lógica e forma de vida - wittgenstein e a natureza da necessidade lógica e da filosofia

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L GI C AE F OR MADE VI DAWi t t g e n s t e i n e a N a t u r e z a d a N e c e s s i d a d e L g i c ae d a F i l o s o f i aAl e x a n d r e No r o n h a Ma c h a d oUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASCURSO DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIAL GI C AE F OR MADE VI DAWi t t g e n s t e i n e a N a t u r e z a d a N e c e s s i d a d e l g i c ae d a F i l o s o f i aAcadmico:Alexandre Noronha MachadoOrientador:Prof. Dr. Paulo E. FariaTeseapresentadaaoCursodePs-GraduaoemFilo-sofiadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul como quesito parcial para a obteno do grau de Doutor em FilosofiaPorto Alegre2004ParaAna e Guilhermee memria deGordon P. Bakerund die Pflicht der Philosophie war: das Blendwerk, dasausMideutungentsprang,aufzuheben,sollte auchnochsovielgepriesenerundbeliebterWahn dabei zu nichte gehen.Kant, Kritik der Reinen VernunftUndhierwiedersollmaneinfachberichten,wasman siehtundnichtfrchten,damandamiteine bedeutungsvolleundrichtigeAnschauunguntergrbt; oderauch,seineZeitmitetwasberflssigem verliert. Wittgenstein, PGEs wre nicht ganz unsinnig zu sagen, die Philosophie seidieGrammatikderWrtermssenund knnen;dennsozeigtsie,wasaprioriunda posteriori ist.Wittgenstein, CEEinlchelnderMundlcheltnurineinem menschlichen Gesicht.Wittgenstein, PINDICEAGRADECIMENTOS.................................................................................................................................. viiiINTRODUO................................................................................................................................................ 1Parte ILGICA E SUBSTNCIACaptulo I. ANLISE E SUBSTNCIA........................................................................................................ 91. Sentido e Verdade ............................................................................................................................. 92. Anlise e Sentido Determinado ...................................................................................................... 153. Substncia ....................................................................................................................................... 21Captulo II. FIGURAO, PENSAMENTO E FORMA LGICA............................................................ 261. Figurao........................................................................................................................................ 262. Pensamento ..................................................................................................................................... 313. Forma Lgica.................................................................................................................................. 354. Forma, Contedo e Necessidade.................................................................................................... 395. Aplicao da Lgica e Pensamento ............................................................................................... 42Captulo III. FORMA GERAL DA PROPOSIO..................................................................................... 531. Negao e Espao Lgico .............................................................................................................. 532. Operao de Verdade ..................................................................................................................... 583. Quantificao.................................................................................................................................. 644. Forma Geral da Proposio........................................................................................................... 675. Nmeros e Equaes....................................................................................................................... 706. Funes e Operaes...................................................................................................................... 78Captulo IV. LGICA E FILOSOFIA.......................................................................................................... 851. Tautologias e Contradies............................................................................................................ 852. Proposies da Lgica.................................................................................................................... 883. Mostrar............................................................................................................................................ 954. Proposies da Filosofia da Lgica............................................................................................... 985. Terapia Anti-Metafsica?.............................................................................................................. 1046. Metafsica Inefvel?...................................................................................................................... 1097. Choque Categorial: Sentido e Absurdo ....................................................................................... 1138. Significado e Uso .......................................................................................................................... 1199. Misticismo e Gramtica................................................................................................................ 125NDICE VIIParte IILGICA E FORMA DE VIDACaptulo V. ENTRE O A PRIORI E O EMPRICO ................................................................................... 1321. Cores e Anlise ............................................................................................................................. 1322. Necessidade Elementar................................................................................................................. 1343. A Necessidade de uma Nova Lgica ............................................................................................ 1424. Fenomenologia.............................................................................................................................. 1465. Linguagem Fenomenolgica ........................................................................................................ 1506. Sintaxe Lgica e Gramtica ......................................................................................................... 1547. Semelhanas de Famlia e Determinao Absoluta.................................................................... 161Captulo VI. REALISMO, NORMATIVIDADE E LGICA................................................................... 1681. Significao e Mente..................................................................................................................... 1682. Definio Ostensiva, Explicao e Determinao Absoluta....................................................... 1743. Lgica Sublime: Clculo .............................................................................................................. 1884. Lgica Sublime: Proposio e Possibilidade .............................................................................. 1955. Realismo........................................................................................................................................ 2036. Realismo e Significao................................................................................................................ 2097. Princpio do Contexto................................................................................................................... 216Captulo VII. REGRAS E FORMA DE VIDA........................................................................................... 2231. Normatividade e Normalidade ..................................................................................................... 2232. Compreenso................................................................................................................................. 2263. Ler.................................................................................................................................................. 2344. Determinao Lgica.................................................................................................................... 2405. Mquina Lgica ............................................................................................................................ 2466. Interpretao................................................................................................................................. 2507. Regularidade, Prtica e Publicidade........................................................................................... 2538. e assim por diante................................................................................................................. 2669. Fundamento, Verdade e a Autonomia da Gramtica.................................................................. 27710. Compulso e Necessidade .......................................................................................................... 29111. Acordo ......................................................................................................................................... 30112. Linguagem Privada..................................................................................................................... 310Captulo VIII. GRAMTICA E FILOSOFIA............................................................................................ 3221. Critrio .......................................................................................................................................... 3222. Convencionalismo......................................................................................................................... 3333. Jogos de Linguagem ..................................................................................................................... 3444. Relativismo Lgico........................................................................................................................ 3495. Evitando o Realismo ..................................................................................................................... 3576. Evitando Teorias: Gramtica e Filosofia.................................................................................... 3637. Deduo e Objetividade................................................................................................................ 3808. Evitando o Idealismo .................................................................................................................... 384CONCLUSO.............................................................................................................................................. 409BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................................................... 414AGRADECIMENTOSAgradeo primeiramente ao professor, orientador e amigo Paulo E. Faria. Seus comentrios e criticas ajuda-ram a determinar os contornos dessa tese de uma forma que mal posso avaliar. Seu estmulo ao meu trabalho sempre chegounahora enamedida corretas.Suascrticas agudas emuitobem informadas,mesmoquando resultaramemimpassesirremediveis,semprepropiciaramocasiesvaliosasparamelhorarareflexo.Sua obstinada fidelidade ao princpio de caridade me levou, em ocasies importantes, a reformular interpretaes e argumentos.Agradeo CAPES, por me ter concedido uma bolsa de doutorado, sem a qual o presente trabalho no poderia ter sido realizado.AgradeotambmaoCNPq,pormeterconcedidoumabolsadedoutoradosanduchepararealizar partedosmeusestudosporumanonaInglaterra,ondefuisupervisionadopeloProf.Dr.GordonP.Baker(falecidoem2002).Asatividadesrealizadasnessaocasioforamextremamenteimportantesparaodesen-volvimento do presente trabalho, e tambm constituram um aprendizado de importantes aspectos no teri-cos da vida acadmica.Lamento no poder agradecer pessoalmente ao Prof. Dr. Gordon P. Baker, por sua preciosa orientao atravs dos textos de Wittgenstein e por sua maneira sempre sutil de criticar e sugerir novas perspectivas de abordagem dos pontos em questo. Sua ausncia, para a filosofia e, especialemnte, para os estudos de Witt-genstein e Descartes, lamentvel, mas no apenas por causa de sua competncia filosfica, mas porque sua presena era uma garantia de um esprito acadmico rigoroso, cordial e alegre.Por fim, agradeo minha esposa, Ana Paula, por inmeras e valiosas discusses filosficas, nas quais suascrticassempremeforaramareverpontosimportantes,querporrazesdecontedo,querporrazes formais. Seus conhecimentos dos textosde Frege me foramvaliosos emvriasocasies.Seu apoiopessoal, decisivo, foi e simplesmente inestimvel.A.N.M.Santa Maria, Maio de 2004INTRODUOQual a natureza da necessidade lgica? Qual a natureza da filosofia? Como estas perguntas esto relacio-nadas uma com a outra?Quando estava pesquisando sobre o assim chamado argumento da linguagem privada de Wittgenstein a fimde escrever minha dissertao demestrado, compreendique as reflexes de Wittgenstein sobreo pro-blemadalinguagemprivadanopoderiamserentendidasdemodoapropriadosemrealizarumapesquisa sobre as reflexes de Wittgenstein a respeito da natureza da necessidade gramatical. Um dos principais obje-tivos das reflexes de Wittgenstein sobre o problema da linguagem privada mostrar que certas concepes sobreanaturezadamenteedalinguagemoriginam-se,entreoutrascoisas,deummal-entendidosobrea naturezadecertasproposiesemqueseusamexpressespsicolgicasparaseexpressaralgonecessrio. Porexemplo:OutrapessoanopodeterminhasdoresouAdordeoutroumaoutrador.1Deacordo com Wittgenstein, algumas vezes chamamos ateno para certos aspectos gramaticais (ou lgicos) do nosso modo de usar expresses psicolgicas usando essas sentenas. Gramatical significa aqui (mas no apenas) queessaespciedeproposiesexpressanecessidadenoemprica.Portanto,umcorretoentendimentodas reflexesdeWittgensteinsobreoproblemadalinguagemprivadadependedeumentendimentocorretoda natureza dessa necessidade gramatical.AsreflexesdeWittgensteinsobreanaturezadanecessidadegramaticaloulgicasointernamente relacionadas s suas reflexes sobre o conceito de seguir uma regra. Wittgenstein v a natureza da necessida-de gramatical como algo de algum modo constitudo pelos modos de se usar a linguagem, e ele concebe esses modos de seusar a linguagem comoprticas, como atividadesnormativas(isto , realizadasde acordo com regras) realizadasno fluxode nossas vidas. Conseqentemente,um correto entendimento sobre as reflexes de Wittgenstein sobre a natureza do ato de seguir regras, e, portanto, das regras, essencial para se entender suas reflexes sobre a necessidade gramatical.Decidi, ento, levar a cabo uma pesquisa sobre esses temas (a natureza da necessidade gramatical e do ato de seguir uma regra) nos meus estudos para o doutorado. No comeo da pesquisa algo impactou-me co-moumaverdadeinquestionvel:nopossvelentendercorretamenteasreflexesdeWittgensteinsobrea 1 Frege usou o a ltima sentena para formular um princpio que ele usou em um dos seus famosos argumentos contra o psico-logismo.INTRODUO 2natureza da necessidade gramatical e do ato de seguir uma regra (que se esteja de acordo com Wittgenstein, quer no) sem tomar seriamente em considerao suas reflexes sobre a natureza da filosofia. E isso deveria serentendidodoseguintemodo:paraentendersuasreflexessobreanaturezadanecessidadegramaticale sobre o ato de seguir uma regra essencial entender o modo como Wittgenstein quer que abordemos os pro-blemasfilosficoscomosquaisestamoslidando.Umacertamudananomododeabordarosproblemas filosficos,deacordocomWittgenstein,umamudananomododesefilosofar,namedidaemqueas (di)solues dos problemas filosficos so encontradas justamente por meio de um certo modo de abord-los, em oposio s respostas que algum d ou poderia dar a eles. Essa a razo pela qual seus escritos filosfi-cos esto to cheios de questes. Wittgenstein disse algumas vezes que uma mudana no modo de se filoso-far era o principal objetivo da sua obra filosfica.2Tenteimostrar,nocasodoproblemafilosficosobreanaturezadanecessidadegramatical,comoo-correarelaoentreadissoluodosproblemasfilosficoseomododeabord-los.Dopontodevistada filosofiadeWittgenstein,essarelaomostra-sedeummodoespecialnocasodoproblemafilosficoda natureza da necessidade gramatical, pois a filosofia principalmente uma reflexo sobre problemas origina-dospormal-entendidosacercadanaturezadecertasproposiesgramaticais.Conseqentemente,refletir sobreanaturezadanecessidadegramaticalrefletirsobreoquensemgeralrefletimosemfilosofia;, portanto, em certa medida, refletir sobre a natureza dos problemas filosficos. Portanto, do ponto de vista da Wittgenstein, nossa concepo de filosofia afetada pelos resultados das reflexes sobre a natureza da neces-sidadegramatical.Poroutrolado,nossaconcepodefilosofiaafetaosresultadosdeumareflexosobreanaturezadanecessidadegramatical,namedida emque essa concepodefilosofia incorporacertasexign-ciasquenemtodaconcepodanaturezadanecessidadegramaticalpodesatisfazer.Sealgumconcebea filosofia como uma teoria a priori, por exemplo, estar tentando a conceber as proposies gramaticais como teses, as quais so tornadas verdadeiras por algum tipo de fatos. E isso significa: est-se tentado a conceber a justificaodeproposiesgramaticaisdeacordocomomodelodejustificaodeumafrasepormeioda indicao do que a verifica.3A viso de Wittgenstein da natureza da atividade filosfica no foi considerada seriamente por muitos comentadoreseintrpretes.NormalmenteelesconsideramavisodeWittgensteinsobreafilosofiacomo uma excentricidade perifrica irrelevante para julgar o sucesso ou o insucesso do seu tratamento de um pro-blemafilosficoparticular.Eissoarazopelaqual,creio,suasreflexessotofreqentementemal-entendidas.Ascrticasquesepretendequeatinjamsuasreflexesnoraramenteatingemoseualvo,mas muitas vezes no as reflexes de Wittgenstein. Um dos principais problemas dessas crticas e interpretaes o fato de que elas comeam com a atribuio de uma espcie de teoria filosfica a Wittgenstein. Normalmen-te, essa teoria uma ou outra forma de idealismo, ou um tipo especial de ceticismo, que assume criticamente edemodomaisconseqentealgunsprincpiosrealistas.Essasatribuiesestoequivocadas,comotentarei 2LFM ??.3Z 331.INTRODUO 3mostrar,noporqueWittgensteintinhaumateoriafilosficadiferentedessas,masporqueelenotinhane-nhuma teoria, embora o que ele diz seja claramente mais prximo do idealismo do que do ceticismo.Dizer que Wittgenstein no tem nenhuma teoria pode soar falso, pois, afinal, ele parece estar tentando todo tempo nos convencer por meio de argumentos que algumas teses filosficas so corretas, enquanto ou-trassoincorretas.Essaaparnciadeauto-refutaoumdosmaioresobstculosparaoentendimentodas reflexes de Wittgenstein sobre a natureza da filosofia. Tentei mostrar no apenas por que Wittgenstein no defendequalquerteoriafilosfica,masporqueaconceponotericadafilosofiaanicaalternativa compatvel com a rejeio do realismo, onde realismo significa a teoria filosfica que afirma que a verdade absolutamenteindependentedoreconhecimentodaverdade(sehreconhecimentodaverdade,diriamos adeptos da faco ctica do realismo). Isso incorpora a tarefa de mostrar onde nas reflexes de Wittgenstein podemos encontrar uma crtica dessa espcie de realismo. Essa crtica est contida nas suas reflexes sobre o conceito de seguir uma regra.UmdoserrosbsicosnoqualestbaseadaainterpretaodasreflexesdeWittgensteincomoauto-refutadoras consiste em supor que uma discusso argumentativa sistemtica, isto , uma discusso na qual as pessoas tentamconvencerumas asoutrasmostrandocertas conexes entre certas afirmaes, umadiscus-sona qual aspessoas estotentandodecidirque teoria a verdadeira com relao aalgo sobreoqual elas tmperguntas.Wittgensteinesttodotempotentandoevitarquesejamoscegosparacertaspossibilidades. Essa advertncia aplica-se perfeitamente para o caso da natureza da atividade filosfica. Nem toda argumen-tao sistemtica tem o objetivo de construir uma teoria. Se o que visamos apenas a clareza, ento nenhum acmulo de novas informaes ser de ajuda, mas apenas uma organizao explcita das informaes de que j dispomos.O principal problema com a assuno de que a filosofia uma teoria, entretanto, uma de suas conse-qncias implcitas.Se algum aceitaquea filosofia a priori, namedida emqueos problemasfilosficos no so resolvidos pela experincia, pelo acumulo de informaes empricas, por experimentos, e se a filoso-fia uma teoria, ento ela uma teoria a priori. Tentarei mostrar que dessa ltima afirmao se segue (de um modo mais ou menos complexo) que o ponto de vista do qual se pensa uma proposio um ponto de vista absoluto, uma viso de nenhum lugar. Se isso est certo, ento no se pode recusar o realismo e ainda man-terumaconcepotericadafilosofia.EssaarazopelaqualabordarasreflexesdeWittgensteincom simpatia pela sua crtica ao realismo e antipatia pela sua concepo de filosofia o primeiro passo para no entender corretamente nenhuma das duas coisas. Uma de minhas tarefas foi, portanto, reconstruir as crticas de Wittgenstein concepo terica da filosofia.Umadaschavespara se entender asreflexesdeWittgenstein sobre afilosofia tentardar sentidosua afirmaoque [s]esequisesseexpor teses emfilosofia,nunca se chegaria auma discusso sobre elas, porque todos estariam de acordo4 Deve-se fazer um esforo interpretativo aqui, pois parece que no poderia haverafirmaomaisfalsa,poisoquepoderiasermaiscomumemfilosofiadoquedebatessobrecertas 4PI 128.INTRODUO 4teses?Aquesto:oqueWittgensteinesttentandonosdizerpormeiodessaafirmaoprimafacieto falsa?Oprimeiropassonesseesforointerpretativoteremmenteumdosprincpiosmetodolgicosmais importantes de Wittgenstein: Diga o que quiser, desde que isso no o impea de ver o que ocorre.5 Quando Wittgensteindizque algo a no F, elenoquer (ou,pelomenos,noquer sempre)nos convencerdeque Fno tenhaou no lhe possa serdadoum sentidoque torne a proposio a F verdadeira.Deve-se in-terpretar essa negao com um esprito platonista. Plato disse que uma negao tal como a no F diz que a diferente de tudo o que F.6 O ponto importante aqui a nfase na diferena. Wittgenstein uma vez pre-tendeuusarcomomotoparaasInvestigaesFilosficasumafrasequeexpressasseessanfasenoatode mostrar diferenas como uma caracterstica essencial do seu trabalho filosfico.7 A fim de interpretar a nega-o de Wittgenstein essencial tentar ver a diferena ou diferenas para as quais ele estava chamando aten-o. Discusses sobre quais palavras so melhores (ou piores) para se mostrar diferenas so muito importan-tes (Moore levou isso s ltimas conseqncias), mas isso no deveria obliterar o fato de que so meios para um certo objetivo: mostrar diferenas. Mas assim como o que importa so as diferenas e no as palavras que usamosparamostr-las,certaspalavraspodemsimplesmentenosimpedirdeveressasdiferenas.Eaqui temos um outro princpio metodolgico da filosofia de Wittgenstein: Um modo de expresso inadequado ummodosegurodepermaneceremconfuso.Elecomoquenosimpedeocaminhoparaforadela.8por isso que, algumas vezes, Wittgenstein simplesmente se recusa a usar certas palavras em contextos em que se poderia achar natural us-las. Essa atitude tem a pretenso de evitar (entre outras coisas) a tendncia a enfati-zar a similaridade entre aquelas coisas que Wittgenstein est justamente tentando mostrar que so, em impor-tantes aspectos, diferentes. Algumas vezes justamente o oposto que ocorre: ele usa uma palavra em contex-tosemquepareceserobviamenteerradous-la,comoquandoeledizqueagramticaarbitrria.Alm disso,toimportantecomoperceberadiferenaqueWittgensteinesttentandonosmostrarperceberque espcie de diferena est em questo. Trata-se de diferenas entre tipos de uso da linguagem.A diferena mais relevante para se entender a concepo de filosofia de Wittgenstein a diferena en-treelaborarteorias,defenderteses,eaatividadedeclarificaoconceitual.Emoutraspalavras:essauma diferena entre usar a linguagem para veicular novas informaes, descrever novos fatos, e usar a linguagem parafazerobservaesgramaticais.Issonoimplicaque,paraWittgenstein,nousamosalinguagempara descreverfatosemfilosofia.Entretanto,essasdescriesnosoapresentadascomoteses.Elasentramno discurso filosfico sempre desempenhando o papel de ajudar a evidenciar aspectos gramaticais da linguagem, que so expressos em proposies gramaticais..A diferena mais relevante para se entender as reflexes de Wittgenstein sobre a necessidade gramati-cal a mesma descrita no pargrafo anterior, ou seja, a diferena entre usar a linguagem para veicular novas informaes,descrevernovosfatos,eusaralinguagemparafazerobservaesgramaticais.Todavia,nas 5PI 79.6 Plato, Sofista, 263b.7 A frase era de Shakespeare: Vou te mostrar diferenas (Rei Lear, Ato I, cena IV).INTRODUO 5reflexessobreanecessidadegramatical,essadiferenaenfocadadeumngulodiferente.Enquantoque nas reflexes sobre a natureza da filosofia ela vista como uma diferena entre os diferentes papis que ob-servaes gramaticais e descries de fatos desempenham no discurso filosfico, bem como a diferena entre descreverfatosemfilosofiaenacincia,aquiessadiferenavistacomoadiferenaentre,porumlado, asserirenegardescriesdefatose,poroutro,asserirenegarproposiesgramaticais.Poder-se-iapensar que, de acordo com Wittgenstein, no h nenhuma diferena aqui, pois a gramtica puramente descritiva.9Esse um ponto extremamente importante. Wittgenstein, mais uma vez, est tentando mostrar uma diferena quandodizque agramtica descritiva.Essadiferena est relacionada naturezada necessidadegramati-cal.Quandoinvestigamosagramtica,descrevemosalinguagem.Mastrata-sedeumadescriodeuma atividadenormativa,nodeumfatodanatureza.Sealgumfalaumalinguagem,entoeleestengajado numa atividade descrita na investigao gramatical. Descrever a linguagem desse modo um modo de expli-car o significado da palavra linguagem. Mas no h necessidade de se engajar nessa atividade. at mes-mo possvel modific-la. Algum poderia engajar-se em uma atividade muito similar nossa prtica lings-tica, embora diferentedela em certos aspectos muito importantes.No necessrioque exista alguma coisa errada com essa atividadediferente.Mas dependendodomodo como eladiferedanossa,nodiramosque so duas espcies do mesmo gnero. E essa atitude frente a essas atividades diferentes algo que a gramtica deve descrever, pois uma parte essencial da nossa prtica lingstica.Boa parte das reflexes maduras de Wittgenstein (a despeito do que pensam os revisionistas, isto , aqueles que defendem que as sentenas do Tractatus no expressam as opinies de Wittgenstein) so dirigi-dascontracertasconcepesdoTractatus.Porisso,suasreflexesmadurassomaisbementendidasem contraste com o Tractatus, como o prprio Wittgenstein j havia dito no prefcio s Investigaes. Por isso, o textoquese segue est dividido emduaspartes.Naprimeiraparte(caps.I-IV)procuromostrar comoWitt-genstein concebia anatureza danecessidade lgicano Tractatus. Tambmnecessrioexaminar a concep-o de filosofia do Tractatus para entender sua concepo da necessidade lgica. Nele se l que h somente necessidadelgica.10Entretanto,comodevemosentenderanaturezadessaltimaafirmao?Defendoque Wittgensteinsustentavaaexistnciadeaspectosmetafsicosdomundoedalinguagemquesoinefveise procuro mostrar por que a interpretao revisionista est equivocada (cap. IV). No captulo I, procuro mostrar a importnciada teseda independnciado sentidoem relao verdadeparao entendimentoda concepo tractariana de lgica e filosofia. No captulo II, exponho a concepo de pensamento do Tractatus e a relao dessaconcepocomsuaconcepodelinguagemelgica.NocaptuloIII,exponhoadoutrinatractariana da forma geral da proposio, que est na base da sua concepo de necessidade lgica.Na segundaparte(caps.V-VIII) exponho algunsdosprincipaispontosdas reflexesdeWittgenstein sobre a natureza da necessidade lgica e da filosofia, desde o incio do desmantelamento da filosofia da lgi-ca do Tractatus at os seus ltimos escritos. No captulo V, exponho as principais reflexes do assim chama-8PI 339.9 Cf. PI 496.10 Cf. TLP 6.37, 6.375.INTRODUO 6doperodointermediriodafilosofiadeWittgenstein:suasrazesparaabandonaratesedaindependncia mtuadasproposieselementares,seuprojetoparaaconstruodeumalinguagemfenomenolgica,o abandono desse projeto em favor da anlise da linguagem ordinria e a introduo das noes de gramtica, jogos de linguagem e semelhanas de famlia. Na ltima seco chamo ateno para o alvo de boa parte das reflexestardiasdeWittgenstein:anootractarianadedeterminaoabsoluta,queaprincipalnooda concepo de lgica como algo sublime.Na primeira parte do captulo VI, exponho as crticas de Wittgenstein noo de significao, propo-sioepossibilidadedoTractatus,quecompemaconcepodelgicacomoalgosublime.Anoode determinao absoluta exigeumrealismosemntico. Porisso, na segundapartedo captuloVI,procuro ex-porostraosgeraisdesserealismoedecomoeledeveincorporarumanoonormativadesignificado.Na ltimaseco,procuromostrarqueoprincpiodocontextoumaexpressodanormatividadeessencialdo significado. O captulo VII dedicado s reflexes de Wittgenstein sobre seguir uma regra. Com essas refle-xes,Wittgensteinatacaanoodedeterminaoabsolutae,conseqentemente,orealismoquedepende dessa noo. Procuro mostrar que a normatividade da linguagem essencialmente conectada normalidade, isto,queanormatividadedalinguagemdependedecertascoisasseremexcees,nuncaaregra.Ocaso centralafalsidade.Anormatividadedalinguagemincompatvelcomahiptesecticasegundoaqual todososnossosjuzosouasserescoerentespodemserfalsos,queahumanidadepossaterditosempre falsidades. compreendendo as razes disso que podemos ver a conexo essencial entre a normatividade da linguagemenossasprticas.Procuroexporanoowittgensteinianadeautonomiadagramticaemostrar queanecessidadelgicaeacompulsoligadarealizaodeoperaeslgicassefundamnopapelque certas prticas desempenham na nossa vida. Defendo uma interpretao no comunitarista da noo wittgens-teinianadeprticaeprocuromostrarqueoassimchamadoargumentodalinguagemprivadaumaparte complementar essencialdassuasreflexessobre seguirumaregra. Iniciooltimo captulo(VIII) comuma exposiodopapeldanoodecritrionasreflexesdeWittgenstein.Tentomostrarqueessanouma noopuramenteepistmica.AfilosofiadeWittgensteinnopodesercompreendidaapartirdamaneira tradicionaldeconceberasrelaesentresemntica,metafsicaeepistemologia.Orestantedocaptulo dedicadoamostrarqueWittgensteinnoumconvencionalista(comopensaMichaelDummett),nemum relativista (como pensa Barry Stroud), nem um idealista (como pensam G.E..M. Anscombe e Bernard Willi-ams).Poder-se-iapensarquerealismoeidealismo,comtodasassuasvariantes,exauremaspossibilidades dentro do debate sobre a relao entre a verdade e a assero justificada (ou conhecimento). Procuro mostrar que a filosofia de Wittgenstein constitui uma terceira via, que est essencialmente conectada concepo no terica da filosofia.Dada a extenso do texto, no incio de cada seco introduzi um sumrio dos pontos daquela parte do texto, para facilitar uma viso panormica das reflexes.Parao leitorbem informadoficar evidente aafinidade entrevriospontosda interpretaodeWitt-gensteinapresentadaaquieasinterpretaesdeG.P.BakereP.M.SHacker.Nemsempremencionoessa INTRODUO 7afinidadeealgumasvezescriticosuasinterpretaes.Entretanto,noqueroesconderaprofundainfluncia desses intrpretes sobre meu trabalho. Parte ILGICA E SUBSTNCIACaptulo I.ANLISE E SUBSTNCIA1. Sentido e VerdadeWittgenstein herdou de Frege e Russell a concepo de lgica como a priori e necessria. Wittgenstein herdou de Russell a tese da independncia do sentido em relao verda-de. Wittgenstein, diferentemente de Frege e Russell, concebia a lgica como puramente formal (independente do contedo de qualquer proposio). Para Wittgenstein, tautolo-gias e contradies so smbolos sem sentido.QuandoencontrouoparadoxodasclassesnosistemalgicodeFrege,Russelltentouconstruirumsistema alternativo, tendo, entretanto, de incorporar a ele o famoso axioma da infinidade.1 Esse axioma sempre cau-sou descontentamento, pois ele parece ser uma proposio emprica e, por isso, no necessria.2 Isso afetava no apenas a pureza a priori da lgica, mas tambm da matemtica, dado o engajamento de Frege e Russell noprojeto logicista.O axiomado infinito foinecessrio justamenteparafazercomqueo sistema lgicode Russell servisse a esse projeto.Wittgenstein foi iniciado na filosofia em uma tradio que concebia a lgica como a priori e necess-ria. Em meio a todas as mudanas que sua filosofia sofreu, ele nunca deixou de conceber a lgica dessa for-ma,aindaquesuaconcepodanaturezadoa prioriedanecessidadetenhasofridoumamudanaradical. Algo que fez parte dessa mudana foi o abandono da tese tractariana da independncia do sentido em relao verdade, a qual embasava a concepo tractariana da aprioridade e necessidade da lgica. Uma certa verso dessa tese funcionava como uma pressuposio da anlise russelliana das proposies que contm descries definidascomosujeitogramatical.EssaanlisevisavasuperarcertasdificuldadesgeradaspeloqueRussell entendia como a concepo fregeana da proposio. Voltemos, portanto, nossa ateno para Frege.ParaFregeumaproposiopodeserformadapormeiodopreenchimentodeumtipodefunoque tem semelhanas com funes que do origem a nomes complexos. Um nome complexo , por exemplo, o pai do sobrinho de Joaquim. Se no h ningum que seja o sobrinho de Joaquim, ento o nome o sobrinho deJoaquimnoternenhumareferncia,servazia,e,portanto,onomecomplexoopaidosobrinhode 1 Cf. IMP, esp. cap. 13, p. 131-143. Para as abreviaturas, ver bibliografia.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 10Joaquim tambm o ser. Nesse caso, a referncia do nome complexo determinada parcialmente pela refe-rncia do nome que o compe. Uma falha na referncia do ltimo determina uma falha na referncia do pri-meiro. O mesmo tipo de falha pode ocorrer, segundo Frege, com uma proposio.Uma proposio, como qualquer expresso, possui, de acordo com Frege, sentido e referncia. O sen-tidoomododeapresentaodeumareferncia.Arefernciadeumaproposiosempreumvalorde verdade: ou o Verdadeiro ou o Falso.3 O sentido de uma proposio, portanto, o modo de apresentao de umvalordeverdade.Fregeconcebia asproposiescujo sujeitogramatical umadescriodefinida como proposies predicativas singulares da forma O F G, onde O F seria um termo singular. Considere-se, por exemplo, a proposio (A) O atual imperador do Brasil corrupto. Segundo Frege, O atual imperador doBrasiltemafunodeumtermosingularem(A),e,portanto,(A)temreferncia,isto,umvalorde verdade, seja ele o Verdadeiro ou o Falso, apenas se O atual imperador do Brasil no for um nome vazio. A possibilidade de que haja uma falha na referncia de O atual imperador do Brasil implica a possibilidade de que haja uma falha na referncia de (A), a possibilidade de que (A) no tenha valor de verdade.4EsseresultadopareceuinaceitvelaRussell.AproposioOatualimperadordoBrasilcorrupto pareceserfalsa,noporqueaquelequeocupaocargoexecutivomaisaltonahierarquiapolticabrasileira sejaprobo,masporqueessecargonoodeimperadore,portanto,nohnenhumimperadordoBrasil. Russell tomou o caminho inverso ao de Frege: ao invs de partir de uma concepo prvia do tipo de funo quesoasfunesproposicionaisdeproposiesquecontmdescriesdefinidascomosujeitogramatical paraaconclusodequeasproposiesdessaclassequecontmdescriesdefinidasvaziasnopossuem valordeverdade,Russellvaidoreconhecimentodequetaisproposiespossuemumvalordeverdade,a saber,ofalso,para aconclusodeque afunoproposicionaldessasproposiesdeve serdeum tipodife-rente das funes que do origem a proposies predicativas singulares.5Segundo Russell, Frege errou ao no considerar todas as condies para que uma proposio tenha va-lordeverdadecomosuascondiesdeverdade.SeFregetivesseseorientadoporesseprincpio,noteria chegado a admitir a possibilidade de proposies com sentido que no possuem valor de verdade.Segundo Russell, a proposio (A) uma espcie de abreviatura de trs proposies: (1) H algo que oatualimperadordoBrasil,(2)HapenasumacoisaqueoatualimperadordoBrasile(3)Aquilo que o atual Imperador do Brasil corrupto. De acordo com Frege, o ter valor de verdade de (A), seja ele qual for, depende da verdade de (1). A anlise de Russell mostra que o ter valor de verdade de (A) depende apenas do ter valor de verdade de (1), seja ele qual for, no da verdade de (1). O que exige a verdade de (1) nootervalordeverdadede(A),masaverdadede(A).Destemodo,umaproposioquepareciatera forma lgica O F G, revela-se como tendo a forma lgica (x)(Fx(y)(Fyy=x)Gx). O suposto termo singular O imperador do Brasil desaparece com a anlise e aparecem apenas predicados (F, G), vari-2 Essa distino entre proposies acidentalmente verdadeiras e essencialmente verdadeiras explica a propsito o senti-mento que sempre se tem sobre o axioma da infinidade e o axioma da redutibilidade, o sentimento de que, se fossem verdadeiros, o seriam apenas por um afortunado acidente. (Carta a Russell, NB p. 126; cf. TLP 6.1232)3 Cf. SB pp. 157-158.4 Cf. SB p. 157.CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 11veis individuais (x, y), quantificadores ((x), (y)) e conectivos lgicos (, , =). A anlise de Russell mos-tra que a forma gramatical da proposio (A) no coincide com sua forma lgica. As descries definidas no so termos singulares, no funcionam como argumentos para variveis individuais (para funes de primeiro nvel) nos enunciados em que so usadas. A proposio (A) uma quantificao disfarada onde no aparece nenhum termo singular.6Aanliserussellianaorienta-sepelarejeiodasuposioqueumafunoproposicionalsejado mesmo tipo que uma funo que d origem a um nome complexo. A capacidade de uma proposio possuir valor de verdade diferente da capacidade de um nome complexo referir-se a alguma coisa. Uma proposio podepossuirumvalordeverdadeindependentementedequeumobjetosatisfaaumadescrioquenela aparea; independentemente, portanto, da verdade da proposio que diz que um objeto tal como a descri-o diz que ele .Russellmostrouqueumaproposiopodepossuirumvalordeverdadeindependentementedequal sejaovalordeverdadedasproposiesqueresultamdasuaanlise,aindaquenoindependentementede quetaisproposiespossuamumvalordeverdade.Se,pois,ascondiesparaqueumaproposiotenha valor de verdade devem constituir as suas condies de verdade e se uma proposio possui valor de verdade independentementedequalsejaovalordeverdadedasproposiesqueresultamdasuaanlise,isto,das proposiesqueconstituemassuascondiesdeverdade,entoumaproposiopossuivalordeverdade independentemente de qual seja o valor de verdade de qualquer proposio. Wittgensteinviuessaconseqnciaimplcitacomoumaintuiorussellianasobreaessnciadapro-posio.MaseletambmviuqueasanlisesdeRussellsebaseavamnumaintuiomaisfundamental:ter umvalor de verdadepertence essnciadeumaproposio. Para mostrar issono casodas proposies que contmdescriesdefinidascomosujeitogramatical,RusselltevequerealizarumatarefaqueWittgenstein consideroucomoomritodeRussell,asaber,termostradoqueaformalgicaaparentedaproposio pode no ser sua forma real.7 Estas duas intuies, como ser mostrado nesse captulo, vieram a constituir a base de uma concepo de lgica como a priori e necessria que seria desenvolvida no Tractatus.DiferentementedeFregeeseguindoaspegadasdeRussell,Wittgensteinviaumaconexoessencial entre o sentido de uma proposio e o seu possuir um valor de verdade.8 Uma proposio tem valor de ver-5 Cf. DIAMOND (1991[b]) pp. 188-189.6 verdade que O atual imperador do Brasil pode ser analisado assim: Atual imperador do Brasil(x) =def Imperador(x Bra-sil)ondeBrasilumtermosingulareatualimperadorumpredicadodidicorelacional.Mas,paraefeitodesimplificao, podemosconsiderar,comoFregepensa,atualimperadordoBrasilcomoumpredicadomondico.Dequalquerforma,oponto importanteaquiqueRussellmostrouque,contrariamenteaoqueFregepensava,OatualimperadordoBrasilnoumtermo singular, embora possa ser concebido como sendo constitudo por um termo singular.7TLP 4.0031. Frege certamente j havia feito isso e Wittgenstein o sabia. Isso sugere que os erros de Frege apontados por Rus-sell na sua teoria das descries definidas levaram Wittgenstein a considerar Frege ainda muito preso forma aparente das proposi-es. Da o mrito ser atribudo a Russell.8 verdade que Frege sustentou que, na lgica e na cincia em geral, no se pode admitir pensamentos sem valor de verdade. Isso,entretanto,nooimpediudeconceberapossibilidadedepensamentossemvalordeverdade.Nomitoenaficoocorrem pensamentos que no so nem verdadeiros nem falsos. A lgica no tem nada a ver com eles. Em lgica vale que cada pensamento ouverdadeirooufalso,tertiumnodatur. (BSLDp. 198)possvelque asentena como umtodotenha apenas um sentido,mas nenhuma referncia? De qualquer forma, poder-se-ia esperar que tais sentenas ocorressem, tal como h partes de sentenas que tem sentidomasnenhumareferncia.Esentenasquecontmnomesprpriossemrefernciaserodessaespcie.AsentenaUlisses PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 12dade porque uma representao de uma situao possvel9 e o sentido de uma proposio a situao pos-svel que ela representa.10 Com isso, a tese da independncia da posse de um valor de verdade em relao verdade de qualquer proposio transforma-se no Tractatus na tese da independncia do sentido em relao verdade: Uma proposio tem sentido independentemente de qual seja o valor de verdade de qualquer propo-sio.11 Isso significa que se podem determinar quais so as conseqncias lgicas no triviais de uma propo-sioquandose sabequal o seu sentido,poisquando se conheceoseu sentido, se conhece assuas condi-es de verdade, ou seja, tudo o que deve ser o caso para que ela seja verdadeira.12As proposies da lgica, que, segundo o Tractatus, so tautologias, bem como as contradies, pare-cem ser um contra-exemplo dessa tese.13 Se o sentido de uma proposio independente de qual seja o valor deverdadedequalquerproposio,entocompreenderumaproposio,isto,saberqualoseusentido, deveserindependentedesesaberqualovalordeverdadedequalquerproposio.Umaproposioda forma p~p parece dizer algo que seria verdadeiro, se as proposies p e ~p fossem ambas verdadei-ras. Mas dado que uma tal condio no pode ser satisfeita, uma proposio da forma p~p no pode ser verdadeira.Aproposio p, segundoo Tractatus, representaumasituaoque,seforocaso, a tornaver-dadeira e ~p falsa. Quando a situao descrita no o caso, p falsa e ~p verdadeira. O sentido de p constitudoporestasrelaeslgicas.Portanto,anecessriafalsidadedep~pexpressaumaspecto essencial do sentido de qualquer proposio. Se p~p necessariamente falsa, ento ela falsa indepen-dentementedequaissejamosfatos.Acontradiop~p,portanto,deveserreconhecidacomofalsaa partirdosmbolotosomente,independentementedeumacomparaocomosfatos.Issosignificaquea compreensodoquedizumacontradioenvolveoconhecimentodoseuvalordeverdade.Oquesecom-preendenumaproposiooseusentido.Portanto,osentidodeumacontradiodependedoseuprprio valor de verdade. Uma contradio, portanto, uma proposio cujo sentido no independente do seu valor de verdade ser o falso. (A mesma reflexo vale mutatis mutandis para as tautologias.)A soluo de Wittgenstein para esse problema revela uma diferena fundamental entre a sua filosofia da lgica e algo comum s filosofias da lgica de Frege e Russell. Se uma contradio falsa independente-mente dos fatos, ento no h nenhum papel que a comparao com os fatos possa desempenhar na constitui-odoseusentido.Entretanto,umaproposiopossuiumvalordeverdadeapenasporquerepresentauma situao que pode ou no ser um fato. Portanto, constitutiva do sentido de uma proposio a possibilidade de ela ser comparada com os fatos (embora, eventualmente, isso possa ser impedido por razes contingentes). Se, pois, a possibilidade de comparao com os fatos no desempenha nenhum papel na constituio do sen-tido de uma contradio, isso parece mostrar justamente que uma contradio no possui sentido. (A mesma chegoucostaemtacaadormecidoobviamentetemsentido.Mas,dadoqueduvidosoqueonomeUlisses,queocorrenela, tenha referncia, duvidoso que a sentena como um todo o tenha. (SB pp. 176-157)9 Cf. TLP 4.06. Mais adiante, exporei a justificao que Wittgenstein dava, no Tractatus, para essa afirmao.10 Cf. TLP 2.221.11 Cf. TLP 2.0211-2.0212, 4.061.12 Isso no quer dizer que essa determinao deva ser atual. Caso contrrio, aquele que entende os axiomas de um sistema for-mal deveria j saber quais so os teoremas desse sistema.13 Cf. DIAMOND (1991) pp. 192ss.CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 13reflexo vale mutatis mutandis para as tautologias.) Essa justamente a soluo de Wittgenstein. Tautologias e contradies no possuem sentido.14 Elas, no entanto, no so absurdas (unsinnig); so produtos legtimos das regras de um simbolismo lgico.15Todavia, se essencial para uma proposio possuir sentido, no se segue da reflexo anterior que as tautologiasecontradiesnosoproposies?Wittgensteinadmiteessaconseqncia.Eleafirmaqueas tautologias e contradies so casos-limite da ligao de sinais, ou seja, sua dissoluo.16 Entretanto, tauto-logiasecontradiessosmbolos.17Wittgensteinintroduzadistinoentresinalesmboloexplicitamente em 3.32-3.323: O sinal aquilo que sensivelmente perceptvel no smbolo. Dois smbolos distintos podem ter, portanto, o sinal (escrito ou sonoro, etc.) em comum designam, neste caso, de maneiras diferentes.18Sinalalgoperceptvelpelossentidosusadoparasimbolizareosmboloumtodoformadopelosinalmais algo,digamos, imperceptvel.Masoque junto como sinal aparte imperceptveldo smbolo?Poder-se-ia pensar que se trata do seu contedo semntico, o significado ou o sentido. O smbolo seria ento o sinal mais o seu contedo semntico. Em 3.31 Wittgenstein associa o smbolo a um sinal com sentido: A cada parte da proposio que caracteriza o sentido dela, chamo uma expresso (um smbolo). A prpria proposio uma expresso.19Massetautologiasecontradiessosmbolosenopossuemsentido,entoosentidono pode ser a parte imperceptvel do smbolo. Portanto, 3.31 no pode ser considerado como a apresentao de um trao essencialdeumsmbolo.Poderia, ento, serosignificado aparte imperceptveldo smbolo?Essa questo ser abordada com mais detalhe no captulo IV. O que se pode concluir agora o seguinte: tautologi-asecontradiesnosoproposies,massmbolosqueexpressamumadissoluodaligaodesinais. Quando a questo acerca do que a parte imperceptvel do smbolo for tratada, ser esclarecido o que Witt-genstein que dizer com dissoluo da ligao de sinais.Diferentemente de Wittgenstein, Frege e Russell acreditavam que as proposies da lgica so verda-dessubstanciaismaximamentegerais.Adiferena essencial entreumaproposiodafsica,porexemplo, e uma proposio da lgica seria o grau de generalidade de ambas. Enquanto que proposies da fsica dizem algo a respeito dos objetos e fsicos, a proposio (x)(F)(G)(H)((FxGx)(GxHx)(FxHx)), por exemplo, diria algo a respeito de quaisquer propriedades e objetos, sejam estes de que tipo for, fsicos ou no. Proposies da lgica tratariam da realidade do mesmo modo que proposies da fsica, porm sem nenhuma restrio do universo de discurso. Essa generalidade mxima das proposies da lgica garantiria sua aplica-ouniversal.Porque(x)(F)(G)(H)(FxGx)(GxHx)(FxHx)umaproposiodalgica, pode-seinferirTodososhomenssomortaisdeTodososseresvivossomortaiseTodososhomens so seres vivos.A generalidade das proposies da lgica, apesar de ser a mxima possvel, no generalidade reque-ridapelasproposiesque compem a exposio dos sistemas lgicosdeFrege eRussell.Nessessistemas, 14TLP 4.46ss.15 Cf. TLP 4.4611.16TLP 4.466.17TLP 4.4661.18TLP 3.322.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 14hdiferenasentretiposlgicos.H,porexemplo,variveisquegeneralizamsobreobjetos,asquaisso logicamente distintas das variveis que generalizam sobre conceitos, e no h nenhuma varivel que genera-lize sobre tipos lgicos distintos. Isso exatamente o que requerido por uma proposio que falasse sobre distines entre tipos lgicos.20 Por exemplo: a sentena Para todo tipo lgico, se ele um objeto, ento no umconceitoevice-versanopodeserescritanaconceitografia(Begriffsschrift)deFrege.Estasentena seriaumaformulaodadistinofregeanaentreobjetoeconceito.21NosistemalgicodeRussell,essa dificuldade aparece paradigmaticamente na teoria dos tipos lgicos, a qual visava evitar a possibilidade de se formular o paradoxo das classes em uma notao logicamente perfeita (em uma linguagem logicamente per-feita,diriaRussell).Russelllanoumodaidiadefamiliaridade(acquaintance)paraexplicarcomoas distinesentretiposlgicossoapreendidas.22Frege,porsuavez,lanoumodaidiadesugestes (Winke),ummeiodeacenar(winken)paraalgoqueestparaalmdeumcertoobstculo(Hemmniss) intransponvel que est fundado na natureza da linguagem (in der Natur unserer Sprache begrndet ist).23Frege introduziu um critrio para a compreenso destas sugestes: o domnio do simbolismo lgico que elas procuram elucidar. Se algum domina o uso das variveis para objetos e das variveis para conceitos, ento ele reconhece a distino a que se est acenando, porm no descrevendo, atravs das sugestes de Frege.24Emoposioaessaconcepo,digamos,substancialistadelgica,noTractatusWittgensteindesen-volveuumaconcepodelgicacomoumadisciplinapuramenteformal,vaziadequalquercontedo,na melhortradiokantiana.Comovimos,asproposiesdalgica,segundooTractatus,sodestitudasde sentido; so smbolos que expressam uma dissoluo da ligao de sinais. Para compreender como as regras lgicas do simbolismo podem permitir a possibilidade de smbolos que expressam uma dissoluo da ligao desinais(quesosinaisproposicionaisdestitudosdesentido),faz-senecessrioexporostraosessenciais do que se costuma denominar teoria figurativa da proposio, segundo a qual uma proposio tem sentido porqueumafiguraooumodelodarealidade.Estateoriadivididaemduaspartes.Naprimeira,Witt-gensteinmostraanaturezafigurativadaquiloqueeledenominaproposioelementar,aproposiologi-camentemaissimplespossvel.Nasegundaparte,eleprocuramostrar,porumlado,quetodaproposio uma funo de verdade de proposies elementares e, por outro, que todo o trabalho de representao reali-zado pela linguagem j feito pelas proposies elementares. Isso significa: nenhuma representao acres-centada s proposies elementares para que sejam geradas as proposies no-elementares. Se a proposio p uma funo de verdade de proposies elementares, p no representa nada que no seja j represen-tado nas proposies elementares das quais p uma funo de verdade. E na explicao do modo como sogeradas asfunesdeverdadedeproposies elementaresque se encontra aexplicaode como asre-graslgicasdosimbolismopodempermitirapossibilidadedetautologiasecontradies,smbolosqueex-pressam uma dissoluo da ligao de sinais (sinais destitudos de sentido).19TLP 3.31.20 Cf. RICKETTS (1996), pp. 61-62.21 Cf. CO.22 Cf. ML, cap. X.23CO p. 193.CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 152. Anlise e Sentido DeterminadoWittgensteinherdoudeFregeatesedadeterminidadedosentido.Adeterminidadedo sentido exclui a possibilidade de conceitos vagos e de proposies sem valor de verdade.Russellmostrouqueproposiesquecontmdescriesdefinidascomosujeitogramaticalsofunesde verdade de proposies mais simples. Se a tese da independncia do sentido em relao verdade univer-sal,entoosentidodestastrsproposiesdeveserindependentedaverdadedequalquerproposio.Se, pois, parecer que o sentido de uma delas depende da verdade de alguma outra, a anlise lgica dever mos-trar que isso no o caso. At quando essa anlise pode prosseguir?NosCadernos de Notas,entresuasprimeirasanotaesfilosficas,Wittgensteinperguntasehalgo comoaanlisecompletadeumaproposio.Essaperguntasurgecomoumaderivaodaperguntapela existnciadefatoscomamesmaformadasnossasconhecidasproposiessujeito-predicado.Wittgenstein sugereque estaltimaperguntasomentepode serrespondidasefor realizadauma anlise completadapro-posioemquesto.Essasugestoestariafundadaemdoispontos.(1)Dadoque,comomostrouRussell,a forma lgica de uma proposio no necessariamente idntica sua forma gramatical, no se pode concluir a partir da forma gramatical de uma proposio no analisada que h fatos com a mesma forma, pois a anli-se pode revelar que a forma em questo no a sua forma lgica. (2) Se a anlise puder prosseguir, ento a forma encontrada antes do trmino da anlise pode ser uma mera forma gramatical.25 A resposta de Wittgens-teinperguntapela existncia deuma anlise completadaproposio :uma tal anlisenoapenas existe, masdeveexistir. E estaresposta estbaseada essencialmente(masno apenas)nopostuladodo carterde-terminado do sentido,26 herdado de Frege, ao qual Wittgenstein alude, logo no incio dos Cadernos de Notas, comoumlembretedealgoquedeveriaguiarsuasreflexessobreanaturezadaanliselgica:Lembre-se que mesmo uma proposio sujeito-predicado no analisada um enunciado claro de algo totalmente deter-minado[etwasganzBestimmtes].27HumacontrovrsiaarespeitodoqueWittgensteinentendeportal postulado.PeterCarruthers,porexemplo,acusaNormanMalcolmdetersuposto,semargumento,quepor determinadoWittgensteinquerdizernovago.28Todavia,Wittgensteindefatocaracterizouocarter determinadodosentido,desde suasprimeirasreflexesregistradasnos Cadernos de Notas, pormeiode ar-gumentosqueexcluemapossibilidadedesentidosvagos.Napgina70elefazumarefernciaexplcita vagueza:Euapenasquerojustificaravaguezadassentenasordinrias,poiselapodeserjustificada.29AntesdeexaminarosargumentosdeWittgensteincontraapossibilidadedesentidosvagos,conveniente dizer algumas palavras sobre a vagueza.24 Sobre a impossibilidade de se falar sobre distines lgicas numa linguagem logicamente perfeita, cf. cap. IV.25 Ns podemos de fato dizer: temos sinais que se comportam como sinais da forma sujeito-predicado, mas isso significa que deve haver realmente fatos dessa forma? Isto , quando aqueles sinais so analisados completamente? E aqui se levanta novamente a questo: uma tal anlise existe? E se no, qual a tarefa da filosofia? (NB p. 2; cf. p. 62)26Cf.TLP3.23,ondeWittgensteinrelacionaestepostuladosuaidiadeobjetossimples.Essarelaoserabordadanova-mente nesse captulo.27NB p. 4.28 CARRUTHERS (1990), p. 178, nota 10. Cf. MALCOLM (1986), pp. 38-42.29NB p. 70.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 16Avaguezaprimariamenteumfenmenodostermosgerais.Seosnomesprpriossoconcebidos como tendo um sentido constitudo por uma descrio ou um feixe de descries, a vagueza poderia ser atri-buda aos nomes prprios, ainda que apenas de modo derivado, atravs da vagueza dos predicados que com-pem as descries. O mesmo ocorre com a vagueza atribuda a proposies.30Um predicado vago quando expressa um conceito vago. Um conceito vago F pode ser representado pelo seguinte diagrama:TudoaquiloqueestnaregioAdeterminadamenteF.TudoaquiloqueestnaregioCdeterminada-menteno-F.MastudoaquiloqueestnaregioBnodeterminadamentenemF,nemno-F.Hcoisas que, por alguma razo, no se pode determinar se devem ser localizadas em A ou C. Estas so as coisas que se localizam na regio B, e a indeterminao relativa a elas pode ser concebida de trs modos distintos, que correspondem a trs modos distintos de se conceber a vagueza. A vagueza pode ser concebida como (1) um fenmeno epistmico, ou como (2) um fenmeno metafsico, ou ainda como (3) um fenmeno lingstico.(1) Quando considerada como um fenmeno epistmico, a vagueza o produto de uma espcie de ig-norncia.Asemnticadospredicadosincorporariaoseguinteprincpio:qualquerpredicadoexpressaum conceitocujapertinnciaasuaextensodeterminadaporcondiesnecessriasesuficientes.Saberquais soestas condiesseriaumaquesto epistmica, cujafaltaderespostanodeveria serconsiderauma evi-dnciaparaainexistnciadetaiscondies.Odiagramaacima,portanto,noseriaumarepresentaoda extenso de um conceito, mas uma representao do modo como ns determinamos essa extenso a partir do conhecimentosemnticoque possumos,oumelhor,da falta de conhecimento.Aatribuiodevagueza aos conceitos, deste modo, seria uma iluso gerada por uma certa ignorncia.(2) Quando considerada como um fenmeno metafsico, a vagueza de um conceito nada mais do que um reflexo lingstico de um aspecto metafsico de uma certa classe de coisas. Neste caso, nem mesmo Deus poderiasaberquaissoascondiesnecessriasesuficientesparaquealgopertenaextensodeF,pois haveria coisas que no seriam nem F, nem no-F. O diagrama acima representaria, portanto, como as coisas so independentemente do modo como as conhecemos e de que tenhamos um conceito para classific-las do modo como o diagrama as representa.(3)Aconcepolingsticadavaguezaaquelasegundoaqualavaguezanonemumfenmeno epistmico, nem metafsico, mas apenas lingstico. Isso significa que dizer das coisas que elas so vagas ou 30 H outro sentido em que se pode falar de proposies vagas que no est relacionado vagueza dos termos gerais. Isso ocor-requandodizemoscoisasdotipoAlgumnessasalatemumaalturamenorquedoismetrosemaiorquecinqentacentmetros. ABCCAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 17precisasnofariasentido.Tampoucofariasentidodizerquehcondiesnecessriasesuficientesparaa aplicao de um predicado que so ignoradas por todas as pessoas que usam esse predicado; caso contrrio, a vaguezano seria apenas lingstica.Deacordo coma concepo lingstica,Deusnopoderiasaberquais so as condies necessrias e suficientes para a aplicao de F, no porque haja coisas que no so nem F, nem no-F, mas porque F no aplicado com base em tais condies. As regras que determinam o signifi-cado de F no so suficientes para determinar de antemo todos os casos de aplicao do predicado, isto , nososuficientesparadeterminarde antemoovalorde verdadede Fxpara todosos seuspossveis ar-gumentos.Todasestasconcepesdavaguezaprocuramdarcontada(queraparente,querreal)faltadelimites precisosdaextensodecertosconceitos.Seessafaltadelimitesprecisosreal(poroposioaaparente), entoissopareceresultarnumacertaindeterminaonovalordeverdadedecertasproposies.Senoh limites precisos entre o ser calvo e o no ser calvo, por exemplo, ento parece que a sentena Esta pessoa calvanotemumvalordeverdadedeterminadoemtodososcasosemquepodeserusadaparadescrever uma pessoa.Segundo Frege, esta no pode ser a caracterizao de um conceito e de uma proposio. Em Funo e Conceito,elediz:Assimvemosoquoproximamenteconectadoaquiloquechamamosconceitoem lgicadaquiloquechamamosfuno.Defato,podemosdizerdeumavez:umconceitoumafunocujo valor sempre um valor de verdade.31 Um pouco mais adiante, ele diz:Issoenvolveorequerimentoemrelaoaconceitosque,paraqualquerargumento,elesdevemterumvalor de verdade como seu valor; que deve ser determinado, para cada objeto, se ele cai sob o conceito ou no. Em outras palavras: com relao a conceitos, temos o requerimento da delimitao precisa; se isso no fosse satis-feito, seria impossvel determinar leis lgicas para eles. []O requerimento da delimitao precisa dos con-ceitos contm em si esse requerimento de que funes em geral devam ter um valor de verdade para todo ar-gumento.32Nas Leis Bsicas da Aritmtica, pode-se ler o seguinte:A um conceito sem limites precisos corresponderia uma rea que no tem linhas de fronteira precisas em toda a sua volta, mas que em certos lugares est vagamente fundida com o fundo. Isso no seria uma rea em abso-luto; e do mesmo modo um conceito que no definido precisamente erroneamente chamado um conceito.33A referncia s leis lgicas no segundo texto de Funo e conceito citado acima uma aluso ao problema que a possibilidade de conceitos vagos aparentemente coloca para o princpio do terceiro excludo. Um pou-co depois da passagem das Leis Bsica recm citada, Frege diz: O princpio do terceiro excludo realmente apenasumaoutraformadorequerimentoqueumconceitodevaterumafronteiraprecisa.Qualquerobjeto Em relao proposio Algum nessa sala tem um metro e setenta e cinco centmetros a primeira proposio pode ser conside-rada mais vaga, mas no porque se tenha usado nela um predicado vago.31FC p. 139.32FC p. 141.33GA p. 259.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 18que escolho tomar ou cai sob o conceito ou no cai sob ele; tertium non datur.34 Portanto, se conceitos va-gosfossempossveis,oprincpiodoterceiroexcludonoteriaaplicaouniversale,porconseguinte,no poderiaseraceitacomoumaleilgica.35Maisdoqueisso:Fregeafirmaquenenhumaleilgicapoderia governar tais conceitos. Portanto, segundo Frege, a definio de um conceito, quando possvel, deve especi-ficar condies necessrias e suficientes para a sua aplicao.A esserespeito,noperodopr-Tractatus e no Tractatus Wittgenstein concordou comFrege emdois pontos. Ele aceitou o que Frege chamou de princpio do terceiro excludo.36 Ele tambm negou a possibilida-dedeconceitosvagos.Eabasedessaaceitao,nosCadernos de Notas,estexpressaemargumentosque tmcomoorientaotericafundamentalumacertaconcepodanaturezadasinvestigaeslgicas.No comeo dos seus Cadernos de Notas, Wittgenstein diz: A lgica est interessada na realidade [Wirklichkeit]. E desse modo, em sentenas APENAS na medida em que elas so figuraes da realidade.37 A seguir ele diz que uma nica palavra, na medida em que ela no articulada, no pode expressar um pensamento que con-cordeounocomarealidade,quesejaverdadeirooufalso.Aestratgiaargumentativaaquiparecesera seguinte:combaseemcertosconhecimentosdecertosaspectosdarealidade,38Wittgensteinpassaa determinarascaractersticaslgicasque a linguagemdeve terparaquepossa represent-la, isto ,paraque possa expressar pensamentos verdadeiros ou falsos. Ele passa diretamente da afirmao de que a lgica est diretamente interessada apenas na realidade e somente de modo indireto interessada na linguagem (na medi-daemqueelarepresentaarealidade)paraaconsideraodequeumacertaclassedesmbolosnopode cumpriroimportantepapelquefazdalinguagemumobjetodeinteressedalgica:representararealidade. Essa mesma estratgia parece repetir-se nas suas reflexes sobre a determinidade do sentido.Emmeiossuasreflexessobreanaturezadaanliselgica,Wittgensteinconsideraasituaona qualseexigequeumatalanlisecheguenecessariamenteaelementossimples,aindaquenosepossadar nenhum exemplo de tais elementos. E continua impondo-se sobre ns que deve haver algum simples indivi-34Id.Ibid.Loc.cit.SegundoCarruthers,nestapassagemFregeestariaaparentementeconfundindooprincipiodoterceiroex-cludo(umaproposioqualquerpodeterapenasumdosdoisvaloresdeverdadepossveis:podeserverdadeiraoufalsa,euma terceiraalternativaestexcluda)eoprincpiodabivalncia(umaproposioqualquerdeveterumdosdoisvaloresdeverdade possveis, ou o verdadeiro ou o falso) (CARRUTHERS, 1990, p. 55). O modo como Frege explica o princpio do terceiro excludo mostrariaqueoqueeletememmenteabivalncia.Mas,aatribuiodessaconfusoaFregepartedaaceitaodequehumadistino entre estes dois princpios. Carruthers teria usado de uma forma mais coerente o princpio de caridade, cuja aplicao ele tantoprezanainterpretaodoTractatus,seousassetambmnainterpretaodeFrege,dizendoqueFregenoreconheceou,no mnimo, parece no reconhecer a distino entre estes dois princpios.35 Cf. nota 8 acima. Poder-se-ia perguntar aqui: Frege no admitiu a possibilidade de pensamentos sem valor de verdade? No isso que ocorre com sentenas que contm nomes vazios? (cf. SB p. 157; IL p. 194; BSLD p. 198) Isso por si s j deveria gerar um problema para o princpio do terceiro excludo. Por que ento Frege no argumenta contra a possibilidade de tais casos, tal como ele ofazcontraapossibilidadedeconceitosvagos?Ouento,porqueelenoadmiteaexistnciadeconceitosvagosforadacincia, comaressalvadequenacinciaelesnopodemseradmitidos?Fregeestipulouumaregraadhocparaevitarqueproposiesda cincia contenham nomes vazios (bedeutungslos): elas devem significar o nmero zero (SB p. 163).36 Cf. TLP 4.023.37NB p. 9. Todaminhatarefa consiste emexplicara naturezada proposio. Isto , especificar anatureza detodososfatos, cuja figurao a proposio. Especificar a natureza de todo ser [alles Seins]. (E aqui ser no significa existir seria ento absur-do.) (NB p. 39)38OtermoWirklichkeitusadonoTractatusparadesignaraquiloquetornaumaproposioverdadeira,umfato(cf.TLP4.023).CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 19svel, um elemento do ser, em suma uma coisa [ein Ding].39 Wittgenstein ento procura mostrar que a inca-pacidade de dar exemplos de elementos simples, de mencion-los pelo nome, no contra-intuitiva:No contra o nosso sentimento que ns no podemos analisar proposies at o ponto de mencionar os ele-mentospelonome?No,sentimosqueomundodeveconsistirdeelementos.Eparececomoseissofossei-dntico proposio de que o mundo deve ser o que , deve ser determinado [bestimmt]. Em outras palavras: o que pode vacilar nossa determinao, no omundo. Parece como se ao negar as coisas [isto , negar que os elementos simples existem] fosse o mesmo que dizer que o mundo pode, por assim dizer, ser indetermina-do no sentido em que nosso conhecimento incerto e indeterminado.O mundo possui uma estrutura fixa.40O argumento aqui parece ser o seguinte. O que uma proposio representa o que, se existir, se fizer parte do mundo, torna a proposio verdadeira. O que torna uma proposio verdadeira uma combinao de elemen-tosrepresentadospelaproposiocomoestandocombinados.Portanto,seumaproposiorepresentaalgo quepodefazerpartedomundo,asuaanlisedevepoder,aomenosemprincpio,sercompletada,isto, chegar aosnomesdoselementosque ela representa.Seesta anliseno for levada acabo,permanece inde-terminadooqueaproposiorepresenta.Se,pois,aanlisefosseessencialmenteinfinita,elaseriaessenci-almenteincompleta,e,portanto,seriaessencialmenteindeterminadooqueelarepresenta.41Massemesmo assim insistssemosque aproposio representa alguma coisa, ento oque elarepresentaseria indetermina-do. E isso implicaria atribuir indeterminao ao mundo, por oposio indeterminao da nossa representa-odomundo.Dadoquepareceabsurdopensarqueomundoindeterminado,isto,queomundono determinadamente desse ou daquele modo, a anlise de uma proposio deve poder, ao menos em princpio, ser conduzida ao ponto de se poder mencionar pelo nome os elementos cuja combinao ela representa. Isso implica que tudo o que uma proposio representa determinado e que toda proposio dever ter um deter-minado valor de verdade, o que, por usa vez, exclui a possibilidade de conceitos vagamente delimitados.Em outra passagem dos Cadernos de Notas, Wittgenstein diz:Quandodigo,porexemplo,queamesatemumajardadecomprimento,extremamentequestionveloque eu significo [meine]. Mas presumivelmente significo que a distncia entre estes dois pontos uma jarda, e que estes pontos pertencem mesa.42Wittgensteinpareceestaraquiargumentandoassim:possofracassaraotentardeterminaroqueeuquero dizer por uma jarda. Mas se digo que a distncia entre dois pontos de uma mesa igual a uma jarda, ento, dado que estes pontos pertencem mesa, a distncia que eu tenho em mente, deve ser to precisa quanto a distncia entre eles.Algum poderia objetar que a expresso uma jarda deve ter um significado geral, e no apenas em umaaplicao.MaisadiantenosCadernosdeNotas,Wittgensteinconsideraessaobjeoeargumentada mesma forma que na ltima passagem citada:39NB p. 62.40Loc. cit.41 Deve-se diferenciar aqui a anlise infinita de uma anlise finita de uma proposio que representa infinitos elementos.42NB p. 68.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 20Eu digo a algum: O relgio est sobre a mesa, e agora ele diz: Sim, mas se o relgio estivesse em tal e tal posio, voc ainda diria que ele est sobre a mesa? E eu ficaria incerto. Isso mostra que eu no sei o que eu queria dizer [meinte] por estar sobre em geral. Se algum me pressionasse desse modo a fim de mostrar que eu no sei o que eu signifiquei, eu diria: Eu sei o que eu quis dizer; quis dizer ISSO, apontando para o com-plexo apropriado com meu dedo. E nesse complexo eu realmente tenho os dois objetos em uma relao.43 difcil entender como apontar para o complexo sobre o qual se est falando para mostrar que o que se est querendo dizer preciso pode no ser um apelo ao carter determinado da realidade.Essa interpretao no incoerente (pelo menos no primeira vista) com o princpio segundo o qual verdades metafsicas podem ser obtidas apenas atravs de reflexes lgicas. Poder-se-ia dizer que o princpio expressa uma prioridade na ordem do conhecimento, no na ordem das coisas. As evidncias at aqui aduzi-dasparaessainterpretaotalveznosejamconclusivas.44Entretanto,oobjetivoprincipaldoexamedas passagens citadas nesse captulo no decidir essa questo, mas deixar claro os seguintes pontos:(i) A realidade [Wirklichkeit] deve, por meio da proposio, ficar restrita a um sim ou no. Para isso devesercompletamentedescritaporela.45Umaproposio,portanto,deveterumvalordeverdade.Uma proposio sem valor de verdade no uma proposio, um sinal proposicional desprovido de sentido. (ii) A anlise de uma proposio deve ser finita, completa. Deve-se poder chegar, na anlise, ao ponto de poder mencionar os elementos representados na proposio pelo nome. E aqui no se deve confundir uma anliseinfinitacomumaanlisequerevelaarepresentaodeinfinitoselementos(comopodeocorrerna quantificaouniversal).verdadequeinfinitoselementosnopodemsertodosnomeados(nosentidode batizar tais elementos, um de cada vez), pois chegar ao fim do processo de nomeao desses elementos mos-traria que seu nmero no infinito.46 Mas justamente porque so elementos, uma anlise que chegue a eles finitaecompleta,nopodeprogredir.47Dadaatesedaindependnciadosentidoemrelaoverdade, segundo a qual todas as condies para que uma proposio tenha valor de verdade, para que tenha sentido, pertencem s suas condies deverdade, a anlisedaproposiodeve tornar explcitas todas as suas condi-es de verdade, isto , todas as proposies que devem ser verdadeiras e todas as que devem ser falsas para que ela seja verdadeira. E isso significa que todas as conseqncias lgicas de uma proposio devem poder ser determinadas pela sua anlise.(iii)Comofoidito,Wittgensteintambmendossaarejeiodapossibilidadedeconceitosvagos(o que aparentemente um corolrio de (i)). A ltima passagem dos Cadernos de Notas citada mostra uma das estratgias de Wittgenstein para justificar a vagueza, a qual no repetida no Tractatus. Wittgenstein afir-ma que quando empregamos um predicado, podemos no saber o que queremos dizer com ele em geral, isto ,podemosnosaberdeterminarseu significadode antemopara todosos casosde sua aplicao.Masem cada caso, devemos saber o que dizemos. Isso sugere que a existncia de conceitos vagos uma iluso origi-43NB p. 70.44 Todavia, nas Observaes Filosficas Wittgenstein diz:Pois dado que a linguagem obtm seu modo de significar [die Art ihres Bedeutens] do seu significado [Bedeutung], do mundo, nenhuma linguagem que no representa esse mundo concebvel. (PRp. 80)45TLP 4.023.46Osnmerossoinfinitos.Nstemosumaregraparaproduzirnomesparatodososnmeros,paraproduzirtodososnume-rais. Mas, isso no significa que ns nomeamos todos os nmeros (no sentido de nomear explicado acima).CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 21nada pela exigncia de que o significado de um predicado seja determinado de antemo para todos os casos desuaaplicao.SegundooTractatus,entretanto,todonomedeumelementosimples(deumobjeto,na terminologiadoTractatus)devesergovernadojustamenteporumaregra(quenonecessitaserexplcita) quedetermine,pormeiodaespecificaodecondiesnecessriasesuficientes,todasassuaspossveis combinaes com outros nomes; caso contrrio ele no poder substituir um elemento na proposio (cf. cap. II).3. SubstnciaAtesedaindependnciadosentidoemrelaoverdadeimplicaapostulaodeuma substncia domundo.Nosepode falar daexistncia deobjetos,masapenas dassuas combinaes.A substnciao que garante osentido determinadoeindependenteda verdade.UmadasproposiesqueresultamdaanlisedeumaproposiodaformagramaticalOFG,como vimos, (x)(Fx). Para que essa proposio seja verdadeira, pelo menos uma proposio da forma Fx deve ser verdadeira (ou Fa, ou Fb, ou Fc, etc.). Isso significa que, do ponto de vista do Tractatus, o sentido de (x)(Fx) constitudo pelo sentido de proposies da forma Fx.48 Poder-se-ia pensar que o sentido de uma proposio da forma Fx depende do sentido de (x)(Fx), pois, afinal, parece que para que Fa, por exemplo,sejaverdadeira,(x)(Fx)deveserverdadeira;altimaumacondiodeverdadedaprimeira. Mas isso est em conflito com o fato de que Fa uma proposio singular. Alm disso, essa mutua depen-dncia seria circular.Suponha-se que a seja um nome de um elemento simples. Se a no existisse, Fa no teria valor de verdade,esetivesse,issosomenteseriapossvelseovalordeverdadedaproposioFadependesseda verdade da proposio que diz que a existe, a saber, (x)(x=a). Frege, como vimos, admitia essa possibili-dade, ainda que no em relao ao presente caso, pois, para ele, bem como para Russell,49 a existncia um conceitodesegundaordem,ouseja,umconceitoquenoseaplicaaindivduos,masaconceitos.Sendo assim, (x)(x=a) uma sentena mal formada do ponto de vista da lgica de Frege, ou seja, ela no expres-saumpensamento.AproposioexistencialquedeveriaserverdadeiraparaqueFafizessesentidoseria, segundoFrege,daforma(x)(Gx),ondeGdesignariaumaconceitoconstituintedosentidodea.50Wittgenstein,noTractatus,rejeitavaestaabordagemporduasrazesprincipais:(1)elafereatesedainde-pendncia do sentido em relao verdade; e (2) nomes de elementos simples, como veremos, no possuem sentido, mas apenas referncia. Se, portanto, para Fa ter sentido, a deve ter referncia, ento, do simples 47 Cf. TLP 4.2211.48 Em 5.526 Wittgenstein diz que Pode-se descrever integralmente o mundo por meio de proposies completamente generali-zadas, ou seja, sem que nenhum nome seja de antemo coordenado a um objeto determinado. Para se chegar, ento, ao modo habi-tual de expresso, deve-se, aps uma expresso: h um nico x tal que, simplesmente dizer que este x a. Isso parece sugerir queaproposio(x)(Fx)podesercompreendidasemquedissosesigaaexistnciadeelementossimples.Esseproblemaser abordado no captulo II, 3, em que exponho os traos gerais da concepo tractariana das proposies quantificadas.49 Cf. IMP pp. 178-179.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 22fatodehaverproposiesquedescrevemcombinaesdeelementossimplessegue-sequehelementos simples. E a existncia de tais proposies deduzida da existncia de proposies no analisadas e do prin-cpio da determinidade do sentido.Somando-seaesseresultadoatesedeque,emlgica,nadacasual,51pode-seobteraconclusode que os objetos existem necessariamente. Se em lgica nada casual, ento se algo uma possibilidade lgi-ca,entonecessariamenteumapossibilidadelgica.Eissosignifica,falandoanacronicamente,queWitt-genstein endossa o seguinte axioma do sistema de lgica modal S5: p(p). Ora, se Fa (onde a o nome de um elemento simples) tem sentido, se descreve uma possibilidade, ento, segundo o Tractatus, a possui referncia, ou seja, a existe.52 Portanto, a inexistncia de a implicaria que Fa no representaria uma possibilidade.Apergunta:haveriaaindaapossibilidadequeFarepresentariaseaexistisse?Ouseja,a possibilidadeque Farepresentava independentedapossibilidadede serepresent-la?Essapossibilidade deveria estar fundada na existncia possvel de a. Se a existncia de a fosse possvel, ento seria possvel que a fosse F, ainda que essa possibilidade no fosse representvel, na medida em que o significado de a a e no a possibilidade de a.53 Essa noo de possibilidade expressamente rejeitada por Wittgenstein no Trac-tatus.Oespaolgicoatotalidadedaspossibilidadeslgicas.Umaproposiorepresentaumlugarnesse espao,istoumapossibilidade.Sobreaexistnciadesselugar,Wittgensteindizoseguinte:Aexistncia desselugarlgicoasseguradato-somentepelaexistnciadaspartesconstituintes,pelaexistnciadapro-posiocomsentido.54Issosignificapelomenosquenopodehaverumapossibilidadequenopossaser representada.Sendoassim,senoforpossvelrepresentarumadeterminadapossibilidade,nosetratade umapossibilidade.Portanto,seainexistnciadeaimplicaqueapossibilidaderepresentadaporFano podemaisserrepresentada,entoessapossibilidade,naverdade,deixoudeserumapossibilidade,oque 50 Cf. SB p. 163.51 Na lgica, nada casual [] (O que lgico no pode ser meramente possvel. A lgica trata de cada possibilidade e to-das as possibilidades so fatos seus.) TLP 2.0121.52 Carruthers argumenta que de acordo com o Tractatus, o significado de um nome no o seu portador (Cf. CARRUTHERS, 1990,pp1-2,6-8).EssainterpretaoestariaapoiadapelofatodequeWittgensteinafirmaquenumeraiseanegaopossuem significado.Issodeixaabertaapossibilidadedequeumnometenhasignificadosemquesejanecessrioqueoqueelenomeia exista. Portanto, a semntica dos nomes prprios no poderia ser usada como premissa para demonstrar a existncia necessria dos objetos.SegundoCarruthers,quandoWittgensteinafirmaqueoobjetoosignificadodeumnome,oqueeleestdizendoque conhecerosignificadodeumnomesaberqueobjetoelenomeia,eparasaberisso,bastaconheceragramticadessenome.A gramticaseriaalgocomoosentidofregeano,ummododeapresentaodoobjeto.Umatalinterpretaotornariadifcilentender 2.0211.Seomundonotivessesubstncia,queproposiodeveriaserverdadeiraparaqueumaoutrativessesentido?Carruthers afirma que tal interpretao seria possvel se levssemos em considerao uma tese interpretativa ainda mais estranha: o sentido de uma proposio no suas condies de verdade. Um nome sem portador implicaria que uma proposio que o contenha no teria valor de verdade, embora tivesse sentido (p. 99). O erro de Carruthers consiste em deduzir que nenhum significado um objeto do fato de que nem todos so.53CarruthersapresentaecriticaumargumentoqueprocuramostrarquedeS5sesegueaexistncianecessriadosobjetos (CARRUTHERS, 1990, pp. 91-92). Tal argumento similar ao apresentado acima. (1) os mundos possveis w e v possuem diferen-tesobjetos(w={a,b,c},v={d,e,f};(2)aspossveiscombinaesdea,b,ecdeterminamoquepossvelemweaspossveis combinaes de d, e e f determinam o que possvel em v; (3) portanto, o que possvel em w no possvel em v e vice-versa, ou seja,oquepossvelemumcertomundopossvelnopossvelemtodososmundospossveis,oquecontrariaS5.Carruthers argumenta que a premissa (2) falsa. Segundo ele, dado que, no mundo possvel u, os objetos a, b, c, d, e e f existem, a possibilida-dedeacombinar-secom d, edcom e,por exemplo, seriam possibilidadesemwev. Esse argumento,secorreto,mostraria que a existncia possvel dos objetos no conflita com S5. Entretanto, ele tambm supe a impossibilidade de se pensar, de se representar, emw,apossibilidadededcombinar-secome,sobpenadenegarqueosignificadosdedeesejamdee.Possibilidadesno representveis,entretanto,soexplicitamenterejeitadasnoTractatus(cf.oqueseseguenotexto).Carruthers,entretanto,acredita que, segundo o Tractatus, o significado de um nome no o objeto que ele nomeia (cf. nota anterior).54TLP 3.4 (cf. nota 39).CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 23contraria S5. Conseqentemente, se a um nome de um elemento simples, ento a inexistncia de a deve serimpensvel.Issosignificaqueaexistenecessariamente,deveexistiremtodososmundospossveis.55Wittgensteindiz:bvioqueummundoimaginrio,pormaisquedifiradomundoreal,deveteralgouma forma em comum com ele. Essa forma fixa consiste precisamente nos objetos.56Oquesignificadizerqueoselementossimplesexistemnecessariamente?Queaproposio (x)(x=a),porexemplo,ondeaonomedeumelementosimples,verdadeiraemtodososmundos possveis? Se se tratasse de uma proposio, ento ela realmente seria necessariamente verdadeira. Wittgens-tein,entretanto,fazcorocomFregeaorejeitarque(x)(x=a)sejaumaproposio,aindaqueporrazes distintasdasrazesdeFrege.57 Umaproposiorepresenta umapossibilidade,uma combinaopossvelde elementos simples. possvel que a combinao representada por uma proposio no seja atual. Isso signi-fica que toda proposio contingente. Sendo assim, dado que (x)(x=a) no representa uma possibilidade, uma combinao de elementos simples, esse sinal no tem sentido.58 Por conseguinte, no faz sentido falar da existncia ou no existncia dos elementos simples. O que faz sentido dizer como os elementos esto, quais so seus estados. E dizer como eles esto no pode ser outra coisa que dizer com que outros elementos eles esto combinados, pois, afinal, o que seria atribuir uma propriedade a um elemento logicamente simples que nofosseumadescriodeumadessascombinaes?Comosepoderiadistinguiradoser-F-de-a,sea algo que no possui nenhuma multiplicidade lgica intrnseca? De nada adianta dizer que o ser-F distingue-se de a na medida em que outro elemento pode ser F sem ser a. O problema aqui justamente saber o que ser F, o que possuir uma propriedade intrnseca, quando aquilo que possui uma propriedade algo logica-mente simples.Esse argumento parece mostrar que propriedades no podem ser elementos simples. Esse o caso, se concebermos os elementos simples como devendo estar necessariamente combinados com outros elementos. Nessecaso,osimplesfatodesabermosqueFumapropriedadesimples,oquesabemospormeiodoque Wittgenstein chamou aplicao da lgica, fundamento suficiente para sabermos que a proposio quanti-ficada(x)~(Fx)necessariamentefalsa,oquecontrariaaafirmaodoTractatussegundoaqualapenas contradiessonecessariamentefalsas.59Seabandonarmosaconcepodoselementossimplescomone-cessariamentecombinadoscomoutroselementos,entoteremosdedarcontade5.552-5.5521,ondeWitt-55 Carruthers distingue existir em todos os mundos possveis e existir necessariamente. Segundo ele, algo existe necessari-amente se existe em todos os mundos possveis todo o tempo (CARRUTHERS, 1990, pp. 77, 85). Isso mostra que Carruthers con-cebeummundopossvelcomoalgoquenecessariamenteseestendenotempo.Kripke,ofilsofoqueintroduziuotermomundo possvelna filosofiacontempornea,diz quemuitaconfusopoderia ser evitadaseao invsda expressomundopossvel,fos-sem usadas as expresses (a) estados possveis do mundo, ou (b) histrias possveis do mundo, ou (c) situaes contrafactuais (KRIPKE, 1972, p. 15-20). A expresso (a) compatvel com a concepo de Carruthers. O mesmo no o caso em se tratando da expresso (b), pois se o estado em questo concebido estaticamente, ento uma histria possvel do mundo seria (plausivelmente) uma sucessode estadospossveisdomundo,ouseja,uma sucessodemundospossveis. Isso apenasmostra que aconcepode Carruthers no irrecusvel. possvel definir a existncia necessria como a existncia em todos os mundos possveis.56TLP 2.022-2.023.57 Para Wittgenstein, como veremos, os quantificadores no so conceitos de segunda ordem, pela simples razo de que no so conceitos.58 A existncia de um elemento simples no pode tornar verdadeira uma proposio, uma articulao de smbolos. Ambos no tem a mesma multiplicidade lgica.PARTE I - LGICA E SUBSTNCIA 24genstein parece estar dizendo que a lgica pressupe a existncia do mundo, ou seja, de combinaes efetivas de elementos simples, ainda que seja contingente que combinaes constituem o mundo.A partir dessa noo de uma propriedade de um elemento simples, pode-se dizer o seguinte: dado que os elementos simples existem necessariamente e que suas combinaes, suas propriedades, so contingentes, acidentais, os elementos simples existem independentemente de quais combinaes se efetivam, independen-tementedosseusacidentes.Elessoaquiloquepermaneceexistindoduranteasmudanasdeseusaciden-tes.60Assimdescritos,oselementossimplesaproximam-semuitodaquiloque,deacordocomadefinio clssica,se chamoude substncia: aquiloquepermanece atravsde todas assuasmudanasdealguma coi-sa.61Quandoumaproposioverdadeira,acombinaodeelementossimplesqueeladescreveexiste,ou seja,algoocasonomundo.Oselementossimples,portanto,soaquiloqueexisteindependentementedo que seja o caso. Wittgenstein define substncia justamente como o que subsiste independentemente do que ocaso,62 ediz entoqueos elementossimples,oque,noTractatus,Wittgensteindenominaobjetos,so uma substncia. Substncia do que? Os objetos constituem a substncia do mundo.63Aristtelesdiz: Asubstnciade cada coisa umanopormero acidentee,domesmomodo, ,por sua prpria natureza, algo que .64 O mundo no tem uma substncia por mero acaso. O mundo a totalida-de dos fatos, e fatos so a existncia de uma combinao de objetos. Os objetos so necessariamente a subs-tncia do mundo. Por isso, qualquer mundo possvel dever conter objetos,como j havia sido dito.65Pode-se agora entender a relao entre a substncia do mundo, a tese da independncia do sentido em relao verdade eo princpiodadeterminidadedo sentido.A idia de substncia um elemento essencial namanutenodessa tese edesse princpio. somenteporqueo mundopossui substnciaque aproposio temumsentidodeterminado e independentedovalordeverdadedequalquerproposio.Asubsistnciada substnciadomundonamedidaemqueessasubstnciaconstitudadeobjetossimplescujaexistncia no se pode representar numa proposiodetermina o fim da anlise de qualquer proposio, um fim sem o qual o sentido de uma proposio seria indeterminado e dependente da verdade de outra(s) proposio(es). Anaturezaaprioridalgicaestfundada,segundooTractatus,natesedaindependnciadosentidoem 59Se(x)~(Fx)verdadeira,entoFnoestcombinadocomnenhumoutroelemento.Mas,seoselementosdevemestar combinados,ento(x)~(Fx)norepresentaumapossibilidadee,portanto,noumaproposio.Portanto,se(x)~(Fx)tem sentido, ento o significado de F no pode ser um elemento simples.60 Cf. TLP 2.0271.61 Cf. p. ex., ARISTTELES. Metafsica, 1003b 5-10: De modo que tambm so vrios os sentidos em que dizemos que uma coisa , mas todos eles se referem a um s ponto de partida; algumas coisas so pelo fato de serem substncias, outras por serem modificaes de substncias, outras por representarem um trnsito para ela, a destruio, a privao ao a qualidade dela, ou pelo fato de a produzirem ou gerarem, ou por serem termos relativos substncia, ou a negao de um desses termos, ou da prpria substn-cia.62TLP 2.024.63TLP 2.021.64 ARISTTELES. Metafsica, 1003b 32-34.65 Cf. TLP 2.022-2.023. Poder-se-ia pensar que o Tractatus no exclui a possibilidade de que diferentes mundos possveis con-tenhamdiferentesobjetos.Nessecaso,mundospossveissignificariahistriaspossveisdomundo.Oproblemaaquiqueos objetosnoteriamexistncianecessria(nosentidodeCarruthers;cf.nota40).Apresentou-seumargumentoacimaqueconclua que os objetos existem necessariamente e definiu-se existncia necessria como existncia em todos os mundos possveis (num sentido diferente do de Carruthers). Se o argumento em questo um argumento do Tractatus, ento o Tractatus exclui a possibili-dade de objetos que no existem em alguns mundos possveis (em qualquer sentido).CAPTULO I - ANLISE E SUBSTNCIA 25relaoverdade.Todaproposiodescreveumasituaopossvelque,seexistir,seforumfato,atorna verdadeira. Essa situao possvel o sentido da proposio. Portanto, a independncia do sentido em relao verdadedequalquerproposiosuaindependnciaemrelaoaosfatos.Eseosentidoumasituao possvel, uma possibilidade lgica, e uma situao possvel o sentido de uma proposio, as possibilidades lgicas so independentes dos fatos. O que logicamente possvel no determinado pelos fatos, ou seja, a priori logicamente possvel. Essa a mesma razo pela qual o axioma deS5 mencionado acima verdadei-ro. Se uma possibilidade lgica uma possibilidade independentemente dos fatos, ento incondicionalmen-te (ou seja,necessariamente) umapossibilidade(analogamente,uma tautologia incondicionalmenteverda-deira e uma contradio, incondicionalmente falsa).Captulo II.FIGURAO, PENSAMENTO E FORMA LGICA1. FiguraoAteoria figurativa daproposio divididaem duas partes. (1) ateoria dasproposies elementares e (2) a teoria das proposies moleculares. H cinco condies para que al-go seja uma figurao: 1. Uma figurao deve ser uma combinao de elementos que re-presenta uma combinao de elementos. 2. Figurao e figurado devem ter a mesma mul-tiplicidade lgica. 3. Cada elemento da figurao deve estar no lugar de cada elemento do figurado. 4. A forma de afigurao deve representar o modo como os elementos do figu-rado esto representados. 5. O ato de pensar.NoperododoTractatus,Wittgensteinadotavaumadeterminadaconcepoacercadainvestigaolgica segundo a qual ela deveria investigar essncias, ou seja, aquilo que (necessariamente) comum aos e distinti-vo dos elementos de uma determinada classe. Isso significa que a essncia do ser- determinada por condi-es necessria e suficientes para se dizer com verdade que algo .1 A teoria figurativa da proposio a exposio do que essencial proposio. Nas seces 1, 2 e 3 ser abordada a primeira parte dessa teoria: aquela relativa s proposies residuais da anlise lgica, que Wittgenstein denomina proposies elementa-res.A teoria figurativa da proposio no , como alguns costumam dizer, apenas uma analogia entre pro-posiesefiguraes.Nelaaproposioconsideradacomosendorealmenteumtipodefigurao.2Para 1 O essencial na proposio , portanto, o que tm em comum todas as proposies que podem exprimir o mesmo sentido. Do mesmo modo, o essencial no smbolo, em geral, o que tm em comum todos os smbolos que podem cumprir o mesmo fim. (TLP3.341.Cf. 4.016; 4.5; 5.512; 5.47-5.471;5.4711) Como eu entendo asproposies elementares, porexemplo, elas devemter algo em comum; doutra forma, eu no poderia em geral falar coletivamente de todas elas como as proposies elementares. (NB p. 89)2 Uma passagem dos Cadernos de Notas parece ser um contra-exemplo do que acaba de ser afirmado: Pode-se negar uma fi-gurao [Bild]? No. E nisso reside a diferena entre figurao e proposio. A figurao pode servir como proposio. Mas, nesse caso,algoacrescentadoaelaquefazcomqueelaagoradigaalgumacoisa.Emsuma:possoapenasnegarqueafiguraoseja correta, mas a figurao eu no posso negar. (NB p. 33.) Mas, o que uma figurao que no diz nada? Uma figurao, no sentido ordinrio de figurao (e no sentido do Tractatus), tem um componente intencional ineliminvel. Uma figurao uma figura dealguma coisa (existente ou inexistente). Wittgenstein parece estar usando figurao aqui num sentido no ordinrio, para referir-se quilo que, na figurao, corresponde ao que, na proposio, ele chama de sinal proposicional (cf. TLP 3.32). No podemos negar o CAPTULO II - FIGURAO E FORMA LGICA 27Wittgenstein[a]figuraoummodelodarealidade,3domesmomodoqueumamaquete,umapintura, umaescultura,etc.Umatalteoria,tosimples,veioaoencontrodasexignciasdeWittgenstein,poisele esperava que a soluo das suas questes fosse assim, simples, como simples tudo o que lgico.4 Alguns aspectos essenciais da teoria figurativa apareceram j nos Cadernos de Notas.Na proposio um mundo como que colocado experimentalmente. (Como no tribunal em Paris um acidente de automvel representado por meio de bonecos, etc.)Isso deve revelar a natureza da verdade diretamente (se eu no fosse cego).Pensemosnaescritahieroglficanaqualcadapalavraarepresentaodoeladevesubstituir.Pensemos tambm no fato de que figuras reais de situaes podem ser corretas ou incorretas. :SeafiguradadireitanessafigurarepresentaohomemA,eada esquerdarepresentaohomemB,entootodopodeasserir,p.ex.:AestesgrimindocomB.Aproposio em escrita figurativa pode ser verdadeira ou falsa. Ela tem um sentido independentemente de sua verdade ou falsidade. Deve ser possvel demonstrar tudo que essencial considerando esse caso.5No Tractatus, Wittgenstein desenvolveu essa idia, cujo essencial o seguinte: uma figurao uma combi-naodeelementosquerepresentaarealidadeporquesatisfazas