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LIVROS, LEITURAS E LEITORES: A EDITORA GLOBO DE PORTO ALEGRE ELlZABETH W. ROCHADEL TORRESINI* 1. Os livros na cultura ocidental são tão antigos quanto a literatura iniciada com os poemas de Homero e Hesíodo na sua forma escrita em data não confirmada, provavelmente por volta do século VII a.C. Esses e outros escritos que Ihes seguiram foram gravados em folhas de papiro e copiados à mão durante muitos séculos, até que encontraram nos tipos móveis de Guttenberg uma nova forma de reprodução.' O caminho aberto pelo invento de Guttenberg possibilita a confecção do livro num formato semelhante ao que possui hoje, além de abrir caminho para a produção do jornal e da imprensa diária. Tal avanço tecnológico deve seu sucesso ao aumento da produção européia de papel entre os séculos XII e Xv. Na sua esteira surgem os editores, as editoras, os vendedores ambulantes de livros e as bibliotecas de livros de papel, diferentes das bibliotecas medievais de pergaminhos, bem como os leitores e as livrarias, que não existiriam como casas comerciais se as cidades não se tornassem locais de mercado permanente. Diz Arnaldo Campos sobre a relação entre os livros e as cidades: Na medida em que certas cidades se mostravam especialmente receptivas, o agente [comerciante] a ela retomava amiúde, acabando, não raro, por ali se instalar com uma loja, por sua conta ou do editor seu patrão, onde, além de vender livros, ia vender papel, pergaminho, tinta, e fazer encadernações. Os grandes editores, naturalmente, logo orocurerem as grandes capitais. 2 As cidades ganham as suas editoras, livrarias e papelarias. Com a difusão espantosa do livro, já a partir do século XVI, a cultura letrada * Professora do Departamento de História - PUCRS 1 HAVELOCK, Eric. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996. 2 CAMPOS, Arnaldo. Breve história do livro. Porto Alegre: Mercado AbertollEL, 1994. p.192. BIBlOS. Rio Grande, 10: 173-176. 1996. 173

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Page 1: LIVROS, LEITURAS E LEITORES: A EDITORA GLOBO DE PORTO … · das cidades. Assim, circulam livros, romances, livros de história, livros de leis, de ciência, de religião, de técnicas

LIVROS, LEITURAS E LEITORES:A EDITORA GLOBO DE PORTO ALEGRE

ELlZABETH W. ROCHADEL TORRESINI*

1. Os livros na cultura ocidental são tão antigos quanto a literaturainiciada com os poemas de Homero e Hesíodo na sua forma escrita em datanão confirmada, provavelmente por volta do século VII a.C. Esses e outrosescritos que Ihes seguiram foram gravados em folhas de papiro e copiados àmão durante muitos séculos, até que encontraram nos tipos móveis deGuttenberg uma nova forma de reprodução.'

O caminho aberto pelo invento de Guttenberg possibilita a confecçãodo livro num formato semelhante ao que possui hoje, além de abrir caminhopara a produção do jornal e da imprensa diária. Tal avanço tecnológico deveseu sucesso ao aumento da produção européia de papel entre os séculosXII e Xv. Na sua esteira surgem os editores, as editoras, os vendedoresambulantes de livros e as bibliotecas de livros de papel, diferentes dasbibliotecas medievais de pergaminhos, bem como os leitores e as livrarias,que não existiriam como casas comerciais se as cidades não se tornassemlocais de mercado permanente.

Diz Arnaldo Campos sobre a relação entre os livros e as cidades:

Na medida em que certas cidades se mostravam especialmentereceptivas, o agente [comerciante] a ela retomava amiúde, acabando,não raro, por ali se instalar com uma loja, por sua conta ou do editorseu patrão, onde, além de vender livros, ia vender papel, pergaminho,tinta, e fazer encadernações. Os grandes editores, naturalmente, logoorocurerem as grandes capitais. 2

As cidades ganham as suas editoras, livrarias e papelarias. Com adifusão espantosa do livro, já a partir do século XVI, a cultura letrada

* Professora do Departamento de História - PUCRS1 HAVELOCK, Eric. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996.2 CAMPOS, Arnaldo. Breve história do livro. Porto Alegre: Mercado AbertollEL, 1994.

p.192.

BIBlOS. Rio Grande, 10: 173-176. 1996. 173

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começa a tornar-se uma tendência importante. A impressão e a divulgaçãode livros voltados para o ensino, no século XIX, faz com que na Europa secomece a pensar num mundo sem analfabetos. Os leitores têm acesso auma multiplicidade de obras. Nas cidades, tornam-se leitores de leiturasvariadas.

A escrita e o livro desempenham um papel fundamental quando oprocesso de deslocamento das. massas do campo para a cidade torna-seirreversível com o avanço da industrialização. É através da escrita que seconsolida um pólo de entendimento geral necessário para o funcionamentodas cidades. Assim, circulam livros, romances, livros de história, livros deleis, de ciência, de religião, de técnicas e de filosofias, acessíveis, até ondeisso é possível, a todos.

2. Sobre leitores e leituras. O ato de ler e o ato de significar na leitura,diz Roger Chartier, não podem ser só imposição do próprio texto. Por issopodem ser feitas histórias de leituras. "A crença e a descrença andamjuntas, e a aceitação da verdade naquilo que se lê ou ouve não diminui asdúvidas fundamentais acerca dessa suposta autenticidade"."

Chartier acredita que os usos diferentes dos mesmos bens culturaissão enraizados nas nossas predisposições estáveis enquanto grupos. Asleituras tornam-se material de indagação para o historiador ao interrogar-sesobre o modo como essas leituras convivem com as convenções, asautoridades que determinam leituras e a espontaneidade de quem lê.Porém, Chartier chama a atenção para o estudo. das práticas de impressãona medida em que fixam ou transmitem a fala:

(...) o que eqüivale a dizer que consolidam sociabilidades edeterminam comportamento, atravessam tanto a esfera públicaquanto a privada e dão origem à crença, à imaginação e à ação.Subvertem toda a cultura, chegando a um acordo com as formastradicionais de comunicação e estabelecendo novas tiiterencisçôes.'

A cultura de impressão tipográfica originada no Ocidente ganha com aeletricidade e com a eletrônica o impulso final para a gestação de uma

3 CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova históriacultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 235.

4 CHARTIER, op. cit. p. 237-9. Ainda enfatiza, no mesmo lugar, que o estudo das prá-ticas de leitura permitem também acompanhar a circulação da escrita numa escala sem pre-cedentes. Esse é um aspecto muito interessante na medida em que Chartier trata dos usos daimprensa no Ocidente como uma prática usual e de acesso comum, enquanto que na China ena Coréia ela se manteve restrita aos usos administrativos e eclesiásticos. No Ocidente, aocontrário, depois de Guttenberg, toda a cultura pode ser vista como uma cultura de impressão.

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indústria cultural cujos processos de produção são semelhantes aos dequalquer indústria. O mercado exige que os livros sejam fabricados paraatender aos seus diversos setores, que são plurais tanto no sentido materialquanto na substância imaginária. 5

No Brasil, o desenvolvimento da indústria de livros coincide com oprocesso de industrialização, a adoção do trabalho assalariado, a imigraçãoeuropéia, o crescimento das vias de transporte e de comunicação e com acrescente concentração de renda na região centro-sul.

As primeiras editoras brasileiras são do século XIX. Os irmãos Garniere os irmãos Laemmert constituem as duas duplas de editores maisimportantes do século passado. Mais para o final do século, Francisco Alvestransforma-se num editor muito conhecido. Português de nascimento,associa-se em 1883 ao proprietário da Livraria Clássica do Rio de Janeiro edepois toma-se seu único proprietário. Especializa-se em produzir obrasdidáticas que proporcionam vendas seguras e permanentes. Seus negóciosatingem o mercado de São Paulo e Belo Horizonte, onde Francisco Alvesabre filiais.

O centro da produção editorial até então era o Rio de Janeiro. Nadécada de 1920, São Paulo passa a ser o principal pólo de produção delivros do Brasil, destacando-se Monteiro Lobato como o principal editor,idealizado r da primeira editora brasileira com uma linha editorial diversificadae voltada para o público nacional.

Depois de Lobato surgem grandes casas editoras, como aBrasiliense, a José Olympio, a Livraria Martins Editora, a CivilizaçãoBrasileira e a Livraria e Editora Globo, entre outras.

3. A Editora Giobo nasceu da Livraria do Globo em dezembro de18836. Seu endereço: Rua da Praia, centro de Porto Alegre. Suaespecialidade inicial: papéis e material de tipografia, livros em branco para aescrita das empresas.

Nas primeiras décadas do século XX, a Globo publica algumas obras,mas é somente depois de 1930 que, além de intensificar a produção delivros, passa a investir no ambicioso projeto editorial de lançarquinzenalmente a Revista do Globo, que teve circulação ininterrupta de 1929a 1963.

Apesar da importância que é dada à edição de autores gaúchos,

fi COSTA LIMA, Luiz . Comunicação e cultura de massa. ln: (org.). Teoria dacultUTa de massa. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 33.

fi Todos os dados apresentados a partir daqui fazem parte da minha dissertação demestrado inlitulada: Editora Globo: uma aventura editorial nos anos 30 e 40, apresentada noCurso de Pós-Graduação em História da PUCRS em 1988.

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como mostra a Revista do Globo e os jornais locais, a Livraria do Globocomeça um projeto editorial que contempla a literatura ocidental,nomeadamente a literatura de origem anglo-saxOnica e voltada para o gostopopular.

Nessa época, Erico Verissimo é contratado para dirigir a revista. ComHenrique Bertaso, filho de José Bertaso, proprietário da empresa, acabaformando uma das mais famosas duplas de editores brasileiros.

A Seção Editora da Globo definia-se, até então, por uma linha editorialespecifica, voltada para o Rio Grande, seus grandes temas, seus poetas eprosadores. Isso não impede que os editores divulguem obras da literaturaocidental, sobretudo aquelas voltadas para o gosto mais popular.

Surge em 1931, por influência da dobradinha Henrique e Erico, aColeção Amarela, com livros de Edgar Wallace, o campeão de vendasdessa coleção, e de outros autores. Compõe-se de novelas policiais, decrime, mistério e aventura, bastante populares, de autores praticamentedesconhecidos no Brasil. São novelas de leitura acessivel, lançadas emedições de grande tiragem para a época. Atraem leitores bem variados eformam a argamassa popularesca da editora, como disse uma vez EricoVerissimo.

São criadas também a Coleção Espionagem, a Coleção Verde, deromances para senhoras e senhoritas, a Coleção Nobel, com obras deautores célebres da literatura contemporânea, 'e a Coleção Universo, o maisrico filáo da editora, cujo principal nome é Karl May. Entre 1936 e 1937,Erico Verissimo escreve histórias infantis para a Coleção Nanquinote,projeto dedicado às crianças.

A Globo aposta nessa época numa linha editorial marcada peladiversidade e determinada pelo gosto do público e pelo consumo, bem aoestilo de uma indústria de livros. As coleções possibilitam um custo maisbaixo em função das tiragens maiores. Sobre as características dessasedições, afirma-se no Correio do Povo que a Coleção Globo, pelo preço,formato e critério de escolha, constitui uma das que deve figurar nasestantes dos bons leitores. "( ...) Aliás a 'Coleção Globo' já estárecomendada pela procura que tem de seus volumes, esgotados já emalguns milhares"."

O cinema falado começa a seduzir platéias e a divulgar uma vidamenos aristocrática, mais burguesa e povoada por aventuras e indescritíveisemoções. E quando se entra em contato com os relatos dos intelectuaisdesse período, descobre-se que o cinema norte-americano fascinou todauma geração com sua nova linguagem, inédita, reveladora de uma novaépoca, de novas experiências, marcadas pela possibilidade de novíssimas

7 CORREIO DO POVO, 3 dez. 1933. p. 12.

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tecnologias. Essa linguagem que o cinema propôs traz, por sua vez, aliteratura produzida nos Estados Unidos.

Em 1938, começam a ser editados pela Globo os clássicos daliteratura ocidental numa nova coleção chamada Nobel. São traduzidasobras do francês e do inglês e contratados os mais capacitados intelectuaisbrasileiros. Essas traduções são de alta qualidade e altos custos, atestando,através do tratamento dados às obras, o desejo dos editores de fazer daGlobo uma das melhores editoras do Brasil.

O total de edições entre 1938 e 1939 é de 130. Em 1940, é de 187títulos, o que faz desse ano um momento excepcional para a editora. Oslivros publicados exigem a partir de então muito mais dedicação dos editoresno que se refere a tradução, capas, ilustração e à própria composição eimpressão.

Além da literatura ficcional, depois de 1940 a editora lança obrasligadas às ciências humanas, dicionários, gramáticas e livros de culinária elazer. Por tudo isso, na década de 40 a Globo situa-se entre as maioreseditoras do Brasil.

O aparecimento de edições voltadas para o ensino superior estáligado à fundação da Universidade de Porto Alegre, núcleo que deu origem àUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, pelo interventor José AntonioFlores da Cunha, em 1934. Nesse ano, e por decreto, as diversas unidadesde ensino superior existentes em Porto Alegre, e que tinham autonomiaentre si, são integradas.

Dos 1674 títulos identificados, lançados pela Globo entre 1931 e1948, aproximadamente 604 obras estão relacionadas ao ensino, o querepresenta um percentual de 36%. Todas essas publicações comprovamque a Globo investe no ensino nos anos próximos à fundação da Faculdadede Porto Alegre.

O prestígio cresce com a tradução de Honoré de Balzac, MareeiProust, James Joyce, Virginia Woolf, Leon Tolstoi, William Faulkner, AndréGide, Bernard Shaw, Aldous Huxley, Somerset Maugham - a lista é bastantelonga - com a publicação da Enciclopédia Brasileira Globo e com o sucessonacional dos livros de Erice Verissimo, de Olhai os lírios do campo (1938) aoaparecimento do último volume de O tempo e o vento (1963).

Pode-se afirmar que até 1947 a atividade editorial - traduções,elaboração de enciclopédias, organização de coleções - é incessante. Oseditores investem na diversidade e transformam, ao longo dos anos, oacervo da Globo num conjunto plural de estilos, autores, gêneros e tipos depublicações. Contemplam, assim, uma variedade de leitores. Depois de1947, os registros das edições começam a diminuir e, segundo os próprioseditores, a atenção se volta para os livros técnicos, livros-ferramentas, queatendem às novas exigências da especialização profissional; continua

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editando a obra de Erico Verissimo e a Enciclopédia Globo, além de manteros cursos de línguas estrangeiras, mais precisamente o britânicoLinguaphone, à base de discos e fitas sonoras.

Já em 1948, as grandes obras, tão caras a Henrique Bertaso e a EricoVerissimo, começam a desaparecer do Livro de Registro da Globo; o volumedas edições voltadas para o campo literário diminui, configurando a novapolítica editorial da empresa. Após o falecimento de José Bertaso, osherdeiros optam pela transformação da empresa em sociedade anônima -Livraria do Globo S.A. - da qual a Editora Globo torna-se uma filial. Em1986, o respeitável acervo de 2830 títulos passa a ser administrado, porcompra, pelas Organizações Globo.

Esse acervo, um dos mais importantes da língua portuguesa,resultado de uma conjuntura histórica favorável, associada à iniciativa deHenrique Bertaso e Erico Verissimo, é um patrimônio que pertence a nósbrasileiros.

Construir uma imagem histórica da Globo e das leituras que ela geroué uma tarefa de auto-reconhecimento. É indispensável, a meu ver, porquetodos nós, na nossa história de leitores, fomos tocados por um desses livros.Sem eles, não temos como compreender o nosso repertório cultural.

178 BIBLOS, Rio Grande, 10: 173·178, 1998.