logica existe para todos - walter carnielli, marcelo conig

140
ogic∀ ∃xiste para todos um m´ ınimo de l´ogica e argumenta¸ ao Walter Carnielli e Marcelo E. Coniglio Departamento de Filosofia e Centro de L´ ogica, Epistemologia e Hist´oria da Ciˆ encia Universidade Estadual de Campinas C.P. 6133, CEP 13081-970 Campinas, SP, Brasil c  Todos os direitos reservados (Cr´ ıticas, coment´arios e sugest˜ oes s˜ ao bem-vindos) 5 de setembro de 2008

Upload: fernando-rodriguez-mar

Post on 18-Oct-2015

153 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

  • Logic xiste para todosum mnimo de logica e argumentacao

    Walter Carnielli e Marcelo E. ConiglioDepartamento de Filosofia e

    Centro de Logica, Epistemologia e Historia da CienciaUniversidade Estadual de Campinas

    C.P. 6133, CEP 13081-970Campinas, SP, Brasil

    c Todos os direitos reservados

    (Crticas, comentarios e sugestoes sao bem-vindos)

    5 de setembro de 2008

  • Sumario

    1 Onde queremos chegar 31.1 O que, como, e para que? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.2 Filosofia e argumentacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.3 Algumas falacias logicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101.4 Falacias, erros e abusos; o papel da Logica . . . . . . . . . . . 12

    1.4.1 Psicologismos como falacias . . . . . . . . . . . . . . . 121.4.2 Falacias logicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

    1.5 Kant e a definicao de Logica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171.6 Um desfile dos smbolos logicos . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

    2 Os Paradoxos e seu Significado no Pensamento 292.1 Paradoxos Logicos e a Questao do Infinito . . . . . . . . . . . 292.2 O infinito paradoxal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    2.2.1 O Paradoxo de Galileu, ou a confusao entre as partese o todo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    2.2.2 O Passeio de Cantor e os infinitos infinitos . . . . . . . 312.2.3 O Hotel de Hilbert: como a intuicao nos engana . . . 342.2.4 O Lema de Konig . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

    2.3 Os Paradoxos Logicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352.3.1 O valor e o significado dos paradoxos . . . . . . . . . . 352.3.2 Paradoxos e antinomias mais conhecidos . . . . . . . 372.3.3 O que podemos aprender com os paradoxos? . . . . . 40

    3 A Logica Proposicional- Linguagem e Semantica 413.1 Linguagens proposicionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

    3.1.1 A ideia da forma logica . . . . . . . . . . . . . . . . . 413.1.2 Uso, mencao e confusao . . . . . . . . . . . . . . . . . 423.1.3 Linguagem, metalinguagem, variaveis e metavariaveis 443.1.4 Enunciados e proposicoes . . . . . . . . . . . . . . . . 45

    1

  • 3.1.5 Assinaturas e linguagens . . . . . . . . . . . . . . . . . 463.2 A semantica da Logica Proposicional . . . . . . . . . . . . . . 50

    3.2.1 Semantica dos conectivos . . . . . . . . . . . . . . . . 503.2.2 Tautologias, contradicoes e contingencias . . . . . . . 553.2.3 Formas normais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 583.2.4 Conjuntos adequados de conectivos . . . . . . . . . . . 623.2.5 Argumentos e consequencia semantica . . . . . . . . . 653.2.6 Exerccios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

    4 Axiomatica e Completude 694.1 Deducao e demonstracao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 694.2 Sistemas Axiomaticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 704.3 Uma axiomatica para a LPC . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 724.4 Completude e Compacidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 774.5 Outras Axiomaticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 774.6 Exerccios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

    5 Outros Metodos de Prova 805.1 O Metodo de Tablos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

    5.1.1 Descricao do metodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 815.2 O Metodo de Deducao Natural . . . . . . . . . . . . . . . . . 915.3 O Metodo de Sequentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 955.4 Exerccios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

    6 Logica de Predicados 996.1 Conjuntos, relacoes e funcoes . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1006.2 Linguagens de primeira ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1086.3 Semantica das linguagens de predicados . . . . . . . . . . . . 1176.4 Um sistema axiomatico para a logica de predicados . . . . . . 128

    7 Introducao a` Teoria dos Silogismos 1347.1 O que representam os silogismos na logica contemporanea . . 134

    7.1.1 A linguagem dos silogismos . . . . . . . . . . . . . . . 1367.1.2 Os quatro tipos de proposicoes categoricas . . . . . . . 137

    Referencias Bibliograficas 139

    2

  • Captulo 1

    Onde queremos chegar

    1.1 O que, como, e para que?

    Dizem que Logica e a arte de raciocinar bem. Outros dizem que e aciencia que estuda metodos de inferencia, com objetivo de esclarecer quecoisas sao consequencia de outras.

    Mas assim nao comecamos muito bem: parece que faz diferenca se con-ceituamos a Logica como arte ou como ciencia. E ainda que resolvessemoseste primeiro entrave, teramos que entender o que e inferencia, o que econsequencia, e que coisas sao essas que seriam consequencia de outras.

    Talvez um pouco mais claro seja pensar que a Logica seja o estudo dosargumentos validos, cuja finalidade seria ser capaz de distinguir os argumen-tos validos dos invalidos. Sendo assim, a Logica seria um pouco menos arte,e um pouco mais ciencia

    Dessa forma, temos pelo menos de concordar sobre o que seja um argu-mento. Tendo entendido a nocao de argumento, teremos que compreendero que significa que ele seja valido. E outras palavras, os argumentos e quesao aquelas coisas que sao consequencia de outras. A Logica se dedicaaos argumentos, que podem ser formais ou simbolicos, ou ser expressos pormeio da linguagem natural.

    Um argumento parte de uma ou mais premissas, e pretende fundamentaruma conclusao. Ao propor um argumento, queremos convencer um oponente(que pode ser o proprio argumentante) de que as premissas apoiam a con-clusao. A conclusao se destaca das premissas habitualmente por termos ouexpressoes como portanto, logo, segue que, assim, consequente-mente, etc. Comecemos com um exemplo cotidiano de argumento:

    [1] Leovegildo e poltico. Todos os polticos sao corruptos. Por-

    3

  • tanto, Leovegildo e corrupto. Nesse caso, Leovegildo e umpoltico e Todos os polticos sao corruptos sao premissas,portanto assinala onde se inicia o argumento, e Leovegildoe corrupto e a conclusao.

    Mas porque precisamos estudar os argumentos?Bertrand Russell, num texto de 1930, sugere que formar opinioes in-

    teligentes e decidir sobre opinioes e julgamentos especializados, portantocontruir e criticar argumentos, e a unica forma de exercer nossa liberdade:

    Nas financas, como na guerra, quase todos os que possuemcompetencia tecnica tem tendencias contrarias aos interesses dacoletividade. Os especialistas militares sao o principal obstaculoao sucesso das Conferencias de Desarmamento. Nao que sejamhomens desonestos, mas suas preocupacoes habituais os impe-dem de enxergar a questao dos armamentos na perspectiva ade-quada. O mesmo se aplica a`s financas. Quase ninguem as co-nhece em detalhes, exceto as pessoas que se dedicam a ganhardinheiro com o atual sistema, pessoas cujos pontos de vista, evi-dentemente, nao podem nunca ser totalmente imparciais. Pararemediar o atual estado de coisas sera necessario que as democra-cias do mundo tomem consciencia da importancia das financase descubram formas de simplificar seus princpios, de maneira atorna-los amplamente compreensveis. Devo admitir que isso naoe facil, mas nao creio que seja impossvel. Um dos obstaculos aoexito da democracia em nossa epoca e a complexidade do mundomoderno, que torna cada vez mais difcil ao cidadao comum for-mar opinioes inteligentes sobre questoes polticas ou mesmo de-cidir qual e o julgamento especializado mais merecedor de suaconfianca. A solucao neste caso e melhorar a educacao e encon-trar outras maneiras mais simples do que as que estao em vogae explicar a estrutura da sociedade. Todos os que creem numademocracia efetiva deveriam defender uma tal reforma. Mas tal-vez nao exista mais ninguem que creia na democracia, exceto noSiao e nas regioes mais remotas da Mongolia.

    Bertrand Russell, O Moderno Midas

    Muitas vezes propomos argumentos sem apresentar claramente todas aspremissas.

    Pedro tem 25 pontos na carteira de motorista. Logo, naopodera mais dirigir.

    4

  • Neste argumento esta implcita uma premissa oculta: a saber, a de que todomotorista com pelo menos 25 pontos perde (ou deveria perder) a carteirade motorista. Ainda mais, ha um contexto oculto: de que tais pontos saopunicoes por infracoes, que isso acontece no Brasil, etc.

    Formular explicitamente premissas que fazem parte do pano de fundode certas premissas partilhadas pode parecer uma forma de pedantismo.Contudo, temos de ter em mente que muitas vezes imaginamos que nossaspremisas ocultas sao partilhadas pelos outros, e temos que ter pacienciapara explicitar o que imaginamos ser obvio para que o argumento possa serrigorosamente analisado. Mal-entendidos causados por premissas ocultas esaltos para concluoes apressadas sao uma da maiores fontes de confusao edesgaste entre argumentadores. Teremos que nos conformar com um certograu de pedantismo, se queremos abordar a Logica de um ponto de vistaque se pareca mais a` ciencia que a` arte.

    Passemos entao a uma primeira caracterizacao sobre a nocao de validade.Para tanto, considere-se os seguintes argumentos simples:

    Baseado numa famosa frase do humorista Stanislaw Ponte-Preta:

    [2]- Ou instaure-se moralidade, ou locupletemo-nos todos. Logo,locupletemo-nos todos.[3]- O deputado Valdercio Sesmildo recebeu dinheiro ilegal. Odeputado foi eleito pelo Partido Fisiologista Lateral. Logo, todosos deputados do Partido Fisiologista Lateral receberam dinheiroilegal.

    Pode ate dar vontade de aceitar as conclusoes desses argumentos, maspodemos imaginar contextos nos quais as premissas seriam verdadeiras ea conclusao falsa. Por outro lado, o argumento [1] apresentado anterior-mente e do tipo cuja conclusao e verdadeira, sempre que suas premissas saoverdadeiras. Diremos que estes sao argumentos validos.

    E muito, muito importante compreender um ponto que parece obvio,mas que quase certamente vai ser motivo de duvida e confusao: nao esta-mos dizendo que as premissas sao verdadeiras: estamos dizendo que se aspremissas forem verdadeiras, entao a conclusao sera. O que temos aqui euma definicao condicional da nocao de argumento valido.

    Mas, voce vai pensar: espere um pouquinho: estamos aceitando umaabordagem condicional, do tipo se . . . entao, da nocao de validade que efundamental para a Logica, mas justamente isso ja e uma nocao logica! Issoe circular, nao vai levar a nada!

    Na verdade,somos forcados a encarar de frente uma das distincoes basicasda Logica e de toda a ciencia, que somente ficou evidente a partir do seculo

    5

  • XX, embora pensadores como Immanuel Kant e Rene Descartes ja tivessemsuspeitado do poblema: a distincao entre linguagem objeto e metalingua-gem. A linguagem-objeto e aquela que queremos estudar, em benefcio daqual proporemos nossas definicoes, e a respeito da qual queremos concluir.A metalinguagem e onde isso tudo e feito. No caso estamos usando umanocao intuitiva de condicional, na forma se . . . entao, para definir a nocaode validade, a qual depois vai ser instrumental para se esclarecer a nocaologica de implicacao na linguagem-objeto. Esse fenomeno acontece em mui-tas outras areas do conhecimento humano: a gramatica usa sem problemasa nocao informal de plural para definir plural: Os substantivos pluraisem lngua portuguesa em geral se fazem acrescentando um s aos substan-tivos singulares. A teoria dos numeros mais formal possvel enumera seusconceitos que pretendem esclarecer o que sao numeros. Nao ha nada de vi-cioso nesse tipo de aparente circularidade: nao se trata nesses casos de usarum conceito para definir-se a si mesmo, mas de usar conceitos em nveisdiferentes. Mais ainda: nem toda circularidade ou auto-refencia e daninha:veremos melhor este ponto no proximo captulo, quando examinarmos osparadoxos logicos.

    Voltando a` analise dos argumentos agora tendo comecado a compreendera nocao de validade: o caso de [2], ha uma maneira de tornar as premissasverdadeiras e conclusao falsa basta que se instaure a moralidade coletiva, eque pelo menos alguem nao se locuplete: desse modo, a premissa se cumpre,mas a conclusao sera falsa neste mesmo contexto. Portanto, pela definicaode validade, este nao sera um argumento valido.

    No caso de [3], O deputado Valdercio Sesmildo pode ter recebido dinheiroilegal mas basta que alguem do Partido Fisiologista Lateral seja honesto,para derrubar a validade do argumento. O Partido Fisiologista Lateral podeser muito suspeito, e pode ser que suspeitemos de que todos os eleitos peloPartido Fisiologista Lateral sejam desonestos, mas esta e uma outra questaoque nada tem a ver com argumentar: tem a ver com o chamado proceso in-dutivo ou abdutivo, uma das maneiras pelas quais levantamos ou propomoshipoteses ou explicacoes. Contudo, levantar uma hipotese nao e argumen-tar: podemos tentar demonstrar esta assercao (nesse caso, candidata a tese)ou ate usar esta hipotese como premissa em outro argumento dado que arigor as premissas dos argumentos nao precisam ser verdadeiras. Mas, comoveremos logo a seguir, trabalhar com premissas verdadeiras conduz a umasubclasse dos argumentos: os argumentos fortes.

    Pode acontecer contudo que algum argumento se refira a algum assuntosobre o qual nada sabemos, como por exemplo a metafsica venusiana seraque mesmo em casos desse tipo poderemos nos aventurar a tentar avaliar

    6

  • um argumento a respeito?A resposta e sim: a metafsica poderia ser venusiana, mas o fato e que

    estamos aqui estudando a Logica terrestre...

    1.2 Filosofia e argumentacao

    Atraves da referencia a` linguagem, a Logica tem um papel central na redacaoe avaliacao de argumentos, particularmente importante para a redacao eavaliacao de ensaios argumentativos em filosofia. Nesse caso, nao ha dadosempricos que possam nos guiar, e toda a enfase e colocada nos esquemasdedutivos. Vamos passar a uma rapida introducao sobre a questao de comoo domnio de coneitos logicos elementares pode contribuir para a analisecrtica de textos, teses e argumentos filosoficos. Seguiremos aqui parte doroteiro de A Arte de Argumentar, de Anthony Weston (Gradiva, 1996,Lisboa, traducao de D. Murcho).

    De modo simplificado, ja que cobriremos este topico no Captulo YY,dizemos que um argumento dedutivo e valido se e somente se, sempre que aspremissas sao verdadeiras, a conclusao tambem e verdadeira. Por exemplo:

    Se o conhecimento e possvel, os ceticos estao enganados.O conhecimento e possvel.Logo, os ceticos estao enganados.

    Assumindo-se a verdade das duas premissas, a conclusao e tambem ver-dadeira. Contudo, pode ser que as premissas sejam falsas, e nesse caso aconclusao tanto pode ser falsa como verdadeira. O que nunca podemos ternum argumento dedutivo valido sao premissas verdadeiras e conclusao falsa.

    Considere-se agora o seguinte argumento:

    O universo existe.O universo nao existe.Logo, Deus existe.

    Pela definicao dada, este argumento e valido, apesar das aparencias emcontrario. E claro que as duas premissa nao podem ser simultaneamenteverdadeiras, porque sao contraditorias. Mas precisamente pelo fato de aspremissas nao poderem nunca ser simultaneamente verdadeiras, segue-seque nunca podemos ter as premissas verdadeiras e a conclusao falsa. Con-sequentemente, o argumento e valido!

    Ese tipo de raciocnio (considerado valido dentro da Logica classica) econhecido como ex contradictione quodlibet ou ex falso quodlibet (a partir

    7

  • de uma contradicao, segue-se o que se queira), e ja o famoso infeliz logicomedieval1 Pedro Abelardo na sua Dialectica exemplificava o uso surpreen-dente e paradoxal deste argumento com um conhecido exemplo: Si Socratesest lapis, est asinus: se Socrates e uma pedra, entao e um asno.

    Ha nesse caso uma premissa oculta, e tomada como verdadeira: Socratesevidentemene nao e uma pedra. Se assumirmos (pela premissa explcita) queseja uma pedra, qualquer conclusao torna o argumento valido, inclusive queSocrates seja um asno.

    Esse asno virtual tinha ate nome: chamou-se Brunelo, e foi alvo deinterminaveis disputas pelos logicos medievais.

    Considere-se outro argumento:

    Deus existe.Logo, o universo existe ou o universo nao existe.

    De novo, apesar das aparencias, este e de fato um argumento valido.Ocorre que nao e possvel que a premissa seja verdadeira e a conclusao sejafalsa, pela simples razao de que a conclusao nunca e falsa. Portanto, peladefinicao, trata-se de um argumento valido.

    Estes argumentos, contudo, apesar de validos nao sao interessantes: oprimeiro e valido a custa do fato de as premissas nao serem nunca verdadeirasem conjunto, e o segundo e valido a custa do fato de a conclusao nao sernunca falsa. Temos assim que ter claro que o que interessa na composicao ouna avaliacao de argumento nao e somente a validade dos argumentos, masum caso especial de argumentos validade, a que podemos chamar argumentosrelevantes: um argumento dedutivo valido e relevante se:1) todas as premissas podem ser simultaneamente verdadeiras, e2) a conclusao pode ser falsa.

    Em resumo, argumento so e relevante se passar nos seguintes tres testes:

    1. O argumento deve ser valido, pela definicao dada;

    2. As premissas podem ser simultaneamente verdadeiras;

    3. A conclusao pode ser falsa.

    Aos argumentos que nao sao relevantes chamamos de irrelevantes.Contudo, um argumento relevante ainda pode nao ser muito interessante:

    no caso seguinte, temos um argumento valido no qual as premissas podemser simultaneamente verdadeiras (num certo contexto) e a conclusao podeser falsa (em um outro contexto):

    1Infeliz em sua relacao com Helosa, nao pela sua importante obra logica.

    8

  • A Bblia foi escrita por Deus.Tudo o que Deus escreve e verdadeiro.Esta escrito na Blia que Deus a escreveu.Logo, Deus realmente escreveu a Bblia.

    Este pode entao ser classificado como um argumento relevante, mas naoe um argumento que se deva usar; para que um argumento seja bom, eledeve ser valido, e alem disso devemos ter boas razoes para pensar que aspremissas sejam verdadeiras, e ainda as premissas devem ser mais plausveisque a conclusao.

    Nao e nada facil estabelecer criterios para se ter bons argumentos: mui-tas vezes, nos argumentos da vida real, nao temos certeza da validade dosargumentos; classificamos entao os argumentos que nao temos certeza deserem validos numa escala que vai de fraco a muito forte: um argumento efraco se for provavel que as premissas possam ser verdadeiras e a conclusaofalsa (ao mesmo tempo), e um argumento e muito forte se e quase impossvelque as premissas sejam verdadeiras e a conclusao falsa (ao mesmo tempo).

    Trataremos aqui somente de argumentos que supomos classificaveis en-tre validos e invalidos, porque este e um livro sobre Logica, e nao sobreargumentacao em geral. O que pretendemos nesta introducao e mostrar aimportancia da Logica para a argumentacao, mas isso nao significa que todaa argumentacao caiba dentro da Logica.

    Um estudo muito mais abrangente (e menos logico) sobre a questao ge-ral da argumentacao e feito em Carnielli e Epstein, Pensamento Crtico:Logica, Aplicacoes e Exemplos, em preparo.

    Uma questao fundamental para bem avaliar argumentos e compreenderbem as afirmacoes condicionais, em geral expressas na forma Se . . ., entao. . .. Existem varias formas mais tortuosas de exprimir condicionais. Doponto de vista do estilo, o entao pode ser elidido ou oculto, como noargumento de inspiracao cartesiana:

    Se nada existe, pelo menos esta sentenca existe.

    que significa o mesmo que:

    Se nada existe, entao pelo menos esta sentenca existe.

    Da maneira geral, deixando de lado questoes de estilo, a afirmacao con-dicional Se A, entao B pode ser expressa como:

    A somente se B. A somente se B.

    9

  • A implica B. A somente no caso de B. A somente na condicao de B. A e condicao suficiente de B. B e condicao necessaria de A.

    As formas mais complicadas e que muitas vezes dao origem a mas inter-pretacoes sao as que se referem a condicoes necesarias ou condicoes sufici-entes. Exemplos ilucidativos sao os seguintes:

    Se alguem passou no vestibular, entao entregou as provas.

    Entregar as provas e condicao necessaria para se passar no vestibular.Porem, entregar as provas nao e condicao suficiente para se passar no vesti-bular.

    Se alguem acertou todas as questoes, entao passou no vestibular.

    Acertar todas as questoes e condicao suficiente para se passar no vesti-bular. Porem, acertar todas as questoes nao e condicao necessaria para sepassar no vestibular.

    Para avaliar a verdade de uma afirmacao condicional usam-se exatamenteas mesmas regras que se usam para avaliar a validade de um argumento. Adiferenca consiste agora em tomar o antecedente da condicional ao inves daspremissas, e o consequente ao inves da conclusao. Assim, uma afirmacaocondicional funciona como um argumento valido se, e somente se, nos casosem que o antecedente e verdadeiro, o consequente tambem for verdadeiro.Em outras palavras, uma afirmacao condicional funciona como um argu-mento valido se, e somente se, a implicacao for uma verdade logica.

    1.3 Algumas falacias logicas

    O papel do debate e da discussao na conduta humana e anterior ao donascimento da Logica. Pode-se mesmo dizer que a Logica, derivada dologos, enquanto falar a sos, nasceu por causa disso, e e dessa forma muitoproxima do dialogos, falar a dois. Contra os sofistas gregos foram dirigidosvarios dialogos de Platao: O Sofista, Entidemo, Protagoras, Gorgias, Menao,Ipias, e o primeiro livro da Republica.

    10

  • A natureza do argumento foi depois melhor esclarecida por Aristoteles,nos Topicos: os argumentos corretos pertencem a` logica se suas premissassao verdadeiras, a` dialetica se suas premissas sao verossmeis, e a` erstica sesuas premissas sao falsas, enquanto que os argumentos incorretos pertencema` sofstica. Segundo nossas definicoes acima, a Logica trataria dos argumen-tos validos relevantes, a dialetica dos argumentos bons e dos argumentosfortes, a erstica dos argumentos validos mas irrelevantes (que tem premis-sas falsas). A Logica, na visao aristoelica, seria a unica de interesse para oconhecimento e a ciencia, porque leva a` verdade, enquanto a dialetica e aerstica serviriam para avaliar argumentos. A sofstica serviria apenas paraconvencer ou obter o consenso.

    Basta olhar a nossa volta, na ciencia moderna, no discurso poltica, nodireito e na propaganda para constatar a atualidade dessa classificacao. Mascom o tempo a nocao de dialetica, assim como de Logica, sofreu mudancas.Na Crtica da Razao Pura Kant divide a Logica entre analtica e dialetica.Na analtica atribui-se a` razao a tarefa de verificar a validade dos argu-mentos, e aos sentidos a tarefa de verificar a corretude das premissas ouhipoteses. Ja na dialetica kantiana cabe a` razao a tarefa de justificar aspremissas dos argumentos. Kant dedica bastante atencao a`s antinomias oucontradicoes da razao pura, que pretendem mostrar que somente a analticapode ser fonte de conhecimento verdadeiro, enquanto a dialetica produznao mais que contradicoes, e se releva uma fonte de ilusoes e enganos. Emuito interessante notar que Kant usa a contradicao como anteparo pararaciocnios que poderamos chamar de destrutivos, e metodos semelhantesaos raciocnios paradoxais de Zenao de Eleia, que em seus famosos exemplosargumenta contra a nocao de movimento (veremos esse ponto no Captulo2).

    A contradicao, contudo, nao tem so o papel acido destrutivo na historiado pensamento filosofico, mas pode, ao contrario, ser a via de acesso a nadamenos que o absoluto, como defende Hegel na Ciencia da Logica. ParaHegel, o papel da dialetica e positivo, a qual por meio da sucessivas teses eantteses atinge snteses sucessivas atraves das quais o esprito se manifesta.Para Marx e Engels, simplificando ao maximo, podemos dizer que a ideia semantem, com a diferenca que quem se manifesta nao e mais o esprito, masa historia e a natureza (materialismo dialetico).

    Ja para Schopenhauer, na Arte de ter Razao, a dialetica e a arte de com-bater, de se prevalecer sobre o adversario, entre a rejeicao preconizada porKant e a adocao endossada por Hegel, numa forma mais proxima da con-cepcao aristotelica. Caberia a` dialetica um papel dentro do que chamamosretorica: a arte de se tentar derrubar o adversario, ou defender-se, indepen-

    11

  • dente do fato de se ter ou nao razao. Procura-se por exemplo, confutar-se pormeios diretos ou indiretos as premissas do adversario, ao que se chama con-futacao ad rem (aos fatos); pode-se confutar ou refutar as premissas (negomajorem ou nego minorem, em referencia a`s chamadas premissa maior epremissa menor dos silogismos classicos, que veremos no Captulo 7) ourefutar-se a conclusao, por uma falha logica (nego consequentiam). Os deba-tes jurdicos e as entrevistas nas Comissoes Parlamentares de Inquerito estaocheias de exemplos; se voce comecar a olha-las a partir desta perspectiva,notara muita coisa interessante...

    1.4 Falacias, erros e abusos; o papel da Logica

    No Captulo 6 apresentaremos um catalogo bastante abrangente das falaciasmais conhecidas, advinda de erros logicos ou erros estruturais. Nesta secao,com finalidade apenas de esclarecer o papel da Logica na deteccao, na analisea na crtica dos argumentos, discutimos apenas algumas das falacias maiscorriqueiras e o papel do simbolsmo logico como linguagem sintetica quepermite engloba-las em bases semelhantes.

    Como ha muitas formas de errar, intencionais ou nao, e bastante difcilseparar as falacias onde o erro e apenas logico, daquelas onde ha outroselementos lingusticos ou psicologicos envolvidos. Comecemos por consideraros debates televisivos, reunioes de departamentos, assembleias, pregacoesreligiosas e outras exposicoes publicas da vontade de vencer e convencer aqualquer custo. Comecemos por tentar isolar as falacias onde o que se ve eum apelo a`s emocoes, deixando de lado a argumentacao; pasamos depois a`sfalacias logicaa de fato, onde a linguagem e a forma logica sao relevantes.

    1.4.1 Psicologismos como falacias

    E muita vezes eficiente, na era da propaganda e do consumo e dirigido a umpublico doutrinado pela via televisiva, esquecer a substancia do argumento,lancando duvidas, acusacoes com pouco ou nenhum fundamento, ataque a`spessoas ou a`s suas pretensas ideias e supostas premissas 2. Os tipos maisfrequentes sao:

    Refutacao ad personam ou ad hominemAtaque direto a` pessoa, a`s suas supostas motivacoes:

    2Os discursos e acusacoes do deputado Roberto Jefferson na famosa CPI dos Correiosde 2005 sao didaticamente exemplares aqui.

    12

  • Uma pessoa com seu passado nao tem o direito de me perguntar isso.

    Argumentos ad populumApelo a` opiniao publica ou a` audienia com finalidade de desqualificaro adversario sem provas:

    Todos sabem que o nobre colega e amigo de bandidos.

    Argumentos ad verecundiamApelo a` opiniao de terceiros nao-nomindaos, ou a autoridade implcitaou oculta:

    Disseram que seu livro e pessimo.

    Aprendemos com os classicos que filosofia nao se faz assim.

    Ou ainda apelo a autoridades com opiniao irrelevante no assunto,muito usado na propaganda, onde apresentadoras ignorantes acon-selham um banco por ter as melhores taxas e condicoes economicas,atores recomendam um carro sem ter a mnima nocao do que estaofalando, compositores famosos compoem musiquinhas para louvar tale tal cerveja, etc.

    Argumentos ad auditoresApelos destinados a atrair a atencao do publico de forma a atira-locontra o oponente, numa linha de menor resistencia que tende a atraira benevolencia para si, e consequentemente colocar o adversario numaposicao de fraqueza:

    Nao queira enganar todo essa assembleia que nos prestigia com seuapoio.

    Esse tipo de ataque e mais eficaz ainda se o aversario tem razao, porquepode irrita-lo e leva-lo a se enganar de verdade.

    Apelo aos retorsio argumentiInterrupcoes, divagacoes, gritos...

    Apelo aos mutatio controversiaeMudar de assunto...

    Argumentos ad misericordiamTentativa de comover a audiencia ou o oponente:

    Se nao acreditam em mim, melhor que eu me cale.

    13

  • Argumentos ad baculumTentativa de intimidar o oponente:

    Nao me venha com esse tipo de argumento. Voce nao sabe do quesou capaz.

    Sabe com quem esta falando?.

    Argumentos ad consequentiamConsequencias pseudo-logicas que em geral visam derrotar uma posicaotirando dal consequencia aparentemente corretas:

    Se a teoria da evolucao fosse correta, nao passaramos de macacos.

    Se Deus nao existisse, tudo seria permitido.

    Argumentos derrapantesUma cadeia de condicionais cada um ligeiramente distorcido, que formauma especie de declive de maneira a derraparmos ate a conclusao. Asrazoes para aceitarmos a conclusao tornam-se cada vez mais fracas a`medida que a duvida associada a cada uma das condicionais vai se acu-mulando, mas muitaz vezes nao temos como contrapor uma objecaode imediato:

    Nao use cartao de credito! Se voce tiver um cartao de credito, tera atentacao de gastar dinheiro que nao tem. Depois acaba por esgotar olimite maximo do seu cartao, e entra em dvidas.

    Ha ainda muitos outros aspectos como a aparencia fsica, teatrali-dade tom de voz, lagrimas...De certa forma, dada a irracionalidadedo publico em geral, e mesmo entre doutos colegas das prestigiadasuniversidades, e muito mais facil se vencer um debate com base nestesaspectos retoricos do que com base na Logica. Mas somente a Logica,quando bem aplicada, pode sobrepuja-los.

    1.4.2 Falacias logicas

    As falacias propriamente logicas parecem mais faceis de combater, mas naverdade podem estar imbricadas em raciocnios complexos ou artificiosa-mente intricados - ate mesmo nos nossos auto-enganos. Alguns exemplospreliminares sao os seguintes:

    Falacia da inversao da condicional

    14

  • A forma logica desta falacia, ligada ao calculo proposicional, e a se-guinte:Se A, entao B.Portanto, se B, entao A.

    Se nao existir livre arbtrio, a responsabilidade moral nao sera possvel.Logo, se a responsabilidade moral nao for possvel, nao podera existirlivre arbtrio.

    Uma maneira informal de tornar evidente o erro deste raciocio e ssubstitur as sentencas de modo a obter uma premissa verdadeira euma conclusao falsa em contextos muito mais simples:

    Se alguem nasceu em Sao Paulo, e brasileiro.Portanto, se alguem e brasileiro, nasceu em Sao Paulo.

    o que evidencia o erro: simplesmente fica mais claro que, manendo-se a mesmo formato do argumento original, ha um caso (uma cir-cunstancia) onde o antecedente e verdadeiro e o consequente e falso.

    Um tal caso e dito ser um contra-modelo e usa a nocao da forma logica:o que importa paa a Logica nao e nosso conhecimento a respeito dosassuntos abordados pelos argumentos, mas o formato dos argumentos.Essa e a uma das grandes chaves para se compreener de que trata aLogica. E instrutivo comparar isto com a definicao de Logica dada porKant (ver a Secao 1.5).

    Mas se nao conseguirmos um contra-modelo, isso significa que o argu-mento seja valido? Nao obrigatoriamente: pode haver uma possibili-dade na qual nao tenhamos pensado. A unica maneira de se ter certezada validade ou nao de um argumento e atraves dos processos formais,sintaticos ou semanticos da Logica: em poucas palavras, para que noslembemos mais tarde, o que estabelece esta certeza sao os chamadosteoremas de completude da Logica Proposicional e Quantificacional,assunto do Captulo 6.

    Falacia da disjuncao exclusivaNesse caso, da-se uma leitura a` disjuncao que nao e a leitura logicahabitual. Apresenta-se um falso dilema, como se a segunda alternativafosse a negacao da primeira, ou como se o ou so comportasse doiscasos:

    Quem acusa o governo de favorecer a compra de votos esta a favordos que querem derruba-lo.

    Ou se e a favor da invasao do Iraque, ou a favor do terrorismo.

    15

  • Falacia ad ignorantiamUma falacia ligada a` negacao, quando aquilo que nao se sabe ser ver-dadeiro e tomado como falso, e vice-versa:

    Toda suspeita nao refutada se converte em acusacao

    ou

    Tudo o que nao e explicitamente proibido e permitido

    ou, ao contrario:

    Tudo o que nao e explicitamente permitido e proibido.

    Falacia da causa unicaEsta e uma falacia bastante comum, ligada agora ao calculo de predi-cados (tambem chamada de falacia da inversao dos quantificadores):

    Todas as coisas tem uma causa.Logo, deve haver algo que seja a causa de todas as coisas.

    Este tipo de argumento e usado em particular para defender a existenciade Deus, que sera entao identificado com essa causa de todas as coisas.

    Para se verifiar que este argumento e invalido, e interessante consideraros seguintes exemplos, que tem a mesma forma logica do que o anterior:

    Todas as pessoas tem uma mae.Logo, deve haver alguem que seja a mae de todas as pessoas.

    ou

    Todos os numeros tem um sucessor.Logo, deve haver um numero que seja o sucessor de todosos numeros.

    Nestes dois argumentos, as premissas sao verdadeiras e as conclusoessao falsas. Logo, na sua forma geral, a premissa pode ser verdadeira e aconclusao falsa, e consequentemente esta forma de argumento dedutivonao pode ser valida.

    Falacia do todo e cadaOcorre quando se confundem os quantificadores universal e existencial:

    Se alguem conseguiu ficar rico, todos podem conseguir.

    16

  • Criticado por aguns como a grande falacia da sociedade norte-americana,confunde-se aqui o fato legtimo de que uma pessoa qualquer podese enriquecer com a falsidade obvia de que todos estao destinados aenriquecer (e os que nao conseguem, consequentemente, sao apenasincompetentes...)

    Esta e na verdade uma especie de caso geral da falacia da causa unica,como se verifica com a inversao da ordem dos quantificadores existen-cial e universal, no caso:

    Cada pessoa tem um pai (diferente, isto e, para toda pessoaexiste alguem que e seu pai), com o fato de que todas aspessoas tem um pai (o mesmo, isto e, existe uma pessoa quee pai de todas as outras).

    1.5 Kant e a definicao de Logica

    Immannuel Kant nasceu na inacreditavel cidade de Konigsberg, que ja foia Prussia e hoje esta na Russia, e que foi palco de diversos episodios im-portantes na historia do pensamento.3 em 22 de april de 1724. Kant, naCrtica da Razao Pura analisava o grande problema de tentar compreenderos limites do conhecimento cientfico. Sua conclusao, em uma linha, e que arazao humana e capaz de conhecer a ciencia, mas nao a metafsica.

    A Logica na obra de Kant e essencial, mas ele precisa esclarecer quetipos de proposicoes ou de juzos a Logica pode se aplicar: distingue entaoduas especies de juzos: analticose sinteticos. Os sinteticos sao por sua vezsubdivididos entre sinteticos a posteriori e sinteticos a priori.

    Os juzos analticos sao juzos de identidade; neles o predicado somenteexprime a essencia do proprio sujeito. Em outras palavra, basta analisar aideia do sujeito para nele ja encontrar o predicado.

    Todo corpo e extensoTodo solteiro e nao-casado, ou equivalentemente Nenhum solteiro e

    casado,sao juzos analticos: os corpos sao podem deixar de ser extensos,pela

    propria definicao do conceito de corpo como tudo aquilo que ocupa umlugr no espaco, e o predicado extenso nada mais acrescenta ao sujeito,que e o corpo. Igualmente, a nocao de solteiro ja inclui necessariamentenao ser casado, por definicao do termo solteiro como jamais ter secasado.

    3Para saber o que mais aconteceu em Konigsberg veja o Captulo 8.

    17

  • No ponto de vista cientfico, os juzos analticos nao tem nenhuma im-portancia; sao apenas proposicoes explicativas que podem esclarecer umaideia apresentando-a sob novos aspectos, mas nao ampliam em nada nossoconhecimento. Se forem falsos, serao contraditorios. Sao o que se chama dejuzos tautologicos ou apodticos.

    O papel da Logica e entao extremamente importante, para se podercaracterizar e distinguir estes juzos analticos.

    Os juzos sinteticos sao diferentes: nestes, o predicado de fato acrescentaao sujeito algo de novo. O termo significa que nossa inteligencia realiza umasntese entre o sujeito e o predicado, criando algo novo.

    Alguns juzos sinteticos sao particulares e contingentes: por exemplo:Esta pedra, que esta exposta ao sol, esta quente.Estes sao chamados juzos sinteticos a posteriori, o predicado quente

    so foi incorporado ao sujeito pedra posteriormente a ter sido verificado.Seu valor cientfico e tambem nulo, porque a ciencia nao e feita de afirmacoesparticulares.

    Os juzos cientficos devem ser necessarios e universais: nao podem seranalticos, que apenas explicam. Devem ser sinteticos, mas nao particulares,verificaveis a posteriori. Serao entao denominados sinteticos a priori.

    Kant pretende entao ter demonstrado que todos os juzos das cienciasfsicas e matematicas e da metafsica sao juzos sinteticos a priori.

    Note que falar em verdades analticas a posteriori evidentemente naofaz senrido, ja que nenhum testemunho da experiencia e necessario parajulgar as proposicoes analticas. As assercoes analticas sao sempre a priori,e nada mais sao que identidades logicas.

    O problema ocorre com as assercoes sinteticas a priori: sao aquelas emque o sujeito nao contem o predicado, mas que sao verificaveis independente-mente da experiencia. Mas como e possvel se verificar algo fora de qualquerexperiencia?

    Este e um otimo exemplo de questao que mostra onde termina Logica eonde comeca a Filosofia.

    Kant estava interessado em mostrar que o sintetico a priori e possvel, ea geometria euclideana e uma tentativa de exemplo. Ele argumentava quea geometria em particular seria sintetica a priori, isto e, independente darealidade e anterior a ela.

    Contudo, a ideia de que a geometria seria de fato conhecimento do espacoque seria sintetico a priori foi abalada pela descoberta das geometrias nao-euclideanas do seculo XIX. Essas novas geometrias eram derivadas da possi-bilidade logica, e portanto analticas a priori. A teoria da relatividade geralde Einstein demonstrou, ainda mais, que o espaco emprico e nao-euclideano.

    18

  • Mas um exemplo que falha nao invalida a busca por outro, e permanece agrande questao ligada a` filosofia de Kant: como sao possveis as proposicoesou os juzos sinteticos a priori4?

    Estudar Kant nao diz respeito diretamente ao que pretendemos aqui.Provavavelmente o que Kant pensava dos metodos e recursos da Logica naoultrapassava os silogismos aristotelicos, e o que ele pensava da ciencia, comovimos, esta muito distante da concepcao que temos hoje.

    Contudo, o que ele pensavaa respeito da Logica e extremamente apto econtemporaneo: e talvez o papel de um grande filosofo pensar por cima deseus proprios ombros, e acertar nas suas concepcoes profundas a despeitodas suas consequencias que podem estar factualmente erradas.

    Vamos aqui apresentar a definicao de Kant a respeito da Logica, paraque comecemos a tomar consciencia de que a Logica e de fato uma disciplinauniversal, e que na verdade nao ha discordancia entre Logica filosofica ematematica: o que ha e uma distincao de metodos, alcance e perspectivahistorica.

    Vamos aqui analisar O Conceito de Logica, da introducao do Manual dosCursos de Logica Geral de Immanuel Kant5

    O conceito de Logica Tudo na Natureza, tanto no mundoinanimado quanto no vivo, ocorre segundo regras, embora nemsempre conhecamos essas regras de imediato. - A agua cai se-gundo as leis dos graves, e o movimento da marcha entre os ani-mais produz-se conforme regras. O peixe na agua e o passaro noar movem-se segundo regras. A Natureza toda, em geral, nadamais e propriamente do que um nexo de fenomenos segundo re-gras e em parte alguma ocorre ausencia de regra. Quando pensa-mos te-la encontrado, so podemos dizer que as regras nesse casonos sao desconhecidas. O exerccio de nossas faculdades tambemse faz segundo certas regras, que seguimos inicialmente, inconsci-entes delas, ate que, mediante tentativas e um demorado uso denossas faculdades, chegamos ao seu conhecimento, o que acabanos colocando em tal familiaridade com elas que nos custa muitafadiga pensa-las in abstracto. Do mesmo modo, a gramatica ge-ral, por exemplo, e a forma de uma lngua em geral. Mas falamosmesmo nao conhecendo a gramatica, e quem nao a conhece e noentanto fala possui na verdade uma gramatica e fala segundo re-gras de que nao tem consciencia, porem. Ora, assim como todas

    4Para um pouco mais a este respeito veja o Captulo 85Editora da UNICAMP e EDUFU, 2003, traducao de Fausto Castilho.

    19

  • as nossas forcas em conjunto, tambem o intelecto em particulartem suas acoes presas a regras que podem ser investigadas. Maisainda, o intelecto deve ser considerado a fonte e a faculdade depensar regras em geral. Pois, assim como a sensibilidade e a fa-culdade das intuicoes, o intelecto o e de pensar, isto e, submetera regras as representacoes dos sentidos. Por isso, desejoso de bus-car regras, satisfaz-se quando as encontra, de onde a pergunta:se o intelecto e a fonte das regras, segundo que regras procede elemesmo? Logo, nao padece duvida alguma: nao podemos pensarou usar nosso intelecto a nao ser seguindo certas regras. Ora,essas regras, por seu turno, podemos pensa-las em si mesmas,podemos pensa-las in abstracto, isto e, sem sua aplicacao. Quaissao, entao, essas regras? Todas as regras segundo as quais ointelecto procede sao regras necessarias ou regras contingentes:sem as primeiras, nenhum uso do intelecto seria possvel; semas ultimas, nao seria possvel um certo uso determinado. As re-gras contingentes, por dependerem de um determinado objeto doconhecimento, sao tao numerosas quanto esses mesmos objetos.Por exemplo, ha um uso do intelecto na matematica, outro nametafsica, outro na moral etc. As regras deste uso particular edeterminado do intelecto nas mencionadas ciencias sao contin-gentes, por ser contingente que eu pense neste ou naquele objetoa que se reportam essas regras particulares. Ora, se pusermosde lado todo o conhecimento que temos de tomar emprestadodos objetos e refletirmos unicamente sobre o uso do intelecto emgeral, descobriremos aquelas suas regras que sao pura e simples-mente necessarias em todo proposito e tambem sem consideracaode todos os objetos particulares do pensamento, porque sem elasnao poderamos de modo algum pensar.

    Kant aqui ja nos da uma sugestao do que sera a Logica na sua concepcao:o conjunto daquelas regras que sao pura e simplesmente necessarias, e in-dependem dos objetos particulares do pensamento. Sem elas, note, naopoderamos de modo algum pensar.

    Essas regras podem, por isso, ser consideradas a priori, istoe, independentemente de toda experiencia, porque contem purae simplesmente, sem distincao de objetos, as condicoes do usodo intelecto em geral, seja ele um uso puro ou um uso emprico.Disto decorre, ao mesmo tempo, que as regras universais e ne-cessarias do pensamento dizem respeito unicamente a` forma,

    20

  • de modo algum a` materia do pensamento. Por conseguinte, aciencia que contem essas regras universais e necessarias e unica-mente urna ciencia da forma de nosso conhecimento intelectualou do pensamento. E podemos formar uma ideia da possibilidadede tal ciencia da mesma maneira que da possibilidade de umagramatica geral que nada mais contem do que a mera forma dalngua em geral, sem palavras, as quais pertencem a` materia dalngua. Essa ciencia das leis necessarias do intelecto e da razaoem geral ou o que e o mesmo da mera forma do pensamentoem geral e por nos denominada Logica.

    Kant aqui apresenta uma boa ideia do que chamamos forma logica:uma especie de gramatica geral, que contem apenas a mera forma, semconteudo especfico.

    Como ciencia que trata de todo pensamento em geral, semconsideracao dos objetos materia do pensamento , a Logica1) deve ser vista como fundamento de todas as outras ciencias ecomo propedeutica de todo uso do intelecto. Mas, de outra parte,precisamente por fazer total abstracao de todos os objetos, 2) elanao pode ser um organon das ciencias. Com efeito, entendemospor organon uma instrucao sobre como obter um certo conheci-mento. Para tanto, e preciso que eu ja conheca o objeto cujo co-nhecimento deve ser obtido segundo certas regras. Um organondas ciencias nao e, por isso, apenas Logica, porque pressupoe oconhecimento exato das ciencias, dos seus objetos e das suas fon-tes. Assim, a matematica, por exemplo, e um excelente organon,como ciencia que contem o fundamento da ampliacao de nossoconhecimento em relacao a um certo uso da razao. A Logica, aooposto, como propedeutica geral de todo uso do intelecto e darazao em geral, nao pode penetrar nas ciencias ou antecipar-lhesa materia, sendo apenas uma tecnica geral da razao para tornarconformes a` forma do intelecto os conhecimentos em geral, e sonessa medida pode dizer-se um organon, embora nao sirva efeti-vamente a` ampliacao, e sim apenas ao mero juzo de apreciacaoe correcao de nosso conhecimento. 3) Mas, como uma cienciadas leis necessarias do pensamento, sem as quais nao ha nenhumuso do intelecto e da razao, leis que sao em consequencia ascondicoes sob as quais o intelecto pode e deve unicamente se porde acordo consigo mesmo - as leis e as condicoes necessarias de

    21

  • seu uso correto -, a Logica e, todavia, um canon. E, como canondo intelecto e da razao, nao lhe e permitido abrigar princpios denenhuma ciencia ou de nenhuma experiencia, nao devendo contersenao leis a priori, que sao necessarias e pertencem ao intelectocomo tal. Alguns logicos pressupoem, e verdade, princpios psi-cologicos na Logica. Mas introduzir semelhantes princpios naLogica e precisamente tao absurdo quanto buscar a Moral navida. Se tirassemos seus princpios da psicologia, isto e, das ob-servacoes sobre nosso intelecto, veramos apenas como o pensa-mento procede e como ele e sob uma variedade de impedimentose de condicoes subjetivos, o que nos levaria ao conhecimento deleis meramente contingentes. Mas, na Logica, nao se trata de re-gras contingentes, mas necessarias, nao de como pensamos, masde como devemos pensar. Por isso, as regras da Logica devemser tomadas nao do uso contingente do intelecto, mas de seu usonecessario, que encontramos em nos sem nenhuma psicologia. NaLogica, nao queremos saber como o intelecto e e pensa e comoate agora procedeu ao pensar, mas como deveria proceder. Eladeve nos ensinar o uso correto do intelecto que concorda consigomesmo.

    Dessa definicao da Logica podem agora ser ainda derivadasas outras propriedades essenciais dessa ciencia, a saber, ela e 4)uma ciencia da razao nao segundo a mera forma, mas segundoa materia, porque suas regras nao sao tomadas da experienciae porque, ao mesmo tempo, ela tem como objeto a razao. ALogica e, por isso, um conhecimento de si, o conhecimento queo intelecto e a razao tem de si mesmos, nao, porem, para co-nhecer o poder de ambos em relacao a objetos, mas unicamentesegundo a forma. Na Logica nao perguntamos o que, quanto eate onde o intelecto conhece, o que seria um conhecimento de sirelativo a seu uso material, pertencendo, portanto, a` Metafsica.Na Logica, a questao e: como o intelecto se conhece? Comociencia racional, segundo a materia e segundo a forma, a Logicae, finalmente, tambem 5) uma doutrina ou teoria demonstrada.Ora, ja que nao se ocupa do uso comum e como tal meramenteemprico do intelecto e da razao, mas, unicamente, das leis uni-versais e necessarias do pensamento em geral, a Logica repousasobre princpios a priori, dos quais podem ser derivadas e prova-das todas as suas regras, como regras a que todo conhecimentoda razao deveria conformar-se.

    22

  • Neste trecho Kant salienta que a Logica deve ser vista como fundamentode todas as outras ciencias o alcance dessa afirmacao e simplesmente quenenhuma ciencia pode se cooocar contra a Logica. Mais ainda , o fato deque a Logica deve servir como propedeutica a todo uso do intelecto encerraa afirmacao de que a Logica de fato ensina ou disciplina a razao aplicada.

    Porque deve ser considerada uma ciencia a priori ou umadoutrina para um canon do uso do intelecto e do uso da razao, aLogica distingue-se essencialmente da Estetica, que, como meracrtica do gosto, nao possui um canon (lei), mas somente umanorma, um modelo ou uma linha de reta para um mero juzo deapreciacao, que consiste no consenso geral. A Estetica contem asregras do acordo do conhecimento com as leis da sensibilidade,ao passo que a Logica contem as regras do acordo do conheci-mento com as leis do intelecto e da razao. A primeira so possuiprincpios empricos e nao pode ser nunca ciencia ou doutrina, namedida em que se entenda por doutrina uma instrucao dogmaticaa partir de princpios a priori, na qual o intelecto tudo considera,independentemente de qualquer outro ensinamento recebido daexperiencia, dando-nos regras cuja observancia proporciona aperfeicao pretendida. Muitos, oradores e poetas em particular,procuraram raciocinar sobre o gosto, mas nunca puderam darum juzo decisivo a esse respeito. O filosofo Baumgarten deFrancoforte concebera o plano de uma Estetica como ciencia.So Hume, mais corretamente, denominou a Estetica de crtica,pois, ao oposto da Logica, ela nao da regras a priori para a deter-minacao suficiente do juzo, mas obtem suas regras a posteriorie somente por comparacao consegue dar mais generalidade a`sleis empricas pelas quais reconhecemos o mais imperfeito e omais perfeito (belo). A Logica e, portanto, mais do que meracrtica, um canon que serve em seguida a` crtica, isto e, comoprincipio de um juzo de apreciacao de todo uso do intelecto emgeral, ainda que apenas em sua correcao relativamente a` meraforma, pois, do mesmo modo que a gramatica geral, ela nao e umorganon. Como propedeutica a todo uso do intelecto em geral,a Logica Geral, por outro lado, distingue-se tambem, ao mesmotempo, da Logica Transcendental: nesta, o proprio objeto e re-presentado como um objeto so do intelecto, ao oposto da LogicaGeral, que trata de todos os objetos em geral. Reunindo, agora,todas as notas essenciais que entram na completa determinacao

    23

  • do conceito de Logica, devemos dar-lhe o seguinte conceito:

    Neste paragrafo final Kant entao resume sua definicao de Logica, queapesar de nao ser simbolica nem formal, e completamente coerente com oque faremos nos proximos captulos, e a qual podemos adotar como guia:

    A Logica e uma ciencia racional nao segundo a mera forma,mas segundo a materia; uma ciencia a priori das leis necessariasdo pensamento, nao, porem, relativamente a objetos particula-res, mas a todos os objetos em geral; portanto, uma ciencia douso correto do intelecto e da razao em geral, nao, porem, sub-jetivamente, isto e, segundo princpios empricos (psicologicos),sobre como o intelecto pensa, mas, objetivamente, isto e, segundoprincpios a priori, sobre como ele deve pensar.

    1.6 Um desfile dos smbolos logicos

    Introduzimos aqui alguns dos smbolos logicos mais usados e algumas re-gras basicas de derivacao e de transformacao lingustica, com objetivo defamiliariar o estudante com sua interpretacao intuitva.

    Os termos que ocorrem conectando as partes dos argumentos dedutivos(chamados justamente de conectivos), e a partir dos quais depende a suavalidade, sao os operadores logicos se . . . entao . . ., nao, ou, e e see somente se, simbolizados assim:

    1. Se A, entao B: A B (ou: A B)2. Nao A: A (ou: A)3. A ou B: A B4. A e B: A B5. A se e somente se B (ou: A se e so se B): A B

    A estes se juntam os quantificadores: o quantificador universal ou paratodo . . ., e o quantificador existencial ou existe . . .:

    1. Todos os objetos x tem o predicado P : xP (x)2. Existe pelo menos um objetos x tem o predicado P : xP (x)

    24

  • A regra de inferencia mais basica, que leva argumentos validos em argu-mentos validos, e a chamada regra de modus ponens:

    Se A e valido, e A B e valido, entao B e valido,simbolizada como:

    A, A BB

    Tendo um mnimo de conhecimento sobre o conectivo de implicacao, naoe difcil verificar que a regra de modus ponens e de fato uma regra correta,dado que e impossvel que A e A B sejam verdadeiros e B nao seja.Trataremos disso mais tarde, mas por enquanto basta termos uma ideia arespeito.

    Usando a regra de modus ponens e imediato verificar, por exemplo, queo seguinte argumento e valido:

    Se o nada existisse, o todo nao faria sentido.O nada existe.Logo, o todo nao faria sentido.

    A menos de variacoes verbais, temos aqui um obvio uso da regra demodus ponens: tomando A como O nada existe, B como O todo nao fazsentido e A B como Se o nada existisse, o todo nao faria sentido, aregra informa diretamente que o argumento e valido.

    Ainda, como veremos com detalhes nos proximos captulos, os conectivoslogicos se relacionam em formas logicamente equivalentes. E muito impor-tante te-las em conta para poder avaliar argumentos que sao propostos deforma tortuosa ou estilsticamente floreados.

    Por exemplo, como avaluar o argumento seguinte usando a regra demodus ponens?

    Ou Deus nao existe, ou a vida deixa de ter sentido.Mas a vida tem sentido.Logo, Deus existe.

    Para esclarecer esta questao, temos entao que ter em conta as equi-valencias entre conectivos logicos, que podem ser vistas como regras detransformacao:

    T1 A AT2 A B B AT3 A B B A

    25

  • T4 A B A BT5 A B B AT6 (A B) A BT7 (A B) A BT8 (A B) A BT9 A B (A B) (B A)T10 A B (A B) (A B)T11 A B A B

    Voltando ao exemplo acima, e claro que o argumento original e da forma:

    A B

    B

    Logo A.Usando as regras de equivalencia (ou transformacao), e aplicando (T11),

    vemos que a primeira premissa deste argumento pode ser reescrita como:A B A BEm seguida, aplicando (T1), obtemos:A B A Be de novo, usando (T5) e mais uma vez (T1), finalmente temos uma

    forma posvel de se aplicar modus ponens:A B B ADessa forma, o argumento e na verdade da forma:

    B A B Logo A.

    26

  • e da se conclue ser invalido, porque por modus ponens concluimos A apartir B A e B, ao inves de A.

    Um exemplo mais concreto (adaptado de A argumentacao em filosofia,D. Murcho, Crtica Revista de Filosofia e Ensino6 e o seguinte, carac-terstico da linguagem arrevesada de certos autores que pretendem esconderatras do estilo a falta de profundidade do que tem a dizer:

    O proprio fato de o universo existir, com tudo o que contem, euma evidencia segura de que os ceticos se colocam numa pers-pectiva a que poderamos chamar erronea. Na verdade, o co-nhecimento e uma possibilidade em aberto se o universo, ou otodo, existe, assegurando assim a facticidade do proprio ser e aeloquente negacao do nada. Por outro lado, abre-se um abismodilacerante no seio mesmo desta questao, pois a propria intangi-bilidade teorica do conhecimento se apresenta em alternativa a`intangibilidade da perspectiva cetica, o que nao pode correspon-der a` propria existencia do todo, nem a` negacao do nada.

    A discussao crtica deste argumento parece bastante complicada. Tudoporem sera esclarecido se colocarmos a descoberto o que realmente esta seafirmando. O resultado dessa analise e o seguinte:

    1) O proprio fato de o universo existir, com tudo o que contem, euma evidencia segura de que os ceticos se colocam numa perspectiva a quepoderamos chamar erronea.

    Traducao: O universo existe (e o autor pretende mostrar a partir daque os os ceticos estao enganados- mas isso nao e parte do argumento, so dasua esperanca).

    2) Na verdade, o conhecimento e uma possibilidade em aberto se ouniverso, ou o todo, existe, assegurando assim a facticidade do proprio sere a eloquente negacao do nada.

    Traducao: Se o universo existe, o conhecimento e possvel. (A tal fac-ticidade do proprio ser e a eloquente negacao do nada sao apenas rudoparalelo).

    3) pois a propria intangibilidade teorica do conhecimento se apresentaem alternativa a` intangibilidade da perspectiva cetica...

    Traducao: Ou o conhecimento nao e possvel, ou os ceticos estao enga-nados.

    (A parte Por outro lado, abre-se um abismo dilacerante no seio mesmodesta questao e mais uma vez apenas um anuncio do que se pretende, e

    6Disponvel em http://www.criticanarede.com/fa 2 apendice.html

    27

  • nao faz parte do argumento. A parte final o que nao pode corresponder a`propria existencia do todo, nem a` negacao do nada poderia ate ser partede um outro sub-argumento, mas tal como esta nao significa nada).

    Colocando entao as premissas e conclusao numa ordem conveniente, te-remos:

    Se o universo existe, o conhecimento e possvel.Ou o conhecimento nao e possvel, ou os ceticos estao enganados.Mas o universo existe.Logo, os ceticos estao enganados.

    Podemos agora analisar a validade do argumento, para depois discutirverdade das premissas: simbolizando as sentencas O universo existe porU , o conhecimento e possvel por C, e os ceticos estao enganados porE, chegamos a:

    U C C E U Logo ESabendo agora que este argumento e valido, a conclusao obviamente so

    deve ser admitida como verdadeira se se admitirem como verdadeiras todasas premissas; discutir a adequacao das premissas a` luz das ideias de tais etais autores ou de tal e tal teoria ou interpretacao e tarefa da Filosofia e naoda Logica, e e assim que se estabelece a diferenca entre elas.

    28

  • Captulo 2

    Os Paradoxos e seuSignificado no Pensamento

    2.1 Paradoxos Logicos e a Questao do Infinito

    O infinito tem sido historicamente a maior fonte de problemas nas cienciasformais (matematica, logica e mais modernamente nas ciencias da com-putacao), sendo os dilemas colocados pelo infinito conhecidos desde a an-tiguidade. Esta questao tem preocupado os filosofos e os matematicos atal ponto que o grande matematico alemao David Hilbert em seu conhecidodiscurso Uber das Unendliche (Sobre o Infinito) proferido na cidade deMunster em 1925, chegou a afirmar que ... e portanto o problema do in-finito, no sentido acima indicado, que temos que resolver de uma vez portodas.

    Hilbert sabia que a presenca do infinito ameaca a consistencia dos sis-temas matematicos (embora nao seja a unica causa possvel de problemasde fundamentos), e dedicou sua vida a tentar provar que o uso do infinitopoderia ser eliminado de uma vez por todas da matematica, dentro do cha-mado Programa de Hilbert. Como se sabe, Hilbert nao teve sucesso, tendosido suas pretensoes derrotadas pelos Teoremas de Godel, demonstrados porKurt Godel na decada de 30.

    O infinito e incompreensvel a` consciencia humana, primeiro porque naoexiste como entidade fsica (nao ha no universo nenhum exemplo de algumaclasse infinita, e de fato parece ser impossvel existir, pelas leis da fsica e damoderna cosmologia). O infinito so existe na imaginacao dos cientistas, queprecisam dele basicamente para elaborar teorias com generalidade suficientepara que possam ser interessantes. Por exemplo, se queremos uma teoria

    29

  • simples que possa se referir a` aritmetica, nao podemos supor que exista umultimo numero natural N , pois as operacoes elementares com valores meno-res que N claramente ultrapassam N (o resultado do produto de numerosmenores que N pode ser maior que N). Dessa forma, somos obrigados a tra-balhar com a hipotese de que a sequencia dos numeros naturais e ilimitada,ou seja, infinita de algum modo.

    Devemos a Aristoteles a distincao fundamental entre o infinito atual eo infinito potencial, como uma nocao de totalidade a ser indefinidamentecompletavel, e o infinito atual, uma totalidade infinita completada, quandotratamos uma classe infinita como um todo. Por exemplo, se queremosestudar as propriedades do conjunto N dos numeros naturais (o qual, emtermos de ordem, tambem nos referimos como ) estamos tratando com oinfinito atual, ou em outras palavras, assumindo-o como completado. Muitosparadoxos antigos (como os paradoxos de Zenao de Eleia) exploram estadistincao: se assumimos que o infinito atual e possvel, o paradoxo se resolve(como discutiremos a seguir).

    Segundo Aristoteles, aos matematicos bastava a nocao de infinito poten-cial, opiniao que ainda continuou a ser sustentada por H. Poincare, no seculoXX. Essa ideia, contudo, nao corresponda a` realidade da pratica matematica,ja que a nocao de infinito atual e essencial a muitas teorias matematicas.

    O infinito atual apenas recebeu um tratamento matematico apropriadocom a teoria dos conjuntos de Cantor no seculo XIX, embora suas ideiastenham sido bastante criticadas e incompreendidas. Mas assumir que oinfinito atual existe tem seu preco, e cria outros paradoxos, como veremosmais adiante.

    Podemos ver o mecanismo de prova por inducao que sera bastante usadoneste livro como um mecanismo que permite passar, dentro da aritmetica, doinfinito potencial ao infinito atual. Dessa forma, na matematica usual, naoprecisamos nos preocupar com a distincao entre infinito atual e potencial,embora essa distincao continue a ser um problema filosofico interessante.

    Quando assumimos o infinito atual, como mostrou o matematico russoGeorg Cantor, criador da moderna teoria dos conjuntos, somos obrigadosa admitir que existe nao um, mas infinitos tipos de infinito. Por exemplo,Cantor mostrou que a quantidade infinita de numeros naturais, embora sejaa mesma quantidade dos numeros racionais, e distinta da quantidade infinitade numeros reais.

    Vamos ver a seguir vamos alguns tipos de propriedades e de proble-mas que ilustram o carater paradoxal do infinito, antes de passarmos aosoutros paradoxos que envolvem mecanismos mais sofisticados (como a auto-referencia, que como veremos, encerra de algum modo uma ideia de regresso

    30

  • infinito).

    2.2 O infinito paradoxal

    2.2.1 O Paradoxo de Galileu, ou a confusao entre as partese o todo

    Consta do folclore que Galileu Galilei haveria ficado muito intrigado com aseguinte questao: se o conjunto dos numeros pares esta contido propriamenteno conjunto dos numeros naturais, deve haver menos pares que naturais (porexemplo, os mpares nao sao pares, e eles sao infinitos).

    Porem se fizermos a seguinte identificacao:

    2 7 14 7 26 7 3

    ...2n 7 n

    ...

    podemos fazer o conjunto dos pares ocupar todo o conjunto dos naturais.Como e possvel que a parte nao seja menor que o todo?

    Justamente, falhar a propriedade de que o todo seja maiorque as partes e uma caracterstica das colecoes infinitas, o queexplica em parte nossa dificuldade em compreende-las.

    2.2.2 O Passeio de Cantor e os infinitos infinitos

    Durante muito tempo (ate pelo menos o seculo XIX) pensou-se que osnumeros racionais nao poderiam ser enumeraveis (ou contaveis) como osnaturais, uma vez que entre cada dois racionais

    a

    bec

    dexiste sempre outro,

    que e sua media aritmetica:a.d+ b.c

    2.b.de portanto entre dois racionais ha infinitos outros.

    Georg Cantor mostrou por um artifcio simples e genial que, emborarealmente entre cada dois racionais haja infinitos outros, basta contarmosos racionais de uma maneira diferente da usual (por usual entendemos a

    31

  • ordem dos numeros reais, vistos como pontos de uma reta) para que pos-samos nos convencer que ha precisamente tantos racionais quanto numerosnaturais. Para isso, estabeleceremos uma enumeracao dos numeros racionaispositivos (maiores que zero), e a partir da, e possvel (por um argumentoanalogo a`quele da prova da similaridade entre os pares e os naturais) provara enumerabilidade dos racionais:

    1/1 // 1/2

    }}{{{{{{{{

    1/3 // 1/4

    }}{{{{{{{{

    1/5 . . .

    2/1

    2/2

    =={{{{{{{{2/3

    }}{{{{{{{{

    2/4

    =={{{{{{{{2/5 . . .

    3/1

    =={{{{{{{{3/2

    }}{{{{{{{{

    3/3

    =={{{{{{{{3/4 3/5 . . .

    4/1

    4/2

    =={{{{{{{{4/3 4/4 4/5 . . .

    5/1

    =={{{{{{{{5/2 5/3 5/4 5/5 . . .

    ......

    ......

    ...

    Nessa tabela, mesmo que algumas fracoes equivalentes aparecam variasvezes (como, por exemplo, 1/1, 2/2, 3/3, . . . etc.), todos os racionais positivoscertamente aparecem, e cada um recebe um numero natural, como mostrao caminho tracado no diagrama acima (chamado de passeio de Cantor).

    E possvel dar uma funcao muito simples que calcula exatamente aposicao de cada fracao na lista: dada a fracao mn sua posicao sera dadapor:

    J(m,n) =12

    [(m+ n)(m+ n+ 1)] +m

    Por outro lado, os numeros reais nao podem, de fato, ser enumerados: su-ponhamos, para poder chegar a um absurdo, que os reais sejam enumeraveis.Se assim o fosse, os reais no intervalo fechado [0, 1] tambem seriam. E dentrodessa suposicao imaginemos que temos uma lista completa deles usando a

    32

  • expansao decimal, de modo que se o numero nao e uma dzima como 0, 345escrevemo-lo com infinitos zeros a` direita 0, 345000 . . .; mais ainda, o numero1 e representado como 0, 999 . . . :

    Ordem Real

    1 0, a11 a12 a13 a14 . . . a1n . . .

    2 0, a21 a22 a23 a24 . . . a2n . . .

    3 0, a31 a32 a33 a34 . . . a3n . . .

    4 0, a41 a42 a43 a44 . . . a4n . . .

    ......

    m 0, am1 am2 am3 am4 . . . amn . . .

    ......

    onde cada aij representa um dgito entre 0 e 9.Vamos construir um outro numero real d em [0, 1] que nao pertence a

    esta lista: para cada dgito aij considere o dgito aij = aij + 1 (definindo,no caso em que aij = 9, o dgito aij = 0). Definimos entao d como:

    d = 0, a11 a22 a33 . . . ann . . .

    Observando que aij 6= aij , e claro que d nao esta na lista, pois difere deum dgito de cada um dos outros da lista. Com efeito, d difere do primeironumero da lista (ao menos) no primeiro dgito, do segundo numero da lista(ao menos) no segundo dgito e, em geral, do n-esimo numero da lista (aomenos) no n-esimo dgito. Portanto d, um numero real entre 0 e 1, diferede todos os numeros da lista acima, o que e um absurdo, pois havamossuposto que lista era completa. Assim se prova que nao podemos enumeraros reais, que constituem entao um conjunto infinito maior (isto e, com maiselementos) que os naturais e racionais.

    Chamamos o infinito dos reais de infinito nao enumeravel.Cantor provou que estes sao apenas os primeiros de uma quantidade

    infinita de infinitos, mostrando basicamente que o conjunto das partes deum conjunto infinito de uma dada ordem produz um conjunto infinito deordem superior.

    33

  • O o metodo usado na demonstracao acima da nao-enumerabilidade dointervalo real [0, 1] e chamado de metodo diagonal de Cantor (observe queo numero d e construdo modificando a diagonal da matriz infinita definidaacima), e e utilizado frequentemente na area da Computabilidade, com asmodificacoes necessarias em cada caso.

    2.2.3 O Hotel de Hilbert: como a intuicao nos engana

    Uma brincadeira instigante que ilustra muito bem como nos devemos acau-telar quando se trata do infinito, e como podemos errar redondamente aotentar manter nossa intuicao acostumada ao mundo dos fatos nesse mundovirtal do infinito, e o chamado Hotel de Hilbert: existe um certo hotel,com um numero infinito e enumeravel de quartos

    Q1, Q2, Q3, . . . Qn, . . .

    Por sorte do proprietario, os quartos estao todos lotados.Devemos, e claro, supor que este hotel existiria num mundo possvel onde

    o numero de habitantes tambem fose infinito. No meio da noite chega maisum hospede sem reserva. O gerente simplesmente pede a cada hospede quese mude para o quarto da direita, liberando o quarto Q1 para o viajanteinesperado.

    Na outra noite chegam dois novos hospedes, e o gerente pede agora acada hospede que se mude dois quartos a` direita, liberando os quartos Q1e Q2, e assim por diante. Uma noite porem chega um onibus de excursao(bastante grande) trazendo infinitos novos hospedes sem reserva.

    O gerente agora pede a cada hospede que se mude para o quarto cujonumero seja o dobro do seu (de Qn para Q2n), liberando espaco para todos.

    Assim ele continua recebendo quantos hospedes novos quiser, ate queuma noite (hospedes inesperados sempre chegam a` noite) estaciona umonibus da Cia. Real de Turismo, e ele se desespera. Por que?

    2.2.4 O Lema de Konig

    O Lema de Konig e uma forma (valida somente para conjuntos enumeraveis)do chamado Axioma da Escolha, que propoe que todo conjunto pode serbem-ordenado (isto e, ordenado de forma que quaisquer de seus subconjuntostenha um primeiro elemento com relacao a esta ordem).

    O Lema de Konig afirma que1

    1Os conceitos formais de arvore, ramo, descendente, nos e nos sucessores serao definidosposterirmente neste livro.

    34

  • Toda arvore infinita, que seja finitamente gerada (isto e, talque cada ramo tenha um numero finito de descendentes) possuipelo menos um ramo infinito.

    Damos a seguir duas aplicacoes interessantes do Lema de Konig :

    1. O Problema da Descendencia

    Se a vida na Terra nao se acabar, existe uma pessoa que vai ter infinitosdescendentes.

    Sugestao: pense numa arvore e use o Lema de Konig.

    2. O Problema da Caixa de Bolas

    Uma caixa contem inicialmente uma bola marcada com um numeroarbitrario. Imagine que podemos sempre trocar uma bola por umaquantidade qualquer (finita) de bolas, mas marcadas com um numeromenor. Por exemplo, podemos trocar uma bola marcada com 214por 1.000.000 de bolas marcadas com 213, e assim por diante. Nocaso porem de retirarmos uma bola marcada por zero, nao colocamosnenhuma outra. Sera possvel por esse processo esvaziar a caixa?

    Sugestao: pense numa arvore cujos nos sejam as bolas, e cujos nossucessores sejam as que foram colocadas em seu lugar. Use o Lema deKonig.

    2.3 Os Paradoxos Logicos

    2.3.1 O valor e o significado dos paradoxos

    Varios exemplos na literatura e na pintura, como os quadros do pintor belgaRene Magritte e os desenhos do holandes M. C. Escher, fazem uso da nocaode auto-referencia e de seu carater paradoxal como elemento de estilo. Numapassagem do Ulisses de James Joyce, por exemplo, uma das personagenscentrais, Molly Bloom, questiona o proprio autor.

    Um dos mais simples, e provavelmente o mais antigo, dos paradoxoslogicos e o Paradoxo do Mentiroso, formulado por um pensador cretense doseculo VI A.C., Epimenides, que dizia: Todos os cretenses sao mentirosos.

    Esta sentenca, so superficialmente problematica, e frequentemente con-fundida com o paradoxo de Eubulides de Mileto, que afirma Eu estoumentindo, esta sim, uma afirmacao paradoxal e que esta na raiz de umdos resultados da logica formal mais importantes do seculo XX. A versao

    35

  • de Epimenides figura na Bblia, tornando a logica a unica disciplina comreferencia bblica: Os cretenses sao sempre mentirosos, feras selvagens,glutoes preguicosos, adverte a epstola de Sao Paulo a Tito (1:12-13), cha-mando a atencao para o fato de que o proprio cretense Epimenides o afirma.

    O paradoxo do mentiroso na versao de Eubulides (na forma Eu estoumentindo ou Esta sentenca e falsa), longe de ser uma simples banalidadedo pensamento, esta ligado, como veremos, a um dos teoremas mais profun-dos do pensamento logico e matematico, o Teorema de Godel, formulado em1936.

    Pode parecer que a auto-referencia e a causa destes paradoxos; contudo,a auto-referencia, por si mesma, nao e nem sempre responsavel pelo caraterparadoxal das assercoes, nem mesmo suficiente para causar paradoxos: porexemplo, se um cretense afirma Os cretenses nunca sao mentirosos, ou seEubulides afirma Nao estou mentindo estas afirmacoes auto-referentes saoapenas pretensiosas.

    Por outro lado, mesmo que abolssemos a auto-referencia nao elimi-naramos os paradoxos: por exemplo, um paradoxo conhecido desde a epocamedieval imagina o seguinte dialogo entre Socrates e Platao:

    Socrates: O que Platao vai dizer e falso

    Platao: Socrates acaba de dizer uma verdade.

    Nenhuma das sentencas pode ser verdadeira, e nem falsa; nesse caso, acausa do paradoxo e a referencia cruzada ou circular, e nao a auto-referencia.Mas nem mesmo a circularidade da referencia e sempre responsavel pelosparadoxos: uma simples mudanca no dialogo entre Socrates e Platao (bastatrocar falso por verdadeiro e vice-versa) elimina o paradoxo, embora acircularidade continue presente.

    Na realidade, um dos problemas logicos mais difceis e determinar quaissao as condicoes que geram paradoxos, alem das tentativas de eliminar, so-lucionar ou controlar os ja existentes. Este problema e, em muitos casos,insoluvel, e tal fato tem obviamente um enorme significado para o pensa-mento cientfico em geral, e para a logica em particular.

    Apresentamos aqui alguns dos mais conhecidos paradoxos, antinomiase crculos viciosos. A analise dos paradoxos serve como motivacao ao es-tudo da logica matematica, que poderia ser pensada como a formalizacaodo pensamento racional livre de paradoxos, pelo menos dos paradoxos quea destroem.

    Se aceitamos as leis basicas da logica tradicional (isto e, leis que regem osoperadores ou, e, se... entao, nao, para todo, existe), que sao

    36

  • o objeto de estudo deste livro, ha basicamente duas maneiras de resolverum paradoxo:

    1. a primeira (seguindo uma tradicao iniciada pelo logico ingles BertrandRussell) que propoe que certos enunciados paradoxais deixem de serconsiderados como enunciados propriamente ditos;

    2. a segunda (a partir de ideias devidas ao logico polones Alfred Tarski)propoe que sejam considerados como regulares os enunciados ondenao ocorre o predicado de ser verdade (ou assemelhados, como serfalso); os enunciados lingusticos que nao sao regulares fazem parteda metalinguagem.

    Costuma-se ainda fazer distincao, na literatura, entre paradoxos e anti-nomias: estas seriam as contradicoes logicas, como o Paradoxo de Russell edo Mentiroso, enquanto os paradoxos propriamente ditos seriam os enuncia-dos que nao envolvem contradicao, mas desafiam nossas intuicoes ou crencas.

    As situacoes paradoxais apresentadas a seguir sao formuladas na lin-guagem natural (isto e, em portugues corrente); como exerccio, voce devetentar analisa-las, informalmente, e decidir se se trata de antinomia, se existesolucao, ou simplesmente de uma situacao paradoxal que escapa a` intuicao.

    Os problemas aqui encontrados servirao de motivacao para que seja intro-duzida uma linguagem formal, muito mais simples que a linguagem natural,mas tambem muito mais exata, e que com base nesta linguagem sejam for-muladas cuidadosamente as regras e leis que regem a logica. Dessa forma,podemos entao considerar a logica nao como uma teoria que resolve todosos paradoxos, mas como uma disciplina que aprende com eles e que tentaerigir um domnio em que se minimizem seus efeitos.

    2.3.2 Paradoxos e antinomias mais conhecidos

    1. Numa folha de papel em branco escreva: A sentenca do outro ladoe verdadeira. No outro lado escreva: A sentenca do outro lado efalsa. As sentencas sao verdadeiras ou falsas?

    2. (Paradoxo de Bertrand Russell, numa carta a G. Frege, em 1902) Con-sidere o conjunto de todos os conjuntos que nao sao membros de simesmos. Este conjunto e membro de si proprio?

    3. (Paradoxo do Barbeiro) Um barbeiro foi condenado a barbear todose somente aqueles homens que nao se barbeiam a si proprios. Quembarbeia o barbeiro?

    37

  • 4. (Paradoxo de Kurt Grelling) Podemos dividir os adjetivos em duasclasses: autodescritivos e nao-autodescritivos. Por exemplo, sao auto-descritivos os adjetivos polisslabo, escrito, e nao-autodescritivosos adjetivos monosslabo, verbal, etc. O adjetivo nao-autodescriti-vo e autodescritivo ou nao-autodescritivo?

    5. Qual e o menor numero inteiro que nao se pode expressar com me-nos de quinze palavras ? (conte quantas palavras expressam estenumero).

    6. Qual e o menor numero inteiro que nao se menciona de nenhumamaneira nestas notas? Existe tal numero?

    7. Se nao existe, estas notas mencionam todos os numeros inteiros?

    8. Analise a seguinte prova da existencia de Deus: escreva Esta sentencae falsa ou Deus existe. Se a sentenca toda for falsa, as duas partesseparadas por ou sao falsas, portanto a parte Esta sentenca e falsae falsa; sendo falso que Esta sentenca e falsa obriga a que Estasentenca e falsa seja uma sentenca verdadeira, tornando verdadeira asentenca toda, contradicao.

    Portanto a sentenca toda e verdadeira, logo uma de suas partes everdadeira. E claro que a primeira parte nao pode ser verdadeira(pois isto contraria o que ela esta afirmando, isto e, a sua falsidade),logo a segunda parte deve ser verdadeira, isto e, Deus existe.

    9. Um crocodilo raptou um bebe de sua mae e prometeu devolve-lo se amae respondesse corretamente sim ou nao a` questao : Vou comero bebe?. O que a mae respondeu e o que fez o crocodilo?

    10. Um juiz determinou que uma testemunha respondesse sim ou naoa` questao Sua proxima palavra sera nao? Qual e a resposta datestemunha?

    11. (Dilema do Enforcado) Os prisioneiros de um certo reino sao sempredecapitados ou enforcados. Um prisioneiro conseguiu o privilegio deformular uma afirmacao; se fosse falsa, ele seria enforcado, e se verda-deira, decapitado. Qual afirmacao o prisioneiro poderia formular paranao ser executado?

    12. (Paradoxo de Protagoras) Um jovem advogado fez o seguinte tratocom seu mestre, Protagoras: ele so pagaria pela sua instrucao se con-seguisse vencer o primeiro caso. Como ele nunca aceitava nenhum

    38

  • caso, Protagoras o acionou, e ele teve que se defender. Quem ganha acausa?

    13. Construa um supermicrocomputador que seja:a) faclimo de carregar; b) economico e simples de construir; c) infalvele universal; d) cujo sistema operacional seja tao simples que qualquercrianca o opere.

    (Sugestao: uma moeda, escrita sim de uma lado e nao do outro.Faca qualquer pergunta a` maquina, e em seguida uma nova perguntaapropriada.)

    14. (Paradoxo do Livro sem Fim) Sobre uma mesa ha um livro. Suaprimeira pagina e bem espessa. A espessura da segunda e metadeda da primeira, e assim por diante. O livro cumpre duas condicoes:primeiro, que cada pagina e seguida por uma sucessora cuja espessura emetade da anterior; e segundo, que cada pagina e separada da primeirapor um numero finito de paginas. Este livro tem ultima pagina?

    15. (Paradoxo do Enforcado) Um juiz sentenciou um reu a` morte pelaforca, impondo a seguinte condicao: que o reu seria enforcado de sur-presa (isto e, sem poder saber em que dia), entre segunda e sexta feirada proxima semana, ao meio dia. Aconteceu a execucao?

    16. (Paradoxo do Ovo Inesperado) Imagine que voce tem duas caixas a` suafrente, numeradas de 1 a 2. Voce vira as costas e um amigo escondeum ovo em uma delas. Ele pede que voce as abra na ordem, e garanteque voce vai encontrar um ovo inesperado. E claro que o ovo nao podeestar na caixa 2 (pois nao seria inesperado), e portanto essa caixa estafora. So pode estar na 1. Voce vai abrindo as caixas e encontra o ovona caixa 2. Ele estava certo, mas onde esta seu erro de raciocnio?

    17. (Paradoxo da Confirmacao de Hempel) Suponha que um cientistaqueira provar que todo papagaio e verde. Essa afirmacao equivale logi-camente a tudo que nao e verde nao e papagaio e portanto todos osexemplos que confirmam a segunda sentenca, confirmam a primeira.Um gato preto e branco nao e verde, e nao e papagaio, e portantoconfirma que todo papagaio e verde. Onde esta o erro?

    18. Os seguintes paradoxos sao devidos ao logico Jean Buridanus (de seulivro Sophismata, do seculo XIV). Vamos admitir algumas hipotesesque parecem bastante razoaveis:

    39

  • se sabemos alguma coisa, entao acreditamos nisso; se acreditamos que alguma coisa e verdadeira, entao acreditamos

    nessa coisa;

    se alguma coisa e falsa, entao nao pode fazer parte de nosso co-nhecimento.

    Analise agora as sentencas abaixo, conhecidas como Paradoxos do co-nhecimento:

    (a) Ninguem acredita nesta sentenca. Mostre que esta sentencanao faz parte do conhecimento de ninguem.

    (b) Eu nao acredito nesta sentenca. E possvel que voce acreditenesta sentenca?

    (c) Ninguem conhece esta sentenca. Mostre que esta sentenca everdadeira, mas nao faz parte do conhecimento de ninguem.

    2.3.3 O que podemos aprender com os paradoxos?

    Na secao precedente optamos por colocar os paradoxos como questoes, de-safiando voce a tentar resolve-los. Nao mostramos as solucoes, porque emgeral elas nao existem: os paradoxos nao podem ser resolvidos como simplesexerccios.

    Na verdade os paradoxos colocam problemas que vao muito alem dacapacidade do conhecimento da logica e mesmo da ciencia. Portanto, naodevemos nos surpreender com o fato de que os paradoxos possam conviverlado a lado com a logica; o que podemos concluir e que o jardim organi-zado e seguro da logica representa apenas uma parte da floresta selvagemdo pensamento humano. Dentro deste pequeno jardim podemos usar nossoinstrumento formal, que e o que sera introduzido neste livro, e atraves delecolher algumas belas flores, algumas ate surpreendentemente bonitas e cu-riosas; muitas outras podem estar perdidas na floresta, esperando ser des-cobertas. Dessas, este livro nao vai tratar, mas esperamos que voce pelomenos compreenda onde estao os limites do jardim da logica.

    40

  • Captulo 3

    A Logica Proposicional-Linguagem e Semantica

    3.1 Linguagens proposicionais

    3.1.1 A ideia da forma logica

    Apesar de diversos autores e obras tentarem apresentar a logica como umateoria do raciocnio, os paradoxos e antinomias, como vimos, mostram quantoe difcil dominar a razao, e quanto as opinioes pre-concebidas nos levam aoengano. Mais ainda, como ja sugerimos, e como veremos mais tarde ha defato limites para conhecimento e para o alcance do raciocnio.

    Pelo que vimos tambem no Captulo 1, a Logica e o unico instrumentopelo qual podemos avaliar argumentos de forma global, dado que a Logicaconsiste num aparato a priori e portanto, universal. E mais interessantepor isso, e para nossos propositos, considerar a logica como uma teoria dacomunicacao ou exposicao do raciocnio, isto e, uma teoria da argumentacaovista como o encadeamento de sequencias de sentencas por meio de uma(ou varias) relacao do tipo . . . segue de . . .. Vimos tambem como a formalogica de certo modo realiza este aparato a priori e trabalha a nosso favor,permitindo que passemos de contextos obscuros a outros mais claros quandoem duvida sobre a validade de um argumento: por um lado, podemos cons-truir contra-exemplos eloquentes e definitivos contra argumentos invalidos,gracas a` forma logica, e por outro podemos ter ja um arsenal de argumentoscristalinamente validos por meio de demonstracoes, de novo gracas a` formalogica. Precisamos entao nos preocupar com tres tarefas basicas:

    1. Especificar uma linguagem simbolica para que possamos expressar ar-

    41

  • gumentos de forma economica e universal;

    2. Esclarecer os mecanismos que caracterizem argumentos, separando osargumentos validos dos invalidos; e

    3. Definir as nocoes de provas ou demonstracoes, isto e, as sequencias deargumentos que posam ser vistos como universalmente validos.

    Como vimos, devemos nos ater a`s sentencas ditas declarativas, evitandoassim sentencas interrogativas, temporais, poeticas, opinativas, bem comosuplicas, ordens, suspiros, intencoes, etc.

    A rigor, podemos tambem considerar no rol das sentencas declarativas assentencas performativas, usadas por exemplo em linguagens computacionais,que sao tambem sentencas matematicas, mas tais sentencas performativaspodem ser interpretadas (ou seja, reescritas) como sentencas declarativas.

    Precisamos obter uma linguagem precisa, que possa ela mesma ser objetode exame rigoroso. Iniciamos nossa analise com os argumentos que enolvemproposicoes estudando assim a logica proposicional classica, ou calculo pro-posicional, ou ainda calculo sentencial a qual denotaremos por LPC.

    Mais tarde nossa linguagem sera expandida para levar em conta aspropriedades de indivduos, expressas por meio de relacoes envolvendo in-divduos e variaveis, estudando entao a logica de predicados tambem cha-mada de calculo de predicados ou logica de primeira ordem.

    A linguagem rigorosa e os metodos abstratos que iremos introduzir rea-lizam a ideia da forma logica que vimos discutindo, no sentido de se ca-racterizar a Logica como um instrumento independente para o conhecimentocomo queria Kant:

    ...uma ciencia a priori das leis necessarias do pensamento,nao, porem, relativamente a objetos particulares, mas a todos osobjetos em geral...

    3.1.2 Uso, mencao e confusao

    Uma dstincao que pode dar bastante complicacoes se nao a temos clarae a diferenca entre uso e mencao, que e essencial em Logica. Esta e adiferenca entre usar uma expressao lingustica para se referir a alguma coisa(ou pessoa) e mencionar, isto e, falar a respeito dessa coisa (pessoa). Quandomencionamos (ou falamos sobre) um objeto, em geral usamos uma expressaolingustica que nomeia ou de algum modo se refere ao objeto. Como regra,o nome ou a expressao usada nao coincide com a coisa a que se refere, e essa

    42

  • coisa por sua vez e mencionada ao se usar seu nome. Quando falamos sobreSocrates, por exemplo, obviamente usamos a expressao Socrates e nao oproprio Socrates corporalmente. Desse modo, na sentenca:

    (1) O Brasil e pequeno.a palavra Brasil esta sendo usada para falar do Brasil, afirmando que

    ele e pequeno (note que nao importa absolutamente aqui se a sentenca everdadeira ou falsa). Por outro lado, na sentenca

    (2) Brasil tem 6 letras.nao mais estamos falando do Brasil, mas da expressao que nomeia o pais

    usamos o nome do pas e nao o proprio pas: em (1) a expressao Brasil estasendo usada, e em (2) esta sendo mencionada.

    Segundo uma convencao estabelecida pelo logico e filosofo Willard VanOrmann Quine em Mathematical Logic (1979), a sintaxe para nomear umaexpressao (palavra, frase ou sentenca) e coloca-la entre aspas simples. Assim,podemos dizer que:

    (3) O nome de Brasil e Brasil.o que e totalmente diferente de dizer:(4) O nome do Brasil e Brasil.Mas podemos continuar, e criar nomes para nomes de nomes, e assim

    por diante:(5) O nome de Brasil e Brasil.Ou ainda:(6) O nome do nome do Brasil e Brasil.A confusao uso/mencao consiste em usar uma palavra ou expressao

    quando ela devia estar sendo nomeada, e nomea-la quando ela esta sendousada.

    Na pagina 24 de Mathematical Logic Quine explica:

    Para mencionar Boston, usamos Boston ou um sinonimo,e para mencionar Boston usamos Boston ou um sinonimo.Boston contem seis letras e um par de aspas simples; Bostoncontem seis letras e nao tem aspas. E Boston contem cerca de800.000 pessoas.

    No primeiro caso esta escrito Boston, e ele esta mencionando a ex-pressao Boston. No segundo caso esta escrito Boston, e ele esta mencio-nando a expressao Boston. No terceiro caso, esta escrito Boston , e ele estausando o que a expressao Boston denota, a saber, a cidade de Boston.

    A importancia desse cuidado em Logica aparece quando aplicamos ocriterio (ou definicao) de verdade. Ao classificar uma sentenca como verda-

    43

  • deira ou falsa, nao estamos usando a sentenca, mas mencionando-a, comopor exemplo:

    (7) O Brasil e pequeno e falsa.Um outro exemplo, onde isso fica ainda mais sutil, e o famoso exemplo:(8) A neve e branca e verdadeira se e somente se a neve e branca.significando que A neve e branca nomeia uma expressao verdadeira se

    e somente seu uso e coerente, ou seja, aquilo que entendemos como neve ealguma coisa de fato branca.

    3.1.3 Linguagem, metalinguagem, variaveis e metavariaveis

    No Captulo 1 ja mencionamos a distincao entre linguagem objeto e metalin-guagem. A linguagem-objeto e aquela que queremos estudar, para as quaisas definicoes serao propostas, a qual propomos esclarecer, e a respeito daqual pretendemos conhecer. A metalinguagem, como dissemos, e o ambienteonde isso pode ser realizado.

    Na verdade, estamos aqui usando os conceitos de linguagem em nveisdiferentes, e da a distincao dada pelo prefixo meta. A ideia nao e muitodistinta daquela entre uso e mencao, a nao ser que aqui se trata de um usoglobal para a linguagem, e de uma mencao global para a metalinguagem.Poderemos, se for necessario, pensar na metametalinguagem, mas isso soseria tentado se houvesse necessidade.

    A linguagem permite introduzir de maneira muito intuitiva a nocao devariaveis: mesmo a linguagem natural permite os pronomes, que sao umaespecie de buracos a ser preenchidos com nomes adequados. Se digo, porexemplo, Ele esta furioso nao faz sentido trocar ele, por exemplo, pelonumeral 5. Faz sentido, no caso, trocar ele pelo nome de uma pessoa dosexo masculino. So assim a sentenca seria candidata a poder ser classificadacomo verdadeira ou falsa; caso contrario, sequer faz sentido.

    As variaveis sao tao importantes, que praticamente a ciencia modernadeve a elas sua vitalidade: nao fossem as variaveis terem