produzidos no âmbito do movimento,

90

como a Carta de Direitos, se pretende ampliar a visão dessas pessoas e respeitar a

pluralidade de dimensões de vida e superar a centralidade geralmente imposta nesse aspecto

específico desses sujeitos – sua loucura – as próprias proposições e reivindicações se

vinculam a uma condição negativa.

Assim, quase podemos ler nos itens produzidos um argumento do tipo ‘apesar de

estar louco eu posso...’, que, a nosso ver, ao contrário de produzir um lugar social

efetivamente ativo para a loucura como produção, potência, criação continuam impingindo

a falta, o ‘menos’, a ausência de habilitações como marca distintiva da loucura.

Obviamente, não se quer aqui negar as dificuldades vivenciadas pelos sujeitos

considerados loucos no trato social e na gestão de suas vidas. Do mesmo modo, é patente e

inegável a desvantagem social no que se refere a inclusão no mundo do trabalho, no

desenvolvimento da sua escolarização, no seu sustento pessoal. O que se quer é apontar a

continuidade de noções como incapacidade ou deficiência por conta da adoção de padrões

universais de caracterização e avaliação do ser humano e das diferentes formas de existir e

viver.

A idéia de universalidade que fundamenta a expansão irrestrita dos direitos de

cidadania a todas as pessoas está recheada por padrões ocidentais que vão servir de base

para a construção de modelos e significados comuns para o que venha a ser considerada

uma vida digna, uma capacidade laborativa adequada, um bom nível de interação social.

Se por um lado, a idéia de universalidade possibilitou o reconhecimento legal dos

direitos do louco, por outro, reforçou, no que tange a imagem jurídica desses sujeitos, o

foco nas suas incompetências e dificuldades segundo a exigência de equalização das

condições efetivas de usufruto desses direitos.

Não obstante o inegável avanço efetuado na percepção dessas pessoas como

passíveis de inserção social e desenvolvimento individual, a rede de cuidados e suas

necessidades especiais os conformam como quase-sujeitos, condicionados a um aval e

acompanhamento multiprofissional. E é justamente esse o ponto que nos permite utilizar a

expressão ‘café-com-leite’.

Assim, uma série de direitos são reconhecidos, tais como ir e vir, ser devidamente

atendido pelos serviços de saúde, liberdade de expressão e de associação, de receber

educação, e morar dignamente, etc. No entanto, além de condicionados pela noção de

91

intervalos lúcidos e da possibilidade de suspensão desses direitos segundo um ato médico,

novas formas de tutela são erigidas. À antiga pedagogia da sociabilidade que fundamenta o

tratamento hospitalar de tipo asilar se articula uma pedagogia da autonomia como um

aprendizado efetuado no sentido de ensinar a viver e gozar desses novos direitos.

Desse modo, ao se apoiar nas deficiências e dificuldades apresentadas, os programas

desenvolvidos com o fim de equalizar essas diferenças, as denominadas ações afirmativas,

acabam se direcionando muito mais para uma negação dos aspectos negativos do que

propriamente uma afirmação das capacidades e dos aspectos positivos, ainda que esteja

implicitamente calcada no reconhecimento de uma capacidade positiva de mudança e

aprendizagem.

Essa cidadania tutelada por benefícios especiais e cuidadores se articula ainda com

uma nova rede de serviços em saúde mental de cunho comunitário. Como vimos, os

antecedentes dessa proposta, calcados em diretrizes sugeridas pela psiquiatria comunitária,

atualiza o mandato social da psiquiatria ao mesmo tempo em que, com essas novas

condições de trabalho impostas tanto pela exigência de serviços abertos, quanto pelo novo

estatuto jurídico do portador de transtornos mentais, produz novos olhares e práticas

segundo a entrada em cena de uma equipe multiprofissional.

A lógica do acolhimento e do cuidado em saúde mental com a adoção dessas

equipes ampliadas abre a possibilidade de relativizar o poder médico ao mesmo tempo em

que põe em baila novos olhares e enfoques sobre a loucura. A divisão de tarefas e a própria

divisão das escolhas clínicas redimensiona a atenção prestada.

No entanto, os riscos de efetuação de um controle acentuado na vida desses sujeitos

aumenta, na medida mesma em que, se tratando de espaços abertos e muitas vezes

interligados, os olhares e projetos terapêuticos podem tender a invadir os espaços de

moradia e o cotidiano como um todo dos usuários desses serviços e seus familiares. À

liberdade de ir vir se acopla uma necessidade de acompanhar e vigiar.

Na verdade, apesar das limitações de um estudo de caráter teórico-conceitual no que

se refere à análise das práticas concernentes ao campo de saber investigado, podemos

perceber uma proliferação de dispositivos de controle exercido de forma difusa por vários

atores sociais envolvidos em um mesmo enredo. Da mesma forma como existem formas de

controle e vigilância dos portadores de transtornos mentais, são também disponibilizadas

92

instâncias de participação e controle do ato médico, exercidas pelos usuários desses

serviços e por instituições extra-psiquiátricas, em particular, assumindo um papel de

destaque, o Ministério Público.

Dessa forma, as decisões relacionadas ao tratamento e à observância dos direitos

garantidos por lei são divididas pelos usuários e seus familiares tanto no nível individual,

do acompanhamento clínico e psicossocial, quanto coletivas, assumidas pelas associações e

organizações coletivas desses atores. Esse controle social, em linhas gerais, se volta para a

construção de bases aceitáveis da tutela exercida sobre os pacientes psiquiátricos, bases

estas constituídas a partir dessa participação e do exercício dos seus direitos políticos.

Quanto à atuação do Ministério Público, suas competências se restringem e

direcionam em zelar pelos direitos desses sujeitos, não interferindo propriamente no ato

médico relacionado aos processos terapêuticos e mesmo os mecanismos de interdição

eventualmente acionados segundo essa prerrogativa. De certo modo, ao contrário de

significar uma limitação não desejada sobre as ações e competências concernentes ao saber

psiquiátrico enquanto saber especializado, essa limitação acaba por assumir um caráter

necessário, uma vez que os olhares leigos são, muitas vezes, influenciados por noções

difundidas na opinião pública, ao senso comum, podendo estar baseados em estigmas e

preconceitos difundidos socialmente.

A cidadania, em seu aspecto jurídico-normativo, construída até o momento para

esses novos sujeitos de direitos – os loucos – apresenta um caráter de avanço, no que tange

à agenda política do movimento de reforma, mas também explicita algumas limitações em

parte próprias do próprio exercício da cidadania, e em parte por conta de sua filiação ao

enunciado da doença mental.

Ainda que a análise aqui desenvolvida esteja centrada num eixo específico do

processo social complexo com o qual se concebe o processo de desinstitucionalização e a

própria reforma psiquiátrica como um todo, suas conclusões se justificam e ganham um

estatuto mais abrangente justamente pela complexidade e constante interação exercida entre

os eixos. Assim como as transformações relacionadas ao arcabouço jurídico vão determinar

a forma de atuação dos novos serviços, as visões disseminadas pela opinião pública e a

própria base conceitual e epistemológica irá exercer um papel determinante na forma como

os direitos são pensados e vivenciados.

93

Sem sombra de dúvida, vale ressaltar, os avanços farmacológicos registrados nos

últimos anos são de suma importância na argumentação em prol dos direitos civis e da

liberdade de ir e vir desses sujeitos. Do mesmo modo, a manutenção do enunciado da

doença mental acaba por justificar uma série de benefícios e direitos que facilitam e

garantem melhores condições de vida para essa parcela da população, principalmente diante

da forma como a sociedade está atualmente estruturada, centrada em valores como o

trabalho e a autonomia.

Mais do que erigir uma conceituação revolucionária da loucura, o que a reforma

psiquiátrica realiza, e talvez aí resida seu grande mérito, é uma atualização na forma como

percebemos e tratamos a loucura, atualização condizente com as tendências e os contextos

sócio-políticos vivenciados nos dias correntes.

A afirmação dos direitos de cidadania dos portadores de transtornos mentais

produziu por um lado uma renovação do saber e prática psiquiátricos e, por outro a

assunção de novos sujeitos de direitos com a possibilidade de incidir diretamente nas

políticas públicas e na maneira mesma como a loucura é percebida.

Na medida em que se apresenta como projeto aberto, em construção, a articulação

entre a reforma psiquiátrica e a cidadania brasileira tem ainda um longo caminho pela

frente. As disputas e embates estão longe de terminar e, mesmo a afirmação recorrente de

constituir um novo paradigma não elimina as oposições e críticas aos seus argumentos e

postulados. Além disso, o efeito universalizante de suas proposições e lutas traz consigo a

possibilidade de por em cheque e rediscutir as próprias bases de entendimento da existência

humana e na forma como as relações sociais se estabelecem e fluem no cotidiano.

O enunciado da doença mental produz uma série de responsabilidades concernentes

a um mandato público exercido pela psiquiatria e pelos outros saberes incluídos nessa

discussão. Psicologia, educação física e artística, direito, antropologia, assistência social,

enfim, são muitos os olhares e perspectivas que ingressaram nesse campo de atuação.

Contudo a centralidade no enunciado da doença mental tem a capacidade de reduzir todas

as possibilidades de análise a um foco restrito e limitado de antemão.

Muitas experiências têm sido desenvolvidas com graus variados de ousadia. Ainda

que existam limitações no que tange ao arcabouço jurídico-normativo às estruturas técnico-

assistenciais, nos aspectos positivos concernentes aos loucos, suas obras delirantes e suas

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formas diferentes de encarar e construir a vida, agora libertos, ainda que tutelados, é onde

reside a nosso ver a possibilidade de redimensionar a percepção social da loucura, para

além da patologia, dos tratamentos e terapêuticas.

Por fim, resta a aposta ou esperança de que as astúcias dos loucos – no sentido

designado por Michel De Certeau (1999) para as múltiplas possibilidades de sentido

existentes na comunicação e na linguagem – produzam o reconhecimento da obra ou do

poder de verdade do discurso delirante. E de que essas astúcias, apesar da condição café-

com-leite, possam afirmar a positividade desse mesmo discurso delirante em pé de

igualdade com qualquer outra forma de leitura da vida e do mundo.

Então... Quem sabe?...

95

6. REFERÊNCIAS

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