los juzga un tribunal, los condenamos … · liliana sanjurjo introdução há mais de três...

32
MANA 22(3): 799-830, 2016 – DOI http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442016v22n3p799 LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS”: DOS CONFLITOS PELAS MEMÓRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 1 Liliana Sanjurjo Introdução Há mais de três décadas, o movimento de familiares de desaparecidos da ditadura militar argentina (1976-1983) se engaja em ações políticas para exigir Memória, Verdade e Justiça pelas violações cometidas durante a repressão. 2 A partir de 2005, com a anulação das leis de anistia, abriram-se os caminhos legais para a responsabilização penal de agentes do Estado acusados de violações aos direitos humanos. Desde então, as narrativas sobre o passado de violência entraram definitivamente em cena (e em disputa) nos tribunais do país. Com base em etnografia realizada em audiências dos chamados jul- gamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina, problematizo como familiares de desaparecidos políticos, sobreviventes da repressão, atores judiciais e agentes do Estado acusados de violações, por meio das narra- tivas que enunciam, converteram os tribunais em lugar privilegiado para a afirmação de sentidos ao passado ditatorial: em disputa estão os projetos políticos, as palavras, as condutas e a moral de vítimas e acusados, assim como em questão estão a legitimidade dos julgamentos e a validade dos princípios jurídicos aplicados. O intuito é analisar como a cena judicial vem se desempenhando como espaço de luta para a produção do saber e da verdade sobre a ditadura na Argentina, ao passo que se apresenta como uma instância-chave para observar como são produzidos e confrontados os sentidos acerca do passado de violência. Partindo do pressuposto de que o Direito constitui uma forma de ação política, proponho conduzir uma análise mais encantada da política e seu simbolismo, que considera a dimensão afetiva e existencial da ação humana – significados, emoções, o sagrado, moralidades (Verdery 1996, 1999). 3

Upload: lamdang

Post on 25-Sep-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • MANA 22(3): 799-830, 2016 DOI http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442016v22n3p799

    LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS:

    DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE

    NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS1

    Liliana Sanjurjo

    Introduo

    H mais de trs dcadas, o movimento de familiares de desaparecidos da ditadura militar argentina (1976-1983) se engaja em aes polticas para exigir Memria, Verdade e Justia pelas violaes cometidas durante a represso.2 A partir de 2005, com a anulao das leis de anistia, abriram-se os caminhos legais para a responsabilizao penal de agentes do Estado acusados de violaes aos direitos humanos. Desde ento, as narrativas sobre o passado de violncia entraram definitivamente em cena (e em disputa) nos tribunais do pas.

    Com base em etnografia realizada em audincias dos chamados jul-gamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina, problematizo como familiares de desaparecidos polticos, sobreviventes da represso, atores judiciais e agentes do Estado acusados de violaes, por meio das narra-tivas que enunciam, converteram os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado ditatorial: em disputa esto os projetos polticos, as palavras, as condutas e a moral de vtimas e acusados, assim como em questo esto a legitimidade dos julgamentos e a validade dos princpios jurdicos aplicados. O intuito analisar como a cena judicial vem se desempenhando como espao de luta para a produo do saber e da verdade sobre a ditadura na Argentina, ao passo que se apresenta como uma instncia-chave para observar como so produzidos e confrontados os sentidos acerca do passado de violncia.

    Partindo do pressuposto de que o Direito constitui uma forma de ao poltica, proponho conduzir uma anlise mais encantada da poltica e seu simbolismo, que considera a dimenso afetiva e existencial da ao humana significados, emoes, o sagrado, moralidades (Verdery 1996, 1999).3

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS800

    Ademais, pautando-me nas reflexes de Foucault (1996) sobre a relao entre a verdade e as formas jurdicas, analiso as narrativas (esses fatos de discurso) que emergem na cena judicial [...] como jogos, jogos estratgicos, de ao e reao, de pergunta e de resposta, de dominao e de esquiva, como tambm de luta (Foucault 1996:9).4

    Dessa forma, servindo-me das contribuies da antropologia para a anlise das prticas jurdicas, volto-me explorao dos problemas, pro-cessos e acontecimentos referentes aos conflitos protagonizados pelas leis, pelos tribunais e pelos grupos sociais que colocam suas demandam em termos de Justia (Tiscornia & Pita 2005). Procurando tambm desvendar o significado e os sentidos que o Direito cria e impe, a nfase da anlise recair na investigao da enunciao das leis e dos problemas que colocam, assim como das categorias do pensamento que pautam os procedimentos jurdicos (justia, liberdade, direitos e legalidade), a fim de verificar como eles incidem na vida social.

    Cabe destacar que no contexto das audincias judiciais etnografadas, as narrativas testemunhais, que se destinam realizao da Justia, evocam memrias e histrias passadas, bem como demarcam categorias de acu-sao e de moralidades. Como corolrio, a minha inteno neste artigo demonstrar as dinmicas entre representaes sobre o passado ditatorial, entre agentes sociais (vtimas, acusados e atores judiciais) que produzem e se apropriam de representaes e moralidades como parte de suas estrat-gias para a afirmao de memrias e verdades sobre a ditadura no espao nacional argentino.

    Proponho-me assim a refletir, seguindo Vianna (2005), sobre a lin-guagem moral que atravessa os direitos (que se expressa em expedientes de disputa e representao), buscando uma compreenso circunstanciada da moral como linguagem em uso produo, veiculao e embate de sig-nificados mas sobretudo como objeto de luta. Alm disso, ainda no que se refere ao desenvolvimento de uma antropologia poltica da moralidade, so particularmente sugestivas as reflexes de Fassin (2008, 2013) para explorar como vtimas e acusados entendem ideolgica e emocionalmente a distino entre o bem e o mal, para analisar o sentido que palavras e atos tm para os agentes sociais, e para compreender a formao de sujeitos engajados em aes que so justificadas no terreno moral.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 801

    A demanda por justia e responsabilizao

    No vamos a negociar jams una pena, una condena. Hace 12 aos intentaron

    hacer la justicia transicional. Esto viene de Sudfrica, que era que el torturador

    se siente junto al torturado para decir: mira, me equivoqu, me dieron rdenes,

    te tortur, tenemos que olvidar. Esa es la justicia de amnista, de perdn y que

    viene acompaada tambin de la reconciliacin. Tampoco vamos a nos recon-

    ciliar. Por qu tenemos que conciliarnos con el genocida y con el torturador?

    Que el torturador vaya a la crcel, pague lo que tiene que pagar por este horror

    que cometi. Tiene que haber justicia. Y la justicia que decimos es crcel comn

    a todos los genocidas. La vida y la dignidad de nuestros hijos no se negocian.5

    Desde o perodo de transio democrtica, a luta por Justia tornou--se um imperativo para as vtimas da ditadura militar argentina. Diante da dimenso que ganhara o tema dos milhares de detenidos-desaparecidos, o processo de transio poltica jamais pde ser negociado pela via da reconci-liao ou da anistia irrestrita. Cada vez mais o mbito jurdico seria concebido como lugar de produo de Verdade, de sano coletiva e de representao do passado. Mais do que uma aliana estratgica entre Estado e sociedade civil, dava-se ento incio a uma disputa pelo direito de controlar a esfera da lei e da memria (Das 1995).

    Com o restabelecimento da democracia, o Estado empreenderia diversas aes para tratar o legado de violaes. Sob a presidncia de Ral Alfonsn (1983-1989), seria criada a Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Per-sonas (Conadep), cujo objetivo era reunir testemunhos, documentos e redigir um informe final relatando as violaes cometidas durante a ditadura.6 Alm disso, em 1985, ocorreram as audincias do emblemtico julgamento conhe-cido como Juicio a las Juntas, que culminou na condenao dos membros das trs primeiras Juntas Militares da ditadura. Pouco depois, tambm em tribunais civis, iniciaram-se processos contra oficiais que haviam atuado no I Corpo do Exrcito e na Escuela Mecnica de la Armada (ESMA).7 Nessas causas judiciais, a narrativa humanitria do Informe Nunca Ms seria uti-lizada como estratgia central das acusaes.

    A definio da violncia em termos de violaes aos direitos humanos introduziu a dimenso jurdica no conflito poltico. Como ressalta Jelin (2008), o procedimento jurdico, com suas formalidades e ritualstica, con-verteu vtimas em testemunhas, repressores em acusados, enquanto os juzes apresentavam-se como a nica autoridade capaz de julgar com neutralidade os fatos do passado. Atravs da retrica supostamente neutra e abstrata do Direito, a narrativa sobre a represso parecia ganhar con-tornos mais objetivos e realistas.8

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS802

    O alcance dos julgamentos, entretanto, seria limitado pela aprovao de duas leis de anistias nos anos 1986 e 1987 (Ley de Punto Final e Ley de Obediencia Debida): a primeira estabeleceu um prazo limite para a apresen-tao de novas acusaes e para o processamento dos acusados, enquanto a segunda absolveu da responsabilidade penal todos aqueles que da patente de tenente-coronel para baixo haviam cometido violaes. Com o incio do mandato presidencial de Carlos Menem (1989-1999), seriam concedidos indultos a todos aqueles que respondiam a processos criminais e aos j condenados.9

    No obstante, o movimento de familiares de desaparecidos continuou reivindicando uma lei especfica que reconhecesse a figura do detenido--desaparecido. Desde o princpio, os familiares recusaram-se a aceitar qualquer mecanismo legal que assimilasse os desaparecidos a outras figuras com estatuto jurdico j reconhecido. A demanda no se dirigia ao reconhe-cimento oficial da morte, mas sim do desaparecimento forado de pessoas. Por conseguinte, seria sancionada, em 1994, a lei que criava a figura ausente por desaparicin forzada.

    Com essa medida, o Estado reconhecia oficialmente no apenas a condio (e a existncia social) dos detenidos-desaparecidos, mas tambm de vtimas e familiares das vtimas, alm do contexto que os originou (o terrorismo de Estado). Forjada para tratar o legado de violaes da ditadura, essa taxonomia jurdica delimitou fronteiras entre grupos sociais, assim como critrios para o reconhecimento de direitos das vctima del terrorismo de Estado. Como analisa Vecchioli (2001 e 2005), os familiares de desa-parecidos adquiririam ento preeminncia, ao passo que suas demandas, apresentadas em virtude dos direitos de sangue, impuseram-se a qualquer outro tipo de reivindicao. Para o sistema judicial argentino, somente os sobreviventes, os assassinados, os desaparecidos e seus familiares sero considerados afetados.

    Tal processo demonstra a importncia do Estado e do discurso jurdico na legitimao de identidades, categorias e representaes, e revela o porqu de o campo jurdico constituir-se como um dos lugares privilegiados de luta para a afirmao das memrias sobre a ditadura. Atravs de atos legislativos (leis e regulamentaes) nomeia-se o indivduo, define-se o seu status legal, e so formulados os meios legtimos para a sua reparao, como coloca Das (1995). Se tais medidas podem resultar das mobilizaes dos afetados, por outro lado, define-se como papel do Estado a responsabilidade de investigar, julgar e reparar os crimes.

    Enquanto uma parte dos familiares de desaparecidos rejeitou a reparao econmica, outra parte daria seguimento aos processos penais

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 803

    individuais, aproveitando as fissuras legais deixadas pelas leis de anistia (estupro, apropriao de menores10 e apropriao extorsiva de bens). Alm disso, visando questionar a validade das anistias, familiares empreenderam aes no plano transnacional a favor da aprovao de uma conveno sobre o desaparecimento forado no mbito da OEA e da ONU. Concomitantemente, pelo critrio de nacionalidade das vtimas, apresentaram denncias em tri-bunais de outros pases, onde ocorreram julgamentos pelo desaparecimento de cidados estrangeiros em territrio argentino.

    Cabe destacar que a Conveno Interamericana sobre Desapareci-mentos Forados incluiu inovaes legais que tiveram implicaes signifi-cativas para o processo de responsabilizao penal na Amrica Latina, como aponta Sikkink (2011). Na medida em que o desaparecimento forado era categorizado como um delito de lesa humanidade e como um crime conti-nuado (o delito no cessa at o aparecimento do corpo), ele deixava de estar sujeito s limitaes prescricionais ou anistias.

    Nessa luta deflagrada no campo do direito internacional, tribunais de outros pases comeariam a julgar repressores das ditaduras latino--americanas fora do critrio de nacionalidade das vtimas, a exemplo da atuao do juiz espanhol Baltazar Garzn contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, preso em Londres em 1998. A partir de ento, o conceito de perseguio internacional de crimes de lesa humanidade e a doutrina da jurisdio universal ganhou fora, sob o argumento de que El territorio es el mundo, la nacionalidad universal y los intereses los de la humanidad (Slepoy 2011:108).

    Esse panorama global produziria efeitos legais e polticos importantes na Argentina, onde as demandas dos familiares de desaparecidos geravam significativa repercusso social. Com o crescente processo de reconheci-mento dos convnios internacionais de direitos humanos, do princpio da preeminncia do direito internacional sobre os direitos internos e do pre-ceito da imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade, a exigncia de anulao das anistias seria progressivamente incorporada. Mesmo sem alcanar os votos necessrios para a sua total anulao, em maro de 1998, o Congresso Nacional revogou as leis de anistia. Pouco depois, numa causa judicial conhecida como Causa Simn Julio, formulou-se o pedido de anu-lao das referidas leis, e juzes de tribunais de instruo de outras regies do pas seguiriam essa deciso.

    Em agosto de 2003, o Congresso votou pela nulidade das leis de anistia. No ms seguinte, iniciaram-se novas causas judiciais, enquanto eram reabertas outras que haviam ficado interrompidas com as anistias (Causa ESMA e Causa I Cuerpo del Ejrcito), dando-se incio etapa de instruo

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS804

    dos julgamentos.11 Finalmente, em junho de 2005, a Corte Suprema de Justia confirmaria a inconstitucionalidade das anistias, argumentando a sua incompatibilidade com a Constituio Nacional, com as obrigaes internacionais assumidas pelo Estado, reiterando tambm a preeminncia das normativas internacionais sobre as nacionais. Desse modo, a partir de 2006, deu-se seguimento etapa oral e pblica das primeiras causas que investigavam crimes cometidos durante a ditadura e multiplicaram-se os julgamentos em diversas regies do pas.12

    Seriam, portanto, mais de vinte anos de luta dos familiares de desapa-recidos pela realizao de justia, processo, conforme discutido, marcado por avanos e retrocessos. Considerando o conjunto de aes e a trajetria de luta por Memria, Verdade e Justia do movimento de direitos humanos, processo que permitiria a instituio de uma verdade emblemtica sobre a ditadura (Crenzel 2008), tais julgamentos se constituiriam em espao-chave para observar como so produzidos e confrontados sentidos sobre o passado de represso.

    Entre a Verdade Jurdica e a Verdade Histrica

    Abertos os caminhos para a responsabilizao penal, o movimento de familiares de desaparecidos viu nos julgamentos orais e pblicos uma oportunidade para a determinao da Verdade sobre a represso. No pre-sente nacional, a cena judicial vem se desempenhando como um dos locus centrais de produo e confrontao do saber e da verdade sobre a ditadura argentina, convertendo o campo jurdico em um importante espao de luta pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial.

    Para os familiares das vtimas, a funo simblica dos julgamentos atribuir um sentido ao sucedido. Agustn Cetrangollo, filho de desaparecido e militante de H.I.J.O.S., considera os julgamentos uma instncia de reparao para familiares e sobreviventes. Ressalta tambm que os julgamentos dos genocidas funcionam como um instrumento para julgar o modelo poltico, econmico e social implantado pelos militares. Portanto, mais do que deter-minar a pena e o castigo, o ritual do julgamento penal cumpriria o papel de difundir valores sociedade e de consolidar uma memria pblica sobre a ditadura. Da a importncia de sua publicizao e de respeitar o carter pblico das audincias orais.

    No decorrer das audincias, ao mesmo tempo em que o desaparecimento forado ganha uma definio jurdica (crime de lesa humanidade), familiares, sobreviventes, procuradores e advogados buscam o reconhecimento social

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 805

    das vtimas do terrorismo de Estado. Por meio de seus testemunhos, procuram afirmar as identidades polticas dos desaparecidos em contraposio ao que ocorreu durante o Julgamento das Juntas militares em 1985, quando as histrias de militncia foram intencionalmente omitidas. Essa novidade se deve tanto a uma estratgia da acusao, como discutirei adiante, quanto a uma necessidade que familiares e sobreviventes tm de valorizar as suas prprias trajetrias polticas, como tambm as dos desaparecidos.

    Vale salientar que a poltica que envolve a mobilizao da figura dos desaparecidos beneficiada por uma aura de santidade, que se presume que os mortos tenham, e pela ressacralizao da ordem poltica que eles sustentaram, como sugere Verdery (1999). Tal sacralizao aponta para uma qualidade particular dos mortos enquanto smbolos polticos: funciona como catalisador de emoes no campo poltico. A sua autorreferencialidade mobiliza afetos preexistentes, evoca sentimentos de perdas pessoais ou a identificao com aspectos especficos da biografia da pessoa morta. No caso dos detenidos-desaparecidos, essa qualidade potencializada por uma trajetria que os associa ideia de desaparecimento simblico, sofrimento e vitimizao.

    Retomando as proposies de Durkheim (1972) sobre a relao entre a moral e os sentimentos, Vianna (2005) argumenta que, no contexto das audincias judiciais, o reconhecimento do sofrimento do outro como algo capaz de motivar ou justificar uma ao revela tanto a produo de uma lei-tura do sujeito sobre si mesmo (colocada em termos morais) quanto organiza as formas pelas quais esse ato deveria ser lido por outros. Os embates que ali se do devem ser compreendidos ento como enunciados socialmente demarcados pelo sentido moral das aes dos prprios agentes e daqueles com os quais esto postos em relao. Os sentimentos (raiva, frustrao, angstia, tristeza, sofrimento), atravs de sua exposio e reflexo, cons-tituem e compem moralidades, funcionando como armas para disputas e afirmao de memrias e verdades.

    Nos tribunais, as emoes cumprem assim um papel persuasivo e ttico (Bailey 1993) na medida em que ajudam a legitimar aqueles que as expem. A encenao das memrias e a dramatizao pblica do sofrimento privado no mbito jurdico impem sociedade a necessidade de reconhecer as mentes e os corpos das vtimas, ao passo que coloca em debate a questo da culpa e da responsabilizao (Das 1995). Desde que as sociedades contemporneas investiram o poder judicial de autoridade para pronunciar a Verdade, os tribunais tornaram-se um espao apropriado para essa encenao.

    Segundo afirmam familiares e sobreviventes, seus testemunhos con-formam um material valioso para a construo da memria. As sentenas

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS806

    judiciais atribuem legitimidade aos seus relatos, permitindo que sejam social-mente reconhecidos. Alm disso, o espao do tribunal vem se constituindo como lugar de homenagem s vtimas. Atos so organizados em frente aos tribunais, principalmente nos dias de incio ou trmino dos julgamentos. Alguns familiares comparecem assiduamente s audincias, pois entendem ser uma forma de tornar os desaparecidos presentes e de agradecer a todos aqueles que aceitaram a dolorosa tarefa de prestar testemunho, como o caso de Adela Antokoletz. Irm de um desaparecido e filha de uma histrica Madre de Plaza de Mayo j falecida, ao longo de todo o debate oral da Causa ESMA, Adela comparecia vestindo um pauelo sobre a cabea e portando uma fotografia de seu irmo desaparecido. Segundo ela, esta era uma forma de homenagear os desaparecidos e a luta das Madres por Justia.

    As audincias judiciais funcionam, desta forma, como um ritual para a rememorao dos desaparecidos e para a valorizao de suas identidades polticas. Na antessala, aps longos anos, reencontros emocionados se produzem entre pessoas que compartilharam a militncia poltica em anos ditatoriais. O pblico integrado majoritariamente por familiares, sobrevi-ventes, ativistas de direitos humanos e jornalistas. Tal como observou Arendt (2008a) em sua anlise sobre o julgamento de Eichmann, a maior parte do pblico j conhece o que h para saber e no precisa daquele julgamento para tirar suas prprias concluses sobre o que sucedeu no passado. Ainda assim, familiares e sobreviventes consideram o julgamento um ato simblico de reparao por crimes que, a partir do momento em que foram definidos pelas normativas internacionais como de natureza imprescritvel, parecem impor o ato de memria como dever.

    Parece-me assim sugestivo analisar esses julgamentos como rituais; na medida em que se constituem como tipos especficos de eventos, mais formalizados, [...] h uma ordem que os estrutura, um sentido de aconteci-mento cujo propsito coletivo, e uma percepo de que eles so diferentes (Peirano 2001:8). O drama do desaparecimento e da tortura reencenado narrativamente ao longo do testemunho judicial, podendo ser assim analisado como ato performativo (Turner 1974, 1985) com poder no apenas de argu-mentao, no sentido da organizao racionalizada dessa memria e de seu uso para um objetivo concreto, mas tambm de trazer ritualmente cena o j vivido, de modo que possa ser partilhado de forma alegrica tambm pelos demais presentes (Vianna 2005:37). Logo, nesses julgamentos-rituais, as disputas pelo reconhecimento de uma verdade jurdica sobre a ditadura revelam como o campo jurdico pode afetar as relaes de poder e ampliar as prticas sociais de memria.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 807

    Em 2007, desde que as leis de anistias foram anuladas, foi pronunciada a primeira sentena contra agentes do Estado responsveis pelo desapare-cimento de pessoas durante a ditadura. Nela, o juiz Carlos Rozanski definiu a represso como um genocdio, deciso que foi considerada uma sentena histrica para o movimento de familiares, que celebrou o fato de o tribunal ter validado a sua prpria interpretao sobre o que ocorrera em anos dita-toriais: um genocdio perpetrado por razes polticas. Produzia-se assim um efeito de verdade sobre uma memria em disputa, tendo em vista que nem todos os tribunais so coincidentes com tal categorizao.

    Cabe destacar que a questo de como tipificar o sucedido se deve menos a um problema de variao da pena visto que os responsveis j esto sendo condenados com a pena mxima permitida pelo ordenamento jurdico (priso perptua) do que a inteno de afirmar juridicamente que tais delitos foram cometidos num marco social especfico: o contexto dos massacres massivos e da utilizao de uma tecnologia de poder na qual a negao do outro encontra o seu ponto limite (o desaparecimento fsico e simblico da pessoa). Ou melhor, a validao jurdica visa, sobretudo, conferir estatuto de verdade a uma determinada memria sobre o sucedido em anos ditatoriais.

    Haveria assim da parte do movimento de familiares uma vontade de categorizao (genocdio, terrorismo de Estado), que se articula no campo jurdico com a produo de um discurso de verdade. Por isso, diversos atores sociais (incluindo membros do corpo jurdico) encontram-se empenhados em introduzir a figura do genocdio nas resolues judiciais relacionadas aos crimes da ditadura, trazendo para o mbito judicial a referncia ao genocdio argentino tal como j aparece na vida social.

    Em face da restrio dos grupos polticos da jurisprudncia interna-cional, alguns procuradores e advogados querelantes vm procurando argu-mentar que na Argentina ditatorial o Estado teria praticado o aniquilamento sistemtico de uma parte significativa do grupo nacional.13 A represso no teria ocorrido de maneira indiscriminada, mas se dirigiu a um grupo social previamente definido, integrado por indivduos que, de alguma maneira, foram considerados um obstculo para a implantao do projeto poltico--econmico pretendido pela ditadura. Assim o fez, por exemplo, a advogada Mirta Mantaras, em setembro de 2009, em sua alegao na Causa I Cuerpo del Ejrcito. O procurador Alejandro Alagia, que atuou na Causa ABO,14 tambm se posicionaria a favor dessa definio (genocdio), argumentando sobre a importncia desses julgamentos para fomentar a luta pelo sentido e para a atribuio de um significado verdadeiro ao sucedido.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS808

    Embora existam diferenas entre os argumentos das acusaes, pro-curadores e advogados querelantes coincidem em caracterizar a represso como um plano sistemtico de tortura e extermnio, elaborado e executado pelo Estado contra um grupo social especfico, definido segundo critrios polticos. Da que uma das estratgias utilizadas atualmente pelas acusaes seja explicitar a identidade poltica das vtimas para comprovar tal especi-ficidade da represso.

    No dia 19 de outubro de 2010, no decorrer das alegaes da acusao na Causa ABO, os advogados e o procurador expuseram as fotos dos desa-parecidos que haviam sido objeto do processo, informando nome, profisso, data do sequestro, centro clandestino de deteno pelos quais passaram, destacando as organizaes polticas nas quais haviam militado, momento traduzido em grande emoo para os familiares presentes. Tambm pediram s testemunhas que falassem sobre a sua histria de militncia (como tambm da dos desaparecidos), tanto para qualificar os fatos da represso como um genocdio contra um grupo poltico quanto para defender os sobreviventes das perguntas dos advogados de defesa (que procuravam deslegitim-los moralmente denunciando suas atividades terroristas). Argumentavam que a ditadura militar havia perpetrado um plano sistemtico de extermnio contra seus inimigos, uma gerao de jovens militantes, com o objetivo de imple-mentar um plano econmico e reorganizar poltica, moral e culturalmente a nao. Uma das advogadas utilizou o termo massacres administrativos, cunhado por Arendt (2008a, 2008b) para se referir ao carter rotineiro e burocrtico do extermnio.

    Enquanto entre o pblico circulavam panfletos com as fotos, os nomes e os codinomes dos acusados, a advogada escolhia alguns casos para des-crever os procedimentos de sequestro e tortura. O procurador selecionou alguns testemunhos para discorrer sobre a tortura. Tipificou tais condutas aberrantes como crimes de lesa humanidade e enfatizou a continuidade delitiva do desaparecimento forado (reiterando, com isso, a sua imprescri-tibilidade), mesmo argumento utilizado pelos procuradores Guillermo Friele e Felix Croux nas causas Automotores Orletti e Vesubio, respectivamente.

    Ainda que as acusaes busquem comprovar o carter massivo dos crimes que so objeto desses processos penais, a responsabilizao apa-rece de forma individualizada, e as causas so estruturadas pelo somatrio de delitos individuais (privao ilegtima da liberdade, tortura, homicdio, estupro, apropriao de menores) contra pessoas particulares. Tendo isso em vista, alguns desses processos penais foram organizados por circuitos repres-sivos (a exemplo da Causa ABO), tanto para racionalizar os julgamentos (evitando a abertura de inmeras causas individuais) quanto para evitar que as vtimas sejam convocadas a prestar infinitas declaraes testemunhais.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 809

    Por outro lado, a advogada e militante de H.I.J.O.S. Ana Oberln des-tacaria a complexidade desses processos penais devido quantidade de vtimas e acusados, questo do limite biolgico (acusados e testemunhas j falecidos ou com problemas de sade), e sua repercusso social. Existia ainda uma enorme dificuldade para reunir provas trinta anos depois de transcorridos os eventos. O objeto da investigao consiste justamente em um sistema clandestino de represso, que se preocupou em manter suas operaes ilegais da forma mais secreta possvel, dispondo para tanto de uma srie de mecanismos para assegurar a impunidade vedao das vtimas, utilizao de codinomes por parte dos repressores, destruio e ocultamento de corpos, locais de deteno, arquivos e documentao.

    Por isso, tem fora nesses processos a importncia dos arquivos vivos. So as memrias de familiares e sobreviventes que se constituem como a principal prova para a demonstrao de crimes cometidos na mais absoluta clandestinidade. Procuradores e advogados querelantes buscam salientar essa particularidade e, ao alegarem sobre a dificuldade de recoleo de evi-dncias materiais, pedem aos juzes especial considerao pelos testemunhos das vtimas e seu reconhecimento como provas criminais legtimas. Procuram ainda incorporar ao processo todo tipo de prova: arquivos da Conadep, livros de autocrtica de membros das foras repressivas, testemunhos, material de imprensa e, quando possvel, o prprio corpo delito (em especial os restos dos desaparecidos identificados) como o fizeram as acusaes na Causa I Cuerpo del Ejrcito, Causa ABO e Causa ESMA.

    Em suma, o que parece se colocar nesses julgamentos to particulares a possibilidade de determinar a verdade jurdica em condies no con-vencionais de exerccio das regras da prova. So os testemunhos daqueles considerados capazes de saber seja por sua sabedoria (testemunhas de conceito), seja por terem presenciado o acontecimento (testemunhas pre-senciais) que permitem determinar se algo realmente aconteceu. Ao se converter num procedimento legtimo de autenticao e de transmisso da verdade, o inqurito constitui-se como uma forma poltica de exerccio do poder (Foucault 1996). Ou melhor, nos julgamentos de delitos de lesa huma-nidade a enunciao da verdade deriva sobretudo de um conhecimento de ordem retrospectiva, pautado no testemunho, um saber produzido por meio do inqurito e da lembrana, revelando o peso da memria das vtimas no processo de construo da verdade jurdica. Suas memrias sustentam a prtica jurdica, ao passo que produzem o saber sobre a ditadura. E se as audincias orais levam ritualizao do sucedido atravs das narrativas daqueles que sabem ou viveram em carne prpria o tribunal transforma--se em espao no apenas para a afirmao da verdade, mas tambm para o seu questionamento.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS810

    Por Memria, Verdade e Justia: testemunhos de sobreviventes

    Como na tragdia de dipo-Rei, a ideia de que a testemunha, mediante a enunciao da verdade, pode vencer os poderosos e de que o povo, atravs do processo, conquista o direito de julgar quem o governa (Foucault 1996) parece estar no centro das consideraes das vtimas da ditadura argentina. O ato de testemunhar e de exigir Justia colocou-se como um dever, quando em tempos ditatoriais familiares de desaparecidos saram a denunciar os sequestros e sobreviventes apareceram para narrar, em primeira pessoa, a experincia do horror vivida nos centros clandestinos de deteno.

    Como salienta Agamben (2008), se mrtir a palavra grega para teste-munha, termo que deriva do verbo recordar, a vocao do sobrevivente no pode ser outra seno a da memria. Enquanto alguns se calam diante de uma lembrana que sentem como insuportvel, outros percebem no encar-ceramento o centro de suas vidas, pois se consideram testemunhas de algo que os desautoriza a esquecer e a silenciar (Levi 1990).

    Para muitos aparecidos-sobreviventes e familiares de desaparecidos da ditadura argentina, a memria converteu-se em um bem e em um dever, ao passo que se lhes apresenta como uma necessidade jurdica, moral e poltica (Sarlo 2007). Se as autoridades militares ocultavam ou negavam o ocorrido, as narrativas dos afetados impuseram-se como a matria-prima para a cons-truo da memria sobre o passado. Passadas dcadas de lutas pela memria, seus testemunhos conformam a base das provas dos julgamentos e servem de fundamento para a determinao da verdade jurdica sobre a ditadura. Alguns se apresentam como parte querelante e se dirigem espontaneamente ao tribunal, pois fizeram do testemunho um compromisso existencial e pol-tico. Outros comparecem receosos, com medo de sofrerem represlias ou de verem suas condutas passadas submetidas a julgamento moral.

    Graciela Daleo, sobrevivente da ESMA, ex-militante da organizao Montoneros,15 vem testemunhando desde os anos 1980. Afirma que a sua sobrevivncia se traduziu no compromisso de narrar o que viveu e defende a necessidade de reconhecer o lugar simblico das condenaes penais, assim como do Direito como um espao de luta poltica. Em seus testemu-nhos, empenha-se em desconstruir o estigma que, ainda hoje, pesa sobre os sobreviventes dos centros clandestinos de deteno.

    [] si ests vivo por algo ser...; si conts el horror, lo multiplics, si te lo cal-

    ls, qu sos?, un servicio por qu no lo decs?, y adems ests quitando la

    posibilidad de la construccin de la verdad y la lucha por la justicia. [] todas

    estas cosas confluyen en la cuestin de que el campo de concentracin era la

    muerte, de all slo poda salir la muerte, o sea, nadie (Daleo 2001:109).

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 811

    Cabe salientar que uma das vozes mais negadas durante as dcadas de 1980 e 1990 na Argentina era a dos sobreviventes. Em contraposio heroicidade e inocncia atribudas aos detenidos-desaparecidos que nunca regressaram, sobre a minoria de aparecidos-sobreviventes recaiu o estigma de colaboradores, delatores, cmplices ou traidores, processo atrelado confuso de papis entre vtimas e algozes dentro dos centros clandestinos de deteno. Junto ao sentimento de culpa pela sobrevivncia (por algo ter sobrevivido), aos aparecidos restou o silncio. Enquanto os familiares podiam narrar o que sucedera, aos sobreviventes s lhes era permitido relatar as vexaes corporais sofridas durante o cativeiro. Como forma de proteger o lugar de vtima to penosamente conquistado, no havia escuta possvel para qualquer referncia s suas trajetrias de militncia (como tambm no havia para os detenidos-desaparecidos). Foi somente no final da dcada de 1990 que os sobreviventes comearam a aparecer, expondo outras narrativas sobre o passado e afirmando o seu lugar como representantes de uma gerao e de um projeto poltico alvo da represso.

    A questo do colaboracionismo e da culpa revela-se como um tema clssico da literatura sobre os sobreviventes do Holocausto, como lembra Agamben (2008). Primo Levi (1990) refletiu de maneira primorosa sobre a questo, afirmando que essa zona cinzenta, habitada pelos prisioneiros privilegiados ou prisioneiros-funcionrios, teria sido suficiente para confundir a necessidade dos internos de julgar, ao passo que era demons-trativa do processo de perda de autonomia do povo judeu, como ironizou Arendt (2008a).

    Alguns aparecidos procuram inverter esse processo de transferncia da culpa dos perpetradores para as vtimas. Ao mesmo tempo em que narram sobre o trato desumano que receberam no cativeiro, querem demonstrar como jamais estiveram em condio de decidir (nem mesmo sobre a prpria vida ou morte). E se foram propositalmente alocados nessa zona cinzenta da sobrevivncia foi para gerar suspeitas, propagar o terror16 e impedir qualquer solidariedade entre os sequestrados: [...] compromet-los carreg-los de crimes, manch-los de sangue, exp-los tanto quanto possvel: assim contraem com os mandantes o vnculo da cumplicidade e no mais podem voltar atrs (Levi 1990:21). Apesar de acusados e constantemente forados a justificar-se, so os sobreviventes que podem melhor contribuir para a reconstruo da face mais secreta da represso. Nas audincias judiciais, eles se esforam para transmitir o que viram e viveram nos centros clandestinos, mas tambm para conferir legitimidade s suas narrativas.

    No dia 15 de outubro de 2010, no mbito da Causa ESMA, madres por-tando seus lenos sobre as cabeas e demais familiares carregando broches

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS812

    com as fotografias de seus desaparecidos se sentaram na primeira fileira destinada ao pblico para escutar o testemunho da sobrevivente Mara Milesi, que iniciou o seu relato identificando-se como uma ex-militante da Juventud Peronista. Ela ento contou sobre a sua condio fsica e psquica durante o cativeiro, sobretudo quando viu seu filho (que tinha apenas quatro meses de vida) ser levado para uma das sesses de tortura, momento de seu testemunho em que, visivelmente emocionada, perdeu a fala. Disse que per-maneceu isolada, vendada e algemada durante meses, at ser levada para trabalhar no subsolo da ESMA, onde cumpriria com muita culpa a tarefa de falsificar documentos. Procurando culpabiliz-la pela sobrevivncia, os advogados de defesa questionaram se ela saberia explicar por que havia sido liberada ou levada para trabalhar no escritrio de falsificao. Mara respondeu, enfaticamente e indignada, que no existia nenhuma lgica naquele lugar e que a inteno era enlouquecer, quebrar e romper com qualquer lao de confiana entre os prisioneiros.

    Vale aqui relevar, seguindo Pollak (2006), as particularidades do tes-temunho no mbito judicial. Trata-se, em primeiro lugar, de um protocolo formalizado (nmero de ata, nmero do processo, data e hora de chegada da testemunha, seu nome, data de nascimento, profisso etc.). Em segundo lugar, esses testemunhos somente podem acontecer aps a clssica frmula jurdica a testemunha jura que as declaraes ditas correspondem verdade. A testemunha est, portanto, sujeita a penalizaes.

    Em uma das audincias da Causa ESMA, em outubro de 2010, a sobre-vivente Mara Adela Pastor foi lembrada pelo tribunal de que poderia ser penalizada em at dez anos de priso caso mentisse. Ela tambm se viu obrigada a responder se tinha algum interesse especial nas pessoas que eram parte do processo (vtimas ou acusados). Aps esse constrangimento inicial, foi submetida a um longo interrogatrio sobre as suas condies e de seu companheiro (ainda desaparecido) durante o cativeiro. De olhos fechados, rememorou as sensaes de terror experimentadas na ESMA. Ao final de sua declarao, fez questo de afirmar que tinha sido uma militante popular peronista e que se sentia orgulhosa de ter lutado por justia social e liberdade, momento em que o pblico conteve os aplausos, oportunamente lembrados pelo tribunal de sua proibio. Na sada, com lgrimas nos olhos, Mara recebeu abraos, agradecimentos e cumprimentos emocionados por parte dos familiares presentes.

    No contexto do tribunal, o testemunho deve transformar-se na evi-dncia de um crime. As declaraes levam assim a marca dos princpios da administrao da prova jurdica: limitao ao objeto do processo, eliminao de elementos considerados externos, de modo que se possa oferecer uma

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 813

    perspectiva justa e verdadeira sobre a realidade, como analisa Pollak (2006). O depoente deve conter suas emoes (mesmo diante das narraes mais dolorosas e privadas), ao passo que v a sua memria e legitimidade como testemunha sob constante questionamento (sobretudo os sobreviventes, considerados testemunhas suspeitas e politicamente interessadas).

    Durante as audincias das Causas ABO e ESMA, no apenas advo-gados defensores, mas tambm o pblico composto por familiares e sobre-viventes colocaria em questo a credibilidade e a moral das testemunhas que, a depender de seu depoimento ou prestgio como militantes de direitos humanos e vtimas exemplares, se tornavam mais ou menos crveis. Em audincia da Causa ESMA, em 14 de outubro de 2010, o padre Gabriel Bossini foi chamado a testemunhar sobre a sua priso junto com um grupo de pessoas ainda desaparecidas. medida que seu relato se desenvolvia sem que pudesse agregar nenhuma informao, afirmando que fora con-fundido com um padre guerrilheiro, que no sofrera agresso e salientando seu desacordo com membros da Igreja vinculados Teologia da Libertao, o pblico de familiares e ativistas expressava indignao, acusando-o de colaborador da ditadura, ao passo que os advogados querelantes alegavam que a testemunha estaria omitindo a Verdade.

    J as defesas, alm de demandarem a apresentao de evidncias materiais, exigiam dos sobreviventes que diferenciassem os fatos que haviam presenciado daqueles que haviam reconstrudo atravs de fontes ou nar-raes alheias. Exigir que as testemunhas no tivessem conversado entre si ou que suas memrias no tivessem sofrido com a influncia do tempo e dos relatos que leram e escutaram como procuraram alegar as defesas na Causa ABO seria como decretar a impossibilidade desses julgamentos.

    Passados mais de trinta anos dos eventos que so objeto desses processos penais, as vtimas se organizaram em coletivos para produzir informao; registraram e publicaram suas memrias, e se dispuseram a todo tipo de suporte que pudesse comportar essas memrias. Alm disso, dificilmente suas declaraes poderiam se limitar ao objeto dos processos ou gozar da devida iseno poltica, como estabelece a norma jurdica. Enquanto as audincias (atravs do ato de testemunhar) so concebidas como uma ins-tncia de reparao para familiares e sobreviventes, torna-se inevitvel que as vtimas no transformem o seu dia de Corte numa ocasio para colocar (publicamente e diante dos acusados) suas consideraes sobre a poltica ou para afirmar no puderam nos quebrar, no nos derrotaram.

    Se em 1985, no decorrer do Julgamento das Juntas Militares, os sobre-viventes precisaram ocultar suas identidades polticas ou explicar por que haviam sido sequestrados (e tambm sobrevivido), a partir de 2005, os

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS814

    tribunais converteram-se em espao privilegiado para a afirmao de suas militncias. Em contraposio ao que ocorreu nos anos 1980 quando os sobreviventes estavam sujeitos ao processamento penal por aes terroristas, recaindo sobre eles o estigma de colaboradores atualmente se reconhece, em grande medida, o seu lugar como militantes de uma causa justa e a importncia de seus relatos para a construo da memria.

    Cabe ento problematizar as condies que tornam possvel o teste-munho, assim como revelar as coaes estruturais que esto na origem do silncio (Pollak 1989, 2006). Os testemunhos das vtimas traduzem a sua vontade de tornar pblica a palavra, ao passo que revelam um contexto que as autoriza a expressar suas militncias por meio de narrativas centradas em certos personagens e acontecimentos. Suas memrias se veem, desta forma, dotadas de uma esfera de interesse ampliada, que varia de acordo com a notoriedade da pessoa e da sua valorizao enquanto testemunha legtima e impoluta. Tal processo pe ainda em evidncia um contexto de grande desprestgio daqueles que participaram da represso ou que pro-curam justific-la.

    Nas audincias, algumas vtimas so consideradas testemunhas exem-plares, tais como familiares de desaparecidos (sobretudo mes e filhas ou filhos) e sobreviventes que puderam alcanar um observatrio privilegiado dentro dos centros clandestinos (sem que perdessem seu atributo de vtima impoluta). Principalmente os testemunhos daqueles que foram destacados militantes polticos e familiares que se tornaram referentes na luta pelos direitos humanos gozam de um interesse especial, no s porque dispem de ferramentas para interpretar politicamente o que viram, mas tambm porque (como ex-combatentes) veem no testemunho um ato de guerra contra o fascismo e a injustia, a favor da memria.

    Assim ocorreu durante a declarao de Jaime Dri, sobrevivente da ESMA e um conhecido militante da organizao Montoneros. A sua noto-riedade se deve tanto ao fato de ser o nico sequestrado da ESMA que conseguiu fugir (e sobreviver fuga) quanto ao fato de sua histria ter se transformado num clebre romance de testemunho do contexto ps-ditatorial argentino.17 Dri veio especialmente do Mxico (pas onde reside desde que se exilou) para fazer sua declarao na Causa ESMA em 16 de dezembro de 2010, num dia em que o pblico era visivelmente mais numeroso do que o habitual. Ele encerrou o seu testemunho demandando a Verdade sobre o destino dos detenidos-desaparecidos e proferindo um discurso inflamado sobre o papel da juventude no proceso poltico de liberacin.

    Fica patente como a poltica ocupa o centro das consideraes nesses jul-gamentos. O conflito poltico passado conflito que se impunha pautado na

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 815

    disputa entre projetos de nao antagnicos (socialismo x capitalismo), numa conjuntura marcada pela bipolarizao da Guerra Fria, quando a poltica se apresentava como um campo social cindido entre direita e esquerda se v reatualizado e ritualizado nos tribunais por meio das memrias daqueles que se enfrentaram em tempos ditatoriais. Enquanto sobreviventes e familiares de desaparecidos buscam destacar a qualidade moral das vtimas do terro-rismo de Estado (jovens militantes populares que lutaram por um projeto de pas com mais justia social) e afirmar um sentido ao sucedido (genocdio por razes polticas, terrorismo de Estado), os imputados tambm usam o seu dia de Corte para reivindicar uma Memria Completa e ressaltar o valor de seus combatentes nessa guerra travada pelo bem maior da nao. Desta forma, os rus buscam oferecer uma memria alternativa sobre a ditadura, justificar suas aes, e colocam em questo os processos penais em curso.

    Por uma Memria Completa: a narrativa militar

    H tempos as autoridades militares vm se servindo de duas categorias, que desempenham papel preeminente na jurisprudncia dos julgamentos de criminosos de guerra, para justificar a represso ditatorial. Seriam elas as noes de Atos de Estado e Atos por Ordens Superiores. Como coloca Arendt (2008b), a noo de Atos de Estado fundamenta-se na proposio de que, em circunstncias extraordinrias, governos soberanos podem ser forados a fazer uso de meios criminosos diante de uma situao na qual a sua sobrevivncia se v ameaada (seria o equivalente ao crime que o indivduo comete em legtima defesa).

    Desde os anos 1980, os militares argentinos apelaram para o argumento do mal menor ou do mal necessrio para defender o atuado. Entre dois males (baixas na populao civil ou a vitria da subverso), coube ao Estado optar pelo mal menor para derrotar a subverso e garantir o futuro da nao. Os implicados na represso discorrem sobre suas aes atrelando a noo de Atos de Estado a um discurso que afirma a existncia de uma guerra tra-vada contra o inimigo subversivo, considerado uma ameaa continuidade do verdadeiro ser nacional. Nas narrativas castrenses, a ditadura ento definida em termos de guerra antissubversiva, luta contra a subverso/terro-rismo, guerra no convencional, guerra antirrevolucionria, guerra fratricida, guerra interna. Desta forma, pautados numa retrica que combina o discurso da guerra dicotomia amigo-inimigo, os militares procuram reivindicar o atuado e justificar a represso.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS816

    O capito da Marinha Jorge Acosta, no contexto de sua alegao na Causa ESMA, em outubro de 2011, usou de seu direito defesa para afirmar publicamente uma verso alternativa sobre o passado. Recorrendo aos escritos de organizaes armadas e aos testemunhos das vtimas durante o julgamento, ele se apresentou como um combatente de uma guerra interna travada contra o beligerante inimigo subversivo. Afinado com o projeto pol-tico do Processo de Reorganizao Nacional, como foi autoproclamada a ditadura, orgulhava-se de ter participado de uma guerra levada a cabo pelo bem da nao, mas tambm em nome de Deus e da filosofia ocidental e crist contra o atesmo marxista.18

    Em dezembro de 2010, no dia do pronunciamento da sentena de um julgamento em Crdoba, o ex-ditador Jorge Rafael Videla tambm fez uso de seu direito palavra para reivindicar o atuado. Videla defendeu a legalidade do emprego das Foras Armadas para combater e exterminar o terrorismo subversivo no marco de uma guerra interna iniciada pelas organizaes terroristas. Segundo ele, o atuado estaria previsto legalmente no Plano de Capacidades Internas e no Cdigo de Justia Militar. Para o ex-ditador, tratou-se de uma guerra justa em defesa da Ptria, porm uma guerra irre-gular cujo signo distintivo teria sido a impreciso. Nessa mesma ocasio, Videla assumiu suas responsabilidades castrenses e defendeu, diante do povo argentino e das Foras Armadas, a honra da vitria na guerra interna. Disse ainda lamentar as mortes, as sequelas que deixam toda guerra e deplorar a especulao do sofrimento alheio atravs do uso escuso de alguns da ban-deira dos Direitos Humanos.19

    Como demonstram as alegaes de Videla, uma parte da corporao militar no nega que seus quadros possam ter sido responsveis por atos atrozes durante a represso, mas os justificam como sequelas, erros, excessos, impreciso ou equvocos (fatos supostamente inevitveis s guerras) come-tidos no contexto de uma ao legtima. Os militares no foram sdicos ou criminosos, tal como as vtimas e a acusao procuram afirmar nos tribunais (e fora deles), mas oficiais empenhados numa ao histrica e grandiosa em nome da nao argentina.

    Enquanto os implicados na represso se voltam para o argumento de Atos de Estado e da guerra e suas sequelas para justificar o atuado, tambm recorrem noo de Atos por Ordens Superiores. Videla alegou a inocncia de seus subordinados, militares que teriam se limitado a cumprir ordens ajustadas Doutrina ento vigente, argumento repetido inmeras vezes pelos prprios oficiais subalternos nas audincias judiciais: como bons e fiis soldados, cumpriram as ordens que lhes haviam sido determinadas por seus superiores e pelas normativas de ento (Constituio Nacional e regulamentos militares), embora admitam a dificuldade de tirar concluses vlidas sobre a legalidade ou a ilegalidade dos procedimentos.20

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 817

    Ao mesmo tempo em que o argumento de Atos de Estado, Atos por Ordens Superiores e a retrica da guerra e seus excessos serve de fundamento para as defesas, os imputados procuram questionar a Memria difundida pelo movimento de direitos humanos. No mbito da Causa ESMA, em outubro de 2011, o clebre capito da Marinha Alfredo Astiz afirmou que as sequelas da guerra haviam sido ressuscitadas pelos ilegtimos querelantes, pelo governo Kirchner e por grupos fundamentalistas movidos por dio, ressentimento, intolerncia e vingana.21 Jorge Acosta denunciou a presena dessa memria cega, aglutinante e parcial que, segundo ele, fomentaria a diviso e a desu-nio da Ptria. Se antes seus inimigos foram terroristas subversivos, hoje seriam o governo nacional e os ativistas de direitos humanos, grupos que estariam empenhados numa ofensiva contra as Foras Armadas, promovendo uma campanha revanchista motivada pelo dio e pela vingana. Se antes a guerra foi travada no campo militar, atualmente a guerra estava sendo deflagrada no campo psicolgico atravs dos direitos humanos, da justia, da educao, da cultura e da memria.

    Videla tambm afirmou a derrota no campo poltico-ideolgico. Segundo ele, os militantes teriam se mimetizado na sociedade como paladinos da defesa dos direitos humanos a fim de instaurar um regime marxista que prescreve a Constituio Nacional, Constituio que, de acordo com ele, guarda luto pela Repblica desaparecida. O ex-ditador definiu a si mesmo como um preso poltico e aos julgamentos de delitos de lesa humanidade como uma situao de terrorismo judicial. Encerrou a sua fala dizendo que no pretendia alegar a sua defesa, mas aceitar aquela injusta condenao como mais um ato a servio de Deus, da Ptria e da Concrdia Nacional.

    Para os acusados, o enfrentamento passado entre a conspirao marxista subversiva e as Foras Armadas se converteu, no presente, numa batalha entre os deformadores da Verdade e aqueles que pretendem desmascar-los. Por isso, decidiram oferecer sociedade uma Memria Completa. E se dentro dos tribunais alguns rus fazem uso de seu direito palavra para expor a sua prpria interpretao sobre o sucedido, nas ruas, as associaes que renem familiares das vtimas do terrorismo/da subverso tambm procuram tornar legtima a sua memria sobre a ditadura.

    A AFyAPPA e a AfaVitA22 coletivos liderados por mulheres (em geral, esposas de agentes do Estado implicados na represso) clamam pelo reco-nhecimento de outras vtimas por razes polticas que no as do terrorismo de Estado: as vtimas da violncia cometida pela guerrilha ou pelo terrorismo subversivo. Com os lemas Memria Completa e Justia Completa, denunciam as aes das organizaes armadas (esto tambin pas), pedem igualdade perante a Lei (para ellos no existen los derechos humanos), demandam que

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS818

    os crimes da guerrilha sejam categorizados como delitos de lesa humanidade, e exigem o direito reparao econmica. Reivindicam ainda o estatuto de presos polticos para seus familiares processados pela Justia, falam em terrorismo jurdico e mortos em cativeiro (em referncia aos militares que faleceram respondendo a processo) e questionam a legitimidade dos julga-mentos. Consideram-se vtimas de uma Justia que, segundo elas, ignora os fundamentos da legalidade e que se guia por um poder escuso conduzido em nome dos direitos humanos. Clamam pela construo de uma Memria Completa e por um Nunca Mais livre de perspectivas ideolgicas para que as vtimas da guerrilha possam ser includas no relato oficial sobre o passado.23

    Como analisa Salvi (2008, 2010), tais grupos tm uma retrica e uma performance semelhantes utilizada (e consagrada) pelas organizaes de familiares de desaparecidos. Alm de mobilizarem a figura da vtima, apelam aos laos de parentesco, s metforas de sangue (la sangre derramada por el terror) e s narrativas do sofrimento e do luto. Invertendo o repertrio poltico dos familiares de desaparecidos e forjando uma memria especular e reativa, estes outros familiares se dizem portadores de uma verdade silenciada e empenham-se na luta contra a deformao, a manipulao e a propaganda.

    Enquanto fora dos tribunais esses grupos questionam a legitimidade dos processos penais, dentro deles os rus procuram atacar a legalidade dos procedimentos jurdicos aplicados. Alegam ter seus direitos desrespeitados por serem condenados por crimes que no estariam previstos no cdigo penal no momento dos fatos (violao do princpio de retroatividade da lei), ou porque continuam detidos quando no poderiam mais estar (pela idade avanada ou pelo prazo de priso preventiva expirado), conforme argu-mentou o capito Acosta na Causa ESMA.

    Alfredo Astiz tambm apelou para diversos qualificativos para definir o julgamento falso julgamento, ato ilegtimo, simulao/pardia de jul-gamento e questionou indignado o papel desempenhado pela ilegtima procuradoria, ressaltando que, como ato de protesto, preferia prescindir de seu direito defesa. Videla tambm renunciou ao seu direito defesa, argumentando que conclura ser mais produtivo que seus advogados se dedicassem a deixar registrado para a histria todas as irregularidades cometidas nesses julgamentos, que mais lhe pareciam um circo, uma pardia de julgamento sem justia e sem direito.

    Alm de colocar em questo a legalidade dos julgamentos, alguns acusados e suas defesas indagam sobre a moral das vtimas-testemunhas, atacando o seu valor probatrio (esto politicamente comprometidas) e ale-gando inconsistncia das provas criminais. Por isso a insistncia das defesas em revelar as identidades polticas das vtimas (eram todos guerrilheiros).

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 819

    Logo, se os sobreviventes e os familiares de desaparecidos conformaram um amplo repertrio para se referirem aos acusados (genocidas, perpetradores, assassinos, torturadores, nazistas, fascistas, psicopatas, covardes, imorais, pervertidos), os rus tambm procuram desqualificar as vtimas, acusando--as de subversivos, terroristas, delinquentes-subversivos.

    Durante a sua alegao na Causa ESMA, Alfredo Astiz ressaltou com raiva e indignao que os ilegtimos querelantes haviam apelado de forma desnecessria ao projetar as fotografias de crianas dos terroristas para causar um efeito emocional. Salientou ainda serem absurdas as afirmaes de que os terroristas eram juventude militante e idealista, que lutaram por uma sociedade mais igualitria. Astiz mencionou crimes da guerrilha a fim de tornar verossmil o argumento da guerra, para questionar moralmente o lugar de vtima ocupado pelos ex-terroristas, bem como para desacreditar seus falsos e imaginrios testemunhos. Jorge Acosta apelou para o tema do colaboracionismo, colocando em dvida a identidade dos sobreviventes como agentes de inteligncia da Marinha, afirmao que causaria consternao entre os familiares e os sobreviventes presentes. Para Acosta, as testemunhas necessrias eram antes de tudo portadoras de relatos falsos e mentirosos, e as acusaes representavam uma grande falcia forjada a partir das narra-tivas de ex-terroristas. Ainda assim, guiado por suas convices de cristo apostlico romano, considerava-se no dever de enunciar naquele tribunal a sua prpria verdade, com minscula.

    Submetidos condenao penal e moral, no resta alternativa aos acusados a no ser apresentar outra verso sobre o sucedido. O dever de testemunhar se expressa ento como uma oportunidade para afirmar outra Verdade a fim de que a Histria possa um dia restitu-los ao seu devido lugar: sero lembrados como soldados que lutaram para salvar a nao do terrorismo. Pouco antes de seu falecimento e como um dos representantes mais emblemticos da ditadura, Jorge Rafael Videla parecia haver tomado para si essa obrigao. Em suas ltimas declaraes, o ex-ditador esboou alguma crtica represso, mas ela no se dirigia propriamente ao atuado. No plano militar, Videla continuava afirmando-se vitorioso: aniquilaram a subverso e reorganizaram a nao. A crtica se referia ao que denominou de sequelas, erros da guerra contra a subverso, ou de derrota no plano poltico. Entre as sequelas estariam as condenaes e as crticas sociais s Foras Armadas e o tema dos detenidos-desaparecidos.

    Como Videla, outros acusados se sentem politicamente derrotados, mas no arrependidos. Tampouco se sentem culpados moralmente, apenas o foram penalmente. E se nos anos 1980 prevaleceu um discurso de teor negacionista (no h desaparecidos), no decorrer da histria das lutas

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS820

    pelas memrias da ditadura na Argentina, e diante do crescente processo de legitimao das vozes dos afetados, os militares se veem impelidos a ressignificar suas narrativas sobre a represso a fim de que ainda possam ter algum sentido social.

    Consideraes finais

    Las vctimas y los victimarios, somos parte de una misma humanidad, colegas

    en un mismo esfuerzo por demostrar la existencia de las ideologas, los sen-

    timientos, los herosmos, las religiones, las obsesiones (Timerman 2000:132).

    As narrativas sobre a represso enunciadas nos julgamentos de delitos de lesa humanidade colocam em tela como o mbito jurdico encontra-se, no contexto argentino, integrado ao campo de luta pela afirmao de sentidos ao passado ditatorial. Para as vtimas, esses julgamentos representam uma resposta do Estado s suas histricas demandas por Memria, Verdade e Justia. Ao mesmo tempo em que reconhecem o lugar simblico das con-denaes penais como instncia de reparao, de difuso de valores, de reconhecimento e homenagem s vtimas, bem como de consolidao de uma Verdade e de uma memria pblica sobre a ditadura, a demanda por Justia dirige-se tambm condenao moral das violaes e dos perpetradores, exigncia que se expressa no lema de H.I.J.O.S.: Los Juzga un Tribunal, Los Condenamos Todos!. Logo, mais do que a validao da verdade de seus testemunhos no mbito jurdico, tambm tm importncia [...] as motivaes e as justificaes: por que voc fez isso? Voc se dava conta de que cometia um delito? (Levi 1990:11). A questo moral colocada refere-se funo do juzo humano (Arendt 2008a).

    Como aponta Agamben (2008), as categorias jurdicas esto carregadas de sentido moral e religioso: culpa, responsabilidade, inocncia, julgamento, absolvio. Por isso, nos julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argen-tina ganha relevo a existncia de um embate entre moralidades, embate que coloca em questo tanto as intenes e as condies nas quais tais atos foram realizados (atos traduzidos em termos de violaes dos direitos humanos) quanto evidenciam as divergncias entre as medidas legais adotadas nesses processos judiciais e outra ordem de regulaes (os regulamentos e a doutrina militar vigente durante os anos ditatoriais, por exemplo).

    Ancorada nas reflexes propostas por uma antropologia poltica da moralidade (Fassin 2008, 2013), neste artigo analisei como a Verdade construda para cada uma das partes implicadas nesses julgamentos, bem

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 821

    como o lugar que ocupam os sentimentos na produo dessa Verdade. Buscou-se problematizar como vtimas e acusados entendem ideolgica e emocionalmente a distino entre o bem e o mal, desvendando os sentidos que palavras e atos possuem para os agentes sociais. Nas audincias judi-ciais ficou patente como a expresso das emoes (ressentimento, rancor, amargura, raiva, frustrao e indignao) emerge como resposta a situaes que so experimentadas e vividas pelos distintos atores sociais como uma injria ou uma injustia.

    O ressentimento experimentado pelas vtimas se expressa como uma reao a um passado de violncia. Elas no desejam vingana, mas demandam reconhecimento e Justia, enquanto se recusam a esquecer e perdoar: Por qu tenemos que conciliarnos con el genocida y con el torturador? Tiene que haber justicia. Y la justicia que decimos es crcel comn a todos los genocidas, como afirmou a madre Nora Cortias. Em contraposio aos que defendem que o passado deve ser deixado para trs, para as vtimas a memria cumpre a funo de tornar o crime uma realidade moral. O imperativo de Memria, Verdade e Justia representa ento uma forma de resistncia, sobretudo quando o esquecimento e a reconciliao parecem consensuais a anistia e a expiao como paradigmas universais e a empatia e o perdo como virtudes pessoais (Fassin 2013). Para familiares e sobreviventes, aceitar esse consenso implicaria abandonar potenciais procedimentos legais, alm de supor a possibilidade unilateral de perdo (j que a maior parte dos acusados no expressa sinais de arrependimento). Portanto, o que as vtimas demandam a Verdade sobre as circunstncias e as razes da morte de seus familiares, uma justa retribuio aos criminosos, alm da defesa de uma forma especfica de dignidade: La vida y la dignidad de nuestros hijos no se negocian.

    J os acusados ressentem-se diante de uma situao na qual a sua posio social (agentes do Estado que atuaram na represso) gera frustrao e repdio social. Os rus expressam o seu descontentamento com a poltica de Memria, Verdade e Justia posta em marcha, incitando a sua animosi-dade e rancor contra certos segmentos da populao (movimento de direitos humanos, governo nacional, membros do Judicirio). O dilema moral que enfrentam, por terem feito uso de meios escusos para derrotar o inimigo subversivo, resulta de uma discrepncia entre expectativas e realidade, tanto em termos das representaes heroicas de seu papel social (salvadores da ptria) quanto da racionalizao moral de suas aes (uma guerra levada a cabo pelo bem maior da nao).

    Observamos assim as tensas justaposies e disputas entre memria, verdade, justia e poltica, que se traduzem como campos semnticos que se

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS822

    complementam, alternam e variam em relao aos contextos de enunciao e a seus atores-chave. Aps dcadas de lutas pelas memrias da ditadura, as violaes aos direitos humanos (como colocam as vtimas) ou os excessos (conforme afirmam os acusados) cometidos por razes polticas dificilmente encontram respaldo social. Atravs de inmeras aes e lanando mo de uma narrativa que combina humanitarismo e naturalizao dos afetos e do parentesco, o movimento de familiares de desaparecidos abriu os caminhos institucionais, cientficos e legais para a afirmao da Verdade sobre a dita-dura. Os laos de sangue com as vtimas da represso garantiram capital social e um lugar de transcendncia moral para os familiares de desapare-cidos, consagrando-os como portadores da Verdade sobre a ditadura. Alm disso, o sangue contido em seus corpos (atravs da gentica e da antropo-logia forense) converteu-se em prova inquestionvel da represso: bancos de sangue oferecem a matria para comprovar delitos, identificar os restos dos desaparecidos e crianas apropriadas.

    A legitimidade das vozes dos afetados imbui-se assim de atributos associados ao campo jurdico e cientfico (objetividade, neutralidade, veraci-dade, legalidade), fazendo prevalecer suas memrias e os sentidos que eles atribuem noo de direitos humanos.24 A luta dos familiares por Justia e Responsabilizao, assim como o apelo que tem a afirmao de uma verdade jurdica sobre o passado so, desse modo, cruciais para a consolidao de uma memria pblica acerca da ditadura. Trabalhos acadmicos, sentenas judiciais, evidncias materiais (corpos, DNA, edificaes, documentos) e os testemunhos dos afetados constituem-se como formas de saber e formas de verdade; antes de tudo, so modos de representao (capazes de produzir efeitos na vida social) que, ao adquirem o estatuto de Verdade, do contorno e sentido memria do ocorrido.

    Recebido em 26 de setembro de 2016Aprovado em 07 de dezembro de 2016

    Liliana Sanjurjo ps-doutoranda no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPCIS), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro/RJ, Brasil. E-mail:

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 823

    Notas

    1 Artigo baseado em etnografia sobre o campo de ativismo de familiares de desaparecidos da ditadura argentina, realizada como projeto de doutoramento junto ao PPGAS/Unicamp, com financiamento Fapesp, com desdobramentos numa pes-quisa de ps-doutoramento junto ao PPGAS/UFSCar, com financiamento Capes. Ao longo da pesquisa de campo, realizada entre 2009 e 2011, acompanhei as seguintes causas judiciais no Tribunal Federal de Buenos Aires: Causa I Cuerpo del Ejrcito y Jefes de Area; Causa ABO; Causa ESMA; Causa Automotores Orletti. Ver Sanjurjo (2013). Agradeo a todas e todos os interlocutores durante a pesquisa, sobretudo aos familiares, a quem devo este trabalho. Agradeo tambm a Bela-Feldman-Bianco pela orientao e inestimvel apoio para a realizao da pesquisa.

    2 Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Polticas, Madres de Plaza de Mayo, Abuelas de Plaza de Mayo e H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio).

    3 Torna-se ainda pertinente analisar a poltica como categoria mica, revelando os sentidos que os sujeitos atribuem s experincias que eles mesmos entendem como polticas, assim como [...] examinar as relaes que indivduos e grupos estabelecem com a histria, com formas de agir e sentir identificadas com geraes anteriores, associadas a tradies (Neiburg 1995:121).

    4 Em seu clssico estudo sobre o processo judicial entre os Barotse na antiga Rodsia, Gluckman (1967) j buscava traar as relaes entre poder e prticas jurdi-cas, voltando-se para a anlise dos modos de controle social nas sociedades tribais.

    5 Depoimento de Nora Cortias, integrante de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, em 2 de setembro de 2009 em Buenos Aires.

    6 Ver Conadep (2009).

    7 A ESMA, localizada em Buenos Aires, funcionou como um dos principais centros clandestinos de deteno durante a ditadura militar, por onde passaram cerca de 5 mil pessoas.

    8 Para uma discusso sobre a despolitizao do relato sobre a ditadura durante o julgamento das Juntas militares, ver Crenzel (2008), Feld (2002) e Jelin (2008).

    9 Para um histrico das leis, dos decretos, dos processos judiciais e anistias referentes aos fatos da ditadura argentina, ver Rafecas (2011), Verbitsky (2011) e Yanzon (2011).

    10 Apropriado a categoria empregada para nomear os filhos de desaparecidos sequestrados durante a ditadura (em sua maioria, por membros das prprias foras de represso), enquanto restituio o nome dado ao processo de recuperao da Verdade da origem biolgica.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS824

    11 A etapa de instruo dos processos penais constituda por atividades de averiguao e investigao criminal complementar, visando comprovao judicial da deciso de acusao ou de arquivamento do processo. Com base nas provas reu-nidas pela procuradoria, so definidos os acusados. J na etapa oral e pblica, so produzidas, de forma ritualizada perante as partes e o pblico no tribunal, as decla-raes testemunhais, ao passo que so apresentadas as alegaes de procuradores, advogados querelantes e defensores.

    12 Para informaes sobre nmero de processos, sentenas, julgamentos fina-lizados ou em curso, quantidade de acusados, sentenciados, situao processual ou de deteno dos acusados, consultar: .

    13 A Conveno para a Sano e Preveno do Delito de Genocdio das Naes Unidas, de 1948, excluiu de sua aplicao os grupos polticos, contemplando apenas grupo nacional, tnico, racial ou religioso, excluso que seria questionada nos anos 1980 pelo Informe Whitaker, pelos escritos do juiz Baltazar Garzn acerca das dita-duras latino-americanas e por anlises sobre os tribunais penais internacionais para os genocdios nos Blcs e Ruanda. A crtica dirigia-se incluso dos grupos polticos no marco da Conveno a fim de abarcar os massacres massivos cometidos contra grupos definidos em termos polticos. Para uma anlise sobre o Informe Whitaker, ver Feierstein (2007).

    14 Trata-se de uma causa que investigou os crimes cometidos em trs centros clandestinos de deteno de Buenos Aires (Club Atltico, Banco e El Olimpo), que funcionaram como um circuito repressivo, sob controle do I Corpo do Exrcito, entre os anos de 1976 e 1979.

    15 Formada pela esquerda peronista, Montoneros foi uma das principais or-ganizaes armadas de oposio ditadura.

    16 Sobre a relao entre narrativa, violncia e dominao, ver Taussig (1995).

    17 Ver Bonasso (1984).

    18 Declarao de Jorge Eduardo Acosta durante audincia da Causa ESMA, em 20 de outubro de 2011, no Tribunal Federal de Buenos Aires. Acosta integrou o Grupo de Tarea 33.2 da ESMA.

    19 Jorge Rafael Videla, em 21 de dezembro de 2010, em julgamento em Crdoba, que investigou o fuzilamento de 31 presos polticos na Unidade Penitenciria N 1.

    20 Declarao de Jorge Acosta, durante audincia da Causa ESMA, em 20 de outubro de 2011.

    21 Declarao de Alfredo Ignacio Astiz, durante audincia da Causa ESMA, em 14 de outubro de 2011, no Tribunal Federal de Buenos Aires. Astiz ganharia notoriedade aps se infiltrar no movimento de Madres de Plaza de Mayo, sendo o principal responsvel pelo desaparecimento de um grupo de madres e freiras em 1977.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 825

    22 Asociacin de Familiares y Amigos de Presos Polticos Argentinos e Asociacin de Familiares y Amigos de Vctimas del Terrorismo en Argentina, res-pectivamente.

    23 Discurso de Mara Ceclia Pando, presidente da AFyAPPA, em ato realizado em Buenos Aires em 2009.

    24 Verdery (1996) sugere problematizar os sentidos da noo de direitos huma-nos, distanciando-se de um vis analtico mais normativo para explorar como essa noo (enquanto smbolo poltico) pode ser apropriada e significada contextualmente. Para anlises que versam sobre o debate antropolgico entre relativismo cultural e uma noo universal de Direitos Humanos, ver Rapport e Overing (2000).

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS826

    Referncias bibliogrficas

    AGAMBEN, Giorgio. 2008. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a teste-munha (Homo Sacer III). So Paulo: Boitempo Editorial.

    ARENDT, Hannah. 2008a. Eichmann em Jerusalm: um relato sobre a banali-dade do mal. So Paulo: Companhia das Letras.

    ____. 2008b. Responsabilidade e julga-mento. So Paulo: Companhia das Letras.

    BAILEY, Frederick George. 1993. The tactical uses of passion: an essay on power, reason and reality. Ithaca: Cornell University Press.

    BONASSO, Miguel. 1984. Recuerdo de la muerte. Buenos Aires: Bruguera Editorial.

    BOURDIEU, Pierre. 2003. O poder sim-blico. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

    CONADEP. 2009. Nunca Ms. Informe de la Comisin Nacional sobre la Desa-paricin de Personas. 8 ed. Buenos Aires: Eudeba.

    CRENZEL, Emilio. 2008. La historia poltica del Nunca Ms. La memoria de los desaparecidos en la Argenti-na. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.

    DALEO, Graciela. 2001. Nosotros, adems, somos testigos. Milenio, 5:106-117.

    DAS, Veena. 1995. Critical events. An anthropological perspective on con-temporary India. New Dheli/Oxford: Oxford University Press.

    DURKHEIM, mile. 1972. mile Durkheim: selected writings. Cam-bridge: Cambridge University Press.

    FASSIN, Didier. 2008. Beyond good and evil? Questioning the anthropological discomfort with morals. Anthropolo-gical Theory, 8(4):333-344.

    ____. 2013. On resentment and ressenti-ment: the politics and ethics of moral emotions. Current Anthropology, 54(3):249-267.

    FEIERSTEIN, Daniel. 2007. El genocidio como prctica social: Entre el nazismo y la experiencia argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica.

    FELD, Claudia. 2002. Del estrado a la pantalla: las imgenes del juicio a los ex comandantes e Argentina. Madrid: Siglo XXI de Espaa Editores.

    FOUCAULT, Michel. 1996. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora.

    GLUCKMAN, Max. 1967. The judicial process among The Barotse of Nor-thern Rhodesia. 2 ed. Manchester: Manchester University Press.

    JELIN, Elizabeth. 2008. La justicia despus del juicio: legados y desafos en la Argentina postdictatorial. In: C. Fico; M. Ferreira & S. Quadrat (orgs.), Ditadura e democracia na Amrica Latina: balano histrico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV. pp. 341-360.

    LEVI, Primo. 1990. Os afogados e os so-breviventes. Os delitos, as penas, os castigos, as impunidades. So Paulo: Paz e Terra.

    MAUSS, Marcel. 2001. A expresso obrigatria dos sentimentos. In: ___., Ensaios de sociologia. 2 ed. So Pau-lo: Editora Perspectiva. pp. 325-338.

    NEIBURG, Federico. 1995. Politizao e universidade na Argentina. Novos Estudos CEBRAP, 53:119-135.

    PEIRANO, Mariza. 2001. Rituais como estratgia analtica e abordagem et-nogrfica; A anlise antropolgica de rituais. In: M. Peirano (org.), O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume e Dumar. pp. 7-42.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 827

    POLLAK, Michael. 1989. Memria, esquecimento e silncio. Estudos Histricos, 2(3):3-15.

    ____. 2006. El testimonio. In: ___., Me-moria, olvido, silencio: la produccin social de identidades frente a situa-ciones lmite. La Plata: Ediciones Al Margen. pp. 53-112.

    RAFECAS, Daniel. 2011. La reaper-tura de los procesos judiciales por crmenes contra la humanidad en la Argentina. In: G. Andreozzi (org.), Juicios por crimenes de lesa huma-nidad en Argentina. Buenos Aires: Atuel. pp. 155-176.

    RAPPORT, Nigel & OVERING, Joanna. 2000. Human rights. In: ___. (eds.), Social and cultural anthropology: the key concepts. London & New York: Routledge Taylor and Francis Group. pp. 167-172.

    SALVI, Valentina. 2008. Nem burocratas, nem cruzados: militares argentinos memrias castrenses sobre a repres-so. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, So Paulo.

    ____. 2010. Entre el olvido y la victi-mizacin: transformaciones en la narrativa sobre la reconciliacin nacional. In: L Pagliani (org.), La sociedad argentina hoy frente a los aos 70. Buenos Aires: Eudeba. pp. 113-142.

    SANJURJO, Liliana Lopes. 2013. San-gue, identidade e verdade: memrias sobre o passado ditatorial na Argenti-na. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, So Paulo.

    SARLO, Beatriz. 2007. Tempo passado: cultura da memria e guinada subje-tiva. So Paulo/ Belo Horizonte: Com-panhia das Letras/Editora UFMG.

    SIKKINK, Kathryn. 2011. A era da responsabilizao: a ascenso da responsabilizao penal individual. In: L. Payne; P. Abro & M. Torelly

    (orgs.), A anistia na era da respon-sabilizao: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Braslia: Ministrio da Justia/ Comisso de Anistia. pp. 34-75.

    SLEPOY, Carlos. 2011. Impunidad y jus-ticia universal en relacin con crme-nes lesivos para la humanidad. Los juicios en Espaa. In: G. Andreozzi (org.), Juicios por crimenes de lesa humanidad en Argentina. Buenos Aires: Atuel. pp. 101-118.

    TAUSSIG, Michael. 1995. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

    TIMERMAN, Jacobo. 2000. Preso sin nombre, celda sin nmero. Buenos Aires: Ediciones De La Flor.

    TISCORNIA, Sofia & PITA, Mara Vic-toria. 2005. Presentacin. In: ___. (orgs.), Derechos humanos, tribunales y policas en Argentina y Brasil: estu-dios de antropologa jurdica. Buenos Aires: Antropofagia. pp. 7-9.

    TURNER, Victor. 1974. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrpolis: Editora Vozes.

    ______. 1985. Drama, fields and meta-phors: symbolic action in human society. Ithaca/London: Cornell Uni-versity Press.

    VECCHIOLI, Virginia. 2001. Polticas de la memoria y formas de clasi-ficacin social. Quines son las vctimas del terrorismo de Estado en la Argentina?. In: B. Groppo & P. Flier (orgs.), La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguay. La Plata: Ediciones Al Margen. pp. 83-102.

    ____. 2005. La nacin como familia. Metforas polticas del movimiento argentino de derechos humanos. In: S. Frederic & G. Soprano (orgs.), Cultura y poltica en etnografas sobre la Argentina. Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes Editorial. pp. 241-269.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS828

    VERBITSKY, Horacio. 2011. Entre ol-vido y memoria. In: G. Andreozzi (org.), Juicios por crimenes de lesa humanidad en Argentina. Buenos Aires: Atuel. pp. 33-42.

    VERDERY, Katherine. 1996. What was socialism, and what comes next? Princeton/New Jersey: Princeton University Press.

    ____. 1999. The political lives of dead bodies: reburial and postsocialist change. New York: Columbia Uni-versity Press.

    VIANNA, Adriana. 2005. Direitos, mora-lidades e desigualdades: considera-es a partir de processos de guarda de crianas. In: R. Lima (org.), Antropologia e direitos humanos 3. Niteri: Editora da Universidade Federal Fluminense. pp. 13-68.

    YANZON, Rodolfo. 2011. Los juicios desde el fin de la dictadura hasta hoy. In: G. Andreozzi (org.), Juicios por crimenes de lesa humanidad en Argentina. Buenos Aires: Atuel. pp. 137-154.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS 829

    LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS

    CONDENAMOS TODOS: DOS

    CONFLITOS PELAS MEMRIAS,

    MORALIDADES E VERDADE NOS

    TRIBUNAIS ARGENTINOS

    Resumo

    H mais de trs dcadas, familiares de desaparecidos da ditadura militar argentina se engajam em aes polticas para exigir Justia pelas violaes aos direitos humanos cometidas durante a represso. Com a anulao das leis de anistia em 2005, abriram-se os caminhos legais para a responsabilizao penal. Desde ento, as narrativas sobre o passado entraram definitivamente em cena (e em disputa) nos tribunais do pas. Baseado em etnografia dos julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina, o artigo analisa como vtimas, agentes do Estado acusados de violaes e atores judiciais converteram os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado ditatorial. Conduzindo uma anlise mais encantada da poltica e seu simbolismo (que considera a dimenso afetiva e existencial da ao humana), o intuito problematizar como a cena judicial vem se desempenhando como espao de luta para a produo do saber e verdade sobre a ditadura na Argentina. Palavras-chave: Memria; Ditadura Militar; Direitos Humanos; Poltica; Moralidades.

    LOS JUZGA UN TRIBUNAL,

    LOS CONDENAMOS TODOS:

    CONFLICTOS POR LAS MEMORIAS,

    MORALIDADES Y VERDAD EN LOS

    TRIBUNALES ARGENTINOS

    Resumen

    Desde fines de los aos 1970, familiares de desaparecidos de la dictadura militar argentina emprendieron acciones polticas para exigir Justicia por las violaciones de los derechos humanos cometidas durante la represin. Con la anulacin de las leyes de amnista en 2005, quedaron abiertos los caminos legales para la responsabilizacin penal. Desde entonces las narrativas sobre el pasado de violencia entraron definitivamente en escena (y en disputa) en los tribunales del pas. Fundamentado en la investigacin etnogrfica llevada a cabo en los juicios de crmenes de lesa humanidad en Argentina, el artculo analiza como las vctimas, los agentes del Estado acusados de violaciones y los actores judiciales han convertido los tribunales en lugar privilegiado para la afirmacin de sentidos del pasado dictatorial. La propuesta es conducir un anlisis de la poltica y su simbolismo, que considera sobre todo la dimensin afectiva, moral y existencial de la accin humana, para problematizar cmo la escena judicial se ha transformado en espacio de lucha para la produccin de la verdad sobre la dictadura en Argentina.Palabras clave: Memoria; Dictadura militar; Derechos humanos; Poltica; Moralidades.

  • LOS JUZGA UN TRIBUNAL, LOS CONDENAMOS TODOS: DOS CONFLITOS PELAS MEMRIAS, MORALIDADES E VERDADE NOS TRIBUNAIS ARGENTINOS830

    THE COURT JUDGES THEM, WE

    ALL CONDEMN THEM: CONFLICTS

    OVER MEMORIES, MORALITIES AND

    TRUTH IN ARGENTINIAN COURTS

    Abstract

    For over three decades, the families of those who disappeared during Argentinas Military Dictatorship have been engaged in political actions that demand justice for human rights violations during the repression. Legal means of achieving penal liability have opened up since the annulment of amnesty laws in 2005. Since then, narratives of the past have definitely taken centre stage and, hence, been in

    dispute in the Argentinean courts. Based on an ethnography of trials for crimes against humanity, this article analyses how victims, State agents accused of violations and judicial actors have converted the courts into a privileged place for the attribution of meanings to the dictatorial past. It questions how the judicial system is being converted into an arena for disputes over the production of knowledge and truth concerning the military dictatorship in Argentina, through an analysis of the enchantment of politics and its symbolism that takes into account the emotional and existential aspects of human action. K e y - w o r d s M e m o r y ; M i l i t a r y Dictatorship; Human Rights; Politics; Moralities.